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11 Mal levantara o machado para descê-lo sobre a cabeça da velha quando a história de Crime e castigo lhe atra- vessou o espírito. Fulmina-o. Seus braços tremem; suas pernas vacilam. E o machado escapa-lhe das mãos. Racha o crânio da mulher e fica enterrado lá. Sem um grito, a velha desaba sobre o tapete vermelho e preto. Seu véu com motivos de flores de macieira flutua no ar antes de cair sobre o corpo gordo e flácido. Ela treme de espas- mos. Respira mais uma vez. Talvez duas. Seus olhos ar- regalados fixam Rassul, de pé no meio do cômodo, sem fôlego, mais lívido que um cadáver. Seu patou escorrega dos ombros salientes. O olhar aterrorizado se perde na onda de sangue, este sangue que escorre do crânio da ve- lha e se confunde com o vermelho do tapete, recobrindo assim seus contornos escuros, depois flui lentamente para a mão carnuda da mulher, que segura um maço de notas. O dinheiro ficará manchado de sangue. MalditoSeja_1ªed_MLO_fb.indd 11 19/9/2012 15:43:34

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Primeiro capítulo do romance MALDITO SEJA DOSTOIÉVSKI, de Atiq Rahimi. Cortesia da Editora Estação Liberdade.

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Mal levantara o machado para descê-lo sobre a cabeça

da velha quando a história de Crime e castigo lhe atra-

vessou o espírito. Fulmina-o. Seus braços tremem; suas

pernas vacilam. E o machado escapa-lhe das mãos. Racha

o crânio da mulher e fica enterrado lá. Sem um grito, a

velha desaba sobre o tapete vermelho e preto. Seu véu

com motivos de flores de macieira flutua no ar antes de

cair sobre o corpo gordo e flácido. Ela treme de espas-

mos. Respira mais uma vez. Talvez duas. Seus olhos ar-

regalados fixam Rassul, de pé no meio do cômodo, sem

fôlego, mais lívido que um cadáver. Seu patou escorrega

dos ombros salientes. O olhar aterrorizado se perde na

onda de sangue, este sangue que escorre do crânio da ve-

lha e se confunde com o vermelho do tapete, recobrindo

assim seus contornos escuros, depois flui lentamente para

a mão carnuda da mulher, que segura um maço de notas.

O dinheiro ficará manchado de sangue.

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Mexa-se, Rassul, mexa-se!

Inércia total.

Rassul?

O que é que o detém? No que pensa?

Em Crime e castigo. É isso, em Raskólnikov, em seu

destino.

Mas antes de cometer esse crime, no momento em

que o premeditava, jamais pensara nisso?

Aparentemente não.

Ou talvez essa história, escondida no mais fundo de

seu ser, o tenha incitado ao assassinato.

Ou talvez...

Ou talvez... O quê? É de fato o momento de refletir

sobre seu ato? Agora que você matou a velha, só lhe resta

pegar seu dinheiro, suas joias e fugir.

Fuja!

Ele não se mexe. Permanece de pé. Abatido, como

uma árvore. Uma árvore morta, plantada na laje da ca-

sa. Seu olhar acompanha o filete de sangue que chega

quase até a mão da velha. Que ele esqueça o dinheiro!

Que deixe esta casa, rápido, antes que a irmã da velha

chegue!

A irmã da velha? Essa mulher não tem irmã. Ela tem

uma filha.

Pouco importa se é sua irmã ou sua filha, isso não

muda nada. Nesse momento, não importa quem entra na

casa, Rassul será obrigado a matá-lo também.

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O sangue, pouco antes de tocar a mão da mulher, mu-

dou de direção. Agora escorre para uma parte remendada

do tapete, onde forma uma poça, não distante de uma

pequena caixa de madeira transbordando de correntes,

colares, braceletes de ouro, relógios...

Por que se preocupar com todos esses detalhes? Pe-

gue a caixa e o dinheiro!

Ele fica de cócoras. Sua mão hesita em estender-se

para lhe arrancar o dinheiro. A mão dela já está dura,

fechada como se continuasse viva e segurando com

força o maço de notas. Ele insiste. Em vão. Perturbado,

seu olhar pousa nos olhos da mulher, sem alma. Ele

percebe o reflexo de seu rosto. Seus olhos, que pare-

cem sair das órbitas, lhe recordam que a última visão

que a vítima guarda de seu assassino se incrusta em

suas pupilas. O medo o invade. Ele recua. Sua imagem

na íris da velha desaparece calmamente atrás de suas

pálpebras.

— Nana Alia? — uma voz de mulher ressoa na casa.

Aí está ela, aquela que não deveria vir. Rassul, você está

perdido!

“Nana Alia?” Quem é? Sua filha. Não, não é uma voz

de jovem. Tanto faz. Ninguém deve entrar neste quarto.

“Nana Alia!” A voz se aproxima, “nana Alia?”, sobe a

escada.

Rassul, fuja!

Exasperado, sai em disparada, precipita-se em direção

à janela, abre-a e salta para o telhado da casa vizinha,

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deixando para trás o patou, o dinheiro, suas joias, o ma-

chado... tudo.

Já no beiral do telhado, hesita em saltar para a viela.

Mas o grito de pavor que ecoa do quarto de nana Alia faz

vacilarem suas pernas, o telhado da casa, a montanha...

Ele se joga e aterrissa com violência. Uma dor viva tres-

passa seu tornozelo. Não tem importância. É preciso se

levantar. A viela está deserta. É preciso se salvar.

Ele corre.

Corre sem saber para onde vai.

E só se detém em meio a um monte de lixo, em um

beco onde o fedor faz arderem as narinas. Mas não sen-

te mais nada. Ou está pouco se lixando. Permanece lá.

De pé, apoiado contra o muro. Percebe o tempo todo

a voz estridente da mulher. Não sabe se é ela que con-

tinua a berrar ou se é ele que está possuído pelo grito.

Segura a respiração. A rua, ou sua cabeça, fica subita-

mente quieta. Afasta-se do muro para continuar a fugir.

A dor no tornozelo o paralisa. Seu rosto se retorce.

Apoia-se de novo contra o muro, ajoelha-se para mas-

sagear o pé. Mas alguma coisa começa a ferver dentro

dele. Com uma sensação de náusea, inclina-se um pou-

co mais para vomitar um líquido amarelado. O beco

com todo seu lixo gira em torno dele. Segura a cabeça

entre as mãos e, com as costas grudadas no muro, es-

correga para o chão.

De olhos fechados, permanece imóvel por um bom

tempo, a respiração suspensa, como para escutar um grito,

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um gemido que viria da casa de nana Alia. Nada. Nada, a

não ser o sangue pulsando em suas têmporas.

Talvez a mulher tenha desmaiado ao descobrir o ca-

dáver.

Espera que não.

Quem era essa mulher, esse tipo abominável que pôs

tudo a perder?

Era de fato ela ou... Dostoiévski?

Dostoiévski, sim, é ele! Com seu Crime e castigo, ele

me fulminou, me paralisou. Ele me impediu de seguir o

destino de seu herói, Raskólnikov: matar uma segunda

mulher — esta, inocente; levar o dinheiro e as joias que

me teriam evocado meu crime... tornar-me presa de meus

próprios remorsos, afundar num abismo de culpabilida-

de, acabar numa prisão...

E então? Isso seria melhor do que fugir como um po-

bre imbecil, um criminoso idiota. Com sangue nas mãos,

mas com nada nos bolsos.

Que absurdo!

Dostoiévski, maldito seja!

Suas mãos comprimem nervosamente seu rosto, de-

pois perdem-se em seus cabelos crespos para se juntarem

atrás, em sua nuca banhada de suor. E, subitamente, um

pensamento lancinante o aflige: se a mulher não for a filha

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de nana Alia, ela pode roubar tudo e ir embora tranqui-

lamente. E eu, então? Minha mãe, minha irmã Donia e

minha noiva Souphia, o que será delas? Foi justamete por

causa delas que cometi esse assassinato. Essa mulher não

tem o direito de se aproveitar dele. É preciso que eu volte

lá. Aos diabos com meu tornozelo!

Ele se levanta.

Retoma o caminho.

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