Primeiro Capitulo - Lazarus

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Georgette Silen

LÁZARUS

São Paulo, 2013

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Para Morgana Souza Viana, minha sacerdotisa de além-mar, e Aicha Souza Viana, a luz da minha vida.

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Sumárioprólogo .......................................................................................... 11

Livro Um: TraveSSia ............................ 15

capítulo um. ..................................................................................17

capítulo dois .................................................................................57

capítulo três ...............................................................................94

capítulo quatro ........................................................................126

capítulo cinco ...........................................................................143

Livro DoiS: meTamorfoSe ............177

capítulo um. ............................................................................... 179

capítulo dois ..............................................................................210

capítulo três ............................................................................244

capítulo quatro. ...................................................................... 288

capítulo cinco ........................................................................... 321

capítulo seis ..............................................................................359

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Livro TrêS : ConverSão ................. 393

capítulo um ................................................................................395

capítulo dois. ............................................................................428

capítulo três ............................................................................464

capítulo quatro ....................................................................... 495

epílogo ....................................................................................... 519

Uma olhada em Panaceia ...................521

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pRóLogo

Bristol — inglaterra — Junho

Vamos, é só dar um passo, só mais um. Você consegue. O que tem a perder? Você não tem mais nada!O pensamento chegou quando a brisa da maré alta soprou. O

cheiro de maresia salgada com peixe podre, misturado ao tabaco e be-bida que vinham dos bares próximos, dava enjoo. Ou será que eu estava amarelando?

— Não, você já tomou essa decisão, não vai voltar atrás. E voltar atrás para quê?

Falava sozinho, olhando para o atracadouro onde as ondas batiam ferozes, respingando nos meus pés. O mar ficava agitado naquela época. Bom, é isso aí. Olhei em volta mais uma vez, para ter certeza de que não tinha ninguém por perto. Não, não havia ninguém. Eu estava sozinho. So-zinho. Como sempre fora a minha droga de vida. Uma porcaria sem fim!

Apertei os nós dos dedos. E daí que estava sozinho? Era melhor assim. Quem iria se importar comigo? Com o idiota e beberrão do Holly Finger? Quem notaria minha falta? Minha ex-mulher, aquela vaca mal-dita? As prostitutas do Samuel’s? Talvez sim, dei um sorrisinho. Eu man-dava bem, isso as vadias poderiam confirmar para qualquer um. Meu senhorio? Ele daria queixa à polícia por falta de pagamento ou pegaria

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minhas coisas no quarto barato para cobrir o prejuízo. Coitado! Dei risa-da. Nem mesmo no trabalho dariam por minha falta. Não fui despedido àquela tarde por — como foi mesmo que o escroto do meu patrão disse-ra? — ‘um comportamento inadequado de atrasos e por estar alcoolizado no expediente’?

Pelo menos pude desforrar naquele merda um bom par de golpes antes que me jogassem na rua. E o almofadinha ainda ameaçou chamar a polícia! Desgraçado!

— À merda com todos eles! — resmunguei, dando mais um gole na garrafa.

O conhaque ardeu e me fez lacrimejar. Eu logo estaria livre de todo aquele bando de corvos fedorentos e carniceiros! Era só dar mais um passo...

E então percebi que não estava sozinho como pensara. — Quem está aí? — chamei para a escuridão. Não conseguia enxergar direito, mas tinha certeza de que alguém

estava parado a uns vinte passos. Merda! Tudo o que eu não queria era um mala para bancar o herói.

O estranho não se mexeu nem respondeu.— Seja lá quem for, você está me atrapalhando aqui, parceiro —

engrossei a voz. — Melhor ir dando o fora antes que eu...Parei de falar. Não havia ninguém ali. Pisquei os olhos várias vezes

para conferir. Comecei a dar risada. Holly, sua besta! Agora você deu para ver coisas? Melhor acabar logo com isso. Virei-me para o cais e tre-mi em um arrepio, assim que a brisa aumentou por detrás do meu corpo. Foi tudo muito rápido. Alguma coisa me agarrou pelas costas e senti o rasgo na garganta. Apesar da dor, consegui olhar para trás, para o grande par de olhos vermelhos na escuridão.

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Livro Um

TravessiaCriaturas de um dia, o que é qualquer uma delas?

O que não é? O homem não é senão o sonho de uma sombra. No entanto, quando surge, como

uma dádiva do céu, um lampejo de sol, pousa sobre os homens uma luz radiante e, oh! uma vida benigna.

Píndaro

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cApíTULo Um

Terminal rodoviário do Tietê São Paulo — Dezembro

Feliz Natal! Ho, ho, ho! A rodoviária estava literalmente um inferno. Multidões caminhavam

apressadas para suas plataformas, carregando bagagens enormes, multi-coloridas. Parentes se despediam, mandando lembranças para suas famí-lias. Lágrimas e choro por toda parte.

Enquanto as pessoas se acotovelavam, o risonho Papai Noel conti-nuava a desejar um feliz Natal, distribuindo balas às crianças e folhetos informativos aos passageiros. Lembrei-me de Ben...

Ambulantes passavam oferecendo água, refrigerantes, sucos, bis-coitos, em cadências e sotaques dos mais variados. Era impossível livrar--se deles. Estava ansiosa pelo silêncio e a ordem dentro daquele caos. Eu deveria ter tomado um avião. Mas essa provavelmente teria sido a pior solução — se é que haveria alguma boa em meio aos derradeiros acontecimentos.

Faziam realmente sentido as últimas 24 horas? Como aquele ras-treador conseguiu me encontrar? Eu não deixara vestígios durante o úl-timo ano, tudo tinha sido meticulosamente planejado para evitar isso. Era o mínimo que eu poderia fazer: sumir, desaparecer, proteger os que

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ficaram para trás. Era meu principal objetivo, maior do que qualquer outra necessidade.

— Campo Grande, 21 horas e 30 minutos, plataforma 37. Passa-gens, por favor! — gritou o fiscal da empresa de ônibus, afastando meus devaneios e me fazendo caminhar para a fila de embarque.

Não levava bagagem, apenas duas mochilas com coisas impor-tantes para alguém em minha situação. Por isso, rapidamente entreguei meu bilhete e embarquei. Com alívio afundei o corpo na poltrona nos fundos do veículo e puxei as cortinas, numa tentativa de conseguir paz e silêncio para raciocinar. Foi um golpe de sorte — o único dentre os problemas que aconteceram — achar uma passagem disponível naquela época do ano, pois elas se esgotavam bem antes. Uma sorte que não con-vinha desperdiçar nem abusar.

Campo Grande, em Mato Grosso do Sul, era o único lugar para o qual poderia ir agora — seguro por muitos motivos — antes de prosseguir para outro destino. A pergunta, entretanto, era: qual seria esse destino? Para onde ir, quando todos os lugares poderiam encerrar armadilhas, algumas conhecidas e outras inteiramente novas?

Estava imersa em pensamentos quando o assento ao meu lado foi ocupado. Uma senhora, de cerca de setenta anos ou mais, sentou-se, inclinando um pouco a poltrona. Trazia uma bolsa antiga, bordada com miçangas em padrões de flores, que me fez recordar das bolsas que mi-nha avó usava na Inglaterra. Sorri levemente. Pequenas trivialidades da vida mantinham seu fascínio em nossa memória, nos surpreendendo ao emergirem em situações improváveis. Podia até me lembrar do cheiro dela quando me sentava em seu colo para ouvir histórias.

Assim que se acomodou a gosto, a pequena senhora — com o ca-belo curto repartido de lado, os fios brancos se misturando ao castanho natural formando uma neve cinza na cabeça — retirou da bolsa uns ócu-los de aro de tartaruga, com lentes grossas, presos num delicado cordão de pérolas miúdas. Ela os poliu com uma flanela e os colocou.

Um fascínio inusitado me dominou. Aquela mulher comum, com trejeitos e gestos repetidos dezenas de vezes ao dia, teve o poder de mo-mentaneamente me afastar de minhas aflições, fazendo-me sentir quase normal. Mas a sensação durou pouco. No momento seguinte, ela pegou

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um livro velho, mas bem conservado. Mais por hábito do que por curio-sidade, meus olhos bateram no título: Bíblia Sagrada.

Estremeci. Fiquei grata por ainda estar usando meus óculos escu-ros. Apesar da prática adquirida em camuflar emoções como forma de desfesa, seria difícil disfarçar meu olhar de desespero. Virei o rosto, deci-dida a interromper minhas observações sem sentido. Mesmo assim não pude deter a saudade e a dor que me inundaram de formas e em graus diferentes, e que sempre me dilaceravam.

Eles estariam bem? O quanto eu os havia magoado? Poderiam me perdoar algum dia? Entenderiam a minha escolha? Aquelas perguntas me atormentavam dia e noite sem parar. Minha decisão pode tê-los afeta-do mais do que eu pensava, embora fosse a atitude correta a se tomar. Eu lutava para acreditar nisso. Fechei os olhos e seus rostos povoaram minha mente: Clementine, Carlo, Joshua, Morgana, David.

Eu os veria novamente? Haveria ainda esse tempo? O tempo de pedir desculpas? Eles foram a minha família, minha estabilidade, meu porto seguro. Salvaram minha vida quando tudo conspirava para destruí--la. A imagem de Jeanete surgiu e minha garganta se apertou. Jean...

Sem demora outro rosto tomou meus pensamentos: Cínthia. Não pude vê-la antes e não tive contato com ela depois. Era mais seguro man-ter-me incomunicável. Seria insuportável conviver com a ideia, mínima que fosse, de que algo lhe acontecesse por minha causa. Eric estava com ela em Amsterdã, na Holanda, frequentando a Universidade, e nada po-deria machucá-la com ele por perto. Pelo menos, eu queria acreditar que fosse assim. Além disso, o Acordo era muito respeitado nos países baixos, mais do que em qualquer outro lugar na Europa, mesmo com os sinais de dissidência na Ordem. Se a situação ficasse complicada por lá, os outros estavam em Bristol, na Inglaterra, a uma distância relativamente curta para uma ação mais vigorosa. Cínthia estaria segura, mas não signi-ficava que minha dor e saudade fossem menores. Sentia tanta falta dela.

Ao meu lado, a senhora acendeu a luz para ler a Bíblia. Nas mãos segurava um rosário cor-de-rosa. O mundo de hoje era um lugar bom para os que possuíam uma fé simples. Tentei manter o foco em sua fi-gura, mas aquela distração foi insuficiente para o que eu sabia que viria.

Robert.

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Meu coração martelava tanto que imaginei que os passageiros — o ônibus estava quase lotado — acabariam ouvindo o som de algo ba-tendo, doendo, sangrando. Não era sem motivo que Robert ocupava o último lugar na sequência de minhas lembranças. Eu forçava aquilo. Os outros, cada um ao seu modo, deveriam seguir suas vidas, estavam seguros — e ele também — desde que fui embora. Mas ficar afastada de Robert era estar privada de uma parte de mim; sentia-me uma entidade ausente sem ele.

As nossas lembranças eram as mais doloridas, sufocantes, as que exigiam maior controle, apagando o resto. A distância doía fisicamente, como um membro amputado que você continua a sentir mesmo quando ele não está mais lá, fazendo-se lembrar o tempo todo.

‘Nunca se esqueça disso. Eu te amo agora e para sempre. Sempre vou estar com você.’ O quão miseravelmente mentirosa eu fui? Coloquei a mão sobre o coração que se acelerava além do normal. Aquele movi-mento ainda me assustava.

— Está sentindo alguma coisa, querida?A senhora olhava-me com ar de preocupação. A princípio não en-

tendi o porquê, só quando percebi que lágrimas rolavam dos meus olhos a ficha caiu. Limpei-as com os dedos, claras como cristais, remoendo imagens assustadoras de outrora.

— Está precisando de alguma coisa? — ela perguntava com voz solidária.

— Não — respondi, mantendo a minha natural. — Não é nada, obrigada.

Ainda não convencida, ela continuou. — Essas viagens são muito cansativas nesta época do ano. Mexem

muito com a gente. Vai visitar parentes?— Não exatamente.— Então está deixando alguém importante para trás?O tempo todo. Todos os que amo.— Também não.— Tem certeza de que não precisa de nada mesmo? — continuou

solícita.Sim, preciso, mas não posso voltar para pegar.— Não, obrigada, estou bem.

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Ela abriu a bolsa e retirou de lá um pacotinho.— Tome, fique para você. Vai fazê-la se sentir melhor.Pensei em recusar educadamente, mas ela pegou minha mão e

colocou o objeto, apertando-o com força.— É sagrado.Era uma caixinha transparente. Dentro havia um rosário, com as

mesmas contas em tom de rosa. Não soube muito bem o que fazer e apenas sorri, agradecendo.

— “O Senhor é o meu pastor e nada me faltará” — disse-me em retribuição, citando o Salmo 23, retornando para sua leitura.

Segurei o inesperado presente, perguntando-me qual deus irônico teria feito uma cena como aquela acontecer. Ao virá-lo, a tênue lumino-sidade da lâmpada do acento incidiu sobre meu pulso, demarcando com precisão as três linhas de cicatrizes perfiladas sobre a pele. E marcadas na alma.

O motorista deu a partida. Os passageiros se ajeitavam nas poltro-nas o mais confortavelmente possível. Alguns reclinaram os bancos para dormir — a viagem duraria muitas horas —, outros ficaram absortos em leituras de revistas e livros, conversando com seus vizinhos ou falando ao celular. Uma mulher jovem, aparentemente com 20 e poucos anos, ama-mentava um bebê a duas fileiras de distância. Engoli em seco. Cínthia...

Olhei ao meu redor. Todos ali eram pessoas comuns que visitariam suas famílias no Natal e Ano-Novo. O que eu estou fazendo, colocando-os em risco? Isso é loucura! Não. Pegar um avião ou alugar um carro seria loucura pior, era a reação que esperavam de minha parte. Estar naquele ônibus, mesmo com tantas pessoas em volta, era a melhor das garantias.

Mas o incômodo ainda me inundava. E se desconfiassem de meu estratagema? Conhecia os métodos deles, não estavam preocupados com os inocentes. Eles eram só um detalhe. Dano colateral. Quantos tiveram que pagar para que chegassem tão perto de mim ontem e satisfazer a obsessão de um homem?

Quando entre os lobos, até um cão passava a agir como eles. Estive por muito tempo em meio à alcateia para saber quais seriam as ações to-madas. O que estava ao meu alcance, na medida do possível, era despis-tar os perseguidores com falsos rastros, nomes fictícios, ou agir de forma mais direta, como na noite passada.

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Ninguém estaria procurando agora por Maria Alice Pereira. Esse nome só existia nos documentos falsos em minha mochila. Também não restou nenhum vestígio da última identidade que usei, eu cuidei disso. Olhei meu reflexo na janela do ônibus, para a estranha que me observava. O nome que eles procuravam nunca pisou em solo brasileiro no último ano, não voltou de Bristol ou esteve por lá. Estava perdido, talvez para sempre.

Ouvi um ronco suave. A senhora ao meu lado caiu no sono, com o rosário nas mãos e a Bíblia aberta. Num gesto de déjà-vu, retirei deva-gar o livro. Ia apagar a luz para que ela pudesse descansar quando meus olhos caíram sobre a página aberta: “Dito isso exclamou com voz forte: ‘Lázaro, vem para fora!’. O que estivera morto saiu, com as mãos e os pés amarrados com faixas e um pano em volta do rosto. Jesus então lhes disse: ‘Desamarrai-o e deixai-o ir.’”

O Evangelho de João 11:12. A ressurreição de Lázaro. Um forte estremecimento me tomou. Olhei para a mulher ama-

mentando seu bebê tranquilamente. O nome que eles buscavam não seria encontrado, mas meu verdadeiro nome era o que menos importava.

Para eles, só uma coisa interessava: a cura.

Londres – inglaterra – outubro – Três anos antes

Um denso nevoeiro cobria o Aeroporto de Heathrow, primeira pa-rada em Londres, primeira de muitas etapas para uma nova vida. Olhei pela janela tentando identificar as luzes da pista de pouso, com receio de o mau tempo atrapalhar a aterrissagem. A neve de outono começou a cair mais cedo por causa das mudanças bruscas de temperatura, se-gundo os especialistas, incitando os ativistas ambientais e promovendo debates e discussões nos meios de comunicação sobre os efeitos do aque-cimento global.

Mas tudo estava tranquilo. As comissárias de bordo nos orientavam calmamente para apertar os cintos de segurança, o piloto repassava as últimas instruções pelos alto-falantes e nos preparamos para pousar. Meu coração deu um salto de expectativa. Lembrei-me das muitas vezes em que fiz aquela mesma viagem. Antes eram apenas visitas, agora vinha para ficar. Minhas mãos suaram.

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