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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
“PRETA, PUTA E POBRE”: REPRESENTAÇÕES SOBRE UM CORPO ABJETO A
PARTIR DE UMA EX-PROSTITUTA
Jacykelly Renata França Oliveira1
Gutierrez Alves Lôbo2
Márcia Swênia Brito da Silva3
Resumo: Este artigo objetiva discutir sobre as representações do corpo a partir de uma ex-
prostituta, refletindo as estratégias e táticas de resistência diante dos valores morais de conduta e
honra naturalizados na sociedade. O estudo foi realizado tendo como método um estudo de caso
com uma ex-prostituta. Foi utilizada como instrumento para a coleta de dados uma entrevista com
perguntas abertas para análise do discurso, no intuito de examinar e discorrer sobre a temática em
tela. A pesquisa conta com um referencial teórico que reflete sobre a temática que consubstancia as
discussões. O que se pode perceber, é que um corpo prostituído ocupa um lugar abjeto relegado à
humilhação e ao desprezo coletivo. Visto também como fonte de renda para “si” e de prazer para o
“outro”. Ao mesmo tempo, não se pode desconsiderar que os marcadores sociais da diferença como
gênero, classe e raça são fundamentais na presente análise. Na pesquisa, pudemos perceber que a
participante do estudo, em sua trajetória de vivência na prostituição, aponta, ao invés de uma
fragilização a partir do estigma do corpo prostituído/vendido, uma experiência de aprendizado,
força e resistência.
Palavras-chave: Mulher. Corpo. Prostituição.
Notas introdutórias
Goldenberg (2011) vai nos informar que na atualidade o corpo é um verdadeiro capital:
físico, simbólico, econômico e social. Físico, por não se tratar de qualquer corpo, mas aquele que se
enquadra nos padrões determinados pela sociedade, portanto, jovem, magro e sexy. Simbólico, pois
coloca o indivíduo numa insegurança, ou dependência simbólica do olhar do “outro”, que dita
através de várias capturas o que deve ser um corpo ideal. Econômico, pois este deve ser alcançado
através de muito investimento financeiro, entrando as diversas estratégias do mercado para
transformá-lo em corpo consumidor. E Social, pois se torna um importante veículo de status e
ascensão social.
1 Graduada em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, linha de pesquisa: Gênero, Diversidade e
Relações de Poder. Contato: [email protected] 2 Graduado em Serviço Social pelo Centro Universitário Dr. Leão Sampaio - Unileão. Pós-graduado em Direito das
Famílias pela Universidade Regional do Cariri – URCA. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, linha de pesquisa: Gênero, Diversidade e Relações de Poder. Contato:
[email protected] 3 Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social pela Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, linha de pesquisa: Gênero, Diversidade e
Relações de Poder. Contato: [email protected]
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Percebe-se, desse modo, que esse corpo não é um corpo qualquer, estando envolto num
conjunto de signos, simbologias e, principalmente, de valores. Estes valores vão demarcar, de um
lado, o que seja socialmente aceito e, de outro, o que é devidamente rejeitado, recusado, dignos de
humilhação e desdém.
Nessa sociedade onde o corpo fala sobre e por nós, o sexo também tem sua dimensão social
e simbólica, sendo elemento de honra e nunca motivo de desonra para o homem, isso se pensarmos
nos padrões de sociabilidade construídos para homens e mulheres. Em que a atividade sexual
demasiada e poligâmica, é símbolo de virilidade e macheza para o masculino. Do contrário, a
mulher que faça uso do seu corpo para a atividade sexual da forma que julgue correta, fica exposta e
sofre as represálias da sociedade machista. Nessa cultura, a atividade sexual feminina segrega as
mulheres entre as que são do lar e para casar e as que são da rua e para o sexo.
Encontramos no estudo Modalidades e identidades no cenário da prostituição feminina, de
Patrício Vieira, a constatação de que a prostituição era prática respeitada e elevada a níveis de
poderes sagrados, a forma como vai ser encarada, muda completamente, com o surgimento da
sociedade patriarcal, que dentre outras coisas, vai restringir a independência econômica e sexual das
mulheres, marcando a partir deste momento da história, uma ampla discriminação à prostituição.
A partir desses valores patriarcais a sociedade passa a criar polarizações e binarismos, de um
lado, os corpos que representam os valores de honra da família, e de outro, os que põem em risco
estes valores. Enquadrados como corpos em desacordo, o corpo prostituído vai ter a marca social
impressa da desonra, da abjeção.
Como corpos abjetos, tomamos como referência os estudos de Miskolci (2012), que vai
definir como “abjeto”, todo aquele que representa ameaça à ordem estabelecida pela sociedade.
Aqueles que, por qualquer motivo, intimidam o bom funcionamento à ordem social e política e
perturbam a identidade. A experiência social em ser temido e recusado com repugnância quer pelo
simples fato de existirem, ameaçam a visão homogênea e estável da sociedade.
Essa visão homogênea e estável, nada mais é do que uma designação essencialista e
normativa dos códigos morais que nos acompanham e tornam naturais e válidos os nossos discursos
e práticas no tempo.
Partindo do pressuposto de que as pessoas e as suas vivências com os seus corpos não são
homogêneas, tampouco naturais, neste estudo, pretendemos discutir sobre as representações do
corpo a partir de uma ex-prostituta, refletindo as estratégias e táticas de resistência diante dos
valores morais de conduta e honra naturalizados na sociedade.
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A discussão é de extrema relevância social, pois versa sobre uma questão constitutiva da
dimensão humana – o corpo, a partir de uma experiência particular, a vivência de um corpo
feminino estigmatizado, objetificado e invizibilizado socialmente. Não a abordar, seria pôr em
xeque as múltiplas possibilidades de existências, não os problematizar, reforça estes valores
hegemônicos de honra e de conduta da família patriarcal – estruturada, sobretudo, na monogamia.
Virgem ou prostituta? Qual o lugar do meu corpo?
“[...] aos 16 anos [...] tive que mudar de cidade porque foi uma matéria que saiu nos
jornais e minha mãe ficou com vergonha. As amigas que eu tinha, as mães proibiram de
sair, porque mesmo violentada, eu não era mais virgem, se eu não era mais virgem, eu era
prostituta.”
A virgindade é uma marca moral e cultural que se aloja no corpo feminino através da
construção patriarcal que orienta a sociedade. A ideia de pureza liga-se a honra masculina, a mulher
pura, portanto, virgem, guarda e tem seu corpo como um espaço intocável. Do contrário, a impura e
não virgem, que perdeu justamente esse atributo, que lhe foi dado pelo sagrado, que lhe foi
confiado, deve sofrer as represálias e exclusão social.
É importante situar que o presente estudo não pretende polarizar essa lógica de que existem
apenas duas vivências a partir dos nossos corpos, a saber: o corpo virgem e o corpo prostituído, pois
quaisquer tentativas nesta direção leva a simplificação e restringe as inúmeras experiências que um
corpo pode ter. O que torna relevante situar é como a sociedade, a partir dos valores que expressa,
define os lugares de honra e o de vergonha, estabelecendo assim relações de poder/saber
(FOUCAULT, 1997).
Os corpos expressam as marcas de uma cultura, das experiências dos sujeitos e mais ainda,
de como estes podem constituí-los discursivamente, atribuindo significados e identidades. Estas
identidades, longe de serem fixas e pré-determinadas representam o tensionamento dessa
experiência. “Inscrevemos nos corpos as marcas de identidades e, consequentemente, de
diferenciação” (LOURO, 2010, p. 15).
Nessa perspectiva, Silva (2000, p.100) denuncia que:
A identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato
performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada.
A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a
sistemas de representação.
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Portanto, a questão da representação se abre como uma possibilidade de reflexão destas
experiências. Num estudo realizado sobre a representação feminina dos corpos prostituídos na
imprensa escrita, Alves e Martelli (2011, p. 5) vão nos informar que, “a meretriz é vista como uma
mulher que apresenta um comportamento desviante”, aquele corpo que precisa ser controlado,
domesticado, disciplinado e vigiado em função de não usar sua sexualidade apenas para a
reprodução ou satisfação pessoal no reforço da intimidade da casa.
O trecho da fala que abre esta sessão demonstra a representação da categorização do corpo
que não é mais “casto”, “puro”, “virgem”, portanto, considerado inferior, desviante. Apresentando
de forma clara, a imposição social de que “se não é mais virgem”, então, “só pode ser prostituta”,
reforçando as polarizações e simplificando as experiências vividas.
Nessa direção, Goofman (1988) nos apresenta um recorte histórico dos indivíduos que
desde a Antiguidade Clássica até os dias atuais são colocados na posição de inabilitados para a
aceitação social plena, estes denominados de “estigmatizados”. Que podem ser representados
socialmente pelos: viciados, criminosos, ciganos, homossexuais e prostitutas. Sendo engajadas
numa espécie de negação coletiva da ordem social.
A teoria Queer, a partir da segunda metade da década de 1980, vai surgir como reação e
resistência a esse pensamento sobre a negação coletiva dos indivíduos, questionando a
heteronormatividade e ressaltando o aspecto socialmente contingente e transformável dos corpos e
da sexualidade (BUTLER apud SCAVONE, 2008).
Pensar sobre a contingência e transformação dos corpos e da sexualidade nos faz
problematizar os limites dos que estão dentro e fora da norma naturalizada socialmente. Faz-nos
questionar o lugar da “abjeção”. Por abjetos, são compreendidos os que perturbam toda e qualquer
ordem naturalizada, uma crítica a todos os regimes de normalização e a todos os valores
hegemônicos construídos, desmascarando como estes valores compõem experiências de vergonha,
de estigma.
Portanto, a abjeção:
“[...] em termos sociais, constitui a experiência de ser temido e recusado com repugnância,
pois sua própria existência ameaça uma visão homogênea e estável do que é a comunidade.
O “aidético” identidade do doente de aids na década de 1980, encarnava esse fantasma
ameaçador contra o qual a coletividade expunha seu código moral” (MISKOLCI, 2012, p.
24).
Como se pode observar há socialmente uma construção normativa, discursiva em torno da
representação sobre os nossos corpos e estas têm implicações na constituição das nossas
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identidades, como nos percebemos e como subjetivamos o “corpo consagrado”, os signos e marcas
que devem expressar o corpo aceitável e saudável.
“Meu corpo como arma de vingança”: a prática de si e percursos de resistência
Como foi dito anteriormente, as identidades são tensionadas pelas experiências que
vivenciamos. Saber como o poder se exerce através dos nossos corpos, a partir também, de suas
construções discursivas é importante estratégia de subversão e resistência.
Por meio de várias estratégias, com múltiplas origens, o corpo está inserido em um campo
político, no qual "as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o
dirigem, o supliciam sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais"
(FOUCAULT, 1997, p. 28).
O corpo deverá cumprir seu papel, seguir os rituais, demonstrar os sinais. Os dispositivos de
controle são diversos: a família, a religião, a medicina, a psiquiatria, a jurisprudência. Exemplo
destes dispositivos operando para o controle dos nossos corpos, está na confissão religiosa. Por
meio de técnicas da confissão "os prazeres mais particulares do indivíduo, as próprias emoções da
alma, poderiam ser solicitados, conhecidos, medidos e regulados" (DREYFUS; RABINOW apud
MENDES, 2006).
O surgimento da sociedade patriarcal vai demarcar o assujeitamento econômico e sexual das
mulheres e a prostituição será marginalizada, estigmatizada, discriminada (VIEIRA, 2014). Partindo
do pressuposto de que esta vai ser compreendida a partir dos vários momentos históricos,
depreende-se que os diversos fatores – econômicos, sociais, relacionais e discursivos – definirão de
que forma a prostituição vai ser explicitada, e nesse espaço demarcado, há um campo de relações de
poder e força.
[...] é diante da ideia de que o poder, como relação de forças, funciona sempre como
produtor de afetos, que a resistência aparece para Foucault como um terceiro poder da
força. Se as forças se definem segundo o poder como um afetar e um ser afetado, resistir é a
capacidade que a força tem de entrar em relações não calculadas pelas estratégias que
vigoram no campo político. A capacidade que a vida tem de resistir a um poder que quer
geri-la é inseparável da possibilidade de composição e de mudança que ela pode alcançar.
(JR., 2017, p.2)
O texto Corpo feminino e formas de violência: discursos e práticas, de Rachel Soihet
(2005), vai nos apresentar várias formas de estratégias de resistências. Exemplos são apresentados
de mulheres que mesmo convivendo com relações abusivas, dão os primeiros sinais de resistência
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às normas naturalizadas do casamento e na família. A recusa das esposas em ter relações sexuais
com seus companheiros, a traição feminina, a recusa nos afazeres domésticos, são exemplos de
maneiras de burlar o aprisionamento a que se encontram estas mulheres.
O corpo prostituído como “arma de vingança”, estratégia de sedução, de realização do
prazer do “outro”, o masculino, foi utilizado pela participante da pesquisa, como estratégia de
resistência contra o masculino e, porque não dizer em maior amplitude, a todo um ordenamento de
valores sociais. Pensar na resistência, nessa capacidade de resistir é fulcral nesse estudo, entendida
como capacidade de criar e recriar novos percursos, trajetórias de prática de si.
“Preta, puta e pobre”: questões para análise
O presente estudo possui abordagem qualitativa, tendo em vista que reside na abordagem
interpretativa da realidade social. Objetivou discutir sobre as representações do corpo a partir de
uma ex-prostituta, refletindo as estratégias e táticas de resistência diante dos valores morais de
conduta e honra naturalizados na sociedade. O estudo foi realizado tendo como método um estudo
de caso com uma ex-prostituta, que aceitou espontaneamente participar da pesquisa.
Foi utilizado como instrumento para a coleta de dados uma entrevista com perguntas abertas
para análise do discurso, no mês de janeiro de 2017, no intuito de examinar e discorrer sobre a
temática em tela. Trata-se, pois, de um tipo de pesquisa que se debruça sobre valores, fenômenos
sociais ou acontecimentos da realidade social.
O estudo de caso se caracteriza enquanto uma forma de analisar e discorrer os fenômenos
sociais presentes na realidade social. Trata-se, pois, de um processo de observação acerca do objeto
estudado. Resultante disso proporciona a construção de conhecimentos sobre determinado
fenômeno e intervenções no mesmo.
[...] os estudos de caso utilizam estratégias de investigação qualitativa para mapear,
descrever e analisar o contexto, as relações e as percepções a respeito da situação,
fenômeno ou episódio em questão. E é útil para gerar conhecimento sobre características
significativas de eventos vivenciados, tais como intervenções e processo de mudança.
Assemelha-se à focalização sobre um experimento que se busca compreender por meio de
entrevistas, observações, uso de banco de dados e documentos. (MINAYO, 2007, p. 164)
“Preta, puta e pobre”, é uma das primeiras representações da fala da participante desta
pesquisa. Nesse sentido, os estudos recentes sobre os marcadores sociais da diferença e as
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interseccionalidades4 das categorias de raça, gênero e classe no Brasil se tornam relevantes para
estudos como este. É importante reforçar que o racismo, em nosso país é estruturante nas relações
sociais, é marcado por heranças multiculturais e étnicas e possui artimanhas e articulações que
perpetuam algumas desigualdades sociais, econômicas e culturais (CASTRO, 2016).
A análise a partir desses marcadores nos dá a dimensão, de forma aproximada, do quanto é
complexo ser mulher (prostituta), pobre e preta neste país. A participante do estudo em tela tem o
corpo marcado por uma trajetória de existência e resistências. Em finais da década de oitenta é
quando se depara com o “submundo” relegado a vivência na prostituição. Interessante é que a
história se entrelaça justamente como estratégia de resistência à dor de ser mulher e negra.
Num dos trechos da sua fala, descreve com lágrimas, o período onde foi violentada,
chegando a ficar dezessete dias internada, pois teve rompimento de colo de útero, quando um cano,
foi inserido em sua vagina. Desacordada, no hospital, não sabia ao certo o que tinha acontecido.
Quanto ao processo do caso em questão, ela nunca soube seu despacho final, talvez mais um, dos
milhões de casos que vemos e ouvimos diariamente, quando se trata de “pobre e negro” neste país,
os dados são simplesmente ocultados numa verdadeira queima de arquivo.
Vítima de abuso sexual desde a infância cresce com experiências diversas de violência no
decorrer de sua trajetória. O corpo representado é de dor, vergonha, nojo e humilhação. Por diversas
vezes, a fala dela vai nessa direção.
Quando questionada sobre as experiências que seu corpo carrega, relata:
“[...] várias, muitas, diversas e diversificadas... prazer, dor, nojo, muitas vezes dá nojo, há
lembranças que nos enojam”
“[...] em relação ao corpo da mulher prostituta, o ato da prostituição, o corpo da mulher,
nada mais é do que um objeto de mercado, naquele momento, ele precisa ser sedutor para
seduzir... agora eu já não falo mais sobre a minha história, eu falo do corpo da mulher
prostituta em si, que tem que passar essa expressão”.
Os trechos da fala vão na direção do corpo estigmatizado, marginalizado, o corpo “abjeto”
indicado por Miskolci (2012, p. 32), que ainda acrescenta, que pouco adianta passar da abjeção, da
injúria, para uma tabela de identidades “[...] a ideia não é apenas descobrir a forma correta de
chamar alguém, mas, antes questionar esse processo de classificação que gera o xingamento”, a
abjeção.
4 “[...] A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e
dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o
racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que
estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da
forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos
dinâmicos ou ativos do desempoderamento” (CRENSHAW apud SARDENBERG, 2015, p. 80).
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Questionar essa classificação requer discutir de que forma as identidades vão sendo
cristalizadas e a homogeneização que se naturaliza, a partir do que é considerado normal/anormal,
bonito/feio, bom/ruim, útil/inútil, enfim, uma gama de binarismos para explicar de forma
reducionista a complexidade das experiências.
É sabido que as inquietações e objetivos concretos vão variar de acordo com cada vivência,
portanto se torna importante pensar, como se deu o processo de constituição desse sujeito, como
suas vivências estarão capturando esse indivíduo, e de que forma se darão as suas representações
sobre o vivido e o aprendido.
Portanto, a identidade será sempre incompleta, não fixa, que não segue um padrão linear de
coerência. Ao tratar dessa construção identitária do sujeito contemporâneo, Hall (2006) salienta que
as identidades modernas estão sendo fragmentadas e deslocadas. Para o autor,
A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através dos processos
inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento [...]
Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo” sempre sendo formada.
Assim, em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de
identificação, e vê-la como processo em andamento. A identidade surge não da plenitude da
identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é
“preenchida” a partir de nosso mundo exterior, pelas formas através dos quais nós
imaginamos ser vistos por outros. (HALL, 2006, p. 38-39).
Então, falar sobre como se dá a construção da identidade de uma prostituta e como ela
representa o seu corpo, nos diz muito também, de como a sociedade vê e naturalizou os seus
códigos morais de honra e conduta, relegando a prostituição, ao lugar do escárnio, do descrédito,
portanto não deve ser levado em consideração. No tocante a percepção dela sobre como a sociedade
vê a mulher prostituta, ela declara:
[...] a gente já tava cansada de tanta humilhação, da sociedade achar que a gente era
incapaz de pensar, a gente só sabia... Me desculpa a expressão... trepar. A gente não sabia
nem pensar, pra sociedade a gente não pensava, e a gente queria confrontar, a gente
queria bater de frente com a sociedade, chocar... até porque a gente era cria da
sociedade... aí a gente já tava como a cria se revoltando contra o criador... E aí eles vão
ter que engolir...eu acho que todo esse processo que a gente vê das classes, de minoria é
uma expressão, um tanto quanto de revolta, a sociedade cria a gente e vem com discurso
demagógico pra cima da gente e depois descarta a gente...
O discurso “demagógico” apontado na fala nos leva a pensar no trato higiênico dos corpos.
Na década de início da vivência na prostituição da participante do estudo, a década de 1980,
coincide exatamente com o advento da AIDS no nosso país. Desta forma, é justamente neste
período, que o Ministério do Trabalho, em suas determinações legais, prevê que as profissionais do
sexo estão incluídas no grupo de vulnerabilidade às DST e à Aids. Tendo que fazer uso de recursos
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e métodos de segurança e higiene pessoal e do cliente. Prescrevendo assim a utilização do
preservativo feminino e/ou masculino, lubrificante à base d’água, contraceptivos, entre outros
(SILVA et al, 2010).
Em alguns momentos da fala da entrevistada ela aponta as intervenções que foram feitas
neste sentido:
(...) veio um projeto do Ministério da Saúde para cá, e a gente virou multiplicador de
informação DST e Aids, mas no caso, a gente foi obrigada a fazer o teste, no caso fui eu e
mais cinco colegas... Que a gente foi os escolhidos, que segundo o ministério, a gente era
os mais conversadores, os mais salientes lá do rebanho...daí fomos escolhidos para ser os
agentes multiplicadores. E eu lembro que a gente foi fazer...tinha que ser três Laboratórios
diferentes, fazia um no HU, outro no Doutor João Marinheiro, e o outro era ali próximo ao
HU, eram três Laboratórios para dar o teste e a gente recebeu esses testes.
Por que não precisava ser especialista para conhecer, pra ver que a sífilis estava dando no
auge, tava a olho nu, a manifestação, e ela (à época a primeira-dama da cidade) mandou
que a gente fosse pra maternidade, que levasse as meninas pra maternidade, e chegando
na maternidade, o único médico que aceitou trabalhar conosco, sem preconceito, foi o
doutor Altamar Miranda, os demais não queriam receber, o pessoal da saúde não queria
receber, diziam: chegou as putas! Então ninguém queria a gente.
A fala reflete o tratamento discriminatório que é dado e nos dá indícios de que por muito
tempo essa população também estava invizibilizada para a prevenção e cuidados com a saúde.
Quando ela fala “não precisava ser especialista para conhecer e para ver que a sífilis estava dando
no auge, tava a olho nu”, representa que as intervenções em saúde, de fato, não alcançavam essa
população. Em seguida, talvez por determinação legal, ou simplesmente porque a doença “enfeia a
cidade”, através de seus dados estatísticos, houve as primeiras intervenções. Mas, deixa-nos
também claro, a preocupação com o corpo higiênico, pois nenhum trabalho informativo ou
pedagógico foi evidenciado na fala da entrevistada, deixando essa população vulnerável no tocante
a saúde.
Ainda sobre o corpo, a participante da pesquisa aponta usá-lo como arma de vingança,
vingança esta, direcionada ao masculino, como tática de resistência a sociedade machista e
patriarcal. A experiência atravessada de dores, também refletiu nesta experiência, estratégias de
resistência e sobrevivência. Sobrevivência, quando este corpo é usado como fonte de renda, quando
em atividade “chegava a sair com os policiais” para não ser presa. E resistência, quando se impõe
uma postura de amedrontamento ao cliente. Na sua fala, ela diz que para sua segurança andava
armada e por ter estatura alta, sempre impusera certo respeito.
[...] quando eu aceitava o convite de um cliente, eu já não tinha mais medo dele, ele que
tinha medo de mim... Hoje as coisas estão mais diferenciadas, mas na época de 1980 era
comum, era bem comum você encontrar uma prostituta armada com estilete, e eu sempre
tive fascínio por arma de fogo. E dizem que eu atiro bem, não sei, dizem né? kkkkkkk [...]
então... não sei se pela fascinação, mas a arma de fogo ela me dá uma sensação de poder.
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A resistência também aparece na sua fala, quando na vivência da maternidade, ela fugia,
para cuidar dos seus filhos, no qual relata ser o único momento em que sentia que algo era
realmente seu. Como estratégia para cuidar dos filhos, fugia sempre que engravidava para outros
centros, e assim poderia exercer a maternagem com mais tranquilidade. Hoje, seu corpo é
ressignificado pelas estratégias concretas de resistência que foi ao longo do tempo dando passos
neste sentido.
Considerações finais
O que se pode perceber, é que um corpo prostituído ocupa um lugar abjeto relegado à
humilhação e ao desprezo coletivo. Visto com nojo, desdém ou também como fonte de renda para
“si” e de prazer para o “outro”, não se pode desconsiderar que os marcadores sociais da diferença
como gênero, classe e raça se interseccionam para confirmar o preconceito e a discriminação.
Na pesquisa, podemos perceber que a participante do estudo, em sua trajetória de vivência
na prostituição, aponta, ao invés de uma fragilização a partir do estigma do corpo
prostituído/vendido, uma experiência de aprendizado, força e resistência.
Acredito que além dos aspectos legais, no intuito de descriminalizar a prostituição, falar
sobre o corpo, ressignificar as dores vividas, promover estratégias de resistência, são aspectos que
poderão potencializar a desnaturalização dos valores patriarcais, fazendo com que esse corpo possa
experienciar novas vivências, mais felizes, mais suaves, mais afirmativas, uma relação de amor com
o corpo, como bem expressa nossa entrevistada: “com o passar dos anos penso o meu corpo como
uma caixa de surpresa... a gente idealiza como algo especial e é na realidade, e hoje eu vejo de
uma forma mais suave, não sei se pela idade, hoje já tenho mais amor pelo meu corpo, antes eu
não tinha, hoje eu tenho mais cuidado antes eu também não tinha”.
Referências
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"Black, whore and poor": representations about an abject body from a former prostitute
Abstract: This article aims to discuss the representations of the body from a former prostitute,
reflecting the strategies and tactics of resistance facing the moral values of conduct and honor
naturalized in society. The study was conducted with a former prostitute using as research method a
case study. For data collection, we used as instrument an interview with open questions for
discourse analysis, in order to examine and discuss the subject proposed. The research relies on a
theoretical framework that reflects about the subject, which consubstantiates the discussions. What
can be perceived is that a prostituted body occupies an abject place relegated to humiliation and
collective contempt. Viewed also as a source of income for "herself" and pleasure for the "other."
At the same time, it cannot be disregarded that the social markers of difference such as gender,
class, and race are fundamental in the present analysis. In the research, we could perceive that the
study participant, in her trajectory of experience in prostitution, points, rather than a fragilization
from the stigma of the prostituted / sold body, an experience of learning, strength and resistance.
Keywords: Woman. Body. Prostitution.