Princípios da fragmentariedade e da adequação social e crime de casa de prostituição

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    163ISSN 1809-8487 v. 11 / n. 18 / jan.-jun. 2012 / p. 163-177

    Henrique Hoffmann Monteiro de Castro

    DIREITO PENALCOMENTRIO JURISPRUDNCIA

    PRINCPIOS DA FRAGMENTARIEDADEE DA ADEQUAO SOCIAL E CRIME

    DE CASA DE PROSTITUIO

    HENRIQUE HOFFMANN MONTEIRO DE CASTROAnalistaMinistrio Pblico do Estado de Minas Gerais, Brasil

    [email protected]

    1. Introduo

    O desiderato deste ensaio enfrentar o problema da possibilidadede aplicao dos princpios da fragmentariedade e da adequaosocial ao crime de casa de prostituio.

    Para tanto, proceder-se- anlise de recente deciso proferidapelo Supremo Tribunal Federal, nos autos do Habeas Corpus n104.467/RS, relatada pela Ministra Crmen Lcia e publicada em09/03/2011. Tal julgado sopesou a conduta tipificada no art. 229do Cdigo Penal, alterado pela Lei n 12.015/2009, em face dospostulados citados.

    No caso concreto, alegou-se que, em consonncia com afragmentariedade e a adequao social, a conduta perpetrada,encaixada no tipo penal de casa de prostituio, seria materialmenteatpica, apesar de presente a tipicidade formal.

    Apesar de o Supremo Tribunal Federal j ter exarado anteriormenteacrdo negando a incidncia do princpio da adequao social ao

    crime de casa de prostituio (STF, HC 99.144/RS, Rel. Min. Menezes

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    Direito Penal Comentrio Jurisprudncia

    Princpios da fragmentariedade e da adequao social e crime de casa de prostituio

    Direito, DJe 10/06/2009), a deciso comentada adquire especialimportncia porque foi proferida aps o advento da Lei n 12.015/2009,confirmando o entendimento sob a gide da novel legislao.

    A fim de cumprir esse mister, empreendida uma anlise doacrdo paradigmtico e se realiza um breve estudo do crime decasa de prostituio. Alm disso, so examinados os princpios dafragmentariedade e da adequao social, para ento raciocinar sobreos argumentos favorveis e contrrios incidncia dos postulados nocrime sexual, tomando-se como base o julgado mencionado, porm,sem se limitar a ele. Por fim, so tecidas algumas consideraes

    sobre a temtica em debate.

    2. Julgado paradigmtico

    O julgado a ser dissecado nesse trabalho consiste em acrdo recenteemanado do Supremo Tribunal Federal, que foi assim ementado:

    HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. CASADE PROSTITUIO. APLICAO DOS PRINCPIOS DA FRAGMEN-TARIEDADE E DA ADEQUAO SOCIAL: IMPOSSIBILIDADE.CONDUTA TPICA. CONSTRANGIMENTO NO CONFIGURADO.

    1. No crime de manter casa de prostituio, imputado aos Pa-cientes, os bens jurdicos protegidos so a moralidade sexual eos bons costumes, valores de elevada importncia social a seremresguardados pelo Direito Penal, no havendo que se falar emaplicao do princpio da fragmentariedade.

    2. Quanto aplicao do princpio da adequao social, esse, porsi s, no tem o condo de revogar tipos penais. Nos termos do

    art. 2 da Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro (comalterao da Lei n. 12.376/2010), no se destinando vignciatemporria, a lei ter vigor at que outra a modifique ou revogue.

    3. Mesmo que a conduta imputada aos Pacientes fizesse partedos costumes ou fosse socialmente aceita, isso no seria suficien-te para revogar a lei penal em vigor.

    4.Habeas corpusdenegado.

    (STF, HC 104.467/RS, Rel. Min. Crmen Lcia,DJe 09/03/2011).

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    3. Crime de casa de prostituio

    Como notrio, recente alterao legislativa, introduzida pela Lein 12.015/2009, modificou o Ttulo VI do Cdigo Penal, passandoos crimes dessa espcie a serem denominados crimes contra adignidade sexual, e no mais delitos contra os costumes. Vriasmodificaes foram realizadas nos tipos penais, inclusive com a

    supresso e a criao de crimes sexuais.

    Com relao ao crime de casa de prostituio, que importa aopresente artigo, apesar de no ter sido suprimido, teve sua redaosubstancialmente alterada. A redao antiga assim dispunha:

    Art. 229. Manter, por conta prpria ou de terceiro, casa deprostituio ou lugar destinado a encontros para fim libidi-

    noso, haja, ou no, intuito de lucro ou mediao direta do

    proprietrio ou gerente.

    O novo dispositivo foi redigido da seguinte forma:

    Art. 229. Manter, por conta prpria ou de terceiro, estabeleci-mento em que ocorra explorao sexual, haja, ou no, intuito delucro ou mediao direta do proprietrio ou gerente.

    O tipo penal em destaque visa proteger a liberdade sexual emface da explorao levada a efeito por agentes que, carecendo deescrpulos, incentivam o favorecimento sexual alheio em benefcioprprio. Cuida-se de bem jurdico de elevada importncia para a

    sociedade, havendo relevncia suficiente para justificar a intervenodo Direito Penal para resguard-lo.

    Resta evidente que, com a modificao da lei penal incriminadora,para a configurao do crime no mais suficiente que o local sejadestinado a encontros para fins libidinosos, sendo imprescindvelque haja explorao sexual.

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    Dispensa-se a lucratividade da explorao. Alis, desnecessriono s que o agente obtenha proveito econmico com a exploraoda prostituio em seu estabelecimento, mas tambm que hajamediao direta entre o proprietrio da casa, a prostituta e o cliente.(CAPEZ, 2008, p. 99).

    Convm sublinhar que essa alterao colocou uma p de cal sobre adiscusso acerca da tipicidade da conduta de manter motel ou hotelde alta rotatividade, sedimentando-se o entendimento de que noh crime na manuteno de estabelecimento destinado a encontrossexuais casuais consentidos.

    4. Princpio da fragmentariedade

    indubitvel que a eleio de uma conduta como criminosa deveorientar-se pelo desiderato protetivo do bem juridicamente tutelado(WELZEL, 1987, p. 83). Nem todos os bens jurdicos merecem atutela especfica do Direito Penal. Os interesses protegidos pelanorma penal so apenas aqueles que exigem especial blindagem,por se revelarem insuficientes as garantias ofertadas pelos demais

    ramos do Direito. (ROCHA, 2004, p. 88).Assim, o Direito Penal qualifica-se como fragmentrio pelo fatode ocupar-se somente de uma parte dos bens jurdicos tuteladospelo ordenamento jurdico (BITENCOURT, 2008, p. 14). Analogiainteressante sobre o tema que o Direito Penal constitui umgigantesco oceano de irrelevncia, ponteado por pequenas ilhas detipicidade. (CAPEZ, 2008, v. 1, p. 17).

    Com efeito, apenas os ilcitos que atacam os valores fundamentaispara o progresso da sociedade configuram infraes penais o Direito

    Penal a ultima ratio na proteo de bens jurdicos (MASSON,2009, p. 35). Realiza-se uma proteo seletiva dos bens jurdicos,exigindo-se a gravidade e a intensidade da ofensa, de maneira asancionar to somente as condutas mais austeras praticadas contraos interesses mais relevantes. (BITENCOURT, 2008, p. 15).

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    A doutrina moderna praticamente unnime em afirmar queo Direito Penal qualifica-se como subsidirio e fragmentrio.O postulado da fragmentariedade traduz uma caracterstica doprincpio da interveno mnima, assim como a subsidiariedade.

    Enquanto a subsidiariedade norteia a interveno do Direito Penalem seu mbito abstrato, que somente deve interferir diante dofracasso dos outros ramos do Direito (ultima ratioou derradeiratrincheira), a fragmentariedade guia a operao do Direito Penaldiante de caso concreto, que apenas deve interferir nos fatoscausadores de intolervel e relevante leso ao bem jurdico tutelado.

    De um lado, a subsidiariedade exige do legislador cautela ao elegeras condutas que merecero sano penal, devendo tipificar somenteos comportamentos que, segundo comprovada experincia anterior,no puderam ser contidos de forma suficiente pela aplicaodos demais ramos do Direito. A fragmentariedade, a seu turno,demanda que o operador do Direito no realize o enquadramentotpico quando a situao especfica puder ser solucionadasatisfatoriamente por ramos do Direito menos agressivos. (CAPEZ,

    2008, p. 19). Quando bastarem outras especialidades do Direito, oDireito Penal deve sair de cena.

    Todavia, h quem afirme que a fragmentariedade, em verdade,evidencia uma consequncia da adoo dos princpios da intervenomnima, lesividade e adequao social, pois, uma vez escolhidos osinteresses fundamentais (comprovada a lesividade e a inadequaosocial das condutas que os violam), esses bens jurdicos passam a

    ser protegidos pelo Direito Penal. (GRECO, 2010, p. 57).Exemplificando, se um empregado furta uma caixa de canetas e demitido por justa causa, ao ressarcir o prejuzo, constata-se que oproblema foi satisfatoriamente resolvido pelo Direito do Trabalho eDireito Civil, no havendo necessidade da drstica interveno doDireito Penal.

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    Destarte, dado o carter fragmentrio do Direito Penal, esse ramo doDireito se limita a castigar apenas os comportamentos mais severoscontra os bens jurdicos mais importantes. (CONDE, 1975, p. 71-72).

    5. Princpio da adequao social

    O Direito Penal somente tipifica comportamentos que tenhamcerta relevncia social, tendo em vista que o tipo penal abrangesomente as condutas contrrias ao interesse pblico. (JAKOBS,1997, p. 244). A lei penal no tem o intuito de coibir condutas teispara a coletividade. (ESTEFAM, 2010, p. 121). Nesse sentido, oscomportamentos aceitos socialmente no podem sofrer a repulsa

    penal (sendo erigidos categoria de infrao penal) a no ser quesejam efetivamente rechaados pela sociedade. (CAPEZ, 2008, p. 16).

    A teoria da adequao social prega que a conduta no se revelatpica se, apesar de haver subsuno ao modelo legal incriminador,estiver em conformidade com a ordem social da vida (PRADO, 2006,p. 83), isto , em consonncia com a vida social ordenada (WELZEL,1970, p. 66). Assim, a conduta ser formalmente tpica, porm

    materialmente atpica, pela ausncia de lesividade ao bem jurdicoprotegido haver tipicidade formal, mas no tipicidade material.Nessa esteira:

    [...] se o tipo delitivo um modelo de conduta proibida, no possvel interpret-lo, em certas situaes aparentes, como se es-tivesse tambm alcanando condutas lcitas, isto , socialmenteaceitas e adequadas. (TOLEDO, 1994, p. 131).

    Esse postulado estabelece que no se considera criminoso oprocedimento que, conquanto seja tipificado na lei penal, noafronte o sentimento social de justia, ou seja, aquilo que a sociedadetem por justo. (CAPEZ, 2008, p. 16).

    A tipificao de fato socialmente adequado deve ser repudiada,resultando em atuao inconstitucional do legislador, dada suaincompatibilidade com o princpio da dignidade da pessoa humana.

    (ESTEFAM, 2010, p. 121-122).

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    Interessante exemplo consiste em imaginar uma norma que infligissepena queles que praticassem doaes a pessoas necessitadas.

    Restaria evidente o absurdo de uma lei penal dessa estirpe, poiso legislador no pode agir de modo arbitrrio, com ausncia decritrio, incriminando toda e qualquer conduta a seu bel-prazer.

    Em que pese a grande adeso doutrinria de que o princpiogoza, h quem critique o postulado, direcionando sua opiniodesfavorvel ao fato de o Direito Penal no admitir o costume comoforma de integrao da lei penal, em razo da exigncia da lexscriptadecorrente do princpio da legalidade. Ademais, o Judiciriono se pode substituir ao Legislativo para revogar uma lei penal

    incriminadora, sob pena de violao aos princpios democrtico eda separao dos poderes. Como se no bastasse, o princpio daadequao social por demais impreciso e vago, no se ajustandos exigncias da dogmtica penal. (CAPEZ, 2008, p. 17).

    6. Argumentos em prol da incidncia dos postulados no crimede casa de prostituio

    Aqueles que defendem a atipicidade da casa de prostituio emdecorrncia da aplicao dos princpios da fragmentariedade eda adequao social desenvolvem uma srie de argumentos paraembasar sua posio.

    Menciona-se a ausncia de dano ou de perigo de dano a valoresda comunidade pela to s manuteno de casa de prostituioem que haja relaes sexuais consentidas entre pessoas capazes.

    Por bvio, dessa permisso de explorao da casa de prostituio

    esto excepcionadas as hipteses de explorao sexual de crianase adolescentes (art. 244-A do Estatuto da Criana e do Adolescente

    ECA), de rufianismo (art. 230 do Cdigo Penal CP) e defavorecimento da prostituio (art. 228 do CP), em relao aosquais a sociedade expressa profunda repugnncia.

    Alm disso, aquilo que no pode ou no deve ser proibido pela viadireta no deve ser proibido pela via indireta. Se a prostituio no

    vedada, no h razo para criminalizar a sua explorao.

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    Importante grifar que eventuais crimes praticados no estabelecimentoem que haja a explorao da prostituio (como perturbao dosossego, ato obsceno, crcere privado, extorso, porte ilegal dearmas, porte de drogas para consumo pessoal, constrangimentoilegal) so autonomamente punveis, no ficando impunes em razoda descriminalizao da casa de prostituio.

    Ademais, proibir a casa de prostituio no a previne, mas simplesmenteremete a atividade vedada para a clandestinidade, em que no existequalquer controle. Por essa razo, a interveno penal inadequada econtraproducente, criando mais problemas do que resolvendo. Nessaordem de ideias, caso fosse regulamentado o exerccio da prostituio,

    seria possvel exercer um controle mnimo por parte do Estado,visando a proteger clientes e prestadores de servio.

    Criminalizando a casa de prostituio, o Estado acaba por negara dignidade da pessoa humana, tratando as pessoas prostitudasno como sujeitos de direitos, mas como simples objetos,instrumentalizando-as e negando-lhes a liberdade de decidirem porconta prpria. As pessoas adultas so livres para disporem de seus

    corpos como bem entenderem, inclusive de forma onerosa se assimo desejarem. O Estado no deve pretender proteger pessoas capazescontra suas prprias decises, tratando-as como crianas indefesas.

    Uma parcela dos juristas defende que tornar crime a casa de prostituioconfigura ntida confuso entre moral e direito, pois cada indivduotem sua particular percepo sobre a liberdade de sexo, conceituandomoralidade sexual sua prpria maneira. O Estado no pode imporao indivduo uma determinada orientao moral, porquanto a esfera

    moral no se confunde com o plano jurdico.

    De mais a mais, a prostituio est presente de forma pblica

    em todos os lugares e meios de comunicao, demonstrando

    uma evidente incompatibilidade entre a tolerncia real e a

    intolerncia legal.

    Acerca do tema, ressalta a doutrina que:

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    Tanto passou a ser irrelevante para o Direito Penal a manuten-o de casa de prostituio, que existem estabelecimentos dessanatureza em praticamente todos os municpios do pas, fato que conhecido da populao e das autoridades policiais e admi-

    nistrativas. Ademais, a penalizao da conduta [...] se constituiutratamento hipcrita apenas de casos isolados, normalmentemarcado pela participao de pessoas de baixa renda, dianteda prostituio institucionalizada, amplamente anunciada comrtulos como acompanhantes, massagistas e outros, inclusivepelos meios de comunicao social. Os que forem contrrios aoslocais de prostituio devem buscar sanar o que consideram umproblema atravs de campanhas de esclarecimento ou educaomoral, mas jamais valendo-se [sic] do direito penal, que h mui-

    to tempo mostra-se [sic] ineficaz para combater esse comporta-mento. (NUCCI, 2003, p. 707-708).

    Assim, a eficcia da norma penal nos casos de casa de prostituiomostra-se prejudicada em razo do anacronismo histrico.Manter a penalizao resulta num tratamento hipcrita diante dapublicidade da explorao das casas de prostituio, que no sofrempraticamente reprimenda alguma do poder punitivo estatal. No

    surpresa para ningum que quase no h fiscalizao nos bordis,boates de stripteases e estabelecimentos congneres, sendo talconduta tolerada h muito tempo. Outrossim, a existncia de tipospenais como o do art. 229 apenas gera descrdito e desmoralizaopara a Justia Penal (Polcia, Ministrio Pblico e Judicirio).

    Segundo essa corrente doutrinria, o controle social informal seriasuficiente para efeitos de conscientizao dos males causados pelaprtica dos comportamentos que envolvem a prostituio, no

    havendo necessidade da represso penal. (GRECO, 2010, p. 650-651).

    Muito embora a figura tpica da casa de prostituio ainda sejaalbergada no Cdigo Penal vigente (editado no longnquo ano de1940), a conduta a que se refere o art. 229 deixou de ser vista conta dedelituosa, porque se trata de um conceito moral reconhecidamenteultrapassado que j no se sustenta nos dias atuais. inegvel que asociedade evoluiu sobremaneira no que tange ao pudor e quebra

    de paradigmas atinentes conduta sexual.

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    Existe a necessidade de atentar-se, passados quase setenta anosda publicao do Cdigo Penal, para os novos conceitos moraisda sociedade, sendo ilgico considerar e tipificar como crimeuma conduta moralmente aceita nos dias atuais. A prostituio institucionalizada no meio social com rtulos de acompanhantes,massagistas e motis, sendo amplamente divulgada pelos meiosde comunicao, sem qualquer reprimenda do poder estatal, quelhes concede alvar de funcionamento e se beneficia da arrecadaotributria. O Direito Penal existe para proteger bens relevantes paraa sociedade e esta deixou de considerar as casas de prostituiocomo ofensivas moralidade pblica sexual.

    Demais disso, a casa de prostituio possui

    uma funo preventiva na entrosagem da mquina social: umavlvula de escapamento presso de recusvel instinto, que ja-mais se apaziguou na frmula social da monogamia, e reclamasatisfao at mesmo que o homem atinja a idade civil do casa-mento ou a suficiente aptido para assumir os encargos da for-mao de um lar. Anular o meretrcio, se isso fora possvel, seriainquestionavelmente orientar a imoralidade para o recesso dos

    lares e fazer referver a libido para a prtica de todos os crimessociais. (HUNGRIA, 1959, p. 169-170).

    Apesar da norma penal incriminadora hospedada no art. 229 doCdigo Penal estar em plena vigncia, preciso interpret-la deforma cuidadosa para que possa ter validade e aplicabilidadeem relao aos fatos da vida real. Conclui-se que a punio dacasa de prostituio consubstancia uma violncia absolutamente

    despropositada, devendo o Estado intervir, nessa seara, por outrosmeios mais adequados e menos lesivos liberdade.

    7. Argumentos contrrios aplicao dos princpios ao crimede casa de prostituio

    O julgado em exame, na esteira da doutrina e jurisprudnciamajoritrias, nega aplicao ao postulado da adequao social aocrime de casa de prostituio, e o faz ancorado numa sequncia de

    raciocnio slida e congruente.

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    Primeiramente, importante destacar que a norma penal no punea pessoa que se prostitui, porquanto se confere ao ser humano odireito de fazer uso do seu prprio corpo da maneira que melhorlhe aprouver, em consonncia com o direito liberdade individual.Contudo, fundamental frisar que a liberdade sexual (nela inseridaa disposio do prprio corpo para fins libidinosos mediantepaga) no se confunde com a explorao da liberdade sexualalheia. Enquanto o Direito Penal no criminaliza a ofensa quelebem jurdico, em funo do princpio da lesividade (que impede apunio da autoleso), tipifica as condutas que violem este objeto

    jurdico, em respeito ao princpio da dignidade da pessoa humana(art. 1, III, da CF).

    Por isso, em que pese se extrair da ementa transcrita que o crimede casa de prostituio protege a moralidade sexual e os bonscostumes, em verdade o tipo penal visa impedir a explorao daliberdade sexual alheia. Isso porque, como moral e direito nose confundem, o Direito Penal no tem como escopo punir condutasque atentem to somente contra o sentimento tico da coletividade.

    Demais disso, os estabelecimentos em que ocorrem exploraosexual so dos mais propcios para a disseminao de inmerosoutros ilcitos, tais como a prostituio infanto-juvenil, o porteilegal de armas de fogo e o trfico de drogas.

    muito importante diferenciar adequao social com meralenincia ou indulgncia. Aquilo que pode ser tolerado por umsetor da sociedade jamais ser, s por isso, socialmente adequado.(ESTEFAM, 2010, p. 122). Essa a razo que leva o Supremo

    Tribunal Federal a entender que o postulado no se presta adescriminalizar a casa de prostituio. Pelo mesmo motivo queas Cortes Superiores entendem pela persistncia da tipicidade(formal e material) tambm nos casos de jogo do bicho (STF,RE 608.425/MG, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 02/08/2010), dedescaminho praticado por camel (STF, HC 45.153/SC, Rel. Min.Maria Thereza de Assis Moura, DJ 26/11/2007) e de violao dedireitos autorais por venda de DVDs piratas (STF, HC 98.898/SP,

    Rel. Min. Ricardo Lewandowski,DJe21/05/2010).

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    A prostituio tolerada como uma fatalidade da vida social, masa ordem jurdica faltaria sua finalidade se deixasse de reprimiraqueles que contribuem para o fomento dessa mazela da sociedade.

    Nessa toada, o legislador foi criterioso ao tipificar a casa deprostituio, pois o art. 229 busca impedir que pessoas semescrpulos se beneficiem da misria alheia, incentivando aprostituio e obtendo ganho fcil em detrimento da dignidadesexual alheia.

    A tolerncia ou a omisso de algumas autoridades em reprimir oilcito penal no tem a capacidade de ab-rogar ou derrogar a norma

    legal. Disso decorre que manifesta a inadequao social da condutade explorar a prostituio alheia, no podendo jamais motivar alicitude do comportamento. A indiferena social tampouco traduzcausa excludente da ilicitude ou mesmo da culpabilidade.

    Apesar da efetiva aplicao da norma penal incriminadora da casade prostituio estar em desuso, a aceitao social de um fatoreputado criminoso em razo da reiterada prtica no tem o condode descriminaliz-lo (CAPEZ, 2008, p. 97). Nesse diapaso:

    O princpio da adequao social [...] destina-se precipuamen-te ao legislador, orientando-o na escolha de condutas a seremproibidas ou impostas, bem como na revogao de tipos pe-nais. Embora sirva de norte para o legislador, que dever ter asensibilidade de distinguir entre [sic] condutas consideradassocialmente adequadas daquelas que esto a merecer a repri-menda do Direito Penal, o princpio da adequao social, por sis, no tem o condo de revogar tipos penais incriminadores.Mesmo que sejam constantes as prticas de algumas infraespenais, cujas condutas incriminadas a sociedade j no maisconsidera perniciosas, no cabe, aqui, a alegao, pelo agente,de que o fato que pratica se encontra, agora, adequado social-mente. Uma lei somente pode ser revogada por outra, confor-me determina o caputdo art. 2oda Lei de Introduo ao Cdi-go Civil. (GRECO, 2010, p. 54).

    Ademais, a manuteno do crime no ordenamento jurdico ptrio,

    mesmo com o advento da Lei n 12.015/09, demonstrou a inequvoca

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    vontade do legislador em manter criminalizada a conduta. Nessecontexto, deve prevalecer a vontade do legislador em detrimento daopinio do julgador quando o assunto definio de tipos penais, emrespeito garantia da lex populiderivada do princpio da legalidade.

    Cabe somente ao legislador o papel de revogar ou modificar a leipenal em vigor, de modo que no se aplica o princpio da adequaosocial casa de prostituio. No compete ao Poder Judiciriodescriminalizar conduta tipificada formalmente pela legislaopenal e que se encontra em conformidade com os princpios quepreservam sua tipicidade material.

    Descabe potencializar o que transparece como ptica de grandeparte da populao e concluir pela insubsistncia do tipo penal.

    A tolerncia notada quanto prostituio no leva a entender-secomo derrogado o art. 229 do Cdigo Penal. preciso pagar umpreo por se viver em um Estado Democrtico de Direito (o respeitos regras estabelecidas), e esse custo mdico. Somente assim sefaz possvel a paz na vida gregria no seio social.

    8. Concluso

    Do exame dos argumentos supraexpostos, fcil perceber que aquesto sobre a atipicidade material do crime de casa de prostituio(em razo da incidncia dos princpios da fragmentariedade e daadequao social) est longe de ser pacificada, sendo controvertidatanto na doutrina quanto na jurisprudncia.

    No que se refere especificamente ao Supremo Tribunal Federal, cujo

    julgado mais recente sobre o tema objeto do presente estudo,constata-se que foi firmado entendimento no sentido de afastar aaplicao dos referidos postulados ao delito sexual.

    A deciso em estudo pretende demonstrar que, conquanto algunsjuristas caracterizem a inaplicabilidade da adequao social aocrime de casa de prostituio como pensamento conservador einjustificvel nos tempos modernos, no se pode esquecer que se

    vive em um Estado Democrtico de Direito que preza pelo respeito

    s normas, que so editadas pelo Poder Legislativo.

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    176 ISSN 1809-8487 v. 11 / n. 18 / jan.-jun. 2012 / p. 163-177

    Direito Penal Comentrio Jurisprudncia

    Princpios da fragmentariedade e da adequao social e crime de casa de prostituio

    Como se no fosse suficiente, a descriminalizao da casa deprostituio pelos costumes fere de morte um princpio basilar doDireito Penal, qual seja, o da legalidade. Como se depreende do

    julgado indicado, a descriminalizao tarefa do legislador, e nodo julgador, cuja misso cinge-se em aplicar a lei.

    Ao se considerar a argumentao procedida, conclui-se que aproblemtica polmica e enseja um constante debate em todasas instncias pblicas, de maneira a compatibilizar o sentimentosocial do justo com a necessidade de se preservarem valores e bens

    jurdicos fundamentais sociedade.

    9. Referncias bibliogrficas

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