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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTOacuteRIA PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA COMPARADA
PAacuteRIS EacutePICO PAacuteRIS TRAacuteGICO
Um estudo comparado da etnicidade helecircnica entre Homero e Euriacutepides (seacuteculos VIII e V aC)
Renata Cardoso
Rio de Janeiro setembro de 2014
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTOacuteRIA PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA COMPARADA
Paacuteris Eacutepico Paacuteris Traacutegico
Um estudo comparado da etnicidade helecircnica entre Homero e
Euriacutepides (seacuteculos VIII e V aC)
Renata Cardoso de Sousa
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada do Instituto de Histoacuteria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de mestre
Orientador Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa
Rio de Janeiro
setembro de 2014
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTOacuteRIA PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA COMPARADA
Paacuteris Eacutepico Paacuteris Traacutegico
Um estudo comparado da etnicidade helecircnica entre Homero e
Euriacutepides (seacuteculos VIII e V aC)
Renata Cardoso de Sousa
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada do Instituto de Histoacuteria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de mestre
__________________________________________________________
Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa (orientador)
__________________________________________________________
Prof Dr Alexandre Santos de Moraes
__________________________________________________________
Profordf Drordf Regina Maria da Cunha Bustamante
Rio de Janeiro
setembro de 2014
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Agradecimentos
Repito em minha dissertaccedilatildeo as mesmas palavras que coloquei em minha monografia
se eu agradecesse aqui a todas as pessoas que me ajudaram a chegar onde estou hoje soacute os
agradecimentos teriam o tamanho do Le grand Bailly Assim vocecirc que sabe que participou
da minha vida e natildeo estaacute aqui natildeo se sinta excluiacutedo eu tenho a consciecircncia de que vocecirc
participou dela
Devo essa dissertaccedilatildeo primeiramente ao meu orientador Faacutebio de Souza Lessa que
acreditou em mim desde o 3ordm periacuteodo da graduaccedilatildeo quando me perguntou se eu queria ser
bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica sem nem saber o que eu queria estudar
Agradeccedilo tambeacutem aos leitores do meu projeto de pesquisa na qualificaccedilatildeo e da minha
dissertaccedilatildeo a Prof Drordf Regina Maria da Cunha Bustamante e o Prof Dr Alexandre Santos
de Moraes que deram contribuiccedilotildees preciosiacutessimas para o desfecho dela
Tambeacutem foram importantes aqueles que leram meu projeto no momento em que entrei
no Mestrado e ajudaram-me a repensar alguns pontos fulcrais dele Leila Rodrigues da Silva
Wagner Pinheiro Pereira Silvio de Almeida Carvalho Filho Andreacute Leonardo Chevitarese e
Vantuil Pereira Ao professor Joseacute DrsquoAssunccedilatildeo Barros que me ajudou a amadurecer minhas
perspectivas teoacuterico-metodoloacutegicas e a ver outras possibilidades dentro do meu proacuteprio
trabalho
Deixo meu agradecimento tambeacutem aos amigos e amigas colegas de academia ou natildeo
que sempre estiveram comigo nessa minha jornada histoacuterica (literalmente) e que aturaram o
Paacuteris ateacute o fim Bruna Moraes da Silva Danielle Vasconcellos Jeacutessica Gomes Jessyca
Rezende Beatriz Vasconcellos Joselita de Queiroz Nascimento Michelle Moreira Gonccedilalves
de Oliveira e Edson Moreira Guimaratildees Neto
Agraves professoras de Grego (Aacutetico e Moderno) Tatiana Maria Gandelman de Freitas e
Luciacutelia Brandatildeo Se eu consegui ler um artigo em grego se eu consegui ler alguma coisa da
Iliacuteada na liacutengua original ou se consegui escrever esta pequenina frase foi graccedilas a elas Agrave
professora Carole Anaiumls que com sua paciecircncia infinita conseguiu fazer com que em dois
anos eu conseguisse ter domiacutenio suficiente do francecircs para conseguir ler minha bibliografia
Aos meus professores de Graduaccedilatildeo e Ensino Fundamental e Meacutedio soacute sou o que sou
hoje devido agrave educaccedilatildeo que tive nos coleacutegios e na Universidade Agradeccedilo sobretudo aos
meus professores de Histoacuteria e especialmente agrave Queila nunca vou esquecer do primeiro dia
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de aula de Histoacuteria da antiga 5ordf seacuterie quando ela pediu que escrevecircssemos na primeira paacutegina
do caderno ldquoHISTOacuteRIA Eacute VIDArdquo
Agrave todos os meus familiares que estiveram colados comigo nessa empreitada sobretudo
minha matildee (Eliane) irmatilde (Roberta) avoacute (Carmelita) e prima (Sylvia) por sempre me
incentivarem a continuar nessa carreira
E por uacuteltimo mas natildeo menos importante aos ldquoHomerosrdquo que compuseram a Iliacuteada e
a Odisseia e a Euriacutepides sem eles que aiacute mesmo natildeo haveria dissertaccedilatildeo alguma
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Resumo
Pretendemos analisar de forma comparada a representaccedilatildeo de Paacuteris heroacutei cujo ato e
aacutetē (perdiccedilatildeo) causaram a Guerra de Troia (c 1250-1240 aC) na Iliacuteada de Homero e nas
trageacutedias Alexandre (fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia
em Aacuteulis e Orestes de Euriacutepides de modo a compreender quais satildeo e como se
desenvolveram as fronteiras eacutetnicas helecircnicas Utilizaremos para a anaacutelise desse processo
histoacuterico-discursivo a metodologia comparada de Marcel Detienne expressa em sua obra
Comparar o Incomparaacutevel e para a anaacutelise do nosso corpus documental a Anaacutelise de
Discurso Francesa presente nas obras teoacutericas de Eni P Orlandi Dominique Maingueneau e
Pierre Charaudeau
Palavras-chave Histoacuteria Comparada Anaacutelise de Discurso Homero Euriacutepides etnicidade
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Abstract
We aim to analyze on a comparative basis the representation of Paris hero whose act
and aacutetē (perdition) caused the Trojan War (c 1250-1240 bC) in Homerrsquos Iliad and in
Euripidesrsquo tragedies Alexander (fragmentary) Andromache Trojan Women Hecuba
Helen Iphigenia in Aulis and Orestes in order to understand which are the hellenic ethnic
boundaries and how it has been developed We will use to analyze this historic-discursive
process the comparitive methodology of Marcel Detienne expressed in his Comparing the
incomparable and to analyze our corpus the French Discourse Analysis present in Eni P
Orlandi Dominique Maingueneau and Pierre Charaudeaursquos theoretical works
Keywords Comparative History Dicourse Analysis Homer Euripides ethnicity
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Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 09
CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE COMPOSICcedilAtildeO -------------p 24
CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES ----------------------------------------------------p 50
CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI ----------------------------------------------------------------------p 76
CONCLUSAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 100
ANEXO | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO --------------------------------------------------------p 105
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS ------------------------------------------------------------------p 107
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL --------------------------------------------------------------p 107
DICIONAacuteRIOS E GRAMAacuteTICAS ------------------------------------------------------------p 108
BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------p 109
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INTRODUCcedilAtildeO | TEMA PROBLEMAS METODOLOGIAS
ldquoO conhecimento revisitado das tradiccedilotildees da histoacuteria e literatura da Guineacute-Bissau poderaacute funcionar dessa forma como um
Outro que nos complementa ajudando-nos a revisitar ateacute mesmo a imagem que fazemos de noacutes proacutepriosrdquo
(SECCO 2007 p 16-17)
Vivemos em um mundo plural e por isso nos embatemos frequentemente com Outros
que natildeo necessariamente habitam um paiacutes distante o diferente mora ao nosso lado convive
conosco porque dentro de uma mesma sociedade eacute possiacutevel estabelecer uma relaccedilatildeo de
alteridade A cada dia que esbarramos com algueacutem que partilha de costumes e ideias
diferentes das nossas nos modificamos tambeacutem eacute como na metaacutefora de bolas de bilhar de
Norbert Elias (1994 p 29) pois quando nos relacionamos com as pessoas conversamos com
elas nunca permanecemos iguais fazendo com que sempre estejamos modificando nossos
limites de aceitaccedilatildeorejeiccedilatildeo nossas fronteiras de convivecircncia
Natildeo era diferente na Antiguidade e em nossa epiacutegrafe poderiacuteamos muito bem
substituir ldquoGuineacute-Bissaurdquo por ldquoGreacutecia Antigardquo afinal estamos lidando com pessoas Eacute o
homem que constroacutei suas proacuteprias leis bem como eacute ele quem faz a histoacuteria vivendo-a Agrave
medida que o homem vive ele deixa indiacutecios de sua vivecircncia Satildeo dessas ldquopistasrdquo desses
ldquorastrosrdquo que noacutes historiadores podemos estudar as sociedades do passado No presente
estudo se debruccedila sobre um indiacutecio que ateacute pouco tempo era desconsiderado pela Histoacuteria
como documentaccedilatildeo a literatura
Objetivamos natildeo somente analisar os textos que compotildeem nosso corpus mas coloca-
los em comparaccedilatildeo Cremos que a Iliacuteada de Homero (VIII aC) e as trageacutedias Alexandre
(fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes
(seacuteculo V aC) natildeo satildeo apenas produto de uma sociedade mas que as epopeias influenciaram
na construccedilatildeo da sociedade na qual eram encenadas as trageacutedias bem como as trageacutedias e as
proacuteprias epopeias influenciaram na construccedilatildeo de suas proacuteprias sociedades
Para estabelecer essa comparaccedilatildeo escolhemos como norte o antropoacutelogo Marcel
Detienne que em seu livro Comparar o incomparaacutevel lanccedilou uma seacuterie de conceitos-chave
e procedimentos para trabalhar com as comparaccedilotildees temporais eou espaciais A comparaccedilatildeo
eacute algo intriacutenseco ao ser humano Contudo fazer uma comparaccedilatildeo e fazer Histoacuteria Comparada
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eacute bem diferente eacute a partir dos anos 1920 com as obras de Marc Bloch que a Histoacuteria
Comparada vai tomando forma O objetivo dela para Bloch eacute ressaltar diferenccedilas e
semelhanccedilas em processos histoacutericos distintos tomando como base preferencialmente duas
sociedades contiacuteguas (BLOCH 1998 p 122-123) No Brasil eacute em fins da deacutecada de 1970
que esse meacutetodo comparativo eacute evidenciado Ciro Flamarion Cardoso e Heacutector Peacuterez Brignoli
chamam a atenccedilatildeo para a sua importacircncia nos estudos historiograacuteficos ressaltando ainda que
natildeo se trata de uma mera catalogaccedilatildeo de diferenccedilas e semelhanccedilas mas de busca de
peculiaridades (CARDOSO PEacuteREZ BRIGNOLI 1983 p 418)
Entretanto no iniacutecio do seacuteculo a Histoacuteria Comparada sofre uma crise com o crescente
destaque dado agrave Histoacuteria Cruzada o historiador Juumlrgen Kocka coloca que ambas devem se
relacionar que meacutetodo comparativo deve ser associado agrave histoire croisseacutee (KOCKA 2003 p
44) mas Michael Werner e Beacuteneacutedicte Zimmerman jaacute veem a Histoacuteria Comparada como algo
problemaacutetico em seu artigo Beyond comparison histoire croiseacutee and the chalenge of
reflexivity eles definem um meacutetodo de Histoacuteria Cruzada e mostram razotildees pelas quais a
Histoacuteria Comparada natildeo seria uma metodologia tatildeo adequada pois seu uso eacute binaacuterio
(semelhanccedilasdiferenccedilas) (WERNER ZIMMERMANN 2006 p 33)
Eacute no bojo dessas discussotildees que surge a proposta de Marcel Detienne ele critica a
ideia de que soacute se pode comparar sociedades contiacuteguas ressaltando a ideia de que se pode
ldquocomparar o incomparaacutevelrdquo pois as sociedades espalhadas pelo mundo embora plurais
compartilham algumas instituiccedilotildees (DETIENNE 2004 p 10 e 47) o casamento a fundaccedilatildeo
a morte etc Embora Detienne seja aacutecido em suas criacuteticas visto que Marc Bloch natildeo excluiacutea a
possibilidade de comparar sociedades distantes no tempo e no espaccedilo (BLOCH 1998 p
121) eacute ele que melhor define um meacutetodo comparativo fechado e por isso escolhemo-lo como
norte teoacuterico
Assim partindo de uma categoria1 (etnicidade) definimos como comparaacutevel2 a
representaccedilatildeo de Paacuteris tanto na epopeia homeacuterica quanto nas trageacutedias de Euriacutepides Essas
representaccedilotildees seratildeo devidamente analisadas em sua intrinsecidade atraveacutes da Anaacutelise de
Discursos cabendo a noacutes pesquisadores de Histoacuteria Comparada colocar essas experiecircncias
variadas lado a lado para contrastaacute-las eou aproximaacute-las Temos em mente que o meacutetodo eacute
um caminho e o objeto o qual pretendemos construir eacute que orienta a escolha dele
1 A categoria eacute um ldquotraccedilo significativo uma atitude mentalrdquo que faz parte de ldquoum conjunto uma configuraccedilatildeordquo (DETIENNE 2004 p 57) 2 Os comparaacuteveis satildeo ldquomecanismos de pensamento observaacuteveis nas articulaccedilotildees entre os elementos arranjados conforme a entrada lsquofigura inaugural que vem de forarsquo lsquonatildeo-iniacuteciorsquo ou outras [] satildeo orientaccedilotildees essas relaccedilotildees em cadeia essas escolhasrdquo (DETIENNE 2004 p 57-58)
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(ANDRADE 1998 p 38) e visto que queremos estudar um processo ideoloacutegico de definiccedilatildeo
de fronteiras eacutetnicas que tem como recorte temporalidades distintas a metodologia
comparativa de Detienne encaixou-se adequadamente
Para ler nosso corpus documental adotamos como metodologia de leitura analiacutetica a
proposta por Eni Puccinelli Orlandi em seu livro Anaacutelise de Discurso Princiacutepios amp
Procedimentos Identificamo-nos com a Anaacutelise de Discurso francesa3 por dois motivos pela
natureza do nosso corpus e pela proposta soacutecio-histoacuterica desse meacutetodo Nossa documentaccedilatildeo
eacute formada por textos cada um deles eacute a unidade analiacutetica do discurso entendido como um
processo em curso (ORLANDI 2012 p 39) Assim tomamos o discurso de Homero e o
discurso de Euriacutepides como partes de um processo discursivo mais amplo
A Anaacutelise de Discurso trata de um sistema que envolve natildeo apenas o discurso em si
mas a relaccedilatildeo entre liacutengua ideologia e histoacuteria tendo em vista a produccedilatildeo de sentidos O
processo discursivo implica no perpasso da ideologia4 pelo discurso eacute ela que produz sentido
pois ldquose materializa na linguagemrdquo (ORLANDI 2012 p 96) A linguagem por sua vez ldquoeacute
linguagem porque faz sentido E [] soacute faz sentido porque se inscreve na histoacuteriardquo
(ORLANDI 2012 p 25 ndash grifos nossos) A histoacuteria eacute o sentido visto que o sujeito do
discurso ldquose faz (se significa) napela histoacuteriardquo (ORLANDI 2012 p 95)
A fim de chegarmos agrave compreensatildeo desse processo discursivo eacute necessaacuterio cumprir trecircs
etapas a partir da dessuperficializaccedilatildeo5 da superfiacutecie linguiacutestica (corpus documental)
selecionado (a) obtemos o objeto discursivo (b) que se transforma em processo discursivo
(c) ao chegarmos na formaccedilatildeo ideoloacutegica daquele objeto
(a) (b) (c)
3 A AD francesa eacute diferente da AD anglo-saxatilde enquanto aquela eacute oriunda da linguiacutestica e privilegia discursos escritos esta vem da antropologia e trabalha mais com discursos orais Aleacutem disso a francesa destaca os mais propoacutesitos textuais e a inglesa os comunicacionais (MAINGUENEAU 1997 p 16) 4 Defendemos que a ideologia em Homero eacute a proacutepria paideiacutea ldquoPor ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacuteticardquo (LESSA 2010 p 22) 5 O processo de dessuperficializaccedilatildeo consiste na ldquoanaacutelise do que chamamos materialidade linguiacutestica o como se diz o quem diz em que circunstacircncias etcrdquo (ORLANDI 2012 p 65)
dessuperficializaccedilatildeo
CORPUS
DOCUMENTAL
OBJETO
DISCURSIVO
PROCESSO
DISCURSIVO ideologia
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A Guerra de Troia (1250-1240 aC) eacute um dos eventos da Antiguidade Grega mais
relembrados por noacutes hoje em dia Enquanto para noacutes essas histoacuterias satildeo mitos natildeo existiram
de verdade para os gregos ela existiram de fato O passado que se reapropriava era um
passado veriacutedico de um tempo preteacuterito e a sua funccedilatildeo era extremamente didaacutetica com os
heroacuteis de outrora se aprendia a ser um verdadeiro homem Homero ou Euriacutepides ao
comporem seus textos natildeo questionavam a materialidade histoacuterica desses personagens e
mesmo Tuciacutedides um historiador utilizava a memoacuteria desses heroacuteis do passado em sua
Histoacuteria da Guerra do Peloponeso como se eles tivessem existido
Paacuteris Helena Heitor Menelau podem natildeo ter sido de ldquocarne e ossordquo mas
permanecem no nosso imaginaacuterio muitos filmes seacuteries de televisatildeo e mesmo livros de ficccedilatildeo
satildeo escritos tendo os mitos gregos como pano de fundo Essa reapropriaccedilatildeo do material miacutetico
natildeo eacute contudo exclusividade do mundo contemporacircneo tragedioacutegrafos e poetas dos periacuteodos
arcaico claacutessico e heleniacutestico tambeacutem manejavam esses mitos para compor suas proacuteprias
histoacuterias Do mesmo modo que podiam modificar as histoacuterias modificavam tambeacutem o caraacuteter
dos personagens
A imagem de Paacuteris como um completo covarde estaacute arraigada em nosso imaginaacuterio
Se tivermos em mente o desempenho de Paacuteris no Canto III da Iliacuteada essa ideia parece ser
bem apropriada (HOMERO Iliacuteada III vv 21-37) Tal episoacutedio nos chamou a atenccedilatildeo o
heroacutei foge (algo que ele natildeo deveria fazer pois eacute um heroacutei) Contudo Paacuteris decide retornar
para a luta (III vv 68-70) Em Euriacutepides natildeo temos cenas assim Paacuteris eacute apenas mencionado
No nosso corpus documental apenas em Aleacutexandros ele eacute de fato personagem (com falas
etc)
Assim como pretendemos analisar a sua representaccedilatildeo Atraveacutes da anaacutelise dos
adjetivosepiacutetetos que adornam sua caracterizaccedilatildeo e dos comentaacuterios dos outros personagens
acerca dele Catalogaremos esses elementos e inserindo-os no acircmbito do discurso iremos
delinear o personagem e qual o seu papel dentro da narrativa A helenista Irene de Jong
mostra que os personagens off-stage (que estatildeo fora do palco) tambeacutem desempenham papeacuteis
importantes denotando a ideia de que ldquolsquocontarrsquo natildeo precisa ser menos impressionante do que
lsquomostrarrsquordquo (DE JONG 2011 p 389)
A Iliacuteada e as trageacutedias euripidianas mostram momentos distintos da Greacutecia Antiga o
Periacuteodo Arcaico (VIII-VII aC) no qual a poesia grega floresceu com Homero e Hesiacuteodo
dois aedos que lanccedilaram as bases temaacuteticas para o gecircnero traacutegico o qual nasceu e entrou em
crise no Periacuteodo Claacutessico (V aC) e foi imortalizado por trecircs grandes tragedioacutegrafos Eacutesquilo
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Soacutefocles e Euriacutepides Ao recortarmos nossa pesquisa neste uacuteltimo traacutegico referimo-nos a
Atenas visto que seu cenaacuterio de composiccedilatildeo era nesta poacutelis
Em relaccedilatildeo a Euriacutepides natildeo temos problemas de dataccedilatildeo sabemos que ele eacute de fato
do seacuteculo V aC Entretanto com relaccedilatildeo a Homero esbarramos com esse problema Natildeo
sabemos quando ele foi composto ou quando ele foi colocado na escrita mas podemos chegar
a um consenso A maioria dos helenistas coloca a eacutepica homeacuterica no seacuteculo VIII aC poreacutem
haacute discordacircncias O historiador Gustavo Oliveira diferencia quatro abordagens acerca desses
embates acadecircmicos a) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram compostosrdquo
b) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram fixadosrdquo c) ldquoos poemas dizem
respeito ao periacuteodo que tentaram retratarrdquo d) ldquoos poemas dizem respeito ao passado recente
alcanccedilado na tentativa de atingir um passado ainda mais distanterdquo (OLIVEIRA 2012)6
Os defensores de (a) creem que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o reflexo da sociedade do
periacuteodo em que eles foram compostos e o historiador vecirc nisso um problema pois eacute necessaacuterio
fixar essa marca para se ter certeza de qual sociedade se analisa e ainda natildeo temos
comprovaccedilatildeo exata do periacuteodo em que a eacutepica homeacuterica foi composta Geralmente os
defensores dessa ideia colocam Homero no seacuteculo VIII aC
Recentemente ateacute mesmo a geneacutetica se debruccedilou sobre esse tema esses pesquisadores
acreditam que a liacutengua eacute como um DNA e as palavras genes Esses ldquogenesrdquo vatildeo passando de
uma liacutengua para outra criando raiacutezes etimoloacutegicas semelhantes como acontece na palavra
aacutegua (do proto-germacircnico watōr derivaram-se wato ndash goacutetico ndash water ndash inglecircs ndash wasser ndash
alematildeo ndash vatten ndash sueco ndash etc) (ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p
417) Eles isolam essas palavras em comum entre o hitita o grego moderno (essas duas as
quais se conhece a eacutepoca em que se desenvolveram) e o grego homeacuterico e atraveacutes de uma
frequecircncia de cadeia de Markov7 chegam agrave conclusatildeo que a antiguidade do grego da Iliacuteada eacute
de cerca de 2720 anos ou seja que seria mais ou menos de 707 aC Com a margem que eles
potildeem nesse meacutetodo os textos homeacutericos satildeo datados de entre 760 a 710 aC
O objetivo desses pesquisadores eacute mostrar que a ldquolinguagem pode ser usada como os
genes para ajudar na investigaccedilatildeo das questotildees histoacutericas arqueoloacutegicas e antropoloacutegicasrdquo
(ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p 419) e eles afirmam que como 6 Para conhecer quais helenistas partilham de quais opiniotildees consultar o artigo de Gustavo Oliveira intitulado Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas homeacutericos (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 7 Essa cadeia funciona do seguinte modo temos um objeto x do qual natildeo conhecemos nada mas tambeacutem temos dois objetos y e z que se relacionam com esse x e do qual conhecemos algo em comum Assim atraveacutes de uma foacutermula fixa conseguimos chegar ao resultado do nosso x Aqui no caso o x seria o grego homeacuterico o y e o z o hitita e o grego moderno
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esses textos satildeo oriundos de uma tradiccedilatildeo oral fica difiacutecil de dizer se essa data diz respeito a
quando eles foram produzidos ou cristalizados na escrita A importacircncia desse estudo eacute
tambeacutem mostrar como esse eacute um problema que natildeo intriga somente a noacutes cientistas humanos
mas aos cientistas das aacutereas de Exatas e Bioloacutegicas tambeacutem aumentando o leque de diaacutelogo
transdisciplinar Desse modo cremos que sua menccedilatildeo eacute essencial para chamar a atenccedilatildeo para
outras perspectivas de trabalho
Os defensores de (b) creem que os poemas dizem respeito agrave sociedade que os fixou na
escrita fazendo com que a dataccedilatildeo fique mais imprecisa ainda Natildeo haacute como chegar num
consenso como chegamos em (a) acerca de qual data seria mais apropriada Jaacute os que
defendem (c) acreditam que os poemas dizem respeito ao Periacuteodo Palaciano (XVII-1100
aC) pois fazem referecircncia a esse passado quando teria se desenrolado a Guerra de Troia
Essa proposta natildeo eacute tatildeo bem aceita embora alguns estudiosos admitam que haacute muacuteltiplas
temporalidades em Homero (OLIVEIRA 2012 p 133)
Os pesquisadores que adotam (d) como proposta de dataccedilatildeo acreditam que os eacutepicos
referem-se ao periacuteodo da desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) Um dos principais
defensores dessa ideia eacute o historiador Moses Finley ele afirma que ldquo[O mundo de Ulisses]
Era muito mais lsquosimplesrsquo na sua organizaccedilatildeo social e poliacutetica era iletrada [sic] e a sua
arquitetura natildeo era verdadeiramente monumental quer se destinasse aos vivos quer aos
mortosrdquo (FINLEY 1982 p 45) Eacute juntamente com (a) uma das principais perspectivas
Claude Mosseacute a inclui no seu verbete sobre Homero no Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega
(2004 p 171-172) mas admite que mesmo assim a dataccedilatildeo permanece um enigma para noacutes
Gustavo Oliveira afirma que ldquoo maior problema com essa tendecircncia de associar os poemas
homeacutericos com o periacuteodo da Idade das Trevas estaacute justamente na falta de documentaccedilatildeo que
comprove ou ao menos sugira sua probabilidaderdquo (OLIVEIRA 2012 p 135)
Do mesmo modo o historiador Alexandre Santos de Moraes aborda essa discussatildeo em
sua tese de doutorado afirmando ser o periacuteodo entre os seacuteculos X a IX aC o ideal para se
colocar o que a Iliacuteada e a Odisseia mostram a sociedade homeacuterica seria a sociedade da eacutepoca
de desestruturaccedilatildeo palaciana O autor revisita as teses de Anthony Snodgrass e Oswyn Murray
e toma Ian Morris como principal representante da dataccedilatildeo de Homero no seacuteculo VIII aC
desconstruindo muitos de seus argumentos A eacutepica homeacuterica natildeo deve ser considerada
oriunda de um periacuteodo no qual surge a escrita pois pertence agrave tradiccedilatildeo oral bem como natildeo
podemos atribuir a Homero a criaccedilatildeo de um sistema poliacuteade muitos autores afirmam que
podemos encontrar sinais da poacutelis em Homero
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Essa uacuteltima ideia eacute problemaacutetica a eacutepica jaacute traz o termo poacutelis mas ele natildeo diz respeito
agrave organizaccedilatildeo poliacutetica social econocircmica e administrativa que encontramos no Periacuteodo
Claacutessico O centro do poder em Homero eacute ainda o palaacutecio embora possamos encontrar
estruturas que estaratildeo presentes na poacutelis como a assembleia Nesses poemas haacute uma
miscelacircnea temporal muito grande natildeo podendo noacutes delimitarmos um uacutenico periacuteodo sem
sermos arbitraacuterios O proacuteprio Finley afirma que ldquoeacute com alguma liberdade que o historiador
fixa nos seacuteculos X e IX aC o mundo de Ulissesrdquo (FINLEY 1982 p 46)
Devido a essa polecircmica eacute muito difiacutecil para o historiador tomar uma posiccedilatildeo acerca da
data da composiccedilatildeo das epopeias Escolhemos o seacuteculo VIII aC agrave medida em que
defendemos que esses poemas dizem respeito jaacute a um movimento de conquista de apoikiacuteai
como defende o historiador Irad Malkin Mas eacute fato que a ancoragem histoacuterico-temporal
desses poemas pode retroceder mais no tempo visto que ele pertence a uma tradiccedilatildeo oral O
que vai mais nos interessar em nossa pesquisa eacute que a epopeia pertence a um tempo anterior
agraves trageacutedias
Sendo periacuteodos e gecircneros distintos cada um tende a representar Paacuteris de uma maneira
Nosso problema diz respeito a um processo que comeccedila com as epopeias de Homero e
continua a se desenvolver em outros gecircneros literaacuterios trata-se de um processo de elaboraccedilatildeo
de um coacutedigo de conduta social atraveacutes da praacutetica da paideiacutea8 o qual iraacute definir tambeacutem as
bases do que eacute grego e do que natildeo eacute Desde Homero haacute um discurso de alteridade Assim
indagamo-nos o que eacute grego9 O que natildeo eacute Era mais faacutecil para os gregos responderem agrave
uacuteltima pergunta definia-se o natildeo-grego para se definir o grego
Ao longo de toda a Odisseia o heroacutei Odisseu toma contato com Outros todavia eacute no
episoacutedio dos ciclopes em que se teraacute o contato com o grande representante da alteridade
helecircnica o qual seraacute recuperado por exemplo no drama satiacuterico Os Ciclopes de Euriacutepides
Odisseu os descreve assim ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo
cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεmicroίστων ἱκόmicroεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι
πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO
Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)
O que importa nessas sequecircncias natildeo eacute a caracterizaccedilatildeo dos ciclopes mas a definiccedilatildeo
daquilo que definitivamente natildeo eacute helecircnico Pela descriccedilatildeo de Odisseu podemos caracterizar 8 Literalmente paideiacutea significa ldquocriaccedilatildeo de meninosrdquo Ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas Para melhor definiccedilatildeo ver o capiacutetulo 1 de nossa dissertaccedilatildeo (Entre Homero e Euriacutepides dois estilos de composiccedilatildeo) 9 Vale ressaltar que ldquogregordquo aqui eacute uma conveniecircncia Haacute um intenso debate em torno do termo ldquohelenordquo ele eacute usado em Homero para designar determinado povo natildeo todos os povos gregos como seraacute no Periacuteodo Claacutessico
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os gregos eles vivem sob um coacutedigo de leis sua principal fonte de subsistecircncia eacute a
agricultura eles vivem em comunidade cultuam os deuses o patildeo eacute o seu principal alimento e
possuem caracteriacutesticas humanas sendo inclusive belos10
Por isso preferimos utilizar o conceito de alteridade tal qual Marc Augeacute propotildee Para ele
a identidade eacute produzida pelo reconhecimento de alteridades colocando em cena um Outro
(AUGEacute 1998 p 19 e 20) que pode ser a) o Outro exoacutetico que eacute definido a partir de um noacutes
homogecircneo b) o Outro eacutetnico homogecircneo ndash como eacute o caso dos gregos em relaccedilatildeo com os
baacuterbaros c) o Outro social (a mulher a crianccedila o transgressor) e o Outro iacutentimo pois temos
vaacuterias identidades (AUGEacute 2008 p 22-3)
Segundo esse antropoacutelogo ldquonatildeo existe afirmaccedilatildeo identitaacuteria sem redefiniccedilatildeo das relaccedilotildees
de alteridade como natildeo haacute cultura viva sem criaccedilatildeo culturalrdquo (AUGEacute 1998 p 28)
Identidade e alteridade natildeo se opotildeem natildeo se excluem formam um par complementando-se
visto que satildeo ldquocategorias [] que a constituem [a sociedade] e definemrdquo (AUGEacute 1998 p
10) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no
contato entre os colonizadores e os nativos
O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica o contato com
outras culturas eacute imbuiacutedo de choques Contudo Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de outro
retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas
em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para
definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) E se pararmos para pensar o conectivo
adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse
vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 p 63-4) o ldquooutrordquo assemelha-se ao
ldquomasrdquo ao adverso
Assim como o conceito de alteridade o de etnicidade tem um apelo marcadamente
antropoloacutegico Escolhemos trabalhar com o modo como Fredrik Barth entende a etnicidade e
mais ainda o que eacute uma fronteira eacutetnica e um grupo eacutetnico conceitos-chave para
entendermos sua abordagem Embora seja um texto claacutessico Barth conseguiu abarcar o que
compreendemos sobre etnicidade ou seja um discurso criado por um grupo para legitimar
seu lugar social sendo que esse discurso natildeo vem do nada mas sim da relaccedilatildeo com outros
grupos
10 O termo utilizado pelos helenos para designar o belo eacute kaloacutes que tem tanto uma conotaccedilatildeo de beleza externa quanto interna (virtude) podendo inclusive dependendo do contexto ser traduzido como ldquobomrdquo bem como o seu antocircnimo kakoacutes pode ser traduzido por ldquofeiordquo ou ldquomaurdquo
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O termo etnia vem de um outro eacutethnos que eacute ldquotoda classe de seres de origem ou de
condiccedilatildeo comumrdquo (BAILLY 2000 p 581) Ele pode designar tanto um bando de animais
(eacutethnea ndash nominativo eacutepico jocircnico plural ndash HOMERO Iliacuteada II 459 para gansos II 469
para moscas Odisseia XIV v 73 para porcos) quanto um conjunto de pessoas O termo
eacutethnos aparece geralmente ligado a uma estrutura formulaica como ldquoἂψ δ ἑτάρων εἰς
ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἐχάζετο κῆρ ἀλεείνωνrdquo (ldquomas de volta ao grupo ndash eacutethnos ndash dos companheiros retorna
evitando a morte em batalha - kḗrrdquo) ou ldquoἐπεὶ ἵκετο ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἑταίρωνrdquo (ldquodepois voltou ao grupo
ndash eacutethnos ndash de companheirosrdquo11) visto que se repetem algumas vezes ao longo da Iliacuteada (a
primeira estrutura mais do a segunda)
O conceito de etnicidade comeccedilou a ser debatido recentemente desde a deacutecada de 1970
que esse debate se destaca
O debate sobre a etnicidade foi alimentado desde a deacutecada de 1970 por uma abundante bibliografia que se enriqueceu de modo consideraacutevel o conhecimento empiacuterico das situaccedilotildees intereacutetnicas atuais em todas as partes do mundo natildeo chegou verdadeiramente ateacute hoje a permitir que se destaque uma teoria geral da etnicidade (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 120)
Contudo a heterogeneidade do debate natildeo permitia que se chegasse a uma definiccedilatildeo
mais concreta de etnicidade e uma proposta de conceituaccedilatildeo ainda natildeo havia sido elaborada
Confundia-se (e ainda se confunde) muito os termos ldquoraccedilardquo e ldquoetniardquo que se configuram em
instacircncias diferentes a etnia diz respeito agraves relaccedilotildees sociais entre o ldquonoacutesrdquo e o ldquoelesrdquo e a raccedila
diz mais respeito agraves configuraccedilotildees bioloacutegico-fenotiacutepicas que diferenciam um grupo do outro
Obviamente o argumento racial seraacute utilizado algumas vezes para essa diferenciaccedilatildeo
dicotocircmica mas isso quer dizer que ele tem relaccedilatildeo com o conceito de etnicidade natildeo que
seja sinocircnimo deste
Assim Glazer amp Moynihan defendem que ldquoa etnicidade refere-se a um conjunto de
atributos ou de traccedilos tais como a liacutengua a religiatildeo os costumes o que a aproxima da noccedilatildeo
de cultura ou agrave ascendecircncia comum presumida dos membros o que a torna proacutexima da noccedilatildeo
de raccedilardquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Outros autores relacionam a
etnicidade com o que impulsiona a formaccedilatildeo de um povo com a adequaccedilatildeo comportamental
das pessoas agraves normas sociais de um grupo ou agraves representaccedilotildees que condensam a pertenccedila a
um grupo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86)
11 Esses versos satildeo de traduccedilatildeo proacutepria
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Como pudemos ver as definiccedilotildees satildeo diversas Houve uma tentativa de juntar todas
essas definiccedilotildees para compor o conceito de etnicidade em fins da deacutecada de 1978 (Burgess)
mas que acabou por generalizaacute-lo No acircmbito da Histoacuteria Antiga o historiador americano
Jonathan M Hall procurou sumarizar em oito pontos o que ele entende por etnicidade a partir
de leituras diversas
(1) A etnicidade eacute um fenocircmeno mais social do que bioloacutegico Eacute definida mais por criteacuterios social e discursivamente construiacutedos do que por indiacutecios sociais
(2) Traccedilos culturais geneacuteticos linguiacutesticos religiosos ou comuns natildeo definem essencialmente o grupo eacutetnico Esses satildeo siacutembolos que satildeo manipulados de acordo com fronteiras atribuiacutedas construiacutedas subjetivamente
(3) O grupo eacutetnico eacute distinto de outros grupos sociais e associativos em virtude da associaccedilatildeo com um territoacuterio especiacutefico e um mito de origem compartilhado Essa noccedilatildeo de descendecircncia eacute mais putativa do que atual e julgada por consenso
(4) Os grupos eacutetnicos satildeo frequentemente formados pela apropriaccedilatildeo de recursos por uma seccedilatildeo da populaccedilatildeo ao custo de outra como resultado de uma conquista ou migraccedilatildeo de longa data ou pela reaccedilatildeo contra tais apropriaccedilotildees
(5) Os grupos eacutetnicos natildeo satildeo estaacuteticos ou monoliacuteticos mas dinacircmicos e fluidos Suas fronteiras satildeo permeaacuteveis ateacute certo grau e elas podem ser produto de um professo de assimilaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo
(6) Os indiviacuteduos natildeo precisam sempre agir em termos de sua pertenccedila a um grupo eacutetnico Quando contudo a identidade do grupo eacutetnico eacute ameaccedilada sua internalizaccedilatildeo como identidade social de cada um de seus membros implica numa convergecircncia de normas e comportamentos de grupo e a supressatildeo temporaacuteria da variabilidade individual no esforccedilo por uma identidade social positiva
(7) Tal convergecircncia comportamental e saliecircncia eacutetnica eacute mais comum entre (ainda que natildeo exclusiva a) grupos dominados e excluiacutedos
(8) A identidade eacutetnica soacute pode ser constituiacuteda em oposiccedilatildeo a outras identidades eacutetnicas (HALL 1997 p 33)
A definiccedilatildeo de Hall se aproxima bastante da defendida por Fredrik Barth e Abner
Cohen autores que nos chamaram a atenccedilatildeo Desse modo propomos nos debruccedilar sobre as
ideias deles dois visto que ambos nos chamaram a atenccedilatildeo ao tratar da etnicidade No
entanto escolhemos apenas um como norte teoacuterico o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth
Para esse autor o grupo eacutetnico natildeo eacute sinocircnimo de sociedade ou cultura Essa eacute uma premissa
fundamental visto que trabalhamos com dois grupos que compartilham de um mesmo coacutedigo
de conduta social Barth afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural
especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) esse ldquoconjunto culturalrdquo seria
justamente a paideiacutea com o coacutedigo de conduta que ela transmite
Aleacutem disso ele enfoca justamente nos limites desse grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo
de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com
outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos
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culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de
transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo
(LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando
os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios
para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)
A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se
define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado
pelo conceito de etnicidaderdquo afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart eacute aquele
que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e
satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de
traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees
raciaisrdquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 141)
A etnicidade tambeacutem implica na construccedilatildeo de representaccedilotildees sociais pois ldquoa
identificaccedilatildeo de outra pessoa como pertencente a um grupo eacutetnico implica compartilhamento
de criteacuterios de avaliaccedilatildeo e julgamentordquo (BARTH 2011 p 196) pois assim se tem a ideia de
que se ldquojoga o mesmo jogordquo nas palavras mesmo de Barth Essas representaccedilotildees satildeo
fundamentais para manter as caracteriacutesticas do grupo visto que a comunicaccedilatildeo eacute o locus
privilegiado de inculcaccedilatildeo delas
Ao pesquisarmos sobre o conceito de etnicidade encontramos outro autor que nos
chamou bastante atenccedilatildeo o antropoacutelogo iraquiano Abner Cohen Esse autor estuda as
sociedades africanas contemporacircneas mostrando como os costumes influenciam a poliacutetica e
como o discurso eacutetnico define relaccedilotildees de poder entre grupos eacutetnicos Assim como Barth
Cohen tambeacutem crecirc que o grupo se define e se redefine pelo contato com outros grupos
eacutetnicos ldquoum grupo eacutetnico se ajusta a novas realidades sociais adotando costumes de outros
grupos ou desenvolvendo novos costumes que satildeo compartilhados com outros gruposrdquo
(COHEN 1969 p 1)
Aleacutem disso o antropoacutelogo afirma que
Os diferentes grupos eacutetnicos organizam essas funccedilotildees [normas culturais valores mitos e siacutembolos] de modos diferentes de acordo com as suas tradiccedilotildees culturais e circunstacircncias estruturais Alguns grupos eacutetnicos fazem uso extensivo dos idiomas religiosos organizando essas funccedilotildees Outros grupos usam a descendecircncia [kinship] ou outras formas de relaccedilotildees morais em vez disso No curso do tempo o mesmo grupo pode mudar de um princiacutepio articulador para outro como resultado de mudanccedilas dentro do sistema poliacutetico encapsulado de ou outros desenvolvimentos ambos dentro ou fora do grupo (COHEN 1969 p 5-6)
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Contudo esbarramos no pensamento desse antropoacutelogo quando este afirma que ldquode
acordo com o meu uso um grupo eacutetnico eacute um grupo de interesse informal cujos membros satildeo
distintos dos membros de outros grupos dentro da mesma sociedaderdquo (COHEN 1969 p 4)
Isso seria aplicaacutevel somente agrave Iliacuteada visto que aqueus e troianos seriam membros de uma
mesma comunidade (que estaacute sob um mesmo coacutedigo de conduta) embora sejam membros de
diferentes grupos eacutetnicos Entretanto na realidade de Euriacutepides em que a dicotomia grego
baacuterbaro estaacute bem mais definida (e em crise) essa observaccedilatildeo natildeo se aplica a sociedade grega
eacute diferente da sociedade baacuterbara
Especificamente tratando da Antiguidade Grega alguns autores se debruccedilaram sobre a
questatildeo da etnicidade e da alteridade O mais antigo registro bibliograacutefico que trazemos em
nossa discussatildeo eacute o da helenista Helen Bacon Barbarians in Greek tragedy (1955) Em seu
doutorado ela faz uma anaacutelise dos elementos que caracterizam o baacuterbaro nas trageacutedias de
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides Tanto o vestuaacuterio como o modo de falar ou as accedilotildees definem
um personagem baacuterbaro mas dependendo do autor um ou outro elemento eacute enfatizado
Em 1989 Edith Hall publicou a sua tese doutoral Inventing the barbarian Greek
self-definition through tragedy que teve grande repercussatildeo no meio acadecircmico
Praticamente todos os livros que trazem a questatildeo da alteridadeetnicidade mencionam o
trabalho de Hall que se destina agrave anaacutelise da poesia traacutegica tambeacutem Sua hipoacutetese principal eacute a
de que quando os gregos escrevem sobre os baacuterbaros eles estatildeo fazendo um ldquoexerciacutecio de
auto-definiccedilatildeordquo pois eles satildeo opostos e que essa ldquoinvenccedilatildeordquo teria comeccedilado a partir das
Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) Aleacutem disso ela defende que a ideia de pan-helenismo
tem mais a ver com um ideal atenocecircntrico do que helenocecircntrico Com relaccedilatildeo a Homero ela
afirma que natildeo existe uma polarizaccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros no poema embora essa
diferenciaccedilatildeo existisse nessa eacutepoca admitindo que a Guerra de Troia originalmente seria
entre duas comunidades (HALL 1989 p 23) Contudo ela critica os autores que veem em
Homero uma diferenciaccedilatildeo clara entre gregos e troianos
Em 1993 a helenista francesa Jacqueline de Romilly escreve um artigo comentando o
livro de Edith Hall Les barbares dans la penseacutee de la Gregravece classique Ela chama a atenccedilatildeo
para o fato de que mais do que inventar o baacuterbaro os gregos inventaram o helenismo
(ROMILLY 1993 p 3) A autora reforccedila a ideia de que essa dicotomia eacute mais poliacutetica do que
racial embora admita que os gregos se liguem tambeacutem pelo criteacuterio da raccedila
No mesmo ano Barbara Cassin Nicole Loraux e Catherine Peschanski organizaram
Gregos baacuterbaros estrangeiros a cidade e seus outros com cinco ensaios das autoras
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sobre a questatildeo da alteridade na Greacutecia Claacutessica especificamente apresentados no Rio de
Janeiro a convite do Coleacutegio Internacional de Estudos Filosoacuteficos Transdisciplinares Elas
analisam sobretudo como a poacutelis lidava com os seus Outros categorizando e caracterizando
o estrangeiro A documentaccedilatildeo principal reside na historiografia helecircnica sendo Heroacutedoto
Tuciacutedides e Xenofonte os mais trabalhados Elas mostram como os gregos satildeo gregos por
cultura natildeo por natureza e como eles podem voltar a ser baacuterbaros atraveacutes do desrespeito dos
coacutedigos de valores helecircnicos (CASSIN LORAUX 1993 p 10)
Um ano depois Pericles Georges escreveu um livro que aborda natildeo soacute o Periacuteodo
Claacutessico mas tambeacutem o Arcaico Barbarian Asia and the Greek experience from the
Archaic Period to the age of Xenophon Sua proposta no livro eacute mostrar como os gregos
estereotiparam o baacuterbaro e qual a origem disso evidenciando como essa definiccedilatildeo ajudou a
construir a identidade grega No tocante a Homero ele tambeacutem natildeo crecirc haver diferenciaccedilatildeo
entre gregos e troianos mas admite que a Iliacuteada jaacute traz uma diferenciaccedilatildeo entre o noacutes e o eles
sobretudo ao se referir aos caacuterios e liacutedios
Antonio Mario Battegazzore escreveu em 1996 um artigo interessante sobre essa
polarizaccedilatildeo grego versus baacuterbaro La dicotomia greci-barbari nella Grecia Classica
riflessioni su cause ed effetti di una visione etnocecircntrica Seu trabalho eacute interessante pois
corrobora a ideia de que os gregos tecircm dois tipos de leitura sobre os baacuterbaros uma horizontal
(na qual os gregos reivindicam uma centralidade geograacutefico-cultural em relaccedilatildeo aos outros
povos) e uma vertical (os gregos satildeo evoluiacutedos pois o passado baacuterbaro ficou para traacutes os
baacuterbaroi de hoje satildeo atrasados visto que pararam no tempo) (BATTEGAZZORE 1996 p
23) Ele natildeo admite a possibilidade de diferenciaccedilatildeo entre troianos e gregos na Iliacuteada
analisando essa dicotomia no Periacuteodo Claacutessico
O historiador Irad Malkin em 1998 escreve um livro inovador no que diz repeito ao
uso conceitual da etnicidade para o mundo Antigo The returns of Odysseus colonization
and ethnicity Ele analisa os nostoiacute heroacuteis que cruzam regiotildees tentando voltar para casa na
mitologia grega e os relaciona agrave definiccedilatildeo da identidade helecircnica a partir do contato com
Outros O autor defende por exemplo a ideia de que Odisseu na verdade seria uma metaacutefora
para a colonizaccedilatildeo helecircnica que acontecia sobretudo no seacuteculo VIII aC sendo assim um
ldquoheroacutei proto-colonialrdquo (MALKIN 1998 p 3) Em 2001 Malkin organizou um livro com
ensaios especificamente sobre a etnicidade no mundo grego Ancient Perceptions of Greek
Ethnicity aquecendo os debates sobre o tema
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Em 2002 dois trabalhos se destacaram no tocante agrave questatildeo da etnicidade helecircnica o
de Jonathan M Hall (Hellenicity between ethnicity and culture) e a coletacircnea de Thomas
Harrison (Greeks and barbarians) Hall jaacute havia escrito um livro em 1997 sobre a questatildeo
eacutetnica no mundo grego (Ethnic identity in Greek Antiquity) e o seu novo livro na verdade
eacute um aprofundamento do tema e um alargamento da gama de documentos utilizados Ele
defende que existem determinados elementos que definem as fronteiras eacutetnicas helecircnicas os
quais jaacute apontamos aqui em nossa introduccedilatildeo O livro de Harrison traz vaacuterios ensaios
transdisciplinares sobre essas diferenciaccedilotildees entre gregos e baacuterbaros vistos de uma
multiplicidade de naturezas documentais que vatildeo desde a literatura ateacute a cultura material
helecircnica
A helenista Lynette Mitchell em 2007 publicou seu Panhellenism and the
barbarian in Archaic and Classical Greece Ela tenta definir o que eacute esse pan-helenismo
estendendo a anaacutelise para o Periacuteodo Arcaico e defendendo que essa ideia natildeo eacute apenas cultural
ou poliacutetica mas necessariamente possui ambas as conotaccedilotildees Dois anos depois o classicista
P M Fraser escreveu seu Greek ethnic terminology no qual analisa o vocabulaacuterio eacutetnico
desde Homero ateacute Bizacircncio Ele mostra como o termo eacutethnos mudou ao longo do tempo indo
da simples designaccedilatildeo de uma coletividade ateacute uma demarcaccedilatildeo bem niacutetida do noacuteseles bem
como relaciona a ele outros termos (como geacutenos e poacutelis) que desempenham essa marcaccedilatildeo
eacutetnica
Efi Papadodimas escreveu em 2010 um artigo digno de nota pois se debruccedila
especificamente sobre Euriacutepides The GreekBarbarian interaction in Euripides Andromache
Orestes Heracleidae a reassessment of Greek attitudes to foreigners Ele mostra como nas
trageacutedias euripidianas a dicotomia grego versus baacuterbaro estaacute cada vez mais fluida visto que o
tragedioacutegrafo testemunha a ldquobarbarizaccedilatildeordquo dos proacuteprios gregos Para o autor essa ideia de
que o baacuterbaro eacute um oposto entra em crise natildeo sendo difiacutecil encontrar em suas trageacutedias
gregos agindo como baacuterbaros
O historiador grego Kostas Vlassopoulos em seu Greeks and barbarians (2013)
tentou desconstruir a ideia de que o grego eacute diametralmente oposto ao baacuterbaro analisando
como gregos e baacuterbaros conviviam no espaccedilo mediterracircnico Esse eacute o principal argumento do
seu livro Os gregos num plano discursivo procuraram diferenciar o baacuterbaro de si a fim de
fundar sua proacutepria identidade mas na praacutetica os gregos dialogaram bastante com os natildeo-
gregos atraveacutes de trocas culturais as quais natildeo diziam respeito somente agrave imposiccedilatildeo mas agrave
circulaccedilatildeo mesmo de ideias e tecnologias pelo Mediterracircneo Essas trocas tiveram como
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principal palco o mundo das apoikiacuteai as ldquocolocircniasrdquo gregas as quais frequentemente ou
adotavam os costumes gregos (sobretudo o modo de organizaccedilatildeo poliacuteade) ou recebiam-nos e
modificavam-nos adaptando-os aos seus contextos
Nosso trabalho propotildee analisar comparativamente os elementos que definiam as
fronteiras eacutetnicas em Homero e em Euriacutepides sobretudo a partir da anaacutelise do heroacutei Paacuteris
visto por noacutes como o Outro por excelecircncia na Iliacuteada e nas trageacutedias do ciclo troiano
Dividimos nosso trabalho em trecircs capiacutetulos o primeiro trata da etnicidade de uma forma geral
dentro das poesias eacutepica e traacutegica dessuperficializando os textos que analisaremos em nosso
trabalho Jaacute o segundo trata de um aspecto recorrente na representaccedilatildeo de Paacuteris nossa
comparaacutevel ele como sendo um causador de males Vamos ver como Homero e Euriacutepides
tratam disso destacando como essa caracteriacutestica engloba uma seacuterie de elementos que
definem fronteiras eacutetnicas tanto na epopeia quanto na trageacutedia No terceiro capiacutetulo nos
debruccedilamos sobre um Paacuteris guerreiro e como a sua representaccedilatildeo como tal corrobora a
definiccedilatildeo desse personagem como sendo um Outro bem como Homero e Euriacutepides lidam
com essa alteridade dos troianos
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CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE
COMPOSICcedilAtildeO
ldquo[] a epopeia [de Homero] eacute aqui construiacuteda como uma trageacutediardquo
(ROMILLY 2013 p 47)
Nesse capiacutetulo vamos trabalhar a literariedade da epopeia homeacuterica e a trageacutedia
euripidiana ou seja o que faz dessas obras textos literaacuterios (ANDRADE 1998 p 27) que
satildeo ldquoobjeto[s] de conhecimento que representa[m] alegoricamente o ponto de vista do escritor
a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31) Faremos isso de modo a mostrar
como elas pertencem a um mesmo espaccedilo discursivo bem como a construccedilatildeo delas implica
em um discurso que molda uma etnicidade helecircnica Por isso a epiacutegrafe de Jacqueline de
Romilly se faz de extrema importacircncia para abrirmos nossa discussatildeo ela acredita que a
epopeia homeacuterica se constroacutei agrave maneira de uma trageacutedia Obviamente Homero natildeo previu a
existecircncia dos traacutegicos fazendo um poema que parecesse com uma trageacutedia futura Contudo
a afirmaccedilatildeo da helenista francesa implica na ideia de que as trageacutedias foram influenciadas
pelas epopeias
Os textos homeacutericos satildeo arquitextos12 natildeo somente para Euriacutepides mas para toda a
tradiccedilatildeo literaacuteria grega posterior sendo que tanto Homero quanto Euriacutepides satildeo hoje ambos
arquitextos eles influenciam no modo como produzimos textos (sejam eles escritos visuais
orais etc) Tanto a epopeia quanto a trageacutedia fazem parte do mesmo espaccedilo discursivo13 o
material miacutetico homeacuterico serviu aos tragedioacutegrafos a utilizaccedilatildeo de epiacutetetos e comentaacuterios
para caracterizar um personagem eacute tomada emprestada dessa tradiccedilatildeo eacutepica bem como a
utilizaccedilatildeo de algumas foacutermulas conhecidas do puacuteblico
Desse modo podemos dizer que poesia eacutepica e traacutegica fazem parte de uma mesma
tradiccedilatildeo mito-poeacutetica No entanto natildeo podemos afirmar que o mito se desenrola na trageacutedia
da mesma maneira que em Homero Se fosse assim dificilmente as peccedilas de teatro atrairiam a
atenccedilatildeo do puacuteblico ateniense do seacuteculo V aC afinal ningueacutem quer ver a mesma histoacuteria
contada do mesmo modo diversas vezes Nenhum texto embora influenciado por outros eacute
12 O arquitexto designa ldquoas obras que possuem um estatuto exemplar que pertencem ao corpus de referecircncia de um ou de vaacuterios posicionamentos de um discurso constituinterdquo (MAINGUENEAU 2008 p 64) 13 ldquoO lsquoespaccedilo discursivorsquo enfim delimita um subconjunto do campo discursivo ligando pelo menos duas formaccedilotildees discursivas que supotildee-se mantecircm relaccedilotildees privilegiadas cruciais para a compreensatildeo dos discursos consideradosrdquo (MAINGUENEAU 1997 p 117)
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igual a esses predecessores eles possuem um interdiscurso que eacute esse diaacutelogo com tradiccedilotildees
literaacuterias posteriores mas nunca satildeo coacutepias puras e simples
Homero mesmo embora seja um arquitexto natildeo pode ser considerado o iniacutecio de um
processo discursivo ele faz parte desse processo visto que nos seus textos jaacute existe um
interdiscurso Homero eacute um dos aedos que circulavam pela Greacutecia naquela eacutepoca e ainda
havia outros como ele antes dele Aleacutem disso ele eacute influenciado por vaacuterias tradiccedilotildees literaacuterias
que jaacute existiam Um exemplo disso eacute a utilizaccedilatildeo do contexto intralinguiacutestico da poesia
iacircmbica para compor alguns personagens como o proacuteprio Paacuteris (SUTER 1984) esse tipo de
verso era utilizado para acusar algueacutem de algo Assim a composiccedilatildeo de algumas sentenccedilas
relativas agrave Paacuteris sobretudo quando o sujeito enunciador eacute um personagem da Iliacuteada (como
Priacuteamo ou Heitor) conservam esse ato de linguagem14 iacircmbico
Escolhemos dois gecircneros15 discursivos para trabalhar com Paacuteris a epopeia de
Homero e as trageacutedias de Euriacutepides Antes de apresentarmos as anaacutelises comparadas do
nosso heroacutei em cada um deles eacute mister discorrermos sobre a natureza da composiccedilatildeo desses
dois textos pois trabalhamos com a Anaacutelise de Discurso como meacutetodo de leitura deles Para o
analista eacute importante dessuperficializar o corpus documental para criar um objeto discursivo
sobre o qual enfim nos debruccedilamos com fins analiacuteticos
Essa dessuperficializaccedilatildeo consiste em dirigir aos textos perguntas que vatildeo ancorar
nossa leitura em um determinado tempo espaccedilo e sociedade ldquoQuem escreveurdquo ldquoQuando
escreveurdquo ldquoOnde escreveurdquo ldquoDe onde essa pessoa veiordquo ldquoPara quem ela escreverdquo ldquoO
que ela defenderdquo ldquoQual o gecircnero do textordquo satildeo perguntas que devemos fazer antes de
comeccedilar a analisar qualquer documentaccedilatildeo
Esse processo tem a ver com a proacutepria classificaccedilatildeo do gecircnero discursivo ao qual
pertence um determinado discurso ldquoO fato de que um texto seja destinado a ser cantado lido
em voz alta acompanhado por instrumentos musicais de determinado tipo que circule de
determinada maneira e em certos espaccedilos tudo isto [sic] incide radicalmente sobre seu
modo de existecircncia semioacuteticardquo (MAINGUENEAU 1997 p 36) O gecircnero eacute tatildeo importante na
construccedilatildeo do discurso que na Greacutecia Antiga ele influenciava diretamente na escolha do
dialeto da composiccedilatildeo dos textos como a linguista britacircnica Anna Morpurgo Davies nos
explica
14 O ato de linguagem eacute uma sequecircncia linguiacutestica com um valor ilocutoacuterio ou seja dotado de uma determinada forccedila (no caso da poesia iacircmbica de acusaccedilatildeo) que pretende operar sobre o sujeito receptor uma transformaccedilatildeo 15 Podemos classificar os gecircneros de diferentes maneiras de acordo com suas condiccedilotildees comunicacionais (como fala onde fala etc) e estatutaacuterias (quem fala para quem fala qual o lugar social de cada sujeito do discurso etc)
26
O verso eacutepico eacute escrito em alguma forma de jocircnico A trageacutedia aacutetica eacute escrita em aacutetico exceto pelos coros os quais estatildeo em uma forma doacuterica modificada A poesia liacuterica pode estar em eoacutelico a prosa literaacuteria natildeo Em um nuacutemero de instacircncias a escolha do dialeto eacute independente da origem do autor Piacutendaro era de Tebas mas natildeo escreve em beoacutecio Hesiacuteodo era tambeacutem da Beoacutecia mas compocircs em uma linguagem eacutepica ie em uma forma compoacutesita de jocircnico (DAVIES 2002 p 157)
A Iliacuteada natildeo era encenada do mesmo modo que as trageacutedias natildeo se restringiam a uma
reacutecita as performances eacutepica e traacutegica eram diferentes Para o melhor aproveitamento do
estudo do nosso corpus e corroboraccedilatildeo de nossas hipoacuteteses devemos observar natildeo somente as
semelhanccedilas e diferenccedilas mas tambeacutem quais as peculiaridades que cada gecircnero discursivo
nos traz Diferentemente da Iliacuteada as trageacutedias natildeo satildeo tatildeo extensas para termos uma noccedilatildeo
a maior das trageacutedias que vamos estudar (Orestes com 1693 versos) corresponde a somente
1078 da Iliacuteada (que possui 15693 versos) As reacutecitas aeacutedicas e rapsoacutedicas eram
episoacutedicas a Iliacuteada e a Odisseia natildeo eram cantadas de uma vez soacute selecionando-se apenas
episoacutedios Essa praacutetica estaacute presente na documentaccedilatildeo mesma no Canto VIII da Odisseia (vv
266-369) Demoacutedoco conta o episoacutedio da traiccedilatildeo de Afrodite e Ares
Outra diferenccedila a se sublinhar eacute o proacuteprio modo de compor o aedo natildeo escrevia seus
poemas ao contraacuterio do traacutegico O aedo memorizava o poema ou compunha-o na hora para o
seu puacuteblico utilizando uma mnemoteacutecnica16 Desse modo vemos se repetirem foacutermulas como
ldquoAssim que a Aurora de dedos de rosa surgiu matutinardquo [ἦmicroος δ᾽ ἠριγένεια φάνη
ῥοδοδάκτυλος Ἠώς] e epiacutetetos (como theoeidḗs relativo a Paacuteris) que equivaliam a uma
pausa necessaacuteria para o cantor se lembrar do que falaraacute a seguir e para ele poder compor
atraveacutes do manejo do hexacircmetro dactiacutelico os seus versos
Euriacutepides escreveu as suas trageacutedias e cada ator (em sua eacutepoca trecircs17) decorava suas
falas e as interpretava em cima do palco Surge aqui entatildeo mais um elemento que distingue o
gecircnero eacutepico do traacutegico a forma do texto Em Homero haacute diaacutelogos entre personagens espaccedilo
para eles falarem contudo isso se daacute atraveacutes do discurso indireto livre de um narrador
onisciente18 Nas trageacutedias esse narrador desaparece o discurso eacute direto mesmo quando se
trata do coro e os narradores satildeo sempre personagens Os diaacutelogos exerciam um papel muito 16 A mnemoteacutecnica seria a arte no caso do aedo de lembrar e improvisar se preciso os versos a serem recitados A tiacutetulo de aprofundamento do tema ver o capiacutetulo II de Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica de Marcel Detienne (consultar Referecircncias bibliograacuteficas) 17 Eacute atribuiacutedo a Soacutefocles a introduccedilatildeo do terceiro ator Ateacute entatildeo as trageacutedias eram interpretadas por apenas dois atores Cada vez mais o ator vai ganhando destaque nas produccedilotildees traacutegicas e a partir de 449 aC havia natildeo soacute competiccedilotildees de trageacutedias em si mas de atores tambeacutem (SCODEL 2011 p 53-54) 18 O narrador onisciente eacute aquele que conhece passado presente e futuro da histoacuteria e o iacutentimo de cada personagem mas que natildeo participa da trama
27
importante em determinadas trageacutedias mesmo o falar da personagem jaacute mostrava a que
acircmbito social ela pertencia como acontece com o friacutegio de Orestes (que eacute marcadamente um
baacuterbaro) ou com Paacuteris em Alexandre cuja desenvoltura no falar denuncia que ele natildeo eacute um
pastor comum e excede aos outros
Aleacutem disso natildeo eacute o autor que interpreta suas peccedilas19 ele delega essa funccedilatildeo aos
atores A encenaccedilatildeo traacutegica natildeo corresponde somente agrave trageacutedia em si havia esses atores (no
caso de Euriacutepides trecircs20) que representavam os personagens O figurino as maacutescaras
deveriam trazer consigo as particularidades de cada personagem e torna-lo reconheciacutevel ao
puacuteblico eles deveriam saber quem era o mensageiro o deus o anciatildeo o heroacutei a mulher e
assim por diante Diferentemente o aedo eacute ele mesmo narrador de sua histoacuteria
Outro elemento eacute o espaccedilo da performance a reacutecita aeacutedica ocorre geralmente em
banquetes enquanto as encenaccedilotildees traacutegicas tecircm o espaccedilo do odeacuteon (teatro) para se desenrolar
Isso natildeo significa contudo que o puacuteblico do aedo seja mais restrito do que o do traacutegico
Podemos pensar que enquanto a epopeia geralmente era cantada no espaccedilo do banquete
aristocraacutetico21 a trageacutedia se encenava no espaccedilo da poacutelis custeada pelos cidadatildeos ricos e
aberta a toda a populaccedilatildeo (ROMILLY 1997 p 16) e por isso o alcance dela era maior22
Contudo natildeo podemos nos esquecer de que o poeta era itinerante fazendo suas epopeias
chegarem a vaacuterios lugares da Greacutecia Essa eacute uma ideia bastante explorada pelo historiador
Alexandre Santos de Moraes que ressalta
A certa estabilidade de que alguns aedos gozavam nos palaacutecios e ambientes aristocraacuteticos homeacutericos natildeo deve enublar nossas leituras [] quando encontramos o aedo iliaacutedico Tamiacuteris que viajava para competir com outros aedos ou mesmo o identificado no Hino Homeacuterico a Apolo que solicitara agraves donzelas deacutelias que perpetuassem sua fama par os outros aedos que por ali passassem chegamos agrave conclusatildeo de que esse sedentarismo nada mais era do que uma condiccedilatildeo momentacircnea [] A erracircncia portanto natildeo eacute apenas adequada a esses aedos eacute provaacutevel que tenha sido um meio indispensaacutevel para a ampliaccedilatildeo de seu repertoacuterio e a aquisiccedilatildeo de novos materiais e canccedilotildees (MORAES 2012 p 73 ndash grifos nossos)
Quando vamos estudar os mitos gregos ldquoconveacutem ter em conta essa fragmentariedade
das reliacutequias e a facilidade de variaccedilatildeo que oferecem os relatos dos poetasrdquo (GUAL 1996 p
19 Segundo Ruth Scodel no iniacutecio os tragedioacutegrafos poderiam ter sido eles mesmos atores em suas trageacutedias (SCODEL 2011 p 45) 20 Atribui-se a Soacutefocles o meacuterito de ter elevado de dois para trecircs o nuacutemero de atores Na eacutepoca de Eacutesquilo existiam somente dois (ROMILLY 1999 p 33) 21 Tambeacutem havia reacutecitas em concursos mas essas eram feitas por rapsodos que reproduziam versos de aedos 22 Embora os cidadatildeos mais pobres pudessem assistir agraves trageacutedias atraveacutes de um financiamento governamental (theōrikaacute) a maioria do puacuteblico no teatro advinha da elite (SCODEL 2011 p 53)
28
24) Os mitos em si satildeo bastante variaacuteveis existem mitos que natildeo tecircm uma uacutenica versatildeo
Afrodite por exemplo eacute filha de Zeus em Homero (Iliacuteada V v 131) e filha de Uranos em
Hesiacuteodo (Teogonia vv 180-200) Os mitos eram passados de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela via
oral tanto pelos poetas quanto pelos proacuteprios ouvintes que passavam as histoacuterias adiante
Aleacutem disso como vimos esses mitos circulavam mesmo na eacutepoca traacutegica as peccedilas poderiam
ser apresentadas em localidades outras aleacutem de Atenas Por isso que os mitos possuiacuteam uma
variaccedilatildeo muito grande de regiatildeo para regiatildeo sobretudo antes de terem sido escritos como na
eacutepoca arcaica O poema ldquooriginalrdquo (se assim considerarmos que existia um) sempre chega
com modificaccedilotildees conforme passa de uma pessoa para outra
Esses textos foram copiados e recopiados ao longo dos seacuteculos durante a denominada
Idade Meacutedia os manuscritos eacutepicos traacutegicos e historiograacuteficos serviam para o ensino do
grego Os copistas reproduziam determinados textos gregos conforme o gosto de quem os
encomendava Devido a isso muito se pensou que durante a Idade Meacutedia as obras da Greacutecia
Antiga se perderam entretanto isso eacute inverificaacutevel visto que foi a partir dos manuscritos
conservados em bibliotecas que foram possiacuteveis as ediccedilotildees impressas que temos hoje
Por causa dessa circulaccedilatildeo intensa dos eacutepicos e das trageacutedias existem as
interpolaccedilotildees versos inseridos a posteriori Em relaccedilatildeo a Homero desde a Antiguidade23
seus poemas satildeo como o pomo da discoacuterdia pois muita tinta foi derramada e muitos autores
jaacute debateram tanto sobre sua verossimilhanccedila quanto pela sua autoria conteuacutedo ou forma
Esses estudos se baseiam nos poemas em texto jaacute cristalizados pela escrita24 O trabalho com
as obras de Homero assim esbarra com a Questatildeo Homeacuterica Ela se constitui de uma seacuterie de
debates acerca da autoria da veracidade e da unidade dos poemas e muito jaacute se escreveu sobre
ela desde o seacuteculo XVIII De fato um Homero parece natildeo ter existido mas cremos que o fio
condutor dos dois poemas que lhes datildeo unidade eacute a proacutepria ideologia que os perpassa Natildeo
se comprovou ainda a existecircncia da Guerra de Troia conjectura-se que se ela ocorreu
provavelmente foi entre 1250-1240 aC quando a regiatildeo de Wilǔsa estava em disputa No
entanto eacute fato que a sociedade representada por Homero tem uma materialidade histoacuterica
23 Robert Aubreton elenca os criacuteticos de Homero que satildeo conhecidos Demoacutecrito de Abdera Hiacutepias de Eacutelis Estesiacutembroto de Tasos Hiacutepias de Tasos Aristoacuteteles Cameleatildeo Heraacuteclides Pocircntico Filotas de Coacutes Zenoacutedoto de Eacutefeso Neoptoacutelemo de Paacuterio Aristoacutefanes de Bizacircncio e Aristarco 24 Eacute comum a ideia de que Pistiacutestrato tirano grego no seacuteculo VI mandou que se colocassem por escritos os poemas homeacutericos graccedilas aos escritos de Wolf que a partir de documentaccedilatildeo oriunda da Antiguidade concluiu isso (WHITMAN 1965 p 66) Contudo o helenista norte-americano Cedric Whitman afirma que essa ideia eacute impossiacutevel pois ldquoos dois grandes eacutepicos nacionais dos gregos ndash se lsquonacionalrsquo eacute colocado para significar pan-helecircnico ou pan-ateniense e de certo modo satildeo os dois ndash nunca poderia ter nascido de um programa cultural engendrado por um tirano [despot]rdquo (WHITMAN 1965 p 74) Ele mostra uma seacuterie de outras origens para o eacutepico mostrando que eacute mais plausiacutevel diversas versotildees tivessem existido
29
Como mostramos em nossa introduccedilatildeo os poemas homeacutericos foram compostos no
seacuteculo VIII aC mas referem-se ao seacuteculo XIII aC Desse modo elas imiscuem dois
periacuteodos o Palaciano (XVII-XII aC) e o Poliacuteade Arcaico (VIII-VII aC) A arqueologia
tem nos revelado muito acerca dessa constataccedilatildeo e esbarraremos com algumas delas ao longo
do nosso estudo de caso Por exemplo em Homero haacute a presenccedila de duas praacuteticas funeraacuterias
a inumaccedilatildeo e a incineraccedilatildeo Aquela era mais comum na eacutepoca dos palaacutecios as escavaccedilotildees em
Cnossos e Micenas revelaram vaacuterios tuacutemulos escavados ou com cuacutepula (thoacuteloi) A praacutetica de
incinerar os mortos comeccedila a surgir na eacutepoca micecircnica mas se difunde ao longo do periacuteodo
poliacuteade A metalurgia do ferro natildeo era comum na Greacutecia na eacutepoca dos palaacutecios o bronze era
o metal predominante Jaacute na eacutepoca de composiccedilatildeo dos poemas ela era largamente praticada
O poeta mistura elementos de um tempo preteacuterito e de um presente a fim tanto de ambientar
sua obra quanto tornar a sociedade que ele representa familiar agrave sua audiecircncia
Estrabatildeo (c 6463 aC ndash 24 aC) geoacutegrafo grego resgata o debate entre Poliacutebio (203-
120 aC) e Eratoacutestenes (c 276273 aC ndash 194 aC) acerca dos poemas homeacutericos Este
uacuteltimo acredita que o intuito do poeta foi apenas entreter seu puacuteblico com uma histoacuteria
fantasiosa desprovendo seus poemas de quaisquer informaccedilotildees veriacutedicas Poliacutebio reconhece
que o relato homeacuterico eacute imerso em fantasia mas evidencia ldquoa existecircncia de dados histoacutericos e
geograacuteficos corretosrdquo (GABBA 1986 p 38) Estrabatildeo se inclina para essa uacuteltima opiniatildeo
reconhecendo que tanto a Iliacuteada quanto a Odisseia contam eventos que realmente ocorreram
como a guerra de Troia e as viagens de Odisseu do mesmo modo que afirma serem os dados
geograacuteficos e topograacuteficos de uma grande precisatildeo (GABBA 1986 p 39)
Hoje nos debruccedilamos sobre as epopeias de Homero cientes de que veraz eacute um termo
extremo para designar as narrativas homeacutericas Verossiacutemil talvez agrave medida que a arqueologia
nos forneceu muitos dados os quais mostram que Iliacuteada e a Odisseia natildeo estatildeo
completamente fora nem do tempo em que foram compostas nem do tempo a que se referem
Natildeo podemos contudo negar essa materialidade dos poemas porque ele possui uma
ancoragem social espacial e temporal
O texto literaacuterio eacute o ldquoobjeto de conhecimento que representa alegoricamente o ponto
de vista do escritor [autor] a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31 ndash grifos
nossos) e eacute essa ldquorealidade humanardquo que vai nos interessar tanto no estudo da poesia eacutepica
quanto da traacutegica sendo esses dois gecircneros discursivos profiacutecuos para o estudo da eacutepoca que
esses textos foram compostos As epopeias e as trageacutedias natildeo representam a sociedade
30
palaciana (do periacuteodo da Guerra de Troia) mas a sociedade poliacuteade arcaica e a claacutessica em
que o aedo e o tragedioacutegrafo compuseram respectivamente
No caso da trageacutedia essas interpolaccedilotildees tambeacutem existem a classicista Ruth Scodel
traz a ideia de que Ifigecircnia em Aacuteulis por exemplo tem partes que natildeo foram escritas por
Euriacutepides e que muitos especialistas concordam que a fala final do mensageiro natildeo estava na
trageacutedia original (SCODEL 2011 p 6) A exclusatildeo do nosso corpus da trageacutedia Rhesus
deveu-se dentre outros motivos ao fato de natildeo sabermos se ela realmente foi escrita por esse
tragedioacutegrafo A Antiguidade eacute um periacuteodo da Histoacuteria que possui escassez de documentaccedilatildeo
escrita e isso dificulta o trabalho do historiador da literatura grega Aleacutem disso esbarramos
frequentemente com esses problemas documentais os quais apresentamos acima Nesse
sentido a Arqueologia nos ajuda bastante ao trazer agrave luz a cultura material da eacutepoca bem
como o faz a Filologia ao tentar recuperar fragmentos perdidos de textos antigos
O papel desse uacuteltimo ramo das Ciecircncias Humanas eacute particularmente importante no
caso de um de nossos textos o fragmento traacutegico Alexandre de Euriacutepides Essa trageacutedia eacute
peculiar nesse estudo pois apenas fragmentos dela chegaram ateacute noacutes Sabemos como esses
materiais (em especial o papiro) satildeo pereciacuteveis e no caso de Alexandre aleacutem da maior parte
da trageacutedia ter se perdido no tempo muitas palavras e ateacute mesmo a indicaccedilatildeo de sujeitos
enunciadores desconhecemos no fragmento 54 por exemplo o personagem que fala pode ser
tanto Paacuteris quanto um mensageiro No fragmento 62a haacute vaacuterias lacunas no iniacutecio de alguns
versos (vv 4 6 11-14 16 e 17) devido ao desgaste do tempo nas bordas do papiro que levou
para sempre o que estava escrito ali
No entanto algumas sentenccedilas satildeo passiacuteveis de serem reconstituiacutedas e especialistas em
liacutengua grega constantemente se debruccedilam sobre esse tipo de documentaccedilatildeo para tentar
preencher esses vazios causados pela deterioraccedilatildeo do material Como satildeo vaacuterias as pessoas
que se dedicam a isso vaacuterios podem ser os resultados finais desses preenchimentos Abaixo
um exemplo de como trecircs estudiosos podem fazer essa reconstituiccedilatildeo de maneira diferente
Reconstituiccedilatildeo do Reconstituiccedilatildeo do argumento Reconstituiccedilatildeo do
31
argumento (test iii l 17-
18) de R A Coles (1974)
(test iii l 17-18) de W
Luppe (1977)
argumento (test iii l 17-
18) de Christopher
Collard e Martin Cropp
(2008)
ἐπερωτηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω [] π[1-2]ρειτο καὶ
[]
ἀπ[ολο]γηθεὶς [δ]ὲ επὶ τοῦ δυνά-
στο[υ] τ[ι]microωρ[ίαν] π[α]ρεῖτο καὶ
[]
ηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω[][()]ρειτο καὶ
[]
Luppe e Coles completam algumas lacunas que Collard e Cropp preferem deixar
apenas com a indicaccedilatildeo de que havia algo ali que foi perdido Assim como Collard e Cropp agraves
vezes datildeo certeza de algo que em Coles e Luppe estava indicado como uma suposiccedilatildeo (como
no caso da palavra dynaacutestou)
Desse modo esse tipo de documentaccedilatildeo estaacute sempre em modificaccedilatildeo embora como
David Kovacs reconhece (KOVACS 2002 p 48) o assunto do texto em si natildeo se modifique
(aqui no caso do argumento a ideia da existecircncia de um agoacuten que eacute o proacuteprio tema da peccedila
em si uma vez que ela trata da disputa entre Paacuteris e Diomedes pela vitoacuteria nos jogos
realizados por Troia) No caso de Alexandre o argumento25 encontrado apenas
posteriormente agrave descoberta dos restos da trageacutedia em si foi essencial para saber do que de
fato ela se tratava e para ajudar os pesquisadores a tentar chegar a um consenso sobre essas
perdas leacutexicas e de indicaccedilotildees dos sujeitos enunciadores
Essa trageacutedia provavelmente era a primeira de uma tetralogia (trageacutedia 1 + trageacutedia 2
+ trageacutedia 3 + drama satiacuterico) que se constituiacutea dela mesma de Palamedes (tambeacutem
fragmentaacuteria) de As Troianas e de Siacutesifo (desaparecida) Haacute questionamentos acerca dessa
ideia mas eacute inegaacutevel que as trecircs trageacutedias tecircm muito em comum a accedilatildeo de Alexandre
comeccedila na montanha (monte Ida) Palamedes se desenrola nas planiacutecies (a cidade em si) e As
Troianas eacute ambientada na praia (acampamento grego) o que denota uma organicidade na
composiccedilatildeo da trilogia e um movimento progressivo sobretudo porque a proacutepria Atenas era
assim constituiacuteda espacialmente (MARISCAL 2003 p 214 e p 444)
A helenista Luciacutea Romero Mariscal trabalha especificamente com Alexandre e suas
propostas chamaram nossa atenccedilatildeo pelo fato de ela mostrar como o tema da peccedila eacute
extremamente influenciado pelos acontecimentos da eacutepoca bem como ela conseguir
relacionar o personagem principal (Paacuteris) a Alcibiacuteades cidadatildeo ateniense que ajudou os
25 O argumento eacute uma anotaccedilatildeo feita por estudiosos copistas que antecede a trageacutedia Ele a resume e pode dar algumas informaccedilotildees importantes no tocante agrave sua apresentaccedilatildeo
32
espartanos durante a Guerra do Peloponeso (431-404 aC) e que possuiacutea ambiccedilotildees tiracircnicas26
Ruth Scodel chama atenccedilatildeo ao fato de que essas correlaccedilotildees satildeo comuns mas que sempre
encontram questionamentos
Edith Hall critica muito os autores que procuram relacionar a qualquer custo as
trageacutedias a um acontecimento da eacutepoca geralmente relativo agrave Guerra do Peloponeso
afirmando que elas natildeo representam a vida cotidiana de Atenas mas um ideal do que ela
deveria ser (HALL 2010 p 168 1997 p 94) Concordamos em parte com essa afirmaccedilatildeo
estamos lidando com um discurso no qual a ideologia dominante estaacute presente visto que se
trata aqui de uma legitimaccedilatildeo dos valores ideais que um cidadatildeo deve possuir No entanto
Euriacutepides quando escreve suas peccedilas natildeo eacute completamente indiferente aos acontecimentos da
sua eacutepoca pois como vimos todo texto literaacuterio representa o ponto de vista do autor sua
visatildeo de mundo De fato seria uma imprudecircncia acadecircmica querer encaixar cada trageacutedia
num acontecimento especiacutefico forccedilando uma correspondecircncia falaciosa mas eacute possiacutevel
reconhecer dilemas intriacutensecos agraves discussotildees acerca da guerra em algumas trageacutedias
Alexandre veremos parece ter conexatildeo latente com o episoacutedio da peste em Atenas bem
como Euriacutepides parece mostrar com As Troianas sua opiniatildeo acerca da invasatildeo de Melos ou
Siracusa
O contexto histoacuterico ateniense de Androcircmaca (c 426 aC) natildeo eacute o mesmo que o de
Orestes (c 408 aC) pois esta eacute encenada no fim da Guerra do Peloponeso e aquela no
iniacutecio Atenas muda muito nesses 27 anos de guerra e graccedilas sobretudo ao relato de
Tuciacutedides conhecemos mais pormenorizadamente os acontecimentos da eacutepoca Do mesmo
modo algumas trageacutedias trazem releituras do mito a fim de demonstrar algo especiacutefico
Helena traz uma Helena que nunca foi para Troia Ele toma emprestado de Estesiacutecoro e
Heroacutedoto a ideia de Helena ter ficado no Egito durante a Guerra de Troia em vez de ter
estado laacute o tempo todo (como acontece em Homero) (SCODEL 2011 p 162 HALL 2010
p 279) Um eiacutedolon teria sido colocado em Troia e na verdade a rainha estaria esperando por
seu esposo Menelau no Egito A Guerra de Troia afinal teria sido causada por uma ilusatildeo
por nada Isso reforccedila o discurso ldquopacifistardquo euripidiano em suas trageacutedias troianas
geralmente ambientadas num cenaacuterio poacutes-guerra a ideia de que a guerra traz mais prejuiacutezos e
sofrimentos do que benefiacutecios estaacute sempre presente (JOUAN 2000 p 5)
Esse episoacutedio nos mostra tambeacutem como o mito pode ter uma atualizaccedilatildeo eacutetica Helena
deixa de ser a maacute esposa e passa a ser um modelo para as esposas atenienses da eacutepoca pois
26 Vamos aprofundar essas ideias no capiacutetulo seguinte (Paacuteris o causador de males)
33
traz a ideia da fidelidade ao marido O proacuteprio Paacuteris deixa de ser um exemplo exclusivamente
heroico e se transforma no modelo do que eacute baacuterbaro como defendemos Isso tem a ver
diretamente com a proacutepria eacutepoca em que se compotildee a dicotomia ldquogrego versus baacuterbarordquo no
seacuteculo V aC se consolida ao mesmo tempo em que em Euriacutepides entra em crise sendo
necessaacuterio reiterar aos cidadatildeos atenienses a ideia do que eacute o baacuterbaro
Natildeo eacute correto afirmar que as Guerras Greco-Peacutersicas foram o marco inicial para se
pensar a etnicidade helecircnica (HALL 1989 p VLASSOPOULOS 2013 p 163) pois desde
Homero como estamos vendo isso eacute verificaacutevel O historiador Kostas Vlassopoulos chama a
atenccedilatildeo para esse debate
Acadecircmicos modernos tecircm frequentemente interpretado esse fenocircmeno [dos troianos serem mostrados praticamente iguais aos gregos] argumentando que no tempo de Homero (o seacuteculo oitavo) a identidade grega estava ainda incipiente [inchoate] e a justaposiccedilatildeo de todos os natildeo-gregos como baacuterbaros natildeo tomou lugar Essa eacute uma interpretaccedilatildeo histoacuterica que induz ao erro [misleading] [] mas tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo literaacuteria dos eacutepicos homeacutericos que induz ao erro Natildeo devemos subestimar a sofisticaccedilatildeo poeacutetica desses eacutepicos [] Quando ele descreve como o liacuteder dos caacuterios barbarophonoi [sic] ldquoveio para a guerra todo decorado com oureo como uma garota bobo que ele erardquo o tema da luxuacuteria efeminada baacuterbara e a desaprovaccedilatildeo grega disso estaacute claramente presente (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
Do mesmo modo natildeo eacute correto dizer que os gregos soacute comeccedilaram a lutar entre si a
partir da Guerra do Peloponeso muitos gregos lutaram contra gregos jaacute nas Guerras Greco-
Peacutersicas (VLASSOPOULOS 2013 p 55) As poacuteleis natildeo eram tatildeo unidas quanto geralmente
se pensa que elas satildeo ldquoos gregos natildeo tinham nenhum centro ou instituiccedilatildeo em torno da qual
se poderia organizar sua histoacuteria as comunidades falantes de grego estavam dispersas por
todo o Mediterracircneo e elas nunca alcanccedilaram uma unidade poliacutetica econocircmica ou socialrdquo
(VLASSOPOULOS 2007 p 91) Ainda segundo Kostas Vlassopoulos o que dava unidade a
essas comunidades eram as networks existentes marinheiros comerciantes soldados
intelectuais todos criavam uma rede de circulaccedilatildeo de pessoas produtos e ideias que unia
essas poacuteleis assemelhando-se agrave nossa globalizaccedilatildeo moderna (termo inclusive que o
historiador usa para se referir a esse fenocircmeno na Antiguidade grega)
Segundo o historiador britacircnico Frank William Walbank o que unia os gregos era
justamente a religiatildeo e a cultura em comum (2002 p 245) Essa ideologia era compartilhada
por todas as poacuteleis mas elas particularizavam-na Satildeo conhecidas as peculiaridades de
Esparta Atenas Corinto e principalmente das poacuteleis que ficavam em regiotildees de apoikiacuteai
(colocircnias) essas regiotildees eram loci privilegiados de trocas culturais entre a cultura grega e as
34
culturas Outras que rodeavam esses locais (VLASSOPOULOS 2013 p 277) O historiador
iraniano Irad Malkin mostra como Odisseu pode ser visto como um heroacutei protocolonial visto
que por todos os lugares que ele passa ele vai deixando sua ldquomarcardquo embatendo-se
constantemente com Outros no seu caminho de volta para casa (MALKIN 1998 p 2) O
proacuteprio mar era um ambiente propiacutecio ao encontro com alteridades muitas vezes hostis
(LESSA SOUSA 2014 p )
Debruccedilar-nos sobre as obras literaacuterias a fim de comprovar as descobertas
arqueoloacutegicas ou o que aconteceu de fato durante a guerra (seja a de Troia seja a do
Peloponeso) ou se os heroacuteis de miacuteticos existiram de verdade eacute uma veleidade Contudo natildeo eacute
impossiacutevel relacionaacute-las com o momento de sua composiccedilatildeo Portanto eacute mais profiacutecuo 1)
tentarmos compreender as representaccedilotildees de Paacuteris levando em conta os elementos de
ancoragem histoacuterica e social da obra relacionando texto com seus contextos intra e
extralinguiacutesticos e 2) buscarmos os modos pelos quais aquela sociedade funcionava e as
representaccedilotildees sociais que a legitimavam e mantinham as suas fronteiras eacutetnicas atraveacutes da
anaacutelise das praacuteticas discursivas O historiador italiano Emilio Gabba nos mostra
elucidativamente isso em relaccedilatildeo a Homero
Em qualquer caso e contemplando separadamente a investigaccedilatildeo sobre os poemas e a anaacutelise da realidade histoacuterica dos feitos descritos o aproveitamento histoacuterico da obra homeacuterica seraacute seguro e maior sempre que apontar para o estudo de aspectos como famiacutelia vida social e poliacutetica instituiccedilotildees e normas princiacutepios eacuteticos comportamento religioso cultura material ou fatores econocircmicos Os siacutemiles entre os poemas satildeo em suma particularmente reveladores (GABBA 1986 p 45 ndash grifos nossos)
Os costumes apresentados na Iliacuteada na Odisseia e nas trageacutedias satildeo modelares para
aqueles que ouvem os poemas ou assistem agraves encenaccedilotildees todo o modo de conduta social dos
heroacuteis eacute trabalhado de modo a servir como exemplo para os kaloigrave kaigrave agathoiacute ou seja os
ldquobelos e bonsrdquo os aristocratas Esses homens eram o puacuteblico do aedo (CARLIER 2008 p
15 AUBRETON 1968 p 138) e mais tarde seratildeo os dos traacutegicos O aedo cantava aquilo
que o puacuteblico queria ouvir Temos exemplo disso ateacute mesmo na proacutepria Odisseia pois
quando a canccedilatildeo de Demoacutedoco aedo da Feaacutecia natildeo agrada mais mandam-lhe parar de tocar
[] Δηmicroόδοκος δ᾽ ἤδη σχεθέτω φόρmicroιγγα λίγειαν οὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόmicroενος τάδ᾽ ἀείδει ἐξ οὗ δορπέοmicroέν τε καὶ ὤρορε θεῖος ἀοιδός ἐκ τοῦ δ᾽ οὔ πω παύσατ᾽ ὀιζυροῖο γόοιο ὁ ξεῖνος microάλα πού microιν ἄχος φρένας ἀmicroφιβέβηκεν
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ἀλλ᾽ ἄγ᾽ ὁ microὲν σχεθέτω ἵν᾽ ὁmicroῶς τερπώmicroεθα πάντες ξεινοδόκοι καὶ ξεῖνος ἐπεὶ πολὺ κάλλιον οὕτως [] natildeo mais ressoe a ciacutetara o cantor Demoacutedoco pois sua poesia natildeo agrada a todo ouvinte Assim que nos pusemos a cear e o aedo comeccedilou o hoacutespede natildeo mais reteve o pranto a anguacutestia circum-envolveu seu pericaacuterdio Demoacutedoco jaacute basta Que anfitriotildees e o hoacutespede possam unir-se na alegria (Odisseia VIII vv 537-543)
Os traacutegicos natildeo tinham uma liberdade total para encenar o que quisessem eles
escreviam as suas trageacutedias as quais passavam por um crivo antes de serem encenadas
(SCODEL 2011 p 43) Aleacutem disso havia os juiacutezes responsaacuteveis por decidir qual peccedila
merecia o primeiro precircmio Aquela que ficava em segundo ou que nem ganhava era uma peccedila
que natildeo foi do gosto dos jurados27 Quando vamos estudar as trageacutedias eacute importante termos
em mente quais peccedilas ganharam pois isso significa que elas serviram mais ao modelo
ideoloacutegico poliacuteade No caso de Euriacutepides apenas duas trageacutedias suas ganharam o primeiro
precircmio (Ifigecircnia em Aacuteulis e Hipoacutelito) Orestes ganhou o segundo Na realidade sua fama foi
poacutestuma pois seu estilo de composiccedilatildeo influenciou bastante as geraccedilotildees posteriores de
tragedioacutegrafos Secircneca por exemplo para compor sua As Troianas inspirou-se nrsquoAs
Troianas e na Heacutecuba de Euriacutepides Aleacutem disso suas trageacutedias foram bastante reencenadas
em periacuteodos posteriores nos quais Atenas jaacute tinha perdido toda a sua gloacuteria e esplendor
(SCODEL 2011 p 43)
No teatro era a poacutelis que estava sendo representada desde os ritos que precediam a
encenaccedilatildeo traacutegica28 (inscrita num espaccedilo religioso pois eram realizadas dentro das Grandes
Dionisiacuteacas e das Leneias) ateacute todo o espaccedilo do odeacuteon (incluindo o palco atraveacutes das
encenaccedilotildees que colocavam em destaque as instituiccedilotildees e valores poliacuteades e os assentos do
puacuteblico (theaacutetron) que eram organizados de modo tal que os cidadatildeos podiam natildeo soacute
enxergar uns aos outros como tambeacutem podiam reconhecer atraveacutes do lugar que se ocupava
aqueles mais proeminentes dentro da poacutelis ateniense) Eacute a siacutentese da ideia da publicidade das
accedilotildees que existe desde a poesia eacutepica e atinge seu aacutepice durante a democracia uma
publicidade direcionada aos interesses poliacuteades
27 Sobre detalhes desse julgamento ver o toacutepico Finances and Contests do capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 28 Para mais detalhes sobre os ritos que precediam as competiccedilotildees traacutegicas ver o toacutepico The Festivals no capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas)
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No entanto eacute inviaacutevel dimensionar a opiniatildeo dos sujeitos receptores natildeo podemos
especular sobre a recepccedilatildeo das peccedilas em relaccedilatildeo a todos os espectadores ainda mais quando
temos em mente que essas peccedilas podiam circular pelas outras poacuteleis e regiotildees de colonizaccedilatildeo
as quais possuiacuteam um puacuteblico bem mais heterogecircneo do que o ateniense (HALL 2006 p 29)
O mesmo acontece com as epopeias de Homero natildeo temos como precisar a recepccedilatildeo dos
poemas que tambeacutem tinham uma audiecircncia bem heterogecircnea Desse modo cabe a noacutes
historiadores observar qual o efeito pretendido sobre os sujeitos destinataacuterios ao se compor
esses textos
A Iliacuteada uacutenico poema homeacuterico que trata de Paacuteris nos conta a histoacuteria da ira de
Aquiles (ROMILLY sd p 18) Por causa dessa temaacutetica comum aos Cantos e da proto-pan-
helenicidade do poema (MITCHELL 2007 p 54) cremos que a Iliacuteada tem uma unidade
intriacutenseca Contudo essa opiniatildeo natildeo eacute uma unanimidade no tocante aos questionamentos
acerca da forma do poema havia duas escolas filoloacutegicas a de Alexandria e a de Peacutergamo
(surgidas por volta do seacuteculo IV aC) as quais possuiacuteam posturas divergentes acerca das
epopeias de Homero A primeira praticava a atetese tudo o que se cria natildeo pertencer agrave Iliacuteada
original se suprimia Jaacute a segunda preferia a exegese ou seja a criacutetica do texto sem omitir
versos
Em 1795 F A Wolf publicou seu Prolegomena ad Homerum o qual deu iniacutecio agrave
ldquoquestatildeo homeacutericardquo e a uma seacuterie de trabalhos denominados analistas neles procura-se
analisar as epopeias de Homero visando criticar filologicamente esses textos apontando para
as contradiccedilotildees as dissonacircncias entre Iliacuteada e Odisseia e os elementos de pouca
verossimilhanccedila na obra Em contraponto a essas teses haacute os unitaristas que defendem a
unidade dos poemas Ainda existem os neo-analistas eles natildeo desconsideram todo o debate
acerca de algumas incongruecircncias das epopeias mas creem que haja uma certa
homogeneidade das obras oriundas de uma tradiccedilatildeo anterior ao poeta o qual com sua
genialidade teria reunido e composto um texto uacutenico
Para Robert Aubreton e Gregory Nagy os poemas homeacutericos possuem uma unidade
intriacutenseca porque derivam dessa tradiccedilatildeo eacutepica precedente A proacutepria Telemaacutequia (Cantos I-
IV da Odisseia) as narrativas de retorno dos noacutestoi os relatos de batalhas singulares entre
heroacuteis satildeo temas anteriores agrave composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Homero ou quem quer que
tenha composto essas duas epopeias conhecia tais histoacuterias e se baseou nelas para compor as
suas proacuteprias
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O que chama atenccedilatildeo eacute o que configura o sentido do discurso do aedo as noccedilotildees de
alḗtheia e lḗthē (ldquoesquecimentordquo) A funccedilatildeo do poeta eacute rememorar os feitos de deuses e
homens natildeo deixando que se esqueccedila deles Para a sociedade isso eacute fulcral o homem morre
fisicamente mas sua memoacuteria eacute imortal se ele assim merecer Para ganhar essa gloacuteria
imorredoura ele precisa ser reconhecido pela sua proacutepria sociedade e assim ser cantado por
geraccedilotildees Ele precisa agir em conformidade com o que aquela sociedade espera de um heroacutei
Dentre alguns valores ressaltamos alguns com os quais vamos trabalhar mais adiante a aretḗ
(excelecircncia) a timḗ (honra) kleacuteoskŷdos (gloacuteria) kalograves thaacutenatos (bela morte) e alkḗandreiacutea
(coragem)
Euriacutepides eacute influenciado por essa tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica e esses valores tambeacutem
perpassam as suas obras o heroacutei homeacuterico natildeo se diferencia tanto do heroacutei traacutegico pois haacute
muita tenuidade entre eles como veremos Contudo na trageacutedia a ideia da falha do erro
hamartiacutea eacute muito mais forte embora na epopeia exista uma ideia semelhante a qual traz agrave
tona um questionamento sobre a infalibilidade do heroacutei a aacutetē (perdiccedilatildeo) que tem estreita
ligaccedilatildeo com desiacutegnios divinos A trageacutedia traz o heroacutei falho e as situaccedilotildees que o envolvem
servem de catarse para o puacuteblico eacute assistindo agravequeles personagens que o cidadatildeo poliacuteade
toma consciecircncia dos problemas da sociedade e de si mesmo Ao mesmo tempo a trageacutedia
implica em permanecircncia e mudanccedila ela legitima os valores (pan-)helecircnicos e os critica a fim
de estimular essa mudanccedila e desse modo manter viva a sociedade
Aleacutem da forma29 um dos pontos que tornam a trageacutedia um gecircnero discursivo (visto
que haacute semelhanccedilas entre uma trageacutedia e outra) eacute a utilizaccedilatildeo do material miacutetico cultural
Essas histoacuterias se passavam em ldquoum passado que jaacute era remoto para a audiecircncia da Atenas
antigardquo (SCODEL 2011 p 3) Para os gregos os heroacuteis e deuses existiram de verdade eram
parte de sua histoacuteria Aquiles Paacuteris ou Heitor existiram para eles Como vimos o mesmo
mito eacute contado e recontado nos palcos mas o que vai diferenciar os tragedioacutegrafos de Homero
e por sua vez um tragedioacutegrafo do outro eacute 1) o modo como o mito eacute contado (figurino
maacutescaras diaacutelogos entre os personagens) 2) as modificaccedilotildees no mito que os autores fazem a
fim de servirem a seus propoacutesitos 3) as atualizaccedilotildees eacuteticas desses mitos e 4) as alusotildees aos
acontecimentos contemporacircneos 29 ldquoA trageacutedia era um tipo especiacutefico de drama Era encenada por atores (em Atenas natildeo mais que trecircs) e um coro de doze depois quinze que cantavam e danccedilavam auxiliados por um tocador de auloacutes um instrumento de sopro [reeded wind instrument] Na maioria das partes os atores usavam um verso falado principalmente o trimetro iacircmbico ou recitativo enquanto os coros cantavam entre cenas mas o liacuteder do coro poderia falar pelo grupo durante as cenas dos atores enquanto os atores poderiam cantar ambos em resposta ao coro e em monoacutedio [both in responsion with the chorus and in monody]rdquo (SCODEL 2011 p 3 ndash traduzido do original em inglecircs por Renata Cardoso de Sousa e Bruna Moraes da Silva)
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Esse passado miacutetico eacute um dos elementos que constituem a fronteira eacutetnica helecircnica O
antropoacutelogo Christian Karner chama atenccedilatildeo para o fato de que a etnicidade eacute ldquoamplamente
associada agrave cultura descendecircncia memoacuteriahistoacuteria coletivas e liacutenguardquo (KARNER 2007 p
17) Ele retoma a ideia de ethnie (etnia) proposta por John Hutchinson e Anthony Smith que
seria um grupo restrito a um determinado espaccedilo que se designa sob um etnocircmio com mitos e
elementos culturais em comum uma memoacuteria histoacuterica compartilhada e um senso de
solidariedade entre os seus membros (KARNER 2007 p 18) Essa ideia dialoga bastante
com a noccedilatildeo de grupo eacutetnico de Fredrik Barth a qual delineamos em nossa Introduccedilatildeo
Portanto os gregos se constituiacuteam num grupo eacutetnico que utilizava o discurso como
meio de (re)definir suas fronteiras eacutetnicas e desse modo garantir a sua existecircncia No acircmbito
textual Homero eacute o responsaacutevel por tentar fixar essas fronteiras ele traz agrave memoacuteria as
histoacuterias dos heroacuteis do passado e dos deuses do presente bem como ressalta a importacircncia dos
ancestrais visto que um indiviacuteduo eacute sempre reconhecido por sua filiaccedilatildeo Aquiles eacute o Peacutelida
(filho de Peleu) Diomedes eacute o Tidida (filho de Tideu) e mesmo Zeus um deus tem como um
dos epiacutetetos ldquoCrocircnidardquo (filho de Cronos)
Euriacutepides apresenta constantemente o tema da destruiccedilatildeo da linhagem familiar como
um grande problema natildeo somente para o indiviacuteduo mas para a comunidade em nosso corpus
documental Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes trazem
episoacutedios de desmantelamento da famiacutelia A primeira trageacutedia mostra o sofrimento de
Androcircmaca ao tentar proteger seu filho da fuacuteria de Hermiacuteone sendo que a personagem
mesma jaacute sofrera com a morte de Astyacuteanax seu primogecircnito que eacute abordada em As
Troianas A filha de Helena por sua vez amargura-se por natildeo conseguir ter um filho com
Neoptoacutelemo seu marido sem filhos natildeo haacute herdeiros de bens materiais e imateriais como a
memoacuteria da linhagem Eacute como se o nome da famiacutelia morresse na memoacuteria social pois os
filhos satildeo responsaacuteveis por mantecirc-la viva Na Iliacuteada um dos maiores medos expressos eacute o de
perder o filho na guerra e natildeo ter a quem deixar a heranccedila ou ter que reparti-la com parentes
distantes (V vv 152-158)
Em As Troianas aleacutem do sofrimento de Androcircmaca vemos o de Heacutecuba que se
desespera por Polixena ter sido dada em sacrifiacutecio A rainha de Troia sofre tambeacutem em
Heacutecuba a perda do filho Polidoro morto brutalmente pelo traacutecio sedento de riquezas a quem
ele estava confiado Ifigecircnia se daraacute ao sacrifiacutecio assim como Polixena em Ifigecircnia em
Aacuteulis levando ao desespero sua matildee Clitemnestra Embora a preferecircncia seja por filhos do
sexo masculino eram as filhas as responsaacuteveis pelos funerais dos mortos as mulheres
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exerciam um papel fundamental no enterro dos entes queridos (HALL 1997 p 106) As
trageacutedias mesmas nos mostram isso como eacute o caso de Antiacutegona de Soacutefocles o tema central
da peccedila eacute o esforccedilo da personagem homocircnima para conseguir dar um funeral adequado ao
irmatildeo que por ter assassinado o proacuteprio irmatildeo eacute condenado a ficar aos corvos sem enterro
Agamemnon pai de Ifigecircnia amaldiccediloa Paacuteris por ter causado toda a situaccedilatildeo de sua
famiacutelia natildeo fosse ele ter que partir para Troia para resgatar a cunhada a filha estaria a salvo
Contudo a sorte do rei de Micenas estaacute traccedilada de uma vez por todas pois sua mulher o
assassina no retorno da guerra Com a famiacutelia desmantelada Orestes filho do casal
desencadearaacute uma vinganccedila desmesurada mata a matildee e tenta matar Helena em Orestes
atraindo para si a fuacuteria das Eriacutenias divindades responsaacuteveis por atormentar aqueles que
cometiam atos indignos sobretudo o assassinato de familiares
Edith Hall mostra como ldquoa vida familiar de um cidadatildeo era um componente da sua
identidade poliacuteticardquo (HALL 1997 p 104) puacuteblico e privado se misturavam A experiecircncia
social eacute fundamental para que um indiviacuteduo se sinta pertencente a um grupo eacutetnico e ajude a
manter essas fronteiras Desse modo os espaccedilos puacuteblicos de convivecircncia (o banquete a
aacutegora o templo o ginaacutesio o teatro) satildeo loci importantes dentro do grupo eacutetnico helecircnico
bem como a publicidade das accedilotildees um grego eacute um homem essencialmente puacuteblico Ele estaacute
exposto aos olhares do seus iacutesoi (iguais) e estes lhe julgam conforme seus atos o homem
grego natildeo eacute somente o homem do ser mas tambeacutem eacute o homem do fazer
Para ser social o homem grego deveria se instruir a educaccedilatildeo tinha um papel muito
importante dentro da Heacutelade Devia-se conhecer os coacutedigos de conduta e principalmente
praticaacute-los Segundo a filoacuteloga Carmem Soares ldquoa trageacutedia eacute um gecircnero literaacuterio regido por
uma poeacutetica didaacutetico-hedonistardquo (SOARES 1999 p 16) ou seja ao mesmo tempo em que
gera prazer e entretenimento educa Essa natildeo eacute uma caracteriacutestica exclusiva dela a poeacutetica
didaacutetico-hedonista adveacutem da poesia eacutepica que contava com deleite as faccedilanhas dos heroacuteis e
dos deuses Sua funccedilatildeo eacute imortalizar esses seres extraordinaacuterios conservando suas memoacuterias
para as geraccedilotildees vindouras tomarem-nos de exemplo
Os mitos as histoacuterias desses heroacuteis do passado servem de advertecircncia aos vivos
agravequeles que as ouvem A epopeia e a trageacutedia compilam toda uma tradiccedilatildeo miacutetica e o mito
por excelecircncia tem justamente a funccedilatildeo de ldquorevelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 1972 p 13 ndash grifos nossos) Ele ldquopossui o
espantoso poder de engendrar as noccedilotildees fundamentais da ciecircncia e as principais formas da
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culturardquo (DETIENNE 2008 p 34) sua difusatildeo constitui uma praacutetica de paideiacutea Assim os
poemas homeacutericos possuem uma funccedilatildeo paidecircutica (VIEIRA 2002 p 14) bem como as
trageacutedias de Euriacutepides
Paideiacutea eacute um termo que aparece pela primeira vez na documentaccedilatildeo no seacuteculo V
aC30 em uma trageacutedia de Eacutesquilo (JAEGER 2010 p 335) Traduzir esse termo eacute muito
difiacutecil literalmente significa criaccedilatildeo de meninos (paicircs significa ldquocrianccedilardquo) comumente
traduz-se como educaccedilatildeo mas esse termo natildeo contempla todo o significado da paideiacutea
(MOSSEacute 2004 p 107-108) ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas
Ela ldquoacaba por englobar o conjunto de todas as exigecircncias ideais fiacutesicas e espirituais que
formam a kalokagathia no sentido de uma formaccedilatildeo espiritual conscienterdquo (JAEGER 2010
p 335) A paideiacutea se configura num aspecto ideoloacutegico da sociedade como nos explica o
historiador Faacutebio de Souza Lessa
Por ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacutetica (LESSA 2010 p 22)
Assim preferimos explicar aqui o sentido de paideiacutea e deixar a palavra sem traduccedilatildeo
para o portuguecircs ela se constitui da transmissatildeo de saberes e praacuteticas culturais Os poemas
satildeo loci de paideiacutea porque contam mitos eles trazem uma seacuterie de modos de conduta caros agrave
sociedade helecircnica que vatildeo servir para formar o kalograves kagathoacutes e no seacuteculo V aC o politḗs
(cidadatildeo) Esses homens vatildeo se inspirar nos heroacuteis e nas suas faccedilanhas nos seus atos que satildeo
passados agraves geraccedilotildees futuras por intermeacutedio da poesia seja ela eacutepica liacuterica ou traacutegica
[] para que a honra heroica permaneccedila viva no seio de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores permaneccedila marcado pelo seu selo [o do heroacutei] eacute preciso que a funccedilatildeo poeacutetica mais do que objeto de divertimento tenha conservado um papel de educaccedilatildeo e formaccedilatildeo que por ela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um este conjunto de saberes crenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura () a epopeia desempenha o papel de paideiacutea exaltando os heroacuteis exemplares assim como os gecircneros literaacuterios lsquopurosrsquo como o romance a autobiografia o diaacuterio iacutentimo o fazem hoje (VERNANT 1978 p 42 ndash grifos nossos)
30 Jaeger ainda sublinha que os ideais educativos da paideiacutea que vatildeo ser desenvolvidos no seacuteculo V aC se baseiam em praacuteticas educativas muito anteriores (JAEGER 2010 p 1)
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Esses heroacuteis seguem esse modo de conduta social que eacute expresso pelas suas accedilotildees
Quando eles se desviam desse coacutedigo satildeo submetidos a uma vergonha social ou
(principalmente na trageacutedia) satildeo viacutetimas de reviravoltas agraves vezes incontornaacuteveis em suas
vidas Paacuteris como veremos erra ao fugir da batalha mas quando acusado pelo seu irmatildeo de
ser covarde retorna para recuperar sua honra Jaacute Eacutedipo heroacutei da trilogia tebana de Soacutefocles
mancha a honra da sua famiacutelia ao casar-se com sua proacutepria matildee e dessa hamartiacutea
desencadeiam-se uma seacuterie de episoacutedios fatiacutedicos que culminam na desgraccedila de sua linhagem
Seu destino mesmo jaacute estava (mal) traccedilado quando seu pai se apaixonou por um homem a
pederastia era uma praacutetica educacional comum na Greacutecia na qual um erasteacutes (mais velho)
ficava responsaacutevel por iniciar um eroacutemenos (mais novo) na vida adulta Contudo relacionar-
se sexualmente com um homem era vetado
Essas normas ajudam a reforccedilar essas fronteiras eacutetnicas helecircnicas que satildeo
constantemente abaladas pelo contato com os Outros Enquanto em Homero essas fronteiras
estatildeo sendo formadas em Euriacutepides elas estatildeo turvas Em Androcircmaca As Troianas
Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes vemos que o grego eacute passiacutevel de se barbarizar
sobretudo quando esse grego eacute um espartano Na primeira trageacutedia Hermiacuteone (uma
espartana) tem atitudes controversas e eacute mostrada usando muito ouro (v 147) mas natildeo chega
a ser comparada a uma baacuterbara Ela ainda eacute porta-voz de valores helecircnicos reforccedilando a ideia
de que Androcircmaca eacute a baacuterbara (v 261) Ela afirma que ldquoNatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade gregardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) Ela ainda afirma que ldquoEsse eacute o
modo como os baacuterbaros satildeo pai dorme com filha filho com matildee e irmatilde com irmatildeo gente
proacutexima assassina gente proacutexima e natildeo tem lei para prevenir issordquo [τοιοῦτον πᾶν τὸ
βάρβαρον γένος πατήρ τε θυγατρὶ παῖς τε microητρὶ microείγνυται κόρη τ᾽ ἀδελφῷ διὰ
φόνου δ᾽ οἱ φίλτατοι χωροῦσι καὶ τῶνδ᾽ οὐδὲν ἐξείργει νόmicroος] (vv 173-176)
Percebamos a caracterizaccedilatildeo do baacuterbaro por ela nessa passagem ela critica aqueles
que mantecircm relaccedilotildees sexuais dentro do nuacutecleo familiar (pai filho filha matildee irmatildeos) e o
assassinato entre phiacuteltatoi31 O tema da trilogia tebana de Soacutefocles gira em torno disso
Eacutedipo se casa com a matildee e seus netos se matam entre si Eacute interessante o resgate desse tema
31 Essa palavra eacute de difiacutecil traduccedilatildeo Em sua raiz estaacute phiacutelos (amigo) e o Le Grand Bailly indica esse vocaacutebulo para que possamos ter uma traduccedilatildeo de phiacuteltatos Contudo essas palavras natildeo tecircm o mesmo significado haacute uma razatildeo para Euriacutepides escolher phiacuteltatos em vez de phiacutelos Contudo quando traduz Phiacuteltatos (nome proacuteprio) coloca que eacute literalmente ldquobem-amadordquo [bien-aimeacute] (BAILLY 2000 p 2083) Cremos que ldquogente proacuteximardquo eacute o que mais se aproxima do sentido dessa palavra visto que phiacutelos designa essa ideia satildeo pessoas que se conhecem que satildeo proacuteximas que se assassinam
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pois Tebas era inimiga de Atenas sendo a poacutelis que teria comeccedilado a Guerra do Peloponeso
ao invadir Plateia regiatildeo de domiacutenio ateniense Natildeo podemos afirmar que Euriacutepides tinha isso
em mente quando compocircs Androcircmaca pois natildeo podemos ir aleacutem do que a documentaccedilatildeo
nos mostra mas mostrar como sendo algo baacuterbaro hamartiacuteai de heroacuteis tebanos eacute no miacutenimo
curioso
Menelau nessa peccedila eacute quem recebe as criacuteticas mais duras vindas de Peleu durante
um agoacuten entre os dois personagens o anciatildeo o critica por ter deixado um friacutegio levar sua
esposa de sua proacutepria casa (vv 590-609) e afirma que os espartanos satildeo soacute bons de guerra
mesmo que em outras mateacuterias satildeo inferiores (vv 724-726) O homem espartano eacute
inferiorizado Em Orestes Menelau jaacute eacute comparado a um baacuterbaro Tiacutendaro o acusa de ter se
tornado um baacuterbaro por ter estado entre baacuterbaros (v 485) Em Androcircmaca os espartanos
ainda natildeo satildeo diretamente ldquobarbarizadosrdquo como acontece em Orestes aquela trageacutedia foi
encenada praticamente no iniacutecio da Guerra do Peloponeso enquanto esta foi no final quando
as inimizades se acirraram de tal maneira que os espartanos foram paulatinamente sendo
deixados de fora da fronteira eacutetnica helecircnica tornando-se Outros
Ainda em Orestes Piacutelades Electra e seu irmatildeo satildeo capazes de accedilotildees condenaacuteveis em
nome da vinganccedila Em Ifigecircnia em Aacuteulis vemos Agamemnon um grego levar sua filha ao
sacrifiacutecio e em As Troianas e Heacutecuba os gregos se comportam de maneira condenaacutevel em
relaccedilatildeo agraves cativas troianas piorando a situaccedilatildeo deploraacutevel em que jaacute se encontram com o fim
de Troia As rivalidades da Guerra do Peloponeso e a temaacutetica vencedorperdedor satildeo
expressas na produccedilatildeo textual da eacutepoca assim como hoje em dia eacute impossiacutevel ficar
indiferente aos acontecimentos que nos cercam Euriacutepides tambeacutem natildeo conseguiu fazecirc-lo em
sua eacutepoca A obras literaacuteria em si eacute um ldquoartefato fonomorfossintaacutetico eacute universo semacircntico eacute
campo sintomatoloacutegico da histoacuteria do social e da consciecircncia numa palavra eacute
presentificaccedilatildeo imageacutetica do homem em accedilatildeordquo (ANDRADE 1998 p 15)
Embora ambientadas em Troia essas trageacutedias traziam temas caros agrave realidade
ateniense Satildeo comuns peccedilas que se desenrolam em lugares estrangeiros (as quais Edith Hall
chama de ldquoroteiros de deslocamentordquo [displacement plots]) onde a etnicidade e os direitos de
cidadania satildeo contestados (HALL 1997 p 98) Os troianos como vimos eram um exemplo
de barbaacuterie mas frequentemente eram representados como viacutetimas dos gregos ganhando
uma certa ldquosimpatiardquo de Euriacutepides Hall acredita que ldquose a representaccedilatildeo traacutegica da Guerra de
Troia era para tornar os espartanos lsquobaacuterbarosrsquo e assimilaacute-los ao arqueacutetipo do persa arrogante
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entatildeo os lsquoateniensesrsquo desse mundo miacutetico contudo paradoxalmente pode ser a viacutetima troiana
da agressatildeo espartanardquo (HALL 1989 p 214)
A helenista Casey Dueacute coloca que a representaccedilatildeo dos troianos dessa maneira
ldquoconvida a audiecircncia a transcender as fronteiras eacutetnicas e poliacuteticas que dividem as naccedilotildees na
guerra Desse modo os atenienses podem explorar suas proacuteprias tristezas testemunhando o
sofrimento dos outros inclusive de suas proacuteprias viacutetimasrdquo (DUEacute 2006 p 116) Natildeo podemos
negar que a exposiccedilatildeo do sofrimento alheio eacute um apelativo para chamar a atenccedilatildeo acerca do
proacuteprio sofrimento ateniense a viuacuteva os oacuterfatildeos os prisioneiros de guerra satildeo categorias que
podem ser compartilhadas a qualquer momento pelos atenienses visto que se estaacute em uma
eacutepoca de guerra Do momento que ele mostra os malefiacutecios da guerra atraveacutes desses
personagens ele estaacute colocando sua visatildeo acerca dos prejuiacutezos desencadeados por ela bem
como questionando a legitimidade dela Embora natildeo participasse efusivamente da poliacutetica
como Eacutesquilo e Soacutefocles ele era uma pessoa de opiniatildeo na eacutepoca Se ele pudesse mostra-la
nos palcos um dos lugares para onde os olhares da poacutelis se voltavam ele poderia convidar as
pessoas que o assistiam a questionar tambeacutem essa guerra
Contudo acreditamos que a intenccedilatildeo natildeo era ldquouniversalizarrdquo o sofrimento nem colocar
o troiano como o ateniense em si mas mostrar que o espartano eacute tatildeo condenaacutevel que ateacute o
baacuterbaro era melhor Afirmamos isso porque o troiano embora visto dessa maneira piedosa
natildeo deixava de ser baacuterbaro devido agrave sua caracterizaccedilatildeo As fronteiras eacutetnicas como vimos
satildeo borradas em Euriacutepides mas natildeo eacute por caracterizar ldquomelhorrdquo o troiano mas por assimilar o
espartano (grego) a ele o exemplo de baacuterbaro Aleacutem disso como defendemos aqui essa
caracterizaccedilatildeo do troiano (que eacute compartilhada com o persa o egiacutepcio etc) jaacute vem dos
poemas homeacutericos
Geralmente quando falamos de identidadealteridade em Homero pensamos
primeiramente na Odisseia Esse poema eacute marcado pelo embate com Outros visto que
Odisseu viaja por terras longiacutenquas e agraves vezes hostis Eacute emblemaacutetico o encontro desse heroacutei
com o Ciacuteclope personagem-siacutentese daquilo que eacute natildeo ser grego Odisseu enquanto ldquoaedo de
si mesmordquo conta o que viu quando chegou agrave terra dos Ciacuteclopes
ἔθνα δανὴρ ἐνιαυε πελώριος ὅς ῥα τὰ microῆλα οἶος ποιmicroαίνεσκεν ἀπόπροθεν οὐδὲ microετ ἄλλους πωλεῖτ ἀλλ ἀπάνευθεν ἐὼν ἀθεmicroίστια ᾔδη καὶ γᾶρ θαῦmicro ἐτἐτυκτο πελώριον οὐδὲ ἐῴκει ἀνδρί γε σιτοφάγῳ ἀλλὰ ῥίῳ ὑλήεντι ὑψηλῶν ὀρέων ὅ τε φαίνεται οἶον ἀπἄλλων
44
dormia um ente gigantesco que pascia a recircs sozinho nos confins O ser longiacutenquo natildeo convivia com ningueacutem sem lei um iacutempio Dissiacutemile de um homem comedor de patildeo o monstro colossal mais parecia o pico da cordilheira infinda sem vizinho agrave vista (HOMERO Odisseia IX vv 187-192)
Polifemo eacute descrito como um monstro eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o
ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute
ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) Os gregos se
definem pela publicidade de seus atos o homem grego eacute idealmente um homem puacuteblico
Todos veem o que todos fazem e todos vivem pela manutenccedilatildeo de sua comunidade Do
mesmo modo a lei noacutemos eacute o que diferencia o homem do animal que vive no acircmbito da
phyacutesis natureza e do aacutegrios selvagem
Odisseu adentra a caverna de Polifemo com seus companheiros e eles comeccedilam a
comer seu queijo (demonstrando ateacute pouca educaccedilatildeo visto que os hoacutespedes devem esperar
que o anfitriatildeo lhes ofereccedila algo para comer) Quando o Ciacuteclope chega Odisseu lhe faz uma
suacuteplica a qual eacute respondida com aspereza
νήπιός εἰς ὦ ξεῖν ἢ τηλόθεν εἰλήλουθας ὅς microε θεοὺς κέλεαι ἢ δειδίmicroεν ἢ αλέασθαι οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν οὐδὲ θεῶν microακάπων ἐπεὶ ἦ πολὺ φέρτεροί εἰmicroεν οὐδ ἂν ἐγὼ Διὸς ἔχθος ἀλεθάmicroενος πεφιδοίmicroην οὔτε σεῦ οὔθ ἑταρων εἰ microὴ θυmicroός microε κελεύοι
Ou eacutes um imbecil ou vens de longe estranho rogando que eu me dobre aos deuses ou que evite-os pois Zeus porta-broquel natildeo chega a preocupar Ciacuteclopes nem um outro oliacutempico somos bem mais fortes Natildeo te acolheria nem teus soacutecios para poupar-me da ira do Cronida O cor eacute meu tutor (HOMERO Odisseia IX vv 273-278)
O Ciacuteclope aqui desliza duas vezes primeiramente nega uma suacuteplica Isso gera um
estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) sendo que
ldquoa oposiccedilatildeo plural-singular litaiacute-aacutete lsquosuacuteplicas-perdiccedilatildeorsquo que parece indicar uma significativa
oposiccedilatildeo entre coletividade entendimento e reconhecimento de um lado e isolamento
45
teimosia e cegueira de outro [devemos destacar]rdquo (MALTA 2006 p 58-9) Essa suacuteplica eacute a
do xeacutenos aquele que se hospeda em um lugar
Assim em segundo lugar ele nega um costume que factualmente natildeo eacute somente
grego (embora no plano do discurso ele tenha sido ldquoexclusivizadordquo pelos helenos ao longo do
tempo) mas eacute difundido por todo o Mediterracircneo a hospitalidade (xeacutenia) que eacute
[] um coacutedigo de conduta uma convenccedilatildeo natildeo escrita que atravessava as fronteiras do Mediterracircneo oriental Demonstrava-se por meio de uma etiqueta reconhecida em que havia troca de presentes e festivais e sua origem estava na xenuia da Idade do Bronze tardia [] que surge nas taacutebuas de Linear B [] A xenuia governaria na verdade o ingresso e a partida de visitantes estrangeiros aos palaacutecios do Peloponeso no seacuteculo XIII aC [suposto seacuteculo da ocorrecircncia da guerra de Troia] (HUGHES 2009 p 188)
Paacuteris tambeacutem transgride a xeacutenia configurando-se num Outro Tem-se admitido que os
troianos satildeo o Outro estrangeiro conjectura-se que Troia na verdade nunca fez parte da
Heacutelade e muitos autores se referem aos troianos como estrangeiros como se fosse algo oacutebvio
e natural Claude Mosseacute mostra que a Iliacuteada ldquoconserva a memoacuteria de uma grande expediccedilatildeo
dos Helenos da Europa [των Ελλήνων της Ευρώπης] contra Troiardquo (MOSSEacute 2000 p 10)
embora ldquohelenosrdquo designe apenas uma parte da Greacutecia em Homero (HALL 2002 p 129) e o
termo ldquoEuropardquo tivesse sido cunhado a posteriori (MITCHELL 2007 p 20) Hillary Mackie
crecirc que essa diferenciaccedilatildeo nesses termos se daacute porque eles representam duas culturas
diferentes no plano linguiacutestico (uma de elogio e outra de acusaccedilatildeo)
Kostas Vlassopoulos ao analisar a glocalizaccedilatildeo do natildeo-grego na Greacutecia ou seja os
modos pelos quais os gregos ldquoadotam e adaptamrdquo32 repertoacuterios estrangeiros ele fala que em
Homero jaacute acontecia isso visto que os heroacuteis troianos eram estrangeiros [foreigns]
(VLASSOPOULOS 2013 p 167) Para justificar essa ideia o historiador afirma que
[] no lado aqueu do Cataacutelogo das Naus enumera um sem-nuacutemero de comunidades de todo o mundo grego que manda contingentes a Troia sob a lideranccedila de Agamemnon enquanto o cataacutelogo dos aliados troianos enumera vaacuterias pessoas falando outras linguagens (allothrooi) [sic] que mandam suas tropas para ajudar os troianos incluindo os liacutecios os caacuterios os traacutecios os paflagocircnios os friacutegios os miacutesios e os peocircnios (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
32 Essa eacute uma expressatildeo muito utilizada por Kostas Vlassopoulos ao longo de seu livro
46
Os caacuterios satildeo denominados barbaroacutephōnos33 (Iliacuteada II v 867) natildeo os troianos ldquoMas
outras satildeo as liacutenguas dos outros homens que se espalham ao longerdquo [ἄλλη δrsquo ἄλλων
γλῶσσα πολυσπερέων ἀνθρώπων] (II v 804) no exeacutercito troiano mas isso natildeo significa
que o troiano esteja falando outra liacutengua seus aliados eram de regiotildees natildeo-gregas
Discordamos dessas posiccedilotildees natildeo haacute na Iliacuteada nenhuma referecircncia ao caraacuteter
estrangeiro de Troia Contudo tambeacutem natildeo eacute adequado falarmos que os troianos eram iguais
aos gregos como ressalta Jacqueline de Romilly em seu Pourquoi la Gregravece ldquoentre os dois
[troianos e aqueus] como Zeus mesmo Homero tem a balanccedila igual [] Homero ignora tal
oposiccedilatildeo [Europa vesus Aacutesia]rdquo (ROMILLY 2013 p 38 e 39) Ela afirma que Homero natildeo os
diferencia porque se tratam de humanos guerreando e os valores da humanidade se
sobrepotildeem aos do grupo eacutetnico ldquoele natildeo marca as diferenccedilas entre indiviacuteduos e tampouco
entre os povos Do lado troiano como do lado aqueu satildeo lsquomortaisrsquo que se afrontamrdquo
(ROMILLY 2013 p 37)
Antonio Mario Battegazzore mostra que ldquoentre gregos e troianos estatildeo faltando
elementos mesmo que miacutenimos de distinccedilatildeo a alimentaccedilatildeo e o vestiaacuterio bem como os
princiacutepios morais satildeo idecircnticos para todos os cultos as habitaccedilotildees o modo de combater
valem para um como para outrordquo (1996 p 17) Ele concorda com Edith Hall ao dizer que natildeo
existe uma distinccedilatildeo entre Europa e Aacutesia na Iliacuteada (HALL 1989 p 39 BATTEGAZZORE
1996 p 17) De fato Homero natildeo traz esses termos geograacuteficos mas natildeo podemos dizer que
natildeo exista diferenciaccedilatildeo alguma como John Heath corrobora
Os troianos de Homero satildeo notoriamente difiacuteceis de ser distinguidos dos gregos eles cultuam os mesmos deuses lutam com taacuteticas idecircnticas e compartilham formas equivalentes de habitaccedilatildeo comida vestimenta funerais e parentesco Mesmo as diferenccedilas ndash poligamia oriental por exemplo ndash satildeo minimizadas Os principais protagonistas da guerra um da Europa e outro da Aacutesia ateacute falam a mesma liacutengua Os troianos natildeo aparentam ao menos para muitos leitores modernos mostrar os principais defeitos da psicologia do baacuterbaro que veio a caracterizaacute-los no quinto seacuteculo tirania luxuacuteria imoderada emocionalismo irrestrito afeminaccedilatildeo crueldade e servilidade De fato Homero eacute frequentemente admirado hoje em dia por sua descriccedilatildeo equacircnime de gregos e natildeo-gregos especialmente quando os eacutepicos satildeo comparados com a literatura ateniense da eacutepoca poacutes-Guerras Greco-Peacutersicas Essa interpretaccedilatildeo positiva dos troianos era uma exceccedilatildeo na antiguidade contudo e ainda haacute criacuteticos que veem um retrato negativo dos troianos como uma raccedila na Iliacuteada
33 Ele eacute composto de duas palavras o substantivo phōnḗ ldquovozrdquo e a onomatopeia bar bar analoacutegico ao nosso ldquoblaacute blaacuterdquo que designa uma linguagem incompreensiacutevel Assim o barbaroacutephōnos eacute aquele de quem natildeo se compreende a fala Desse modo se dos caacuterios soacute se ouve ldquobar barrdquo isso significa que eles natildeo falam o grego ou o falam mal (JANSE 2002 p 334-5) Como a liacutengua eacute um dos traccedilos marcantes de uma cultura (AUGEacute 1998 p 24-5) desconhecer o grego significa desconhecer a cultura grega o termo barbarophoacutenos acaba designando um povo estrangeiro No sumeacuterio e no babilocircnio jaacute existia uma palavra que utiliza esse recurso onomatopaico para definir o estrangeiro barbaru J Porkony coloca que algo semelhante ocorre no latim com o termo balbutio e no inglecircs com o termo baby satildeo palavras compostas de sons repetitivos (HALL 1989 p 4 n 5)
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Essa leitura estaacute errada eu acredito e entende mal tanto as convenccedilotildees eacutepicas e as maiores preocupaccedilotildees poeacuteticas de Homero (HEATH 2005 p 531)
Os troianos satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo de conduta dos gregos contudo eles
fazem um uso diferente de alguns aspectos desde Se um aspecto existe em Homero (como a
poligamia de Priacuteamo a maioria dos arqueiros no exeacutercito troiano etc) ele natildeo deve ser jamais
minimizado tem um porquecirc de o poeta colocar aquilo ali e simples explicaccedilotildees como ldquoeacute para
preencher a meacutetricardquo ou ldquoeacute uma interpolaccedilatildeo posteriorrdquo natildeo nos eacute suficiente para
compreender uma produccedilatildeo tatildeo complexa
De fato Homero natildeo distingue os troianos de modo a caracterizaacute-los como baacuterbaros
essa eacute uma denominaccedilatildeo inexistente nos poemas embora exista a palavra que lhe tenha dado
origem (barbaroacutephōnos) Contudo aqueus e troianos natildeo satildeo iguais se dentro de um mesmo
exeacutercito temos heroacuteis diferentes por que de um exeacutercito para outro natildeo haveria mudanccedilas
Os habitantes de Troia satildeo caracterizados de modo a serem diferenciados dos aqueus
Defendemos que os troianos satildeo um outro grupo eacutetnico eles satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo
de conduta grego mas o uso que eles fazem desses costumes eacute diferente E como veremos no
capiacutetulo seguinte muitos dos elementos de caracterizaccedilatildeo dos troianos sobretudo a de Paacuteris
seratildeo utilizados pela trageacutedia para caracterizar os baacuterbaros Um grupo eacutetnico eacute definido natildeo na
total mas na sutil diferenccedila
A fronteira eacutetnica depende da cultura utiliza a cultura mas natildeo eacute idecircntica a esta uacuteltima tomada em seu conjunto Dois grupos sociais vizinhos muito parecidos culturalmente podem chegar a considerar-se completamente diferentes e excludentes do ponto de vista eacutetnico opondo-se com base em um uacutenico elemento cultural isolado tomado como criteacuterio (CARDOSO 2005 p 11-2)
Jonathan Hall natildeo crecirc contudo que possa haver etnicidade na Iliacuteada
[hellip] a evidecircncia de uma diferenciaccedilatildeo eacutetnica de fato entre gregos e troianos na Iliacuteada natildeo eacute totalmente convincente Os troianos usam a onomaacutestica grega cultuam os mesmos deuses que os gregos possuem a mesma organizaccedilatildeo ciacutevica dos gregose satildeo retratados pelo poeta de forma natildeo menos (e talvez ateacute mais) simpaacutetica que os gregos Eacute admitivelmente verdade que Troia eacute retratada como extraordinariamente abastada e que alguns de seus ocupantes ndash notavelmente Paacuteris ndash adota uma vida de luxuacuteria doentia Tambeacutem haacute indiacutecios de que os troianos satildeo retratados como um tanto excitaacuteveis e um pouco desordenadamente em comparaccedilatildeo com o campo grego (HALL 2002 p 118 ndash grifos do autor)
O discurso eacute o mesmo os troianos satildeo quase iguais aos aqueus e esse ldquoquaserdquo natildeo eacute
suficiente para haver uma diferenciaccedilatildeo de fato entre os dois exeacutercitos Lynette Mitchell
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escreve o mesmo ldquoos aqueus natildeo satildeo qualitativamente diferenciados dos troianosrdquo
(MITCHELL 2007 p 44) mas afirma que os gregos jaacute tinham uma noccedilatildeo do que natildeo era
grego e do que era colocando mais uma vez na Odisseia sua anaacutelise acerca disso
(MITCHELL 2007 p 49-50)
Kostas Vlassopoulos afirma que existe uma diferenciaccedilatildeo EuOutro em Homero ldquoos
temas e motivos que mais tarde se tornaratildeo o instrumental [stock-in-trade] das descriccedilotildees
gregas do Outro estavam claramente presente na eacutepoca de Homero e tambeacutem estatildeo presentes
no poema [Iliacuteada]rdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 171) Contudo retorna agrave questatildeo dos
costumes iguais ldquoaqueus e troianos satildeo retratados cultuando os mesmos deuses falando a
mesma liacutengua aceitando o mesmo coacutedigo moral e valores sociaisrdquo (VLASSOPOULOS 2013
p 171)
No tocante aos costumes poderiacuteamos argumentar com base na proacutepria obra de
Vlassopoulos que os valores difundidos na Iliacuteada e na Odisseia natildeo eram exclusivos dos
gregos mas eram universais Esse autor afirma que ldquoMas como a Iliacuteada o poeta da Odisseia
natildeo estaacute geralmente interessado em explorar as diferenccedilas culturais e eacutetnicas em vez disso o
poema opta por salientar instituiccedilotildees como a troca de presentes e hospitalidade [guest-
friendship] que juntam pessoas de diferentes lugaresrdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 172)
Concordamos em parte tanto eram valores universais que ateacute hoje a Iliacuteada e a
Odisseia satildeo atuais sendo adaptadas sobretudo para o puacuteblico infanto-juvenil nossos paicircdes
contemporacircneos Na Iliacuteada os costumes satildeo os mesmos mas o uso que os troianos fazem de
alguns deles eacute diferenciada Algo parecido acontece na Canccedilatildeo de Rolando (XI dC) por
exemplo o costume de nomear as espadas eacute inerente ao francos As espadas quase que tecircm
uma anima proacutepria Rolando conversa com sua Durindana e quando estaacute a ponto de morrer
tenta quebra-la para que ningueacutem mais a possua mas natildeo obteacutem ecircxito visto que ela natildeo quer
se quebrar (vv 2338-2354) Marcuacutelio emir muccedilulmano (inimigo eacutepico dos francos) nomeia
natildeo soacute sua espada (Preciosa) mas tambeacutem sua lanccedila (Maltet) O exagero (nomear espada e
lanccedila animando em demasia os objetos) eacute o que diferencia o muccedilulmano (o Outro) do franco
Assim o casamento eacute comum a gregos e troianos mas Priacuteamo (rei troiano) eacute poliacutegamo
A assembleia eacute comum a gregos e troianos mas o modo de convoca-la e conduzi-la eacute
diferenciado sendo simplificado do lado troiano (MACKIE 1996 p 22) O cataacutelogo das
naus (Canto II) nomeia tanto gregos quanto troianos que foram para a guerra mas haacute mais
nomes especificados do lado grego do que no troiano o cataacutelogo troiano eacute bem mais
simplificado Aleacutem disso alguns costumes (como a xeacutenia) no plano do discurso foram
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colocados como quase exclusivamente gregos ao longo do tempo sobretudo apoacutes as Guerras
Greco-Peacutersicas E eacute tambeacutem no plano do discurso que vemos algumas diferenccedilas entre os
troianos e os aqueus aqueles tecircm um modo de falar diferente como enfatiza Hilary Mackie
bem como os siacutemiles utilizados por Homero na composiccedilatildeo dos troianos revelam que em
batalha eles satildeo os animais caccedilados natildeo os caccediladores eles estatildeo em desvantagem na Iliacuteada
Os troianos portanto satildeo um Outro mas natildeo quer dizer que eles satildeo o Outro
estrangeiro que natildeo eacute grego Eles compartilham de um mesmo coacutedigo de conduta mas o
reapropriam constituindo-se de um outro grupo eacutetnico A ideia de que os troianos satildeo
estrangeiros surge a posteriori como vamos observar nos proacuteximos capiacutetulos sobretudo a
partir da caracterizaccedilatildeo de Paacuteris
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CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES
ldquoPaacuteris na Iliacuteada tanto heroacutei quanto arqueiro natildeo eacute nem um homem completo nem um guerreiro completordquo
(LISSARAGUE 2002 p 115)
Assim Paacuteris eacute visto pelo historiador francecircs Franccedilois Lissarague nem um homem
nem um guerreiro completo Eacute comum encontrarmos designaccedilotildees natildeo tatildeo heroicas a Paacuteris
vindo de helenistas contemporacircneos Ele eacute geralmente visto pelos autores que escrevem sobre
a Guerra de Troia como ldquovaidosordquo ldquofriacutevolordquo ldquococircmicordquo ldquoluxurianterdquo ldquogeralmente uma figura
natildeo heroicardquo (RUTHERFORD 1996 p 33 e 83) ldquoafeminadordquo ldquofrouxordquo (LORAUX 1989 p
93) ldquoplayboyrdquo ldquopateacuteticordquo (HUGHES 2009 219) ldquoegoiacutestardquo ldquosuperficialmente atrativordquo
(SCHEIN 2010 p 22 e 24) ldquotolordquo (CARLIER 2008 p 100) ldquonatildeo heroicordquo ldquoo mais
desmerecido dos filhos de Priacuteamordquo (REDFIELD 1994 p 113 e 114) ldquoalmofadinhardquo [fop]
(GRIFFIN 1983 p 8) ldquoantagonista [] de Aquilesrdquo (NAGY 1999 p 61)
ldquofujatildeordquoldquodesertorrdquo ldquocovarderdquo (AUBRETON 19561968 p 168202) ou ldquoidiotardquo (CLARKE
apud SUTER 1984 p 7)
No entanto isso natildeo acontece apenas com os autores contemporacircneos tanto Homero
como Euriacutepides trazem um Paacuteris constantemente sendo rechaccedilado O motivo principal eacute o fato
de ele ter causado a Guerra de Troia mas Homero traz aleacutem disso a ideia dele natildeo ser um
guerreiro tatildeo bom assim o que gera reprimendas tambeacutem Nesse capiacutetulo vamos ver como
nosso heroacutei eacute visto como um causador de males dentro desse espaccedilo discursivo e como os
outros personagens reagem a essa sua faceta Tanto a eacutepica quanto a trageacutedia trazem essa
ideia acerca desse personagem e haacute uma relaccedilatildeo entre ela e nossa comparaacutevel pois eacute
importante para definir alguns criteacuterios de etnicidade Entretanto em Homero ainda natildeo haacute a
ideia de Paacuteris como um baacuterbaros como jaacute haacute em Euriacutepides ele eacute algueacutem a quem se pode
causar vergonha34 (no bojo da ideia defendida por Ann Suter de que o discurso que cerca
Paacuteris tem a ver com o discurso iacircmbico)
34 Segundo E R Dodds a Greacutecia possui uma cultura de vergonha [shame-culture] natildeo uma cultura de culpa [guilt-culture] esta tem mais a ver com o que o indiviacuteduo pensa de si mesmo natildeo do que os outros pensam dele Assim dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode causar vergonha eacute mais apropriado do que dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode culpar Nesse ponto discordamos da terminologia utilizada por Ann Suter para tratar do personagem ldquoblamerdquo (culpa) natildeo eacute cabiacutevel para designar o discurso iacircmbico sendo preferiacutevel pois ldquoacusatoacuteriordquo
51
Na Iliacuteada quando Paacuteris recua ante a fuacuteria de Menelau Heitor o repreende (III vv 39-
45) Quatro qualificaccedilotildees satildeo utilizadas pelo poeta atraveacutes das palavras do seu irmatildeo para
nosso heroacutei dyacutesparis (literalmente ldquodis-Paacuterisrdquo) eicircdos aacuteriste (ldquomelhor formardquo) gynaimaneacutes
(enlouquecedor de mulheres) e ēperopeutaacute (enganador) Dyacutesparis eacute uma qualificaccedilatildeo
interessante ela eacute composta de um prefixo e um substantivo dyacutes- eacute um prefixo de negaccedilatildeo e
Paacuteris o proacuteprio nome do heroacutei aqui tratado Pode ter dado origem ao termo latino dispare
que por sua vez originou nosso ldquodiacutesparrdquo (diferente dessemelhante) ldquoPaacuteris funestordquo eacute a
traduccedilatildeo que Carlos Alberto Nunes daacute a esse termo a qual eacute adequada ao seu significado
visto que essa expressatildeo denota as contrariedades do personagem e os maus pressaacutegios que
ocorreram antes de seu nascimento Embora menos proacutexima ao sentido original a traduccedilatildeo de
Haroldo de Campos manteacutem a alusatildeo jogando com o ritmo das palavras ldquoPaacuteris mal-paridordquo
Eicircdos (forma) aacuteriste (de aacuteristos ldquomelhorrdquo) denota a beleza fiacutesica de Paacuteris a qual
deveria ser pressuposto segundo Heitor para seu bom desempenho no campo de batalha por
ser o mais belo troiano deveria ser tambeacutem o melhor guerreiro Contudo essa denominaccedilatildeo
tem uma peculiaridade esse epiacuteteto soacute eacute utilizado para mulheres (SUTER 1984 p 72) De
homens apenas Heitor e Paacuteris satildeo denominados dessa maneira e essa foacutermula soacute aparece
quando um dos dois faz algo indigno de sua estirpe no acircmbito militar Por estar no vocativo (o
nominativo eacute eidos aacuteristos) eacute designativo de um insulto
Em Euriacutepides haacute algumas alusotildees agrave beleza fiacutesica de Paacuteris Entretanto as palavras
usadas satildeo diferentes em Alexandre (fr 61d v 8) o coro diz que Paacuteris possui ldquoformas que
se diferem dos outrosrdquo (morphecirc diapher[ ) Eacute uma designaccedilatildeo menos especiacutefica do que ldquoeicircdos
aacuteristerdquo utilizada por Homero Aleacutem disso sua beleza aparece intrinsecamente ligada ao
excesso de ouro agraves roupas que ele usa Eacute uma beleza acessoacuteria externa (literalmente)
baacuterbara que causou a desgraccedila de muitos Em Euriacutepides e em Homero sua beleza se liga a)
ao fato de ele pertencer a uma elite (Paacuteris eacute diferente das pessoas comuns por isso o coro de
Alexandre frisa essa ideia da beleza como distinccedilatildeo social e eacute a partir dela e de suas faccedilanhas
incompatiacuteveis com um douacutelos ndash escravo ndash que se desconfiaraacute da origem do pastor que ganhou
os jogos) e b) agrave ruiacutena que ela causou (Heacutecuba na peccedila homocircnima de Euriacutepides deixa claro
que Helena se deslumbrou com a riqueza e a beleza de Paacuteris)
Nosso heroacutei eacute um gynaimaneacutes na Iliacuteada Essa eacute uma qualificaccedilatildeo formada por dois
substantivos gynḗ (mulher) e maacutenē (loucura) palavra que deriva do verbo maiacutenomai (desejar
ardorosamente loucamente ndash ISIDRO PEREIRA 1951 p 113 ldquoser louco porrdquo [esser pazzo]
ndash NAZARI 1999 p 223 ficardeixar [rendre] louco ndash BAILLY 2000 p 1217 ndash ver microαίνω)
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Anatoille Bailly traduz essa palavra por ldquofou des femmesrdquo (louco por mulheres) (2000 p 422
ndash ver γυναικοmicroανής) Carlos Alberto Nunes como vimos acima traduz como ldquosedutor de
mulheresrdquo Haroldo de Campos por ldquomulherengordquo
Ann Suter nota que esse mesmo epiacuteteto eacute utilizado para designar Dionisos no Hino a
essa divindade (1984 p 74) traduzindo-o como ldquohe who drives women madrdquo (ldquoaquele que
deixa as mulheres loucasrdquo) e criticando aqueles que traduzem a palavra por ldquowomen crazyrdquo
(ldquolouco por mulheresrdquo) Assim enquanto Carlos Alberto Nunes e Ann Suter partem para uma
traduccedilatildeo que denota o aspecto ativo do adjetivo (Paacuteris como agente da
seduccedilatildeoenlouquecimento) Anatoille Bailly e Haroldo de Campos optam por um aspecto
passivo (Paacuteris como viacutetima dessa loucura) ldquoDeixar louco as mulheresrdquo ou ldquoser louco por
mulheresrdquo natildeo altera enfim a ideia de que Paacuteris eacute um homem relacionado a essa esfera da
seduccedilatildeo do amor da paixatildeo
Ēperopeutaacute natildeo eacute traduzido por Carlos Alberto Nunes ele une esse vocaacutebulo a
gynaimaneacutes sob a denominaccedilatildeo de ldquosedutor de mulheresrdquo Haroldo de Campos traduz como
ldquoimpostorrdquo denotando sua acepccedilatildeo ligada agrave enganaccedilatildeo O Le grand Bailly mostra duas
traduccedilotildees ligadas ao verbo ēperopeuacuteō ldquoenganadorrdquo e ldquosedutorrdquo (BAILLY 2000 906) Ann
Suter evidencia que esse epiacuteteto eacute utilizado tambeacutem na tradiccedilatildeo poeacutetica para Hermes e
Prometeu dois dos maiores enganadores da mitologia (1984 p 75-76) sendo ldquoenganadorrdquo
sua melhor traduccedilatildeo Esse epiacuteteto dialoga entatildeo diretamente com theoeidḗs epiacuteteto utilizado
para Paacuteris em vaacuterios cantos no que toca a esfera da dissimulaccedilatildeo
Theoeidḗs ndash que significa literalmente ldquode forma divinardquo (theoiacute ndash deuses eicircdos ndash
forma exterior aspecto ndash BAILLY 2000 p 584 NAZARI 1999 p 146) ndash denota a escassa
relaccedilatildeo de Paacuteris com o ambiente beacutelico Theoeidḗs acompanha mais Paacuteris que outros
personagens Eacute como o ldquode peacutes velozesrdquo de Aquiles ou o ldquode muitos ardisrdquo de Odisseu
acaba se transformando em um epiacuteteto quase que exclusivo para o heroacutei Esse eacute um adjetivo
que denota a beleza fiacutesica de um personagem (FONTES 2001 p 95) Ann Suter chama a
atenccedilatildeo para a proacutepria etimologia da palavra da sua formaccedilatildeo ter a ldquoforma de um deusrdquo eacute
problemaacutetico visto que os deuses sempre se disfarccedilam Assim ser theoeidḗs eacute ser de certo
modo falso vocecirc aparenta ser uma coisa que natildeo eacute (SUTER 1984 p 63)
Aleacutem disso segundo ainda Ann Suter theoeidḗs eacute um epiacuteteto natildeo-beacutelico
Aqueles aos quais esse epiacuteteto eacute aplicado com alguma frequecircncia pois satildeo notaacuteveis por serem todos homens mas nenhum guerreiro Teocliacutemeno o vidente Telecircmaco muito jovem para lutar Priacuteamo muito velho para lutar De fato os quarto
53
pretendentes e Alciacutenoo compartilham tambeacutem essa caracteriacutestica comum a esse grupo (SUTER 1983 p 60-1)
Natildeo soacute esse epiacuteteto se repete frequentemente mas tambeacutem as quatro palavras que
analisamos elas fazem parte de uma foacutermula que aparece novamente no Canto XIII
(Δύσπαρι εἶδος ἄριστε γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ) e esta tem um tom acusador Satildeo palavras
que Heitor dirige a Paacuteris a fim de censuraacute-lo de constrangecirc-lo e de atraveacutes da neacutemesis35
fazer com que ele sinta vergonha de seu comportamento Os heroacuteis vivem sob a sombra do
aidṓs comumente traduzido como ldquovergonhardquo ou ldquorespeitordquo mas que de fato ldquoeacute o medo da
desaprovaccedilatildeo ou da condenaccedilatildeo pelos outros que faz um homem ficar e lutar bravamenterdquo
(SCHEIN 2010 p 177) Essa noccedilatildeo de aidṓs corrobora o caraacuteter agoniacutestico da sociedade
helecircnica se configura numa ldquovulnerabilidade agrave norma ideal expressa pela sociedaderdquo
(REDFIELD 1994 p 116) e faz parte do desenvolvimento da poesia iacircmbica (acusatoacuteria)
Heitor fala em sua reprimenda a Paacuteris no Canto III que o exeacutercito inimigo ri da
atitude de Paacuteris (v 43) haacute poucos risos na Iliacuteada como observou James M Redfield e
segundo esse autor em todas as situaccedilotildees ele ldquoeacute a marca da liberaccedilatildeo da tensatildeo socialrdquo
(REDFIELD 1994 p 286) A seguir Heitor continua sua reprimenda lembrando a Paacuteris que
foi ele quem causou a guerra devendo pois ele retornar ao campo de batalha para enfrentar
Menelau
O heroacutei ainda lembra o irmatildeo de que ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a
beleza natildeo te valeram de nada ao te vires lanccedilado na poeirardquo [οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃ κίθαρις
τά τε δῶρ᾽ Ἀφροδίτης ἥ τε κόmicroη τό τε εἶδος ὅτ᾽ ἐν κονίῃσι microιγείης] (III vv 46-55) Os
cabelos de Paacuteris (koacutemē) a ciacutetara (kiacutetharis) ndash instrumento musical ndash os dons de Afrodite (dōra
Aphrodiacutetēs) ndash relacionados ao amor e agrave beleza ndash e a sua forma fiacutesica (eicircdos) natildeo lhe servem
para o campo de batalha ali eacute o domiacutenio da forccedila (biacuteē) da coragem (alkḗ) natildeo da muacutesica da
beleza e do amor Aqui tambeacutem Paacuteris serve de khaacuterma um motivo de divertimento para os
outros Eacute algueacutem acusaacutevel vergonhoso que necessita ser repreendido com palavras
Mesmo Helena natildeo fica satisfeita com as atitudes de Paacuteris primeiramente recusa-se a
ir encontraacute-lo dizendo agrave Afrodite (que estava disfarccedilada) ldquoNatildeo voltarei para o taacutelamo pois
vergonhoso seria participar-lhe do leito as Troianas sem duacutevida haviam de murmurar jaacute
sobejam as dores que na alma suportordquo [κεῖσε δ᾽ ἐγὼν οὐκ εἶmicroι νεmicroεσσητὸν δέ κεν εἴη 35 Neacutemesis ldquoeacute uma ira mediada pelo sentido social um homem natildeo somente sente isso mas se sente correto em sentir issordquo (REDFIELD 1994 p 117) Ainda segundo esse autor neacutemesis se contrapotildee ao aidṓs os dois se relacionam agrave censura mas este seria uma censura interna (vocecirc vecirc que estaacute errado sente vergonha de si mesmo e faz o certo) e aquele uma externa (algueacutem vecirc que vocecirc estaacute fazendo algo errado censura vocecirc sente vergonha e faz o certo)
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κείνου πορσανέουσα λέχος Τρῳαὶ δέ micro᾽ ὀπίσσω πᾶσαι microωmicroήσονται ἔχω δ᾽ ἄχε᾽
ἄκριτα θυmicroῷ] (III vv 410-412 ndash grifos nossos) Helena teme a neacutemesis das troianas mas o
medo de desagradar aos deuses eacute maior Afrodite lhe ameaccedila e ela acaba indo encontrando-se
com Paacuteris (III vv 413-420)
Ao se defrontar com nosso heroacutei Helena assim como Heitor o reprova por ter
voltado para o palaacutecio e o instiga a retornar para combater Menelau
ἀλλ᾽ ἴθι νῦν προκάλεσσαι ἀρηΐφιλον Μενέλαον ἐξαῦτις microαχέσασθαι ἐναντίον ἀλλά σ᾽ ἔγωγε παύεσθαι κέλοmicroαι microηδὲ ξανθῷ Μενελάῳ ἀντίβιον πόλεmicroον πολεmicroίζειν ἠδὲ microάχεσθαι ἀφραδέως microή πως τάχ᾽ ὑπ᾽ αὐτοῦ δουρὶ δαmicroήῃς Vai provocar entatildeo logo o disciacutepulo de Ares potente para outra vez vos medirdes em duelo Aliaacutes aconselho-te a que natildeo faccedilas tamanha tolice pensando que podes com o louro heroacutei Menelau contender numa luta corpoacuterea que em pouco tempo sua lanccedila potente haacute de ao solo postrar-te (III vv 428-436)
Na Iliacuteada Helena eacute a uacutenica mulher mortal que repreende um homem um anḗr sendo
o homem repreendido justamente Paacuteris Isso seria um absurdo temos a ideia por causa de
uma construccedilatildeo historiograacutefica simplista e de uma documentaccedilatildeo oriunda em sua maioria do
Periacuteodo Claacutessico Ateniense de que a mulher natildeo possuiacutea voz na Greacutecia Antiga (LESSA
2010 p 15-6) Contudo a proacutepria documentaccedilatildeo do Periacuteodo Claacutessico nos mostra ldquobrechasrdquo
nesse ideal de comportamento as mulheres natildeo eram completamente passivas
A trageacutedia nesse sentido exerce um papel importante para que possamos estudar esse
aspecto Em Euriacutepides Helena Androcircmaca e Ifigecircnia culpam Paacuteris pela situaccedilatildeo em que se
encontram a elas eacute dada voz para expressar essa ideia Segundo o historiador Faacutebio de Souza
Lessa
as trageacutedias [] satildeo suportes de informaccedilatildeo importantes para a compreensatildeo da dinacircmica poliacuteade e em especial do comportamento feminino isto porque em cena a poacutelis refletia sobre si mesma havendo uma abordagem de problemaacuteticas totalmente atuais na Atenas do seacuteculo V aleacutem de permitirem ascender as contradiccedilotildees inerentes agrave consolidaccedilatildeo da mulher na poacutelis democraacutetica [] Para Richard Buxton a trageacutedia eacute o lugar do conflito das tensotildees e rupturas sendo as mulhetes neste espaccedilo agressivas dominadoras ativas e seres visiacuteveis (LESSA 2004 p 80)
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As trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides natildeo tratam da Guerra de Troia em si36 ou
elas se passam antes (como Alexandre) ou depois dela (como o resto de nossa
documentaccedilatildeo) Eacute nas trageacutedias que se passam depois da guerra que as mulheres em questatildeo
enunciam essa responsabilidade do Paacuteris pelos seus destinos e a voz feminina aqui eacute
imprescindiacutevel satildeo as mulheres e as crianccedilas que mais sofrem com a guerra Elas ficam sem
seus esposos e pais tornam-se cativas do inimigo veem suas vidas ruiacuterem Antes da
encenaccedilatildeo das trageacutedias algumas cerimocircnias se desenrolavam como a apresentaccedilatildeo dos
tesouros da cidade e dos oacuterfatildeos de guerra as crianccedilas cujos pais deram a vida por Atenas
eram sustentadas pela poacutelis e eles deveriam continuar ndash pelos seus pais pelo seu nome e pela
sua cidade ndash a lutar
Sendo a Iliacuteada um texto que circulava bastante no Periacuteodo Claacutessico (e congelado na
escrita durante ele) por ser utilizado para a paideiacutea o fato de Helena reprimir Paacuteris eacute
significativo Tanto esse poema quanto a Odisseia tambeacutem trazem um modelo feminino a
priori muito bem delimitado e fechado que muito influenciou na proacutepria construccedilatildeo do
modelo claacutessico Peneacutelope eacute o grande exemplo a mulher tecelatilde fiel ao marido submissa ao
filho homem que utiliza a meacutetis para urdir literalmente a trama que lhe garante os vinte anos
de espera por Odisseu
Em Homero a representaccedilatildeo de Helena denota algo que acontece tambeacutem no Periacuteodo
Claacutessico ldquoa sociedade poliacuteade buscou manter as mulheres distanciadas da esfera da accedilatildeo
masculina mas ao memso tempo concedeu-as a funccedilatildeo de policiar as accedilotildees dos cidadatildeos isto
eacute de vigiar o comportamento masculinordquo (LESSA 2004 p 77 ndash grifos do autor) Helena
nesse excerto do poema homeacuterico eacute a responsaacutevel por vigiar o comportamento de Paacuteris
reprimindo-o O helenista australiano Christopher Ransom crecirc que Paacuteris natildeo se deixa afetar
pela neacutemesis nem pelo aidṓs (RANSOM 2011 p 55) mas eacute atraveacutes da neacutemesis de Helena e
de Heitor que o heroacutei sentiria aidṓs pelos seus atos e voltaria para a guerra o que invalida sua
afirmaccedilatildeo Entretanto essa reprimenda natildeo surte efeito de pronto somente no Canto VI o
heroacutei retornaraacute para a guerra (e dela natildeo se ausentaraacute mais)
Paacuteris eacute mostrado frequentemente tambeacutem como causador de grande desgraccedila para os
combatentes tanto em Euriacutepides quanto em Homero No Canto XXII da Iliacuteada quando
Heitor diz que natildeo vai recuar da luta singular com Aquiles dando Helena e os bens do palaacutecio
ldquoque o divo Paacuteris nas cocircncavas naus para Troacuteia nos trouxe ndash causa que foi inicial desta
36 Agrave exceccedilatildeo de Rhesos a qual tem a autoria de Euriacutepides questionada e natildeo incluiacutemos em nosso corpus documental
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guerra funestardquo [microάλ᾽ ὅσσά τ᾽ Ἀλέξανδρος κοίλῃς ἐνὶ νηυσὶν ἠγάγετο Τροίηνδ᾽ ἥ τ᾽
ἔπλετο νείκεος ἀρχή] (vv 115-116 ndash grifos nossos) A ideia de que Paacuteris foi o princiacutepio de
tudo tambeacutem se encontra presente no Canto V quando eacute mencionado relata-se que Feacutereclo
artiacutefice foi quem fabricou os navios nos quais Paacuteris foi atraacutes de Helena ldquoque tinham sido o
princiacutepio da grande desgraccedila dos Teucros e dele proacuteprio por ter desprezado os oraacutecrsquolos
divinosrdquo [ἀρχεκάκους37 αἳ πᾶσι κακὸν Τρώεσσι γένοντο οἷ τ᾽ αὐτῷ ἐπεὶ οὔ τι θεῶν ἐκ
θέσφατα ᾔδη] (V vv 63-64 ndash grifos nossos) Aqui a arkhekaacutekos dos troianos foi a proacutepria
partida de Paacuteris que eacute denominado como causador de uma meacutega pecircma aos seus conterracircneos
A expressatildeo se repete no Canto VI quando Heitor diz ldquoUm fautor de desgraccedilas fez
nascer o Olimpo para o magnacircnimo Priacuteamo os filhos e o povo Troiano Se concedido me
fosse assistir-lhe agrave descida para o Hades esquecer-se-ia minha alma por certo dos males
presentesrdquo [microέγα γάρ microιν Ὀλύmicroπιος ἔτρεφε πῆmicroα Τρωσί τε καὶ Πριάmicroῳ microεγαλήτορι
τοῖό τε παισίν εἰ κεῖνόν γε ἴδοιmicroι κατελθόντ᾽ Ἄϊδος εἴσω φαίην κε φρέν᾽ ἀτέρπου
ὀϊζύος ἐκλελαθέσθαι] (VI vv 280-285 ndash grifos nossos) Aqui a alusatildeo a Paacuteris como
causador da guerra de grandes desgraccedilas (meacutega pecircma) aparece novamente Ainda nesse
Canto quando Heitor repreende Paacuteris essa ideia tambeacutem se repete e o heroacutei acrescenta que
ldquoTu proacuteprio quiccedilaacute te indignaras caso encontrasse algueacutem que fugisse agrave defesa da paacutetria [σὺ
δ᾽ ἂν microαχέσαιο καὶ ἄλλῳ ὅν τινά που microεθιέντα ἴδοις στυγεροῦ πολέmicroοιο] (VI vv 329-
330)
Durante essa reprimenda (VI vv 326-342) Paacuteris eacute interpelado por Heitor como
daimoacutenirsquo (vocativo masculino singular de daiacutemōn) palavra que designa uma relaccedilatildeo iacutentima
entre os interlocutores bem como ldquoeacute costumeiramente usada quando o falante quer persuadir
o endereccedilado a mudar aquele comportamento ou atituderdquo (SUTER 1984 p 59) Comumente
traduzido por ldquodemocircniordquo muitas vezes confunde o leitor desavisado das obras de Homero
Essa traduccedilatildeo implica numa concepccedilatildeo cristatilde (ou seja posterior ao tempo ao qual nos
referimos) aleacutem de ser pela conotaccedilatildeo da palavra uma soluccedilatildeo pouco cabiacutevel pois o daiacutemōn
natildeo eacute ruim O termo designa uma divindade qualquer e nesse caso eacute uma interpelaccedilatildeo o
vocativo corrobora essa ideia
Heitor assim exorta Paacuteris agrave batalha chamando a atenccedilatildeo para o fato de ele ter
causado a guerra Ele por sua vez acalma Heitor dizendo que ele estaacute se preparando para a
batalha visto que ele jaacute havia sido exortado pela proacutepria Helena a qual lamenta natildeo lhe ter
sido destinado um homem melhor que sentisse vergonha pelos seus atos A reprimenda de
37 Archeacute eacute o princiacutepio kakoacutes eacute tanto o mau quanto o feio
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Helena enfim surtiu efeito e Paacuteris de fato vai ao encontro de Heitor que ocorre ainda no
Canto VI (vv 503-525)
No entanto ele natildeo retorna sem escutar mais uma vez algo de Helena ela volta a
criticar o heroacutei afirmando que ele ldquonunca teve firmeza nem nunca haacute de tecirc-lardquo [δ᾽ οὔτ᾽ ἂρ
νῦν φρένες ἔmicroπεδοι38 οὔτ᾽ ἄρ᾽ ὀπίσσω ἔσσονται] (VI vv 352-353) Fica claro nessa
passagem que a aacutetē de Paacuteris foi o motor da guerra Ao retirar Helena de Menelau quando
estava alojado em seu palaacutecio ele cometeu uma infraccedilatildeo desrespeitou a hospitalidade
(xeacutenia) praacutetica cara aos helenos Essa transgressatildeo foi uma das engrenagens da aacutetē (cegueira)
de Paacuteris visto que a aacutetē se daacute de trecircs momentos (princiacutepio estadoato e consequecircncia) o
ldquoraptordquo de Helena eacute o ldquoestadoatordquo que teve como princiacutepio a escolha de Afrodite e a guerra
como consequecircncia (MALTA 2006 p 78)
Em Euriacutepides a maioria esmagadora das menccedilotildees a Paacuteris dizem respeito ao fato de ele
ter causado a guerra Alguns personagens como Agamemnon e Ifigecircnia em Ifigecircnia em Aacuteulis
(vv 467-468 vv 1283-1311) ou Androcircmaca e Helena em As Troianas (vv 919-934 vv
940-943 vv 597-600) culpam-no diretamente pelas suas ruiacutenas mas geralmente eacute o coro
quem o faz (As Troianas vv 780-781 Heacutecuba vv 629-656 vv 905-951 Helena vv
1110-1120 Androcircmaca vv 274-300 Ifigecircnia em Aacuteulis vv 573-589) Eacute importante
frisarmos a importacircncia do coro pois ele eacute uma espeacutecie de arauto da poacutelis
O coro era elemento fundamental No desempenho cumprido por ele vertia-se uma grande quantidade de comentaacuterio social instrutivo e cheio de ponderaccedilatildeo que continuamente reiterava e sumarizava os valores da comunidade as atitudes e atributos aceitos e estimados Os diaacutelogos tomaram da retoacuterica homeacuterica o seu estilo exortativo aconselham comentam orientam exortam denunciam mostram arrependimentos expotildeem de forma mordaz o que devia de ser aceito ou evitado dando expressotildees a reaccedilotildees extremas dramatizando seus castigos e suas recompensas (CODECcedilO 2010 p 72)
Aleacutem disso o coro estaacute aqui exercendo um papel que sua natureza intralinguiacutestica
desempenha ele canta em versos iacircmbicos (ROMILLY 2013 p 227) de natureza
acusatoacuteria Eacute de comum conhecimento que Paacuteris causou a guerra e o coro faz questatildeo de
lembrar disso Em Helena a personagem homocircnima se acusa dizendo que seu deacutemas (beleza
do corpo) causou a ruiacutena de Troia (vv 384-385) mas o coro na mesma trageacutedia vem
lembrar ldquosobre o mar cinza com remo baacuterbaro o homem que veio que veio trazendo aos
filhos de Priacuteamo vocecirc Helena como sua esposa da Lacedemocircnia Paacuteris o fatalmente
38 Phreacuten como jaacute vimos eacute o muacutesculo diafragma eacutempedos significa firme Robert P Keep traduzindo do alematildeo o dicionaacuterio homeacuterico de Georg Autenrieth denomina essa expressatildeo (phreacutenes eacutempedoi) por ldquounimpairedrdquo que por sua vez significa algo que natildeo tem sua forccedila reduzida
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casadordquo [ὅτ᾽ ἔδραmicroε ῥόθια πεδία βαρβάρῳ πλάτᾳ ὅτ᾽ ἔmicroολεν ἔmicroολε microέλεα Πριαmicroίδαις
ἄγων Λακεδαίmicroονος ἄπο λέχεα σέθεν ὦ Ἑλένα Πάρις αἰνόγαmicroος] (vv 1117-1120)
Aqui Paacuteris eacute denominado ainoacutegamos adjetivo composto da palavra ainoacutes (terriacutevel) e gaacutemos
(casamento) o que ratifica a causa da guerra e relembra a sua aacutetē homeacuterica O mesmo
acontece em As Troianas Menelau culpa Helena (As Troianas vv 1037-1038) mas o coro
vem lembrar de quem eacute a culpa (vv 780-781)
Mesmo em Alexandre Paacuteris aparece como algueacutem que tem uma responsabilidade em
relaccedilatildeo agraves origens da guerra Isso contudo fica impliacutecito Luciacutea Romero Mariscal defende
que a representaccedilatildeo de Paacuteris nesse fragmento eacute feita de modo a identifica-lo com dois grupos
sociais a) a populaccedilatildeo rural de Atenas que durante a Guerra do Peloponeso eacute
responsabilizada por ter levado a peste agrave cidade (MARISCAL 2003 p 169) e b) com os
tyacuterannoi cujas presenccedilas assolavam Atenas e criavam um clima de incerteza no tocante agrave
manutenccedilatildeo da democracia (MARISCAL 2005 p 14)
Alexandre foi interpretada justamente depois dessa grande peste ter assolado a poacutelis e
ter matado inclusive um de seus principais membros Peacutericles Luciacutea Mariscal coloca que
Ao apresentar as origens da guerra de Troia em termos de oposiccedilatildeo entre o espaccedilo poliacutetico da cidade e o espaccedilo apoliacutetico da montanha [o Ida onde Paacuteris foi criado] entre os sujeitos que habitam ditos espaccedilos contrapostos e entre as convenccedilotildees que assim o delimitam Euriacutepides aborda um dos temas que o pensamento poliacutetico tradicional havia jaacute explorado ao longo de sua histoacuteria e que durante a guerra do Peloponeso se converteu em uma experiecircncia traacutegica similar a que se representa em Alexandre sob a faacutebula miacutetica que deu peacute agrave guerra troiana Como assinala Ph Borgeaud ldquoConveacutem recordar com a tradiccedilatildeo grega que eacute uma guerra que haacute na origem da tomada de consciecircncia da oposiccedilatildeo entre o ruacutestico e o cidadatildeordquo [] eacute sobretudo ao princiacutepio da guerra do Peloponeso quando a tensatildeo entre os habitantes da cidade e os do campo se faz mais traumaacutetica ao abrir a cidade de Atenas as suas portas a uma ingente massa de populaccedilatildeo rural e agreste que a duras penas se integra na cidade e a contamina com os terriacuteveis resultados da virulenta propagaccedilatildeo da peste que descreve Tuciacutedides no segundo livro de sua Histoacuteria da Guerra do Peloponeso (MARISCAL 2003 p 168-169 ndash grifos nossos)
Segundo a autora eacute Paacuteris que traz consigo a crise para a cidade pois insiste em
participar dos jogos sabendo que natildeo eacute um nobre (MARISCAL 2003 p 165) O tema de
Alexandre gira em torno do agocircn (disputa) esportivo ganhado por Paacuteris na eacutepoca um pastor
ainda cuja descendecircncia nobre era desconhecida Era inconcebiacutevel que um doucirclos (escravo)
ou laacutetris (servo) ganhasse as provas esportivas nas quais os aristoiacute deveriam sobressair-se
Aliaacutes jaacute era inconcebiacutevel a concessatildeo dessa participaccedilatildeo de grupos menos privilegiados da
sociedade nesse tipo de evento Priacuteamo jaacute cometera um erro aiacute ao deixar que um simples
pastor se juntasse aos aristocratas nos jogos A sua participaccedilatildeo ldquoquebraraacute a ordem da cidade
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e provocaraacute uma cadeia de transgressotildees que teriam lugar em todos os acircmbitos da mesma Sua
pretensatildeo de tomar parte nos funerais equivale a formar parte da cidade a ocupar um lugar
que natildeo lhe pertencerdquo (MARISCAL 2003 p 165)
Desse modo Deiacutefobo irmatildeo de Paacuteris eacute quem vai pedir providecircncias acerca disso
exige que o pastor seja morto pela sua audaacutecia e vendo que o pai natildeo lhe daria suporte pede a
Heacutecuba que o faccedila Na iminecircncia da morte dele o pastor que acolheu o heroacutei chega para
impedir que isso aconteccedila mostrando as roupas que vestiam Paacuteris quando ele foi exposto e
uma cena de anagnoacuterisis (reconhecimento) se desenrola o laacutetris eacute reconhecido como aristoacutes e
reintegrado agrave famiacutelia troiana
Frequentemente em Euriacutepides Paacuteris estaacute relacionado a um ambiente aacutegrios
(selvagem) ele eacute denominado algumas vezes bouacutekolos (pastor) em Helena a personagem
homocircnima fala do passado de Paacuteris quando ele se sentava junto com seu gado (vv 358-359)
em Androcircmaca (v 706) Peleu se refere a Paacuteris natildeo como ldquoPaacuteris de Troiardquo mas como ldquoPaacuteris
do [Monte] Idardquo Marcar sua pertenccedila a um ambiente selvagem eacute revelador no que toca a
construccedilatildeo de sua representaccedilatildeo na trageacutedia gecircnero no qual eacute recorrente sua denominaccedilatildeo
como baacuterbaros O proacuteprio mito que envolve Paacuteris (sua exposiccedilatildeo no Monte Ida seu
acolhimento pela ursa e depois pelo pastor pessoa em contato constante com o aacutegrios)
denota que em Paacuteris coabitam duas instacircncias o nobre ligado ao ambiente do humano e o
camponecircs ligado ao ambiente do selvagem
Esse nobre contudo eacute um tirano Na Atenas Claacutessica esses tiranos eram vigiados de
perto e o recurso do ostracismo visava embarreirar a quebra da democracia os nomes
daqueles que poderiam oferecer riscos ao poder democraacutetico eram marcados em ostraacutekai
(pedaccedilos de ceracircmica) e aquele que obtivesse mais votos poderia ser exilado de Atenas Luciacutea
Mariscal relembra Jean-Pierre Vernant que ao analisar a representaccedilatildeo de Eacutedipo chama
atenccedilatildeo para a ideia de que a crianccedila exposta ao nascer e que retorna agrave sua regiatildeo natal para
reivindicar seus direitos eacute geralmente ligada agrave figura do tyacuterannos (MARISCAL 2005 p 14
n 9)
Luciacutea Mariscal tambeacutem nos lembra que em 417 aC Alcibiacuteades ldquoum homem como
Alexandre extraordinariamente bonito popular e que por essas datas vai ganhando um
discutido poderrdquo (MARISCAL 2005 p 17) vence competiccedilotildees atleacuteticas assim como Paacuteris
Esse mesmo Alcibiacuteades vai liderar os atenienses em uma invasatildeo a Siracusa e causar uma
derrota dura a essa poacutelis Ele tambeacutem passa um tempo em Esparta auxiliando o inimigo para
depois retornar a Atenas Assim ldquoO certo eacute que Alexandre compartilha com Alcibiacuteades o
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traccedilo mais singular [sentildeero] de ambos personagens a beleza Uma beleza extraordinaacuteria que
se entende como um sinal de excelecircncia mas que pode contudo malograr-serdquo (MARISCAL
2005 p 19)
Mesmo no campo de batalha quando luta Paacuteris eacute repreendido No Canto XI da Iliacuteada
como vimos Diomedes o reprime por tecirc-lo atingido
lsquoτοξότα λωβητὴρ κέρᾳ ἀγλαὲ παρθενοπῖπα εἰ microὲν δὴ ἀντίβιον σὺν τεύχεσι πειρηθείης οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃσι βιὸς καὶ ταρφέες ἰοί νῦν δέ micro᾽ ἐπιγράψας ταρσὸν ποδὸς εὔχεαι αὔτως οὐκ ἀλέγω ὡς εἴ microε γυνὴ βάλοι ἢ πάϊς ἄφρων κωφὸν γὰρ βέλος ἀνδρὸς ἀνάλκιδος οὐτιδανοῖο ἦ τ᾽ ἄλλως ὑπ᾽ ἐmicroεῖο καὶ εἴ κ᾽ ὀλίγον περ ἐπαύρῃ ὀξὺ βέλος πέλεται καὶ ἀκήριον αἶψα τίθησι τοῦ δὲ γυναικὸς microέν τ᾽ ἀmicroφίδρυφοί εἰσι παρειαί παῖδες δ᾽ ὀρφανικοί ὃ δέ θ᾽ αἵmicroατι γαῖαν ἐρεύθων πύθεται οἰωνοὶ δὲ περὶ πλέες ἠὲ γυναῖκεςrsquo
Fuacutetil frecheiro de cachos frisados espiatildeo de mulheres se te atrevesses armado a lutar frente a frente comigo nenhum amparo acharias nesse arco e nas setas inuacutemeras Soacute por me haveres riscado no peacute fazes tanto barulho ao que dou tanto valor como a tiro de crianccedila ou de moccedila Vatilde sempre eacute a flecha que um ser despreziacutevel e imbele dispara Bem diferente se daacute com meus tiros que embora de leve o dardo atinja o inimigo sem mais da existecircncia o despoja as roacuteseas faces natildeo cessa na dor de arranhar a consorte oacuterfatildeos os filhos lhe ficam e o solo tingido de sangue a apodrecer tatildeo-soacute abutres atrai natildeo mais belas mulheres (XI vv 385-395)
Isso se daacute porque Paacuteris eacute um arqueiro (que como veremos no capiacutetulo seguinte eacute
desvalorizado) e porque natildeo haacute paridade na luta ele na escala hieraacuterquica do campo de
batalha eacute inferior a Diomedes Aleacutem de ldquoarqueirordquo (toxoacuteta) Paacuteris eacute tambeacutem designado como
um patife malfeitor (lōbētḗr) e um espiatildeo de mulheres (virgens) (parthenopicircpa) Lōbētḗr
designa um ldquocomportamento ultrajante [] ofensivo agraves regras da sociedade heroicardquo (SUTER
1984 p 79) Natildeo eacute um epiacuteteto exclusivo de Paacuteris Tersites por exemplo eacute denominado desse
modo tambeacutem (Iliacuteada II v 275) por Odisseu
Suter argumenta que foi uma denominaccedilatildeo desnecessaacuteria por parte de Diomedes (e aiacute
eacute Diomedes quem eacute chamado de ldquofriacutevolordquo) visto que ambos estatildeo equiparados socialmente
natildeo seria o mesmo caso entre Odisseu e Tersites no qual este seria um membro inferior da
sociedade Socialmente natildeo ambos satildeo da elite um do lado troiano outro do lado aqueu
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contudo no campo de batalha sim eles estariam desequiparados como vimos Paacuteris eacute das
tropas ligeiras Diomedes seria membro das tropas pesadas ele usa os armamentos comuns
aos guerreiros homeacutericos Paacuteris deveria procurar algueacutem do seu estatuto beacutelico para lutar natildeo
com algueacutem que estaacute hierarquicamente acima de sua posiccedilatildeo no campo de batalha
Parthenopicircpa (paacuterthenos ndash virgem mulher que ainda natildeo eacute casada ndash acrescida do
verbo opipeuacuteō ndash ldquoolhar com inquietuderdquo (BAILLY 2000 p 1389) observar curiosamente
segundo Ann Suter eacute um epiacuteteto que demonstra covardice na batalha (1984 p 84) Associado
com a totalidade das outras denominaccedilotildees do verso eacute de fato desmerecedor em uma batalha
o que menos importa eacute desejar mulheres
Keacutera aglaegrave eacute uma denominaccedilatildeo bastante ambiacutegua Literalmente significa ldquocornos
brilhantesrdquo (keacuteras ldquocornosrdquo aglaoacutes brilhante) Pode referir-se tanto ao seu arco pois essa
arma podia ser feita de chifres de animais quanto a um penteado a um modo de arrumar o
cabelo (SUTER 1984 p 82) Carlos Alberto Nunes prefere essa uacuteltima acepccedilatildeo traduzindo
essa expressatildeo como ldquode cachos frisadosrdquo bem como Haroldo de Campos que traduz apenas
como ldquode cachosrdquo (ldquosoacuterdido sagitaacuterio de cachosrdquo) Referindo-se ou agrave beleza ou ao arco a
acepccedilatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave batalha eacute a mesma
Ainda nesse excerto Diomedes compara o disparo de arco e flecha de Paacuteris com o de
uma crianccedila (paacuteiumls) ou mulher (gynḗ) Eacute a segunda vez que Paacuteris eacute infantilizado na Iliacuteada a
primeira que se daacute indiretamente (visto que ele natildeo eacute mencionado mas por ser filho do rei de
Troia a denuacutencia vale para ele tambeacutem) eacute quando Menelau afirma que ldquoos seus filhos [de
Priacuteamo] soberbos natildeo satildeo de confianccedila [ἐπεί οἱ παῖδες ὑπερφίαλοι καὶ ἄπιστοι]rdquo (III v
105) e que o anciatildeo deve presenciar o acordo
Anatoille Bailly ao traduzir hyperphiacutealos em seu dicionaacuterio coloca que ldquoen parl des
Troyensrdquo (falando de troianos) significa ldquoorgulhoso arroganterdquo denotando uma distinccedilatildeo de
vocabulaacuterio ao se referir aos gregos Contudo o classicista John Heath coloca que essa
palavra natildeo denigre todos os troianos mas certos indiviacuteduos como Paacuteris que causou a
guerra defendendo que ldquonatildeo haacute nada no poema que sugere que Homero considera todos os
troianos moralmente lsquocontaminadosrsquo [lsquotaintedrsquo]rdquo (HEATH 2005 p 534) Cremos que haacute a
possibilidade de distinccedilatildeo no uso do vocaacutebulo pois os troianos afinal satildeo os inimigos na
guerra
A terceira vez tambeacutem indiretamente eacute quando Priacuteamo denomina os filhos restantes
de ldquocrianccedilas maacutes que causam afliccedilatildeordquo (kakagrave teacutekna katēphoacutenes) (XXIV v 253) Isso eacute uma
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desvalorizaccedilatildeo deles uma diminuiccedilatildeo de valor dessa pessoa que eacute comparada a uma crianccedila
pois a sociedade homeacuterica eacute patriarcal onde o anḗr eacute quem deteacutem o poder familiar poliacutetico
Aleacutem disso ele eacute comparado a uma mulher Christopher Ransom analisa a efeminaccedilatildeo
de Paacuteris mostrando que ldquoisso eacute uacutetil e informativo para analisar o lsquooutrorsquo o homem que
quebra as regras da masculinidade e cujas transgressotildees e excessos ajudam a definir o ideal de
masculinidade promovendo um contraste contra o qual a identidade do homem lsquorealrsquo pode ser
estabelecidardquo (RANSOM 2011 p 35) Ademais a crianccedila e a mulher satildeo um Outro tambeacutem
o Outro social (RANSOM 2011 p 36) Cremos que Paacuteris natildeo deixa de ser um personagem
paidecircutico natildeo por mostrar como natildeo agir mas justamente por mostrar como agir
Mesmo quando Paacuteris parece engrenar na luta Heitor jaacute desconfiado acaba o
insultando quando o encontra aparentemente parado ldquoPaacuteris funesto de belas feiccedilotildees sedutor
de mulheres onde se encontra Deiacutefobo e Heleno senhor poderoso Onde Aacutesio de Hiacutertaco
o filho Adamante gerado por Aacutesio Que eacute de Otrioneu Do fastiacutegio a altanada cidade dos
Teucros hoje desaba envolvendo-te alfim a preciacutepite Morterdquo [lsquoΔύσπαρι εἶδος ἄριστε
γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ ποῦ τοι Δηΐφοβός τε βίη θ᾽ Ἑλένοιο ἄνακτος Ἀσιάδης τ᾽
Ἀδάmicroας ἠδ᾽ Ἄσιος Ὑρτάκου υἱός ποῦ δέ τοι Ὀθρυονεύς νῦν ὤλετο πᾶσα κατ᾽ ἄκρης
Ἴλιος αἰπεινή νῦν τοι σῶς αἰπὺς ὄλεθροςrsquo] (XIII vv 769-773)
No Canto XXIV (vv 247-262) quando Priacuteamo censura seus filhos indiretamente
Paacuteris eacute insultado tambeacutem O anciatildeo fala que soacute restaram os filhos dignos de censura
(eleacutenkhea) os mentirosos (pseucircstai) os danccedilarinos (orkheacutestai) e os que cantam e danccedilam
(khoroitypiacuteēsin aacuteristoi) ou seja filhos que natildeo estatildeo aptos para entrar na guerra No campo de
batalha valoriza-se a intrepidez no combate e a habilidade guerreira em detrimento da danccedila
e do canto Mas isso natildeo quer dizer que essas praacuteticas natildeo satildeo valorizadas na sociedade grega
estes satildeo valorizados fora de um contexto beacutelico Pelo contraacuterio faz parte da paideiacutea
Entretanto ligar o Outro ao domiacutenio das artes musicais natildeo eacute incomum nas trageacutedias
Edith Hall nos mostra que em As Suplicantes de Eacutesquilo somente os baacuterbaros cantam
(HALL 1989 p 130) Em Euriacutepides natildeo eacute diferente em Ifigecircnia em Aacuteulis Paacuteris eacute mostrado
ldquotocando melodias asiaacuteticas [baacuterbaras] na syacuterinx imitando na sua flauta o auloacutes friacutegio do
Olimpordquo (vv 576-578) Assim nos parece que natildeo eacute todo instrumento musical que serve agrave
paideiacutea
Eacute interessante perceber que syacuterinx e o auloacutes satildeo tipos de flautas instrumentos que
deformam a face quando tocados pois temos que inchar as bochechas Essa deformaccedilatildeo eacute
uma metaacutefora para a proacutepria deformaccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo do personagem No periacuteodo
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claacutessico Platatildeo Alcibiacuteades e Aristoacuteteles viam no auloacutes um instrumento com ldquoefeitos maleacutefi-
cos agrave formaccedilatildeo do caraacuteter do cidadatildeordquo (CERQUEIRA 2013 p 62) A lira a ciacutetara pelo
contraacuterio satildeo instrumentos bem vistos para a educaccedilatildeo do cidadatildeo por isso que o Paacuteris de
Homero toca-a Ele estaacute desempenhando ainda um exemplo a ser seguido algo que natildeo
acontece na trageacutedia como vimos Paacuteris ou eacute o pastor (ligado ao domiacutenio o aacutegrios do
selvagem) ou o escravo (o Outro social por excelecircncia do kaloacutes kagathoacutes) ou o baacuterbaro No
entanto ser um muacutesico profissional natildeo era bem visto na Atenas Claacutessica
um muacutesico de ofiacutecio portanto era visto como algueacutem inepto agrave vida ciacutevica e relapso na conduccedilatildeo de assuntos particulares Ele compartilhava da covardia feminina Esses foram os argumentos utilizados pelo Zeus de Euriacutepides na trageacutedia Antiacuteope para desqualificar o lirista Anfiatildeo ndash suspeita de feminilidade incompetecircncia militar e deacuteficit de coragem e virilidade (CERQUEIRA 1997 p 126)
A muacutesica fazia parte da paideiacutea mas ser um muacutesico profissional esbarrava num
estereoacutetipo semelhante ao do baacuterbaro implicando em uma alteridade social o muacutesico eacute
covarde eacute efeminado natildeo serve para a guerra Tendo em mente que Paacuteris tem em sua
caracterizaccedilatildeo esse elemento jaacute na Iliacuteada isso denota o quanto ela serviu para moldar uma
fronteira eacutetnica um Outro
Como pudemos perceber duas coisas desencadeiam reprimendas a Paacuteris na Iliacuteada a)
o fato de ele ter fugido da batalha com Menelau e de natildeo a ter terminado (mesmo que por um
desiacutegnio divino) e b) seu jactar-se desencadeado pelo ferimento de Diomedes Natildeo somente
Heitor seu irmatildeo o repreende mas outros heroacuteis Priacuteamo e mesmo Helena a mulher por
quem ele luta Na trageacutedia ele eacute lembrado majoritariamente como aquele que causou a
guerra Por ser o causador da desgraccedila de muitos o seu caraacuteter Outro precisa ser bem
delineado
Essas reprimendas que Paacuteris sofrem contudo natildeo passam em branco para ele ele
sempre as responde Quando Paacuteris foge do embate com Menelau recuando para dentro do
exeacutercito troiano Heitor lhe cobre de reprimendas No entanto elas natildeo ficam sem resposta
Ἕκτορ ἐπεί microε κατ᾽ αἶσαν ἐνείκεσας οὐδ᾽ ὑπὲρ αἶσαν αἰεί τοι κραδίη πέλεκυς ὥς ἐστιν ἀτειρὴς ὅς τ᾽ εἶσιν διὰ δουρὸς ὑπ᾽ ἀνέρος ὅς ῥά τε τέχνῃ νήϊον ἐκτάmicroνῃσιν ὀφέλλει δ᾽ ἀνδρὸς ἐρωήν ὣς σοὶ ἐνὶ στήθεσσιν ἀτάρβητος νόος ἐστί microή microοι δῶρ᾽ ἐρατὰ πρόφερε χρυσέης Ἀφροδίτης οὔ τοι ἀπόβλητ᾽ ἐστὶ θεῶν ἐρικυδέα δῶρα ὅσσά κεν αὐτοὶ δῶσιν ἑκὼν δ᾽ οὐκ ἄν τις ἕλοιτο
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Eacute justo Heitor o que dizes contraacuterio agrave razatildeo natildeo discorres Teu coraccedilatildeo eacute tatildeo duro quanto o accedilo semelha ao machado que manejado pelo homem lhe aumenta o poder e no tronco mui facilmente penetra talhando-o para o uso das naves Resoluccedilatildeo tatildeo intreacutepida encerras assim no imo peito Natildeo me censures por causa dos mimos da loura Afrodite pois despreziacuteveis natildeo satildeo os presentes valiosos que os deuses de seu bom grado concedem que agrave forccedila ningueacutem os alcanccedila (III vv 59-66)
Paacuteris divide a responsabilidade pela guerra natildeo fora somente ele quem a causou mas
Afrodite tambeacutem ao lhe prometer a mulher mais bela do mundo em troca do pomo dourado
Essa afirmaccedilatildeo entretanto natildeo parece diminuir a parte que cabe ao heroacutei Heitor mais a
frente se refere a ele como sendo o ldquofautor desta guerra [τοῦ εἴνεκα νεῖκος ὄρωρεν]rdquo
foacutermula que se repetiraacute vaacuterias vezes para Paacuteris ao longo da Iliacuteada
Esses versos tambeacutem mostram uma outra qualidade de Paacuteris a habilidade com as
palavras A importacircncia dessa habilidade retorna em Alexandre de Euriacutepides quando Paacuteris
deixa claro que ldquoFrequentemente um homem em desvantagem pela ineloquecircncia perde para
um eloquente mesmo que seu caso seja justordquo [ἀγλωσσίᾳ δὲ πολλάκις ληφθεὶς ἀνήρ
δίκαια λέξας ἧσσον εὐγλώσσου φέρει] (fr 56) O agloacutessos (literalmente ldquosem liacutenguardquo) natildeo
tem chance contra o eugloacutessos (literalmente ldquode boa liacutenguardquo) e Paacuteris tanto na Iliacuteada quanto
em Alexandre (textos em que ele eacute personagem) demonstra ser oacutetimo com as palavras
Sempre que ele eacute censurado por Heitor ou por Helena faz um discurso que acaba
acalmando o seu interlocutor ora atribuindo a responsabilidade da guerra natildeo apenas a ele
ora se propondo a entrar na batalha ora defendendo-se quando acusado de desserviccedilo por
Heitor num momento em que ele estaacute de fato lutando nas batalhas Essa eacute uma habilidade
que natildeo tem tanto valor na guerra quanto a forccedila fiacutesica e a estrateacutegia militar a Iliacuteada por ser
um poema beacutelico tem mais cenas de batalhas longas do que de diaacutelogos longos Contudo ter
uma boa retoacuterica clareza na fala enfim ser um haacutebil orador eacute uma virtude do anḗr
Os troianos satildeo oacutetimos falantes Hillary Mackie explora bastante essa ideia em seu
livro Talking Trojan speech and community in the Iliad Ela defende que o falar troiano
denota uma praise culture (cultura de elogio) enquanto o aqueu uma blame culture (cultura
de culpabilizaccedilatildeo) Ela mostra como os troianos muitas vezes conseguem dissuadir seus
inimigos da luta como acontece com Glauco e Diomedes (Iliacuteada VI vv 120-238) aquele
conta a este sua genealogia lembrando-o de que seus pais foram xeacutenoi hoacutespedes um do outro
Eles entatildeo decidem natildeo lutar e trocar presentes transportando a xeacutenia para o campo de
batalha
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A autora tambeacutem sustenta que os troianos evitam embates em que tenham que desferir
insultos a outros guerreiros Quando haacute a interpelaccedilatildeo eles utilizam epiacutetetos de elogio natildeo de
reprimenda (MACKIE 1996 p 83) Heitor natildeo daacute treacuteplicas (como acontece nessa repreensatildeo
seguinda da defesa do Paacuteris ndash ele natildeo replica) e seu discurso eacute introspectivo e reflexivo
bastante poeacutetico e construiacutedo esteticamente para ser assim pelo poeta (MACKIE 1996 p
115) Aleacutem disso os troianos satildeo os uacutenicos heroacuteis que suplicam pela vida em batalha
Destarte podemos perceber que Paacuteris eacute um tiacutepico troiano nesse aspecto ele eacute haacutebil com as
palavras E se as palavras satildeo como flechas (MACKIE 1996 p 56) esse elemento combina
ainda com o fato de ele ser um arqueiro (sendo que como vimos a maioria do contingente de
arquearia da Guerra de Troia eacute oriunda dos troianos)
Ainda ligado agrave questatildeo do discurso de Paacuteris no Canto III (v 60) haacute um siacutemile
interessante e incomum na epopeia a comparaccedilatildeo de um humano (Heitor) com um objeto
(machado ndash peacutelekys) Seth Benardete afirma que
O siacutemile que Paacuteris usa eacute uacutenico em muitas coisas Em nenhum outro lugar um heroacutei eacute comparado a algo feito pelo homem nem a palavra technecirc eacute recorrente na Iliacuteada (bastante comum contudo se estivesse na Odisseia) nem erocircecirc eacute usada comumente para um homem mas para o arremesso de uma lanccedila Heitor natildeo eacute o madeireiro mas o machado ou ainda madeireiro e machado seu coraccedilatildeo multiplica sua forccedila ele eacute autossuficiente Ele carrega dentro de si os meios para um grande poder Ele eacute todo arma (BENARDETE 2005 p 51)
Isso torna seu discurso diferenciado Homero e seus personagens utilizam siacutemiles que
comparam o homem aos animais que satildeo seres animados Paacuteris compara um humano a um
ser inanimado Essa eacute mais uma particularidade desse personagem que esse excerto eacute
mostrado pela primeira vez falando dialogando na epopeia
Essa natildeo eacute a uacutenica vez que Paacuteris responderaacute Heitor no Canto VI Paacuteris responde agraves
acusaccedilotildees do heroacutei e lhe acalma afirmando que Heacutecuba natildeo trouxe ao mundo um anaacutelkydos
(sem-gloacuteria) (vv 332-341) Tambeacutem quando Heitor lhe acusa injustamente de estar parado na
guerra Paacuteris responde (XIII vv 774-788) Do mesmo modo natildeo seraacute soacute seu irmatildeo que
ouviraacute resposta de Paacuteris Helena tambeacutem ouve (III vv 438-446) Assim como se sucedeu
com Heitor Paacuteris acalma o seu interlocutor atraveacutes das palavras do myacutethos ndash amenizando a
situaccedilatildeo ndash e atribui o acontecido a um deus ele natildeo eacute o responsaacutevel sozinho pelo
malsucedido Afrodite eacute quem lhe daacute Helena de presente natildeo podendo ele negar Athenaacute
ajudou Menelau por isso que ele venceu natildeo foi por causa de sua inabilidade guerreira
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Soacute haacute uma pessoa que Paacuteris natildeo responde depois que eacute interpelado de modo agressivo
Diomedes Sendo assim nosso heroacutei soacute retruca troianos e a ldquoHelenardquo que estaacute em Troia Esses
jogos interessantes de palavras e comparaccedilotildees satildeo comuns em Homero Por isso que eacute
interessante nos debruccedilarmos sobre esses siacutemiles de animais que envolvem Paacuteris Eles satildeo
muito frequentes na Iliacuteada Annie Schnapp-Gourbeillon ressalta que eles tecircm uma funccedilatildeo
especiacutefica no eacutepico
Explicar [rendre compte] valorar dar a medida aqui estaacute umas funccedilotildees fundamentais Na aproximaccedilatildeo analoacutegica o animal daacute a ver as virtudes dos heroacuteis aos quais ele se refere ele sugere ele enfatiza [met un valeur] ele retorna uma imagem amplificada e seletiva como um espelho sutilmente deformado [] ele eacute signo mensagem pressaacutegio [] Portador do sofrimento humano [] ator de uma reversatildeo indiziacutevel [] elemento fundamental de uma definiccedilatildeo social do indiviacuteduo [] (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 11)
Os siacutemiles de caccedila satildeo bastante elucidativos na hora de representar o lado mais fraco e
o mais forte Segundo Michael Clarke ldquoo contraste entre predador e caccedila eacute um padratildeo nas
falas [dos heroacuteis que comparam homens a animais] onde um guerreiro compara aqueles com
quem ele luta ou aqueles que ele vecirc a bravos ou covardes animaisrdquo (CLARKE 1995 p 9) O
narrador da Iliacuteada tambeacutem utiliza bastante esses siacutemiles tendo como o leatildeo o animal caccedilador
por excelecircncia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 39-40) encarnaccedilatildeo dos valores
heroicos em sua simbologia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 50) Quando Menelau
resolve enfrentar Paacuteris no iniacutecio do Canto III o leatildeo eacute o siacutemile que corresponde a Menelau
τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν ἀρηΐφιλος Μενέλαος ἐρχόmicroενον προπάροιθεν ὁmicroίλου microακρὰ βιβάντα ὥς τε λέων ἐχάρη microεγάλῳ ἐπὶ σώmicroατι κύρσας εὑρὼν ἢ ἔλαφον κεραὸν ἢ ἄγριον αἶγα πεινάων microάλα γάρ τε κατεσθίει εἴ περ ἂν αὐτὸν σεύωνται ταχέες τε κύνες θαλεροί τ᾽ αἰζηοί ὣς ἐχάρη Μενέλαος Ἀλέξανδρον θεοειδέα ὀφθαλmicroοῖσιν ἰδών φάτο γὰρ τίσεσθαι ἀλείτην αὐτίκα δ᾽ ἐξ ὀχέων σὺν τεύχεσιν ἆλτο χαmicroᾶζε τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν Ἀλέξανδρος θεοειδὴς ἐν προmicroάχοισι φανέντα κατεπλήγη φίλον ἦτορ ἂψ δ᾽ ἑτάρων εἰς ἔθνος ἐχάζετο κῆρ᾽ ἀλεείνων ὡς δ᾽ ὅτε τίς τε δράκοντα ἰδὼν παλίνορσος ἀπέστη οὔρεος ἐν βήσσῃς ὑπό τε τρόmicroος ἔλλαβε γυῖα ἂψ δ᾽ ἀνεχώρησεν ὦχρός τέ microιν εἷλε παρειάς ὣς αὖτις καθ᾽ ὅmicroιλον ἔδυ Τρώων ἀγερώχων δείσας Ἀτρέος υἱὸν Ἀλέξανδρος θεοειδής Logo que o viu Menelau o guerreiro disciacutepulo de Ares como avanccedilava com passo arrogante na frente do exeacutercito muito exultante ficou como leatildeo esfaimado que encontra um cervo morto de pontas em galho ou uma cabra selvagem
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avidamente o devora ainda mesmo que catildees mui ligeiros lhe venham vindo no encalccedilo e pastores de aspecto robusto dessa maneira exultou Menelau quando Paacuteris o belo teve ante os olhos pensando que iria por fim castigaacute-lo Rapidamente do carro pulou sem que as armas soltasse Quando o formoso Alexandre que um deus imortal parecia o viu agrave frente dos outros sentiu conturbar-se-lhe o peito e para o meio dos seus recuou escapando da Morte Como se daacute quando algueacutem nos convales dos montes estaca em frente de uma serpente a tremerem-lhe as pernas e os joelhos e retrocede de um salto com o rosto sem cor todo medo por esse modo afundou para o meio dos Teucros valentes Paacuteris o divo Alexandre do filho de Atreu temeroso (III vv 21-37)
Chama-nos atenccedilatildeo os siacutemiles utilizados Primeiramente um que remete agrave caccedila (leatildeo
versus cervo ou cabra) depois um que mostra o enfrentamento homem versus animal
(homem versus serpente humano versus selvagem) Paacuteris eacute assemelhado agrave cabra e ao veado
Ambos satildeo animais que possuem relaccedilatildeo com o deus Dioniso (SUTER 1984 p 111) Aleacutem
disso satildeo a caccedila do leatildeo Este sobrepuja em forccedila o veado e a cabra bem como estaacute no topo
da cadeia alimentar desse ambiente selvagem O siacutemile no Canto XIII (vv489-495) tambeacutem eacute
revelador o exeacutercito troiano eacute composto de carneiros animal que serve de caccedila
Outro siacutemile relacionado ao nosso heroacutei nessa passagem eacute o do pastor que teme a
serpente Este eacute peculiarmente interessante a serpente eacute o siacutembolo de Zeus que sob o epiacuteteto
Xeacutenios garante o cumprimento das regras da hospitalidade (xeacutenia) Levando em consideraccedilatildeo
que Paacuteris desrespeitou a xeacutenia ao retirar Helena de Menelau durante sua estadia em Esparta
haacute bastante razatildeo para ele temer a ldquoserpenterdquo a ira de Zeus recai sobre Paacuteris mesmo que no
momento Zeus esteja do lado dos troianos A transgressatildeo do nosso heroacutei se sobressai
Quando Paacuteris entra em batalha ele estaacute vestindo uma pele de leopardo comum nas
representaccedilotildees dos arqueiros citas na imageacutetica (LISSARAGUE 2002 p 104 e 105)
Segundo Aristoacuteteles esse animal eacute comum na Aacutesia Menor (lugar onde fica Troia) sendo um
animal muito selvagem (ARISTOacuteTELES Histoacuteria dos Animais VIII 27 9) O leopardo eacute
um animal associado a Dioniso e estaacute presente frequentemente em suas representaccedilotildees
(COHEN 2012 p 462) A associaccedilatildeo de Paacuteris com esse deus eacute trabalhada por Ann Suter em
sua tese visto que ela mostra como a poesia iacircmbica39 (uma blame poetry ldquopoesia
acusatoacuteriardquo) estaacute ligada agrave construccedilatildeo da representaccedilatildeo de Paacuteris por Homero A Iliacuteada natildeo eacute o
iniacutecio de um processo discursivo mas parte dele outros gecircneros poeacuteticos que tramitavam pela
sociedade influenciaram na composiccedilatildeo da eacutepica homeacuterica Ann Suter ressalta que nos versos
39 A partiacutecula ldquo-amb-rdquo (-αmicroβ-) estaacute ligada aos cultos dionisiacuteacos e ldquodesigna canccedilotildees e danccedilas em sua honrardquo (SUTER 1984 p 105) como o dithyacuterambos o thriacuteambos e o iacutethymbos
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em que Priacuteamo insulta seus filhos ldquoo vocabulaacuterio necessaacuterio para elogio e acusaccedilatildeo eacute usado
aqui νεικέω [injuriar] e αἰνέω [elogiar]rdquo (SUTER 1984 p 96) Esses verbos aparecem no
aoristo (neiacutekesse ḗnēsrsquo) Paacuteris causa neiacutekos pelo seu ainoacutes a Afrodite Desse modo tanto a
ideia de que os troianos fazem parte de uma cultura de elogio (praise culture) quanto a de
que Paacuteris eacute um personagem acusaacutevel (blame figure) podem ser corroboradas a partir dessa
utilizaccedilatildeo de ambos vocabulaacuterios pelo poeta
Outro siacutemile nos chama atenccedilatildeo quando Paacuteris volta ao campo de batalha
οὐδὲ Πάρις δήθυνεν ἐν ὑψηλοῖσι δόmicroοισιν ἀλλ᾽ ὅ γ᾽ ἐπεὶ κατέδυ κλυτὰ τεύχεα ποικίλα χαλκῷ σεύατ᾽ ἔπειτ᾽ ἀνὰ ἄστυ ποσὶ κραιπνοῖσι πεποιθώς ὡς δ᾽ ὅτε τις στατὸς ἵππος ἀκοστήσας ἐπὶ φάτνῃ δεσmicroὸν ἀπορρήξας θείῃ πεδίοιο κροαίνων εἰωθὼς λούεσθαι ἐϋρρεῖος ποταmicroοῖο κυδιόων ὑψοῦ δὲ κάρη ἔχει ἀmicroφὶ δὲ χαῖται ὤmicroοις ἀΐσσονται ὃ δ᾽ ἀγλαΐηφι πεποιθὼς ῥίmicroφά ἑ γοῦνα φέρει microετά τ ἤθεα καὶ νοmicroὸν ἵππων ὣς υἱὸς Πριάmicroοιο Πάρις κατὰ Περγάmicroου ἄκρης40 τεύχεσι παmicroφαίνων ὥς τ᾽ ἠλέκτωρ ἐβεβήκει καγχαλόων ταχέες δὲ πόδες φέρον αἶψα δ᾽ ἔπειτα Ἕκτορα δῖον ἔτετmicroεν ἀδελφεὸν εὖτ᾽ ἄρ᾽ ἔmicroελλε στρέψεσθ᾽ ἐκ χώρης ὅθι ᾗ ὀάριζε γυναικί
Paacuteris tambeacutem natildeo ficou muito tempo na estacircncia elevada mas tendo as armas de bronze vestido de fino trabalho corta apressado a cidade nos raacutepidos peacutes confiado Como galopa um cavalo habituado no estaacutebulo quando pode do laccedilo escapar e fogoso a planiacutecie atravessa para ir banhar-se impaciente na bela corrente do rio cheio de orgulho soleva a cabeccedila por sobre as espaacuteduas bate-lhe a crina agitada consciente da proacutepria beleza levam-no os peacutes para o prado onde os outros cavalos se reuacutenem Paacuteris o filho de Priacuteamo assim desde do alto da Acroacutepole da sacra Peacutergamo envolto em couraccedila que a vista ofuscava Vem exultante seus raacutepidos peacutes o conduzem em pouco tempo aonde Heitor se encontrava o divino guerreiro que tinha precisamente deixado o local em que agrave esposa falara (VI vv 503-517)
Paacuteris eacute mostrado como um cavalo dentre cavalos assim ele se encaminha para a
batalha O cavalo eacute um siacutembolo de destaque social (eacute um animal muito caro difiacutecil de se
manter demanda bastante recursos) e de auxiacutelio (ele desloca o guerreiro na guerra bem como
serve agrave competiccedilatildeo esportiva ndash SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 169) Aleacutem disso eacute
um animal que representa o troiano como eacute frequentemente perceptiacutevel em Homero
Euriacutepides tambeacutem destaca essa caracteriacutestica deles denominando-os phiacutelippoi (literalmente
40 O termo ldquoacroacutepolerdquo (akroacutepolis) natildeo aparece no original trata-se do alto mesmo de Troia Contudo a raiz dos dois termos eacute a mesma
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ldquoamigos dos cavalosrdquo Alexandre fr 62f) Esse siacutemile aparece justamente quando Paacuteris
retorna para o campo de batalha ele estaacute disposto a auxiliar seus iacutesoi O cavalo tambeacutem eacute um
animal que oscila entre o mundo dos homens e dos deuses (SCHNAPP-GOURBEILLON
1981 p 162) corroborando o caraacuteter theoeidḗs de Paacuteris e a ideia defendida por Ann Suter de
que Paacuteris eacute um nome que tem relaccedilatildeo com o divino Homero o usa nesses versos ao se referir
a ele antes de comparaacute-lo a um cavalo
Alguns personagens (como Astyacuteanax que tambeacutem eacute chamado de Skamaacutendrios) teriam
nomes duplos um para ser usado costumeiramente e outro em casos especiais dentro de
grupos especiais este uacuteltimo relacionando-se agrave esfera do divino Ann Suter utiliza-se do
pensamento de R Lazzaroni que mostra que existe na epopeia uma ldquolinguagem dos deusesrdquo
e uma ldquolinguagem dos homensrdquo (SUTER 1984 p 28) O nome Paacuteris que eacute menos comum
na Iliacuteada do que Aleacutexandros eacute utilizado apenas pela famiacutelia e ldquoem contextos em que o poeta
deseja enfatizar sua divindade nesse caso como uma fonte de inspiraccedilatildeo para um guerreiro
em combaterdquo (SUTER 1984 p 31) Paacuteris tambeacutem teria conexatildeo com a ilha de Paros um dos
lugares de culto a Dioniso
Quando Heitor jaacute estaacute morrendo diz a Aquiles que ldquoO coraccedilatildeo tens de ferro
impossiacutevel me fora dobraacute-lo Que isso poreacutem contra ti natildeo provoque a vinganccedila dos deuses
quando tiveres de a vida perder muito embora esforccedilado das Portas Ceacuteias em frente aos
ataques de Paacuteris e Apolordquo [ἦ γὰρ σοί γε σιδήρεος ἐν φρεσὶ θυmicroός φράζεο νῦν microή τοί τι
θεῶν microήνιmicroα41 γένωmicroαι ἤmicroατι τῷ ὅτε κέν σε Πάρις καὶ Φοῖβος Ἀπόλλων ἐσθλὸν
ἐόντ᾽ ὀλέσωσιν ἐνὶ Σκαιῇσι πύλῃσιν] (XXII vv 357-360) Aqui novamente Paacuteris eacute usado
num sentido divino pois remete agrave sua ligaccedilatildeo com o deus Apolo arqueiro como ele e que
lhe auxilia a atingir sua gloacuteria maacutexima ao matar o melhor dos aqueus Aquiles
Em Alexandre (fr 42d) Euriacutepides coloca que ldquoQuando ele (Paacuteris) se tornou um
homem jovem e excedeu muitos em beleza e forccedila a ele foi dado um segundo nome
Alexandre porque ele espantou bandidos e protegeu o rebanhordquo [γενόmicroενος δὲ νεανίσκος
καὶ πολλῶν διαφέρων κάλλει τε καὶ ῥώmicroῃ αὖθις Ἀλέχανδρος προσωνοmicroάσθη λῃστὰς
ἀmicroυνόmicroενος καὶ τοῖς ποιmicroνίοις ἀλεξήσας] Assim aqui ldquoAleacutexandrosrdquo eacute um distintivo um
41 Mecircnin (de mecircnis) eacute a primeira palavra da Iliacuteada significa ldquoirardquo O ultraje feito agrave timḗ de Aquiles por Agamemnon (a partir do momento que este lhe toma um geacuteras privileacutegio que lhe foi destinado Briseida) gera nele uma mecircnis a qual causa pecircma a todos ao longo da guerra A Iliacuteada eacute a histoacuteria da ira de Aquiles e suas consequecircncias como pontuou Jaqueline de Romilly (ROMILLY sd p 18) A palavra mecircnis ao longo do poema eacute utilizada para designar o que tem a ver com essa ira de Aquiles segundo Gregory Nagy (NAGY 1999 p 73 e 74) e isso nesta passagem se verifica
70
segundo nome dado a uma pessoa que se destaca das outras Em As Troianas Helena usa
Paacuteris e Alexandre sem distinccedilatildeo
πρῶτον microὲν ἀρχὰς ἔτεκεν ἥδε τῶν κακῶν Πάριν τεκοῦσα δεύτερον δ᾽ ἀπώλεσε Τροίαν τε κἄmicro᾽ ὁ πρέσβυς οὐ κτανὼν βρέφος δαλοῦ πικρὸν microίmicroηmicro᾽ Ἀλέξανδρόν ποτε ἐνθένδε τἀπίλοιπ᾽ ἄκουσον ὡς ἔχει ἔκρινε τρισσὸν ζεῦγος ὅδε τριῶν θεῶν καὶ Παλλάδος microὲν ἦν Ἀλεξάνδρῳ δόσις Φρυξὶ στρατηγοῦνθ᾽ Ἑλλάδ᾽ ἐξανιστάναι Ἥρα δ᾽ ὑπέσχετ᾽ Ἀσιάδ᾽ Εὐρώπης θ᾽ ὅρους τυραννίδ᾽ ἕξειν εἴ σφε κρίνειεν Πάρις Κύπρις δὲ τοὐmicroὸν εἶδος ἐκπαγλουmicroένη δώσειν ὑπέσχετ᾽ εἰ θεὰς ὑπερδράmicroοι κάλλει [] ἦλθ᾽ οὐχὶ microικρὰν θεὸν ἔχων αὑτοῦ microέτα ὁ τῆσδ᾽ ἀλάστωρ εἴτ᾽ Ἀλέξανδρον θέλεις ὀνόmicroατι προσφωνεῖν νιν εἴτε καὶ Πάριν ὅν ὦ κάκιστε σοῖσιν ἐν δόmicroοις λιπὼν Σπάρτης ἀπῆρας νηὶ Κρησίαν χθόνα Primeiro essa aiacute gerou as origens dos males Paacuteris tendo gerado depois o velho destruiu Troacuteia e a mim ao natildeo matar o bebecirc acre imitaccedilatildeo de um ticcedilatildeo ndash Alexandre entatildeo A partir daiacute o restante escuta como eacute Aquele julgou um triplo jugo de trecircs deusas bem o dom de Palas para Alexandre era despovoar a Heacutelade comandando friacutegios Hera jurou que sobre a Aacutesia e os limites da Europa Paacuteris se a escolhesse teria a soberania Ciacutepris com minha aparecircncia se estonteando prometeu daacute-la se ultrapassasse as deusas em beleza [] [Paacuteris] Veio trazendo uma deusa natildeo miuacuteda consigo O nume vingador42 dessa aiacute se queres Chamar-lhe de Alexandre ou se de Paacuteris Deixando-o em tua casa oacute maldito43 De navio partiste de Esparta rumo a Creta (As Troianas vv 919-931 940-943 ndash grifos nossos)
O helenista Michael Lloyd chama a atenccedilatildeo para esse uso indistinto de Paacuteris e
Alexandre em Euriacutepides (LLOYD 1989 p 77) mas ele tambeacutem crecirc que esse uso eacute indistinto
em Homero o que discordamos mostramos com a anaacutelise de Ann Suter que eacute possiacutevel que
Paacuteris seja um nome divino e Alexandre um nome comum Cremos que essa indiferenccedila se daacute
em Euriacutepides porque nosso heroacutei em suas obras natildeo representa tanto um exemplo a ser
seguido mas porque ele eacute um baacuterbaros Paacuteris perde o caraacuteter helecircnico e helenizante que ele 42 Alaacutestōr eacute um gecircnio mau (ldquomauvais geacutenierdquo BAILLY 2000 p 73) o que reforccedila a ideia de Paacuteris como um causador de males 43 Kaacutekiste (vocativo de kaacutekistos) seria ldquoo pior de todosrdquo Aqui a palavra kakoacutes (que indica tanto o feio quanto o mau) aparece com o sufixo ndashistos que indica superlativo
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apresenta na Iliacuteada sendo aqui a suacutemula da alteridade completa ele tanto eacute o estrangeiro
como aquela pessoa indesejada na cidade
Quando comeccedilamos nossa pesquisa de graduaccedilatildeo natildeo tiacutenhamos conhecimento de
nenhum autor que tratasse de Paacuteris especificamente Conforme fomos pesquisando referecircncias
bibliograacuteficas descobrimos uma pequena discussatildeo filoloacutegica sobre essa dupla denominaccedilatildeo
de Paacuteris a qual eacute interessante recuperarmos Aliaacutes sobre Paacuteris especificamente apenas a
filologia debruccedilou-se
John A Scott (1913) crecirc que Aleacutexandros eacute uma traduccedilatildeo para o grego de Paacuteris De
etimologia imprecisa este seria um nome estrangeiro jaacute aquele formado pela composiccedilatildeo do
verbo aleacutexō (proteger defender) e do substantivo androacutes (homem varatildeo) seria grego porque
ambas as palavras que o formam satildeo gregas Aleacutem disso esse autor crecirc que Paacuteris eacute o grande
heroacutei da tradiccedilatildeo miacutetica em detrimento de Heitor seu irmatildeo Ele defende que Homero criou
Heitor para encarnar todos os valores heroicos que pertenciam a Paacuteris personagem o qual por
motivos morais natildeo poderia ser representado de maneira tatildeo heroica O nome Heacutektōr jaacute
existia nas tabuinhas de Linear B (e-ko-to) escrita da eacutepoca dos palaacutecios (XVII-XI aC)
(CHADWICK 1970 p 98) mas natildeo sabemos se Homero o pega emprestado para nomear
seu personagem ou se Heitor mesmo jaacute era um parte da tradiccedilatildeo miacutetica sendo recuperado por
Homero
Samuel E Bassett (1920) natildeo concorda nem discorda de John Scott mas mostra que haacute
pesquisas as quais apontam que Aleacutexandros poderia ser derivado do nome Alaksandu um
priacutencipe de Wilǔsa regiatildeo que seria a proacutepria Troia incluindo assim os avanccedilos da
Arqueologia Hititologistas defendem que Troia natildeo eacute nada mais que a regiatildeo denominada
Trūiša44
Na contracorrente dessa hipoacutetese de Scott veio Ann Suter (1984) com sua tese de
doutorado ParisAlexandros a study in Homeric technique of characterization com a
qual noacutes concordamos em muitos pontos Ela afirma que Paacuteris eacute mais utilizado num contexto
iacutentimo (pela famiacutelia ou seja troianos) sim mas que Aleacutexandros tambeacutem eacute usado pela sua
famiacutelia sendo o nome mais recorrente para denomina-lo Ela atribui esse fato agrave ideia de que
Paacuteris seria um nome divino utilizando a ideia de R Lazzaroni sobre a linguagem dos homens
6 A partiacutecula -iša eacute um sufixo dividindo a palavra (Trū-iša) temos como raiz o elemento trū- Em grego Troia eacute Troiacuteē (Τροίη) e provavelmete deriva de um vocaacutebulo mais antigo Trṓē (Τρώη) Trṓ-ē Como os hititas natildeo conheciam o som de ldquoōrdquo (ω) o -ū- poderia fazer esse papel (KLOEKHORST 2013 p 46) Assim a Troiacutee de Homero era a Trūiša hitita assim como o Aleacutexandros de Homero era o Alaksandu hitita Para mais informaccedilotildees ver sessatildeo V ndash Hipoacuteteses
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e a linguagem dos deuses em Homero Assim como inuacutemeros outros personagens da tradiccedilatildeo
miacutetica e das obras homeacutericas o segundo nome (mais incomum) do nosso heroacutei seria aquele
que o eleva agrave condiccedilatildeo de um ser divinizado visto que estaacute em constante relaccedilatildeo com
Afrodite e com Helena (que na tradiccedilatildeo miacutetica transforma-se em uma divindade apoacutes a
morte)
A autora tambeacutem defende que Paacuteris natildeo eacute um nome desprovido de etimologia (o que
caracterizaria sua origem estrangeira) poderia ser derivado de Paros uma ilha grega que tem
estreita relaccedilatildeo com o culto a Dioniso e com os festivais que lhe homenageiam atraveacutes da
reacutecita de versos iacircmbicos A poesia derivada do iacircmbico eacute de caraacuteter ldquoculpabilizanterdquo (blame
poetry) na qual se culpa algueacutem por algo disforizando essa pessoa Arquiacuteloco expoente
desse tipo de poesia era ele mesmo conhecido como Arquiacuteloco de Paros
Aleacutem disso ao observar que Paacuteris tem menos epiacutetetos que Aleacutexandros e que o
desenvolvimento formulaico daquela denominaccedilatildeo eacute precaacuterio em detrimento desta (o que natildeo
deveria acontecer pois Paacuteris eacute um nome que melhor se encaixa no hexacircmetro dactiacutelico) ela
chega agrave conclusatildeo de que aquela denominaccedilatildeo eacute mais recente do que Aleacutexandros sendo
impossiacutevel esta denominaccedilatildeo ser uma traduccedilatildeo daquela
Irene J F de Jong (1987) vai de encontro agrave tese de Scott argumentando que Paacuteris eacute um
nome utilizado no contexto troiano e Aleacutexandros em um contexto grego para ressaltar o
caraacuteter ldquoestrangeirordquo (DE JONG 1987 p 127) do personagem Segundo de Jong ldquoO poeta da
Iliacuteada ao manter o nome lsquotroianorsquo lsquoPaacuterisrsquo pode ter intencionado introduzir um elemento
lsquorealistarsquo na representaccedilatildeo dos troianos como falantes de uma liacutengua estrangeirardquo (DE JONG
1987 p 127) Assim ela concorda com John Scott pois Aleacutexandros continua sendo uma
traduccedilatildeo de Paacuteris Contudo ela confessa em uma nota de rodapeacute natildeo ter lido a tese de Ann
Suter embora a conheccedila (1987 p 127 n 4)
Discordando de todos os autores acima elencados Michael Lloyd (1989) argumenta que
natildeo haacute uma utilizaccedilatildeo consciente de Homero de Paacuteris e Aleacutexandros afirmando que natildeo haacute
distinccedilatildeo no emprego desses dois nomes em Homero e estendendo a anaacutelise a Euriacutepides Na
trageacutedia Paacuteris eacute utilizado mais vezes ainda do que Alexandre e Helena mesmo em As
Troianas utiliza os dois nomes para se referir a ele (LLOYD 1989 p 78) Ele conclui
assim que ldquoA nacionalidade do falante natildeo tem nada que ver com qual nome eacute usadordquo
(LLOYD 1989 p 77)
Essa discussatildeo eacute importante porque conforme o que os autores defendem pode-se
estabelecer uma relaccedilatildeo entre a denominaccedilatildeo dupla e o caraacuteter diferenciado de Paacuteris na Iliacuteada
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como representante de uma alteridade Entretanto acreditamos que essa dupla denominaccedilatildeo
tem a ver mais com um problema intratextual do que com um problema de definiccedilatildeo eacutetnica
pois concordamos com a anaacutelise de Ann Suter A definiccedilatildeo do caraacuteter diacutespar de Paacuteris como
um representante da alteridade e como um personagem-siacutentese das fronteiras eacutetnicas que
separas aqueus e troianos estaacute mais ligada ao discurso do poeta imbricado de uma ideologia
acerca dele e de seu grupo eacutetnico do que a escolha de um nome Esta estaacute mais ligada agrave
percepccedilatildeo de Paacuteris como um representante da aristocracia heroica
No seacuteculo V aC natildeo haacute duacutevidas de que os troianos pertencem a uma cultura Outra
de que eles satildeo baacuterbaroi Contudo natildeo podemos afirmar o mesmo para Homero Como
vimos muitos autores colocam os troianos como o Outro estrangeiro jaacute nas epopeias Eles
satildeo um Outro mas ainda natildeo deixam de partilhar um coacutedigo de conduta mesmo que com
suas reapropriaccedilotildees grego Satildeo essas reaprorpiaccedilotildees que configuram os troianos num grupo
eacutetnico distinto dos aqueus A ideia de que os troianos satildeo estrangeiros surge a posteriori
quando satildeo ldquofrigianizadosrdquo (HALL 1989 p 39) Um exemplo claro dessa ldquofrigianizaccedilatildeordquo
estaacute no diaacutelogo entre Orestes e o friacutegio em Orestes (vv 1506-1519 ndash grifos nossos)
ΟΡΕΣΤΗΣ ποῦ στιν οὗτος ὃς πέφευγεν ἐκ δόmicroων τοὐmicroὸν ξίφος ΦΡΥΞ προσκυνῶ σ᾽ ἄναξ νόmicroοισι βαρβάροισι προσπίτνων ΟΡΕΣΤΗΣ οὐκ ἐν Ἰλίῳ τάδ᾽ ἐστίν ἀλλ᾽ ἐν Ἀργείᾳ χθονί ΦΡΥΞ πανταχοῦ ζῆν ἡδὺ microᾶλλον ἢ θανεῖν τοῖς σώφροσιν ΟΡΕΣΤΗΣ οὔτι που κραυγὴν ἔθηκας Μενέλεῳ βοηδροmicroεῖν ΦΡΥΞ σοὶ microὲν οὖν ἔγωγ᾽ ἀmicroύνειν ἀξιώτερος γὰρ εἶ ΟΡΕΣΤΗΣ ἐνδίκως ἡ Τυνδάρειος ἆρα παῖς διώλετο ΦΡΥΞ ἐνδικώτατ᾽ εἴ γε λαιmicroοὺς εἶχε τριπτύχους θανεῖν ΟΡΕΣΤΗΣ δειλίᾳ γλώσσῃ χαρίζῃ τἄνδον οὐχ οὕτω φρονῶν ΦΡΥΞ οὐ γάρ ἥτις Ἑλλάδ᾽ αὐτοῖς Φρυξὶ διελυmicroήνατο ΟΡΕΣΤΗΣ ὄmicroοσον mdash εἰ δὲ microή κτενῶ σε mdash microὴ λέγειν ἐmicroὴν χάριν
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ΦΡΥΞ τὴν ἐmicroὴν ψυχὴν κατώmicroοσ᾽ ἣν ἂν εὐορκοῖmicro᾽ ἐγώ ΟΡΕΣΤΗΣ ὧδε κἀν Τροίᾳ σίδηρος πᾶσι Φρυξὶν ἦν φόβος ΦΡΥΞ ἄπεχε φάσγανον πέλας γὰρ δεινὸν ἀνταυγεῖ φόνον ORESTES Onde estaacute aquele que fugiu do palaacutecio agrave minha espada FRIacuteGIO (prosternando-se diante de Orestes) Eu te sauacutedo senhor prostrando-me segundo os modos baacuterbaros ORESTES Aqui natildeo estamos em Iacutelion mas em terra argiva FRIacuteGIO Em toda parte eacute mais doce viver do que morrer para os homens sensatos ORESTES Natildeo gritaste por acaso para que socorressem Menelau FRIacuteGIO Eu Pelo contraacuterio para que defendessem a ti Eacute que tu mereces mais ORESTES Foi entatildeo com justiccedila que a filha de Tindaacutereo morreu FRIacuteGIO Com toda a justiccedila Tivesse ela ao menos trecircs gargantas para morrer
ORESTES Por covardia procuras agradar com a liacutengua mas natildeo pensas assim no teu iacutentimo FRIacuteGIO Pois natildeo foi essa mulher a que arruinou a Heacutelade e com a Heacutelade os proacuteprios friacutegios ORESTES Jura ndash se natildeo mato-te ndash que natildeo falas para me agradar FRIacuteGIO Pela minha vida juro que eacute coisa por que farei jura sincera ORESTES Tambeacutem em Troia tinham assim medo do ferro os friacutegios todos FRIacuteGIO Afasta o glaacutedio Porque estando perto reflete uma morte terriacutevel
Aqui o friacutegio demostra ser um completo covarde prosterna-se grita Ele se mostra
extremamente temeroso pela sua vida e o seu discurso tenta dissuadir Orestes de assassinaacute-lo
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parece com o que se sucede no episoacutedio de Glauco e Diomedes no qual o embate fatal eacute
adiado E assim como Glauco o troiano de Orestes consegue que o priacutencipe o deixe vivo A
covardia a prosternaccedilatildeo e o grito satildeo traccedilos comuns de diferenciaccedilatildeo eacutetnica nas trageacutedias e
aqui aparece mais um elemento que jaacute se encontra na Iliacuteada a dissuasatildeo pela fala
Paacuteris aleacutem de ser um troiano eacute o causador da Guerra de Troia que fez perecer toda
uma linhagem de heroacuteis Em uma eacutepoca de guerra ele eacute a metaacutefora preferida tanto para os
espartanos (os inimigos na guerra) quanto para os atenienses perniciosos Nas trageacutedias de
Euriacutepides mesmo os espartanos satildeo representados de maneira pouco louvaacutevel a fronteira
entre o que eacute grego e o que natildeo eacute tambeacutem se encontra em crise e os espartanos (gregos) satildeo
comparados a baacuterbaros em suas trageacutedias O referencial de comparaccedilatildeo muitas vezes eacute o
troiano como acontece em Orestes Tiacutendaro pai de Helena ao reprimir Menelau por ouvir
Orestes matricida fala ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres estado muito tempo entre os baacuterbaros
[os troianos]rdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (EURIacutePIDES Orestes v 485)
Em Euriacutepides as questotildees acerca da alteridade entre aqueus e troianos e da etnicidade
do povo grego ficam mais claras em detrimento da Iliacuteada esse tragedioacutegrafo jaacute denomina os
troianos de baacuterbaroi termo que inexiste em Homero como vimos Euriacutepides encena suas
peccedilas no seacuteculo V aC num contexto no qual a poacutelis dos atenienses se encontra consolidada
mas jaacute entrava em crise em virtude da Guerra do Peloponeso Segundo Karl Reinhardt o
teatro euridipiano eacute exatamente o termocircmetro da crise A geraccedilatildeo jovem se coloca contra a
antiga mas ambas tecircm a chance de falar quase simultaneamente atraveacutes de seus poetas ndash
Euriacutepides e Soacutefocles ndash pois eles vivem num mesmo contexto (REINHARDT 2011 p 20)
O interessante eacute perceber que algumas caracteriacutesticas troianas vatildeo se perpetuar na
configuraccedilatildeo dos personagens sendo utilizadas para designar os baacuterbaros em geral o Outro
homogecircneo grego sobretudo os persas outro por excelecircncia O desrespeito agrave hospitalidade
comum ao Ciclope da Odisseia e a Paacuteris na Iliacuteada retornaraacute na trageacutedia como sinal de
barbaacuterie Quando Menelau chega ao Egito diz ldquoNenhum homem tem um coraccedilatildeo tatildeo
incivilizado a ponto de natildeo me dar comida ao ouvir meu nomerdquo [ἀνὴρ γὰρ οὐδεὶς ὧδε
βάρβαρος φρένας ὃς ὄνοmicro᾽ ἀκούσας τοὐmicroὸν οὐ δώσει βοράν] (EURIacutePIDES Helena vv
501-502) Seraacute comum por exemplo atribuir aos persas o domiacutenio do arco e contrastaacute-lo com
o modo grego de fazer guerra o tradicional face a face (HALL 1989 p 85) Eacute sobre esse
aspecto o modo de fazer guerra que nos debruccedilaremos em nosso proacuteximo capiacutetulo
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CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI
ldquoEu estarei com vocecirc
Todas as vezes que contar a minha histoacuteria Por ser tudo o que eu fizrdquo
(Remember Me ndash James Horner)
Vamos analisar nesse capiacutetulo como Paacuteris eacute representado como heroacutei e guerreiro e
como essa representaccedilatildeo se liga agrave nossa comparaacutevel Defendemos que Paacuteris eacute um exemplo de
como se agir na Iliacuteada visto que essa eacute a caracteriacutestica primordial do heroacutei homeacuterico e em
Euriacutepides o seu estatuto heroico eacute afetado pois ele eacute visto mais um ldquopastorrdquo (boukoacutelos v
Ifigecircnia em Aacuteulis v 574) ldquoescravordquo (douacutelos v Alexandre fr 48) ldquomuacutesicordquo (Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 576-577) e principalmente ldquobaacuterbarordquo designaccedilotildees comuns a ele na poesia traacutegica
que destoam da construccedilatildeo da personalidade heroica ideal Isso natildeo significa contudo que a
caracterizaccedilatildeo feita por Homero natildeo influencie na construccedilatildeo de Paacuteris em Euriacutepides visto que
defendemos que jaacute em Homero existe uma alteridade entre aqueus e troianos
Se o filme Troia (dir Wolfgang Petersen EUA 2004) natildeo ganhou muita
popularidade pelo excesso de liberdade poeacutetica em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da Iliacuteada essa epiacutegrafe
da muacutesica-tema do filme Remember Me escrita por James Horner e interpretada por Josh
Groban e Tanja Tzarovska pelo contraacuterio traz algo intriacutenseco agrave caracterizaccedilatildeo do heroacutei ele eacute
tudo o que ele faz em batalha Satildeo as faccedilanhas heroicas que datildeo dinamicidade agrave epopeia que
satildeo de fato o material sobre o qual elas se debruccedilam Na trageacutedia essas faccedilanhas e os dramas
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dos heroacuteis miacuteticos satildeo o material cataacutertico o qual o tragedioacutegrafo utiliza para compor suas
tramas Os atos dos heroacuteis satildeo exemplares para aqueles que os ouvem natildeo os heroacuteis per se
Essa ideia jaacute se encontra na Iliacuteada e para tratarmos de Paacuteris essa noccedilatildeo nos eacute
fundamental pois ele eacute um heroacutei agrave medida que demonstra atraveacutes dos seus atos como um
homem deve agir O locus privilegiado de atuaccedilatildeo de um heroacutei nesse poema eacute a batalha o
tema mesmo da Iliacuteada eacute a Guerra de Troia em si com os heroacuteis aqueus e troianos se
enfrentando fisicamente Esse cenaacuterio beacutelico encontramos somente na Iliacuteada pois em
Euriacutepides natildeo existe a possibilidade de analisarmos o comportamento de Paacuteris como um
combatente ele natildeo eacute mostrado como um nas suas trageacutedias Aliaacutes todas as trageacutedias do ciclo
troiano que analisamos natildeo se desenrolam na guerra Alexandre se passa antes da guerra
enquanto todas as outras se passam depois
Isso denota uma preferecircncia de Euriacutepides por mostrar um ambiente poacutes-beacutelico ele
trabalha com as consequecircncias de uma guerra para um povo Assim satildeo comuns temaacuteticas
que dizem respeito ao dilaceramento do nuacutecleo familiar da escravizaccedilatildeo daquele que era
livre privilegiando agraves vezes certos tipos de personagens que agrave primeira vista natildeo mereceriam
um destaque em uma obra traacutegica como por exemplo as escravas troianas Eacute por esse motivo
que muitos autores afirmam que Euriacutepides daacute voz a esses personagens ldquomarginaisrdquo (SAIumlD
2002 p 62) pois a degradaccedilatildeo que separa os extremos sociais (gregobaacuterbaro livreescravo)
eacute bem mais temiacutevel em uma sociedade em guerra a esposa do cidadatildeo pode virar a concubina
do inimigo Eacute soacute Atenas perder a guerra
A definiccedilatildeo do caraacuteter heroico muda ao longo dos seacuteculos sendo o heroacutei traacutegico
semelhante mas natildeo igual ao homeacuterico Gyumlorgy Lukaacutecs filoacutesofo alematildeo crecirc que o heroacutei
traacutegico traz um ldquobrilho renovadordquo sobre o homeacuterico explicando-o e transfigurando-o
(LUKAacuteCS 2000 p 33) Jacqueline de Romilly mostra como o sofrimento eacute intriacutenseco ao
heroacutei traacutegico ldquoPara ser traacutegico o heroacutei deve sofrer [] no espiacuterito mesmo do gecircnero traacutegico
a necessidade de pintar heroacuteis imperfeitos e atormentados em uma palavra de toma-los ndash
eles as exceccedilotildees ndash como paradigma da condiccedilatildeo humana e de seus malesrdquo (2013 p 210)
Na trageacutedia a noccedilatildeo de hamartiacutea (falha) se torna mais latente e o heroacutei eacute justamente
aquele a quem seus erros implicam em uma trama por exemplo Paacuteris em Alexandre eacute o
camponecircs eacute o habitante do ambiente selvagem (a montanha ndash PELOSO 2002 p 37) que
penetra na cidade reivindicando um reconhecimento o qual a priori natildeo lhe seria adequado
(os precircmios oriundos da vitoacuteria nos jogos troianos) Graccedilas aos erros de Clitemnestra e
Orestes os Aacutetridas sofrem uma desestruturaccedilatildeo familiar que vai se desenrolar em Orestes
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O heroacutei homeacuterico tambeacutem eacute falho mas essa falha estaacute ligada agrave aacutetē (perdiccedilatildeo) se
ocasiona uma situaccedilatildeo de desequiliacutebrio e o heroacutei tem que fazer por onde revertecirc-la Paacuteris e
Aquiles se assemelham nesse ponto ambos incorrem em aacutetē A causa da perdiccedilatildeo de Paacuteris eacute o
desrespeito da eacutetica hospitaleira retirando Helena do palaacutecio de seu esposo e a consequecircncia
direta eacute a proacutepria Guerra de Troia Jaacute a causa da perdiccedilatildeo de Aquiles eacute a recusa da suacuteplica
Agamecircmnon reconhece seu estado de aacutetē causado pela privaccedilatildeo do geacuteras (privileacutegio) de
Aquiles (a escrava troiana Briseida) e suplica a Aquiles seu retorno agrave guerra atraveacutes de uma
litḗ (suacuteplica) mas este a ignora Impedir que a aacutetē de outrem seja eliminada com a recusa de
uma suacuteplica acaba gerando um estado de aacutetē no proacuteprio Aquiles
O historiador Christopher Jones mostra como o termo hḗrōs (heroacutei) muda de acepccedilatildeo
ao longo tempo primeiramente essa palavra foi utilizada para denominar aqueles seres
puacuteblicos extraordinaacuterios executores de faccedilanhas mais extraordinaacuterias ainda os quais se
configuravam nos personagens principais das histoacuterias contadas pelas epopeias Com o passar
dos seacuteculos essa designaccedilatildeo foi ganhando uma nova roupagem e se infiltrando cada vez mais
nos interstiacutecios da sociedade e da vida privada Segundo Jones isso natildeo eacute uma decadecircncia
tampouco uma ressignificaccedilatildeo do termo visto que ele continua a ser usado para denominar
aqueles que tecircm poder no poacutes-morte mesmo numa acepccedilatildeo cristatilde O que acontece eacute a difusatildeo
e a continuidade da utilizaccedilatildeo de hḗrōs possibilitada pelo processo de expansatildeo da cultura
helecircnica o qual culmina no helenismo (c IV-I aC)
O termo passa a designar natildeo somente os heroacuteis da mitologia mas tambeacutem as pessoas
que se destacam na vida puacuteblica sobretudo ldquoaqueles que caiacuteram na guerra ou deram suas
vidas a serviccedilo de suas comunidades de outras maneirasrdquo (JONES 2010 p 1) Para Jones os
heroacuteis homeacutericos satildeo todos aqueles que lutaram em Troia seja grego ou troiano e tecircm mais a
ver com uma acepccedilatildeo ligada a senhor (lord) do que a guerreiro (warrior) No entanto como
vimos eacute na guerra que esse senhor pode demonstrar seu valor um senhor eacute necessariamente
um guerreiro no mundo homeacuterico Jones entretanto mostra uma resistecircncia da Atenas
Claacutessica em designar um morto comum de hḗrōs o que significa que eles mantecircm um certo
tradicionalismo em considerar apenas os heroacuteis mitoloacutegicos como hḗrōes (JONES 2010 p 3
4 e 21)
Em nossa pesquisa esbarramos sempre com a ideia de que Paacuteris na verdade seria um
anti-heroacutei pois ele apresenta uma seacuterie de atitudes que o caracterizariam como sendo uma
pessoa covarde medrosa etc Em primeiro lugar eacute necessaacuterio termos em mente que os heroacuteis
natildeo satildeo uma massa indistinta eles constituem um grupo social fechado com um coacutedigo de
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conduta modelar mas natildeo podemos nos esquecer de que uma sociedade eacute composta de
indiviacuteduos cada um com sua personalidade especiacutefica O eu natildeo se anula por causa do noacutes
ele se agrega ao noacutes contribuindo com sua singularidade ao todo
Vaacuterios autores se debruccedilaram de algum modo sobre os heroacuteis da Antiguidade de
maneira mais ou menos ampla tentando defini-los Joseph Campbell Robert Aubreton
Cedric Whitman Karl Kereacutenyi Gregory Nagy Seth L Schein Mariacutea Cecilia Colombani
Anastasia Serghidou David J Lunt e Christopher Jones Agrave exceccedilatildeo de Campbell Kereacutenyi
Serghidou e Lunt geralmente eles datildeo destaque aos heroacuteis homeacutericos Eacute interessante perceber
que natildeo haacute divergecircncia de opiniotildees mas complementaridade
Joseph Campbell foi pioneiro no tratamento dos heroacuteis seu estudo eacute de fins da deacutecada
de 1940 Muito influenciado pela Psicanaacutelise procura delinear o perfil do heroacutei em geral em
O heroacutei de mil faces Ele cria uma tipologia atraveacutes de um estudo comparado de vaacuterias
mitologias que abrange todos os heroacuteis de todas as eacutepocas e tradiccedilotildees epopeicas afirma que
esse personagem passa obrigatoriamente por doze estaacutegios em sua vida ela eacute permeada por
ritos de passagem Campbell natildeo fala de um heroacutei especiacutefico ou de uma determinada tradiccedilatildeo
heroica ele conceitua o heroacutei o vecirc como um homem que morreu como um ldquohomem
modernordquo mas que como um ldquohomem eternordquo ou seja ldquoaperfeiccediloado natildeo especiacutefico e
universalrdquo renasce para ldquoretornar ao nosso meio transfigurado e ensinar a liccedilatildeo de vida
renovada que aprendeurdquo (CAMPBELL 2007 p 28) Desse modo ele corrobora o valor
educacional que um heroacutei possui para aqueles que o rememoram aleacutem de pontuar o seu
caraacuteter mortal
Na deacutecada de 1950 Robert Aubreton escreveu um livro introdutoacuterio sobre Homero que
aborda de maneira diferente os heroacuteis Esse autor crecirc que haja uma psicologia em Homero
afirmando que a representaccedilatildeo deles eacute tatildeo humana que ldquoacabamos por consideraacute-lo natildeo mais
como heroacutei sobre-humano mas como homem igual a noacutes que por sua virtude e piedade
chega a se superarrdquo (AUBRETON 1968 p 188) Essa ldquopsicologia homeacutericardquo consiste
sobretudo na consideraccedilatildeo do heroacutei natildeo apenas em seu caraacuteter coletivo mas em sua
individualidade em sua especificidade Desse modo Aubreton divide esse capiacutetulo o qual ele
dedica aos heroacuteis de acordo com sua anaacutelise de cada um daqueles que ele crecirc serem
importantes nas epopeias Aquiles Paacutetroclo Agamecircmnon Heitor Paacuteris Menelau
Androcircmaca Helena Odisseu Peneacutelope Telecircmaco Nausiacutecaa e Eumeu Observemos que ele
inclui as mulheres (ldquoheroiacutenasrdquo segundo o autor) e o porqueiro Eumeu nessa seleccedilatildeo
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aumentando a gama de possibilidades de definiccedilatildeo do heroacutei ele eacute um(a) personagem miacutetico
corroborando a ideia de Christopher Jones acerca do que eacute o hḗrōs na eacutepica
Enquanto Aubreton publicava seu livro Cedric Whitman escrevia seu Homer and the
heroic tradition lanccedilado em 1958 e bem recebido quase todos os autores que trabalham com
heroacuteis mencionam seu trabalho em seus proacuteprios Ele tenta compreender a Iliacuteada agrave luz das
noccedilotildees que regem aquela sociedade representada por Homero (e a relaccedilatildeo existente entre os
heroacuteis e essa sociedade) Para esse autor a Iliacuteada jaacute apresenta um discurso bem proacuteximo do
traacutegico no qual a humanidade dos heroacuteis eacute representada de modo mais acentuado e a
demonstraccedilatildeo de sentimentos (como raiva amor compadecimento) eacute comum Whitman
tambeacutem trabalha com a noccedilatildeo do heroacutei como modelo como aquele que passa todas essas
noccedilotildees aos ouvintes da epopeia construindo um estudo de caso de Aquiles
No mesmo ano Karl Kereacutenyi publicou o seu Os Heroacuteis Gregos o livro eacute o segundo
volume da seacuterie Mitologia Grega cujo primeiro volume trata dos deuses gregos A proposta
do livro eacute apresentar os heroacuteis gregos a leitores acadecircmicos ou natildeo debruccedilando-se natildeo
somente sobre os relatos escritos sobre eles mas tambeacutem a cultura material tratando tambeacutem
da questatildeo do culto ao heroacutei e de sua historicidade Para Kereacutenyi os heroacuteis se mostram
ldquoentrelaccedilados com a histoacuteria com os acontecimentos natildeo de um tempo primevo que estaacute fora
do tempo mas do tempo histoacuterico [] Eles surgem diante de noacutes como se tivessem de fato
existidordquo (KEREacuteNYI 1998 p 17) Ao escrever sobre a guerra de Troia mais uma vez
Aquiles eacute o grande destaque da anaacutelise assim como faz nosso proacuteximo autor
Gregory Nagy em seu livro The best of the Achaeans concepts of the hero in
Archaic Greek poetry (1979) trata dessa tradiccedilatildeo anterior agrave composiccedilatildeo dos eacutepicos
defendendo que sua unidade se daacute justamente por essa origem em comum deles Nagy procura
delinear um perfil de Aquiles o qual ele considera o principal heroacutei da Iliacuteada comparando-o
com outros heroacuteis (Heitor e Neoptoacutelemo) e resgata do eacutepico uma seacuterie de noccedilotildees (como
kleacuteos aacutekhos peacutenthos timḗ) imprescindiacuteveis tanto para a compreensatildeo da funccedilatildeo das epopeias
quanto dos cultos heroicos Ele defende que esse culto surgiu simultaneamente agrave composiccedilatildeo
dos eacutepicos e que os jogos ldquode coroardquo (Oliacutempicos Iacutestmicos Deacutelficos e Nemeios) satildeo oriundos
da praacutetica de jogos fuacutenebres possuindo pois uma estrita relaccedilatildeo com o proacuteprio culto ao heroacutei
Nas epopeias no entanto natildeo haacute a menccedilatildeo ao culto dos heroacuteis pelo fato de esse culto ser
estritamente local ele defende que jaacute existe uma conotaccedilatildeo pan-helecircnica nelas e colocar uma
praacutetica religiosa que destoe da religiatildeo oliacutempica comprometeria esse caraacuteter
81
Seth L Schein em The mortal hero an introduction to Homerrsquos Iliad (1984)
aproxima-se muito da anaacutelise de Nagy com relaccedilatildeo ao culto heroico ele natildeo existe nas
epopeias de Homero porque iria de encontro a toda a pan-helenicidade dos poemas definida
pela representaccedilatildeo apenas do culto aos deuses olimpianos Ele natildeo faz um estudo de caso de
nenhum heroacutei tentando abordaacute-los de maneira a tentar defini-los dentro da Iliacuteada Schein se
aproxima de Whitman em sua abordagem ao definir o heroacutei sob a oacutetica acentuada do humano
comparando o discurso das epopeias ao discurso traacutegico ele enfatiza o fato da morte ser a
uacutenica certeza que se tem acerca do destino de um heroacutei A proacutepria etimologia da palavra
hḗrōs denotaria isso
Hērōs parece ser etimologicamente relacionado com a palavra hōrē ldquoestaccedilatildeordquo [] em Homero hōrē significa em particular a ldquoestaccedilatildeo da primaverardquo e um ldquoheroacuteirdquo eacute ldquosazonalrdquo quando ele chega ao seu esplendor como flores na primavera soacute para ser cortado uma vez e para sempre (SCHEIN 2010 p 69)
Mariacutea Cecilia Colombani dedica dois pequenos toacutepicos aos heroacuteis em seu livro
introdutoacuterio sobre Homero (2005) Eles tratam da loacutegica aristocraacutetica e da funccedilatildeo da
soberania Colombani aborda uma seacuterie de noccedilotildees caras agrave aristocracia guerreira e que
perpassam todo o coacutedigo de conduta dessa sociedade que Homero representa Ela faz das
palavras de Louis Gernet que na deacutecada de 1960 publicou seu Anthropologie de la Gregravece
Antique as suas ldquoOs heroacuteis formam uma espeacutecie aparte entre os deuses e os homens seus
representantes satildeo efetivamente homens mas homens que depois da morte adquiriram uma
condiccedilatildeo e estatuto sobre-humanosrdquo (GERNET apud COLOMBANI 2005 p 58) Esses
homens segundo Colombani satildeo representantes de valores sociais (COLOMBANI 2005 p
60) e satildeo rememorados pela sociedade poliacuteade como exemplos a serem seguidos
Anastasia Serghidou escreveu um artigo sobre o heroacutei traacutegico especificamente no livro
Heacuteros et heroiumlnes dans les mythes et les cultes grecs organizado por Vinciane Pirenne-
Delforge e Emilio Suaacuterez de la Torre Ela acredita que ele eacute ldquofundado sobre a ideia de uma
divinizaccedilatildeo impossiacutevelrdquo sendo a imagem do heroacutei na trageacutedia ldquosemelhante ao homem mortal
ao qual o modelo heroico se coloca como aquele do personagem livre e do bom cidadatildeordquo
(SERGHIDOU 2000 p 1) A autora trabalha com a imagem do heroacutei decaiacutedo (heacuteros deacutechu)
colocando em primeiro plano a anaacutelise da dicotomia livre versus escravos O heroacutei eacute o homem
livre construiacutedo em contraposiccedilatildeo ao escravo e estaacute mais perto dos humanos do que os heroacuteis
de outrora
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David J Lunt em sua tese Athletes heroes and the quest for imortality in Ancient
Greece (2010) tambeacutem retorna agrave questatildeo do culto aos heroacuteis aproximando-se tambeacutem da
abordagem de Nagy embora natildeo o mencione em sua discussatildeo bibliograacutefica Seu destaque
estaacute em mostrar como o heroacutei homeacuterico serviu de exemplo para os homens da poacutelis sobretudo
para os atletas Para isso ele delineia com mais precisatildeo o que seria um heroacutei para os gregos e
os modos pelos quais eles foram rememorados comeccedilando pelos heroacuteis homeacutericos passando
por Teseu os Dioacutescuros (Castor e Poacutelux) e Heacuteracles ateacute chegar nos heroacuteis de ldquocarne e ossordquo
que foram rememorados nas competiccedilotildees atleacuteticas atraveacutes das reacutecitas em sua homenagem
No mesmo ano Christopher Jones lanccedila New heroes in Antiquity from Achilles to
Antinoos livro cujo objetivo como vimos eacute mostrar como o termo hḗrōs (heroacutei) foi utilizado
ao longo do tempo para denominar natildeo mais aqueles grandes heroacuteis do passado mas tambeacutem
pessoas comuns que se destacavam de algum modo na sociedade ressaltando como a difusatildeo
dessas histoacuterias miacuteticas foram imprescindiacuteveis para que essa definiccedilatildeo penetrasse nos
interstiacutecios das sociedades do periacuteodo claacutessico Assim sua anaacutelise perpassa desde o heroacutei
homeacuterico (miacutetico) ateacute o heroacutei ldquoheroicizadordquo no caso o romano Antiacutenoo que morreu em 130
dC
Em virtude dessa revisatildeo bibliograacutefica de tratamento do heroacutei podemos concluir que a)
a mortalidade do heroacutei eacute constantemente reforccedilada b) eles natildeo estatildeo ligados apenas a um
plano mortal mas a um divino tambeacutem seja por terem parentescos com deuses seja por
serem protegidos de um seja por serem cultuados como divindades apoacutes suas mortes c) o
heroacutei eacute exemplar pois eacute portador de um coacutedigo de conduta no qual as suas aretaiacute estatildeo
sempre postas agrave prova sobretudo na batalha e assim os mortais comuns querem chegar o
mais proacuteximo possiacutevel dessa gloacuteria heroica seja associando um heroacutei agrave sua famiacutelia seja sendo
vitorioso em suas atividades d) eles tecircm uma materialidade histoacuterica pois os gregos criam na
veracidade dos mitos em que eles acreditavam e) o heroacutei traacutegico eacute mais falho do que o
homeacuterico o qual sempre procura restabelecer sua posiccedilatildeo de destaque com suas accedilotildees
Nenhum desses autores que trabalham diretamente com os heroacuteis fazem um estudo
especiacutefico de comparaccedilatildeo entre os heroacuteis homeacutericos e traacutegicos ou sobre Paacuteris seja na poesia
eacutepica seja na poesia traacutegica Contudo essas obras aqui mencionadas seratildeo fulcrais para a
anaacutelise de Paacuteris pois ele pertence agrave categoria dos heroacuteis
Na Iliacuteada Paacuteris eacute o heroacutei da paixatildeo seus epiacutetetos natildeo satildeo beacutelicos como os de outros
personagens e ele natildeo eacute o melhor guerreiro troiano como veremos Tambeacutem natildeo eacute um
personagem belicoso Como lembra Aubreton ldquoHomero faz de Paacuteris o homem amoroso por
83
excelecircncia e que natildeo pode resistir agrave paixatildeo que os deuses lhe inculcaramrdquo (AUBRETON
1968 p 202)
Enquanto o nosso heroacutei se arma para a guerra eacute designado por dicircos (divino
semelhante aos ceacuteus ndash ldquosky-likerdquo (SUTER 1984 p 59) epiacuteteto comum a outros personagens
como seu proacuteprio irmatildeo Tambeacutem aparece outro epiacuteteto recorrente de Paacuteris ldquomarido de
Helena cacheadardquo (Eleacutenēs poacutesis ēykoacutemoio) reforccedilando sua relaccedilatildeo com Helena Ann Suter
chama a atenccedilatildeo que essa construccedilatildeo formulaica aparece somente em relaccedilatildeo a Zeus e Hera
(1984 p 68) e que das cinco vezes que aparece quatro satildeo dentro do campo de batalha
(1984 p 70) Isso significa para a autora que ldquoa sua imagem como Ἑλένης πόσις ἠϋκόmicroοιο
eacute aquela de um guerreiro bem-sucedido e conselheiro [] Talvez Paacuteris natildeo se sinta em casa
no campo de batalha por natureza mas quando ele de fato luta eacute por causa de sua relaccedilatildeo
com Helenardquo (1984 p 70-1) Eacute o que Robert Aubreton afirma
Tendo conquistado a sua ldquodeusardquo [Helena] nada mais interessa a Paacuteris senatildeo conservaacute-la Para tanto satildeo-lhes necessaacuterias a vida e a salvaguarda de Troacuteia Ele soacute luta em caso extremo quando Troia corre perigo quando por conseguinte seu amor estaacute ameaccedilado Eacute hostil a qualquer compromisso que possa resultar em devolver a Menelau aquela que lhe arrebatou (AUBRETON 1956 p 169)
Essa relaccedilatildeo intriacutenseca de Paacuteris com a paixatildeo (seja pelos seus epiacutetetos seja pela
relaccedilatildeo protecional que Afrodite estabelece com ele) tem uma relaccedilatildeo latente com a sua
proacutepria atuaccedilatildeo na batalha como excelente heroacutei do amor ele deixa a desejar como heroacutei
beacutelico Amor e guerra natildeo combinam Paacuteris treme e muda de cor ao se defrontar com Menelau
(III v 35) ele fica ocirckhroacutes paacutelido
Ainda na Iliacuteada a makhlosyacutenē a luxuacuteria de Paacuteris aparece como a engrenagem-
princiacutepio dessa aacutetē cuja consequecircncia eacute a proacutepria guerra (visto que se remete agrave escolha de
Afrodite) (XXIV vv 25-30) Em Euriacutepides essa ideia de que o enlace amoroso entre Paacuteris e
Helena eacute o causador da guerra retorna (As Troianas vv 398-399 vv 780-781 Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 467-468 Helena vv 25-30 vv 223-224 vv666-668) embora o tragedioacutegrafo
oscile dependendo da obra e de quem eacute o enunciador (se grego ou troiano) em atribuir a
Helena um papel ativo ou passivo em sua retirada do palaacutecio
No Canto VII da Iliacuteada (vv 354-365) os troianos se reuacutenem em assembleia Antenor
um conselheiro afirma que o que se deve fazer eacute devolver Helena e os tesouros aos gregos
Paacuteris no entanto descarta essa possibilidade natildeo se opondo no entanto a entregar os bens
materiais O problema eacute Helena ele jamais a devolveraacute Paacuteris natildeo faz questatildeo das riquezas as
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quais parece natildeo lhe faltam no Canto XI ele inclusive utiliza-se delas para ldquoincentivarrdquo
Antiacutemaco a fazer oposiccedilatildeo contra a devoluccedilatildeo da esposa ldquo[Teucro] Prostra a Pisandro
depois e o nas pugnas intreacutepido Hipoacuteloco filhos de Antiacutemaco o saacutebio que mais do que
todos fazia oposiccedilatildeo para Helena natildeo ser restituiacuteda ao marido ndash fruto de belos presentes por
parte de Paacuteris muito ourordquo [αὐτὰρ ὃ Πείσανδρόν τε καὶ Ἱππόλοχον microενεχάρmicroην υἱέας
Ἀντιmicroάχοιο δαΐφρονος ὅς ῥα microάλιστα χρυσὸν Ἀλεξάνδροιο δεδεγmicroένος ἀγλαὰ δῶρα
οὐκ εἴασχ᾽ Ἑλένην δόmicroεναι ξανθῷ Μενελάῳ] (XI vv 122-125 ndash grifos nossos) Fica claro
que Paacuteris ldquocomprardquo a opiniatildeo de Antiacutemaco com ldquoaglaaacute docircrardquo e ldquomaacutelista khrysogravenrdquo
Essa ideia de que os troianos possuem ouro em demasia eacute recorrente em Euriacutepides Em
Heacutecuba (vv 10-12) Polidoro relata que Priacuteamo ldquocomigo muito ouro enviourdquo [πολὺν δὲ σὺν
ἐmicroοὶ χρυσὸν ἐκπέmicroπει ndash grifos nossos] para o traacutecio que o hospedou (e acabou o matando
para ficar com todo esse ouro) Novamente (vv 492-493) os troianos satildeo mostrados
possuindo muito ouro quando Taltiacutebio pergunta se a mulher que ele vecirc eacute Heacutecuba a ldquorainha
dos friacutegios de muito ourordquo [ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν] Em As Troianas no
agṓn entre Heacutecuba e Helena a primeira ressalta que a segunda ldquoVislumbrando-o [Paacuteris] com
trajes baacuterbaros e com ouro luzindo teu espiacuterito desvairou-serdquo [ὃν εἰσιδοῦσα βαρβάροις
ἐσθήmicroασι χρυσῷ τε λαmicroπρὸν ἐξεmicroαργώθης φρένας ndash grifos nossos] (vv 991-992)
Em Helena o adjetivo polykhryacutesos (no acusativo plural polykhryacutesous) eacute usado para
designar os doacutemoi (construccedilotildees) troianos Em Ifigecircnia em Aacuteulis Agamemnon comenta o
princiacutepio da guerra quando ldquoO homem que julgou as deusas (assim eacute a histoacuteria que os
homens contam) veio da Friacutegia para a Lacedemocircnia vestido roupas de cores vibrantes e
brilhando com joias de ouro a luxuacuteria dos baacuterbarosrdquo [ἐλθὼν δ᾽ ἐκ Φρυγῶν ὁ τὰς θεὰς
κρίνων ὅδ᾽ ὡς ὁ microῦθος Ἀργείων ἔχει Λακεδαίmicroον᾽ ἀνθηρὸς microὲν εἱmicroάτων στολῇ
χρυσῷ δὲ λαmicroπρός βαρβάρῳ χλιδήmicroατι] (vv 71-74) Esse excerto revela que o ouro eacute a
ldquoluxuacuteria dos baacuterbarosrdquo a predileccedilatildeo pelo ouro eacute um costume do Outro e o distingue dos
gregos A helenista Helen Bacon afirma que Euriacutepides eacute menos detalhista que Soacutefocles e
Eacutesquilo ao descrever as vestimentas baacuterbaras embora o embate com o baacuterbaro esteja mais
presente em suas obras mas que o ouro em excesso a riqueza das roupas eacute um elemento
distintivo do baacuterbaro (BACON 1955 p 87 123 e 124) servindo assim como um marcador
eacutetnico Muito ouro eacute sinal de excesso por isso eacute que os baacuterbaros satildeo caracterizados com o
adorno de muitas joias (HALL 1989 p 80)
Em Androcircmaca esse adjetivo (no dativo polychryacutesō) eacute novamente utilizado para
designar os troianos (v 2) Contudo a proacutepria Hermiacuteone (v 147-154) uma grega usa muito
85
ouro e a proacutepria Helena se deixa seduzir pelo ouro de Paacuteris como vimos no excerto de As
Troianas Natildeo podemos deixar de observar que Hermione eacute uma espartana
Os espartanos nas obras de Euriacutepides satildeo representados como pessoas que se
assemelham aos baacuterbaros como fica claro por exemplo na passagem em que Tiacutendaro
recrimina Menelau dizendo-lhe ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres vivido tanto tempo entre os
baacuterbarosrdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (Orestes v 485) Euriacutepides os
representa dessa maneira porque eles satildeo os inimigos dos atenienses na Guerra do
Peloponeso o grego pode voltar a um estado de barbaacuterie como acontece com os espartanos
Assim representar Hermiacuteone usando muito ouro ou depreciar Menelau (como acontece em
Orestes ou Ifigecircnia em Aacuteulis que inclusive ganha o primeiro precircmio na competiccedilatildeo traacutegica
em que foi encenada) eacute representar o espartano como semelhante ao baacuterbaro porque eacute digno
de cometer atos baacuterbaros sobretudo durante a guerra
Entretanto por mais que Euriacutepides faccedila essas correlaccedilotildees dada a natureza ldquotemaacutetica e
simboacutelicardquo de suas obras (BACON 1955 p 124) o troiano ainda eacute o referencial de barbaacuterie
em Androcircmaca Hermione afirma agrave personagem-tiacutetulo que ldquonatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade helecircnicardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) pedindo para que ela natildeo
introduza costumes do seu ldquobaacuterbaron geacutenosrdquo laacute Em Orestes a caracterizaccedilatildeo do friacutegio como
um homem medroso covarde que se prosterna e elabora um discurso defensivo para manter a
sua vida corrobora seu pertencimento ao domiacutenio dos baacuterbaros
Na Iliacuteada o excesso de ouro de Troia natildeo designa barbaacuterie mas definitivamente
designa uma alteridade Somente os troianos satildeo relacionados agrave posse do ouro (II vv 229-
231) e eles satildeo justamente o inimigo na guerra Embora os heroacuteis homeacutericos sejam regidos
por um ideal de conduta comum os troianos satildeo diferentes dos aqueus o uso que eles fazem
desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes
Paacuteris se utiliza de todos os meios para manter a posse de sua amada Helena desde
suas riquezas ateacute mesmo sua vida ele soacute entra em batalha quando se vecirc a ponto de perde-la
Por isso ele natildeo possui tantos epiacutetetos ligados agrave guerra Heroacuteis como Aquiles Agamecircmnon
Menelau Odisseu e o proacuteprio Heitor satildeo qualificados com adjetivos relacionados ao ambiente
beacutelico No Canto III da Iliacuteada no qual Helena mostra alguns heroacuteis a Priacuteamo fica evidente
isso Vejamos os epiacutetetos desses guerreiros em comparaccedilatildeo aos de Paacuteris no supracitado
Canto
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Agamemnon ldquohomem de aspecto imponenterdquo (v 166) ldquorei poderosordquo (v 178) ldquotatildeo belo e
de tal corpulecircnciardquo (v 167) ldquotatildeo belo conspectordquo (v 169) ldquomajestade tatildeo
granderdquo (v 170) ldquode Atreu descendenterdquo (v 178) ldquotatildeo grande rei chefe de
homens quatildeo forte e notaacutevel guerreirordquo (v 179) ldquoventurosordquo (v 182) ldquofilho
dileto dos deusesrdquo (v182)
Odisseu ldquode espaldas mais largas de ver e de peito mais amplordquo (v 194) ldquoguieiro
velosordquo (v 197) ldquoastucioso guerreirordquo (v 200) ldquoem toda sorte de ardis
entendido e varatildeo prudentiacutessimordquo (v 203) ldquoo astuciosordquo (v 216) ldquoindiviacuteduo
bisonho que o cetro na matildeo mantivesse () imaginara talvez ser pessoa
inexperta ou insensatardquo (vv 218-220)
Menelau ldquode Ares forte disciacutepulordquo [areḯphilos] (v 206)
Aacutejax
Telamocircnio
ldquotatildeo belo e de tal corpulecircnciardquo (v 226) ldquode bem maior estatura e de espaldas
mais largas que os outrosrdquo (v 227) ldquobaluarte dos homens Aquivosrdquo (v 229)
ldquogiganterdquo (v 229)
Heitor ldquode penacho ondulanterdquo (v 83)
Paacuteris ldquodivordquo [theoeidḗs dicircos] (vv 16 37 100 328 437) ldquobelordquo (v 27) ldquode
formas divinasrdquo (v 58) ldquode belas feiccedilotildeesrdquo (v 39) ldquosedutor de mulheresrdquo (v
39) ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a belezardquo (v 54) ldquomarido
de Helena de belos cabelosrdquo (v 328)
Agamemnon eacute o aacutenax ele eacute o chefe da expediccedilatildeo rei de todos os reis eacute o chefe de
homens o notaacutevel guerreiro aqui estaacute denotado seu aspecto beacutelico sobretudo pela sua
habilidade de comando Odisseu com a sua astuacutecia tambeacutem possui um aspecto beacutelico isso se
daacute porque essa meacutetis natildeo estaacute ligada apenas agrave dissimulaccedilatildeo agrave mentira mas ao planejamento
mesmo necessaacuterio a uma guerra Eacute ele que tem a ideia do cavalo de Troia que garante a
vitoacuteria dos gregos essa guerra foi ganha pela meacutetis Menelau eacute amigo de Ares (areḯphilos)
deus da guerra e Aacutejax eacute o gigante corpulento personagem cuja forccedila fiacutesica sobrepuja por
exemplo a forccedila da meacutetis ligada agrave inteligecircncia Do mesmo modo o penacho de Heitor se
refere a uma parte do seu elmo que por sua vez eacute parte da armadura de um guerreiro e ainda
pode se referir agrave sua habilidade com os cavalos (ressaltada em outros Cantos) pois o penacho
lembra a crina desse animal Como vimos o cavalo eacute necessaacuterio agrave guerra deslocando os
guerreiros no campo de batalha e agraves vezes auxiliando-os nas lutas Paacuteris natildeo possui epiacutetetos
87
beacutelicos e o uacutenico elemento relacionado agrave guerra que ele possui eacute o arco o qual eacute
desvalorizado
Na trageacutedia o arco eacute a arma do baacuterbaro por excelecircncia que por sua vez se
materializa na figura do persa Paacuteris eacute mostrado como um arqueiro duas vezes (Heacutecuba vv
387-388 Orestes v 1409) nas trageacutedias que analisamos assim como Teucro (Helena vv
75-77) A diferenccedila eacute que tanto em Heacutecuba quanto em Orestes o arco de Paacuteris eacute mencionado
em contexto beacutelico e em Helena Teucro usa seu arco fora da guerra e o iria utilizaacute-lo para
matar uma mulher natildeo um homem Homero tambeacutem traz essa ideia de diferenciaccedilatildeo de uso
do arco
Paacuteris entra na guerra com ldquoarco e espadardquo (toacutexa kai xiacutephos) e ldquoduas lanccedilas na matildeordquo
(dyacuteo kekorythmeacutena khalkocirc) Paacuteris eacute um arqueiro e isso fica bastante claro ao longo da Iliacuteada
Se teve uma arma que natildeo mudou muito ao longo do tempo foi o arco (KEEGAN 1995 p
179) embora variantes tenham surgido (como a besta ndash crossbow) ele eacute oriundo do Oriente
tendo entrado de uma vez por todas nas fileiras da infantaria grega atraveacutes do contato dos
cretenses com a Siacuteria e o Egito (SUTHERLAND 2001 p 113)
Na Guerra do Peloponeso (431-404 aC) os arqueiros ganharam um destaque muito
grande Marcos Alvito afirma inclusive que as forccedilas secundaacuterias (peltastas arqueiros
fundibulaacuterios e demais tropas ligeiras) tiveram um papel decisivo (SOUZA 1988 p 64)
embora a falange hopliacutetica sempre fora preferida a esse modo de luta (LISSARAGUE 2002
p 117) Essa preferecircncia se daacute em virtude de uma tradiccedilatildeo de se preterir as tropas ligeiras em
detrimento de uma forma de luta aristocraacutetica que implica na valorizaccedilatildeo do combate corpo a
corpo
Essa valorizaccedilatildeo jaacute comeccedila na Iliacuteada haacute pouquiacutessimos arqueiros e talvez se todos
eles morressem em batalha a Guerra de Troia natildeo seria encerrada por causa disso afinal
ldquoAqueus e Troianos se batem corpo-a-corpo e natildeo ficam agrave espera de apoio de flechas ou
de lanccedilas de longe atiradas lutando de bem pertordquo (Ἀχαιοί τε Τρῶές τε δῄουν
ἀλλήλους αὐτοσχεδόν οὐδ᾽ ἄρα τοί γε τόξων ἀϊκὰς ἀmicroφὶς microένον οὐδ᾽ ἔτ᾽ ἀκόντων
ἀλλ᾽ οἵ γ᾽ ἐγγύθεν ἱστάmicroενοι) (XV vv 707-712 ndash grifos nossos)
Mencionados haacute seis arqueiros na Iliacuteada Filoctetes e Teucro do lado aqueu Paacuteris
Pacircndaro Heleno e Doacutelon do lado troiano Tanto Paacuteris quanto Pacircndaro e Heleno usam o arco
em batalha Doacutelon aparece em apenas um Canto da Iliacuteada para morrer nas matildeos de Odisseu e
Diomedes e sua funccedilatildeo eacute a de espiar os aqueus natildeo de lutar contra eles natildeo chegando a
entrar em batalhas Filoctetes vem acompanhado de um grupo de arqueiros que natildeo chegam a
88
entrar em accedilatildeo Tampouco o proacuteprio heroacutei o faz ele foi abandonado em uma ilha por seus
companheiros no caminho para Troia em decorrecircncia de um ferimento que exalava um odor
terriacutevel
Haacute ainda o povo da Loacutecrida um povo arqueiro o qual foi auxiliar os aqueus Eacute
mencionado uma vez no poema mas ele natildeo entra em batalha os loacutecrios satildeo medrosos
demais para isso (XII vv 712-718) Do lado aqueu Teucro eacute o uacutenico que luta em batalha
com o arco e ele aparece em Helena de Euriacutepides portando-o ele quase atira na esposa de
Menelau durante a peccedila Ele vai parar no Egito onde estaacute tambeacutem Helena O motivo Ele foi
expulso de sua terra pelo pai Ser exilado era algo vexatoacuterio o economista Eacutemile Mireaux
mostra que os exilados comeccedilam a surgir por volta do seacuteculo VII aC mas que a praacutetica de
um membro de uma comunidade se exilar natildeo era tatildeo incomum antes dessa data
A estes contingentes de desenraizados deve-se finalmente acrescentar todos aqueles que uma vinganccedila um crime um homiciacutedio agraves vezes acidental obrigaram a deixar a famiacutelia e a cidade e a procurar o refuacutegio da hospitalidade agraves vezes para sempre Pois quando o fugitivo culpado eacute apenas um bastardo ou mesmo um simples filho segundo raras satildeo as famiacutelias dispostas a assumir o encargo do pagamento de uma composiccedilatildeo para recuperar um membro que em regra geral natildeo eacute senatildeo um encargo suplementar para o patrimocircnio familiar (MIREAUX sd p 255)
Na Atenas Claacutessica a praacutetica do ostracismo vem reforccedilar a ideia de que ser privado de
viver em sua terra era um dos piores castigos os cidadatildeos atenienses escreviam em um
pedaccedilo de ceracircmica oacutestrakon o nome de quem deveria ser exilado por ser perigoso agrave ordem
democraacutetica Teucro em Helena representa algueacutem indesejado o que corrobora a ideia de
que o arco era uma arma que denotava vileza Ser privado de sua poacutelis era o equivalente a
estar morto (HALL 1997 p 97)
Mas falta algum arqueiro nesse time aqueu natildeo Ou foi esquecido o famoso arco de
Odisseu objeto que definiraacute o destino de Peneacutelope no palaacutecio de Iacutetaca Justamente seu arco
estaacute em casa Odisseu natildeo o utiliza na guerra Aqui o arco tem uma funccedilatildeo outra a qual natildeo
se perdera atraveacutes do tempo caccedila e esporte passatempos comuns da aristocracia Desse
modo a maioria do contingente de arquearia eacute oriundo do lado troiano da guerra
Os arqueiros natildeo lutam face a face atiram de longe suas setas O seu comportamento
na Iliacuteada eacute bastante peculiar eles compartilham de uma comunicaccedilatildeo natildeo-verbal e verbal
bastante parecida escondem-se e jactam-se quando ferem o inimigo (por exemplo V vv
100-106 XIII vv 593-597 vv 712-718) Aleacutem disso fugir e sentir medo eacute bem mais comum
entre eles do que entre os outros guerreiros (por exemplo III vv 33-37 XII vv 712-718)
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Esse comportamento natildeo eacute adequado dentro do coacutedigo de conduta guerreira o que torna o
grupo dos arqueiros de certa forma marginalizado no campo de batalha pertencendo a uma
categoria hieraacuterquica inferior agrave daqueles que usam a lanccedila ou a espada na luta
Paacuteris aparece na Iliacuteada pela primeira vez no Canto III os dois exeacutercitos se aproximam
e ele chama os aqueus para lutar em um embate singular (III vv 15-20) quando um guerreiro
luta sozinho com outro corpo-a-corpo Esse tipo de combate eacute o que mais acontece nessa
epopeia Mesmo numa batalha coletiva em que todo o exeacutercito estaacute lutando satildeo batalhas
singulares que ocorrem sabemos o nome de quem mata e de quem morre
Por isso que natildeo podemos dizer que haacute a valorizaccedilatildeo somente de um em detrimento do
outro ambos ndash morto e assassino ndash satildeo relembrados Jean-Pierre Vernant e Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo se debruccedilaram de maneiras diferentes sobre esse tema da bela morte utilizando as
mesmas passagens da Iliacuteada As suas noccedilotildees resumem-se nos diagramas abaixo
No primeiro diagrama vemos a visatildeo de Vernant agravequeles que morrem em batalha eacute
implicada uma seacuterie de caracteriacutesticas que os tornam aacuteristoi (os melhores) Eacute o fato de morrer
em batalha que lhe daacute esse estatuto Para Rennoacute (segundo diagrama) natildeo eacute a sua morte que
lhe implica a qualidade de aacuteristos mas a morte dos outros matando em batalha que se
consegue angariar para si essas seacuteries de caracteriacutesticas configurando-se pois em aacuteristoi
Quando esses guerreiros implacaacuteveis esses aacuteristoi morrem eacute que se daacute a bela morte pois foi
a morte de pessoas honoraacuteveis Cremos que tanto Vernant quanto Rennoacute natildeo satildeo visotildees
diacutespares mas complementares acerca da bela morte Tanto uma concepccedilatildeo quanto outra estaacute
presente na Iliacuteada Homero ldquoequilibra igualmente a grandeza dos assassinos e o paacutethos
(sofrimento) dos assassinadosrdquo (SCHEIN 2010 p 72)
Nesse embate singular contra Menelau ele se veste antes (vv 328-339) A descriccedilatildeo eacute
longa porque no proacuteprio vestir-se haacute um processo e uma estrutura formulaica 1) cnecircmides
(ldquocaneleirasrdquo) 2) couraccedila 3) espada 4) escudo 5) elmo e 6) lanccedila Aqui estaacute basicamente
90
todos os apetrechos necessaacuterios a um guerreiro e os quais estaratildeo presentes na armadura do
hoacuteplita Isso eacute interessante para que possamos comparar com o que a Arqueologia tem
trazido para noacutes Natildeo haacute por exemplo registros arqueoloacutegicos de cnecircmides no periacuteodo de
desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) como haacute no Poliacuteade Arcaico mas isso natildeo impede
que elas natildeo fossem feitas naquele periacuteodo em um material pereciacutevel (ZANON 2004 p
136) O mesmo acontece com as couraccedilas mas nada tambeacutem impede que elas fossem
derretidas para a reutilizaccedilatildeo do metal (ZANON 2004 p 137)
A espada (xiacutephos) que Paacuteris traz com cravos de prata tem correspondente
arqueoloacutegico de origem minoica esse tipo de espada natildeo era muito forte e quebrava saindo a
lacircmina do cabo Assim o guerreiro ficava desarmado (ZANON 2004 p 139) Embora natildeo
saibamos como eacute a espada de Menelau (soacute nos eacute dito que esse heroacutei se armou do mesmo
modo que Paacuteris) ela se quebra no decorrer da luta singular Isso mostra que o poeta da Iliacuteada
possuiacutea um conhecimento da cultura material palaciana Contudo esse tipo de espada natildeo
servia para corte (como acontece na epopeia) apenas para perfuraccedilatildeo Espadas que cortam e
perfuram soacute apareceriam por volta de 1200 aC (ZANON 2004 p 140)
Esse eacute mais um exemplo de mistura perioacutedica a espada corta e perfura como eacute de
conhecimento da audiecircncia homeacuterica mas o aspecto dela eacute o de uma espada palaciana
ldquoHomerordquo segundo a arqueoacuteloga brasileira Camila Aline Zanon ldquojuntou esses retalhos e os
costurou com tal primazia que somente com o surgimento da Arqueologia eacute que pudemos
diferenciar um pouco dos seus elementos constitutivos no tocante a essas eacutepocasrdquo (2004 p
146) Isso denota tambeacutem que ele natildeo ignorava as praacuteticas beacutelicas o que nos ajuda a
compreender mais a representaccedilatildeo de Paacuteris Outro ponto interessante reside no fato de que a
couraccedila que Paacuteris veste natildeo eacute sua eacute de Licaacuteone seu irmatildeo Nosso heroacutei natildeo possui sua
armadura completa corroborando a sua habilidade como arqueiro esse guerreiro fazia parte
das tropas ligeiras natildeo das pesadas Os membros daquela precisavam se despir da armadura
completa pesada para poder exercer sua funccedilatildeo na guerra perseguir o inimigo Eles
geralmente eram pessoas de menor condiccedilatildeo financeira que natildeo podiam arcar com um
armamento completo ou ateacute mesmo mercenaacuterios estrangeiros Eram fundibulaacuterios peltastas
arqueiros essas armas satildeo muito mais baratas
As batalhas singulares seguem uma ordem tambeacutem primeiro haacute o tiro de lanccedilas soacute a
partir daiacute que o embate corpo a corpo com espadas se desenrola (III vv 346-360) Aqui o
tiro de Paacuteris natildeo fere nem mesmo a armadura de Menelau enquanto o tiro deste atravessa o
escudo e seu khitṓn sua tuacutenica por baixo da armadura Paacuteris se encurva impedindo que algo
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pior lhe aconteccedila A luta continua e Menelau passa a atacar Paacuteris com a espada que se
quebra Issonatildeo eacute atribuiacuteda agrave sua fragilidade mas a um desiacutegnio dos deuses Contudo como
vimos era passiacutevel de isso acontecer
Afrodite vendo a desvantagem desse heroacutei o retira do campo de batalha colocando-o
no taacutelamo agrave espera de Helena Natildeo fosse a intervenccedilatildeo da deusa Menelau teria alcanccedilado
alto kŷdos ele eacute o valor que os deuses atribuem ao homem Nas palavras da filoacutesofa argentina
Mariacutea Cecilia Colombani ldquose kucircdos [sic] descende dos deuses kleacuteos ascende ateacute elesrdquo
(DETIENNECOLOMBANI 2005 p 52) Leslie Kurk acrescenta que aquele que possui
kŷdos tem um ldquopoder especial conferido por um deus que faz um heroacutei invenciacutevelrdquo (KURK
apud LUNT 2010 p 64) Se um homem natildeo demonstra ser digno desse valor ele morre
aacutephantos (invisiacutevel) e nṓnymnos (sem nome sem gloacuteria)
No Canto VI (vv 521-525) Heitor ao ver nosso heroacutei afirma que nenhum anḗr
poderia deixar de valorizar (atimaacuteō) seus ldquotrabalhos na guerrardquo (eacutergon maacutekhēs) mas que natildeo
quer os exercer gerando aiacuteskhos (vergonha) Esse verbo (atimaacuteō) eacute composto de duas partes
o prefixo de negaccedilatildeo a- e o verbo timaacuteō (valorizar) que daacute origem agrave palavra timḗ uma das
noccedilotildees mais caras ao guerreiro ela eacute o valor de uma pessoa Para um guerreiro o campo de
batalha eacute o locus privilegiado de demonstraccedilatildeo desse valor de sua honra Desse modo como
vimos eacute na Iliacuteada mais do que na Odisseia que os heroacuteis tecircm a sua timḗ posta a prova
Richard B Rutherford sintetiza bem o que significa essa honra na Greacutecia antiga
No coraccedilatildeo do sistema de valores dos heroacuteis de Homero estaacute a honra τιmicroή expressa pelo respeito de seus pares e personificada em formas tangiacuteveis ndash tesouros presentes mulheres um lugar honoraacutevel no banquete Em tempo de guerra eacute inevitaacutevel que a honra seja ganha sobretudo pelas proezas em batalha habilidade como um liacuteder e um lutador Outras qualidades satildeo tambeacutem admiradas ndash habilidade como orador piedade bom senso e conselho lealdade hospitalidade gentileza mas essas satildeo secundaacuterias e a uacuteltima poderia de fato estar sem lugar no combate (RUTHERFORD 1996 p 40)
Segundo Redfield a timḗ eacute a medida de um homem em relaccedilatildeo ao outro implicando
numa comparaccedilatildeo de um indiviacuteduo com outro Isso soacute eacute possiacutevel se esses homens estatildeo
inseridos em uma sociedade na qual existe uma publicidade das accedilotildees45 ou seja na qual se
verifique uma uniatildeo do que entendemos hoje como vida privada e vida puacuteblica O valor de um
45 A sociedade grega eacute uma sociedade agoniacutestica Esse termo natildeo existe na liacutengua portuguesa eacute um adjetivo derivado de um processo de aportuguesamento cuja base etimoloacutegica eacute a palavra aacutegon (competiccedilatildeo) Foi utilizado para caracterizar a sociedade helecircnica no que diz respeito agrave noccedilatildeo de competiccedilatildeo o indiviacuteduo estaacute sempre sob o olhar do puacuteblico sendo sinalizado por ele quando comete atos dignos (honrados) e indignos (vergonhosos)
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homem se lhe era atribuiacutedo natildeo por ele mesmo mas por outros homens Esse reconhecimento
eacute o que configura a kleacuteos a gloacuteria (ou reputaccedilatildeo)46 Esta eacute a gloacuteria dada pelos homens agravequeles
que se destacam Enquanto a vida tem um fim a kleacuteos eacute imortal pois ela se daacute atraveacutes da
rememoraccedilatildeo desses mortos grandiosos seja atraveacutes da oralidade ndash o canto do aedo ou a
narraccedilatildeo de mitos47 ndash seja atraveacutes da construccedilatildeo de tuacutemulos Na Iliacuteada uma passagem chama
atenccedilatildeo para isso trata-se de uma fala de Heitor (VII vv 81-91) Eacute no Canto VII tambeacutem (v 516) que Paacuteris recebe uma designaccedilatildeo interessante hyiograves
Priaacutemoio Ann Suter chama atenccedilatildeo para ela pois estaacute numa passagem que ldquoimplica numa
total reversatildeo da caracterizaccedilatildeo de covarde para heroacutei de mulherengo [womanizer] para
guerreirordquo (1984 p 71) Paacuteris como veremos depois de desafiar os guerreiros aqueus acaba
sendo enfrentado por Menelau e foge retornando depois para um combate singular Afrodite
ainda o retira da guerra e ele soacute volta a ela no Canto VII Justamente aqui no Canto que
intermedia sua fuga e seu retorno tanto no plano semacircntico quanto no linguiacutestico ocorre o
turning point de Paacuteris
No Canto VII tambeacutem Paacuteris mata seu primeiro adversaacuterio na Iliacuteada (vv 8-10) Ele eacute
Meneacutestio um korynḗtēs guerreiro que porta maccedila uma espeacutecie de porrete ou seja natildeo
utiliza as armas convencionais de guerra homeacuterica (espada ou lanccedila) Ele tambeacutem faz parte
das tropas ligeiras do exeacutercito aqueu assim como Paacuteris que eacute arqueiro do lado troiano Haacute
portanto uma equiparidade na luta o toxoacutetēs lutando contra o korynḗtēs No Canto seguinte
No Canto VIII Paacuteris continua demonstrar sua qualidade de arqueiro ele fere um dos cavalos
de Nestor com seu arco (VIII vv 80-84)
Paacuteris tambeacutem retorna agrave accedilatildeo no Canto XI Eacute nesse conjunto de Cantos (XI ao XIII)
que Paacuteris mais se mostra um guerreiro ativo utilizando sua arma principal o arco e flecha
Ele fere Macaacuteone afastando-o da luta e depois Euriacutepilo que estava retirando a armadura de
Apisaacuteone morto em batalha (XI vv504-509 vv 581-584) Outro alvo seu eacute Diomedes (XI
vv 369-395) Nosso heroacutei sai de um esconderijo (loacutekhos) e jacta-se A foacutermula utilizada eacute
ldquoeukhoacutemenos eacutepos ēuacutedardquo tiacutepica dessas situaccedilotildees de vangloacuteria (MARTIN 1989 p 29) Esse eacute
46 ldquoPara os gregos antigosrdquo segundo David Lunt ldquoa imortalidade heroica consistia em dois componentes gloacuteria e fama (kleacuteos) e honras cultuais (timḗ)rdquo (LUNT 2010 p 83) O culto ao heroacutei natildeo eacute mostrado na Iliacuteada a arqueologia jaacute mostrou que ele jaacute existia na eacutepoca de Homero (JONES 2010 p 14) A explicaccedilatildeo de Seth L Schein para o aedo da Iliacuteada e da Odisseia exclui-lo estaria no caraacuteter pan-helecircnico das obras ldquo[] a religiatildeo olimpiana de Homero eacute pan-helecircnica [] Homero transcende os limites do culto regional e local para criar na poesia uma unidade religiosa que natildeo existia historicamenterdquo (SCHEIN 2010 p 49) Christopher P Jones jaacute afirma o contraacuterio Homero influenciou o culto aos heroacuteis (JONES 2010 p 14) 47 David Lunt ao mostrar a etimologia da palavra kleacuteos mostra tambeacutem que ela tem uma estreita ligaccedilatildeo com essa cultura oral klyacuteein eacute ouvir Assim a ldquokleacuteos soacute pode ser possuiacuteda se algueacutem a proclama e algueacutem a escutardquo (LUNT 2010 p 88)
93
o comportamento tiacutepico de um arqueiro e por isso que Diomedes lhe adereccedila muitos insultos
A qualidade de Paacuteris como arqueiro (toxoacutetēs) eacute desprezada ldquoarco e flecha embora praticado
por certos indiviacuteduos como Paacuteris e Teucro eacute o mais longe possiacutevel marginalizada e o termo
lsquoarqueirorsquo pode ser ateacute mesmo usado como um insultordquo (RUTHERFORD 1996 p 38)
Paacuteris segue sua participaccedilatildeo em batalha liderando uma das colunas troianas contra os
acaios (XII v 93) Eneias heroacutei troiano de quem jaacute falamos em nossa introduccedilatildeo chama ao
seu auxiacutelio Paacuteris e outros guerreiros (XIII vv 489-495) Ainda nesse Canto Paacuteris mata outro
grego o coriacutentio Euqueacutenor estimulado pela perda de um amigo Harpaliatildeo (XIII vv 660-
663 671-672) Esta eacute a uacutenica vez em que um arco mata um aqueu Em todas as outras
passagens envolvendo tiros de arco apenas Teucro arqueiro aqueu mata com o arco Eacute
interessante perceber que o uacutenico arqueiro em atividade do lado aqueu se chama ldquoTroianordquo
ldquoTeucrordquo eacute outra denominaccedilatildeo para o troiano Isso corrobora a ideia do arco ser uma arma
tiacutepica desse exeacutercito Geralmente o arco apenas fere causando na maioria das vezes uma
reprimenda daquele que eacute atingido agravequele que atinge como eacute o caso de Diomedes e Paacuteris (e
ainda de Diomedes e Pacircndaro)
No Canto XV Paacuteris atinge por traacutes [oacutepisthe] Deiacuteoco quando este se retirava da luta
(XV vv 341-342) Esta eacute sua uacuteltima accedilatildeo em batalha a partir daiacute ele soacute eacute mencionado Aqui
em seu uacuteltimo ato beacutelico nosso heroacutei faz algo que natildeo eacute bem visto Afinal o combate deve
ser feito face-a-face e o ataque pela frente do guerreiro Matar ou ferir pelas costas eacute
desonroso vocecirc natildeo deu oportunidade da pessoa se defender nem dela ver quem a matou
Aqui aparece uma outra faceta da caracterizaccedilatildeo do guerreiro Paacuteris a qual parece ser
exclusiva a ele mas que eacute mais comum em batalha do que poderiacuteamos imaginar Em vaacuterias
passagens Paacuteris eacute mostrado sentindo medo Ele foge do embate singular quando vecirc que
Menelau de fato lutaria com ele (III vv 21-37) Sua fuga eacute inadmissiacutevel ele causou a guerra
O fato de ele ter desencadeado todo o conflito e ao se deparar com Menelau recuar de medo
mexe mais com os nervos de Heitor do que o proacuteprio fato de ele simplesmente fugir O
aristocrata que eacute um guerreiro deve enfrentar as batalhas e qualquer fuga eacute condenaacutevel
Ainda no Canto III (vv 39-45) Heitor ressalta que Paacuteris tem todas as qualidades
fenotiacutepicas necessaacuterias aos kaloigrave kagathoiacute mas que seu comportamento natildeo estava
condizendo com o de um Carece-lhe forccedila (biacuteē phresigraven) e coragem (alkḗ) A alkḗ eacute o traccedilo
distintivo do guerreiro junto com a andreiacutea a coragem varonil cara ao gecircnero masculino
Cremos que ela eacute o impulso positivo e a qualidade daquele que supera o medo para enfrentar
situaccedilotildees-problema eacute a justa medida entre inseguranccedila e convicccedilatildeo exacerbada Ela eacute uma
94
caracteriacutestica intriacutenseca do ser humano mas se manifesta com mais ou menos intensidade em
um indiviacuteduo consoante trecircs aspectos a) predisposiccedilatildeo no caraacuteter na iacutendole do mesmo b)
incitaccedilatildeo por parte de outra pessoa ou c) motivaccedilatildeo por parte de um outro sentimento
No caso de Paacuteris a coragem se manifesta pela incitaccedilatildeo de outrem bem como pelo
medo de perder Helena veremos mais adiante que ele aceita devolver os tesouros que ele
trouxe de Esparta mas se nega a devolver a consorte Quando passamos por essas situaccedilotildees-
problema podemos encaraacute-las imediatamente ou podemos recuar diante delas a menos que
outra pessoa nos encoraje ou que tenhamos vergonha de recuar como eacute o caso de Paacuteris
tambeacutem
O ato corajoso desse heroacutei eacute mensurado a partir da sua intrepidez diante do confronto
com o perigo em um campo de batalha O valor de um kalograves kagathoacutes consiste na sua
coragem O valente eacute sempre o nobre o homem de estatuto social elevado A vitoacuteria eacute para
ele a distinccedilatildeo mais alta e o conteuacutedo proacuteprio da vida Do mesmo modo se daacute com os atletas
a vitoacuteria eacute essencial para que este possa reclamar para si um estatuto honoriacutefico semelhante ao
de um heroacutei que ao ficar cara a cara com um igual o enfrenta agrave medida que eacute conduzido
ldquopelo medo da vergonhardquo (BALOT 2004 p 416)48 Ele quer ser reconhecido pela sua
bravura natildeo pela sua fraqueza
Contudo por mais que o heroacutei deva ser intreacutepido isso natildeo implica necessariamente
que o ele seja proibido de sentir medo ele eacute intriacutenseco e natildeo eacute incomum um guerreiro
amedrontar-se na Iliacuteada Ateacute mesmo Aquiles o melhor dos aqueus sente medo Nicole
Loraux mostra que ldquona epopeia natildeo haacute guerreiro que natildeo tenha tremido alguma vez [] Natildeo
existe o grande guerreiro que natildeo tenha sentido um dia em todo o seu ser o tremor do terror
Como se o medo fosse a prova que qualifica o heroacuteirdquo (LORAUX 2003 p 97) Isso se daacute
porque eles satildeo humanos o homem eacute passiacutevel de sentir medo mas isso natildeo o qualifica como
um completo covarde Pelo contraacuterio ldquoO medo do bravo combatente revela a verdadeira
dimensatildeo do perigo que ele enfrente e que o engrandecerdquo (FONTES 2001 p 103)
Tanto a coragem quanto o medo coabitam o mesmo indiviacuteduo Este eacute corajoso agrave
medida que a coragem sobrepuja o medo eacute covarde quando o medo sobrepuja a coragem Nas
palavras de Simon Blackburn ldquoa coragem natildeo eacute a ausecircncia de medo () mas a capacidade de
sentir o grau adequado de medordquo (BLACKBURN 1997 p 80) Assim eacute incorreto afirmar
que o medo eacute diametralmente oposto agrave coragem bem como que um heroacutei eacute totalmente
48 Ryan Balot ainda afirma que a coragem eacute ldquoa qualidade ou disposiccedilatildeo do personagem que faz um indiviacuteduo superar o medo a fim de atingir um objetivo preacute-concebidordquo (BALOT 2004 p 407)
95
destemido Ser covarde natildeo eacute sinocircnimo de sentir medo a covardia implica tambeacutem na recusa
total agrave batalha e o natildeo retorno numa situaccedilatildeo de fuga
Contudo eacute fato que o medo pesa sobre os troianos e os arqueiros como um elemento
desqualificativo porque ele estaacute associado a outras caracteriacutesticas devalorativas Por isso que
Paacuteris seraacute sempre reprimido como veremos mas sem deixar contudo de ser um exemplo
aleacutem das qualidades aristocraacuteticas que ele porta quando ele recua em batalha ele retorna
matando guerreiros inimigos liderando colunas incitando os companheiros agrave luta Destarte
isso natildeo significa uma contradiccedilatildeo da Iliacuteada como afirmou Moses Finley (FINLEY 1982 p
43)49 mas um aspecto paidecircutico como ser humano tem-se o direito de sentir medo de
recuar Ter medo tambeacutem eacute comum como vimos recuar entretanto eacute uma atitude desonrosa
Por isso que Paacuteris retorna agrave batalha Contudo ele o faz depois de a) ser motivo de graccedila
[khaacuterma] para os inimigos que riem dele e b) ser censurado por Heitor e Helena ele sente
vergonha de seus atos depois que sua atitude eacute internalizada como sendo algo indigno de um
anecircr Aqui a neacutemesis de Heitor desencadeou aidṓs em Paacuteris Nessa censura Heitor afirma
que este carece de biacuteē (forccedila) e alkḗ (coragem) Contudo no Canto VI o mesmo Heitor
afirma que todos sabem que Paacuteris eacute corajoso (aacutelkimos) e tem valor (timḗ)
O coacutedigo de conduta do guerreiro seja ele de qual lado da batalha for eacute o mesmo
bem como a representaccedilatildeo dele Tanto aqueus quanto troianos estatildeo sob esse mesmo coacutedigo e
satildeo representados da mesma maneira com as mesmas vestimentas em batalha armam-se do
mesmo jeito como jaacute pudemos ver com os mesmos tipos de metal com as mesmas armas
Isso acontece tambeacutem na imageacutetica como nos mostra Franccedilois Lissarague grego e baacuterbaro eacute
representado da mesma maneira (LISSARAGUE 2002 p 113-114) O que vai diferenciar o
contingente troiano do aqueu eacute justamente o tipo de arma valorizada natildeo o valor do guerreiro
bem como se enfatizaraacute que mesmo o melhor guerreiro troiano natildeo eacute paacutereo para o melhor
guerreiro aqueu (Iliacuteada XXII v 158)
O problema de Paacuteris eacute a demora em entrar no campo de batalha esquivando-se o
quanto for possiacutevel (ldquoMas voluntaacuterio te escusas natildeo queres lutarrdquo) Mas nunca ele a
abandona completamente Essa liccedilatildeo eacute de extrema importacircncia para os futuros politḗs
guerreiros da poacutelis que aprendem a Iliacuteada e a Odisseia e fazem desse ideal de conduta
heroica seu proacuteprio ideal e tecircm como maacutexima a sentenccedila ldquohamarteicircn eikograves anthrṓpousrdquo errar
eacute humano (EURIacutePIDES Hipoacutelito v 615)
49 ldquoMuitas vezes o proacuteprio material apresentava contradiccedilotildees internas () [Paacuteris] () aparece simultaneamente como um despreziacutevel covarde e como um verdadeiro heroacuteirdquo (FINLEY 1982 p 43)
96
Destarte a Iliacuteada assim como a Odisseia configura-se num discurso de legitimaccedilatildeo
da etnicidade helecircnica aleacutem de um discurso paidecircutico Aliaacutes eacute atraveacutes da paideiacutea que essa
ideologia seraacute passada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ateacute chegar ao ponto de formar os kaloigrave
kagathoiacute aqueles bem-nascidos que viratildeo a governar a poacutelis e a vencer os jogos helecircnicos
como atletas Ateacute mesmo durante a Idade Meacutedia essas epopeias foram revisitadas e passaram
muito tempo sem serem estudadas e questionadas segundo Carlier pelo seu caraacuteter de texto
religioso Esse autor afirma que esse movimento de estudo das obras homeacutericas poderia ser
um convite ao questionamento da Biacuteblia que tambeacutem eacute um texto religioso e de funccedilatildeo
modelar (no entanto inserido em uma outra eacutetica diferente da sociedade de Homero)
(CARLIER 2008 p 13)
Alguns autores como Robert Aubreton e Richard B Rutherford defendem que a
Iliacuteada demonstra preferecircncia pelos troianos Os argumentos giram em torno de trecircs questotildees
praticamente a) a representaccedilatildeo familiar do lado troiano e de toda a ldquosensibilidaderdquo daiacute
oriunda (como a cena entre Heitor e Androcircmaca ou de Heacutecuba e Heitor) b) o fato dos
troianos ganharem a maioria das batalhas e c) a Iliacuteada terminar com os funerais de Heitor
configurando-o pois como o grande heroacutei dessa epopeia
Haacute problemas nesses argumentos a ldquocidaderdquo grega eacute improvisada enquanto a troiana
eacute a ldquocidaderdquo de fato (MACKIE 1996 p 1) Isso se daacute porque os gregos satildeo os invasores e os
troianos satildeo os invadidos As esposas pais filhos pequenos dos gregos ficaram em seus
palaacutecios quem vai agrave guerra eacute o anḗr Assim eacute inviaacutevel entre os gregos cenas relativas ao
oicirckos ao domiciacutelio
Os troianos ganham a maioria das batalhas porque assim quis um grego Aquiles pede
para sua matildee a deusa Teacutetis que interceda junto a Zeus para fazer com que os troianos
ganhassem todas as batalhas a fim de mostrar a Agamemnon o quanto ele fazia falta
Lembremo-nos de que o primeiro Canto da Iliacuteada trata justamente da rixa que apartou
Aquiles da guerra e que a proacutepria narrativa dessa epopeia diz respeito agrave ira desse heroacutei e das
suas consequecircncias
O funeral de Heitor encerra a Iliacuteada o de Aquiles contudo nem aparece nela Seria
um indicativo de que aquele heroacutei eacute mais importante do que este e que sua morte seria o
grande final do poema O problema eacute que a Iliacuteada natildeo era cantada num dia inteiro para o
puacuteblico primeiro porque sua reacutecita natildeo demoraria soacute um dia visto que ela tem 15693 versos
segundo porque esse poema era cantado em episoacutedios nas competiccedilotildees e nos banquetes
Assim podia se cantar soacute o episoacutedio da luta entre Menelau e Paacuteris ou soacute o episoacutedio em que
97
Helena descreve os guerreiros aqueus ou soacute o episoacutedio em que Paacuteris atira em Diomedes e ele
o rechaccedila e assim por diante Nem mesmo a divisatildeo em Cantos como conhecemos havia
sido feita somente os saacutebios alexandrinos fariam isso muitos seacuteculos depois da cristalizaccedilatildeo
do poema na escrita Desse modo natildeo podemos pensar os funerais de Heitor como o grande
fim da reacutecita era o grande fim desse episoacutedio Natildeo haacute o famigerado the end cinematograacutefico
na Iliacuteada
Tambeacutem existem as consideraccedilotildees acerca da bela morte por Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo que exploramos em nosso trabalho O que importa eacute o que o heroacutei faz em vida sua
morte eacute o fim de suas faccedilanhas incluindo o matar Por isso que Aquiles natildeo precisa morrer no
poema para ter seu valor corroborado O que corrobora o valor de Aquiles na Iliacuteada pode ser
justamente o funeral de Heitor assim como este seria honrado e rememorado pela morte do
guerreiro homenageado (VII vv 81-91) Aquiles o seraacute pela morte de Heitor Comparando
hipoteticamente se Aquiles viesse a morrer na Iliacuteada o valor de Paacuteris seu assassino seria
corroborado E Homero natildeo queria mostrar isso Paacuteris embora exemplo ainda eacute um
transgressor das leis da xeacutenia valor caro aos helenos e a todos os habitantes do Mediterracircneo
(VLASSOPOULOS 2013 p 90) e causador de uma guerra que fez perecer uma geraccedilatildeo de
hemiacutetheoi semideuses (os heroacuteis)
Em virtude do apresentado nesse capiacutetulo pudemos ver que os heroacuteis embora
partilhem aspectos em comum de sua categoria natildeo se constituem de uma massa indistinta
homogeneamente constituiacuteda cada heroacutei tem a sua peculiaridade A de Agamecircmnon eacute a sua
lideranccedila a de Odisseu sua meacutetis a de Aacutejax sua forccedila fiacutesica e a de Paacuteris sua beleza Homero
consegue construir personagens diferentes que natildeo agem da mesma maneira embora sejam
arautos de um mesmo coacutedigo de conduta
Entretanto embora sejam regidos por esse ideal de conduta os troianos satildeo diferentes
dos aqueus o uso que eles fazem desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes Paacuteris mesmo eacute
um transgressor e embora tente consertar seus erros continua sendo o causador da guerra que
tanto gera sofrimento a ambos os lados Ele ainda estaacute em estado de aacutetē Por isso seu valor
beacutelico eacute diminuiacutedo como destacar algueacutem que causou uma guerra John A Scott vecirc isso
como uma inovaccedilatildeo de Homero Paacuteris seria o principal guerreiro troiano mas como
desrespeitou a xeacutenia causando a Guerra de Troia perdeu seu posto para Heitor que seria um
personagem inventado para receber todas as caracteriacutesticas as quais teriam pertencido ao
proacuteprio Paacuteris na tradiccedilatildeo miacutetica (SCOTT 1913)
98
Essa ideia contudo natildeo possui argumentaccedilatildeo suficiente para comprovaccedilatildeo ateacute
mesmo porque o nome de Heitor jaacute constava nas tabuinhas de Linear B (CHADWICK 1970
p 98) Natildeo podemos ir aleacutem da documentaccedilatildeo e afirmar que esse ou aquele personagem eacute
uma criaccedilatildeo exclusiva de Homero visto que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o resultado de inuacutemeras
tradiccedilotildees orais posteriores agrave composiccedilatildeo das obras Assim como Euriacutepides reelabora os mitos
da tradiccedilatildeo eacutepica em suas trageacutedias Homero tambeacutem o faz em suas epopeias ldquoos materiais
que o poeta utiliza para recordar satildeo versaacuteteis moacuteveis feitos de foacutermulas de episoacutedios e de
um repertoacuterio de informaccedilotildees variado que pode se empregado com certa liberdade e adequado
agraves conveniecircncias poemaacuteticas e meloacutedicasrdquo (NUNtildeEZ 2011 p 239)
Eacute por essa razatildeo que os poemas homeacutericos natildeo foram os primeiros do processo
discursivo sobre o qual nos debruccedilamos sendo ldquoobras musicais [] [que] formam um todo
orgacircnico no qual poesia e muacutesica se interpenetram e intercambiam significadosrdquo (NUNtildeEZ
2011 p 239-240 ndash grifos nossos) Do mesmo modo Euriacutepides ainda estaacute longe de ser a
uacuteltima etapa desse processo a poesia eacutepica e traacutegica influencia nosso proacuteprio modo de
escrever permanecendo ainda viva na nossa memoacuteria social E assim como a poesia o heroacutei
eacute ele mesmo um todo orgacircnico (LUKAacuteCS 2000 p 66) no que diz respeito ao seu coacutedigo de
conduta mas particularizado como indiviacuteduo pois um heroacutei nunca eacute igual a outro heroacutei
Desse modo a representaccedilatildeo de Paacuteris natildeo eacute em hipoacutetese alguma a representaccedilatildeo de
um anti-heroacutei Primeiramente porque eacute anacrocircnico denomina-lo desse modo Massaud
Moiseacutes nos mostra em seu Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios que a ideia de anti-heroacutei eacute
intriacutenseca ao romance do seacuteculo XVIII Para ele ldquoo anti-heroacutei natildeo se define como a
personagem que carrega defeitos ou taras ou comete delitos e crimes mas a que possui
debilidade ou indiferenciaccedilatildeo de caraacuteter a ponto de assemelhar-se a toda genterdquo (MOISEacuteS
1999 p 29) Aleacutem disso ldquoo heroacutei eleva e amplifica as accedilotildees que pratica o anti-heroacutei as
minimiza ou rebaixardquo (MOISEacuteS 1999 p 29)
Os heroacuteis de Homero e de Euriacutepides natildeo satildeo comuns a todas as pessoas eles
representam um passado miacutetico anterior agravequeles que ouvem as epopeias e assistem agraves
representaccedilotildees teatrais Satildeo ldquoimagens limitesrdquo (ROMILLY 2013 p 31) que representam o
extremo das accedilotildees e emoccedilotildees visto que satildeo paidecircuticos O heroacutei como vimos eacute um
hemitheoacutes algueacutem acima do homem comum e inferior aos deuses pois eacute mortal como noacutes
como o puacuteblico dos poetas possuindo atitudes semelhantes (visto que satildeo humanos tambeacutem)
mas definitivamente com um estatuto diferenciado dos brotoiacute comuns Paacuteris na trageacutedia
quando personagem ainda exerce esse papel ele natildeo se torna ldquomenos heroacuteirdquo por ser um
99
douacutelos um boukoacutelos visto que essas histoacuterias acerca de Troia pertencem tambeacutem agrave mitologia
grega e a ambientaccedilatildeo em Troia tambeacutem eacute uma estrateacutegia para provocar catarse as viacutetimas da
Guerra de Troia estatildeo sendo sempre comparadas agraves viacutetimas da proacutepria Guerra do Peloponeso
Edith Hall mostra como mesmo esses displacement plots (roteiros de deslocamento)
servem para legitimar a identidade helecircnica definindo suas fronteiras eacutetnicas
Mesmo com a pluralidade eacutetnica da trageacutedia e o seu interesse em heroacuteis e comunidades espalhadas por distacircncias vastas pelo mundo conhecido o foco ateniense o ldquoatenocentrismordquo da trageacutedia eacute manifestado de muitos jeitos [] mesmo peccedilas com nenhum foco oacutebvio em Atenas incluem frequentemente um aition [sic] uma explicaccedilatildeo pelo mito das origens dos costumes atenienses [] os tragedioacutegrafos usavam comunidades outras sem ser Atenas como lugares para autodefiniccedilatildeo eacutetnica o mundo baacuterbaro frequentemente funciona na imaginaccedilatildeo traacutegica como o lar dos viacutecios (por exemplo o despotismo persa a falta de lei dos traacutecios a efeminaccedilatildeo e a covardice orientais) concebidas como correlativos agraves virtudes democraacuteticas atenienses idealizadas liberdade de fala equanimidade diante da lei e coragem masculina (HALL 1997 p 100)
O baacuterbaro eacute a mateacuteria-prima sobre a qual os gregos definem suas fronteiras eacutetnicas eacute
observando-o que eles constroem a si mesmos Claude Mosseacute corrobora esse aspecto ao
afirmar que ldquoessa alteridade do baacuterbaro entretanto natildeo eacute necessariamente negativa eacute apenas
o avesso da civilizaccedilatildeo encarnada pelo gregordquo (MOSSEacute 2004 p 55) Entretanto esse
processo de classificaccedilatildeo natildeo eacute exclusivo ao seacuteculo V aC jaacute em Homero podemos ver um
esforccedilo de definiccedilatildeo dessas fronteiras quando o poeta caracteriza os troianos (sobretudo
Paacuteris) para desenvolver uma caracterizaccedilatildeo que implica numa diferenciaccedilatildeo pautada ao
mesmo tempo na valorizaccedilatildeo do inimigo o qual natildeo pode ser inferior a fim de enaltecer a
vitoacuteria e na marcaccedilatildeo de alteridades em relaccedilatildeo a ele
100
CONCLUSAtildeO
ldquoSe partires um dia rumo a Iacutetaca faz votos de que o caminho seja longo repleto de aventuras repleto de saberrdquo
(Iacutetaca ndash Konstantinos Kavaacutefis)50
Em virtude do apresentado pudemos compreender que a anaacutelise da Iliacuteada da
Odisseia e das trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides vai aleacutem da simples tentativa de
comprovaccedilatildeo de feitos heroicos da existecircncia de uma guerra da existecircncia do proacuteprio aedo e
da correlaccedilatildeo simplista com eventos da ldquorealidade histoacutericardquo Eacute mais profiacutecuo buscar a
compreensatildeo das estruturas poliacuteticas econocircmicas sociais culturais religiosas e institucionais
da eacutepoca em que os poemas foram compostos traccedilando como os gregos conseguiram
construir e consolidar suas fronteiras eacutetnicas de forma dinacircmica
Aleacutem disso a rememoraccedilatildeo dos heroacuteis e de suas faccedilanhas eacute importante para a
configuraccedilatildeo de todo um coacutedigo de conduta helecircnico corroborando a ideia de uma funccedilatildeo
paidecircutica das obras homeacutericas e traacutegicas No tocante agrave historicidade desses heroacuteis ela estaacute
ligada por um lado ao papel que suas personalidades desempenham na vida do puacuteblico 50 Traduccedilatildeo de Joseacute Paulo Paes Disponiacutevel em httpwwworg2combrkavafishtm
101
helecircnico ndash que os rememoram e os cultuam ndash e por outro agrave ligaccedilatildeo inextricaacutevel entre o autor
que compocircs os textos e o seu contexto histoacuterico fazendo com que a trama e os heroacuteis sejam
constituiacutedos com base na proacutepria sociedade na qual eles vivem e conhecem
Lembremo-nos de que a Iliacuteada por ter sido composta posteriormente diz respeito
mais as caracteriacutesticas deste periacuteodo do que do periacuteodo no qual se travou a guerra de Troia a
eacutepoca palaciana No contexto da poacutelis as caracteriacutesticas caras agrave personalidade de Paacuteris natildeo
seratildeo preteridas na paideiacutea Pelo contraacuterio Aristoacuteteles no seacuteculo IV dedica um espaccedilo em
sua Poliacutetica a consideraccedilotildees sobre o ensino da muacutesica e da ginaacutestica a qual objetiva dentre
outras coisas a manter o equiliacutebrio fiacutesico do cidadatildeo
No tocante ao nosso objeto principal Paacuteris concluiacutemos que ele como personagem da
Iliacuteada desempenha um modelo de como agir para os ouvintes da epopeia Isso se daacute porque
ele demonstra atitudes condizentes com a de um heroacutei ou seja o protagonista desses poemas
de exaltaccedilatildeo das faccedilanhas desses seres extraordinaacuterios que viveram numa eacutepoca precedente agrave
eacutepoca dos simples humanos que vivem agrave sombra desse passado glorioso
Devemos ter em mente que Paacuteris mesmo natildeo demonstrando muita destreza na guerra
natildeo deixa de ser um heroacutei ele possui essas caracteriacutesticas intriacutensecas a eles Heitor ao mesmo
tempo que o chama de covarde no Canto III iraacute reconhecer que ele possui coragem no Canto
VI como jaacute vimos em uma citaccedilatildeo anterior Quando Paacuteris comete um ato indecoroso procura
corrigi-lo a fim de reaver a sua honra assim acontece quando ele retorna para combater com
Menelau e retorna agrave guerra no Canto VI Paacuteris tambeacutem tem a sua bela morte seja falecendo
no campo de batalha seja matando
A Iliacuteada como influenciadora do discurso traacutegico mostra um heroacutei humano e
portanto em sua singularidade e em sua relaccedilatildeo com a sociedade na qual ele estaacute inserido
Essa sociedade o reconhece como um aacuteristos um melhor aquele que deve liderar contudo
para isso ele deve demonstrar pelas suas atitudes que eacute digno de seu posto deve zelar para
que sua timḗ sua honra natildeo seja manchada atraveacutes de accedilotildees que ponham em xeque sua aretḗ
sua virtude causando a neacutemesis da sociedade e seu proacuteprio aidṓs
Um heroacutei pode fraquejar tremer sentir medo mas este natildeo deve sobrepujar o iacutempeto
de ficar e lutar Quando ocorre a fuga o retrocesso este deve ser corrigido a fim de que se
restaure a timḗ e de que aquele que fugiu natildeo seja alvo da neacutemesis dos seus iacutesoi Eacute isso o que
acontece com Paacuteris que eacute muito mais do que uma simples ldquocontradiccedilatildeo da epopeiardquo ora ele
se mostra corajoso ora ele se mostra temente pois eacute a representaccedilatildeo de um ser humano Ele
102
recua e retorna agrave batalha configurando-se num exemplo de como se agir mas de fato ele eacute
representado de uma maneira diferente e singular pelo poeta
Isso se daacute devido agrave problemaacutetica da alteridade da qual tratamos no capiacutetulo sobre
Homero Paacuteris seraacute representado como um modelo de conduta mas tambeacutem como um
estereoacutetipo do Outro Inuacutemeros heroacuteis aqueus poderiam servir para expressar esse movimento
de fugaretorno mas um heroacutei troiano eacute escolhido Aliaacutes a maioria dos heroacuteis que fogem na
Iliacuteada eacute troiana O caso de Paacuteris se configura num problema de alteridade interna tanto por
ele ser o inimigo na guerra (o troiano) quanto por ser o transgressor de normas inclusive
universais (no caso a xeacutenia ou seja a hospitalidade)
Este modo de caracterizar Paacuteris ao longo do tempo vai cada vez mais sobrepujar-se agrave
sua representaccedilatildeo como um kalograves kagathoacutes helecircnico e gradativamente esse personagem
deixaraacute de ser o theoeidḗs para ser o baacuterbaros sobretudo na trageacutedia Mas essa questatildeo natildeo
diz mais respeito ao nosso trabalho aqui desenvolvido em torno da Iliacuteada um poema
composto cerca de trecircs seacuteculos antes desse gecircnero teatral ser cristalizado culturalmente nas
poacuteleis Em Euriacutepides o heroacutei natildeo perde uma dimensatildeo paidecircutica mas estaacute mais ligado agrave
ideia do erro o heroacutei erra e aprendemos com esses erros Paacuteris natildeo deixa de ser um heroacutei pois
pertence agrave tradiccedilatildeo miacutetica mas se torna na trageacutedia de uma vez por todas o baacuterbaro
Tivemos por objetivo com essa dissertaccedilatildeo analisar a representaccedilatildeo de Paacuteris na eacutepica
homeacuterica e nas trageacutedias de Euriacutepides perscrutando as mudanccedilas sociais e culturais que estatildeo
presentes nos textos literaacuterios Defendemos que a Iliacuteada jaacute traz a ideia de
identidadealteridade helecircnica mostrando um discurso eacutetnico que legitima a centralidade
aqueia em detrimento da troiana e como essa diferenciaccedilatildeo influencia na construccedilatildeo do
baacuterbaro na poesia traacutegica Tambeacutem mostramos como a epopeia e a trageacutedia pertencem a um
mesmo espaccedilo discursivo tornando profiacutecua a nossa anaacutelise e utilizando a Anaacutelise de
Discurso francesa para tal
Acreditamos que essa diferenciaccedilatildeo entre gregos e troianos em Homero natildeo diz
respeito a uma diferenciaccedilatildeo entre o grego e o baacuterbaro ou entre o grego e o estrangeiro mas
entre dois grupos eacutetnicos um que estaacute no Peloponeso e outro que se encontra na Aacutesia Menor
reapropriando o coacutedigo de conduta grego e estabelecendo contatos com culturas natildeo-
helecircnicas Mas historicamente satildeo os troianos gregos
Natildeo podemos afirmar com certeza absoluta Primeiramente porque as datas satildeo
fluidas convenciona-se atraveacutes de estudos arqueoloacutegicos e filoloacutegicos que Homero compotildee
no seacuteculo VIII aC Convenciona-se que a Guerra de Troia aconteceu no seacuteculo XIII aC
103
Aleacutem disso lidamos com um problema caro agrave Histoacuteria Antiga documentaccedilatildeo Ela eacute escassa e
nas escavaccedilotildees poucos materiais escritos foram encontrados Achou-se um selo com
hieroacuteglifos luvitas no siacutetio arqueoloacutegico de Hissarlik (antiga Troia hoje na Turquia) o qual
data provavelmente do segundo milecircnio antes de Cristo entretanto como podemos ter certeza
de que ele foi produzido laacute Sendo um noacute comercial importante vizinha do Helesponto o que
garante que aquele selo natildeo foi parar em Troia atraveacutes de comerciantes
Segundo o hititologista holandecircs Alwin Kloekhorst a hipoacutetese luvita (que se destacou
em 1995) vem sendo bastante questionada e ele defende que eacute mais provaacutevel que a liacutengua
falada em Troia nessa eacutepoca fosse o lecircmnio oriundo da regiatildeo de Lemnos e que deu origem
ao etrusco Ele tambeacutem mostra que Troia na eacutepoca da guerra provavelmente natildeo era grega
Trūiša (uma regiatildeo de Wilǔsa que seria Troia) estava sob domiacutenio hitita embora haja
evidecircncias de embates entre os ahhiyawa (aqueus) e esse povo pelo domiacutenio da regiatildeo na
eacutepoca Contudo a partir do seacuteculo VIII aC (quando Homero compotildee seus poemas e os
gregos entram em processo de ldquocolonizaccedilatildeordquo) provavelmente havia ldquoGreek-speakersrdquo na
regiatildeo onde fora Troia (KLOEKHORST 2013 p 48) Ela era parte das apoikiacuteai (ldquocolocircniasrdquo
gregas)51 O historiador americano Barry Strauss corrobora a ideia de Kloekhorst afirmando
que Troia era uma cidade grega desde 750 aC quando foi povoada por colonos gregos e
assim se manteve durante toda a Antiguidade (STRAUSS 2008 p 28)
Desse modo o mundo das apoikiacuteai seria diretamente influenciado pela cultura e liacutengua
gregas Vlassopoulos coloca que essas ldquocolocircniasrdquo eram loci privilegiados tanto de trocas
culturais entre gregos e outros povos bem como paradoxalmente ajudaram a consolidar um
modelo forte do que eacute ser grego
o processo de criar apoikiacuteai fizeram o modelo de uma comunidade grega se tornar abstrato e canocircnico uma comunidade com um corpo de cidadatildeos divididos entre tribos governado por magistrados conselhos e assembleia equipado com um tipo particular de espaccedilo puacuteblico (agoraacute) e adornado com um tipo particular de templo e edifiacutecio puacuteblico (teatro casa concelhia ginaacutesio) (VLASSOPOULOS 2013 p 277)
Os troianos satildeo um grupo eacutetnico dentro da comunidade helecircnica no discurso de Homero
tendo em Paacuteris a siacutentese de alteridade visto que ele desrespeita coacutedigos helecircnicos Muitas das
caracteriacutesticas desse personagem satildeo reapropriados por Euriacutepides para caracterizar o baacuterbaro
(inclusive ele mesmo que jaacute seraacute denominado baacuterbaros em suas trageacutedias) Dentre esses
51 Kostas Vlassopoulos explica que natildeo eacute apropriado atribuir o conceito de ldquocolocircniardquo aos movimentos expansionistas gregos do seacuteculo VIII pois a ldquocolonizaccedilatildeordquo grega eacute completamente diferente da colonizaccedilatildeo moderna (2013 p 103)
104
pontos de diferenciaccedilatildeo estatildeo a predominacircncia do arco como arma de guerra a capacidade de
se submeter o exeacutercito inimigo (como pudemos ver com a anaacutelise dos siacutemiles de animais mas
sem deixar de valorizar esse inimigo para a vitoacuteria ser gloriosa) o excesso de ouro a
expressatildeo verbo-corporal (discurso defensivo e dissuasivo o esconder-se o jactar-se) as
vestimentas o excesso de medo a lida com as artes musicais a luxuacuteria a efeminaccedilatildeo (do
aliado caacuterio) a suacuteplica pela vida e a procrastinaccedilatildeo para entrar em batalha
Euriacutepides por sua vez explora ao maacuteximo esses elementos e os troianos jaacute se encontram
completamente frigianizados ligados agrave Aacutesia e sendo mostrado como baacuterbaros Os gregos que
agem como baacuterbaros satildeo comparados aos troianos bem como eles estatildeo sempre sendo
designados desse modo Assim tambeacutem a proacutepria fronteira do que eacute baacuterbaro e do que eacute grego
encontra-se cada vez mais turva haacute uma crise nessa definiccedilatildeo e o grego em Euriacutepides pode
barbarizar-se facilmente visto que estaacute em meio a uma guerra
A produccedilatildeo historiograacutefica acerca da etnicidade helecircnica tem sido cada vez mais
comum e esperamos que nossa pesquisa contribua para essa discussatildeo Esperamos ademais
que ela contribua para as anaacutelises acerca dos poemas homeacutericos e das trageacutedias de Euriacutepides
que tecircm sido cada vez menos comuns Com essa dissertaccedilatildeo objetivamos tambeacutem fomentar
o interesse pelo tema e novas pesquisas acerca dessa temaacutetica Cremos ser muito importante o
estudo da literatura grega porque ela foi o norte da sociedade helecircnica e reverbera ateacute os dias
de hoje seja em produccedilotildees fiacutelmicas ou na literatura
A funcionalidade paidecircutica dos textos que estudamos contribui para tal movimento
bem como a proacutepria importacircncia desse legado cultural oriundo dos gregos o qual tambeacutem se
faz sentir ateacute hoje no modo de pensar de construir de escrever Pudemos ver com a anaacutelise
de Paacuteris como o autor da Iliacuteada trabalha com a ideia do heroacutei e como atraveacutes de sua
representaccedilatildeo ele define as fronteiras eacutetnicas que perpassam essa paideiacutea a qual estaacute presente
tambeacutem nas trageacutedias de Euriacutepides que corroboram e reapropriam esses elementos de
diferenciaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo dos personagens sobretudo de Paacuteris o baacuterbaro
Outrora a Greacutecia possuiacutea uma grande extensatildeo territorial e sua importacircncia poliacutetica
econocircmica e cultural era grosso modo e com fins assimilativos tatildeo grande quanto a da
Inglaterra a partir da Primeira Revoluccedilatildeo Industrial e a dos Estados Unidos depois da Segunda
Guerra Mundial Hoje o pequeno paiacutes europeu que aparece nos jornais diariamente devido a
um periacuteodo de crise e necessidade ainda exerce uma influecircncia muito grande no que diz
respeito a esse legado que permanece de peacute A cultura helecircnica e o estudo acerca desta ainda
natildeo estatildeo em vistas de entrar em crise
105
Anexo | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO
LETRA GREGA TRANSLITERACcedilAtildeO
αααα a
ᾳᾳᾳᾳ a
ββββ b
γγγγ g
δδδδ d
εεεε e
ζζζζ z
ηηηη ē
ῆῆῆῆ ecirc
ῃῃῃῃ ē
θθθθ th
106
ιιιι i
κκκκ k
λλλλ l
micromicromicromicro m
νννν n
ξξξξ x
οοοο o
ππππ p
ρρρρ r
ῥῥῥῥ rh
σ ςσ ςσ ςσ ς s
ττττ t
υυυυ y (entre consoantes) u (em ditongos)
φφφφ ph
χχχχ kh
ψψψψ ps
ωωωω ō
ῶῶῶῶ ocirc
ῳῳῳῳ ō
Observaccedilatildeo sobre os espiacuteritos o grego antigo possui uma marcaccedilatildeo especiacutefica denominada espiacuterito Ele vem sobre todas as vogais o rocirc (ρ) inicial e as semivogais dos ditongos que iniciarem a palavra O espiacuterito pode ser fraco ou forte quando ele eacute fraco (rsquo) a vogal se pronuncia normalmente e quando ele eacute forte (lsquo) a vogal eacute pronunciada de modo aspirado como se estivesse sendo acompanhada por um erre (r) O rocirc do iniacutecio das palavras sempre teraacute espiacuterito forte visto que ele jaacute eacute aspirado conforme estaacute na tabela Quando transliteradas as palavras com espiacuterito forte possuem um agaacute (h) na frente Assim por exemplo a palavra
107
οὐρανός (ceacuteu) eacute transliterada como ouranoacutes ἁmicroαρτία (falha) como hamartiacutea ῥῶ (a letra grega ρ) como rhocirc com o agaacute entre o erre e a proacutexima letra
Observaccedilatildeo sobre os conjuntos γγ γκ e γχ quando aparecem essas consoantes juntas o primeiro gama eacute transliterado como ene (n) pois ele se nasaliza Assim por exemplo ἀγγελος (mensageiro) eacute transliterada como aacutengelos ἀναγκαία (necessidade) como anankaiacutea ἐγχανδής (amplo) como enkhandḗs
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTOacuteRIA PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA COMPARADA
Paacuteris Eacutepico Paacuteris Traacutegico
Um estudo comparado da etnicidade helecircnica entre Homero e
Euriacutepides (seacuteculos VIII e V aC)
Renata Cardoso de Sousa
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada do Instituto de Histoacuteria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de mestre
Orientador Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa
Rio de Janeiro
setembro de 2014
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTOacuteRIA PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA COMPARADA
Paacuteris Eacutepico Paacuteris Traacutegico
Um estudo comparado da etnicidade helecircnica entre Homero e
Euriacutepides (seacuteculos VIII e V aC)
Renata Cardoso de Sousa
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada do Instituto de Histoacuteria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de mestre
__________________________________________________________
Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa (orientador)
__________________________________________________________
Prof Dr Alexandre Santos de Moraes
__________________________________________________________
Profordf Drordf Regina Maria da Cunha Bustamante
Rio de Janeiro
setembro de 2014
3
4
Agradecimentos
Repito em minha dissertaccedilatildeo as mesmas palavras que coloquei em minha monografia
se eu agradecesse aqui a todas as pessoas que me ajudaram a chegar onde estou hoje soacute os
agradecimentos teriam o tamanho do Le grand Bailly Assim vocecirc que sabe que participou
da minha vida e natildeo estaacute aqui natildeo se sinta excluiacutedo eu tenho a consciecircncia de que vocecirc
participou dela
Devo essa dissertaccedilatildeo primeiramente ao meu orientador Faacutebio de Souza Lessa que
acreditou em mim desde o 3ordm periacuteodo da graduaccedilatildeo quando me perguntou se eu queria ser
bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica sem nem saber o que eu queria estudar
Agradeccedilo tambeacutem aos leitores do meu projeto de pesquisa na qualificaccedilatildeo e da minha
dissertaccedilatildeo a Prof Drordf Regina Maria da Cunha Bustamante e o Prof Dr Alexandre Santos
de Moraes que deram contribuiccedilotildees preciosiacutessimas para o desfecho dela
Tambeacutem foram importantes aqueles que leram meu projeto no momento em que entrei
no Mestrado e ajudaram-me a repensar alguns pontos fulcrais dele Leila Rodrigues da Silva
Wagner Pinheiro Pereira Silvio de Almeida Carvalho Filho Andreacute Leonardo Chevitarese e
Vantuil Pereira Ao professor Joseacute DrsquoAssunccedilatildeo Barros que me ajudou a amadurecer minhas
perspectivas teoacuterico-metodoloacutegicas e a ver outras possibilidades dentro do meu proacuteprio
trabalho
Deixo meu agradecimento tambeacutem aos amigos e amigas colegas de academia ou natildeo
que sempre estiveram comigo nessa minha jornada histoacuterica (literalmente) e que aturaram o
Paacuteris ateacute o fim Bruna Moraes da Silva Danielle Vasconcellos Jeacutessica Gomes Jessyca
Rezende Beatriz Vasconcellos Joselita de Queiroz Nascimento Michelle Moreira Gonccedilalves
de Oliveira e Edson Moreira Guimaratildees Neto
Agraves professoras de Grego (Aacutetico e Moderno) Tatiana Maria Gandelman de Freitas e
Luciacutelia Brandatildeo Se eu consegui ler um artigo em grego se eu consegui ler alguma coisa da
Iliacuteada na liacutengua original ou se consegui escrever esta pequenina frase foi graccedilas a elas Agrave
professora Carole Anaiumls que com sua paciecircncia infinita conseguiu fazer com que em dois
anos eu conseguisse ter domiacutenio suficiente do francecircs para conseguir ler minha bibliografia
Aos meus professores de Graduaccedilatildeo e Ensino Fundamental e Meacutedio soacute sou o que sou
hoje devido agrave educaccedilatildeo que tive nos coleacutegios e na Universidade Agradeccedilo sobretudo aos
meus professores de Histoacuteria e especialmente agrave Queila nunca vou esquecer do primeiro dia
5
de aula de Histoacuteria da antiga 5ordf seacuterie quando ela pediu que escrevecircssemos na primeira paacutegina
do caderno ldquoHISTOacuteRIA Eacute VIDArdquo
Agrave todos os meus familiares que estiveram colados comigo nessa empreitada sobretudo
minha matildee (Eliane) irmatilde (Roberta) avoacute (Carmelita) e prima (Sylvia) por sempre me
incentivarem a continuar nessa carreira
E por uacuteltimo mas natildeo menos importante aos ldquoHomerosrdquo que compuseram a Iliacuteada e
a Odisseia e a Euriacutepides sem eles que aiacute mesmo natildeo haveria dissertaccedilatildeo alguma
6
Resumo
Pretendemos analisar de forma comparada a representaccedilatildeo de Paacuteris heroacutei cujo ato e
aacutetē (perdiccedilatildeo) causaram a Guerra de Troia (c 1250-1240 aC) na Iliacuteada de Homero e nas
trageacutedias Alexandre (fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia
em Aacuteulis e Orestes de Euriacutepides de modo a compreender quais satildeo e como se
desenvolveram as fronteiras eacutetnicas helecircnicas Utilizaremos para a anaacutelise desse processo
histoacuterico-discursivo a metodologia comparada de Marcel Detienne expressa em sua obra
Comparar o Incomparaacutevel e para a anaacutelise do nosso corpus documental a Anaacutelise de
Discurso Francesa presente nas obras teoacutericas de Eni P Orlandi Dominique Maingueneau e
Pierre Charaudeau
Palavras-chave Histoacuteria Comparada Anaacutelise de Discurso Homero Euriacutepides etnicidade
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Abstract
We aim to analyze on a comparative basis the representation of Paris hero whose act
and aacutetē (perdition) caused the Trojan War (c 1250-1240 bC) in Homerrsquos Iliad and in
Euripidesrsquo tragedies Alexander (fragmentary) Andromache Trojan Women Hecuba
Helen Iphigenia in Aulis and Orestes in order to understand which are the hellenic ethnic
boundaries and how it has been developed We will use to analyze this historic-discursive
process the comparitive methodology of Marcel Detienne expressed in his Comparing the
incomparable and to analyze our corpus the French Discourse Analysis present in Eni P
Orlandi Dominique Maingueneau and Pierre Charaudeaursquos theoretical works
Keywords Comparative History Dicourse Analysis Homer Euripides ethnicity
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Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 09
CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE COMPOSICcedilAtildeO -------------p 24
CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES ----------------------------------------------------p 50
CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI ----------------------------------------------------------------------p 76
CONCLUSAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 100
ANEXO | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO --------------------------------------------------------p 105
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS ------------------------------------------------------------------p 107
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL --------------------------------------------------------------p 107
DICIONAacuteRIOS E GRAMAacuteTICAS ------------------------------------------------------------p 108
BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------p 109
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INTRODUCcedilAtildeO | TEMA PROBLEMAS METODOLOGIAS
ldquoO conhecimento revisitado das tradiccedilotildees da histoacuteria e literatura da Guineacute-Bissau poderaacute funcionar dessa forma como um
Outro que nos complementa ajudando-nos a revisitar ateacute mesmo a imagem que fazemos de noacutes proacutepriosrdquo
(SECCO 2007 p 16-17)
Vivemos em um mundo plural e por isso nos embatemos frequentemente com Outros
que natildeo necessariamente habitam um paiacutes distante o diferente mora ao nosso lado convive
conosco porque dentro de uma mesma sociedade eacute possiacutevel estabelecer uma relaccedilatildeo de
alteridade A cada dia que esbarramos com algueacutem que partilha de costumes e ideias
diferentes das nossas nos modificamos tambeacutem eacute como na metaacutefora de bolas de bilhar de
Norbert Elias (1994 p 29) pois quando nos relacionamos com as pessoas conversamos com
elas nunca permanecemos iguais fazendo com que sempre estejamos modificando nossos
limites de aceitaccedilatildeorejeiccedilatildeo nossas fronteiras de convivecircncia
Natildeo era diferente na Antiguidade e em nossa epiacutegrafe poderiacuteamos muito bem
substituir ldquoGuineacute-Bissaurdquo por ldquoGreacutecia Antigardquo afinal estamos lidando com pessoas Eacute o
homem que constroacutei suas proacuteprias leis bem como eacute ele quem faz a histoacuteria vivendo-a Agrave
medida que o homem vive ele deixa indiacutecios de sua vivecircncia Satildeo dessas ldquopistasrdquo desses
ldquorastrosrdquo que noacutes historiadores podemos estudar as sociedades do passado No presente
estudo se debruccedila sobre um indiacutecio que ateacute pouco tempo era desconsiderado pela Histoacuteria
como documentaccedilatildeo a literatura
Objetivamos natildeo somente analisar os textos que compotildeem nosso corpus mas coloca-
los em comparaccedilatildeo Cremos que a Iliacuteada de Homero (VIII aC) e as trageacutedias Alexandre
(fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes
(seacuteculo V aC) natildeo satildeo apenas produto de uma sociedade mas que as epopeias influenciaram
na construccedilatildeo da sociedade na qual eram encenadas as trageacutedias bem como as trageacutedias e as
proacuteprias epopeias influenciaram na construccedilatildeo de suas proacuteprias sociedades
Para estabelecer essa comparaccedilatildeo escolhemos como norte o antropoacutelogo Marcel
Detienne que em seu livro Comparar o incomparaacutevel lanccedilou uma seacuterie de conceitos-chave
e procedimentos para trabalhar com as comparaccedilotildees temporais eou espaciais A comparaccedilatildeo
eacute algo intriacutenseco ao ser humano Contudo fazer uma comparaccedilatildeo e fazer Histoacuteria Comparada
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eacute bem diferente eacute a partir dos anos 1920 com as obras de Marc Bloch que a Histoacuteria
Comparada vai tomando forma O objetivo dela para Bloch eacute ressaltar diferenccedilas e
semelhanccedilas em processos histoacutericos distintos tomando como base preferencialmente duas
sociedades contiacuteguas (BLOCH 1998 p 122-123) No Brasil eacute em fins da deacutecada de 1970
que esse meacutetodo comparativo eacute evidenciado Ciro Flamarion Cardoso e Heacutector Peacuterez Brignoli
chamam a atenccedilatildeo para a sua importacircncia nos estudos historiograacuteficos ressaltando ainda que
natildeo se trata de uma mera catalogaccedilatildeo de diferenccedilas e semelhanccedilas mas de busca de
peculiaridades (CARDOSO PEacuteREZ BRIGNOLI 1983 p 418)
Entretanto no iniacutecio do seacuteculo a Histoacuteria Comparada sofre uma crise com o crescente
destaque dado agrave Histoacuteria Cruzada o historiador Juumlrgen Kocka coloca que ambas devem se
relacionar que meacutetodo comparativo deve ser associado agrave histoire croisseacutee (KOCKA 2003 p
44) mas Michael Werner e Beacuteneacutedicte Zimmerman jaacute veem a Histoacuteria Comparada como algo
problemaacutetico em seu artigo Beyond comparison histoire croiseacutee and the chalenge of
reflexivity eles definem um meacutetodo de Histoacuteria Cruzada e mostram razotildees pelas quais a
Histoacuteria Comparada natildeo seria uma metodologia tatildeo adequada pois seu uso eacute binaacuterio
(semelhanccedilasdiferenccedilas) (WERNER ZIMMERMANN 2006 p 33)
Eacute no bojo dessas discussotildees que surge a proposta de Marcel Detienne ele critica a
ideia de que soacute se pode comparar sociedades contiacuteguas ressaltando a ideia de que se pode
ldquocomparar o incomparaacutevelrdquo pois as sociedades espalhadas pelo mundo embora plurais
compartilham algumas instituiccedilotildees (DETIENNE 2004 p 10 e 47) o casamento a fundaccedilatildeo
a morte etc Embora Detienne seja aacutecido em suas criacuteticas visto que Marc Bloch natildeo excluiacutea a
possibilidade de comparar sociedades distantes no tempo e no espaccedilo (BLOCH 1998 p
121) eacute ele que melhor define um meacutetodo comparativo fechado e por isso escolhemo-lo como
norte teoacuterico
Assim partindo de uma categoria1 (etnicidade) definimos como comparaacutevel2 a
representaccedilatildeo de Paacuteris tanto na epopeia homeacuterica quanto nas trageacutedias de Euriacutepides Essas
representaccedilotildees seratildeo devidamente analisadas em sua intrinsecidade atraveacutes da Anaacutelise de
Discursos cabendo a noacutes pesquisadores de Histoacuteria Comparada colocar essas experiecircncias
variadas lado a lado para contrastaacute-las eou aproximaacute-las Temos em mente que o meacutetodo eacute
um caminho e o objeto o qual pretendemos construir eacute que orienta a escolha dele
1 A categoria eacute um ldquotraccedilo significativo uma atitude mentalrdquo que faz parte de ldquoum conjunto uma configuraccedilatildeordquo (DETIENNE 2004 p 57) 2 Os comparaacuteveis satildeo ldquomecanismos de pensamento observaacuteveis nas articulaccedilotildees entre os elementos arranjados conforme a entrada lsquofigura inaugural que vem de forarsquo lsquonatildeo-iniacuteciorsquo ou outras [] satildeo orientaccedilotildees essas relaccedilotildees em cadeia essas escolhasrdquo (DETIENNE 2004 p 57-58)
11
(ANDRADE 1998 p 38) e visto que queremos estudar um processo ideoloacutegico de definiccedilatildeo
de fronteiras eacutetnicas que tem como recorte temporalidades distintas a metodologia
comparativa de Detienne encaixou-se adequadamente
Para ler nosso corpus documental adotamos como metodologia de leitura analiacutetica a
proposta por Eni Puccinelli Orlandi em seu livro Anaacutelise de Discurso Princiacutepios amp
Procedimentos Identificamo-nos com a Anaacutelise de Discurso francesa3 por dois motivos pela
natureza do nosso corpus e pela proposta soacutecio-histoacuterica desse meacutetodo Nossa documentaccedilatildeo
eacute formada por textos cada um deles eacute a unidade analiacutetica do discurso entendido como um
processo em curso (ORLANDI 2012 p 39) Assim tomamos o discurso de Homero e o
discurso de Euriacutepides como partes de um processo discursivo mais amplo
A Anaacutelise de Discurso trata de um sistema que envolve natildeo apenas o discurso em si
mas a relaccedilatildeo entre liacutengua ideologia e histoacuteria tendo em vista a produccedilatildeo de sentidos O
processo discursivo implica no perpasso da ideologia4 pelo discurso eacute ela que produz sentido
pois ldquose materializa na linguagemrdquo (ORLANDI 2012 p 96) A linguagem por sua vez ldquoeacute
linguagem porque faz sentido E [] soacute faz sentido porque se inscreve na histoacuteriardquo
(ORLANDI 2012 p 25 ndash grifos nossos) A histoacuteria eacute o sentido visto que o sujeito do
discurso ldquose faz (se significa) napela histoacuteriardquo (ORLANDI 2012 p 95)
A fim de chegarmos agrave compreensatildeo desse processo discursivo eacute necessaacuterio cumprir trecircs
etapas a partir da dessuperficializaccedilatildeo5 da superfiacutecie linguiacutestica (corpus documental)
selecionado (a) obtemos o objeto discursivo (b) que se transforma em processo discursivo
(c) ao chegarmos na formaccedilatildeo ideoloacutegica daquele objeto
(a) (b) (c)
3 A AD francesa eacute diferente da AD anglo-saxatilde enquanto aquela eacute oriunda da linguiacutestica e privilegia discursos escritos esta vem da antropologia e trabalha mais com discursos orais Aleacutem disso a francesa destaca os mais propoacutesitos textuais e a inglesa os comunicacionais (MAINGUENEAU 1997 p 16) 4 Defendemos que a ideologia em Homero eacute a proacutepria paideiacutea ldquoPor ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacuteticardquo (LESSA 2010 p 22) 5 O processo de dessuperficializaccedilatildeo consiste na ldquoanaacutelise do que chamamos materialidade linguiacutestica o como se diz o quem diz em que circunstacircncias etcrdquo (ORLANDI 2012 p 65)
dessuperficializaccedilatildeo
CORPUS
DOCUMENTAL
OBJETO
DISCURSIVO
PROCESSO
DISCURSIVO ideologia
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A Guerra de Troia (1250-1240 aC) eacute um dos eventos da Antiguidade Grega mais
relembrados por noacutes hoje em dia Enquanto para noacutes essas histoacuterias satildeo mitos natildeo existiram
de verdade para os gregos ela existiram de fato O passado que se reapropriava era um
passado veriacutedico de um tempo preteacuterito e a sua funccedilatildeo era extremamente didaacutetica com os
heroacuteis de outrora se aprendia a ser um verdadeiro homem Homero ou Euriacutepides ao
comporem seus textos natildeo questionavam a materialidade histoacuterica desses personagens e
mesmo Tuciacutedides um historiador utilizava a memoacuteria desses heroacuteis do passado em sua
Histoacuteria da Guerra do Peloponeso como se eles tivessem existido
Paacuteris Helena Heitor Menelau podem natildeo ter sido de ldquocarne e ossordquo mas
permanecem no nosso imaginaacuterio muitos filmes seacuteries de televisatildeo e mesmo livros de ficccedilatildeo
satildeo escritos tendo os mitos gregos como pano de fundo Essa reapropriaccedilatildeo do material miacutetico
natildeo eacute contudo exclusividade do mundo contemporacircneo tragedioacutegrafos e poetas dos periacuteodos
arcaico claacutessico e heleniacutestico tambeacutem manejavam esses mitos para compor suas proacuteprias
histoacuterias Do mesmo modo que podiam modificar as histoacuterias modificavam tambeacutem o caraacuteter
dos personagens
A imagem de Paacuteris como um completo covarde estaacute arraigada em nosso imaginaacuterio
Se tivermos em mente o desempenho de Paacuteris no Canto III da Iliacuteada essa ideia parece ser
bem apropriada (HOMERO Iliacuteada III vv 21-37) Tal episoacutedio nos chamou a atenccedilatildeo o
heroacutei foge (algo que ele natildeo deveria fazer pois eacute um heroacutei) Contudo Paacuteris decide retornar
para a luta (III vv 68-70) Em Euriacutepides natildeo temos cenas assim Paacuteris eacute apenas mencionado
No nosso corpus documental apenas em Aleacutexandros ele eacute de fato personagem (com falas
etc)
Assim como pretendemos analisar a sua representaccedilatildeo Atraveacutes da anaacutelise dos
adjetivosepiacutetetos que adornam sua caracterizaccedilatildeo e dos comentaacuterios dos outros personagens
acerca dele Catalogaremos esses elementos e inserindo-os no acircmbito do discurso iremos
delinear o personagem e qual o seu papel dentro da narrativa A helenista Irene de Jong
mostra que os personagens off-stage (que estatildeo fora do palco) tambeacutem desempenham papeacuteis
importantes denotando a ideia de que ldquolsquocontarrsquo natildeo precisa ser menos impressionante do que
lsquomostrarrsquordquo (DE JONG 2011 p 389)
A Iliacuteada e as trageacutedias euripidianas mostram momentos distintos da Greacutecia Antiga o
Periacuteodo Arcaico (VIII-VII aC) no qual a poesia grega floresceu com Homero e Hesiacuteodo
dois aedos que lanccedilaram as bases temaacuteticas para o gecircnero traacutegico o qual nasceu e entrou em
crise no Periacuteodo Claacutessico (V aC) e foi imortalizado por trecircs grandes tragedioacutegrafos Eacutesquilo
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Soacutefocles e Euriacutepides Ao recortarmos nossa pesquisa neste uacuteltimo traacutegico referimo-nos a
Atenas visto que seu cenaacuterio de composiccedilatildeo era nesta poacutelis
Em relaccedilatildeo a Euriacutepides natildeo temos problemas de dataccedilatildeo sabemos que ele eacute de fato
do seacuteculo V aC Entretanto com relaccedilatildeo a Homero esbarramos com esse problema Natildeo
sabemos quando ele foi composto ou quando ele foi colocado na escrita mas podemos chegar
a um consenso A maioria dos helenistas coloca a eacutepica homeacuterica no seacuteculo VIII aC poreacutem
haacute discordacircncias O historiador Gustavo Oliveira diferencia quatro abordagens acerca desses
embates acadecircmicos a) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram compostosrdquo
b) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram fixadosrdquo c) ldquoos poemas dizem
respeito ao periacuteodo que tentaram retratarrdquo d) ldquoos poemas dizem respeito ao passado recente
alcanccedilado na tentativa de atingir um passado ainda mais distanterdquo (OLIVEIRA 2012)6
Os defensores de (a) creem que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o reflexo da sociedade do
periacuteodo em que eles foram compostos e o historiador vecirc nisso um problema pois eacute necessaacuterio
fixar essa marca para se ter certeza de qual sociedade se analisa e ainda natildeo temos
comprovaccedilatildeo exata do periacuteodo em que a eacutepica homeacuterica foi composta Geralmente os
defensores dessa ideia colocam Homero no seacuteculo VIII aC
Recentemente ateacute mesmo a geneacutetica se debruccedilou sobre esse tema esses pesquisadores
acreditam que a liacutengua eacute como um DNA e as palavras genes Esses ldquogenesrdquo vatildeo passando de
uma liacutengua para outra criando raiacutezes etimoloacutegicas semelhantes como acontece na palavra
aacutegua (do proto-germacircnico watōr derivaram-se wato ndash goacutetico ndash water ndash inglecircs ndash wasser ndash
alematildeo ndash vatten ndash sueco ndash etc) (ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p
417) Eles isolam essas palavras em comum entre o hitita o grego moderno (essas duas as
quais se conhece a eacutepoca em que se desenvolveram) e o grego homeacuterico e atraveacutes de uma
frequecircncia de cadeia de Markov7 chegam agrave conclusatildeo que a antiguidade do grego da Iliacuteada eacute
de cerca de 2720 anos ou seja que seria mais ou menos de 707 aC Com a margem que eles
potildeem nesse meacutetodo os textos homeacutericos satildeo datados de entre 760 a 710 aC
O objetivo desses pesquisadores eacute mostrar que a ldquolinguagem pode ser usada como os
genes para ajudar na investigaccedilatildeo das questotildees histoacutericas arqueoloacutegicas e antropoloacutegicasrdquo
(ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p 419) e eles afirmam que como 6 Para conhecer quais helenistas partilham de quais opiniotildees consultar o artigo de Gustavo Oliveira intitulado Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas homeacutericos (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 7 Essa cadeia funciona do seguinte modo temos um objeto x do qual natildeo conhecemos nada mas tambeacutem temos dois objetos y e z que se relacionam com esse x e do qual conhecemos algo em comum Assim atraveacutes de uma foacutermula fixa conseguimos chegar ao resultado do nosso x Aqui no caso o x seria o grego homeacuterico o y e o z o hitita e o grego moderno
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esses textos satildeo oriundos de uma tradiccedilatildeo oral fica difiacutecil de dizer se essa data diz respeito a
quando eles foram produzidos ou cristalizados na escrita A importacircncia desse estudo eacute
tambeacutem mostrar como esse eacute um problema que natildeo intriga somente a noacutes cientistas humanos
mas aos cientistas das aacutereas de Exatas e Bioloacutegicas tambeacutem aumentando o leque de diaacutelogo
transdisciplinar Desse modo cremos que sua menccedilatildeo eacute essencial para chamar a atenccedilatildeo para
outras perspectivas de trabalho
Os defensores de (b) creem que os poemas dizem respeito agrave sociedade que os fixou na
escrita fazendo com que a dataccedilatildeo fique mais imprecisa ainda Natildeo haacute como chegar num
consenso como chegamos em (a) acerca de qual data seria mais apropriada Jaacute os que
defendem (c) acreditam que os poemas dizem respeito ao Periacuteodo Palaciano (XVII-1100
aC) pois fazem referecircncia a esse passado quando teria se desenrolado a Guerra de Troia
Essa proposta natildeo eacute tatildeo bem aceita embora alguns estudiosos admitam que haacute muacuteltiplas
temporalidades em Homero (OLIVEIRA 2012 p 133)
Os pesquisadores que adotam (d) como proposta de dataccedilatildeo acreditam que os eacutepicos
referem-se ao periacuteodo da desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) Um dos principais
defensores dessa ideia eacute o historiador Moses Finley ele afirma que ldquo[O mundo de Ulisses]
Era muito mais lsquosimplesrsquo na sua organizaccedilatildeo social e poliacutetica era iletrada [sic] e a sua
arquitetura natildeo era verdadeiramente monumental quer se destinasse aos vivos quer aos
mortosrdquo (FINLEY 1982 p 45) Eacute juntamente com (a) uma das principais perspectivas
Claude Mosseacute a inclui no seu verbete sobre Homero no Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega
(2004 p 171-172) mas admite que mesmo assim a dataccedilatildeo permanece um enigma para noacutes
Gustavo Oliveira afirma que ldquoo maior problema com essa tendecircncia de associar os poemas
homeacutericos com o periacuteodo da Idade das Trevas estaacute justamente na falta de documentaccedilatildeo que
comprove ou ao menos sugira sua probabilidaderdquo (OLIVEIRA 2012 p 135)
Do mesmo modo o historiador Alexandre Santos de Moraes aborda essa discussatildeo em
sua tese de doutorado afirmando ser o periacuteodo entre os seacuteculos X a IX aC o ideal para se
colocar o que a Iliacuteada e a Odisseia mostram a sociedade homeacuterica seria a sociedade da eacutepoca
de desestruturaccedilatildeo palaciana O autor revisita as teses de Anthony Snodgrass e Oswyn Murray
e toma Ian Morris como principal representante da dataccedilatildeo de Homero no seacuteculo VIII aC
desconstruindo muitos de seus argumentos A eacutepica homeacuterica natildeo deve ser considerada
oriunda de um periacuteodo no qual surge a escrita pois pertence agrave tradiccedilatildeo oral bem como natildeo
podemos atribuir a Homero a criaccedilatildeo de um sistema poliacuteade muitos autores afirmam que
podemos encontrar sinais da poacutelis em Homero
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Essa uacuteltima ideia eacute problemaacutetica a eacutepica jaacute traz o termo poacutelis mas ele natildeo diz respeito
agrave organizaccedilatildeo poliacutetica social econocircmica e administrativa que encontramos no Periacuteodo
Claacutessico O centro do poder em Homero eacute ainda o palaacutecio embora possamos encontrar
estruturas que estaratildeo presentes na poacutelis como a assembleia Nesses poemas haacute uma
miscelacircnea temporal muito grande natildeo podendo noacutes delimitarmos um uacutenico periacuteodo sem
sermos arbitraacuterios O proacuteprio Finley afirma que ldquoeacute com alguma liberdade que o historiador
fixa nos seacuteculos X e IX aC o mundo de Ulissesrdquo (FINLEY 1982 p 46)
Devido a essa polecircmica eacute muito difiacutecil para o historiador tomar uma posiccedilatildeo acerca da
data da composiccedilatildeo das epopeias Escolhemos o seacuteculo VIII aC agrave medida em que
defendemos que esses poemas dizem respeito jaacute a um movimento de conquista de apoikiacuteai
como defende o historiador Irad Malkin Mas eacute fato que a ancoragem histoacuterico-temporal
desses poemas pode retroceder mais no tempo visto que ele pertence a uma tradiccedilatildeo oral O
que vai mais nos interessar em nossa pesquisa eacute que a epopeia pertence a um tempo anterior
agraves trageacutedias
Sendo periacuteodos e gecircneros distintos cada um tende a representar Paacuteris de uma maneira
Nosso problema diz respeito a um processo que comeccedila com as epopeias de Homero e
continua a se desenvolver em outros gecircneros literaacuterios trata-se de um processo de elaboraccedilatildeo
de um coacutedigo de conduta social atraveacutes da praacutetica da paideiacutea8 o qual iraacute definir tambeacutem as
bases do que eacute grego e do que natildeo eacute Desde Homero haacute um discurso de alteridade Assim
indagamo-nos o que eacute grego9 O que natildeo eacute Era mais faacutecil para os gregos responderem agrave
uacuteltima pergunta definia-se o natildeo-grego para se definir o grego
Ao longo de toda a Odisseia o heroacutei Odisseu toma contato com Outros todavia eacute no
episoacutedio dos ciclopes em que se teraacute o contato com o grande representante da alteridade
helecircnica o qual seraacute recuperado por exemplo no drama satiacuterico Os Ciclopes de Euriacutepides
Odisseu os descreve assim ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo
cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεmicroίστων ἱκόmicroεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι
πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO
Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)
O que importa nessas sequecircncias natildeo eacute a caracterizaccedilatildeo dos ciclopes mas a definiccedilatildeo
daquilo que definitivamente natildeo eacute helecircnico Pela descriccedilatildeo de Odisseu podemos caracterizar 8 Literalmente paideiacutea significa ldquocriaccedilatildeo de meninosrdquo Ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas Para melhor definiccedilatildeo ver o capiacutetulo 1 de nossa dissertaccedilatildeo (Entre Homero e Euriacutepides dois estilos de composiccedilatildeo) 9 Vale ressaltar que ldquogregordquo aqui eacute uma conveniecircncia Haacute um intenso debate em torno do termo ldquohelenordquo ele eacute usado em Homero para designar determinado povo natildeo todos os povos gregos como seraacute no Periacuteodo Claacutessico
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os gregos eles vivem sob um coacutedigo de leis sua principal fonte de subsistecircncia eacute a
agricultura eles vivem em comunidade cultuam os deuses o patildeo eacute o seu principal alimento e
possuem caracteriacutesticas humanas sendo inclusive belos10
Por isso preferimos utilizar o conceito de alteridade tal qual Marc Augeacute propotildee Para ele
a identidade eacute produzida pelo reconhecimento de alteridades colocando em cena um Outro
(AUGEacute 1998 p 19 e 20) que pode ser a) o Outro exoacutetico que eacute definido a partir de um noacutes
homogecircneo b) o Outro eacutetnico homogecircneo ndash como eacute o caso dos gregos em relaccedilatildeo com os
baacuterbaros c) o Outro social (a mulher a crianccedila o transgressor) e o Outro iacutentimo pois temos
vaacuterias identidades (AUGEacute 2008 p 22-3)
Segundo esse antropoacutelogo ldquonatildeo existe afirmaccedilatildeo identitaacuteria sem redefiniccedilatildeo das relaccedilotildees
de alteridade como natildeo haacute cultura viva sem criaccedilatildeo culturalrdquo (AUGEacute 1998 p 28)
Identidade e alteridade natildeo se opotildeem natildeo se excluem formam um par complementando-se
visto que satildeo ldquocategorias [] que a constituem [a sociedade] e definemrdquo (AUGEacute 1998 p
10) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no
contato entre os colonizadores e os nativos
O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica o contato com
outras culturas eacute imbuiacutedo de choques Contudo Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de outro
retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas
em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para
definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) E se pararmos para pensar o conectivo
adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse
vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 p 63-4) o ldquooutrordquo assemelha-se ao
ldquomasrdquo ao adverso
Assim como o conceito de alteridade o de etnicidade tem um apelo marcadamente
antropoloacutegico Escolhemos trabalhar com o modo como Fredrik Barth entende a etnicidade e
mais ainda o que eacute uma fronteira eacutetnica e um grupo eacutetnico conceitos-chave para
entendermos sua abordagem Embora seja um texto claacutessico Barth conseguiu abarcar o que
compreendemos sobre etnicidade ou seja um discurso criado por um grupo para legitimar
seu lugar social sendo que esse discurso natildeo vem do nada mas sim da relaccedilatildeo com outros
grupos
10 O termo utilizado pelos helenos para designar o belo eacute kaloacutes que tem tanto uma conotaccedilatildeo de beleza externa quanto interna (virtude) podendo inclusive dependendo do contexto ser traduzido como ldquobomrdquo bem como o seu antocircnimo kakoacutes pode ser traduzido por ldquofeiordquo ou ldquomaurdquo
17
O termo etnia vem de um outro eacutethnos que eacute ldquotoda classe de seres de origem ou de
condiccedilatildeo comumrdquo (BAILLY 2000 p 581) Ele pode designar tanto um bando de animais
(eacutethnea ndash nominativo eacutepico jocircnico plural ndash HOMERO Iliacuteada II 459 para gansos II 469
para moscas Odisseia XIV v 73 para porcos) quanto um conjunto de pessoas O termo
eacutethnos aparece geralmente ligado a uma estrutura formulaica como ldquoἂψ δ ἑτάρων εἰς
ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἐχάζετο κῆρ ἀλεείνωνrdquo (ldquomas de volta ao grupo ndash eacutethnos ndash dos companheiros retorna
evitando a morte em batalha - kḗrrdquo) ou ldquoἐπεὶ ἵκετο ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἑταίρωνrdquo (ldquodepois voltou ao grupo
ndash eacutethnos ndash de companheirosrdquo11) visto que se repetem algumas vezes ao longo da Iliacuteada (a
primeira estrutura mais do a segunda)
O conceito de etnicidade comeccedilou a ser debatido recentemente desde a deacutecada de 1970
que esse debate se destaca
O debate sobre a etnicidade foi alimentado desde a deacutecada de 1970 por uma abundante bibliografia que se enriqueceu de modo consideraacutevel o conhecimento empiacuterico das situaccedilotildees intereacutetnicas atuais em todas as partes do mundo natildeo chegou verdadeiramente ateacute hoje a permitir que se destaque uma teoria geral da etnicidade (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 120)
Contudo a heterogeneidade do debate natildeo permitia que se chegasse a uma definiccedilatildeo
mais concreta de etnicidade e uma proposta de conceituaccedilatildeo ainda natildeo havia sido elaborada
Confundia-se (e ainda se confunde) muito os termos ldquoraccedilardquo e ldquoetniardquo que se configuram em
instacircncias diferentes a etnia diz respeito agraves relaccedilotildees sociais entre o ldquonoacutesrdquo e o ldquoelesrdquo e a raccedila
diz mais respeito agraves configuraccedilotildees bioloacutegico-fenotiacutepicas que diferenciam um grupo do outro
Obviamente o argumento racial seraacute utilizado algumas vezes para essa diferenciaccedilatildeo
dicotocircmica mas isso quer dizer que ele tem relaccedilatildeo com o conceito de etnicidade natildeo que
seja sinocircnimo deste
Assim Glazer amp Moynihan defendem que ldquoa etnicidade refere-se a um conjunto de
atributos ou de traccedilos tais como a liacutengua a religiatildeo os costumes o que a aproxima da noccedilatildeo
de cultura ou agrave ascendecircncia comum presumida dos membros o que a torna proacutexima da noccedilatildeo
de raccedilardquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Outros autores relacionam a
etnicidade com o que impulsiona a formaccedilatildeo de um povo com a adequaccedilatildeo comportamental
das pessoas agraves normas sociais de um grupo ou agraves representaccedilotildees que condensam a pertenccedila a
um grupo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86)
11 Esses versos satildeo de traduccedilatildeo proacutepria
18
Como pudemos ver as definiccedilotildees satildeo diversas Houve uma tentativa de juntar todas
essas definiccedilotildees para compor o conceito de etnicidade em fins da deacutecada de 1978 (Burgess)
mas que acabou por generalizaacute-lo No acircmbito da Histoacuteria Antiga o historiador americano
Jonathan M Hall procurou sumarizar em oito pontos o que ele entende por etnicidade a partir
de leituras diversas
(1) A etnicidade eacute um fenocircmeno mais social do que bioloacutegico Eacute definida mais por criteacuterios social e discursivamente construiacutedos do que por indiacutecios sociais
(2) Traccedilos culturais geneacuteticos linguiacutesticos religiosos ou comuns natildeo definem essencialmente o grupo eacutetnico Esses satildeo siacutembolos que satildeo manipulados de acordo com fronteiras atribuiacutedas construiacutedas subjetivamente
(3) O grupo eacutetnico eacute distinto de outros grupos sociais e associativos em virtude da associaccedilatildeo com um territoacuterio especiacutefico e um mito de origem compartilhado Essa noccedilatildeo de descendecircncia eacute mais putativa do que atual e julgada por consenso
(4) Os grupos eacutetnicos satildeo frequentemente formados pela apropriaccedilatildeo de recursos por uma seccedilatildeo da populaccedilatildeo ao custo de outra como resultado de uma conquista ou migraccedilatildeo de longa data ou pela reaccedilatildeo contra tais apropriaccedilotildees
(5) Os grupos eacutetnicos natildeo satildeo estaacuteticos ou monoliacuteticos mas dinacircmicos e fluidos Suas fronteiras satildeo permeaacuteveis ateacute certo grau e elas podem ser produto de um professo de assimilaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo
(6) Os indiviacuteduos natildeo precisam sempre agir em termos de sua pertenccedila a um grupo eacutetnico Quando contudo a identidade do grupo eacutetnico eacute ameaccedilada sua internalizaccedilatildeo como identidade social de cada um de seus membros implica numa convergecircncia de normas e comportamentos de grupo e a supressatildeo temporaacuteria da variabilidade individual no esforccedilo por uma identidade social positiva
(7) Tal convergecircncia comportamental e saliecircncia eacutetnica eacute mais comum entre (ainda que natildeo exclusiva a) grupos dominados e excluiacutedos
(8) A identidade eacutetnica soacute pode ser constituiacuteda em oposiccedilatildeo a outras identidades eacutetnicas (HALL 1997 p 33)
A definiccedilatildeo de Hall se aproxima bastante da defendida por Fredrik Barth e Abner
Cohen autores que nos chamaram a atenccedilatildeo Desse modo propomos nos debruccedilar sobre as
ideias deles dois visto que ambos nos chamaram a atenccedilatildeo ao tratar da etnicidade No
entanto escolhemos apenas um como norte teoacuterico o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth
Para esse autor o grupo eacutetnico natildeo eacute sinocircnimo de sociedade ou cultura Essa eacute uma premissa
fundamental visto que trabalhamos com dois grupos que compartilham de um mesmo coacutedigo
de conduta social Barth afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural
especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) esse ldquoconjunto culturalrdquo seria
justamente a paideiacutea com o coacutedigo de conduta que ela transmite
Aleacutem disso ele enfoca justamente nos limites desse grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo
de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com
outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos
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culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de
transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo
(LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando
os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios
para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)
A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se
define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado
pelo conceito de etnicidaderdquo afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart eacute aquele
que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e
satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de
traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees
raciaisrdquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 141)
A etnicidade tambeacutem implica na construccedilatildeo de representaccedilotildees sociais pois ldquoa
identificaccedilatildeo de outra pessoa como pertencente a um grupo eacutetnico implica compartilhamento
de criteacuterios de avaliaccedilatildeo e julgamentordquo (BARTH 2011 p 196) pois assim se tem a ideia de
que se ldquojoga o mesmo jogordquo nas palavras mesmo de Barth Essas representaccedilotildees satildeo
fundamentais para manter as caracteriacutesticas do grupo visto que a comunicaccedilatildeo eacute o locus
privilegiado de inculcaccedilatildeo delas
Ao pesquisarmos sobre o conceito de etnicidade encontramos outro autor que nos
chamou bastante atenccedilatildeo o antropoacutelogo iraquiano Abner Cohen Esse autor estuda as
sociedades africanas contemporacircneas mostrando como os costumes influenciam a poliacutetica e
como o discurso eacutetnico define relaccedilotildees de poder entre grupos eacutetnicos Assim como Barth
Cohen tambeacutem crecirc que o grupo se define e se redefine pelo contato com outros grupos
eacutetnicos ldquoum grupo eacutetnico se ajusta a novas realidades sociais adotando costumes de outros
grupos ou desenvolvendo novos costumes que satildeo compartilhados com outros gruposrdquo
(COHEN 1969 p 1)
Aleacutem disso o antropoacutelogo afirma que
Os diferentes grupos eacutetnicos organizam essas funccedilotildees [normas culturais valores mitos e siacutembolos] de modos diferentes de acordo com as suas tradiccedilotildees culturais e circunstacircncias estruturais Alguns grupos eacutetnicos fazem uso extensivo dos idiomas religiosos organizando essas funccedilotildees Outros grupos usam a descendecircncia [kinship] ou outras formas de relaccedilotildees morais em vez disso No curso do tempo o mesmo grupo pode mudar de um princiacutepio articulador para outro como resultado de mudanccedilas dentro do sistema poliacutetico encapsulado de ou outros desenvolvimentos ambos dentro ou fora do grupo (COHEN 1969 p 5-6)
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Contudo esbarramos no pensamento desse antropoacutelogo quando este afirma que ldquode
acordo com o meu uso um grupo eacutetnico eacute um grupo de interesse informal cujos membros satildeo
distintos dos membros de outros grupos dentro da mesma sociedaderdquo (COHEN 1969 p 4)
Isso seria aplicaacutevel somente agrave Iliacuteada visto que aqueus e troianos seriam membros de uma
mesma comunidade (que estaacute sob um mesmo coacutedigo de conduta) embora sejam membros de
diferentes grupos eacutetnicos Entretanto na realidade de Euriacutepides em que a dicotomia grego
baacuterbaro estaacute bem mais definida (e em crise) essa observaccedilatildeo natildeo se aplica a sociedade grega
eacute diferente da sociedade baacuterbara
Especificamente tratando da Antiguidade Grega alguns autores se debruccedilaram sobre a
questatildeo da etnicidade e da alteridade O mais antigo registro bibliograacutefico que trazemos em
nossa discussatildeo eacute o da helenista Helen Bacon Barbarians in Greek tragedy (1955) Em seu
doutorado ela faz uma anaacutelise dos elementos que caracterizam o baacuterbaro nas trageacutedias de
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides Tanto o vestuaacuterio como o modo de falar ou as accedilotildees definem
um personagem baacuterbaro mas dependendo do autor um ou outro elemento eacute enfatizado
Em 1989 Edith Hall publicou a sua tese doutoral Inventing the barbarian Greek
self-definition through tragedy que teve grande repercussatildeo no meio acadecircmico
Praticamente todos os livros que trazem a questatildeo da alteridadeetnicidade mencionam o
trabalho de Hall que se destina agrave anaacutelise da poesia traacutegica tambeacutem Sua hipoacutetese principal eacute a
de que quando os gregos escrevem sobre os baacuterbaros eles estatildeo fazendo um ldquoexerciacutecio de
auto-definiccedilatildeordquo pois eles satildeo opostos e que essa ldquoinvenccedilatildeordquo teria comeccedilado a partir das
Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) Aleacutem disso ela defende que a ideia de pan-helenismo
tem mais a ver com um ideal atenocecircntrico do que helenocecircntrico Com relaccedilatildeo a Homero ela
afirma que natildeo existe uma polarizaccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros no poema embora essa
diferenciaccedilatildeo existisse nessa eacutepoca admitindo que a Guerra de Troia originalmente seria
entre duas comunidades (HALL 1989 p 23) Contudo ela critica os autores que veem em
Homero uma diferenciaccedilatildeo clara entre gregos e troianos
Em 1993 a helenista francesa Jacqueline de Romilly escreve um artigo comentando o
livro de Edith Hall Les barbares dans la penseacutee de la Gregravece classique Ela chama a atenccedilatildeo
para o fato de que mais do que inventar o baacuterbaro os gregos inventaram o helenismo
(ROMILLY 1993 p 3) A autora reforccedila a ideia de que essa dicotomia eacute mais poliacutetica do que
racial embora admita que os gregos se liguem tambeacutem pelo criteacuterio da raccedila
No mesmo ano Barbara Cassin Nicole Loraux e Catherine Peschanski organizaram
Gregos baacuterbaros estrangeiros a cidade e seus outros com cinco ensaios das autoras
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sobre a questatildeo da alteridade na Greacutecia Claacutessica especificamente apresentados no Rio de
Janeiro a convite do Coleacutegio Internacional de Estudos Filosoacuteficos Transdisciplinares Elas
analisam sobretudo como a poacutelis lidava com os seus Outros categorizando e caracterizando
o estrangeiro A documentaccedilatildeo principal reside na historiografia helecircnica sendo Heroacutedoto
Tuciacutedides e Xenofonte os mais trabalhados Elas mostram como os gregos satildeo gregos por
cultura natildeo por natureza e como eles podem voltar a ser baacuterbaros atraveacutes do desrespeito dos
coacutedigos de valores helecircnicos (CASSIN LORAUX 1993 p 10)
Um ano depois Pericles Georges escreveu um livro que aborda natildeo soacute o Periacuteodo
Claacutessico mas tambeacutem o Arcaico Barbarian Asia and the Greek experience from the
Archaic Period to the age of Xenophon Sua proposta no livro eacute mostrar como os gregos
estereotiparam o baacuterbaro e qual a origem disso evidenciando como essa definiccedilatildeo ajudou a
construir a identidade grega No tocante a Homero ele tambeacutem natildeo crecirc haver diferenciaccedilatildeo
entre gregos e troianos mas admite que a Iliacuteada jaacute traz uma diferenciaccedilatildeo entre o noacutes e o eles
sobretudo ao se referir aos caacuterios e liacutedios
Antonio Mario Battegazzore escreveu em 1996 um artigo interessante sobre essa
polarizaccedilatildeo grego versus baacuterbaro La dicotomia greci-barbari nella Grecia Classica
riflessioni su cause ed effetti di una visione etnocecircntrica Seu trabalho eacute interessante pois
corrobora a ideia de que os gregos tecircm dois tipos de leitura sobre os baacuterbaros uma horizontal
(na qual os gregos reivindicam uma centralidade geograacutefico-cultural em relaccedilatildeo aos outros
povos) e uma vertical (os gregos satildeo evoluiacutedos pois o passado baacuterbaro ficou para traacutes os
baacuterbaroi de hoje satildeo atrasados visto que pararam no tempo) (BATTEGAZZORE 1996 p
23) Ele natildeo admite a possibilidade de diferenciaccedilatildeo entre troianos e gregos na Iliacuteada
analisando essa dicotomia no Periacuteodo Claacutessico
O historiador Irad Malkin em 1998 escreve um livro inovador no que diz repeito ao
uso conceitual da etnicidade para o mundo Antigo The returns of Odysseus colonization
and ethnicity Ele analisa os nostoiacute heroacuteis que cruzam regiotildees tentando voltar para casa na
mitologia grega e os relaciona agrave definiccedilatildeo da identidade helecircnica a partir do contato com
Outros O autor defende por exemplo a ideia de que Odisseu na verdade seria uma metaacutefora
para a colonizaccedilatildeo helecircnica que acontecia sobretudo no seacuteculo VIII aC sendo assim um
ldquoheroacutei proto-colonialrdquo (MALKIN 1998 p 3) Em 2001 Malkin organizou um livro com
ensaios especificamente sobre a etnicidade no mundo grego Ancient Perceptions of Greek
Ethnicity aquecendo os debates sobre o tema
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Em 2002 dois trabalhos se destacaram no tocante agrave questatildeo da etnicidade helecircnica o
de Jonathan M Hall (Hellenicity between ethnicity and culture) e a coletacircnea de Thomas
Harrison (Greeks and barbarians) Hall jaacute havia escrito um livro em 1997 sobre a questatildeo
eacutetnica no mundo grego (Ethnic identity in Greek Antiquity) e o seu novo livro na verdade
eacute um aprofundamento do tema e um alargamento da gama de documentos utilizados Ele
defende que existem determinados elementos que definem as fronteiras eacutetnicas helecircnicas os
quais jaacute apontamos aqui em nossa introduccedilatildeo O livro de Harrison traz vaacuterios ensaios
transdisciplinares sobre essas diferenciaccedilotildees entre gregos e baacuterbaros vistos de uma
multiplicidade de naturezas documentais que vatildeo desde a literatura ateacute a cultura material
helecircnica
A helenista Lynette Mitchell em 2007 publicou seu Panhellenism and the
barbarian in Archaic and Classical Greece Ela tenta definir o que eacute esse pan-helenismo
estendendo a anaacutelise para o Periacuteodo Arcaico e defendendo que essa ideia natildeo eacute apenas cultural
ou poliacutetica mas necessariamente possui ambas as conotaccedilotildees Dois anos depois o classicista
P M Fraser escreveu seu Greek ethnic terminology no qual analisa o vocabulaacuterio eacutetnico
desde Homero ateacute Bizacircncio Ele mostra como o termo eacutethnos mudou ao longo do tempo indo
da simples designaccedilatildeo de uma coletividade ateacute uma demarcaccedilatildeo bem niacutetida do noacuteseles bem
como relaciona a ele outros termos (como geacutenos e poacutelis) que desempenham essa marcaccedilatildeo
eacutetnica
Efi Papadodimas escreveu em 2010 um artigo digno de nota pois se debruccedila
especificamente sobre Euriacutepides The GreekBarbarian interaction in Euripides Andromache
Orestes Heracleidae a reassessment of Greek attitudes to foreigners Ele mostra como nas
trageacutedias euripidianas a dicotomia grego versus baacuterbaro estaacute cada vez mais fluida visto que o
tragedioacutegrafo testemunha a ldquobarbarizaccedilatildeordquo dos proacuteprios gregos Para o autor essa ideia de
que o baacuterbaro eacute um oposto entra em crise natildeo sendo difiacutecil encontrar em suas trageacutedias
gregos agindo como baacuterbaros
O historiador grego Kostas Vlassopoulos em seu Greeks and barbarians (2013)
tentou desconstruir a ideia de que o grego eacute diametralmente oposto ao baacuterbaro analisando
como gregos e baacuterbaros conviviam no espaccedilo mediterracircnico Esse eacute o principal argumento do
seu livro Os gregos num plano discursivo procuraram diferenciar o baacuterbaro de si a fim de
fundar sua proacutepria identidade mas na praacutetica os gregos dialogaram bastante com os natildeo-
gregos atraveacutes de trocas culturais as quais natildeo diziam respeito somente agrave imposiccedilatildeo mas agrave
circulaccedilatildeo mesmo de ideias e tecnologias pelo Mediterracircneo Essas trocas tiveram como
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principal palco o mundo das apoikiacuteai as ldquocolocircniasrdquo gregas as quais frequentemente ou
adotavam os costumes gregos (sobretudo o modo de organizaccedilatildeo poliacuteade) ou recebiam-nos e
modificavam-nos adaptando-os aos seus contextos
Nosso trabalho propotildee analisar comparativamente os elementos que definiam as
fronteiras eacutetnicas em Homero e em Euriacutepides sobretudo a partir da anaacutelise do heroacutei Paacuteris
visto por noacutes como o Outro por excelecircncia na Iliacuteada e nas trageacutedias do ciclo troiano
Dividimos nosso trabalho em trecircs capiacutetulos o primeiro trata da etnicidade de uma forma geral
dentro das poesias eacutepica e traacutegica dessuperficializando os textos que analisaremos em nosso
trabalho Jaacute o segundo trata de um aspecto recorrente na representaccedilatildeo de Paacuteris nossa
comparaacutevel ele como sendo um causador de males Vamos ver como Homero e Euriacutepides
tratam disso destacando como essa caracteriacutestica engloba uma seacuterie de elementos que
definem fronteiras eacutetnicas tanto na epopeia quanto na trageacutedia No terceiro capiacutetulo nos
debruccedilamos sobre um Paacuteris guerreiro e como a sua representaccedilatildeo como tal corrobora a
definiccedilatildeo desse personagem como sendo um Outro bem como Homero e Euriacutepides lidam
com essa alteridade dos troianos
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CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE
COMPOSICcedilAtildeO
ldquo[] a epopeia [de Homero] eacute aqui construiacuteda como uma trageacutediardquo
(ROMILLY 2013 p 47)
Nesse capiacutetulo vamos trabalhar a literariedade da epopeia homeacuterica e a trageacutedia
euripidiana ou seja o que faz dessas obras textos literaacuterios (ANDRADE 1998 p 27) que
satildeo ldquoobjeto[s] de conhecimento que representa[m] alegoricamente o ponto de vista do escritor
a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31) Faremos isso de modo a mostrar
como elas pertencem a um mesmo espaccedilo discursivo bem como a construccedilatildeo delas implica
em um discurso que molda uma etnicidade helecircnica Por isso a epiacutegrafe de Jacqueline de
Romilly se faz de extrema importacircncia para abrirmos nossa discussatildeo ela acredita que a
epopeia homeacuterica se constroacutei agrave maneira de uma trageacutedia Obviamente Homero natildeo previu a
existecircncia dos traacutegicos fazendo um poema que parecesse com uma trageacutedia futura Contudo
a afirmaccedilatildeo da helenista francesa implica na ideia de que as trageacutedias foram influenciadas
pelas epopeias
Os textos homeacutericos satildeo arquitextos12 natildeo somente para Euriacutepides mas para toda a
tradiccedilatildeo literaacuteria grega posterior sendo que tanto Homero quanto Euriacutepides satildeo hoje ambos
arquitextos eles influenciam no modo como produzimos textos (sejam eles escritos visuais
orais etc) Tanto a epopeia quanto a trageacutedia fazem parte do mesmo espaccedilo discursivo13 o
material miacutetico homeacuterico serviu aos tragedioacutegrafos a utilizaccedilatildeo de epiacutetetos e comentaacuterios
para caracterizar um personagem eacute tomada emprestada dessa tradiccedilatildeo eacutepica bem como a
utilizaccedilatildeo de algumas foacutermulas conhecidas do puacuteblico
Desse modo podemos dizer que poesia eacutepica e traacutegica fazem parte de uma mesma
tradiccedilatildeo mito-poeacutetica No entanto natildeo podemos afirmar que o mito se desenrola na trageacutedia
da mesma maneira que em Homero Se fosse assim dificilmente as peccedilas de teatro atrairiam a
atenccedilatildeo do puacuteblico ateniense do seacuteculo V aC afinal ningueacutem quer ver a mesma histoacuteria
contada do mesmo modo diversas vezes Nenhum texto embora influenciado por outros eacute
12 O arquitexto designa ldquoas obras que possuem um estatuto exemplar que pertencem ao corpus de referecircncia de um ou de vaacuterios posicionamentos de um discurso constituinterdquo (MAINGUENEAU 2008 p 64) 13 ldquoO lsquoespaccedilo discursivorsquo enfim delimita um subconjunto do campo discursivo ligando pelo menos duas formaccedilotildees discursivas que supotildee-se mantecircm relaccedilotildees privilegiadas cruciais para a compreensatildeo dos discursos consideradosrdquo (MAINGUENEAU 1997 p 117)
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igual a esses predecessores eles possuem um interdiscurso que eacute esse diaacutelogo com tradiccedilotildees
literaacuterias posteriores mas nunca satildeo coacutepias puras e simples
Homero mesmo embora seja um arquitexto natildeo pode ser considerado o iniacutecio de um
processo discursivo ele faz parte desse processo visto que nos seus textos jaacute existe um
interdiscurso Homero eacute um dos aedos que circulavam pela Greacutecia naquela eacutepoca e ainda
havia outros como ele antes dele Aleacutem disso ele eacute influenciado por vaacuterias tradiccedilotildees literaacuterias
que jaacute existiam Um exemplo disso eacute a utilizaccedilatildeo do contexto intralinguiacutestico da poesia
iacircmbica para compor alguns personagens como o proacuteprio Paacuteris (SUTER 1984) esse tipo de
verso era utilizado para acusar algueacutem de algo Assim a composiccedilatildeo de algumas sentenccedilas
relativas agrave Paacuteris sobretudo quando o sujeito enunciador eacute um personagem da Iliacuteada (como
Priacuteamo ou Heitor) conservam esse ato de linguagem14 iacircmbico
Escolhemos dois gecircneros15 discursivos para trabalhar com Paacuteris a epopeia de
Homero e as trageacutedias de Euriacutepides Antes de apresentarmos as anaacutelises comparadas do
nosso heroacutei em cada um deles eacute mister discorrermos sobre a natureza da composiccedilatildeo desses
dois textos pois trabalhamos com a Anaacutelise de Discurso como meacutetodo de leitura deles Para o
analista eacute importante dessuperficializar o corpus documental para criar um objeto discursivo
sobre o qual enfim nos debruccedilamos com fins analiacuteticos
Essa dessuperficializaccedilatildeo consiste em dirigir aos textos perguntas que vatildeo ancorar
nossa leitura em um determinado tempo espaccedilo e sociedade ldquoQuem escreveurdquo ldquoQuando
escreveurdquo ldquoOnde escreveurdquo ldquoDe onde essa pessoa veiordquo ldquoPara quem ela escreverdquo ldquoO
que ela defenderdquo ldquoQual o gecircnero do textordquo satildeo perguntas que devemos fazer antes de
comeccedilar a analisar qualquer documentaccedilatildeo
Esse processo tem a ver com a proacutepria classificaccedilatildeo do gecircnero discursivo ao qual
pertence um determinado discurso ldquoO fato de que um texto seja destinado a ser cantado lido
em voz alta acompanhado por instrumentos musicais de determinado tipo que circule de
determinada maneira e em certos espaccedilos tudo isto [sic] incide radicalmente sobre seu
modo de existecircncia semioacuteticardquo (MAINGUENEAU 1997 p 36) O gecircnero eacute tatildeo importante na
construccedilatildeo do discurso que na Greacutecia Antiga ele influenciava diretamente na escolha do
dialeto da composiccedilatildeo dos textos como a linguista britacircnica Anna Morpurgo Davies nos
explica
14 O ato de linguagem eacute uma sequecircncia linguiacutestica com um valor ilocutoacuterio ou seja dotado de uma determinada forccedila (no caso da poesia iacircmbica de acusaccedilatildeo) que pretende operar sobre o sujeito receptor uma transformaccedilatildeo 15 Podemos classificar os gecircneros de diferentes maneiras de acordo com suas condiccedilotildees comunicacionais (como fala onde fala etc) e estatutaacuterias (quem fala para quem fala qual o lugar social de cada sujeito do discurso etc)
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O verso eacutepico eacute escrito em alguma forma de jocircnico A trageacutedia aacutetica eacute escrita em aacutetico exceto pelos coros os quais estatildeo em uma forma doacuterica modificada A poesia liacuterica pode estar em eoacutelico a prosa literaacuteria natildeo Em um nuacutemero de instacircncias a escolha do dialeto eacute independente da origem do autor Piacutendaro era de Tebas mas natildeo escreve em beoacutecio Hesiacuteodo era tambeacutem da Beoacutecia mas compocircs em uma linguagem eacutepica ie em uma forma compoacutesita de jocircnico (DAVIES 2002 p 157)
A Iliacuteada natildeo era encenada do mesmo modo que as trageacutedias natildeo se restringiam a uma
reacutecita as performances eacutepica e traacutegica eram diferentes Para o melhor aproveitamento do
estudo do nosso corpus e corroboraccedilatildeo de nossas hipoacuteteses devemos observar natildeo somente as
semelhanccedilas e diferenccedilas mas tambeacutem quais as peculiaridades que cada gecircnero discursivo
nos traz Diferentemente da Iliacuteada as trageacutedias natildeo satildeo tatildeo extensas para termos uma noccedilatildeo
a maior das trageacutedias que vamos estudar (Orestes com 1693 versos) corresponde a somente
1078 da Iliacuteada (que possui 15693 versos) As reacutecitas aeacutedicas e rapsoacutedicas eram
episoacutedicas a Iliacuteada e a Odisseia natildeo eram cantadas de uma vez soacute selecionando-se apenas
episoacutedios Essa praacutetica estaacute presente na documentaccedilatildeo mesma no Canto VIII da Odisseia (vv
266-369) Demoacutedoco conta o episoacutedio da traiccedilatildeo de Afrodite e Ares
Outra diferenccedila a se sublinhar eacute o proacuteprio modo de compor o aedo natildeo escrevia seus
poemas ao contraacuterio do traacutegico O aedo memorizava o poema ou compunha-o na hora para o
seu puacuteblico utilizando uma mnemoteacutecnica16 Desse modo vemos se repetirem foacutermulas como
ldquoAssim que a Aurora de dedos de rosa surgiu matutinardquo [ἦmicroος δ᾽ ἠριγένεια φάνη
ῥοδοδάκτυλος Ἠώς] e epiacutetetos (como theoeidḗs relativo a Paacuteris) que equivaliam a uma
pausa necessaacuteria para o cantor se lembrar do que falaraacute a seguir e para ele poder compor
atraveacutes do manejo do hexacircmetro dactiacutelico os seus versos
Euriacutepides escreveu as suas trageacutedias e cada ator (em sua eacutepoca trecircs17) decorava suas
falas e as interpretava em cima do palco Surge aqui entatildeo mais um elemento que distingue o
gecircnero eacutepico do traacutegico a forma do texto Em Homero haacute diaacutelogos entre personagens espaccedilo
para eles falarem contudo isso se daacute atraveacutes do discurso indireto livre de um narrador
onisciente18 Nas trageacutedias esse narrador desaparece o discurso eacute direto mesmo quando se
trata do coro e os narradores satildeo sempre personagens Os diaacutelogos exerciam um papel muito 16 A mnemoteacutecnica seria a arte no caso do aedo de lembrar e improvisar se preciso os versos a serem recitados A tiacutetulo de aprofundamento do tema ver o capiacutetulo II de Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica de Marcel Detienne (consultar Referecircncias bibliograacuteficas) 17 Eacute atribuiacutedo a Soacutefocles a introduccedilatildeo do terceiro ator Ateacute entatildeo as trageacutedias eram interpretadas por apenas dois atores Cada vez mais o ator vai ganhando destaque nas produccedilotildees traacutegicas e a partir de 449 aC havia natildeo soacute competiccedilotildees de trageacutedias em si mas de atores tambeacutem (SCODEL 2011 p 53-54) 18 O narrador onisciente eacute aquele que conhece passado presente e futuro da histoacuteria e o iacutentimo de cada personagem mas que natildeo participa da trama
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importante em determinadas trageacutedias mesmo o falar da personagem jaacute mostrava a que
acircmbito social ela pertencia como acontece com o friacutegio de Orestes (que eacute marcadamente um
baacuterbaro) ou com Paacuteris em Alexandre cuja desenvoltura no falar denuncia que ele natildeo eacute um
pastor comum e excede aos outros
Aleacutem disso natildeo eacute o autor que interpreta suas peccedilas19 ele delega essa funccedilatildeo aos
atores A encenaccedilatildeo traacutegica natildeo corresponde somente agrave trageacutedia em si havia esses atores (no
caso de Euriacutepides trecircs20) que representavam os personagens O figurino as maacutescaras
deveriam trazer consigo as particularidades de cada personagem e torna-lo reconheciacutevel ao
puacuteblico eles deveriam saber quem era o mensageiro o deus o anciatildeo o heroacutei a mulher e
assim por diante Diferentemente o aedo eacute ele mesmo narrador de sua histoacuteria
Outro elemento eacute o espaccedilo da performance a reacutecita aeacutedica ocorre geralmente em
banquetes enquanto as encenaccedilotildees traacutegicas tecircm o espaccedilo do odeacuteon (teatro) para se desenrolar
Isso natildeo significa contudo que o puacuteblico do aedo seja mais restrito do que o do traacutegico
Podemos pensar que enquanto a epopeia geralmente era cantada no espaccedilo do banquete
aristocraacutetico21 a trageacutedia se encenava no espaccedilo da poacutelis custeada pelos cidadatildeos ricos e
aberta a toda a populaccedilatildeo (ROMILLY 1997 p 16) e por isso o alcance dela era maior22
Contudo natildeo podemos nos esquecer de que o poeta era itinerante fazendo suas epopeias
chegarem a vaacuterios lugares da Greacutecia Essa eacute uma ideia bastante explorada pelo historiador
Alexandre Santos de Moraes que ressalta
A certa estabilidade de que alguns aedos gozavam nos palaacutecios e ambientes aristocraacuteticos homeacutericos natildeo deve enublar nossas leituras [] quando encontramos o aedo iliaacutedico Tamiacuteris que viajava para competir com outros aedos ou mesmo o identificado no Hino Homeacuterico a Apolo que solicitara agraves donzelas deacutelias que perpetuassem sua fama par os outros aedos que por ali passassem chegamos agrave conclusatildeo de que esse sedentarismo nada mais era do que uma condiccedilatildeo momentacircnea [] A erracircncia portanto natildeo eacute apenas adequada a esses aedos eacute provaacutevel que tenha sido um meio indispensaacutevel para a ampliaccedilatildeo de seu repertoacuterio e a aquisiccedilatildeo de novos materiais e canccedilotildees (MORAES 2012 p 73 ndash grifos nossos)
Quando vamos estudar os mitos gregos ldquoconveacutem ter em conta essa fragmentariedade
das reliacutequias e a facilidade de variaccedilatildeo que oferecem os relatos dos poetasrdquo (GUAL 1996 p
19 Segundo Ruth Scodel no iniacutecio os tragedioacutegrafos poderiam ter sido eles mesmos atores em suas trageacutedias (SCODEL 2011 p 45) 20 Atribui-se a Soacutefocles o meacuterito de ter elevado de dois para trecircs o nuacutemero de atores Na eacutepoca de Eacutesquilo existiam somente dois (ROMILLY 1999 p 33) 21 Tambeacutem havia reacutecitas em concursos mas essas eram feitas por rapsodos que reproduziam versos de aedos 22 Embora os cidadatildeos mais pobres pudessem assistir agraves trageacutedias atraveacutes de um financiamento governamental (theōrikaacute) a maioria do puacuteblico no teatro advinha da elite (SCODEL 2011 p 53)
28
24) Os mitos em si satildeo bastante variaacuteveis existem mitos que natildeo tecircm uma uacutenica versatildeo
Afrodite por exemplo eacute filha de Zeus em Homero (Iliacuteada V v 131) e filha de Uranos em
Hesiacuteodo (Teogonia vv 180-200) Os mitos eram passados de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela via
oral tanto pelos poetas quanto pelos proacuteprios ouvintes que passavam as histoacuterias adiante
Aleacutem disso como vimos esses mitos circulavam mesmo na eacutepoca traacutegica as peccedilas poderiam
ser apresentadas em localidades outras aleacutem de Atenas Por isso que os mitos possuiacuteam uma
variaccedilatildeo muito grande de regiatildeo para regiatildeo sobretudo antes de terem sido escritos como na
eacutepoca arcaica O poema ldquooriginalrdquo (se assim considerarmos que existia um) sempre chega
com modificaccedilotildees conforme passa de uma pessoa para outra
Esses textos foram copiados e recopiados ao longo dos seacuteculos durante a denominada
Idade Meacutedia os manuscritos eacutepicos traacutegicos e historiograacuteficos serviam para o ensino do
grego Os copistas reproduziam determinados textos gregos conforme o gosto de quem os
encomendava Devido a isso muito se pensou que durante a Idade Meacutedia as obras da Greacutecia
Antiga se perderam entretanto isso eacute inverificaacutevel visto que foi a partir dos manuscritos
conservados em bibliotecas que foram possiacuteveis as ediccedilotildees impressas que temos hoje
Por causa dessa circulaccedilatildeo intensa dos eacutepicos e das trageacutedias existem as
interpolaccedilotildees versos inseridos a posteriori Em relaccedilatildeo a Homero desde a Antiguidade23
seus poemas satildeo como o pomo da discoacuterdia pois muita tinta foi derramada e muitos autores
jaacute debateram tanto sobre sua verossimilhanccedila quanto pela sua autoria conteuacutedo ou forma
Esses estudos se baseiam nos poemas em texto jaacute cristalizados pela escrita24 O trabalho com
as obras de Homero assim esbarra com a Questatildeo Homeacuterica Ela se constitui de uma seacuterie de
debates acerca da autoria da veracidade e da unidade dos poemas e muito jaacute se escreveu sobre
ela desde o seacuteculo XVIII De fato um Homero parece natildeo ter existido mas cremos que o fio
condutor dos dois poemas que lhes datildeo unidade eacute a proacutepria ideologia que os perpassa Natildeo
se comprovou ainda a existecircncia da Guerra de Troia conjectura-se que se ela ocorreu
provavelmente foi entre 1250-1240 aC quando a regiatildeo de Wilǔsa estava em disputa No
entanto eacute fato que a sociedade representada por Homero tem uma materialidade histoacuterica
23 Robert Aubreton elenca os criacuteticos de Homero que satildeo conhecidos Demoacutecrito de Abdera Hiacutepias de Eacutelis Estesiacutembroto de Tasos Hiacutepias de Tasos Aristoacuteteles Cameleatildeo Heraacuteclides Pocircntico Filotas de Coacutes Zenoacutedoto de Eacutefeso Neoptoacutelemo de Paacuterio Aristoacutefanes de Bizacircncio e Aristarco 24 Eacute comum a ideia de que Pistiacutestrato tirano grego no seacuteculo VI mandou que se colocassem por escritos os poemas homeacutericos graccedilas aos escritos de Wolf que a partir de documentaccedilatildeo oriunda da Antiguidade concluiu isso (WHITMAN 1965 p 66) Contudo o helenista norte-americano Cedric Whitman afirma que essa ideia eacute impossiacutevel pois ldquoos dois grandes eacutepicos nacionais dos gregos ndash se lsquonacionalrsquo eacute colocado para significar pan-helecircnico ou pan-ateniense e de certo modo satildeo os dois ndash nunca poderia ter nascido de um programa cultural engendrado por um tirano [despot]rdquo (WHITMAN 1965 p 74) Ele mostra uma seacuterie de outras origens para o eacutepico mostrando que eacute mais plausiacutevel diversas versotildees tivessem existido
29
Como mostramos em nossa introduccedilatildeo os poemas homeacutericos foram compostos no
seacuteculo VIII aC mas referem-se ao seacuteculo XIII aC Desse modo elas imiscuem dois
periacuteodos o Palaciano (XVII-XII aC) e o Poliacuteade Arcaico (VIII-VII aC) A arqueologia
tem nos revelado muito acerca dessa constataccedilatildeo e esbarraremos com algumas delas ao longo
do nosso estudo de caso Por exemplo em Homero haacute a presenccedila de duas praacuteticas funeraacuterias
a inumaccedilatildeo e a incineraccedilatildeo Aquela era mais comum na eacutepoca dos palaacutecios as escavaccedilotildees em
Cnossos e Micenas revelaram vaacuterios tuacutemulos escavados ou com cuacutepula (thoacuteloi) A praacutetica de
incinerar os mortos comeccedila a surgir na eacutepoca micecircnica mas se difunde ao longo do periacuteodo
poliacuteade A metalurgia do ferro natildeo era comum na Greacutecia na eacutepoca dos palaacutecios o bronze era
o metal predominante Jaacute na eacutepoca de composiccedilatildeo dos poemas ela era largamente praticada
O poeta mistura elementos de um tempo preteacuterito e de um presente a fim tanto de ambientar
sua obra quanto tornar a sociedade que ele representa familiar agrave sua audiecircncia
Estrabatildeo (c 6463 aC ndash 24 aC) geoacutegrafo grego resgata o debate entre Poliacutebio (203-
120 aC) e Eratoacutestenes (c 276273 aC ndash 194 aC) acerca dos poemas homeacutericos Este
uacuteltimo acredita que o intuito do poeta foi apenas entreter seu puacuteblico com uma histoacuteria
fantasiosa desprovendo seus poemas de quaisquer informaccedilotildees veriacutedicas Poliacutebio reconhece
que o relato homeacuterico eacute imerso em fantasia mas evidencia ldquoa existecircncia de dados histoacutericos e
geograacuteficos corretosrdquo (GABBA 1986 p 38) Estrabatildeo se inclina para essa uacuteltima opiniatildeo
reconhecendo que tanto a Iliacuteada quanto a Odisseia contam eventos que realmente ocorreram
como a guerra de Troia e as viagens de Odisseu do mesmo modo que afirma serem os dados
geograacuteficos e topograacuteficos de uma grande precisatildeo (GABBA 1986 p 39)
Hoje nos debruccedilamos sobre as epopeias de Homero cientes de que veraz eacute um termo
extremo para designar as narrativas homeacutericas Verossiacutemil talvez agrave medida que a arqueologia
nos forneceu muitos dados os quais mostram que Iliacuteada e a Odisseia natildeo estatildeo
completamente fora nem do tempo em que foram compostas nem do tempo a que se referem
Natildeo podemos contudo negar essa materialidade dos poemas porque ele possui uma
ancoragem social espacial e temporal
O texto literaacuterio eacute o ldquoobjeto de conhecimento que representa alegoricamente o ponto
de vista do escritor [autor] a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31 ndash grifos
nossos) e eacute essa ldquorealidade humanardquo que vai nos interessar tanto no estudo da poesia eacutepica
quanto da traacutegica sendo esses dois gecircneros discursivos profiacutecuos para o estudo da eacutepoca que
esses textos foram compostos As epopeias e as trageacutedias natildeo representam a sociedade
30
palaciana (do periacuteodo da Guerra de Troia) mas a sociedade poliacuteade arcaica e a claacutessica em
que o aedo e o tragedioacutegrafo compuseram respectivamente
No caso da trageacutedia essas interpolaccedilotildees tambeacutem existem a classicista Ruth Scodel
traz a ideia de que Ifigecircnia em Aacuteulis por exemplo tem partes que natildeo foram escritas por
Euriacutepides e que muitos especialistas concordam que a fala final do mensageiro natildeo estava na
trageacutedia original (SCODEL 2011 p 6) A exclusatildeo do nosso corpus da trageacutedia Rhesus
deveu-se dentre outros motivos ao fato de natildeo sabermos se ela realmente foi escrita por esse
tragedioacutegrafo A Antiguidade eacute um periacuteodo da Histoacuteria que possui escassez de documentaccedilatildeo
escrita e isso dificulta o trabalho do historiador da literatura grega Aleacutem disso esbarramos
frequentemente com esses problemas documentais os quais apresentamos acima Nesse
sentido a Arqueologia nos ajuda bastante ao trazer agrave luz a cultura material da eacutepoca bem
como o faz a Filologia ao tentar recuperar fragmentos perdidos de textos antigos
O papel desse uacuteltimo ramo das Ciecircncias Humanas eacute particularmente importante no
caso de um de nossos textos o fragmento traacutegico Alexandre de Euriacutepides Essa trageacutedia eacute
peculiar nesse estudo pois apenas fragmentos dela chegaram ateacute noacutes Sabemos como esses
materiais (em especial o papiro) satildeo pereciacuteveis e no caso de Alexandre aleacutem da maior parte
da trageacutedia ter se perdido no tempo muitas palavras e ateacute mesmo a indicaccedilatildeo de sujeitos
enunciadores desconhecemos no fragmento 54 por exemplo o personagem que fala pode ser
tanto Paacuteris quanto um mensageiro No fragmento 62a haacute vaacuterias lacunas no iniacutecio de alguns
versos (vv 4 6 11-14 16 e 17) devido ao desgaste do tempo nas bordas do papiro que levou
para sempre o que estava escrito ali
No entanto algumas sentenccedilas satildeo passiacuteveis de serem reconstituiacutedas e especialistas em
liacutengua grega constantemente se debruccedilam sobre esse tipo de documentaccedilatildeo para tentar
preencher esses vazios causados pela deterioraccedilatildeo do material Como satildeo vaacuterias as pessoas
que se dedicam a isso vaacuterios podem ser os resultados finais desses preenchimentos Abaixo
um exemplo de como trecircs estudiosos podem fazer essa reconstituiccedilatildeo de maneira diferente
Reconstituiccedilatildeo do Reconstituiccedilatildeo do argumento Reconstituiccedilatildeo do
31
argumento (test iii l 17-
18) de R A Coles (1974)
(test iii l 17-18) de W
Luppe (1977)
argumento (test iii l 17-
18) de Christopher
Collard e Martin Cropp
(2008)
ἐπερωτηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω [] π[1-2]ρειτο καὶ
[]
ἀπ[ολο]γηθεὶς [δ]ὲ επὶ τοῦ δυνά-
στο[υ] τ[ι]microωρ[ίαν] π[α]ρεῖτο καὶ
[]
ηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω[][()]ρειτο καὶ
[]
Luppe e Coles completam algumas lacunas que Collard e Cropp preferem deixar
apenas com a indicaccedilatildeo de que havia algo ali que foi perdido Assim como Collard e Cropp agraves
vezes datildeo certeza de algo que em Coles e Luppe estava indicado como uma suposiccedilatildeo (como
no caso da palavra dynaacutestou)
Desse modo esse tipo de documentaccedilatildeo estaacute sempre em modificaccedilatildeo embora como
David Kovacs reconhece (KOVACS 2002 p 48) o assunto do texto em si natildeo se modifique
(aqui no caso do argumento a ideia da existecircncia de um agoacuten que eacute o proacuteprio tema da peccedila
em si uma vez que ela trata da disputa entre Paacuteris e Diomedes pela vitoacuteria nos jogos
realizados por Troia) No caso de Alexandre o argumento25 encontrado apenas
posteriormente agrave descoberta dos restos da trageacutedia em si foi essencial para saber do que de
fato ela se tratava e para ajudar os pesquisadores a tentar chegar a um consenso sobre essas
perdas leacutexicas e de indicaccedilotildees dos sujeitos enunciadores
Essa trageacutedia provavelmente era a primeira de uma tetralogia (trageacutedia 1 + trageacutedia 2
+ trageacutedia 3 + drama satiacuterico) que se constituiacutea dela mesma de Palamedes (tambeacutem
fragmentaacuteria) de As Troianas e de Siacutesifo (desaparecida) Haacute questionamentos acerca dessa
ideia mas eacute inegaacutevel que as trecircs trageacutedias tecircm muito em comum a accedilatildeo de Alexandre
comeccedila na montanha (monte Ida) Palamedes se desenrola nas planiacutecies (a cidade em si) e As
Troianas eacute ambientada na praia (acampamento grego) o que denota uma organicidade na
composiccedilatildeo da trilogia e um movimento progressivo sobretudo porque a proacutepria Atenas era
assim constituiacuteda espacialmente (MARISCAL 2003 p 214 e p 444)
A helenista Luciacutea Romero Mariscal trabalha especificamente com Alexandre e suas
propostas chamaram nossa atenccedilatildeo pelo fato de ela mostrar como o tema da peccedila eacute
extremamente influenciado pelos acontecimentos da eacutepoca bem como ela conseguir
relacionar o personagem principal (Paacuteris) a Alcibiacuteades cidadatildeo ateniense que ajudou os
25 O argumento eacute uma anotaccedilatildeo feita por estudiosos copistas que antecede a trageacutedia Ele a resume e pode dar algumas informaccedilotildees importantes no tocante agrave sua apresentaccedilatildeo
32
espartanos durante a Guerra do Peloponeso (431-404 aC) e que possuiacutea ambiccedilotildees tiracircnicas26
Ruth Scodel chama atenccedilatildeo ao fato de que essas correlaccedilotildees satildeo comuns mas que sempre
encontram questionamentos
Edith Hall critica muito os autores que procuram relacionar a qualquer custo as
trageacutedias a um acontecimento da eacutepoca geralmente relativo agrave Guerra do Peloponeso
afirmando que elas natildeo representam a vida cotidiana de Atenas mas um ideal do que ela
deveria ser (HALL 2010 p 168 1997 p 94) Concordamos em parte com essa afirmaccedilatildeo
estamos lidando com um discurso no qual a ideologia dominante estaacute presente visto que se
trata aqui de uma legitimaccedilatildeo dos valores ideais que um cidadatildeo deve possuir No entanto
Euriacutepides quando escreve suas peccedilas natildeo eacute completamente indiferente aos acontecimentos da
sua eacutepoca pois como vimos todo texto literaacuterio representa o ponto de vista do autor sua
visatildeo de mundo De fato seria uma imprudecircncia acadecircmica querer encaixar cada trageacutedia
num acontecimento especiacutefico forccedilando uma correspondecircncia falaciosa mas eacute possiacutevel
reconhecer dilemas intriacutensecos agraves discussotildees acerca da guerra em algumas trageacutedias
Alexandre veremos parece ter conexatildeo latente com o episoacutedio da peste em Atenas bem
como Euriacutepides parece mostrar com As Troianas sua opiniatildeo acerca da invasatildeo de Melos ou
Siracusa
O contexto histoacuterico ateniense de Androcircmaca (c 426 aC) natildeo eacute o mesmo que o de
Orestes (c 408 aC) pois esta eacute encenada no fim da Guerra do Peloponeso e aquela no
iniacutecio Atenas muda muito nesses 27 anos de guerra e graccedilas sobretudo ao relato de
Tuciacutedides conhecemos mais pormenorizadamente os acontecimentos da eacutepoca Do mesmo
modo algumas trageacutedias trazem releituras do mito a fim de demonstrar algo especiacutefico
Helena traz uma Helena que nunca foi para Troia Ele toma emprestado de Estesiacutecoro e
Heroacutedoto a ideia de Helena ter ficado no Egito durante a Guerra de Troia em vez de ter
estado laacute o tempo todo (como acontece em Homero) (SCODEL 2011 p 162 HALL 2010
p 279) Um eiacutedolon teria sido colocado em Troia e na verdade a rainha estaria esperando por
seu esposo Menelau no Egito A Guerra de Troia afinal teria sido causada por uma ilusatildeo
por nada Isso reforccedila o discurso ldquopacifistardquo euripidiano em suas trageacutedias troianas
geralmente ambientadas num cenaacuterio poacutes-guerra a ideia de que a guerra traz mais prejuiacutezos e
sofrimentos do que benefiacutecios estaacute sempre presente (JOUAN 2000 p 5)
Esse episoacutedio nos mostra tambeacutem como o mito pode ter uma atualizaccedilatildeo eacutetica Helena
deixa de ser a maacute esposa e passa a ser um modelo para as esposas atenienses da eacutepoca pois
26 Vamos aprofundar essas ideias no capiacutetulo seguinte (Paacuteris o causador de males)
33
traz a ideia da fidelidade ao marido O proacuteprio Paacuteris deixa de ser um exemplo exclusivamente
heroico e se transforma no modelo do que eacute baacuterbaro como defendemos Isso tem a ver
diretamente com a proacutepria eacutepoca em que se compotildee a dicotomia ldquogrego versus baacuterbarordquo no
seacuteculo V aC se consolida ao mesmo tempo em que em Euriacutepides entra em crise sendo
necessaacuterio reiterar aos cidadatildeos atenienses a ideia do que eacute o baacuterbaro
Natildeo eacute correto afirmar que as Guerras Greco-Peacutersicas foram o marco inicial para se
pensar a etnicidade helecircnica (HALL 1989 p VLASSOPOULOS 2013 p 163) pois desde
Homero como estamos vendo isso eacute verificaacutevel O historiador Kostas Vlassopoulos chama a
atenccedilatildeo para esse debate
Acadecircmicos modernos tecircm frequentemente interpretado esse fenocircmeno [dos troianos serem mostrados praticamente iguais aos gregos] argumentando que no tempo de Homero (o seacuteculo oitavo) a identidade grega estava ainda incipiente [inchoate] e a justaposiccedilatildeo de todos os natildeo-gregos como baacuterbaros natildeo tomou lugar Essa eacute uma interpretaccedilatildeo histoacuterica que induz ao erro [misleading] [] mas tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo literaacuteria dos eacutepicos homeacutericos que induz ao erro Natildeo devemos subestimar a sofisticaccedilatildeo poeacutetica desses eacutepicos [] Quando ele descreve como o liacuteder dos caacuterios barbarophonoi [sic] ldquoveio para a guerra todo decorado com oureo como uma garota bobo que ele erardquo o tema da luxuacuteria efeminada baacuterbara e a desaprovaccedilatildeo grega disso estaacute claramente presente (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
Do mesmo modo natildeo eacute correto dizer que os gregos soacute comeccedilaram a lutar entre si a
partir da Guerra do Peloponeso muitos gregos lutaram contra gregos jaacute nas Guerras Greco-
Peacutersicas (VLASSOPOULOS 2013 p 55) As poacuteleis natildeo eram tatildeo unidas quanto geralmente
se pensa que elas satildeo ldquoos gregos natildeo tinham nenhum centro ou instituiccedilatildeo em torno da qual
se poderia organizar sua histoacuteria as comunidades falantes de grego estavam dispersas por
todo o Mediterracircneo e elas nunca alcanccedilaram uma unidade poliacutetica econocircmica ou socialrdquo
(VLASSOPOULOS 2007 p 91) Ainda segundo Kostas Vlassopoulos o que dava unidade a
essas comunidades eram as networks existentes marinheiros comerciantes soldados
intelectuais todos criavam uma rede de circulaccedilatildeo de pessoas produtos e ideias que unia
essas poacuteleis assemelhando-se agrave nossa globalizaccedilatildeo moderna (termo inclusive que o
historiador usa para se referir a esse fenocircmeno na Antiguidade grega)
Segundo o historiador britacircnico Frank William Walbank o que unia os gregos era
justamente a religiatildeo e a cultura em comum (2002 p 245) Essa ideologia era compartilhada
por todas as poacuteleis mas elas particularizavam-na Satildeo conhecidas as peculiaridades de
Esparta Atenas Corinto e principalmente das poacuteleis que ficavam em regiotildees de apoikiacuteai
(colocircnias) essas regiotildees eram loci privilegiados de trocas culturais entre a cultura grega e as
34
culturas Outras que rodeavam esses locais (VLASSOPOULOS 2013 p 277) O historiador
iraniano Irad Malkin mostra como Odisseu pode ser visto como um heroacutei protocolonial visto
que por todos os lugares que ele passa ele vai deixando sua ldquomarcardquo embatendo-se
constantemente com Outros no seu caminho de volta para casa (MALKIN 1998 p 2) O
proacuteprio mar era um ambiente propiacutecio ao encontro com alteridades muitas vezes hostis
(LESSA SOUSA 2014 p )
Debruccedilar-nos sobre as obras literaacuterias a fim de comprovar as descobertas
arqueoloacutegicas ou o que aconteceu de fato durante a guerra (seja a de Troia seja a do
Peloponeso) ou se os heroacuteis de miacuteticos existiram de verdade eacute uma veleidade Contudo natildeo eacute
impossiacutevel relacionaacute-las com o momento de sua composiccedilatildeo Portanto eacute mais profiacutecuo 1)
tentarmos compreender as representaccedilotildees de Paacuteris levando em conta os elementos de
ancoragem histoacuterica e social da obra relacionando texto com seus contextos intra e
extralinguiacutesticos e 2) buscarmos os modos pelos quais aquela sociedade funcionava e as
representaccedilotildees sociais que a legitimavam e mantinham as suas fronteiras eacutetnicas atraveacutes da
anaacutelise das praacuteticas discursivas O historiador italiano Emilio Gabba nos mostra
elucidativamente isso em relaccedilatildeo a Homero
Em qualquer caso e contemplando separadamente a investigaccedilatildeo sobre os poemas e a anaacutelise da realidade histoacuterica dos feitos descritos o aproveitamento histoacuterico da obra homeacuterica seraacute seguro e maior sempre que apontar para o estudo de aspectos como famiacutelia vida social e poliacutetica instituiccedilotildees e normas princiacutepios eacuteticos comportamento religioso cultura material ou fatores econocircmicos Os siacutemiles entre os poemas satildeo em suma particularmente reveladores (GABBA 1986 p 45 ndash grifos nossos)
Os costumes apresentados na Iliacuteada na Odisseia e nas trageacutedias satildeo modelares para
aqueles que ouvem os poemas ou assistem agraves encenaccedilotildees todo o modo de conduta social dos
heroacuteis eacute trabalhado de modo a servir como exemplo para os kaloigrave kaigrave agathoiacute ou seja os
ldquobelos e bonsrdquo os aristocratas Esses homens eram o puacuteblico do aedo (CARLIER 2008 p
15 AUBRETON 1968 p 138) e mais tarde seratildeo os dos traacutegicos O aedo cantava aquilo
que o puacuteblico queria ouvir Temos exemplo disso ateacute mesmo na proacutepria Odisseia pois
quando a canccedilatildeo de Demoacutedoco aedo da Feaacutecia natildeo agrada mais mandam-lhe parar de tocar
[] Δηmicroόδοκος δ᾽ ἤδη σχεθέτω φόρmicroιγγα λίγειαν οὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόmicroενος τάδ᾽ ἀείδει ἐξ οὗ δορπέοmicroέν τε καὶ ὤρορε θεῖος ἀοιδός ἐκ τοῦ δ᾽ οὔ πω παύσατ᾽ ὀιζυροῖο γόοιο ὁ ξεῖνος microάλα πού microιν ἄχος φρένας ἀmicroφιβέβηκεν
35
ἀλλ᾽ ἄγ᾽ ὁ microὲν σχεθέτω ἵν᾽ ὁmicroῶς τερπώmicroεθα πάντες ξεινοδόκοι καὶ ξεῖνος ἐπεὶ πολὺ κάλλιον οὕτως [] natildeo mais ressoe a ciacutetara o cantor Demoacutedoco pois sua poesia natildeo agrada a todo ouvinte Assim que nos pusemos a cear e o aedo comeccedilou o hoacutespede natildeo mais reteve o pranto a anguacutestia circum-envolveu seu pericaacuterdio Demoacutedoco jaacute basta Que anfitriotildees e o hoacutespede possam unir-se na alegria (Odisseia VIII vv 537-543)
Os traacutegicos natildeo tinham uma liberdade total para encenar o que quisessem eles
escreviam as suas trageacutedias as quais passavam por um crivo antes de serem encenadas
(SCODEL 2011 p 43) Aleacutem disso havia os juiacutezes responsaacuteveis por decidir qual peccedila
merecia o primeiro precircmio Aquela que ficava em segundo ou que nem ganhava era uma peccedila
que natildeo foi do gosto dos jurados27 Quando vamos estudar as trageacutedias eacute importante termos
em mente quais peccedilas ganharam pois isso significa que elas serviram mais ao modelo
ideoloacutegico poliacuteade No caso de Euriacutepides apenas duas trageacutedias suas ganharam o primeiro
precircmio (Ifigecircnia em Aacuteulis e Hipoacutelito) Orestes ganhou o segundo Na realidade sua fama foi
poacutestuma pois seu estilo de composiccedilatildeo influenciou bastante as geraccedilotildees posteriores de
tragedioacutegrafos Secircneca por exemplo para compor sua As Troianas inspirou-se nrsquoAs
Troianas e na Heacutecuba de Euriacutepides Aleacutem disso suas trageacutedias foram bastante reencenadas
em periacuteodos posteriores nos quais Atenas jaacute tinha perdido toda a sua gloacuteria e esplendor
(SCODEL 2011 p 43)
No teatro era a poacutelis que estava sendo representada desde os ritos que precediam a
encenaccedilatildeo traacutegica28 (inscrita num espaccedilo religioso pois eram realizadas dentro das Grandes
Dionisiacuteacas e das Leneias) ateacute todo o espaccedilo do odeacuteon (incluindo o palco atraveacutes das
encenaccedilotildees que colocavam em destaque as instituiccedilotildees e valores poliacuteades e os assentos do
puacuteblico (theaacutetron) que eram organizados de modo tal que os cidadatildeos podiam natildeo soacute
enxergar uns aos outros como tambeacutem podiam reconhecer atraveacutes do lugar que se ocupava
aqueles mais proeminentes dentro da poacutelis ateniense) Eacute a siacutentese da ideia da publicidade das
accedilotildees que existe desde a poesia eacutepica e atinge seu aacutepice durante a democracia uma
publicidade direcionada aos interesses poliacuteades
27 Sobre detalhes desse julgamento ver o toacutepico Finances and Contests do capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 28 Para mais detalhes sobre os ritos que precediam as competiccedilotildees traacutegicas ver o toacutepico The Festivals no capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas)
36
No entanto eacute inviaacutevel dimensionar a opiniatildeo dos sujeitos receptores natildeo podemos
especular sobre a recepccedilatildeo das peccedilas em relaccedilatildeo a todos os espectadores ainda mais quando
temos em mente que essas peccedilas podiam circular pelas outras poacuteleis e regiotildees de colonizaccedilatildeo
as quais possuiacuteam um puacuteblico bem mais heterogecircneo do que o ateniense (HALL 2006 p 29)
O mesmo acontece com as epopeias de Homero natildeo temos como precisar a recepccedilatildeo dos
poemas que tambeacutem tinham uma audiecircncia bem heterogecircnea Desse modo cabe a noacutes
historiadores observar qual o efeito pretendido sobre os sujeitos destinataacuterios ao se compor
esses textos
A Iliacuteada uacutenico poema homeacuterico que trata de Paacuteris nos conta a histoacuteria da ira de
Aquiles (ROMILLY sd p 18) Por causa dessa temaacutetica comum aos Cantos e da proto-pan-
helenicidade do poema (MITCHELL 2007 p 54) cremos que a Iliacuteada tem uma unidade
intriacutenseca Contudo essa opiniatildeo natildeo eacute uma unanimidade no tocante aos questionamentos
acerca da forma do poema havia duas escolas filoloacutegicas a de Alexandria e a de Peacutergamo
(surgidas por volta do seacuteculo IV aC) as quais possuiacuteam posturas divergentes acerca das
epopeias de Homero A primeira praticava a atetese tudo o que se cria natildeo pertencer agrave Iliacuteada
original se suprimia Jaacute a segunda preferia a exegese ou seja a criacutetica do texto sem omitir
versos
Em 1795 F A Wolf publicou seu Prolegomena ad Homerum o qual deu iniacutecio agrave
ldquoquestatildeo homeacutericardquo e a uma seacuterie de trabalhos denominados analistas neles procura-se
analisar as epopeias de Homero visando criticar filologicamente esses textos apontando para
as contradiccedilotildees as dissonacircncias entre Iliacuteada e Odisseia e os elementos de pouca
verossimilhanccedila na obra Em contraponto a essas teses haacute os unitaristas que defendem a
unidade dos poemas Ainda existem os neo-analistas eles natildeo desconsideram todo o debate
acerca de algumas incongruecircncias das epopeias mas creem que haja uma certa
homogeneidade das obras oriundas de uma tradiccedilatildeo anterior ao poeta o qual com sua
genialidade teria reunido e composto um texto uacutenico
Para Robert Aubreton e Gregory Nagy os poemas homeacutericos possuem uma unidade
intriacutenseca porque derivam dessa tradiccedilatildeo eacutepica precedente A proacutepria Telemaacutequia (Cantos I-
IV da Odisseia) as narrativas de retorno dos noacutestoi os relatos de batalhas singulares entre
heroacuteis satildeo temas anteriores agrave composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Homero ou quem quer que
tenha composto essas duas epopeias conhecia tais histoacuterias e se baseou nelas para compor as
suas proacuteprias
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O que chama atenccedilatildeo eacute o que configura o sentido do discurso do aedo as noccedilotildees de
alḗtheia e lḗthē (ldquoesquecimentordquo) A funccedilatildeo do poeta eacute rememorar os feitos de deuses e
homens natildeo deixando que se esqueccedila deles Para a sociedade isso eacute fulcral o homem morre
fisicamente mas sua memoacuteria eacute imortal se ele assim merecer Para ganhar essa gloacuteria
imorredoura ele precisa ser reconhecido pela sua proacutepria sociedade e assim ser cantado por
geraccedilotildees Ele precisa agir em conformidade com o que aquela sociedade espera de um heroacutei
Dentre alguns valores ressaltamos alguns com os quais vamos trabalhar mais adiante a aretḗ
(excelecircncia) a timḗ (honra) kleacuteoskŷdos (gloacuteria) kalograves thaacutenatos (bela morte) e alkḗandreiacutea
(coragem)
Euriacutepides eacute influenciado por essa tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica e esses valores tambeacutem
perpassam as suas obras o heroacutei homeacuterico natildeo se diferencia tanto do heroacutei traacutegico pois haacute
muita tenuidade entre eles como veremos Contudo na trageacutedia a ideia da falha do erro
hamartiacutea eacute muito mais forte embora na epopeia exista uma ideia semelhante a qual traz agrave
tona um questionamento sobre a infalibilidade do heroacutei a aacutetē (perdiccedilatildeo) que tem estreita
ligaccedilatildeo com desiacutegnios divinos A trageacutedia traz o heroacutei falho e as situaccedilotildees que o envolvem
servem de catarse para o puacuteblico eacute assistindo agravequeles personagens que o cidadatildeo poliacuteade
toma consciecircncia dos problemas da sociedade e de si mesmo Ao mesmo tempo a trageacutedia
implica em permanecircncia e mudanccedila ela legitima os valores (pan-)helecircnicos e os critica a fim
de estimular essa mudanccedila e desse modo manter viva a sociedade
Aleacutem da forma29 um dos pontos que tornam a trageacutedia um gecircnero discursivo (visto
que haacute semelhanccedilas entre uma trageacutedia e outra) eacute a utilizaccedilatildeo do material miacutetico cultural
Essas histoacuterias se passavam em ldquoum passado que jaacute era remoto para a audiecircncia da Atenas
antigardquo (SCODEL 2011 p 3) Para os gregos os heroacuteis e deuses existiram de verdade eram
parte de sua histoacuteria Aquiles Paacuteris ou Heitor existiram para eles Como vimos o mesmo
mito eacute contado e recontado nos palcos mas o que vai diferenciar os tragedioacutegrafos de Homero
e por sua vez um tragedioacutegrafo do outro eacute 1) o modo como o mito eacute contado (figurino
maacutescaras diaacutelogos entre os personagens) 2) as modificaccedilotildees no mito que os autores fazem a
fim de servirem a seus propoacutesitos 3) as atualizaccedilotildees eacuteticas desses mitos e 4) as alusotildees aos
acontecimentos contemporacircneos 29 ldquoA trageacutedia era um tipo especiacutefico de drama Era encenada por atores (em Atenas natildeo mais que trecircs) e um coro de doze depois quinze que cantavam e danccedilavam auxiliados por um tocador de auloacutes um instrumento de sopro [reeded wind instrument] Na maioria das partes os atores usavam um verso falado principalmente o trimetro iacircmbico ou recitativo enquanto os coros cantavam entre cenas mas o liacuteder do coro poderia falar pelo grupo durante as cenas dos atores enquanto os atores poderiam cantar ambos em resposta ao coro e em monoacutedio [both in responsion with the chorus and in monody]rdquo (SCODEL 2011 p 3 ndash traduzido do original em inglecircs por Renata Cardoso de Sousa e Bruna Moraes da Silva)
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Esse passado miacutetico eacute um dos elementos que constituem a fronteira eacutetnica helecircnica O
antropoacutelogo Christian Karner chama atenccedilatildeo para o fato de que a etnicidade eacute ldquoamplamente
associada agrave cultura descendecircncia memoacuteriahistoacuteria coletivas e liacutenguardquo (KARNER 2007 p
17) Ele retoma a ideia de ethnie (etnia) proposta por John Hutchinson e Anthony Smith que
seria um grupo restrito a um determinado espaccedilo que se designa sob um etnocircmio com mitos e
elementos culturais em comum uma memoacuteria histoacuterica compartilhada e um senso de
solidariedade entre os seus membros (KARNER 2007 p 18) Essa ideia dialoga bastante
com a noccedilatildeo de grupo eacutetnico de Fredrik Barth a qual delineamos em nossa Introduccedilatildeo
Portanto os gregos se constituiacuteam num grupo eacutetnico que utilizava o discurso como
meio de (re)definir suas fronteiras eacutetnicas e desse modo garantir a sua existecircncia No acircmbito
textual Homero eacute o responsaacutevel por tentar fixar essas fronteiras ele traz agrave memoacuteria as
histoacuterias dos heroacuteis do passado e dos deuses do presente bem como ressalta a importacircncia dos
ancestrais visto que um indiviacuteduo eacute sempre reconhecido por sua filiaccedilatildeo Aquiles eacute o Peacutelida
(filho de Peleu) Diomedes eacute o Tidida (filho de Tideu) e mesmo Zeus um deus tem como um
dos epiacutetetos ldquoCrocircnidardquo (filho de Cronos)
Euriacutepides apresenta constantemente o tema da destruiccedilatildeo da linhagem familiar como
um grande problema natildeo somente para o indiviacuteduo mas para a comunidade em nosso corpus
documental Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes trazem
episoacutedios de desmantelamento da famiacutelia A primeira trageacutedia mostra o sofrimento de
Androcircmaca ao tentar proteger seu filho da fuacuteria de Hermiacuteone sendo que a personagem
mesma jaacute sofrera com a morte de Astyacuteanax seu primogecircnito que eacute abordada em As
Troianas A filha de Helena por sua vez amargura-se por natildeo conseguir ter um filho com
Neoptoacutelemo seu marido sem filhos natildeo haacute herdeiros de bens materiais e imateriais como a
memoacuteria da linhagem Eacute como se o nome da famiacutelia morresse na memoacuteria social pois os
filhos satildeo responsaacuteveis por mantecirc-la viva Na Iliacuteada um dos maiores medos expressos eacute o de
perder o filho na guerra e natildeo ter a quem deixar a heranccedila ou ter que reparti-la com parentes
distantes (V vv 152-158)
Em As Troianas aleacutem do sofrimento de Androcircmaca vemos o de Heacutecuba que se
desespera por Polixena ter sido dada em sacrifiacutecio A rainha de Troia sofre tambeacutem em
Heacutecuba a perda do filho Polidoro morto brutalmente pelo traacutecio sedento de riquezas a quem
ele estava confiado Ifigecircnia se daraacute ao sacrifiacutecio assim como Polixena em Ifigecircnia em
Aacuteulis levando ao desespero sua matildee Clitemnestra Embora a preferecircncia seja por filhos do
sexo masculino eram as filhas as responsaacuteveis pelos funerais dos mortos as mulheres
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exerciam um papel fundamental no enterro dos entes queridos (HALL 1997 p 106) As
trageacutedias mesmas nos mostram isso como eacute o caso de Antiacutegona de Soacutefocles o tema central
da peccedila eacute o esforccedilo da personagem homocircnima para conseguir dar um funeral adequado ao
irmatildeo que por ter assassinado o proacuteprio irmatildeo eacute condenado a ficar aos corvos sem enterro
Agamemnon pai de Ifigecircnia amaldiccediloa Paacuteris por ter causado toda a situaccedilatildeo de sua
famiacutelia natildeo fosse ele ter que partir para Troia para resgatar a cunhada a filha estaria a salvo
Contudo a sorte do rei de Micenas estaacute traccedilada de uma vez por todas pois sua mulher o
assassina no retorno da guerra Com a famiacutelia desmantelada Orestes filho do casal
desencadearaacute uma vinganccedila desmesurada mata a matildee e tenta matar Helena em Orestes
atraindo para si a fuacuteria das Eriacutenias divindades responsaacuteveis por atormentar aqueles que
cometiam atos indignos sobretudo o assassinato de familiares
Edith Hall mostra como ldquoa vida familiar de um cidadatildeo era um componente da sua
identidade poliacuteticardquo (HALL 1997 p 104) puacuteblico e privado se misturavam A experiecircncia
social eacute fundamental para que um indiviacuteduo se sinta pertencente a um grupo eacutetnico e ajude a
manter essas fronteiras Desse modo os espaccedilos puacuteblicos de convivecircncia (o banquete a
aacutegora o templo o ginaacutesio o teatro) satildeo loci importantes dentro do grupo eacutetnico helecircnico
bem como a publicidade das accedilotildees um grego eacute um homem essencialmente puacuteblico Ele estaacute
exposto aos olhares do seus iacutesoi (iguais) e estes lhe julgam conforme seus atos o homem
grego natildeo eacute somente o homem do ser mas tambeacutem eacute o homem do fazer
Para ser social o homem grego deveria se instruir a educaccedilatildeo tinha um papel muito
importante dentro da Heacutelade Devia-se conhecer os coacutedigos de conduta e principalmente
praticaacute-los Segundo a filoacuteloga Carmem Soares ldquoa trageacutedia eacute um gecircnero literaacuterio regido por
uma poeacutetica didaacutetico-hedonistardquo (SOARES 1999 p 16) ou seja ao mesmo tempo em que
gera prazer e entretenimento educa Essa natildeo eacute uma caracteriacutestica exclusiva dela a poeacutetica
didaacutetico-hedonista adveacutem da poesia eacutepica que contava com deleite as faccedilanhas dos heroacuteis e
dos deuses Sua funccedilatildeo eacute imortalizar esses seres extraordinaacuterios conservando suas memoacuterias
para as geraccedilotildees vindouras tomarem-nos de exemplo
Os mitos as histoacuterias desses heroacuteis do passado servem de advertecircncia aos vivos
agravequeles que as ouvem A epopeia e a trageacutedia compilam toda uma tradiccedilatildeo miacutetica e o mito
por excelecircncia tem justamente a funccedilatildeo de ldquorevelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 1972 p 13 ndash grifos nossos) Ele ldquopossui o
espantoso poder de engendrar as noccedilotildees fundamentais da ciecircncia e as principais formas da
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culturardquo (DETIENNE 2008 p 34) sua difusatildeo constitui uma praacutetica de paideiacutea Assim os
poemas homeacutericos possuem uma funccedilatildeo paidecircutica (VIEIRA 2002 p 14) bem como as
trageacutedias de Euriacutepides
Paideiacutea eacute um termo que aparece pela primeira vez na documentaccedilatildeo no seacuteculo V
aC30 em uma trageacutedia de Eacutesquilo (JAEGER 2010 p 335) Traduzir esse termo eacute muito
difiacutecil literalmente significa criaccedilatildeo de meninos (paicircs significa ldquocrianccedilardquo) comumente
traduz-se como educaccedilatildeo mas esse termo natildeo contempla todo o significado da paideiacutea
(MOSSEacute 2004 p 107-108) ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas
Ela ldquoacaba por englobar o conjunto de todas as exigecircncias ideais fiacutesicas e espirituais que
formam a kalokagathia no sentido de uma formaccedilatildeo espiritual conscienterdquo (JAEGER 2010
p 335) A paideiacutea se configura num aspecto ideoloacutegico da sociedade como nos explica o
historiador Faacutebio de Souza Lessa
Por ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacutetica (LESSA 2010 p 22)
Assim preferimos explicar aqui o sentido de paideiacutea e deixar a palavra sem traduccedilatildeo
para o portuguecircs ela se constitui da transmissatildeo de saberes e praacuteticas culturais Os poemas
satildeo loci de paideiacutea porque contam mitos eles trazem uma seacuterie de modos de conduta caros agrave
sociedade helecircnica que vatildeo servir para formar o kalograves kagathoacutes e no seacuteculo V aC o politḗs
(cidadatildeo) Esses homens vatildeo se inspirar nos heroacuteis e nas suas faccedilanhas nos seus atos que satildeo
passados agraves geraccedilotildees futuras por intermeacutedio da poesia seja ela eacutepica liacuterica ou traacutegica
[] para que a honra heroica permaneccedila viva no seio de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores permaneccedila marcado pelo seu selo [o do heroacutei] eacute preciso que a funccedilatildeo poeacutetica mais do que objeto de divertimento tenha conservado um papel de educaccedilatildeo e formaccedilatildeo que por ela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um este conjunto de saberes crenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura () a epopeia desempenha o papel de paideiacutea exaltando os heroacuteis exemplares assim como os gecircneros literaacuterios lsquopurosrsquo como o romance a autobiografia o diaacuterio iacutentimo o fazem hoje (VERNANT 1978 p 42 ndash grifos nossos)
30 Jaeger ainda sublinha que os ideais educativos da paideiacutea que vatildeo ser desenvolvidos no seacuteculo V aC se baseiam em praacuteticas educativas muito anteriores (JAEGER 2010 p 1)
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Esses heroacuteis seguem esse modo de conduta social que eacute expresso pelas suas accedilotildees
Quando eles se desviam desse coacutedigo satildeo submetidos a uma vergonha social ou
(principalmente na trageacutedia) satildeo viacutetimas de reviravoltas agraves vezes incontornaacuteveis em suas
vidas Paacuteris como veremos erra ao fugir da batalha mas quando acusado pelo seu irmatildeo de
ser covarde retorna para recuperar sua honra Jaacute Eacutedipo heroacutei da trilogia tebana de Soacutefocles
mancha a honra da sua famiacutelia ao casar-se com sua proacutepria matildee e dessa hamartiacutea
desencadeiam-se uma seacuterie de episoacutedios fatiacutedicos que culminam na desgraccedila de sua linhagem
Seu destino mesmo jaacute estava (mal) traccedilado quando seu pai se apaixonou por um homem a
pederastia era uma praacutetica educacional comum na Greacutecia na qual um erasteacutes (mais velho)
ficava responsaacutevel por iniciar um eroacutemenos (mais novo) na vida adulta Contudo relacionar-
se sexualmente com um homem era vetado
Essas normas ajudam a reforccedilar essas fronteiras eacutetnicas helecircnicas que satildeo
constantemente abaladas pelo contato com os Outros Enquanto em Homero essas fronteiras
estatildeo sendo formadas em Euriacutepides elas estatildeo turvas Em Androcircmaca As Troianas
Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes vemos que o grego eacute passiacutevel de se barbarizar
sobretudo quando esse grego eacute um espartano Na primeira trageacutedia Hermiacuteone (uma
espartana) tem atitudes controversas e eacute mostrada usando muito ouro (v 147) mas natildeo chega
a ser comparada a uma baacuterbara Ela ainda eacute porta-voz de valores helecircnicos reforccedilando a ideia
de que Androcircmaca eacute a baacuterbara (v 261) Ela afirma que ldquoNatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade gregardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) Ela ainda afirma que ldquoEsse eacute o
modo como os baacuterbaros satildeo pai dorme com filha filho com matildee e irmatilde com irmatildeo gente
proacutexima assassina gente proacutexima e natildeo tem lei para prevenir issordquo [τοιοῦτον πᾶν τὸ
βάρβαρον γένος πατήρ τε θυγατρὶ παῖς τε microητρὶ microείγνυται κόρη τ᾽ ἀδελφῷ διὰ
φόνου δ᾽ οἱ φίλτατοι χωροῦσι καὶ τῶνδ᾽ οὐδὲν ἐξείργει νόmicroος] (vv 173-176)
Percebamos a caracterizaccedilatildeo do baacuterbaro por ela nessa passagem ela critica aqueles
que mantecircm relaccedilotildees sexuais dentro do nuacutecleo familiar (pai filho filha matildee irmatildeos) e o
assassinato entre phiacuteltatoi31 O tema da trilogia tebana de Soacutefocles gira em torno disso
Eacutedipo se casa com a matildee e seus netos se matam entre si Eacute interessante o resgate desse tema
31 Essa palavra eacute de difiacutecil traduccedilatildeo Em sua raiz estaacute phiacutelos (amigo) e o Le Grand Bailly indica esse vocaacutebulo para que possamos ter uma traduccedilatildeo de phiacuteltatos Contudo essas palavras natildeo tecircm o mesmo significado haacute uma razatildeo para Euriacutepides escolher phiacuteltatos em vez de phiacutelos Contudo quando traduz Phiacuteltatos (nome proacuteprio) coloca que eacute literalmente ldquobem-amadordquo [bien-aimeacute] (BAILLY 2000 p 2083) Cremos que ldquogente proacuteximardquo eacute o que mais se aproxima do sentido dessa palavra visto que phiacutelos designa essa ideia satildeo pessoas que se conhecem que satildeo proacuteximas que se assassinam
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pois Tebas era inimiga de Atenas sendo a poacutelis que teria comeccedilado a Guerra do Peloponeso
ao invadir Plateia regiatildeo de domiacutenio ateniense Natildeo podemos afirmar que Euriacutepides tinha isso
em mente quando compocircs Androcircmaca pois natildeo podemos ir aleacutem do que a documentaccedilatildeo
nos mostra mas mostrar como sendo algo baacuterbaro hamartiacuteai de heroacuteis tebanos eacute no miacutenimo
curioso
Menelau nessa peccedila eacute quem recebe as criacuteticas mais duras vindas de Peleu durante
um agoacuten entre os dois personagens o anciatildeo o critica por ter deixado um friacutegio levar sua
esposa de sua proacutepria casa (vv 590-609) e afirma que os espartanos satildeo soacute bons de guerra
mesmo que em outras mateacuterias satildeo inferiores (vv 724-726) O homem espartano eacute
inferiorizado Em Orestes Menelau jaacute eacute comparado a um baacuterbaro Tiacutendaro o acusa de ter se
tornado um baacuterbaro por ter estado entre baacuterbaros (v 485) Em Androcircmaca os espartanos
ainda natildeo satildeo diretamente ldquobarbarizadosrdquo como acontece em Orestes aquela trageacutedia foi
encenada praticamente no iniacutecio da Guerra do Peloponeso enquanto esta foi no final quando
as inimizades se acirraram de tal maneira que os espartanos foram paulatinamente sendo
deixados de fora da fronteira eacutetnica helecircnica tornando-se Outros
Ainda em Orestes Piacutelades Electra e seu irmatildeo satildeo capazes de accedilotildees condenaacuteveis em
nome da vinganccedila Em Ifigecircnia em Aacuteulis vemos Agamemnon um grego levar sua filha ao
sacrifiacutecio e em As Troianas e Heacutecuba os gregos se comportam de maneira condenaacutevel em
relaccedilatildeo agraves cativas troianas piorando a situaccedilatildeo deploraacutevel em que jaacute se encontram com o fim
de Troia As rivalidades da Guerra do Peloponeso e a temaacutetica vencedorperdedor satildeo
expressas na produccedilatildeo textual da eacutepoca assim como hoje em dia eacute impossiacutevel ficar
indiferente aos acontecimentos que nos cercam Euriacutepides tambeacutem natildeo conseguiu fazecirc-lo em
sua eacutepoca A obras literaacuteria em si eacute um ldquoartefato fonomorfossintaacutetico eacute universo semacircntico eacute
campo sintomatoloacutegico da histoacuteria do social e da consciecircncia numa palavra eacute
presentificaccedilatildeo imageacutetica do homem em accedilatildeordquo (ANDRADE 1998 p 15)
Embora ambientadas em Troia essas trageacutedias traziam temas caros agrave realidade
ateniense Satildeo comuns peccedilas que se desenrolam em lugares estrangeiros (as quais Edith Hall
chama de ldquoroteiros de deslocamentordquo [displacement plots]) onde a etnicidade e os direitos de
cidadania satildeo contestados (HALL 1997 p 98) Os troianos como vimos eram um exemplo
de barbaacuterie mas frequentemente eram representados como viacutetimas dos gregos ganhando
uma certa ldquosimpatiardquo de Euriacutepides Hall acredita que ldquose a representaccedilatildeo traacutegica da Guerra de
Troia era para tornar os espartanos lsquobaacuterbarosrsquo e assimilaacute-los ao arqueacutetipo do persa arrogante
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entatildeo os lsquoateniensesrsquo desse mundo miacutetico contudo paradoxalmente pode ser a viacutetima troiana
da agressatildeo espartanardquo (HALL 1989 p 214)
A helenista Casey Dueacute coloca que a representaccedilatildeo dos troianos dessa maneira
ldquoconvida a audiecircncia a transcender as fronteiras eacutetnicas e poliacuteticas que dividem as naccedilotildees na
guerra Desse modo os atenienses podem explorar suas proacuteprias tristezas testemunhando o
sofrimento dos outros inclusive de suas proacuteprias viacutetimasrdquo (DUEacute 2006 p 116) Natildeo podemos
negar que a exposiccedilatildeo do sofrimento alheio eacute um apelativo para chamar a atenccedilatildeo acerca do
proacuteprio sofrimento ateniense a viuacuteva os oacuterfatildeos os prisioneiros de guerra satildeo categorias que
podem ser compartilhadas a qualquer momento pelos atenienses visto que se estaacute em uma
eacutepoca de guerra Do momento que ele mostra os malefiacutecios da guerra atraveacutes desses
personagens ele estaacute colocando sua visatildeo acerca dos prejuiacutezos desencadeados por ela bem
como questionando a legitimidade dela Embora natildeo participasse efusivamente da poliacutetica
como Eacutesquilo e Soacutefocles ele era uma pessoa de opiniatildeo na eacutepoca Se ele pudesse mostra-la
nos palcos um dos lugares para onde os olhares da poacutelis se voltavam ele poderia convidar as
pessoas que o assistiam a questionar tambeacutem essa guerra
Contudo acreditamos que a intenccedilatildeo natildeo era ldquouniversalizarrdquo o sofrimento nem colocar
o troiano como o ateniense em si mas mostrar que o espartano eacute tatildeo condenaacutevel que ateacute o
baacuterbaro era melhor Afirmamos isso porque o troiano embora visto dessa maneira piedosa
natildeo deixava de ser baacuterbaro devido agrave sua caracterizaccedilatildeo As fronteiras eacutetnicas como vimos
satildeo borradas em Euriacutepides mas natildeo eacute por caracterizar ldquomelhorrdquo o troiano mas por assimilar o
espartano (grego) a ele o exemplo de baacuterbaro Aleacutem disso como defendemos aqui essa
caracterizaccedilatildeo do troiano (que eacute compartilhada com o persa o egiacutepcio etc) jaacute vem dos
poemas homeacutericos
Geralmente quando falamos de identidadealteridade em Homero pensamos
primeiramente na Odisseia Esse poema eacute marcado pelo embate com Outros visto que
Odisseu viaja por terras longiacutenquas e agraves vezes hostis Eacute emblemaacutetico o encontro desse heroacutei
com o Ciacuteclope personagem-siacutentese daquilo que eacute natildeo ser grego Odisseu enquanto ldquoaedo de
si mesmordquo conta o que viu quando chegou agrave terra dos Ciacuteclopes
ἔθνα δανὴρ ἐνιαυε πελώριος ὅς ῥα τὰ microῆλα οἶος ποιmicroαίνεσκεν ἀπόπροθεν οὐδὲ microετ ἄλλους πωλεῖτ ἀλλ ἀπάνευθεν ἐὼν ἀθεmicroίστια ᾔδη καὶ γᾶρ θαῦmicro ἐτἐτυκτο πελώριον οὐδὲ ἐῴκει ἀνδρί γε σιτοφάγῳ ἀλλὰ ῥίῳ ὑλήεντι ὑψηλῶν ὀρέων ὅ τε φαίνεται οἶον ἀπἄλλων
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dormia um ente gigantesco que pascia a recircs sozinho nos confins O ser longiacutenquo natildeo convivia com ningueacutem sem lei um iacutempio Dissiacutemile de um homem comedor de patildeo o monstro colossal mais parecia o pico da cordilheira infinda sem vizinho agrave vista (HOMERO Odisseia IX vv 187-192)
Polifemo eacute descrito como um monstro eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o
ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute
ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) Os gregos se
definem pela publicidade de seus atos o homem grego eacute idealmente um homem puacuteblico
Todos veem o que todos fazem e todos vivem pela manutenccedilatildeo de sua comunidade Do
mesmo modo a lei noacutemos eacute o que diferencia o homem do animal que vive no acircmbito da
phyacutesis natureza e do aacutegrios selvagem
Odisseu adentra a caverna de Polifemo com seus companheiros e eles comeccedilam a
comer seu queijo (demonstrando ateacute pouca educaccedilatildeo visto que os hoacutespedes devem esperar
que o anfitriatildeo lhes ofereccedila algo para comer) Quando o Ciacuteclope chega Odisseu lhe faz uma
suacuteplica a qual eacute respondida com aspereza
νήπιός εἰς ὦ ξεῖν ἢ τηλόθεν εἰλήλουθας ὅς microε θεοὺς κέλεαι ἢ δειδίmicroεν ἢ αλέασθαι οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν οὐδὲ θεῶν microακάπων ἐπεὶ ἦ πολὺ φέρτεροί εἰmicroεν οὐδ ἂν ἐγὼ Διὸς ἔχθος ἀλεθάmicroενος πεφιδοίmicroην οὔτε σεῦ οὔθ ἑταρων εἰ microὴ θυmicroός microε κελεύοι
Ou eacutes um imbecil ou vens de longe estranho rogando que eu me dobre aos deuses ou que evite-os pois Zeus porta-broquel natildeo chega a preocupar Ciacuteclopes nem um outro oliacutempico somos bem mais fortes Natildeo te acolheria nem teus soacutecios para poupar-me da ira do Cronida O cor eacute meu tutor (HOMERO Odisseia IX vv 273-278)
O Ciacuteclope aqui desliza duas vezes primeiramente nega uma suacuteplica Isso gera um
estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) sendo que
ldquoa oposiccedilatildeo plural-singular litaiacute-aacutete lsquosuacuteplicas-perdiccedilatildeorsquo que parece indicar uma significativa
oposiccedilatildeo entre coletividade entendimento e reconhecimento de um lado e isolamento
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teimosia e cegueira de outro [devemos destacar]rdquo (MALTA 2006 p 58-9) Essa suacuteplica eacute a
do xeacutenos aquele que se hospeda em um lugar
Assim em segundo lugar ele nega um costume que factualmente natildeo eacute somente
grego (embora no plano do discurso ele tenha sido ldquoexclusivizadordquo pelos helenos ao longo do
tempo) mas eacute difundido por todo o Mediterracircneo a hospitalidade (xeacutenia) que eacute
[] um coacutedigo de conduta uma convenccedilatildeo natildeo escrita que atravessava as fronteiras do Mediterracircneo oriental Demonstrava-se por meio de uma etiqueta reconhecida em que havia troca de presentes e festivais e sua origem estava na xenuia da Idade do Bronze tardia [] que surge nas taacutebuas de Linear B [] A xenuia governaria na verdade o ingresso e a partida de visitantes estrangeiros aos palaacutecios do Peloponeso no seacuteculo XIII aC [suposto seacuteculo da ocorrecircncia da guerra de Troia] (HUGHES 2009 p 188)
Paacuteris tambeacutem transgride a xeacutenia configurando-se num Outro Tem-se admitido que os
troianos satildeo o Outro estrangeiro conjectura-se que Troia na verdade nunca fez parte da
Heacutelade e muitos autores se referem aos troianos como estrangeiros como se fosse algo oacutebvio
e natural Claude Mosseacute mostra que a Iliacuteada ldquoconserva a memoacuteria de uma grande expediccedilatildeo
dos Helenos da Europa [των Ελλήνων της Ευρώπης] contra Troiardquo (MOSSEacute 2000 p 10)
embora ldquohelenosrdquo designe apenas uma parte da Greacutecia em Homero (HALL 2002 p 129) e o
termo ldquoEuropardquo tivesse sido cunhado a posteriori (MITCHELL 2007 p 20) Hillary Mackie
crecirc que essa diferenciaccedilatildeo nesses termos se daacute porque eles representam duas culturas
diferentes no plano linguiacutestico (uma de elogio e outra de acusaccedilatildeo)
Kostas Vlassopoulos ao analisar a glocalizaccedilatildeo do natildeo-grego na Greacutecia ou seja os
modos pelos quais os gregos ldquoadotam e adaptamrdquo32 repertoacuterios estrangeiros ele fala que em
Homero jaacute acontecia isso visto que os heroacuteis troianos eram estrangeiros [foreigns]
(VLASSOPOULOS 2013 p 167) Para justificar essa ideia o historiador afirma que
[] no lado aqueu do Cataacutelogo das Naus enumera um sem-nuacutemero de comunidades de todo o mundo grego que manda contingentes a Troia sob a lideranccedila de Agamemnon enquanto o cataacutelogo dos aliados troianos enumera vaacuterias pessoas falando outras linguagens (allothrooi) [sic] que mandam suas tropas para ajudar os troianos incluindo os liacutecios os caacuterios os traacutecios os paflagocircnios os friacutegios os miacutesios e os peocircnios (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
32 Essa eacute uma expressatildeo muito utilizada por Kostas Vlassopoulos ao longo de seu livro
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Os caacuterios satildeo denominados barbaroacutephōnos33 (Iliacuteada II v 867) natildeo os troianos ldquoMas
outras satildeo as liacutenguas dos outros homens que se espalham ao longerdquo [ἄλλη δrsquo ἄλλων
γλῶσσα πολυσπερέων ἀνθρώπων] (II v 804) no exeacutercito troiano mas isso natildeo significa
que o troiano esteja falando outra liacutengua seus aliados eram de regiotildees natildeo-gregas
Discordamos dessas posiccedilotildees natildeo haacute na Iliacuteada nenhuma referecircncia ao caraacuteter
estrangeiro de Troia Contudo tambeacutem natildeo eacute adequado falarmos que os troianos eram iguais
aos gregos como ressalta Jacqueline de Romilly em seu Pourquoi la Gregravece ldquoentre os dois
[troianos e aqueus] como Zeus mesmo Homero tem a balanccedila igual [] Homero ignora tal
oposiccedilatildeo [Europa vesus Aacutesia]rdquo (ROMILLY 2013 p 38 e 39) Ela afirma que Homero natildeo os
diferencia porque se tratam de humanos guerreando e os valores da humanidade se
sobrepotildeem aos do grupo eacutetnico ldquoele natildeo marca as diferenccedilas entre indiviacuteduos e tampouco
entre os povos Do lado troiano como do lado aqueu satildeo lsquomortaisrsquo que se afrontamrdquo
(ROMILLY 2013 p 37)
Antonio Mario Battegazzore mostra que ldquoentre gregos e troianos estatildeo faltando
elementos mesmo que miacutenimos de distinccedilatildeo a alimentaccedilatildeo e o vestiaacuterio bem como os
princiacutepios morais satildeo idecircnticos para todos os cultos as habitaccedilotildees o modo de combater
valem para um como para outrordquo (1996 p 17) Ele concorda com Edith Hall ao dizer que natildeo
existe uma distinccedilatildeo entre Europa e Aacutesia na Iliacuteada (HALL 1989 p 39 BATTEGAZZORE
1996 p 17) De fato Homero natildeo traz esses termos geograacuteficos mas natildeo podemos dizer que
natildeo exista diferenciaccedilatildeo alguma como John Heath corrobora
Os troianos de Homero satildeo notoriamente difiacuteceis de ser distinguidos dos gregos eles cultuam os mesmos deuses lutam com taacuteticas idecircnticas e compartilham formas equivalentes de habitaccedilatildeo comida vestimenta funerais e parentesco Mesmo as diferenccedilas ndash poligamia oriental por exemplo ndash satildeo minimizadas Os principais protagonistas da guerra um da Europa e outro da Aacutesia ateacute falam a mesma liacutengua Os troianos natildeo aparentam ao menos para muitos leitores modernos mostrar os principais defeitos da psicologia do baacuterbaro que veio a caracterizaacute-los no quinto seacuteculo tirania luxuacuteria imoderada emocionalismo irrestrito afeminaccedilatildeo crueldade e servilidade De fato Homero eacute frequentemente admirado hoje em dia por sua descriccedilatildeo equacircnime de gregos e natildeo-gregos especialmente quando os eacutepicos satildeo comparados com a literatura ateniense da eacutepoca poacutes-Guerras Greco-Peacutersicas Essa interpretaccedilatildeo positiva dos troianos era uma exceccedilatildeo na antiguidade contudo e ainda haacute criacuteticos que veem um retrato negativo dos troianos como uma raccedila na Iliacuteada
33 Ele eacute composto de duas palavras o substantivo phōnḗ ldquovozrdquo e a onomatopeia bar bar analoacutegico ao nosso ldquoblaacute blaacuterdquo que designa uma linguagem incompreensiacutevel Assim o barbaroacutephōnos eacute aquele de quem natildeo se compreende a fala Desse modo se dos caacuterios soacute se ouve ldquobar barrdquo isso significa que eles natildeo falam o grego ou o falam mal (JANSE 2002 p 334-5) Como a liacutengua eacute um dos traccedilos marcantes de uma cultura (AUGEacute 1998 p 24-5) desconhecer o grego significa desconhecer a cultura grega o termo barbarophoacutenos acaba designando um povo estrangeiro No sumeacuterio e no babilocircnio jaacute existia uma palavra que utiliza esse recurso onomatopaico para definir o estrangeiro barbaru J Porkony coloca que algo semelhante ocorre no latim com o termo balbutio e no inglecircs com o termo baby satildeo palavras compostas de sons repetitivos (HALL 1989 p 4 n 5)
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Essa leitura estaacute errada eu acredito e entende mal tanto as convenccedilotildees eacutepicas e as maiores preocupaccedilotildees poeacuteticas de Homero (HEATH 2005 p 531)
Os troianos satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo de conduta dos gregos contudo eles
fazem um uso diferente de alguns aspectos desde Se um aspecto existe em Homero (como a
poligamia de Priacuteamo a maioria dos arqueiros no exeacutercito troiano etc) ele natildeo deve ser jamais
minimizado tem um porquecirc de o poeta colocar aquilo ali e simples explicaccedilotildees como ldquoeacute para
preencher a meacutetricardquo ou ldquoeacute uma interpolaccedilatildeo posteriorrdquo natildeo nos eacute suficiente para
compreender uma produccedilatildeo tatildeo complexa
De fato Homero natildeo distingue os troianos de modo a caracterizaacute-los como baacuterbaros
essa eacute uma denominaccedilatildeo inexistente nos poemas embora exista a palavra que lhe tenha dado
origem (barbaroacutephōnos) Contudo aqueus e troianos natildeo satildeo iguais se dentro de um mesmo
exeacutercito temos heroacuteis diferentes por que de um exeacutercito para outro natildeo haveria mudanccedilas
Os habitantes de Troia satildeo caracterizados de modo a serem diferenciados dos aqueus
Defendemos que os troianos satildeo um outro grupo eacutetnico eles satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo
de conduta grego mas o uso que eles fazem desses costumes eacute diferente E como veremos no
capiacutetulo seguinte muitos dos elementos de caracterizaccedilatildeo dos troianos sobretudo a de Paacuteris
seratildeo utilizados pela trageacutedia para caracterizar os baacuterbaros Um grupo eacutetnico eacute definido natildeo na
total mas na sutil diferenccedila
A fronteira eacutetnica depende da cultura utiliza a cultura mas natildeo eacute idecircntica a esta uacuteltima tomada em seu conjunto Dois grupos sociais vizinhos muito parecidos culturalmente podem chegar a considerar-se completamente diferentes e excludentes do ponto de vista eacutetnico opondo-se com base em um uacutenico elemento cultural isolado tomado como criteacuterio (CARDOSO 2005 p 11-2)
Jonathan Hall natildeo crecirc contudo que possa haver etnicidade na Iliacuteada
[hellip] a evidecircncia de uma diferenciaccedilatildeo eacutetnica de fato entre gregos e troianos na Iliacuteada natildeo eacute totalmente convincente Os troianos usam a onomaacutestica grega cultuam os mesmos deuses que os gregos possuem a mesma organizaccedilatildeo ciacutevica dos gregose satildeo retratados pelo poeta de forma natildeo menos (e talvez ateacute mais) simpaacutetica que os gregos Eacute admitivelmente verdade que Troia eacute retratada como extraordinariamente abastada e que alguns de seus ocupantes ndash notavelmente Paacuteris ndash adota uma vida de luxuacuteria doentia Tambeacutem haacute indiacutecios de que os troianos satildeo retratados como um tanto excitaacuteveis e um pouco desordenadamente em comparaccedilatildeo com o campo grego (HALL 2002 p 118 ndash grifos do autor)
O discurso eacute o mesmo os troianos satildeo quase iguais aos aqueus e esse ldquoquaserdquo natildeo eacute
suficiente para haver uma diferenciaccedilatildeo de fato entre os dois exeacutercitos Lynette Mitchell
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escreve o mesmo ldquoos aqueus natildeo satildeo qualitativamente diferenciados dos troianosrdquo
(MITCHELL 2007 p 44) mas afirma que os gregos jaacute tinham uma noccedilatildeo do que natildeo era
grego e do que era colocando mais uma vez na Odisseia sua anaacutelise acerca disso
(MITCHELL 2007 p 49-50)
Kostas Vlassopoulos afirma que existe uma diferenciaccedilatildeo EuOutro em Homero ldquoos
temas e motivos que mais tarde se tornaratildeo o instrumental [stock-in-trade] das descriccedilotildees
gregas do Outro estavam claramente presente na eacutepoca de Homero e tambeacutem estatildeo presentes
no poema [Iliacuteada]rdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 171) Contudo retorna agrave questatildeo dos
costumes iguais ldquoaqueus e troianos satildeo retratados cultuando os mesmos deuses falando a
mesma liacutengua aceitando o mesmo coacutedigo moral e valores sociaisrdquo (VLASSOPOULOS 2013
p 171)
No tocante aos costumes poderiacuteamos argumentar com base na proacutepria obra de
Vlassopoulos que os valores difundidos na Iliacuteada e na Odisseia natildeo eram exclusivos dos
gregos mas eram universais Esse autor afirma que ldquoMas como a Iliacuteada o poeta da Odisseia
natildeo estaacute geralmente interessado em explorar as diferenccedilas culturais e eacutetnicas em vez disso o
poema opta por salientar instituiccedilotildees como a troca de presentes e hospitalidade [guest-
friendship] que juntam pessoas de diferentes lugaresrdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 172)
Concordamos em parte tanto eram valores universais que ateacute hoje a Iliacuteada e a
Odisseia satildeo atuais sendo adaptadas sobretudo para o puacuteblico infanto-juvenil nossos paicircdes
contemporacircneos Na Iliacuteada os costumes satildeo os mesmos mas o uso que os troianos fazem de
alguns deles eacute diferenciada Algo parecido acontece na Canccedilatildeo de Rolando (XI dC) por
exemplo o costume de nomear as espadas eacute inerente ao francos As espadas quase que tecircm
uma anima proacutepria Rolando conversa com sua Durindana e quando estaacute a ponto de morrer
tenta quebra-la para que ningueacutem mais a possua mas natildeo obteacutem ecircxito visto que ela natildeo quer
se quebrar (vv 2338-2354) Marcuacutelio emir muccedilulmano (inimigo eacutepico dos francos) nomeia
natildeo soacute sua espada (Preciosa) mas tambeacutem sua lanccedila (Maltet) O exagero (nomear espada e
lanccedila animando em demasia os objetos) eacute o que diferencia o muccedilulmano (o Outro) do franco
Assim o casamento eacute comum a gregos e troianos mas Priacuteamo (rei troiano) eacute poliacutegamo
A assembleia eacute comum a gregos e troianos mas o modo de convoca-la e conduzi-la eacute
diferenciado sendo simplificado do lado troiano (MACKIE 1996 p 22) O cataacutelogo das
naus (Canto II) nomeia tanto gregos quanto troianos que foram para a guerra mas haacute mais
nomes especificados do lado grego do que no troiano o cataacutelogo troiano eacute bem mais
simplificado Aleacutem disso alguns costumes (como a xeacutenia) no plano do discurso foram
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colocados como quase exclusivamente gregos ao longo do tempo sobretudo apoacutes as Guerras
Greco-Peacutersicas E eacute tambeacutem no plano do discurso que vemos algumas diferenccedilas entre os
troianos e os aqueus aqueles tecircm um modo de falar diferente como enfatiza Hilary Mackie
bem como os siacutemiles utilizados por Homero na composiccedilatildeo dos troianos revelam que em
batalha eles satildeo os animais caccedilados natildeo os caccediladores eles estatildeo em desvantagem na Iliacuteada
Os troianos portanto satildeo um Outro mas natildeo quer dizer que eles satildeo o Outro
estrangeiro que natildeo eacute grego Eles compartilham de um mesmo coacutedigo de conduta mas o
reapropriam constituindo-se de um outro grupo eacutetnico A ideia de que os troianos satildeo
estrangeiros surge a posteriori como vamos observar nos proacuteximos capiacutetulos sobretudo a
partir da caracterizaccedilatildeo de Paacuteris
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CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES
ldquoPaacuteris na Iliacuteada tanto heroacutei quanto arqueiro natildeo eacute nem um homem completo nem um guerreiro completordquo
(LISSARAGUE 2002 p 115)
Assim Paacuteris eacute visto pelo historiador francecircs Franccedilois Lissarague nem um homem
nem um guerreiro completo Eacute comum encontrarmos designaccedilotildees natildeo tatildeo heroicas a Paacuteris
vindo de helenistas contemporacircneos Ele eacute geralmente visto pelos autores que escrevem sobre
a Guerra de Troia como ldquovaidosordquo ldquofriacutevolordquo ldquococircmicordquo ldquoluxurianterdquo ldquogeralmente uma figura
natildeo heroicardquo (RUTHERFORD 1996 p 33 e 83) ldquoafeminadordquo ldquofrouxordquo (LORAUX 1989 p
93) ldquoplayboyrdquo ldquopateacuteticordquo (HUGHES 2009 219) ldquoegoiacutestardquo ldquosuperficialmente atrativordquo
(SCHEIN 2010 p 22 e 24) ldquotolordquo (CARLIER 2008 p 100) ldquonatildeo heroicordquo ldquoo mais
desmerecido dos filhos de Priacuteamordquo (REDFIELD 1994 p 113 e 114) ldquoalmofadinhardquo [fop]
(GRIFFIN 1983 p 8) ldquoantagonista [] de Aquilesrdquo (NAGY 1999 p 61)
ldquofujatildeordquoldquodesertorrdquo ldquocovarderdquo (AUBRETON 19561968 p 168202) ou ldquoidiotardquo (CLARKE
apud SUTER 1984 p 7)
No entanto isso natildeo acontece apenas com os autores contemporacircneos tanto Homero
como Euriacutepides trazem um Paacuteris constantemente sendo rechaccedilado O motivo principal eacute o fato
de ele ter causado a Guerra de Troia mas Homero traz aleacutem disso a ideia dele natildeo ser um
guerreiro tatildeo bom assim o que gera reprimendas tambeacutem Nesse capiacutetulo vamos ver como
nosso heroacutei eacute visto como um causador de males dentro desse espaccedilo discursivo e como os
outros personagens reagem a essa sua faceta Tanto a eacutepica quanto a trageacutedia trazem essa
ideia acerca desse personagem e haacute uma relaccedilatildeo entre ela e nossa comparaacutevel pois eacute
importante para definir alguns criteacuterios de etnicidade Entretanto em Homero ainda natildeo haacute a
ideia de Paacuteris como um baacuterbaros como jaacute haacute em Euriacutepides ele eacute algueacutem a quem se pode
causar vergonha34 (no bojo da ideia defendida por Ann Suter de que o discurso que cerca
Paacuteris tem a ver com o discurso iacircmbico)
34 Segundo E R Dodds a Greacutecia possui uma cultura de vergonha [shame-culture] natildeo uma cultura de culpa [guilt-culture] esta tem mais a ver com o que o indiviacuteduo pensa de si mesmo natildeo do que os outros pensam dele Assim dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode causar vergonha eacute mais apropriado do que dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode culpar Nesse ponto discordamos da terminologia utilizada por Ann Suter para tratar do personagem ldquoblamerdquo (culpa) natildeo eacute cabiacutevel para designar o discurso iacircmbico sendo preferiacutevel pois ldquoacusatoacuteriordquo
51
Na Iliacuteada quando Paacuteris recua ante a fuacuteria de Menelau Heitor o repreende (III vv 39-
45) Quatro qualificaccedilotildees satildeo utilizadas pelo poeta atraveacutes das palavras do seu irmatildeo para
nosso heroacutei dyacutesparis (literalmente ldquodis-Paacuterisrdquo) eicircdos aacuteriste (ldquomelhor formardquo) gynaimaneacutes
(enlouquecedor de mulheres) e ēperopeutaacute (enganador) Dyacutesparis eacute uma qualificaccedilatildeo
interessante ela eacute composta de um prefixo e um substantivo dyacutes- eacute um prefixo de negaccedilatildeo e
Paacuteris o proacuteprio nome do heroacutei aqui tratado Pode ter dado origem ao termo latino dispare
que por sua vez originou nosso ldquodiacutesparrdquo (diferente dessemelhante) ldquoPaacuteris funestordquo eacute a
traduccedilatildeo que Carlos Alberto Nunes daacute a esse termo a qual eacute adequada ao seu significado
visto que essa expressatildeo denota as contrariedades do personagem e os maus pressaacutegios que
ocorreram antes de seu nascimento Embora menos proacutexima ao sentido original a traduccedilatildeo de
Haroldo de Campos manteacutem a alusatildeo jogando com o ritmo das palavras ldquoPaacuteris mal-paridordquo
Eicircdos (forma) aacuteriste (de aacuteristos ldquomelhorrdquo) denota a beleza fiacutesica de Paacuteris a qual
deveria ser pressuposto segundo Heitor para seu bom desempenho no campo de batalha por
ser o mais belo troiano deveria ser tambeacutem o melhor guerreiro Contudo essa denominaccedilatildeo
tem uma peculiaridade esse epiacuteteto soacute eacute utilizado para mulheres (SUTER 1984 p 72) De
homens apenas Heitor e Paacuteris satildeo denominados dessa maneira e essa foacutermula soacute aparece
quando um dos dois faz algo indigno de sua estirpe no acircmbito militar Por estar no vocativo (o
nominativo eacute eidos aacuteristos) eacute designativo de um insulto
Em Euriacutepides haacute algumas alusotildees agrave beleza fiacutesica de Paacuteris Entretanto as palavras
usadas satildeo diferentes em Alexandre (fr 61d v 8) o coro diz que Paacuteris possui ldquoformas que
se diferem dos outrosrdquo (morphecirc diapher[ ) Eacute uma designaccedilatildeo menos especiacutefica do que ldquoeicircdos
aacuteristerdquo utilizada por Homero Aleacutem disso sua beleza aparece intrinsecamente ligada ao
excesso de ouro agraves roupas que ele usa Eacute uma beleza acessoacuteria externa (literalmente)
baacuterbara que causou a desgraccedila de muitos Em Euriacutepides e em Homero sua beleza se liga a)
ao fato de ele pertencer a uma elite (Paacuteris eacute diferente das pessoas comuns por isso o coro de
Alexandre frisa essa ideia da beleza como distinccedilatildeo social e eacute a partir dela e de suas faccedilanhas
incompatiacuteveis com um douacutelos ndash escravo ndash que se desconfiaraacute da origem do pastor que ganhou
os jogos) e b) agrave ruiacutena que ela causou (Heacutecuba na peccedila homocircnima de Euriacutepides deixa claro
que Helena se deslumbrou com a riqueza e a beleza de Paacuteris)
Nosso heroacutei eacute um gynaimaneacutes na Iliacuteada Essa eacute uma qualificaccedilatildeo formada por dois
substantivos gynḗ (mulher) e maacutenē (loucura) palavra que deriva do verbo maiacutenomai (desejar
ardorosamente loucamente ndash ISIDRO PEREIRA 1951 p 113 ldquoser louco porrdquo [esser pazzo]
ndash NAZARI 1999 p 223 ficardeixar [rendre] louco ndash BAILLY 2000 p 1217 ndash ver microαίνω)
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Anatoille Bailly traduz essa palavra por ldquofou des femmesrdquo (louco por mulheres) (2000 p 422
ndash ver γυναικοmicroανής) Carlos Alberto Nunes como vimos acima traduz como ldquosedutor de
mulheresrdquo Haroldo de Campos por ldquomulherengordquo
Ann Suter nota que esse mesmo epiacuteteto eacute utilizado para designar Dionisos no Hino a
essa divindade (1984 p 74) traduzindo-o como ldquohe who drives women madrdquo (ldquoaquele que
deixa as mulheres loucasrdquo) e criticando aqueles que traduzem a palavra por ldquowomen crazyrdquo
(ldquolouco por mulheresrdquo) Assim enquanto Carlos Alberto Nunes e Ann Suter partem para uma
traduccedilatildeo que denota o aspecto ativo do adjetivo (Paacuteris como agente da
seduccedilatildeoenlouquecimento) Anatoille Bailly e Haroldo de Campos optam por um aspecto
passivo (Paacuteris como viacutetima dessa loucura) ldquoDeixar louco as mulheresrdquo ou ldquoser louco por
mulheresrdquo natildeo altera enfim a ideia de que Paacuteris eacute um homem relacionado a essa esfera da
seduccedilatildeo do amor da paixatildeo
Ēperopeutaacute natildeo eacute traduzido por Carlos Alberto Nunes ele une esse vocaacutebulo a
gynaimaneacutes sob a denominaccedilatildeo de ldquosedutor de mulheresrdquo Haroldo de Campos traduz como
ldquoimpostorrdquo denotando sua acepccedilatildeo ligada agrave enganaccedilatildeo O Le grand Bailly mostra duas
traduccedilotildees ligadas ao verbo ēperopeuacuteō ldquoenganadorrdquo e ldquosedutorrdquo (BAILLY 2000 906) Ann
Suter evidencia que esse epiacuteteto eacute utilizado tambeacutem na tradiccedilatildeo poeacutetica para Hermes e
Prometeu dois dos maiores enganadores da mitologia (1984 p 75-76) sendo ldquoenganadorrdquo
sua melhor traduccedilatildeo Esse epiacuteteto dialoga entatildeo diretamente com theoeidḗs epiacuteteto utilizado
para Paacuteris em vaacuterios cantos no que toca a esfera da dissimulaccedilatildeo
Theoeidḗs ndash que significa literalmente ldquode forma divinardquo (theoiacute ndash deuses eicircdos ndash
forma exterior aspecto ndash BAILLY 2000 p 584 NAZARI 1999 p 146) ndash denota a escassa
relaccedilatildeo de Paacuteris com o ambiente beacutelico Theoeidḗs acompanha mais Paacuteris que outros
personagens Eacute como o ldquode peacutes velozesrdquo de Aquiles ou o ldquode muitos ardisrdquo de Odisseu
acaba se transformando em um epiacuteteto quase que exclusivo para o heroacutei Esse eacute um adjetivo
que denota a beleza fiacutesica de um personagem (FONTES 2001 p 95) Ann Suter chama a
atenccedilatildeo para a proacutepria etimologia da palavra da sua formaccedilatildeo ter a ldquoforma de um deusrdquo eacute
problemaacutetico visto que os deuses sempre se disfarccedilam Assim ser theoeidḗs eacute ser de certo
modo falso vocecirc aparenta ser uma coisa que natildeo eacute (SUTER 1984 p 63)
Aleacutem disso segundo ainda Ann Suter theoeidḗs eacute um epiacuteteto natildeo-beacutelico
Aqueles aos quais esse epiacuteteto eacute aplicado com alguma frequecircncia pois satildeo notaacuteveis por serem todos homens mas nenhum guerreiro Teocliacutemeno o vidente Telecircmaco muito jovem para lutar Priacuteamo muito velho para lutar De fato os quarto
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pretendentes e Alciacutenoo compartilham tambeacutem essa caracteriacutestica comum a esse grupo (SUTER 1983 p 60-1)
Natildeo soacute esse epiacuteteto se repete frequentemente mas tambeacutem as quatro palavras que
analisamos elas fazem parte de uma foacutermula que aparece novamente no Canto XIII
(Δύσπαρι εἶδος ἄριστε γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ) e esta tem um tom acusador Satildeo palavras
que Heitor dirige a Paacuteris a fim de censuraacute-lo de constrangecirc-lo e de atraveacutes da neacutemesis35
fazer com que ele sinta vergonha de seu comportamento Os heroacuteis vivem sob a sombra do
aidṓs comumente traduzido como ldquovergonhardquo ou ldquorespeitordquo mas que de fato ldquoeacute o medo da
desaprovaccedilatildeo ou da condenaccedilatildeo pelos outros que faz um homem ficar e lutar bravamenterdquo
(SCHEIN 2010 p 177) Essa noccedilatildeo de aidṓs corrobora o caraacuteter agoniacutestico da sociedade
helecircnica se configura numa ldquovulnerabilidade agrave norma ideal expressa pela sociedaderdquo
(REDFIELD 1994 p 116) e faz parte do desenvolvimento da poesia iacircmbica (acusatoacuteria)
Heitor fala em sua reprimenda a Paacuteris no Canto III que o exeacutercito inimigo ri da
atitude de Paacuteris (v 43) haacute poucos risos na Iliacuteada como observou James M Redfield e
segundo esse autor em todas as situaccedilotildees ele ldquoeacute a marca da liberaccedilatildeo da tensatildeo socialrdquo
(REDFIELD 1994 p 286) A seguir Heitor continua sua reprimenda lembrando a Paacuteris que
foi ele quem causou a guerra devendo pois ele retornar ao campo de batalha para enfrentar
Menelau
O heroacutei ainda lembra o irmatildeo de que ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a
beleza natildeo te valeram de nada ao te vires lanccedilado na poeirardquo [οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃ κίθαρις
τά τε δῶρ᾽ Ἀφροδίτης ἥ τε κόmicroη τό τε εἶδος ὅτ᾽ ἐν κονίῃσι microιγείης] (III vv 46-55) Os
cabelos de Paacuteris (koacutemē) a ciacutetara (kiacutetharis) ndash instrumento musical ndash os dons de Afrodite (dōra
Aphrodiacutetēs) ndash relacionados ao amor e agrave beleza ndash e a sua forma fiacutesica (eicircdos) natildeo lhe servem
para o campo de batalha ali eacute o domiacutenio da forccedila (biacuteē) da coragem (alkḗ) natildeo da muacutesica da
beleza e do amor Aqui tambeacutem Paacuteris serve de khaacuterma um motivo de divertimento para os
outros Eacute algueacutem acusaacutevel vergonhoso que necessita ser repreendido com palavras
Mesmo Helena natildeo fica satisfeita com as atitudes de Paacuteris primeiramente recusa-se a
ir encontraacute-lo dizendo agrave Afrodite (que estava disfarccedilada) ldquoNatildeo voltarei para o taacutelamo pois
vergonhoso seria participar-lhe do leito as Troianas sem duacutevida haviam de murmurar jaacute
sobejam as dores que na alma suportordquo [κεῖσε δ᾽ ἐγὼν οὐκ εἶmicroι νεmicroεσσητὸν δέ κεν εἴη 35 Neacutemesis ldquoeacute uma ira mediada pelo sentido social um homem natildeo somente sente isso mas se sente correto em sentir issordquo (REDFIELD 1994 p 117) Ainda segundo esse autor neacutemesis se contrapotildee ao aidṓs os dois se relacionam agrave censura mas este seria uma censura interna (vocecirc vecirc que estaacute errado sente vergonha de si mesmo e faz o certo) e aquele uma externa (algueacutem vecirc que vocecirc estaacute fazendo algo errado censura vocecirc sente vergonha e faz o certo)
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κείνου πορσανέουσα λέχος Τρῳαὶ δέ micro᾽ ὀπίσσω πᾶσαι microωmicroήσονται ἔχω δ᾽ ἄχε᾽
ἄκριτα θυmicroῷ] (III vv 410-412 ndash grifos nossos) Helena teme a neacutemesis das troianas mas o
medo de desagradar aos deuses eacute maior Afrodite lhe ameaccedila e ela acaba indo encontrando-se
com Paacuteris (III vv 413-420)
Ao se defrontar com nosso heroacutei Helena assim como Heitor o reprova por ter
voltado para o palaacutecio e o instiga a retornar para combater Menelau
ἀλλ᾽ ἴθι νῦν προκάλεσσαι ἀρηΐφιλον Μενέλαον ἐξαῦτις microαχέσασθαι ἐναντίον ἀλλά σ᾽ ἔγωγε παύεσθαι κέλοmicroαι microηδὲ ξανθῷ Μενελάῳ ἀντίβιον πόλεmicroον πολεmicroίζειν ἠδὲ microάχεσθαι ἀφραδέως microή πως τάχ᾽ ὑπ᾽ αὐτοῦ δουρὶ δαmicroήῃς Vai provocar entatildeo logo o disciacutepulo de Ares potente para outra vez vos medirdes em duelo Aliaacutes aconselho-te a que natildeo faccedilas tamanha tolice pensando que podes com o louro heroacutei Menelau contender numa luta corpoacuterea que em pouco tempo sua lanccedila potente haacute de ao solo postrar-te (III vv 428-436)
Na Iliacuteada Helena eacute a uacutenica mulher mortal que repreende um homem um anḗr sendo
o homem repreendido justamente Paacuteris Isso seria um absurdo temos a ideia por causa de
uma construccedilatildeo historiograacutefica simplista e de uma documentaccedilatildeo oriunda em sua maioria do
Periacuteodo Claacutessico Ateniense de que a mulher natildeo possuiacutea voz na Greacutecia Antiga (LESSA
2010 p 15-6) Contudo a proacutepria documentaccedilatildeo do Periacuteodo Claacutessico nos mostra ldquobrechasrdquo
nesse ideal de comportamento as mulheres natildeo eram completamente passivas
A trageacutedia nesse sentido exerce um papel importante para que possamos estudar esse
aspecto Em Euriacutepides Helena Androcircmaca e Ifigecircnia culpam Paacuteris pela situaccedilatildeo em que se
encontram a elas eacute dada voz para expressar essa ideia Segundo o historiador Faacutebio de Souza
Lessa
as trageacutedias [] satildeo suportes de informaccedilatildeo importantes para a compreensatildeo da dinacircmica poliacuteade e em especial do comportamento feminino isto porque em cena a poacutelis refletia sobre si mesma havendo uma abordagem de problemaacuteticas totalmente atuais na Atenas do seacuteculo V aleacutem de permitirem ascender as contradiccedilotildees inerentes agrave consolidaccedilatildeo da mulher na poacutelis democraacutetica [] Para Richard Buxton a trageacutedia eacute o lugar do conflito das tensotildees e rupturas sendo as mulhetes neste espaccedilo agressivas dominadoras ativas e seres visiacuteveis (LESSA 2004 p 80)
55
As trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides natildeo tratam da Guerra de Troia em si36 ou
elas se passam antes (como Alexandre) ou depois dela (como o resto de nossa
documentaccedilatildeo) Eacute nas trageacutedias que se passam depois da guerra que as mulheres em questatildeo
enunciam essa responsabilidade do Paacuteris pelos seus destinos e a voz feminina aqui eacute
imprescindiacutevel satildeo as mulheres e as crianccedilas que mais sofrem com a guerra Elas ficam sem
seus esposos e pais tornam-se cativas do inimigo veem suas vidas ruiacuterem Antes da
encenaccedilatildeo das trageacutedias algumas cerimocircnias se desenrolavam como a apresentaccedilatildeo dos
tesouros da cidade e dos oacuterfatildeos de guerra as crianccedilas cujos pais deram a vida por Atenas
eram sustentadas pela poacutelis e eles deveriam continuar ndash pelos seus pais pelo seu nome e pela
sua cidade ndash a lutar
Sendo a Iliacuteada um texto que circulava bastante no Periacuteodo Claacutessico (e congelado na
escrita durante ele) por ser utilizado para a paideiacutea o fato de Helena reprimir Paacuteris eacute
significativo Tanto esse poema quanto a Odisseia tambeacutem trazem um modelo feminino a
priori muito bem delimitado e fechado que muito influenciou na proacutepria construccedilatildeo do
modelo claacutessico Peneacutelope eacute o grande exemplo a mulher tecelatilde fiel ao marido submissa ao
filho homem que utiliza a meacutetis para urdir literalmente a trama que lhe garante os vinte anos
de espera por Odisseu
Em Homero a representaccedilatildeo de Helena denota algo que acontece tambeacutem no Periacuteodo
Claacutessico ldquoa sociedade poliacuteade buscou manter as mulheres distanciadas da esfera da accedilatildeo
masculina mas ao memso tempo concedeu-as a funccedilatildeo de policiar as accedilotildees dos cidadatildeos isto
eacute de vigiar o comportamento masculinordquo (LESSA 2004 p 77 ndash grifos do autor) Helena
nesse excerto do poema homeacuterico eacute a responsaacutevel por vigiar o comportamento de Paacuteris
reprimindo-o O helenista australiano Christopher Ransom crecirc que Paacuteris natildeo se deixa afetar
pela neacutemesis nem pelo aidṓs (RANSOM 2011 p 55) mas eacute atraveacutes da neacutemesis de Helena e
de Heitor que o heroacutei sentiria aidṓs pelos seus atos e voltaria para a guerra o que invalida sua
afirmaccedilatildeo Entretanto essa reprimenda natildeo surte efeito de pronto somente no Canto VI o
heroacutei retornaraacute para a guerra (e dela natildeo se ausentaraacute mais)
Paacuteris eacute mostrado frequentemente tambeacutem como causador de grande desgraccedila para os
combatentes tanto em Euriacutepides quanto em Homero No Canto XXII da Iliacuteada quando
Heitor diz que natildeo vai recuar da luta singular com Aquiles dando Helena e os bens do palaacutecio
ldquoque o divo Paacuteris nas cocircncavas naus para Troacuteia nos trouxe ndash causa que foi inicial desta
36 Agrave exceccedilatildeo de Rhesos a qual tem a autoria de Euriacutepides questionada e natildeo incluiacutemos em nosso corpus documental
56
guerra funestardquo [microάλ᾽ ὅσσά τ᾽ Ἀλέξανδρος κοίλῃς ἐνὶ νηυσὶν ἠγάγετο Τροίηνδ᾽ ἥ τ᾽
ἔπλετο νείκεος ἀρχή] (vv 115-116 ndash grifos nossos) A ideia de que Paacuteris foi o princiacutepio de
tudo tambeacutem se encontra presente no Canto V quando eacute mencionado relata-se que Feacutereclo
artiacutefice foi quem fabricou os navios nos quais Paacuteris foi atraacutes de Helena ldquoque tinham sido o
princiacutepio da grande desgraccedila dos Teucros e dele proacuteprio por ter desprezado os oraacutecrsquolos
divinosrdquo [ἀρχεκάκους37 αἳ πᾶσι κακὸν Τρώεσσι γένοντο οἷ τ᾽ αὐτῷ ἐπεὶ οὔ τι θεῶν ἐκ
θέσφατα ᾔδη] (V vv 63-64 ndash grifos nossos) Aqui a arkhekaacutekos dos troianos foi a proacutepria
partida de Paacuteris que eacute denominado como causador de uma meacutega pecircma aos seus conterracircneos
A expressatildeo se repete no Canto VI quando Heitor diz ldquoUm fautor de desgraccedilas fez
nascer o Olimpo para o magnacircnimo Priacuteamo os filhos e o povo Troiano Se concedido me
fosse assistir-lhe agrave descida para o Hades esquecer-se-ia minha alma por certo dos males
presentesrdquo [microέγα γάρ microιν Ὀλύmicroπιος ἔτρεφε πῆmicroα Τρωσί τε καὶ Πριάmicroῳ microεγαλήτορι
τοῖό τε παισίν εἰ κεῖνόν γε ἴδοιmicroι κατελθόντ᾽ Ἄϊδος εἴσω φαίην κε φρέν᾽ ἀτέρπου
ὀϊζύος ἐκλελαθέσθαι] (VI vv 280-285 ndash grifos nossos) Aqui a alusatildeo a Paacuteris como
causador da guerra de grandes desgraccedilas (meacutega pecircma) aparece novamente Ainda nesse
Canto quando Heitor repreende Paacuteris essa ideia tambeacutem se repete e o heroacutei acrescenta que
ldquoTu proacuteprio quiccedilaacute te indignaras caso encontrasse algueacutem que fugisse agrave defesa da paacutetria [σὺ
δ᾽ ἂν microαχέσαιο καὶ ἄλλῳ ὅν τινά που microεθιέντα ἴδοις στυγεροῦ πολέmicroοιο] (VI vv 329-
330)
Durante essa reprimenda (VI vv 326-342) Paacuteris eacute interpelado por Heitor como
daimoacutenirsquo (vocativo masculino singular de daiacutemōn) palavra que designa uma relaccedilatildeo iacutentima
entre os interlocutores bem como ldquoeacute costumeiramente usada quando o falante quer persuadir
o endereccedilado a mudar aquele comportamento ou atituderdquo (SUTER 1984 p 59) Comumente
traduzido por ldquodemocircniordquo muitas vezes confunde o leitor desavisado das obras de Homero
Essa traduccedilatildeo implica numa concepccedilatildeo cristatilde (ou seja posterior ao tempo ao qual nos
referimos) aleacutem de ser pela conotaccedilatildeo da palavra uma soluccedilatildeo pouco cabiacutevel pois o daiacutemōn
natildeo eacute ruim O termo designa uma divindade qualquer e nesse caso eacute uma interpelaccedilatildeo o
vocativo corrobora essa ideia
Heitor assim exorta Paacuteris agrave batalha chamando a atenccedilatildeo para o fato de ele ter
causado a guerra Ele por sua vez acalma Heitor dizendo que ele estaacute se preparando para a
batalha visto que ele jaacute havia sido exortado pela proacutepria Helena a qual lamenta natildeo lhe ter
sido destinado um homem melhor que sentisse vergonha pelos seus atos A reprimenda de
37 Archeacute eacute o princiacutepio kakoacutes eacute tanto o mau quanto o feio
57
Helena enfim surtiu efeito e Paacuteris de fato vai ao encontro de Heitor que ocorre ainda no
Canto VI (vv 503-525)
No entanto ele natildeo retorna sem escutar mais uma vez algo de Helena ela volta a
criticar o heroacutei afirmando que ele ldquonunca teve firmeza nem nunca haacute de tecirc-lardquo [δ᾽ οὔτ᾽ ἂρ
νῦν φρένες ἔmicroπεδοι38 οὔτ᾽ ἄρ᾽ ὀπίσσω ἔσσονται] (VI vv 352-353) Fica claro nessa
passagem que a aacutetē de Paacuteris foi o motor da guerra Ao retirar Helena de Menelau quando
estava alojado em seu palaacutecio ele cometeu uma infraccedilatildeo desrespeitou a hospitalidade
(xeacutenia) praacutetica cara aos helenos Essa transgressatildeo foi uma das engrenagens da aacutetē (cegueira)
de Paacuteris visto que a aacutetē se daacute de trecircs momentos (princiacutepio estadoato e consequecircncia) o
ldquoraptordquo de Helena eacute o ldquoestadoatordquo que teve como princiacutepio a escolha de Afrodite e a guerra
como consequecircncia (MALTA 2006 p 78)
Em Euriacutepides a maioria esmagadora das menccedilotildees a Paacuteris dizem respeito ao fato de ele
ter causado a guerra Alguns personagens como Agamemnon e Ifigecircnia em Ifigecircnia em Aacuteulis
(vv 467-468 vv 1283-1311) ou Androcircmaca e Helena em As Troianas (vv 919-934 vv
940-943 vv 597-600) culpam-no diretamente pelas suas ruiacutenas mas geralmente eacute o coro
quem o faz (As Troianas vv 780-781 Heacutecuba vv 629-656 vv 905-951 Helena vv
1110-1120 Androcircmaca vv 274-300 Ifigecircnia em Aacuteulis vv 573-589) Eacute importante
frisarmos a importacircncia do coro pois ele eacute uma espeacutecie de arauto da poacutelis
O coro era elemento fundamental No desempenho cumprido por ele vertia-se uma grande quantidade de comentaacuterio social instrutivo e cheio de ponderaccedilatildeo que continuamente reiterava e sumarizava os valores da comunidade as atitudes e atributos aceitos e estimados Os diaacutelogos tomaram da retoacuterica homeacuterica o seu estilo exortativo aconselham comentam orientam exortam denunciam mostram arrependimentos expotildeem de forma mordaz o que devia de ser aceito ou evitado dando expressotildees a reaccedilotildees extremas dramatizando seus castigos e suas recompensas (CODECcedilO 2010 p 72)
Aleacutem disso o coro estaacute aqui exercendo um papel que sua natureza intralinguiacutestica
desempenha ele canta em versos iacircmbicos (ROMILLY 2013 p 227) de natureza
acusatoacuteria Eacute de comum conhecimento que Paacuteris causou a guerra e o coro faz questatildeo de
lembrar disso Em Helena a personagem homocircnima se acusa dizendo que seu deacutemas (beleza
do corpo) causou a ruiacutena de Troia (vv 384-385) mas o coro na mesma trageacutedia vem
lembrar ldquosobre o mar cinza com remo baacuterbaro o homem que veio que veio trazendo aos
filhos de Priacuteamo vocecirc Helena como sua esposa da Lacedemocircnia Paacuteris o fatalmente
38 Phreacuten como jaacute vimos eacute o muacutesculo diafragma eacutempedos significa firme Robert P Keep traduzindo do alematildeo o dicionaacuterio homeacuterico de Georg Autenrieth denomina essa expressatildeo (phreacutenes eacutempedoi) por ldquounimpairedrdquo que por sua vez significa algo que natildeo tem sua forccedila reduzida
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casadordquo [ὅτ᾽ ἔδραmicroε ῥόθια πεδία βαρβάρῳ πλάτᾳ ὅτ᾽ ἔmicroολεν ἔmicroολε microέλεα Πριαmicroίδαις
ἄγων Λακεδαίmicroονος ἄπο λέχεα σέθεν ὦ Ἑλένα Πάρις αἰνόγαmicroος] (vv 1117-1120)
Aqui Paacuteris eacute denominado ainoacutegamos adjetivo composto da palavra ainoacutes (terriacutevel) e gaacutemos
(casamento) o que ratifica a causa da guerra e relembra a sua aacutetē homeacuterica O mesmo
acontece em As Troianas Menelau culpa Helena (As Troianas vv 1037-1038) mas o coro
vem lembrar de quem eacute a culpa (vv 780-781)
Mesmo em Alexandre Paacuteris aparece como algueacutem que tem uma responsabilidade em
relaccedilatildeo agraves origens da guerra Isso contudo fica impliacutecito Luciacutea Romero Mariscal defende
que a representaccedilatildeo de Paacuteris nesse fragmento eacute feita de modo a identifica-lo com dois grupos
sociais a) a populaccedilatildeo rural de Atenas que durante a Guerra do Peloponeso eacute
responsabilizada por ter levado a peste agrave cidade (MARISCAL 2003 p 169) e b) com os
tyacuterannoi cujas presenccedilas assolavam Atenas e criavam um clima de incerteza no tocante agrave
manutenccedilatildeo da democracia (MARISCAL 2005 p 14)
Alexandre foi interpretada justamente depois dessa grande peste ter assolado a poacutelis e
ter matado inclusive um de seus principais membros Peacutericles Luciacutea Mariscal coloca que
Ao apresentar as origens da guerra de Troia em termos de oposiccedilatildeo entre o espaccedilo poliacutetico da cidade e o espaccedilo apoliacutetico da montanha [o Ida onde Paacuteris foi criado] entre os sujeitos que habitam ditos espaccedilos contrapostos e entre as convenccedilotildees que assim o delimitam Euriacutepides aborda um dos temas que o pensamento poliacutetico tradicional havia jaacute explorado ao longo de sua histoacuteria e que durante a guerra do Peloponeso se converteu em uma experiecircncia traacutegica similar a que se representa em Alexandre sob a faacutebula miacutetica que deu peacute agrave guerra troiana Como assinala Ph Borgeaud ldquoConveacutem recordar com a tradiccedilatildeo grega que eacute uma guerra que haacute na origem da tomada de consciecircncia da oposiccedilatildeo entre o ruacutestico e o cidadatildeordquo [] eacute sobretudo ao princiacutepio da guerra do Peloponeso quando a tensatildeo entre os habitantes da cidade e os do campo se faz mais traumaacutetica ao abrir a cidade de Atenas as suas portas a uma ingente massa de populaccedilatildeo rural e agreste que a duras penas se integra na cidade e a contamina com os terriacuteveis resultados da virulenta propagaccedilatildeo da peste que descreve Tuciacutedides no segundo livro de sua Histoacuteria da Guerra do Peloponeso (MARISCAL 2003 p 168-169 ndash grifos nossos)
Segundo a autora eacute Paacuteris que traz consigo a crise para a cidade pois insiste em
participar dos jogos sabendo que natildeo eacute um nobre (MARISCAL 2003 p 165) O tema de
Alexandre gira em torno do agocircn (disputa) esportivo ganhado por Paacuteris na eacutepoca um pastor
ainda cuja descendecircncia nobre era desconhecida Era inconcebiacutevel que um doucirclos (escravo)
ou laacutetris (servo) ganhasse as provas esportivas nas quais os aristoiacute deveriam sobressair-se
Aliaacutes jaacute era inconcebiacutevel a concessatildeo dessa participaccedilatildeo de grupos menos privilegiados da
sociedade nesse tipo de evento Priacuteamo jaacute cometera um erro aiacute ao deixar que um simples
pastor se juntasse aos aristocratas nos jogos A sua participaccedilatildeo ldquoquebraraacute a ordem da cidade
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e provocaraacute uma cadeia de transgressotildees que teriam lugar em todos os acircmbitos da mesma Sua
pretensatildeo de tomar parte nos funerais equivale a formar parte da cidade a ocupar um lugar
que natildeo lhe pertencerdquo (MARISCAL 2003 p 165)
Desse modo Deiacutefobo irmatildeo de Paacuteris eacute quem vai pedir providecircncias acerca disso
exige que o pastor seja morto pela sua audaacutecia e vendo que o pai natildeo lhe daria suporte pede a
Heacutecuba que o faccedila Na iminecircncia da morte dele o pastor que acolheu o heroacutei chega para
impedir que isso aconteccedila mostrando as roupas que vestiam Paacuteris quando ele foi exposto e
uma cena de anagnoacuterisis (reconhecimento) se desenrola o laacutetris eacute reconhecido como aristoacutes e
reintegrado agrave famiacutelia troiana
Frequentemente em Euriacutepides Paacuteris estaacute relacionado a um ambiente aacutegrios
(selvagem) ele eacute denominado algumas vezes bouacutekolos (pastor) em Helena a personagem
homocircnima fala do passado de Paacuteris quando ele se sentava junto com seu gado (vv 358-359)
em Androcircmaca (v 706) Peleu se refere a Paacuteris natildeo como ldquoPaacuteris de Troiardquo mas como ldquoPaacuteris
do [Monte] Idardquo Marcar sua pertenccedila a um ambiente selvagem eacute revelador no que toca a
construccedilatildeo de sua representaccedilatildeo na trageacutedia gecircnero no qual eacute recorrente sua denominaccedilatildeo
como baacuterbaros O proacuteprio mito que envolve Paacuteris (sua exposiccedilatildeo no Monte Ida seu
acolhimento pela ursa e depois pelo pastor pessoa em contato constante com o aacutegrios)
denota que em Paacuteris coabitam duas instacircncias o nobre ligado ao ambiente do humano e o
camponecircs ligado ao ambiente do selvagem
Esse nobre contudo eacute um tirano Na Atenas Claacutessica esses tiranos eram vigiados de
perto e o recurso do ostracismo visava embarreirar a quebra da democracia os nomes
daqueles que poderiam oferecer riscos ao poder democraacutetico eram marcados em ostraacutekai
(pedaccedilos de ceracircmica) e aquele que obtivesse mais votos poderia ser exilado de Atenas Luciacutea
Mariscal relembra Jean-Pierre Vernant que ao analisar a representaccedilatildeo de Eacutedipo chama
atenccedilatildeo para a ideia de que a crianccedila exposta ao nascer e que retorna agrave sua regiatildeo natal para
reivindicar seus direitos eacute geralmente ligada agrave figura do tyacuterannos (MARISCAL 2005 p 14
n 9)
Luciacutea Mariscal tambeacutem nos lembra que em 417 aC Alcibiacuteades ldquoum homem como
Alexandre extraordinariamente bonito popular e que por essas datas vai ganhando um
discutido poderrdquo (MARISCAL 2005 p 17) vence competiccedilotildees atleacuteticas assim como Paacuteris
Esse mesmo Alcibiacuteades vai liderar os atenienses em uma invasatildeo a Siracusa e causar uma
derrota dura a essa poacutelis Ele tambeacutem passa um tempo em Esparta auxiliando o inimigo para
depois retornar a Atenas Assim ldquoO certo eacute que Alexandre compartilha com Alcibiacuteades o
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traccedilo mais singular [sentildeero] de ambos personagens a beleza Uma beleza extraordinaacuteria que
se entende como um sinal de excelecircncia mas que pode contudo malograr-serdquo (MARISCAL
2005 p 19)
Mesmo no campo de batalha quando luta Paacuteris eacute repreendido No Canto XI da Iliacuteada
como vimos Diomedes o reprime por tecirc-lo atingido
lsquoτοξότα λωβητὴρ κέρᾳ ἀγλαὲ παρθενοπῖπα εἰ microὲν δὴ ἀντίβιον σὺν τεύχεσι πειρηθείης οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃσι βιὸς καὶ ταρφέες ἰοί νῦν δέ micro᾽ ἐπιγράψας ταρσὸν ποδὸς εὔχεαι αὔτως οὐκ ἀλέγω ὡς εἴ microε γυνὴ βάλοι ἢ πάϊς ἄφρων κωφὸν γὰρ βέλος ἀνδρὸς ἀνάλκιδος οὐτιδανοῖο ἦ τ᾽ ἄλλως ὑπ᾽ ἐmicroεῖο καὶ εἴ κ᾽ ὀλίγον περ ἐπαύρῃ ὀξὺ βέλος πέλεται καὶ ἀκήριον αἶψα τίθησι τοῦ δὲ γυναικὸς microέν τ᾽ ἀmicroφίδρυφοί εἰσι παρειαί παῖδες δ᾽ ὀρφανικοί ὃ δέ θ᾽ αἵmicroατι γαῖαν ἐρεύθων πύθεται οἰωνοὶ δὲ περὶ πλέες ἠὲ γυναῖκεςrsquo
Fuacutetil frecheiro de cachos frisados espiatildeo de mulheres se te atrevesses armado a lutar frente a frente comigo nenhum amparo acharias nesse arco e nas setas inuacutemeras Soacute por me haveres riscado no peacute fazes tanto barulho ao que dou tanto valor como a tiro de crianccedila ou de moccedila Vatilde sempre eacute a flecha que um ser despreziacutevel e imbele dispara Bem diferente se daacute com meus tiros que embora de leve o dardo atinja o inimigo sem mais da existecircncia o despoja as roacuteseas faces natildeo cessa na dor de arranhar a consorte oacuterfatildeos os filhos lhe ficam e o solo tingido de sangue a apodrecer tatildeo-soacute abutres atrai natildeo mais belas mulheres (XI vv 385-395)
Isso se daacute porque Paacuteris eacute um arqueiro (que como veremos no capiacutetulo seguinte eacute
desvalorizado) e porque natildeo haacute paridade na luta ele na escala hieraacuterquica do campo de
batalha eacute inferior a Diomedes Aleacutem de ldquoarqueirordquo (toxoacuteta) Paacuteris eacute tambeacutem designado como
um patife malfeitor (lōbētḗr) e um espiatildeo de mulheres (virgens) (parthenopicircpa) Lōbētḗr
designa um ldquocomportamento ultrajante [] ofensivo agraves regras da sociedade heroicardquo (SUTER
1984 p 79) Natildeo eacute um epiacuteteto exclusivo de Paacuteris Tersites por exemplo eacute denominado desse
modo tambeacutem (Iliacuteada II v 275) por Odisseu
Suter argumenta que foi uma denominaccedilatildeo desnecessaacuteria por parte de Diomedes (e aiacute
eacute Diomedes quem eacute chamado de ldquofriacutevolordquo) visto que ambos estatildeo equiparados socialmente
natildeo seria o mesmo caso entre Odisseu e Tersites no qual este seria um membro inferior da
sociedade Socialmente natildeo ambos satildeo da elite um do lado troiano outro do lado aqueu
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contudo no campo de batalha sim eles estariam desequiparados como vimos Paacuteris eacute das
tropas ligeiras Diomedes seria membro das tropas pesadas ele usa os armamentos comuns
aos guerreiros homeacutericos Paacuteris deveria procurar algueacutem do seu estatuto beacutelico para lutar natildeo
com algueacutem que estaacute hierarquicamente acima de sua posiccedilatildeo no campo de batalha
Parthenopicircpa (paacuterthenos ndash virgem mulher que ainda natildeo eacute casada ndash acrescida do
verbo opipeuacuteō ndash ldquoolhar com inquietuderdquo (BAILLY 2000 p 1389) observar curiosamente
segundo Ann Suter eacute um epiacuteteto que demonstra covardice na batalha (1984 p 84) Associado
com a totalidade das outras denominaccedilotildees do verso eacute de fato desmerecedor em uma batalha
o que menos importa eacute desejar mulheres
Keacutera aglaegrave eacute uma denominaccedilatildeo bastante ambiacutegua Literalmente significa ldquocornos
brilhantesrdquo (keacuteras ldquocornosrdquo aglaoacutes brilhante) Pode referir-se tanto ao seu arco pois essa
arma podia ser feita de chifres de animais quanto a um penteado a um modo de arrumar o
cabelo (SUTER 1984 p 82) Carlos Alberto Nunes prefere essa uacuteltima acepccedilatildeo traduzindo
essa expressatildeo como ldquode cachos frisadosrdquo bem como Haroldo de Campos que traduz apenas
como ldquode cachosrdquo (ldquosoacuterdido sagitaacuterio de cachosrdquo) Referindo-se ou agrave beleza ou ao arco a
acepccedilatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave batalha eacute a mesma
Ainda nesse excerto Diomedes compara o disparo de arco e flecha de Paacuteris com o de
uma crianccedila (paacuteiumls) ou mulher (gynḗ) Eacute a segunda vez que Paacuteris eacute infantilizado na Iliacuteada a
primeira que se daacute indiretamente (visto que ele natildeo eacute mencionado mas por ser filho do rei de
Troia a denuacutencia vale para ele tambeacutem) eacute quando Menelau afirma que ldquoos seus filhos [de
Priacuteamo] soberbos natildeo satildeo de confianccedila [ἐπεί οἱ παῖδες ὑπερφίαλοι καὶ ἄπιστοι]rdquo (III v
105) e que o anciatildeo deve presenciar o acordo
Anatoille Bailly ao traduzir hyperphiacutealos em seu dicionaacuterio coloca que ldquoen parl des
Troyensrdquo (falando de troianos) significa ldquoorgulhoso arroganterdquo denotando uma distinccedilatildeo de
vocabulaacuterio ao se referir aos gregos Contudo o classicista John Heath coloca que essa
palavra natildeo denigre todos os troianos mas certos indiviacuteduos como Paacuteris que causou a
guerra defendendo que ldquonatildeo haacute nada no poema que sugere que Homero considera todos os
troianos moralmente lsquocontaminadosrsquo [lsquotaintedrsquo]rdquo (HEATH 2005 p 534) Cremos que haacute a
possibilidade de distinccedilatildeo no uso do vocaacutebulo pois os troianos afinal satildeo os inimigos na
guerra
A terceira vez tambeacutem indiretamente eacute quando Priacuteamo denomina os filhos restantes
de ldquocrianccedilas maacutes que causam afliccedilatildeordquo (kakagrave teacutekna katēphoacutenes) (XXIV v 253) Isso eacute uma
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desvalorizaccedilatildeo deles uma diminuiccedilatildeo de valor dessa pessoa que eacute comparada a uma crianccedila
pois a sociedade homeacuterica eacute patriarcal onde o anḗr eacute quem deteacutem o poder familiar poliacutetico
Aleacutem disso ele eacute comparado a uma mulher Christopher Ransom analisa a efeminaccedilatildeo
de Paacuteris mostrando que ldquoisso eacute uacutetil e informativo para analisar o lsquooutrorsquo o homem que
quebra as regras da masculinidade e cujas transgressotildees e excessos ajudam a definir o ideal de
masculinidade promovendo um contraste contra o qual a identidade do homem lsquorealrsquo pode ser
estabelecidardquo (RANSOM 2011 p 35) Ademais a crianccedila e a mulher satildeo um Outro tambeacutem
o Outro social (RANSOM 2011 p 36) Cremos que Paacuteris natildeo deixa de ser um personagem
paidecircutico natildeo por mostrar como natildeo agir mas justamente por mostrar como agir
Mesmo quando Paacuteris parece engrenar na luta Heitor jaacute desconfiado acaba o
insultando quando o encontra aparentemente parado ldquoPaacuteris funesto de belas feiccedilotildees sedutor
de mulheres onde se encontra Deiacutefobo e Heleno senhor poderoso Onde Aacutesio de Hiacutertaco
o filho Adamante gerado por Aacutesio Que eacute de Otrioneu Do fastiacutegio a altanada cidade dos
Teucros hoje desaba envolvendo-te alfim a preciacutepite Morterdquo [lsquoΔύσπαρι εἶδος ἄριστε
γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ ποῦ τοι Δηΐφοβός τε βίη θ᾽ Ἑλένοιο ἄνακτος Ἀσιάδης τ᾽
Ἀδάmicroας ἠδ᾽ Ἄσιος Ὑρτάκου υἱός ποῦ δέ τοι Ὀθρυονεύς νῦν ὤλετο πᾶσα κατ᾽ ἄκρης
Ἴλιος αἰπεινή νῦν τοι σῶς αἰπὺς ὄλεθροςrsquo] (XIII vv 769-773)
No Canto XXIV (vv 247-262) quando Priacuteamo censura seus filhos indiretamente
Paacuteris eacute insultado tambeacutem O anciatildeo fala que soacute restaram os filhos dignos de censura
(eleacutenkhea) os mentirosos (pseucircstai) os danccedilarinos (orkheacutestai) e os que cantam e danccedilam
(khoroitypiacuteēsin aacuteristoi) ou seja filhos que natildeo estatildeo aptos para entrar na guerra No campo de
batalha valoriza-se a intrepidez no combate e a habilidade guerreira em detrimento da danccedila
e do canto Mas isso natildeo quer dizer que essas praacuteticas natildeo satildeo valorizadas na sociedade grega
estes satildeo valorizados fora de um contexto beacutelico Pelo contraacuterio faz parte da paideiacutea
Entretanto ligar o Outro ao domiacutenio das artes musicais natildeo eacute incomum nas trageacutedias
Edith Hall nos mostra que em As Suplicantes de Eacutesquilo somente os baacuterbaros cantam
(HALL 1989 p 130) Em Euriacutepides natildeo eacute diferente em Ifigecircnia em Aacuteulis Paacuteris eacute mostrado
ldquotocando melodias asiaacuteticas [baacuterbaras] na syacuterinx imitando na sua flauta o auloacutes friacutegio do
Olimpordquo (vv 576-578) Assim nos parece que natildeo eacute todo instrumento musical que serve agrave
paideiacutea
Eacute interessante perceber que syacuterinx e o auloacutes satildeo tipos de flautas instrumentos que
deformam a face quando tocados pois temos que inchar as bochechas Essa deformaccedilatildeo eacute
uma metaacutefora para a proacutepria deformaccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo do personagem No periacuteodo
63
claacutessico Platatildeo Alcibiacuteades e Aristoacuteteles viam no auloacutes um instrumento com ldquoefeitos maleacutefi-
cos agrave formaccedilatildeo do caraacuteter do cidadatildeordquo (CERQUEIRA 2013 p 62) A lira a ciacutetara pelo
contraacuterio satildeo instrumentos bem vistos para a educaccedilatildeo do cidadatildeo por isso que o Paacuteris de
Homero toca-a Ele estaacute desempenhando ainda um exemplo a ser seguido algo que natildeo
acontece na trageacutedia como vimos Paacuteris ou eacute o pastor (ligado ao domiacutenio o aacutegrios do
selvagem) ou o escravo (o Outro social por excelecircncia do kaloacutes kagathoacutes) ou o baacuterbaro No
entanto ser um muacutesico profissional natildeo era bem visto na Atenas Claacutessica
um muacutesico de ofiacutecio portanto era visto como algueacutem inepto agrave vida ciacutevica e relapso na conduccedilatildeo de assuntos particulares Ele compartilhava da covardia feminina Esses foram os argumentos utilizados pelo Zeus de Euriacutepides na trageacutedia Antiacuteope para desqualificar o lirista Anfiatildeo ndash suspeita de feminilidade incompetecircncia militar e deacuteficit de coragem e virilidade (CERQUEIRA 1997 p 126)
A muacutesica fazia parte da paideiacutea mas ser um muacutesico profissional esbarrava num
estereoacutetipo semelhante ao do baacuterbaro implicando em uma alteridade social o muacutesico eacute
covarde eacute efeminado natildeo serve para a guerra Tendo em mente que Paacuteris tem em sua
caracterizaccedilatildeo esse elemento jaacute na Iliacuteada isso denota o quanto ela serviu para moldar uma
fronteira eacutetnica um Outro
Como pudemos perceber duas coisas desencadeiam reprimendas a Paacuteris na Iliacuteada a)
o fato de ele ter fugido da batalha com Menelau e de natildeo a ter terminado (mesmo que por um
desiacutegnio divino) e b) seu jactar-se desencadeado pelo ferimento de Diomedes Natildeo somente
Heitor seu irmatildeo o repreende mas outros heroacuteis Priacuteamo e mesmo Helena a mulher por
quem ele luta Na trageacutedia ele eacute lembrado majoritariamente como aquele que causou a
guerra Por ser o causador da desgraccedila de muitos o seu caraacuteter Outro precisa ser bem
delineado
Essas reprimendas que Paacuteris sofrem contudo natildeo passam em branco para ele ele
sempre as responde Quando Paacuteris foge do embate com Menelau recuando para dentro do
exeacutercito troiano Heitor lhe cobre de reprimendas No entanto elas natildeo ficam sem resposta
Ἕκτορ ἐπεί microε κατ᾽ αἶσαν ἐνείκεσας οὐδ᾽ ὑπὲρ αἶσαν αἰεί τοι κραδίη πέλεκυς ὥς ἐστιν ἀτειρὴς ὅς τ᾽ εἶσιν διὰ δουρὸς ὑπ᾽ ἀνέρος ὅς ῥά τε τέχνῃ νήϊον ἐκτάmicroνῃσιν ὀφέλλει δ᾽ ἀνδρὸς ἐρωήν ὣς σοὶ ἐνὶ στήθεσσιν ἀτάρβητος νόος ἐστί microή microοι δῶρ᾽ ἐρατὰ πρόφερε χρυσέης Ἀφροδίτης οὔ τοι ἀπόβλητ᾽ ἐστὶ θεῶν ἐρικυδέα δῶρα ὅσσά κεν αὐτοὶ δῶσιν ἑκὼν δ᾽ οὐκ ἄν τις ἕλοιτο
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Eacute justo Heitor o que dizes contraacuterio agrave razatildeo natildeo discorres Teu coraccedilatildeo eacute tatildeo duro quanto o accedilo semelha ao machado que manejado pelo homem lhe aumenta o poder e no tronco mui facilmente penetra talhando-o para o uso das naves Resoluccedilatildeo tatildeo intreacutepida encerras assim no imo peito Natildeo me censures por causa dos mimos da loura Afrodite pois despreziacuteveis natildeo satildeo os presentes valiosos que os deuses de seu bom grado concedem que agrave forccedila ningueacutem os alcanccedila (III vv 59-66)
Paacuteris divide a responsabilidade pela guerra natildeo fora somente ele quem a causou mas
Afrodite tambeacutem ao lhe prometer a mulher mais bela do mundo em troca do pomo dourado
Essa afirmaccedilatildeo entretanto natildeo parece diminuir a parte que cabe ao heroacutei Heitor mais a
frente se refere a ele como sendo o ldquofautor desta guerra [τοῦ εἴνεκα νεῖκος ὄρωρεν]rdquo
foacutermula que se repetiraacute vaacuterias vezes para Paacuteris ao longo da Iliacuteada
Esses versos tambeacutem mostram uma outra qualidade de Paacuteris a habilidade com as
palavras A importacircncia dessa habilidade retorna em Alexandre de Euriacutepides quando Paacuteris
deixa claro que ldquoFrequentemente um homem em desvantagem pela ineloquecircncia perde para
um eloquente mesmo que seu caso seja justordquo [ἀγλωσσίᾳ δὲ πολλάκις ληφθεὶς ἀνήρ
δίκαια λέξας ἧσσον εὐγλώσσου φέρει] (fr 56) O agloacutessos (literalmente ldquosem liacutenguardquo) natildeo
tem chance contra o eugloacutessos (literalmente ldquode boa liacutenguardquo) e Paacuteris tanto na Iliacuteada quanto
em Alexandre (textos em que ele eacute personagem) demonstra ser oacutetimo com as palavras
Sempre que ele eacute censurado por Heitor ou por Helena faz um discurso que acaba
acalmando o seu interlocutor ora atribuindo a responsabilidade da guerra natildeo apenas a ele
ora se propondo a entrar na batalha ora defendendo-se quando acusado de desserviccedilo por
Heitor num momento em que ele estaacute de fato lutando nas batalhas Essa eacute uma habilidade
que natildeo tem tanto valor na guerra quanto a forccedila fiacutesica e a estrateacutegia militar a Iliacuteada por ser
um poema beacutelico tem mais cenas de batalhas longas do que de diaacutelogos longos Contudo ter
uma boa retoacuterica clareza na fala enfim ser um haacutebil orador eacute uma virtude do anḗr
Os troianos satildeo oacutetimos falantes Hillary Mackie explora bastante essa ideia em seu
livro Talking Trojan speech and community in the Iliad Ela defende que o falar troiano
denota uma praise culture (cultura de elogio) enquanto o aqueu uma blame culture (cultura
de culpabilizaccedilatildeo) Ela mostra como os troianos muitas vezes conseguem dissuadir seus
inimigos da luta como acontece com Glauco e Diomedes (Iliacuteada VI vv 120-238) aquele
conta a este sua genealogia lembrando-o de que seus pais foram xeacutenoi hoacutespedes um do outro
Eles entatildeo decidem natildeo lutar e trocar presentes transportando a xeacutenia para o campo de
batalha
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A autora tambeacutem sustenta que os troianos evitam embates em que tenham que desferir
insultos a outros guerreiros Quando haacute a interpelaccedilatildeo eles utilizam epiacutetetos de elogio natildeo de
reprimenda (MACKIE 1996 p 83) Heitor natildeo daacute treacuteplicas (como acontece nessa repreensatildeo
seguinda da defesa do Paacuteris ndash ele natildeo replica) e seu discurso eacute introspectivo e reflexivo
bastante poeacutetico e construiacutedo esteticamente para ser assim pelo poeta (MACKIE 1996 p
115) Aleacutem disso os troianos satildeo os uacutenicos heroacuteis que suplicam pela vida em batalha
Destarte podemos perceber que Paacuteris eacute um tiacutepico troiano nesse aspecto ele eacute haacutebil com as
palavras E se as palavras satildeo como flechas (MACKIE 1996 p 56) esse elemento combina
ainda com o fato de ele ser um arqueiro (sendo que como vimos a maioria do contingente de
arquearia da Guerra de Troia eacute oriunda dos troianos)
Ainda ligado agrave questatildeo do discurso de Paacuteris no Canto III (v 60) haacute um siacutemile
interessante e incomum na epopeia a comparaccedilatildeo de um humano (Heitor) com um objeto
(machado ndash peacutelekys) Seth Benardete afirma que
O siacutemile que Paacuteris usa eacute uacutenico em muitas coisas Em nenhum outro lugar um heroacutei eacute comparado a algo feito pelo homem nem a palavra technecirc eacute recorrente na Iliacuteada (bastante comum contudo se estivesse na Odisseia) nem erocircecirc eacute usada comumente para um homem mas para o arremesso de uma lanccedila Heitor natildeo eacute o madeireiro mas o machado ou ainda madeireiro e machado seu coraccedilatildeo multiplica sua forccedila ele eacute autossuficiente Ele carrega dentro de si os meios para um grande poder Ele eacute todo arma (BENARDETE 2005 p 51)
Isso torna seu discurso diferenciado Homero e seus personagens utilizam siacutemiles que
comparam o homem aos animais que satildeo seres animados Paacuteris compara um humano a um
ser inanimado Essa eacute mais uma particularidade desse personagem que esse excerto eacute
mostrado pela primeira vez falando dialogando na epopeia
Essa natildeo eacute a uacutenica vez que Paacuteris responderaacute Heitor no Canto VI Paacuteris responde agraves
acusaccedilotildees do heroacutei e lhe acalma afirmando que Heacutecuba natildeo trouxe ao mundo um anaacutelkydos
(sem-gloacuteria) (vv 332-341) Tambeacutem quando Heitor lhe acusa injustamente de estar parado na
guerra Paacuteris responde (XIII vv 774-788) Do mesmo modo natildeo seraacute soacute seu irmatildeo que
ouviraacute resposta de Paacuteris Helena tambeacutem ouve (III vv 438-446) Assim como se sucedeu
com Heitor Paacuteris acalma o seu interlocutor atraveacutes das palavras do myacutethos ndash amenizando a
situaccedilatildeo ndash e atribui o acontecido a um deus ele natildeo eacute o responsaacutevel sozinho pelo
malsucedido Afrodite eacute quem lhe daacute Helena de presente natildeo podendo ele negar Athenaacute
ajudou Menelau por isso que ele venceu natildeo foi por causa de sua inabilidade guerreira
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Soacute haacute uma pessoa que Paacuteris natildeo responde depois que eacute interpelado de modo agressivo
Diomedes Sendo assim nosso heroacutei soacute retruca troianos e a ldquoHelenardquo que estaacute em Troia Esses
jogos interessantes de palavras e comparaccedilotildees satildeo comuns em Homero Por isso que eacute
interessante nos debruccedilarmos sobre esses siacutemiles de animais que envolvem Paacuteris Eles satildeo
muito frequentes na Iliacuteada Annie Schnapp-Gourbeillon ressalta que eles tecircm uma funccedilatildeo
especiacutefica no eacutepico
Explicar [rendre compte] valorar dar a medida aqui estaacute umas funccedilotildees fundamentais Na aproximaccedilatildeo analoacutegica o animal daacute a ver as virtudes dos heroacuteis aos quais ele se refere ele sugere ele enfatiza [met un valeur] ele retorna uma imagem amplificada e seletiva como um espelho sutilmente deformado [] ele eacute signo mensagem pressaacutegio [] Portador do sofrimento humano [] ator de uma reversatildeo indiziacutevel [] elemento fundamental de uma definiccedilatildeo social do indiviacuteduo [] (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 11)
Os siacutemiles de caccedila satildeo bastante elucidativos na hora de representar o lado mais fraco e
o mais forte Segundo Michael Clarke ldquoo contraste entre predador e caccedila eacute um padratildeo nas
falas [dos heroacuteis que comparam homens a animais] onde um guerreiro compara aqueles com
quem ele luta ou aqueles que ele vecirc a bravos ou covardes animaisrdquo (CLARKE 1995 p 9) O
narrador da Iliacuteada tambeacutem utiliza bastante esses siacutemiles tendo como o leatildeo o animal caccedilador
por excelecircncia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 39-40) encarnaccedilatildeo dos valores
heroicos em sua simbologia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 50) Quando Menelau
resolve enfrentar Paacuteris no iniacutecio do Canto III o leatildeo eacute o siacutemile que corresponde a Menelau
τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν ἀρηΐφιλος Μενέλαος ἐρχόmicroενον προπάροιθεν ὁmicroίλου microακρὰ βιβάντα ὥς τε λέων ἐχάρη microεγάλῳ ἐπὶ σώmicroατι κύρσας εὑρὼν ἢ ἔλαφον κεραὸν ἢ ἄγριον αἶγα πεινάων microάλα γάρ τε κατεσθίει εἴ περ ἂν αὐτὸν σεύωνται ταχέες τε κύνες θαλεροί τ᾽ αἰζηοί ὣς ἐχάρη Μενέλαος Ἀλέξανδρον θεοειδέα ὀφθαλmicroοῖσιν ἰδών φάτο γὰρ τίσεσθαι ἀλείτην αὐτίκα δ᾽ ἐξ ὀχέων σὺν τεύχεσιν ἆλτο χαmicroᾶζε τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν Ἀλέξανδρος θεοειδὴς ἐν προmicroάχοισι φανέντα κατεπλήγη φίλον ἦτορ ἂψ δ᾽ ἑτάρων εἰς ἔθνος ἐχάζετο κῆρ᾽ ἀλεείνων ὡς δ᾽ ὅτε τίς τε δράκοντα ἰδὼν παλίνορσος ἀπέστη οὔρεος ἐν βήσσῃς ὑπό τε τρόmicroος ἔλλαβε γυῖα ἂψ δ᾽ ἀνεχώρησεν ὦχρός τέ microιν εἷλε παρειάς ὣς αὖτις καθ᾽ ὅmicroιλον ἔδυ Τρώων ἀγερώχων δείσας Ἀτρέος υἱὸν Ἀλέξανδρος θεοειδής Logo que o viu Menelau o guerreiro disciacutepulo de Ares como avanccedilava com passo arrogante na frente do exeacutercito muito exultante ficou como leatildeo esfaimado que encontra um cervo morto de pontas em galho ou uma cabra selvagem
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avidamente o devora ainda mesmo que catildees mui ligeiros lhe venham vindo no encalccedilo e pastores de aspecto robusto dessa maneira exultou Menelau quando Paacuteris o belo teve ante os olhos pensando que iria por fim castigaacute-lo Rapidamente do carro pulou sem que as armas soltasse Quando o formoso Alexandre que um deus imortal parecia o viu agrave frente dos outros sentiu conturbar-se-lhe o peito e para o meio dos seus recuou escapando da Morte Como se daacute quando algueacutem nos convales dos montes estaca em frente de uma serpente a tremerem-lhe as pernas e os joelhos e retrocede de um salto com o rosto sem cor todo medo por esse modo afundou para o meio dos Teucros valentes Paacuteris o divo Alexandre do filho de Atreu temeroso (III vv 21-37)
Chama-nos atenccedilatildeo os siacutemiles utilizados Primeiramente um que remete agrave caccedila (leatildeo
versus cervo ou cabra) depois um que mostra o enfrentamento homem versus animal
(homem versus serpente humano versus selvagem) Paacuteris eacute assemelhado agrave cabra e ao veado
Ambos satildeo animais que possuem relaccedilatildeo com o deus Dioniso (SUTER 1984 p 111) Aleacutem
disso satildeo a caccedila do leatildeo Este sobrepuja em forccedila o veado e a cabra bem como estaacute no topo
da cadeia alimentar desse ambiente selvagem O siacutemile no Canto XIII (vv489-495) tambeacutem eacute
revelador o exeacutercito troiano eacute composto de carneiros animal que serve de caccedila
Outro siacutemile relacionado ao nosso heroacutei nessa passagem eacute o do pastor que teme a
serpente Este eacute peculiarmente interessante a serpente eacute o siacutembolo de Zeus que sob o epiacuteteto
Xeacutenios garante o cumprimento das regras da hospitalidade (xeacutenia) Levando em consideraccedilatildeo
que Paacuteris desrespeitou a xeacutenia ao retirar Helena de Menelau durante sua estadia em Esparta
haacute bastante razatildeo para ele temer a ldquoserpenterdquo a ira de Zeus recai sobre Paacuteris mesmo que no
momento Zeus esteja do lado dos troianos A transgressatildeo do nosso heroacutei se sobressai
Quando Paacuteris entra em batalha ele estaacute vestindo uma pele de leopardo comum nas
representaccedilotildees dos arqueiros citas na imageacutetica (LISSARAGUE 2002 p 104 e 105)
Segundo Aristoacuteteles esse animal eacute comum na Aacutesia Menor (lugar onde fica Troia) sendo um
animal muito selvagem (ARISTOacuteTELES Histoacuteria dos Animais VIII 27 9) O leopardo eacute
um animal associado a Dioniso e estaacute presente frequentemente em suas representaccedilotildees
(COHEN 2012 p 462) A associaccedilatildeo de Paacuteris com esse deus eacute trabalhada por Ann Suter em
sua tese visto que ela mostra como a poesia iacircmbica39 (uma blame poetry ldquopoesia
acusatoacuteriardquo) estaacute ligada agrave construccedilatildeo da representaccedilatildeo de Paacuteris por Homero A Iliacuteada natildeo eacute o
iniacutecio de um processo discursivo mas parte dele outros gecircneros poeacuteticos que tramitavam pela
sociedade influenciaram na composiccedilatildeo da eacutepica homeacuterica Ann Suter ressalta que nos versos
39 A partiacutecula ldquo-amb-rdquo (-αmicroβ-) estaacute ligada aos cultos dionisiacuteacos e ldquodesigna canccedilotildees e danccedilas em sua honrardquo (SUTER 1984 p 105) como o dithyacuterambos o thriacuteambos e o iacutethymbos
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em que Priacuteamo insulta seus filhos ldquoo vocabulaacuterio necessaacuterio para elogio e acusaccedilatildeo eacute usado
aqui νεικέω [injuriar] e αἰνέω [elogiar]rdquo (SUTER 1984 p 96) Esses verbos aparecem no
aoristo (neiacutekesse ḗnēsrsquo) Paacuteris causa neiacutekos pelo seu ainoacutes a Afrodite Desse modo tanto a
ideia de que os troianos fazem parte de uma cultura de elogio (praise culture) quanto a de
que Paacuteris eacute um personagem acusaacutevel (blame figure) podem ser corroboradas a partir dessa
utilizaccedilatildeo de ambos vocabulaacuterios pelo poeta
Outro siacutemile nos chama atenccedilatildeo quando Paacuteris volta ao campo de batalha
οὐδὲ Πάρις δήθυνεν ἐν ὑψηλοῖσι δόmicroοισιν ἀλλ᾽ ὅ γ᾽ ἐπεὶ κατέδυ κλυτὰ τεύχεα ποικίλα χαλκῷ σεύατ᾽ ἔπειτ᾽ ἀνὰ ἄστυ ποσὶ κραιπνοῖσι πεποιθώς ὡς δ᾽ ὅτε τις στατὸς ἵππος ἀκοστήσας ἐπὶ φάτνῃ δεσmicroὸν ἀπορρήξας θείῃ πεδίοιο κροαίνων εἰωθὼς λούεσθαι ἐϋρρεῖος ποταmicroοῖο κυδιόων ὑψοῦ δὲ κάρη ἔχει ἀmicroφὶ δὲ χαῖται ὤmicroοις ἀΐσσονται ὃ δ᾽ ἀγλαΐηφι πεποιθὼς ῥίmicroφά ἑ γοῦνα φέρει microετά τ ἤθεα καὶ νοmicroὸν ἵππων ὣς υἱὸς Πριάmicroοιο Πάρις κατὰ Περγάmicroου ἄκρης40 τεύχεσι παmicroφαίνων ὥς τ᾽ ἠλέκτωρ ἐβεβήκει καγχαλόων ταχέες δὲ πόδες φέρον αἶψα δ᾽ ἔπειτα Ἕκτορα δῖον ἔτετmicroεν ἀδελφεὸν εὖτ᾽ ἄρ᾽ ἔmicroελλε στρέψεσθ᾽ ἐκ χώρης ὅθι ᾗ ὀάριζε γυναικί
Paacuteris tambeacutem natildeo ficou muito tempo na estacircncia elevada mas tendo as armas de bronze vestido de fino trabalho corta apressado a cidade nos raacutepidos peacutes confiado Como galopa um cavalo habituado no estaacutebulo quando pode do laccedilo escapar e fogoso a planiacutecie atravessa para ir banhar-se impaciente na bela corrente do rio cheio de orgulho soleva a cabeccedila por sobre as espaacuteduas bate-lhe a crina agitada consciente da proacutepria beleza levam-no os peacutes para o prado onde os outros cavalos se reuacutenem Paacuteris o filho de Priacuteamo assim desde do alto da Acroacutepole da sacra Peacutergamo envolto em couraccedila que a vista ofuscava Vem exultante seus raacutepidos peacutes o conduzem em pouco tempo aonde Heitor se encontrava o divino guerreiro que tinha precisamente deixado o local em que agrave esposa falara (VI vv 503-517)
Paacuteris eacute mostrado como um cavalo dentre cavalos assim ele se encaminha para a
batalha O cavalo eacute um siacutembolo de destaque social (eacute um animal muito caro difiacutecil de se
manter demanda bastante recursos) e de auxiacutelio (ele desloca o guerreiro na guerra bem como
serve agrave competiccedilatildeo esportiva ndash SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 169) Aleacutem disso eacute
um animal que representa o troiano como eacute frequentemente perceptiacutevel em Homero
Euriacutepides tambeacutem destaca essa caracteriacutestica deles denominando-os phiacutelippoi (literalmente
40 O termo ldquoacroacutepolerdquo (akroacutepolis) natildeo aparece no original trata-se do alto mesmo de Troia Contudo a raiz dos dois termos eacute a mesma
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ldquoamigos dos cavalosrdquo Alexandre fr 62f) Esse siacutemile aparece justamente quando Paacuteris
retorna para o campo de batalha ele estaacute disposto a auxiliar seus iacutesoi O cavalo tambeacutem eacute um
animal que oscila entre o mundo dos homens e dos deuses (SCHNAPP-GOURBEILLON
1981 p 162) corroborando o caraacuteter theoeidḗs de Paacuteris e a ideia defendida por Ann Suter de
que Paacuteris eacute um nome que tem relaccedilatildeo com o divino Homero o usa nesses versos ao se referir
a ele antes de comparaacute-lo a um cavalo
Alguns personagens (como Astyacuteanax que tambeacutem eacute chamado de Skamaacutendrios) teriam
nomes duplos um para ser usado costumeiramente e outro em casos especiais dentro de
grupos especiais este uacuteltimo relacionando-se agrave esfera do divino Ann Suter utiliza-se do
pensamento de R Lazzaroni que mostra que existe na epopeia uma ldquolinguagem dos deusesrdquo
e uma ldquolinguagem dos homensrdquo (SUTER 1984 p 28) O nome Paacuteris que eacute menos comum
na Iliacuteada do que Aleacutexandros eacute utilizado apenas pela famiacutelia e ldquoem contextos em que o poeta
deseja enfatizar sua divindade nesse caso como uma fonte de inspiraccedilatildeo para um guerreiro
em combaterdquo (SUTER 1984 p 31) Paacuteris tambeacutem teria conexatildeo com a ilha de Paros um dos
lugares de culto a Dioniso
Quando Heitor jaacute estaacute morrendo diz a Aquiles que ldquoO coraccedilatildeo tens de ferro
impossiacutevel me fora dobraacute-lo Que isso poreacutem contra ti natildeo provoque a vinganccedila dos deuses
quando tiveres de a vida perder muito embora esforccedilado das Portas Ceacuteias em frente aos
ataques de Paacuteris e Apolordquo [ἦ γὰρ σοί γε σιδήρεος ἐν φρεσὶ θυmicroός φράζεο νῦν microή τοί τι
θεῶν microήνιmicroα41 γένωmicroαι ἤmicroατι τῷ ὅτε κέν σε Πάρις καὶ Φοῖβος Ἀπόλλων ἐσθλὸν
ἐόντ᾽ ὀλέσωσιν ἐνὶ Σκαιῇσι πύλῃσιν] (XXII vv 357-360) Aqui novamente Paacuteris eacute usado
num sentido divino pois remete agrave sua ligaccedilatildeo com o deus Apolo arqueiro como ele e que
lhe auxilia a atingir sua gloacuteria maacutexima ao matar o melhor dos aqueus Aquiles
Em Alexandre (fr 42d) Euriacutepides coloca que ldquoQuando ele (Paacuteris) se tornou um
homem jovem e excedeu muitos em beleza e forccedila a ele foi dado um segundo nome
Alexandre porque ele espantou bandidos e protegeu o rebanhordquo [γενόmicroενος δὲ νεανίσκος
καὶ πολλῶν διαφέρων κάλλει τε καὶ ῥώmicroῃ αὖθις Ἀλέχανδρος προσωνοmicroάσθη λῃστὰς
ἀmicroυνόmicroενος καὶ τοῖς ποιmicroνίοις ἀλεξήσας] Assim aqui ldquoAleacutexandrosrdquo eacute um distintivo um
41 Mecircnin (de mecircnis) eacute a primeira palavra da Iliacuteada significa ldquoirardquo O ultraje feito agrave timḗ de Aquiles por Agamemnon (a partir do momento que este lhe toma um geacuteras privileacutegio que lhe foi destinado Briseida) gera nele uma mecircnis a qual causa pecircma a todos ao longo da guerra A Iliacuteada eacute a histoacuteria da ira de Aquiles e suas consequecircncias como pontuou Jaqueline de Romilly (ROMILLY sd p 18) A palavra mecircnis ao longo do poema eacute utilizada para designar o que tem a ver com essa ira de Aquiles segundo Gregory Nagy (NAGY 1999 p 73 e 74) e isso nesta passagem se verifica
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segundo nome dado a uma pessoa que se destaca das outras Em As Troianas Helena usa
Paacuteris e Alexandre sem distinccedilatildeo
πρῶτον microὲν ἀρχὰς ἔτεκεν ἥδε τῶν κακῶν Πάριν τεκοῦσα δεύτερον δ᾽ ἀπώλεσε Τροίαν τε κἄmicro᾽ ὁ πρέσβυς οὐ κτανὼν βρέφος δαλοῦ πικρὸν microίmicroηmicro᾽ Ἀλέξανδρόν ποτε ἐνθένδε τἀπίλοιπ᾽ ἄκουσον ὡς ἔχει ἔκρινε τρισσὸν ζεῦγος ὅδε τριῶν θεῶν καὶ Παλλάδος microὲν ἦν Ἀλεξάνδρῳ δόσις Φρυξὶ στρατηγοῦνθ᾽ Ἑλλάδ᾽ ἐξανιστάναι Ἥρα δ᾽ ὑπέσχετ᾽ Ἀσιάδ᾽ Εὐρώπης θ᾽ ὅρους τυραννίδ᾽ ἕξειν εἴ σφε κρίνειεν Πάρις Κύπρις δὲ τοὐmicroὸν εἶδος ἐκπαγλουmicroένη δώσειν ὑπέσχετ᾽ εἰ θεὰς ὑπερδράmicroοι κάλλει [] ἦλθ᾽ οὐχὶ microικρὰν θεὸν ἔχων αὑτοῦ microέτα ὁ τῆσδ᾽ ἀλάστωρ εἴτ᾽ Ἀλέξανδρον θέλεις ὀνόmicroατι προσφωνεῖν νιν εἴτε καὶ Πάριν ὅν ὦ κάκιστε σοῖσιν ἐν δόmicroοις λιπὼν Σπάρτης ἀπῆρας νηὶ Κρησίαν χθόνα Primeiro essa aiacute gerou as origens dos males Paacuteris tendo gerado depois o velho destruiu Troacuteia e a mim ao natildeo matar o bebecirc acre imitaccedilatildeo de um ticcedilatildeo ndash Alexandre entatildeo A partir daiacute o restante escuta como eacute Aquele julgou um triplo jugo de trecircs deusas bem o dom de Palas para Alexandre era despovoar a Heacutelade comandando friacutegios Hera jurou que sobre a Aacutesia e os limites da Europa Paacuteris se a escolhesse teria a soberania Ciacutepris com minha aparecircncia se estonteando prometeu daacute-la se ultrapassasse as deusas em beleza [] [Paacuteris] Veio trazendo uma deusa natildeo miuacuteda consigo O nume vingador42 dessa aiacute se queres Chamar-lhe de Alexandre ou se de Paacuteris Deixando-o em tua casa oacute maldito43 De navio partiste de Esparta rumo a Creta (As Troianas vv 919-931 940-943 ndash grifos nossos)
O helenista Michael Lloyd chama a atenccedilatildeo para esse uso indistinto de Paacuteris e
Alexandre em Euriacutepides (LLOYD 1989 p 77) mas ele tambeacutem crecirc que esse uso eacute indistinto
em Homero o que discordamos mostramos com a anaacutelise de Ann Suter que eacute possiacutevel que
Paacuteris seja um nome divino e Alexandre um nome comum Cremos que essa indiferenccedila se daacute
em Euriacutepides porque nosso heroacutei em suas obras natildeo representa tanto um exemplo a ser
seguido mas porque ele eacute um baacuterbaros Paacuteris perde o caraacuteter helecircnico e helenizante que ele 42 Alaacutestōr eacute um gecircnio mau (ldquomauvais geacutenierdquo BAILLY 2000 p 73) o que reforccedila a ideia de Paacuteris como um causador de males 43 Kaacutekiste (vocativo de kaacutekistos) seria ldquoo pior de todosrdquo Aqui a palavra kakoacutes (que indica tanto o feio quanto o mau) aparece com o sufixo ndashistos que indica superlativo
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apresenta na Iliacuteada sendo aqui a suacutemula da alteridade completa ele tanto eacute o estrangeiro
como aquela pessoa indesejada na cidade
Quando comeccedilamos nossa pesquisa de graduaccedilatildeo natildeo tiacutenhamos conhecimento de
nenhum autor que tratasse de Paacuteris especificamente Conforme fomos pesquisando referecircncias
bibliograacuteficas descobrimos uma pequena discussatildeo filoloacutegica sobre essa dupla denominaccedilatildeo
de Paacuteris a qual eacute interessante recuperarmos Aliaacutes sobre Paacuteris especificamente apenas a
filologia debruccedilou-se
John A Scott (1913) crecirc que Aleacutexandros eacute uma traduccedilatildeo para o grego de Paacuteris De
etimologia imprecisa este seria um nome estrangeiro jaacute aquele formado pela composiccedilatildeo do
verbo aleacutexō (proteger defender) e do substantivo androacutes (homem varatildeo) seria grego porque
ambas as palavras que o formam satildeo gregas Aleacutem disso esse autor crecirc que Paacuteris eacute o grande
heroacutei da tradiccedilatildeo miacutetica em detrimento de Heitor seu irmatildeo Ele defende que Homero criou
Heitor para encarnar todos os valores heroicos que pertenciam a Paacuteris personagem o qual por
motivos morais natildeo poderia ser representado de maneira tatildeo heroica O nome Heacutektōr jaacute
existia nas tabuinhas de Linear B (e-ko-to) escrita da eacutepoca dos palaacutecios (XVII-XI aC)
(CHADWICK 1970 p 98) mas natildeo sabemos se Homero o pega emprestado para nomear
seu personagem ou se Heitor mesmo jaacute era um parte da tradiccedilatildeo miacutetica sendo recuperado por
Homero
Samuel E Bassett (1920) natildeo concorda nem discorda de John Scott mas mostra que haacute
pesquisas as quais apontam que Aleacutexandros poderia ser derivado do nome Alaksandu um
priacutencipe de Wilǔsa regiatildeo que seria a proacutepria Troia incluindo assim os avanccedilos da
Arqueologia Hititologistas defendem que Troia natildeo eacute nada mais que a regiatildeo denominada
Trūiša44
Na contracorrente dessa hipoacutetese de Scott veio Ann Suter (1984) com sua tese de
doutorado ParisAlexandros a study in Homeric technique of characterization com a
qual noacutes concordamos em muitos pontos Ela afirma que Paacuteris eacute mais utilizado num contexto
iacutentimo (pela famiacutelia ou seja troianos) sim mas que Aleacutexandros tambeacutem eacute usado pela sua
famiacutelia sendo o nome mais recorrente para denomina-lo Ela atribui esse fato agrave ideia de que
Paacuteris seria um nome divino utilizando a ideia de R Lazzaroni sobre a linguagem dos homens
6 A partiacutecula -iša eacute um sufixo dividindo a palavra (Trū-iša) temos como raiz o elemento trū- Em grego Troia eacute Troiacuteē (Τροίη) e provavelmete deriva de um vocaacutebulo mais antigo Trṓē (Τρώη) Trṓ-ē Como os hititas natildeo conheciam o som de ldquoōrdquo (ω) o -ū- poderia fazer esse papel (KLOEKHORST 2013 p 46) Assim a Troiacutee de Homero era a Trūiša hitita assim como o Aleacutexandros de Homero era o Alaksandu hitita Para mais informaccedilotildees ver sessatildeo V ndash Hipoacuteteses
72
e a linguagem dos deuses em Homero Assim como inuacutemeros outros personagens da tradiccedilatildeo
miacutetica e das obras homeacutericas o segundo nome (mais incomum) do nosso heroacutei seria aquele
que o eleva agrave condiccedilatildeo de um ser divinizado visto que estaacute em constante relaccedilatildeo com
Afrodite e com Helena (que na tradiccedilatildeo miacutetica transforma-se em uma divindade apoacutes a
morte)
A autora tambeacutem defende que Paacuteris natildeo eacute um nome desprovido de etimologia (o que
caracterizaria sua origem estrangeira) poderia ser derivado de Paros uma ilha grega que tem
estreita relaccedilatildeo com o culto a Dioniso e com os festivais que lhe homenageiam atraveacutes da
reacutecita de versos iacircmbicos A poesia derivada do iacircmbico eacute de caraacuteter ldquoculpabilizanterdquo (blame
poetry) na qual se culpa algueacutem por algo disforizando essa pessoa Arquiacuteloco expoente
desse tipo de poesia era ele mesmo conhecido como Arquiacuteloco de Paros
Aleacutem disso ao observar que Paacuteris tem menos epiacutetetos que Aleacutexandros e que o
desenvolvimento formulaico daquela denominaccedilatildeo eacute precaacuterio em detrimento desta (o que natildeo
deveria acontecer pois Paacuteris eacute um nome que melhor se encaixa no hexacircmetro dactiacutelico) ela
chega agrave conclusatildeo de que aquela denominaccedilatildeo eacute mais recente do que Aleacutexandros sendo
impossiacutevel esta denominaccedilatildeo ser uma traduccedilatildeo daquela
Irene J F de Jong (1987) vai de encontro agrave tese de Scott argumentando que Paacuteris eacute um
nome utilizado no contexto troiano e Aleacutexandros em um contexto grego para ressaltar o
caraacuteter ldquoestrangeirordquo (DE JONG 1987 p 127) do personagem Segundo de Jong ldquoO poeta da
Iliacuteada ao manter o nome lsquotroianorsquo lsquoPaacuterisrsquo pode ter intencionado introduzir um elemento
lsquorealistarsquo na representaccedilatildeo dos troianos como falantes de uma liacutengua estrangeirardquo (DE JONG
1987 p 127) Assim ela concorda com John Scott pois Aleacutexandros continua sendo uma
traduccedilatildeo de Paacuteris Contudo ela confessa em uma nota de rodapeacute natildeo ter lido a tese de Ann
Suter embora a conheccedila (1987 p 127 n 4)
Discordando de todos os autores acima elencados Michael Lloyd (1989) argumenta que
natildeo haacute uma utilizaccedilatildeo consciente de Homero de Paacuteris e Aleacutexandros afirmando que natildeo haacute
distinccedilatildeo no emprego desses dois nomes em Homero e estendendo a anaacutelise a Euriacutepides Na
trageacutedia Paacuteris eacute utilizado mais vezes ainda do que Alexandre e Helena mesmo em As
Troianas utiliza os dois nomes para se referir a ele (LLOYD 1989 p 78) Ele conclui
assim que ldquoA nacionalidade do falante natildeo tem nada que ver com qual nome eacute usadordquo
(LLOYD 1989 p 77)
Essa discussatildeo eacute importante porque conforme o que os autores defendem pode-se
estabelecer uma relaccedilatildeo entre a denominaccedilatildeo dupla e o caraacuteter diferenciado de Paacuteris na Iliacuteada
73
como representante de uma alteridade Entretanto acreditamos que essa dupla denominaccedilatildeo
tem a ver mais com um problema intratextual do que com um problema de definiccedilatildeo eacutetnica
pois concordamos com a anaacutelise de Ann Suter A definiccedilatildeo do caraacuteter diacutespar de Paacuteris como
um representante da alteridade e como um personagem-siacutentese das fronteiras eacutetnicas que
separas aqueus e troianos estaacute mais ligada ao discurso do poeta imbricado de uma ideologia
acerca dele e de seu grupo eacutetnico do que a escolha de um nome Esta estaacute mais ligada agrave
percepccedilatildeo de Paacuteris como um representante da aristocracia heroica
No seacuteculo V aC natildeo haacute duacutevidas de que os troianos pertencem a uma cultura Outra
de que eles satildeo baacuterbaroi Contudo natildeo podemos afirmar o mesmo para Homero Como
vimos muitos autores colocam os troianos como o Outro estrangeiro jaacute nas epopeias Eles
satildeo um Outro mas ainda natildeo deixam de partilhar um coacutedigo de conduta mesmo que com
suas reapropriaccedilotildees grego Satildeo essas reaprorpiaccedilotildees que configuram os troianos num grupo
eacutetnico distinto dos aqueus A ideia de que os troianos satildeo estrangeiros surge a posteriori
quando satildeo ldquofrigianizadosrdquo (HALL 1989 p 39) Um exemplo claro dessa ldquofrigianizaccedilatildeordquo
estaacute no diaacutelogo entre Orestes e o friacutegio em Orestes (vv 1506-1519 ndash grifos nossos)
ΟΡΕΣΤΗΣ ποῦ στιν οὗτος ὃς πέφευγεν ἐκ δόmicroων τοὐmicroὸν ξίφος ΦΡΥΞ προσκυνῶ σ᾽ ἄναξ νόmicroοισι βαρβάροισι προσπίτνων ΟΡΕΣΤΗΣ οὐκ ἐν Ἰλίῳ τάδ᾽ ἐστίν ἀλλ᾽ ἐν Ἀργείᾳ χθονί ΦΡΥΞ πανταχοῦ ζῆν ἡδὺ microᾶλλον ἢ θανεῖν τοῖς σώφροσιν ΟΡΕΣΤΗΣ οὔτι που κραυγὴν ἔθηκας Μενέλεῳ βοηδροmicroεῖν ΦΡΥΞ σοὶ microὲν οὖν ἔγωγ᾽ ἀmicroύνειν ἀξιώτερος γὰρ εἶ ΟΡΕΣΤΗΣ ἐνδίκως ἡ Τυνδάρειος ἆρα παῖς διώλετο ΦΡΥΞ ἐνδικώτατ᾽ εἴ γε λαιmicroοὺς εἶχε τριπτύχους θανεῖν ΟΡΕΣΤΗΣ δειλίᾳ γλώσσῃ χαρίζῃ τἄνδον οὐχ οὕτω φρονῶν ΦΡΥΞ οὐ γάρ ἥτις Ἑλλάδ᾽ αὐτοῖς Φρυξὶ διελυmicroήνατο ΟΡΕΣΤΗΣ ὄmicroοσον mdash εἰ δὲ microή κτενῶ σε mdash microὴ λέγειν ἐmicroὴν χάριν
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ΦΡΥΞ τὴν ἐmicroὴν ψυχὴν κατώmicroοσ᾽ ἣν ἂν εὐορκοῖmicro᾽ ἐγώ ΟΡΕΣΤΗΣ ὧδε κἀν Τροίᾳ σίδηρος πᾶσι Φρυξὶν ἦν φόβος ΦΡΥΞ ἄπεχε φάσγανον πέλας γὰρ δεινὸν ἀνταυγεῖ φόνον ORESTES Onde estaacute aquele que fugiu do palaacutecio agrave minha espada FRIacuteGIO (prosternando-se diante de Orestes) Eu te sauacutedo senhor prostrando-me segundo os modos baacuterbaros ORESTES Aqui natildeo estamos em Iacutelion mas em terra argiva FRIacuteGIO Em toda parte eacute mais doce viver do que morrer para os homens sensatos ORESTES Natildeo gritaste por acaso para que socorressem Menelau FRIacuteGIO Eu Pelo contraacuterio para que defendessem a ti Eacute que tu mereces mais ORESTES Foi entatildeo com justiccedila que a filha de Tindaacutereo morreu FRIacuteGIO Com toda a justiccedila Tivesse ela ao menos trecircs gargantas para morrer
ORESTES Por covardia procuras agradar com a liacutengua mas natildeo pensas assim no teu iacutentimo FRIacuteGIO Pois natildeo foi essa mulher a que arruinou a Heacutelade e com a Heacutelade os proacuteprios friacutegios ORESTES Jura ndash se natildeo mato-te ndash que natildeo falas para me agradar FRIacuteGIO Pela minha vida juro que eacute coisa por que farei jura sincera ORESTES Tambeacutem em Troia tinham assim medo do ferro os friacutegios todos FRIacuteGIO Afasta o glaacutedio Porque estando perto reflete uma morte terriacutevel
Aqui o friacutegio demostra ser um completo covarde prosterna-se grita Ele se mostra
extremamente temeroso pela sua vida e o seu discurso tenta dissuadir Orestes de assassinaacute-lo
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parece com o que se sucede no episoacutedio de Glauco e Diomedes no qual o embate fatal eacute
adiado E assim como Glauco o troiano de Orestes consegue que o priacutencipe o deixe vivo A
covardia a prosternaccedilatildeo e o grito satildeo traccedilos comuns de diferenciaccedilatildeo eacutetnica nas trageacutedias e
aqui aparece mais um elemento que jaacute se encontra na Iliacuteada a dissuasatildeo pela fala
Paacuteris aleacutem de ser um troiano eacute o causador da Guerra de Troia que fez perecer toda
uma linhagem de heroacuteis Em uma eacutepoca de guerra ele eacute a metaacutefora preferida tanto para os
espartanos (os inimigos na guerra) quanto para os atenienses perniciosos Nas trageacutedias de
Euriacutepides mesmo os espartanos satildeo representados de maneira pouco louvaacutevel a fronteira
entre o que eacute grego e o que natildeo eacute tambeacutem se encontra em crise e os espartanos (gregos) satildeo
comparados a baacuterbaros em suas trageacutedias O referencial de comparaccedilatildeo muitas vezes eacute o
troiano como acontece em Orestes Tiacutendaro pai de Helena ao reprimir Menelau por ouvir
Orestes matricida fala ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres estado muito tempo entre os baacuterbaros
[os troianos]rdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (EURIacutePIDES Orestes v 485)
Em Euriacutepides as questotildees acerca da alteridade entre aqueus e troianos e da etnicidade
do povo grego ficam mais claras em detrimento da Iliacuteada esse tragedioacutegrafo jaacute denomina os
troianos de baacuterbaroi termo que inexiste em Homero como vimos Euriacutepides encena suas
peccedilas no seacuteculo V aC num contexto no qual a poacutelis dos atenienses se encontra consolidada
mas jaacute entrava em crise em virtude da Guerra do Peloponeso Segundo Karl Reinhardt o
teatro euridipiano eacute exatamente o termocircmetro da crise A geraccedilatildeo jovem se coloca contra a
antiga mas ambas tecircm a chance de falar quase simultaneamente atraveacutes de seus poetas ndash
Euriacutepides e Soacutefocles ndash pois eles vivem num mesmo contexto (REINHARDT 2011 p 20)
O interessante eacute perceber que algumas caracteriacutesticas troianas vatildeo se perpetuar na
configuraccedilatildeo dos personagens sendo utilizadas para designar os baacuterbaros em geral o Outro
homogecircneo grego sobretudo os persas outro por excelecircncia O desrespeito agrave hospitalidade
comum ao Ciclope da Odisseia e a Paacuteris na Iliacuteada retornaraacute na trageacutedia como sinal de
barbaacuterie Quando Menelau chega ao Egito diz ldquoNenhum homem tem um coraccedilatildeo tatildeo
incivilizado a ponto de natildeo me dar comida ao ouvir meu nomerdquo [ἀνὴρ γὰρ οὐδεὶς ὧδε
βάρβαρος φρένας ὃς ὄνοmicro᾽ ἀκούσας τοὐmicroὸν οὐ δώσει βοράν] (EURIacutePIDES Helena vv
501-502) Seraacute comum por exemplo atribuir aos persas o domiacutenio do arco e contrastaacute-lo com
o modo grego de fazer guerra o tradicional face a face (HALL 1989 p 85) Eacute sobre esse
aspecto o modo de fazer guerra que nos debruccedilaremos em nosso proacuteximo capiacutetulo
76
CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI
ldquoEu estarei com vocecirc
Todas as vezes que contar a minha histoacuteria Por ser tudo o que eu fizrdquo
(Remember Me ndash James Horner)
Vamos analisar nesse capiacutetulo como Paacuteris eacute representado como heroacutei e guerreiro e
como essa representaccedilatildeo se liga agrave nossa comparaacutevel Defendemos que Paacuteris eacute um exemplo de
como se agir na Iliacuteada visto que essa eacute a caracteriacutestica primordial do heroacutei homeacuterico e em
Euriacutepides o seu estatuto heroico eacute afetado pois ele eacute visto mais um ldquopastorrdquo (boukoacutelos v
Ifigecircnia em Aacuteulis v 574) ldquoescravordquo (douacutelos v Alexandre fr 48) ldquomuacutesicordquo (Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 576-577) e principalmente ldquobaacuterbarordquo designaccedilotildees comuns a ele na poesia traacutegica
que destoam da construccedilatildeo da personalidade heroica ideal Isso natildeo significa contudo que a
caracterizaccedilatildeo feita por Homero natildeo influencie na construccedilatildeo de Paacuteris em Euriacutepides visto que
defendemos que jaacute em Homero existe uma alteridade entre aqueus e troianos
Se o filme Troia (dir Wolfgang Petersen EUA 2004) natildeo ganhou muita
popularidade pelo excesso de liberdade poeacutetica em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da Iliacuteada essa epiacutegrafe
da muacutesica-tema do filme Remember Me escrita por James Horner e interpretada por Josh
Groban e Tanja Tzarovska pelo contraacuterio traz algo intriacutenseco agrave caracterizaccedilatildeo do heroacutei ele eacute
tudo o que ele faz em batalha Satildeo as faccedilanhas heroicas que datildeo dinamicidade agrave epopeia que
satildeo de fato o material sobre o qual elas se debruccedilam Na trageacutedia essas faccedilanhas e os dramas
77
dos heroacuteis miacuteticos satildeo o material cataacutertico o qual o tragedioacutegrafo utiliza para compor suas
tramas Os atos dos heroacuteis satildeo exemplares para aqueles que os ouvem natildeo os heroacuteis per se
Essa ideia jaacute se encontra na Iliacuteada e para tratarmos de Paacuteris essa noccedilatildeo nos eacute
fundamental pois ele eacute um heroacutei agrave medida que demonstra atraveacutes dos seus atos como um
homem deve agir O locus privilegiado de atuaccedilatildeo de um heroacutei nesse poema eacute a batalha o
tema mesmo da Iliacuteada eacute a Guerra de Troia em si com os heroacuteis aqueus e troianos se
enfrentando fisicamente Esse cenaacuterio beacutelico encontramos somente na Iliacuteada pois em
Euriacutepides natildeo existe a possibilidade de analisarmos o comportamento de Paacuteris como um
combatente ele natildeo eacute mostrado como um nas suas trageacutedias Aliaacutes todas as trageacutedias do ciclo
troiano que analisamos natildeo se desenrolam na guerra Alexandre se passa antes da guerra
enquanto todas as outras se passam depois
Isso denota uma preferecircncia de Euriacutepides por mostrar um ambiente poacutes-beacutelico ele
trabalha com as consequecircncias de uma guerra para um povo Assim satildeo comuns temaacuteticas
que dizem respeito ao dilaceramento do nuacutecleo familiar da escravizaccedilatildeo daquele que era
livre privilegiando agraves vezes certos tipos de personagens que agrave primeira vista natildeo mereceriam
um destaque em uma obra traacutegica como por exemplo as escravas troianas Eacute por esse motivo
que muitos autores afirmam que Euriacutepides daacute voz a esses personagens ldquomarginaisrdquo (SAIumlD
2002 p 62) pois a degradaccedilatildeo que separa os extremos sociais (gregobaacuterbaro livreescravo)
eacute bem mais temiacutevel em uma sociedade em guerra a esposa do cidadatildeo pode virar a concubina
do inimigo Eacute soacute Atenas perder a guerra
A definiccedilatildeo do caraacuteter heroico muda ao longo dos seacuteculos sendo o heroacutei traacutegico
semelhante mas natildeo igual ao homeacuterico Gyumlorgy Lukaacutecs filoacutesofo alematildeo crecirc que o heroacutei
traacutegico traz um ldquobrilho renovadordquo sobre o homeacuterico explicando-o e transfigurando-o
(LUKAacuteCS 2000 p 33) Jacqueline de Romilly mostra como o sofrimento eacute intriacutenseco ao
heroacutei traacutegico ldquoPara ser traacutegico o heroacutei deve sofrer [] no espiacuterito mesmo do gecircnero traacutegico
a necessidade de pintar heroacuteis imperfeitos e atormentados em uma palavra de toma-los ndash
eles as exceccedilotildees ndash como paradigma da condiccedilatildeo humana e de seus malesrdquo (2013 p 210)
Na trageacutedia a noccedilatildeo de hamartiacutea (falha) se torna mais latente e o heroacutei eacute justamente
aquele a quem seus erros implicam em uma trama por exemplo Paacuteris em Alexandre eacute o
camponecircs eacute o habitante do ambiente selvagem (a montanha ndash PELOSO 2002 p 37) que
penetra na cidade reivindicando um reconhecimento o qual a priori natildeo lhe seria adequado
(os precircmios oriundos da vitoacuteria nos jogos troianos) Graccedilas aos erros de Clitemnestra e
Orestes os Aacutetridas sofrem uma desestruturaccedilatildeo familiar que vai se desenrolar em Orestes
78
O heroacutei homeacuterico tambeacutem eacute falho mas essa falha estaacute ligada agrave aacutetē (perdiccedilatildeo) se
ocasiona uma situaccedilatildeo de desequiliacutebrio e o heroacutei tem que fazer por onde revertecirc-la Paacuteris e
Aquiles se assemelham nesse ponto ambos incorrem em aacutetē A causa da perdiccedilatildeo de Paacuteris eacute o
desrespeito da eacutetica hospitaleira retirando Helena do palaacutecio de seu esposo e a consequecircncia
direta eacute a proacutepria Guerra de Troia Jaacute a causa da perdiccedilatildeo de Aquiles eacute a recusa da suacuteplica
Agamecircmnon reconhece seu estado de aacutetē causado pela privaccedilatildeo do geacuteras (privileacutegio) de
Aquiles (a escrava troiana Briseida) e suplica a Aquiles seu retorno agrave guerra atraveacutes de uma
litḗ (suacuteplica) mas este a ignora Impedir que a aacutetē de outrem seja eliminada com a recusa de
uma suacuteplica acaba gerando um estado de aacutetē no proacuteprio Aquiles
O historiador Christopher Jones mostra como o termo hḗrōs (heroacutei) muda de acepccedilatildeo
ao longo tempo primeiramente essa palavra foi utilizada para denominar aqueles seres
puacuteblicos extraordinaacuterios executores de faccedilanhas mais extraordinaacuterias ainda os quais se
configuravam nos personagens principais das histoacuterias contadas pelas epopeias Com o passar
dos seacuteculos essa designaccedilatildeo foi ganhando uma nova roupagem e se infiltrando cada vez mais
nos interstiacutecios da sociedade e da vida privada Segundo Jones isso natildeo eacute uma decadecircncia
tampouco uma ressignificaccedilatildeo do termo visto que ele continua a ser usado para denominar
aqueles que tecircm poder no poacutes-morte mesmo numa acepccedilatildeo cristatilde O que acontece eacute a difusatildeo
e a continuidade da utilizaccedilatildeo de hḗrōs possibilitada pelo processo de expansatildeo da cultura
helecircnica o qual culmina no helenismo (c IV-I aC)
O termo passa a designar natildeo somente os heroacuteis da mitologia mas tambeacutem as pessoas
que se destacam na vida puacuteblica sobretudo ldquoaqueles que caiacuteram na guerra ou deram suas
vidas a serviccedilo de suas comunidades de outras maneirasrdquo (JONES 2010 p 1) Para Jones os
heroacuteis homeacutericos satildeo todos aqueles que lutaram em Troia seja grego ou troiano e tecircm mais a
ver com uma acepccedilatildeo ligada a senhor (lord) do que a guerreiro (warrior) No entanto como
vimos eacute na guerra que esse senhor pode demonstrar seu valor um senhor eacute necessariamente
um guerreiro no mundo homeacuterico Jones entretanto mostra uma resistecircncia da Atenas
Claacutessica em designar um morto comum de hḗrōs o que significa que eles mantecircm um certo
tradicionalismo em considerar apenas os heroacuteis mitoloacutegicos como hḗrōes (JONES 2010 p 3
4 e 21)
Em nossa pesquisa esbarramos sempre com a ideia de que Paacuteris na verdade seria um
anti-heroacutei pois ele apresenta uma seacuterie de atitudes que o caracterizariam como sendo uma
pessoa covarde medrosa etc Em primeiro lugar eacute necessaacuterio termos em mente que os heroacuteis
natildeo satildeo uma massa indistinta eles constituem um grupo social fechado com um coacutedigo de
79
conduta modelar mas natildeo podemos nos esquecer de que uma sociedade eacute composta de
indiviacuteduos cada um com sua personalidade especiacutefica O eu natildeo se anula por causa do noacutes
ele se agrega ao noacutes contribuindo com sua singularidade ao todo
Vaacuterios autores se debruccedilaram de algum modo sobre os heroacuteis da Antiguidade de
maneira mais ou menos ampla tentando defini-los Joseph Campbell Robert Aubreton
Cedric Whitman Karl Kereacutenyi Gregory Nagy Seth L Schein Mariacutea Cecilia Colombani
Anastasia Serghidou David J Lunt e Christopher Jones Agrave exceccedilatildeo de Campbell Kereacutenyi
Serghidou e Lunt geralmente eles datildeo destaque aos heroacuteis homeacutericos Eacute interessante perceber
que natildeo haacute divergecircncia de opiniotildees mas complementaridade
Joseph Campbell foi pioneiro no tratamento dos heroacuteis seu estudo eacute de fins da deacutecada
de 1940 Muito influenciado pela Psicanaacutelise procura delinear o perfil do heroacutei em geral em
O heroacutei de mil faces Ele cria uma tipologia atraveacutes de um estudo comparado de vaacuterias
mitologias que abrange todos os heroacuteis de todas as eacutepocas e tradiccedilotildees epopeicas afirma que
esse personagem passa obrigatoriamente por doze estaacutegios em sua vida ela eacute permeada por
ritos de passagem Campbell natildeo fala de um heroacutei especiacutefico ou de uma determinada tradiccedilatildeo
heroica ele conceitua o heroacutei o vecirc como um homem que morreu como um ldquohomem
modernordquo mas que como um ldquohomem eternordquo ou seja ldquoaperfeiccediloado natildeo especiacutefico e
universalrdquo renasce para ldquoretornar ao nosso meio transfigurado e ensinar a liccedilatildeo de vida
renovada que aprendeurdquo (CAMPBELL 2007 p 28) Desse modo ele corrobora o valor
educacional que um heroacutei possui para aqueles que o rememoram aleacutem de pontuar o seu
caraacuteter mortal
Na deacutecada de 1950 Robert Aubreton escreveu um livro introdutoacuterio sobre Homero que
aborda de maneira diferente os heroacuteis Esse autor crecirc que haja uma psicologia em Homero
afirmando que a representaccedilatildeo deles eacute tatildeo humana que ldquoacabamos por consideraacute-lo natildeo mais
como heroacutei sobre-humano mas como homem igual a noacutes que por sua virtude e piedade
chega a se superarrdquo (AUBRETON 1968 p 188) Essa ldquopsicologia homeacutericardquo consiste
sobretudo na consideraccedilatildeo do heroacutei natildeo apenas em seu caraacuteter coletivo mas em sua
individualidade em sua especificidade Desse modo Aubreton divide esse capiacutetulo o qual ele
dedica aos heroacuteis de acordo com sua anaacutelise de cada um daqueles que ele crecirc serem
importantes nas epopeias Aquiles Paacutetroclo Agamecircmnon Heitor Paacuteris Menelau
Androcircmaca Helena Odisseu Peneacutelope Telecircmaco Nausiacutecaa e Eumeu Observemos que ele
inclui as mulheres (ldquoheroiacutenasrdquo segundo o autor) e o porqueiro Eumeu nessa seleccedilatildeo
80
aumentando a gama de possibilidades de definiccedilatildeo do heroacutei ele eacute um(a) personagem miacutetico
corroborando a ideia de Christopher Jones acerca do que eacute o hḗrōs na eacutepica
Enquanto Aubreton publicava seu livro Cedric Whitman escrevia seu Homer and the
heroic tradition lanccedilado em 1958 e bem recebido quase todos os autores que trabalham com
heroacuteis mencionam seu trabalho em seus proacuteprios Ele tenta compreender a Iliacuteada agrave luz das
noccedilotildees que regem aquela sociedade representada por Homero (e a relaccedilatildeo existente entre os
heroacuteis e essa sociedade) Para esse autor a Iliacuteada jaacute apresenta um discurso bem proacuteximo do
traacutegico no qual a humanidade dos heroacuteis eacute representada de modo mais acentuado e a
demonstraccedilatildeo de sentimentos (como raiva amor compadecimento) eacute comum Whitman
tambeacutem trabalha com a noccedilatildeo do heroacutei como modelo como aquele que passa todas essas
noccedilotildees aos ouvintes da epopeia construindo um estudo de caso de Aquiles
No mesmo ano Karl Kereacutenyi publicou o seu Os Heroacuteis Gregos o livro eacute o segundo
volume da seacuterie Mitologia Grega cujo primeiro volume trata dos deuses gregos A proposta
do livro eacute apresentar os heroacuteis gregos a leitores acadecircmicos ou natildeo debruccedilando-se natildeo
somente sobre os relatos escritos sobre eles mas tambeacutem a cultura material tratando tambeacutem
da questatildeo do culto ao heroacutei e de sua historicidade Para Kereacutenyi os heroacuteis se mostram
ldquoentrelaccedilados com a histoacuteria com os acontecimentos natildeo de um tempo primevo que estaacute fora
do tempo mas do tempo histoacuterico [] Eles surgem diante de noacutes como se tivessem de fato
existidordquo (KEREacuteNYI 1998 p 17) Ao escrever sobre a guerra de Troia mais uma vez
Aquiles eacute o grande destaque da anaacutelise assim como faz nosso proacuteximo autor
Gregory Nagy em seu livro The best of the Achaeans concepts of the hero in
Archaic Greek poetry (1979) trata dessa tradiccedilatildeo anterior agrave composiccedilatildeo dos eacutepicos
defendendo que sua unidade se daacute justamente por essa origem em comum deles Nagy procura
delinear um perfil de Aquiles o qual ele considera o principal heroacutei da Iliacuteada comparando-o
com outros heroacuteis (Heitor e Neoptoacutelemo) e resgata do eacutepico uma seacuterie de noccedilotildees (como
kleacuteos aacutekhos peacutenthos timḗ) imprescindiacuteveis tanto para a compreensatildeo da funccedilatildeo das epopeias
quanto dos cultos heroicos Ele defende que esse culto surgiu simultaneamente agrave composiccedilatildeo
dos eacutepicos e que os jogos ldquode coroardquo (Oliacutempicos Iacutestmicos Deacutelficos e Nemeios) satildeo oriundos
da praacutetica de jogos fuacutenebres possuindo pois uma estrita relaccedilatildeo com o proacuteprio culto ao heroacutei
Nas epopeias no entanto natildeo haacute a menccedilatildeo ao culto dos heroacuteis pelo fato de esse culto ser
estritamente local ele defende que jaacute existe uma conotaccedilatildeo pan-helecircnica nelas e colocar uma
praacutetica religiosa que destoe da religiatildeo oliacutempica comprometeria esse caraacuteter
81
Seth L Schein em The mortal hero an introduction to Homerrsquos Iliad (1984)
aproxima-se muito da anaacutelise de Nagy com relaccedilatildeo ao culto heroico ele natildeo existe nas
epopeias de Homero porque iria de encontro a toda a pan-helenicidade dos poemas definida
pela representaccedilatildeo apenas do culto aos deuses olimpianos Ele natildeo faz um estudo de caso de
nenhum heroacutei tentando abordaacute-los de maneira a tentar defini-los dentro da Iliacuteada Schein se
aproxima de Whitman em sua abordagem ao definir o heroacutei sob a oacutetica acentuada do humano
comparando o discurso das epopeias ao discurso traacutegico ele enfatiza o fato da morte ser a
uacutenica certeza que se tem acerca do destino de um heroacutei A proacutepria etimologia da palavra
hḗrōs denotaria isso
Hērōs parece ser etimologicamente relacionado com a palavra hōrē ldquoestaccedilatildeordquo [] em Homero hōrē significa em particular a ldquoestaccedilatildeo da primaverardquo e um ldquoheroacuteirdquo eacute ldquosazonalrdquo quando ele chega ao seu esplendor como flores na primavera soacute para ser cortado uma vez e para sempre (SCHEIN 2010 p 69)
Mariacutea Cecilia Colombani dedica dois pequenos toacutepicos aos heroacuteis em seu livro
introdutoacuterio sobre Homero (2005) Eles tratam da loacutegica aristocraacutetica e da funccedilatildeo da
soberania Colombani aborda uma seacuterie de noccedilotildees caras agrave aristocracia guerreira e que
perpassam todo o coacutedigo de conduta dessa sociedade que Homero representa Ela faz das
palavras de Louis Gernet que na deacutecada de 1960 publicou seu Anthropologie de la Gregravece
Antique as suas ldquoOs heroacuteis formam uma espeacutecie aparte entre os deuses e os homens seus
representantes satildeo efetivamente homens mas homens que depois da morte adquiriram uma
condiccedilatildeo e estatuto sobre-humanosrdquo (GERNET apud COLOMBANI 2005 p 58) Esses
homens segundo Colombani satildeo representantes de valores sociais (COLOMBANI 2005 p
60) e satildeo rememorados pela sociedade poliacuteade como exemplos a serem seguidos
Anastasia Serghidou escreveu um artigo sobre o heroacutei traacutegico especificamente no livro
Heacuteros et heroiumlnes dans les mythes et les cultes grecs organizado por Vinciane Pirenne-
Delforge e Emilio Suaacuterez de la Torre Ela acredita que ele eacute ldquofundado sobre a ideia de uma
divinizaccedilatildeo impossiacutevelrdquo sendo a imagem do heroacutei na trageacutedia ldquosemelhante ao homem mortal
ao qual o modelo heroico se coloca como aquele do personagem livre e do bom cidadatildeordquo
(SERGHIDOU 2000 p 1) A autora trabalha com a imagem do heroacutei decaiacutedo (heacuteros deacutechu)
colocando em primeiro plano a anaacutelise da dicotomia livre versus escravos O heroacutei eacute o homem
livre construiacutedo em contraposiccedilatildeo ao escravo e estaacute mais perto dos humanos do que os heroacuteis
de outrora
82
David J Lunt em sua tese Athletes heroes and the quest for imortality in Ancient
Greece (2010) tambeacutem retorna agrave questatildeo do culto aos heroacuteis aproximando-se tambeacutem da
abordagem de Nagy embora natildeo o mencione em sua discussatildeo bibliograacutefica Seu destaque
estaacute em mostrar como o heroacutei homeacuterico serviu de exemplo para os homens da poacutelis sobretudo
para os atletas Para isso ele delineia com mais precisatildeo o que seria um heroacutei para os gregos e
os modos pelos quais eles foram rememorados comeccedilando pelos heroacuteis homeacutericos passando
por Teseu os Dioacutescuros (Castor e Poacutelux) e Heacuteracles ateacute chegar nos heroacuteis de ldquocarne e ossordquo
que foram rememorados nas competiccedilotildees atleacuteticas atraveacutes das reacutecitas em sua homenagem
No mesmo ano Christopher Jones lanccedila New heroes in Antiquity from Achilles to
Antinoos livro cujo objetivo como vimos eacute mostrar como o termo hḗrōs (heroacutei) foi utilizado
ao longo do tempo para denominar natildeo mais aqueles grandes heroacuteis do passado mas tambeacutem
pessoas comuns que se destacavam de algum modo na sociedade ressaltando como a difusatildeo
dessas histoacuterias miacuteticas foram imprescindiacuteveis para que essa definiccedilatildeo penetrasse nos
interstiacutecios das sociedades do periacuteodo claacutessico Assim sua anaacutelise perpassa desde o heroacutei
homeacuterico (miacutetico) ateacute o heroacutei ldquoheroicizadordquo no caso o romano Antiacutenoo que morreu em 130
dC
Em virtude dessa revisatildeo bibliograacutefica de tratamento do heroacutei podemos concluir que a)
a mortalidade do heroacutei eacute constantemente reforccedilada b) eles natildeo estatildeo ligados apenas a um
plano mortal mas a um divino tambeacutem seja por terem parentescos com deuses seja por
serem protegidos de um seja por serem cultuados como divindades apoacutes suas mortes c) o
heroacutei eacute exemplar pois eacute portador de um coacutedigo de conduta no qual as suas aretaiacute estatildeo
sempre postas agrave prova sobretudo na batalha e assim os mortais comuns querem chegar o
mais proacuteximo possiacutevel dessa gloacuteria heroica seja associando um heroacutei agrave sua famiacutelia seja sendo
vitorioso em suas atividades d) eles tecircm uma materialidade histoacuterica pois os gregos criam na
veracidade dos mitos em que eles acreditavam e) o heroacutei traacutegico eacute mais falho do que o
homeacuterico o qual sempre procura restabelecer sua posiccedilatildeo de destaque com suas accedilotildees
Nenhum desses autores que trabalham diretamente com os heroacuteis fazem um estudo
especiacutefico de comparaccedilatildeo entre os heroacuteis homeacutericos e traacutegicos ou sobre Paacuteris seja na poesia
eacutepica seja na poesia traacutegica Contudo essas obras aqui mencionadas seratildeo fulcrais para a
anaacutelise de Paacuteris pois ele pertence agrave categoria dos heroacuteis
Na Iliacuteada Paacuteris eacute o heroacutei da paixatildeo seus epiacutetetos natildeo satildeo beacutelicos como os de outros
personagens e ele natildeo eacute o melhor guerreiro troiano como veremos Tambeacutem natildeo eacute um
personagem belicoso Como lembra Aubreton ldquoHomero faz de Paacuteris o homem amoroso por
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excelecircncia e que natildeo pode resistir agrave paixatildeo que os deuses lhe inculcaramrdquo (AUBRETON
1968 p 202)
Enquanto o nosso heroacutei se arma para a guerra eacute designado por dicircos (divino
semelhante aos ceacuteus ndash ldquosky-likerdquo (SUTER 1984 p 59) epiacuteteto comum a outros personagens
como seu proacuteprio irmatildeo Tambeacutem aparece outro epiacuteteto recorrente de Paacuteris ldquomarido de
Helena cacheadardquo (Eleacutenēs poacutesis ēykoacutemoio) reforccedilando sua relaccedilatildeo com Helena Ann Suter
chama a atenccedilatildeo que essa construccedilatildeo formulaica aparece somente em relaccedilatildeo a Zeus e Hera
(1984 p 68) e que das cinco vezes que aparece quatro satildeo dentro do campo de batalha
(1984 p 70) Isso significa para a autora que ldquoa sua imagem como Ἑλένης πόσις ἠϋκόmicroοιο
eacute aquela de um guerreiro bem-sucedido e conselheiro [] Talvez Paacuteris natildeo se sinta em casa
no campo de batalha por natureza mas quando ele de fato luta eacute por causa de sua relaccedilatildeo
com Helenardquo (1984 p 70-1) Eacute o que Robert Aubreton afirma
Tendo conquistado a sua ldquodeusardquo [Helena] nada mais interessa a Paacuteris senatildeo conservaacute-la Para tanto satildeo-lhes necessaacuterias a vida e a salvaguarda de Troacuteia Ele soacute luta em caso extremo quando Troia corre perigo quando por conseguinte seu amor estaacute ameaccedilado Eacute hostil a qualquer compromisso que possa resultar em devolver a Menelau aquela que lhe arrebatou (AUBRETON 1956 p 169)
Essa relaccedilatildeo intriacutenseca de Paacuteris com a paixatildeo (seja pelos seus epiacutetetos seja pela
relaccedilatildeo protecional que Afrodite estabelece com ele) tem uma relaccedilatildeo latente com a sua
proacutepria atuaccedilatildeo na batalha como excelente heroacutei do amor ele deixa a desejar como heroacutei
beacutelico Amor e guerra natildeo combinam Paacuteris treme e muda de cor ao se defrontar com Menelau
(III v 35) ele fica ocirckhroacutes paacutelido
Ainda na Iliacuteada a makhlosyacutenē a luxuacuteria de Paacuteris aparece como a engrenagem-
princiacutepio dessa aacutetē cuja consequecircncia eacute a proacutepria guerra (visto que se remete agrave escolha de
Afrodite) (XXIV vv 25-30) Em Euriacutepides essa ideia de que o enlace amoroso entre Paacuteris e
Helena eacute o causador da guerra retorna (As Troianas vv 398-399 vv 780-781 Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 467-468 Helena vv 25-30 vv 223-224 vv666-668) embora o tragedioacutegrafo
oscile dependendo da obra e de quem eacute o enunciador (se grego ou troiano) em atribuir a
Helena um papel ativo ou passivo em sua retirada do palaacutecio
No Canto VII da Iliacuteada (vv 354-365) os troianos se reuacutenem em assembleia Antenor
um conselheiro afirma que o que se deve fazer eacute devolver Helena e os tesouros aos gregos
Paacuteris no entanto descarta essa possibilidade natildeo se opondo no entanto a entregar os bens
materiais O problema eacute Helena ele jamais a devolveraacute Paacuteris natildeo faz questatildeo das riquezas as
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quais parece natildeo lhe faltam no Canto XI ele inclusive utiliza-se delas para ldquoincentivarrdquo
Antiacutemaco a fazer oposiccedilatildeo contra a devoluccedilatildeo da esposa ldquo[Teucro] Prostra a Pisandro
depois e o nas pugnas intreacutepido Hipoacuteloco filhos de Antiacutemaco o saacutebio que mais do que
todos fazia oposiccedilatildeo para Helena natildeo ser restituiacuteda ao marido ndash fruto de belos presentes por
parte de Paacuteris muito ourordquo [αὐτὰρ ὃ Πείσανδρόν τε καὶ Ἱππόλοχον microενεχάρmicroην υἱέας
Ἀντιmicroάχοιο δαΐφρονος ὅς ῥα microάλιστα χρυσὸν Ἀλεξάνδροιο δεδεγmicroένος ἀγλαὰ δῶρα
οὐκ εἴασχ᾽ Ἑλένην δόmicroεναι ξανθῷ Μενελάῳ] (XI vv 122-125 ndash grifos nossos) Fica claro
que Paacuteris ldquocomprardquo a opiniatildeo de Antiacutemaco com ldquoaglaaacute docircrardquo e ldquomaacutelista khrysogravenrdquo
Essa ideia de que os troianos possuem ouro em demasia eacute recorrente em Euriacutepides Em
Heacutecuba (vv 10-12) Polidoro relata que Priacuteamo ldquocomigo muito ouro enviourdquo [πολὺν δὲ σὺν
ἐmicroοὶ χρυσὸν ἐκπέmicroπει ndash grifos nossos] para o traacutecio que o hospedou (e acabou o matando
para ficar com todo esse ouro) Novamente (vv 492-493) os troianos satildeo mostrados
possuindo muito ouro quando Taltiacutebio pergunta se a mulher que ele vecirc eacute Heacutecuba a ldquorainha
dos friacutegios de muito ourordquo [ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν] Em As Troianas no
agṓn entre Heacutecuba e Helena a primeira ressalta que a segunda ldquoVislumbrando-o [Paacuteris] com
trajes baacuterbaros e com ouro luzindo teu espiacuterito desvairou-serdquo [ὃν εἰσιδοῦσα βαρβάροις
ἐσθήmicroασι χρυσῷ τε λαmicroπρὸν ἐξεmicroαργώθης φρένας ndash grifos nossos] (vv 991-992)
Em Helena o adjetivo polykhryacutesos (no acusativo plural polykhryacutesous) eacute usado para
designar os doacutemoi (construccedilotildees) troianos Em Ifigecircnia em Aacuteulis Agamemnon comenta o
princiacutepio da guerra quando ldquoO homem que julgou as deusas (assim eacute a histoacuteria que os
homens contam) veio da Friacutegia para a Lacedemocircnia vestido roupas de cores vibrantes e
brilhando com joias de ouro a luxuacuteria dos baacuterbarosrdquo [ἐλθὼν δ᾽ ἐκ Φρυγῶν ὁ τὰς θεὰς
κρίνων ὅδ᾽ ὡς ὁ microῦθος Ἀργείων ἔχει Λακεδαίmicroον᾽ ἀνθηρὸς microὲν εἱmicroάτων στολῇ
χρυσῷ δὲ λαmicroπρός βαρβάρῳ χλιδήmicroατι] (vv 71-74) Esse excerto revela que o ouro eacute a
ldquoluxuacuteria dos baacuterbarosrdquo a predileccedilatildeo pelo ouro eacute um costume do Outro e o distingue dos
gregos A helenista Helen Bacon afirma que Euriacutepides eacute menos detalhista que Soacutefocles e
Eacutesquilo ao descrever as vestimentas baacuterbaras embora o embate com o baacuterbaro esteja mais
presente em suas obras mas que o ouro em excesso a riqueza das roupas eacute um elemento
distintivo do baacuterbaro (BACON 1955 p 87 123 e 124) servindo assim como um marcador
eacutetnico Muito ouro eacute sinal de excesso por isso eacute que os baacuterbaros satildeo caracterizados com o
adorno de muitas joias (HALL 1989 p 80)
Em Androcircmaca esse adjetivo (no dativo polychryacutesō) eacute novamente utilizado para
designar os troianos (v 2) Contudo a proacutepria Hermiacuteone (v 147-154) uma grega usa muito
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ouro e a proacutepria Helena se deixa seduzir pelo ouro de Paacuteris como vimos no excerto de As
Troianas Natildeo podemos deixar de observar que Hermione eacute uma espartana
Os espartanos nas obras de Euriacutepides satildeo representados como pessoas que se
assemelham aos baacuterbaros como fica claro por exemplo na passagem em que Tiacutendaro
recrimina Menelau dizendo-lhe ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres vivido tanto tempo entre os
baacuterbarosrdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (Orestes v 485) Euriacutepides os
representa dessa maneira porque eles satildeo os inimigos dos atenienses na Guerra do
Peloponeso o grego pode voltar a um estado de barbaacuterie como acontece com os espartanos
Assim representar Hermiacuteone usando muito ouro ou depreciar Menelau (como acontece em
Orestes ou Ifigecircnia em Aacuteulis que inclusive ganha o primeiro precircmio na competiccedilatildeo traacutegica
em que foi encenada) eacute representar o espartano como semelhante ao baacuterbaro porque eacute digno
de cometer atos baacuterbaros sobretudo durante a guerra
Entretanto por mais que Euriacutepides faccedila essas correlaccedilotildees dada a natureza ldquotemaacutetica e
simboacutelicardquo de suas obras (BACON 1955 p 124) o troiano ainda eacute o referencial de barbaacuterie
em Androcircmaca Hermione afirma agrave personagem-tiacutetulo que ldquonatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade helecircnicardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) pedindo para que ela natildeo
introduza costumes do seu ldquobaacuterbaron geacutenosrdquo laacute Em Orestes a caracterizaccedilatildeo do friacutegio como
um homem medroso covarde que se prosterna e elabora um discurso defensivo para manter a
sua vida corrobora seu pertencimento ao domiacutenio dos baacuterbaros
Na Iliacuteada o excesso de ouro de Troia natildeo designa barbaacuterie mas definitivamente
designa uma alteridade Somente os troianos satildeo relacionados agrave posse do ouro (II vv 229-
231) e eles satildeo justamente o inimigo na guerra Embora os heroacuteis homeacutericos sejam regidos
por um ideal de conduta comum os troianos satildeo diferentes dos aqueus o uso que eles fazem
desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes
Paacuteris se utiliza de todos os meios para manter a posse de sua amada Helena desde
suas riquezas ateacute mesmo sua vida ele soacute entra em batalha quando se vecirc a ponto de perde-la
Por isso ele natildeo possui tantos epiacutetetos ligados agrave guerra Heroacuteis como Aquiles Agamecircmnon
Menelau Odisseu e o proacuteprio Heitor satildeo qualificados com adjetivos relacionados ao ambiente
beacutelico No Canto III da Iliacuteada no qual Helena mostra alguns heroacuteis a Priacuteamo fica evidente
isso Vejamos os epiacutetetos desses guerreiros em comparaccedilatildeo aos de Paacuteris no supracitado
Canto
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Agamemnon ldquohomem de aspecto imponenterdquo (v 166) ldquorei poderosordquo (v 178) ldquotatildeo belo e
de tal corpulecircnciardquo (v 167) ldquotatildeo belo conspectordquo (v 169) ldquomajestade tatildeo
granderdquo (v 170) ldquode Atreu descendenterdquo (v 178) ldquotatildeo grande rei chefe de
homens quatildeo forte e notaacutevel guerreirordquo (v 179) ldquoventurosordquo (v 182) ldquofilho
dileto dos deusesrdquo (v182)
Odisseu ldquode espaldas mais largas de ver e de peito mais amplordquo (v 194) ldquoguieiro
velosordquo (v 197) ldquoastucioso guerreirordquo (v 200) ldquoem toda sorte de ardis
entendido e varatildeo prudentiacutessimordquo (v 203) ldquoo astuciosordquo (v 216) ldquoindiviacuteduo
bisonho que o cetro na matildeo mantivesse () imaginara talvez ser pessoa
inexperta ou insensatardquo (vv 218-220)
Menelau ldquode Ares forte disciacutepulordquo [areḯphilos] (v 206)
Aacutejax
Telamocircnio
ldquotatildeo belo e de tal corpulecircnciardquo (v 226) ldquode bem maior estatura e de espaldas
mais largas que os outrosrdquo (v 227) ldquobaluarte dos homens Aquivosrdquo (v 229)
ldquogiganterdquo (v 229)
Heitor ldquode penacho ondulanterdquo (v 83)
Paacuteris ldquodivordquo [theoeidḗs dicircos] (vv 16 37 100 328 437) ldquobelordquo (v 27) ldquode
formas divinasrdquo (v 58) ldquode belas feiccedilotildeesrdquo (v 39) ldquosedutor de mulheresrdquo (v
39) ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a belezardquo (v 54) ldquomarido
de Helena de belos cabelosrdquo (v 328)
Agamemnon eacute o aacutenax ele eacute o chefe da expediccedilatildeo rei de todos os reis eacute o chefe de
homens o notaacutevel guerreiro aqui estaacute denotado seu aspecto beacutelico sobretudo pela sua
habilidade de comando Odisseu com a sua astuacutecia tambeacutem possui um aspecto beacutelico isso se
daacute porque essa meacutetis natildeo estaacute ligada apenas agrave dissimulaccedilatildeo agrave mentira mas ao planejamento
mesmo necessaacuterio a uma guerra Eacute ele que tem a ideia do cavalo de Troia que garante a
vitoacuteria dos gregos essa guerra foi ganha pela meacutetis Menelau eacute amigo de Ares (areḯphilos)
deus da guerra e Aacutejax eacute o gigante corpulento personagem cuja forccedila fiacutesica sobrepuja por
exemplo a forccedila da meacutetis ligada agrave inteligecircncia Do mesmo modo o penacho de Heitor se
refere a uma parte do seu elmo que por sua vez eacute parte da armadura de um guerreiro e ainda
pode se referir agrave sua habilidade com os cavalos (ressaltada em outros Cantos) pois o penacho
lembra a crina desse animal Como vimos o cavalo eacute necessaacuterio agrave guerra deslocando os
guerreiros no campo de batalha e agraves vezes auxiliando-os nas lutas Paacuteris natildeo possui epiacutetetos
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beacutelicos e o uacutenico elemento relacionado agrave guerra que ele possui eacute o arco o qual eacute
desvalorizado
Na trageacutedia o arco eacute a arma do baacuterbaro por excelecircncia que por sua vez se
materializa na figura do persa Paacuteris eacute mostrado como um arqueiro duas vezes (Heacutecuba vv
387-388 Orestes v 1409) nas trageacutedias que analisamos assim como Teucro (Helena vv
75-77) A diferenccedila eacute que tanto em Heacutecuba quanto em Orestes o arco de Paacuteris eacute mencionado
em contexto beacutelico e em Helena Teucro usa seu arco fora da guerra e o iria utilizaacute-lo para
matar uma mulher natildeo um homem Homero tambeacutem traz essa ideia de diferenciaccedilatildeo de uso
do arco
Paacuteris entra na guerra com ldquoarco e espadardquo (toacutexa kai xiacutephos) e ldquoduas lanccedilas na matildeordquo
(dyacuteo kekorythmeacutena khalkocirc) Paacuteris eacute um arqueiro e isso fica bastante claro ao longo da Iliacuteada
Se teve uma arma que natildeo mudou muito ao longo do tempo foi o arco (KEEGAN 1995 p
179) embora variantes tenham surgido (como a besta ndash crossbow) ele eacute oriundo do Oriente
tendo entrado de uma vez por todas nas fileiras da infantaria grega atraveacutes do contato dos
cretenses com a Siacuteria e o Egito (SUTHERLAND 2001 p 113)
Na Guerra do Peloponeso (431-404 aC) os arqueiros ganharam um destaque muito
grande Marcos Alvito afirma inclusive que as forccedilas secundaacuterias (peltastas arqueiros
fundibulaacuterios e demais tropas ligeiras) tiveram um papel decisivo (SOUZA 1988 p 64)
embora a falange hopliacutetica sempre fora preferida a esse modo de luta (LISSARAGUE 2002
p 117) Essa preferecircncia se daacute em virtude de uma tradiccedilatildeo de se preterir as tropas ligeiras em
detrimento de uma forma de luta aristocraacutetica que implica na valorizaccedilatildeo do combate corpo a
corpo
Essa valorizaccedilatildeo jaacute comeccedila na Iliacuteada haacute pouquiacutessimos arqueiros e talvez se todos
eles morressem em batalha a Guerra de Troia natildeo seria encerrada por causa disso afinal
ldquoAqueus e Troianos se batem corpo-a-corpo e natildeo ficam agrave espera de apoio de flechas ou
de lanccedilas de longe atiradas lutando de bem pertordquo (Ἀχαιοί τε Τρῶές τε δῄουν
ἀλλήλους αὐτοσχεδόν οὐδ᾽ ἄρα τοί γε τόξων ἀϊκὰς ἀmicroφὶς microένον οὐδ᾽ ἔτ᾽ ἀκόντων
ἀλλ᾽ οἵ γ᾽ ἐγγύθεν ἱστάmicroενοι) (XV vv 707-712 ndash grifos nossos)
Mencionados haacute seis arqueiros na Iliacuteada Filoctetes e Teucro do lado aqueu Paacuteris
Pacircndaro Heleno e Doacutelon do lado troiano Tanto Paacuteris quanto Pacircndaro e Heleno usam o arco
em batalha Doacutelon aparece em apenas um Canto da Iliacuteada para morrer nas matildeos de Odisseu e
Diomedes e sua funccedilatildeo eacute a de espiar os aqueus natildeo de lutar contra eles natildeo chegando a
entrar em batalhas Filoctetes vem acompanhado de um grupo de arqueiros que natildeo chegam a
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entrar em accedilatildeo Tampouco o proacuteprio heroacutei o faz ele foi abandonado em uma ilha por seus
companheiros no caminho para Troia em decorrecircncia de um ferimento que exalava um odor
terriacutevel
Haacute ainda o povo da Loacutecrida um povo arqueiro o qual foi auxiliar os aqueus Eacute
mencionado uma vez no poema mas ele natildeo entra em batalha os loacutecrios satildeo medrosos
demais para isso (XII vv 712-718) Do lado aqueu Teucro eacute o uacutenico que luta em batalha
com o arco e ele aparece em Helena de Euriacutepides portando-o ele quase atira na esposa de
Menelau durante a peccedila Ele vai parar no Egito onde estaacute tambeacutem Helena O motivo Ele foi
expulso de sua terra pelo pai Ser exilado era algo vexatoacuterio o economista Eacutemile Mireaux
mostra que os exilados comeccedilam a surgir por volta do seacuteculo VII aC mas que a praacutetica de
um membro de uma comunidade se exilar natildeo era tatildeo incomum antes dessa data
A estes contingentes de desenraizados deve-se finalmente acrescentar todos aqueles que uma vinganccedila um crime um homiciacutedio agraves vezes acidental obrigaram a deixar a famiacutelia e a cidade e a procurar o refuacutegio da hospitalidade agraves vezes para sempre Pois quando o fugitivo culpado eacute apenas um bastardo ou mesmo um simples filho segundo raras satildeo as famiacutelias dispostas a assumir o encargo do pagamento de uma composiccedilatildeo para recuperar um membro que em regra geral natildeo eacute senatildeo um encargo suplementar para o patrimocircnio familiar (MIREAUX sd p 255)
Na Atenas Claacutessica a praacutetica do ostracismo vem reforccedilar a ideia de que ser privado de
viver em sua terra era um dos piores castigos os cidadatildeos atenienses escreviam em um
pedaccedilo de ceracircmica oacutestrakon o nome de quem deveria ser exilado por ser perigoso agrave ordem
democraacutetica Teucro em Helena representa algueacutem indesejado o que corrobora a ideia de
que o arco era uma arma que denotava vileza Ser privado de sua poacutelis era o equivalente a
estar morto (HALL 1997 p 97)
Mas falta algum arqueiro nesse time aqueu natildeo Ou foi esquecido o famoso arco de
Odisseu objeto que definiraacute o destino de Peneacutelope no palaacutecio de Iacutetaca Justamente seu arco
estaacute em casa Odisseu natildeo o utiliza na guerra Aqui o arco tem uma funccedilatildeo outra a qual natildeo
se perdera atraveacutes do tempo caccedila e esporte passatempos comuns da aristocracia Desse
modo a maioria do contingente de arquearia eacute oriundo do lado troiano da guerra
Os arqueiros natildeo lutam face a face atiram de longe suas setas O seu comportamento
na Iliacuteada eacute bastante peculiar eles compartilham de uma comunicaccedilatildeo natildeo-verbal e verbal
bastante parecida escondem-se e jactam-se quando ferem o inimigo (por exemplo V vv
100-106 XIII vv 593-597 vv 712-718) Aleacutem disso fugir e sentir medo eacute bem mais comum
entre eles do que entre os outros guerreiros (por exemplo III vv 33-37 XII vv 712-718)
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Esse comportamento natildeo eacute adequado dentro do coacutedigo de conduta guerreira o que torna o
grupo dos arqueiros de certa forma marginalizado no campo de batalha pertencendo a uma
categoria hieraacuterquica inferior agrave daqueles que usam a lanccedila ou a espada na luta
Paacuteris aparece na Iliacuteada pela primeira vez no Canto III os dois exeacutercitos se aproximam
e ele chama os aqueus para lutar em um embate singular (III vv 15-20) quando um guerreiro
luta sozinho com outro corpo-a-corpo Esse tipo de combate eacute o que mais acontece nessa
epopeia Mesmo numa batalha coletiva em que todo o exeacutercito estaacute lutando satildeo batalhas
singulares que ocorrem sabemos o nome de quem mata e de quem morre
Por isso que natildeo podemos dizer que haacute a valorizaccedilatildeo somente de um em detrimento do
outro ambos ndash morto e assassino ndash satildeo relembrados Jean-Pierre Vernant e Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo se debruccedilaram de maneiras diferentes sobre esse tema da bela morte utilizando as
mesmas passagens da Iliacuteada As suas noccedilotildees resumem-se nos diagramas abaixo
No primeiro diagrama vemos a visatildeo de Vernant agravequeles que morrem em batalha eacute
implicada uma seacuterie de caracteriacutesticas que os tornam aacuteristoi (os melhores) Eacute o fato de morrer
em batalha que lhe daacute esse estatuto Para Rennoacute (segundo diagrama) natildeo eacute a sua morte que
lhe implica a qualidade de aacuteristos mas a morte dos outros matando em batalha que se
consegue angariar para si essas seacuteries de caracteriacutesticas configurando-se pois em aacuteristoi
Quando esses guerreiros implacaacuteveis esses aacuteristoi morrem eacute que se daacute a bela morte pois foi
a morte de pessoas honoraacuteveis Cremos que tanto Vernant quanto Rennoacute natildeo satildeo visotildees
diacutespares mas complementares acerca da bela morte Tanto uma concepccedilatildeo quanto outra estaacute
presente na Iliacuteada Homero ldquoequilibra igualmente a grandeza dos assassinos e o paacutethos
(sofrimento) dos assassinadosrdquo (SCHEIN 2010 p 72)
Nesse embate singular contra Menelau ele se veste antes (vv 328-339) A descriccedilatildeo eacute
longa porque no proacuteprio vestir-se haacute um processo e uma estrutura formulaica 1) cnecircmides
(ldquocaneleirasrdquo) 2) couraccedila 3) espada 4) escudo 5) elmo e 6) lanccedila Aqui estaacute basicamente
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todos os apetrechos necessaacuterios a um guerreiro e os quais estaratildeo presentes na armadura do
hoacuteplita Isso eacute interessante para que possamos comparar com o que a Arqueologia tem
trazido para noacutes Natildeo haacute por exemplo registros arqueoloacutegicos de cnecircmides no periacuteodo de
desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) como haacute no Poliacuteade Arcaico mas isso natildeo impede
que elas natildeo fossem feitas naquele periacuteodo em um material pereciacutevel (ZANON 2004 p
136) O mesmo acontece com as couraccedilas mas nada tambeacutem impede que elas fossem
derretidas para a reutilizaccedilatildeo do metal (ZANON 2004 p 137)
A espada (xiacutephos) que Paacuteris traz com cravos de prata tem correspondente
arqueoloacutegico de origem minoica esse tipo de espada natildeo era muito forte e quebrava saindo a
lacircmina do cabo Assim o guerreiro ficava desarmado (ZANON 2004 p 139) Embora natildeo
saibamos como eacute a espada de Menelau (soacute nos eacute dito que esse heroacutei se armou do mesmo
modo que Paacuteris) ela se quebra no decorrer da luta singular Isso mostra que o poeta da Iliacuteada
possuiacutea um conhecimento da cultura material palaciana Contudo esse tipo de espada natildeo
servia para corte (como acontece na epopeia) apenas para perfuraccedilatildeo Espadas que cortam e
perfuram soacute apareceriam por volta de 1200 aC (ZANON 2004 p 140)
Esse eacute mais um exemplo de mistura perioacutedica a espada corta e perfura como eacute de
conhecimento da audiecircncia homeacuterica mas o aspecto dela eacute o de uma espada palaciana
ldquoHomerordquo segundo a arqueoacuteloga brasileira Camila Aline Zanon ldquojuntou esses retalhos e os
costurou com tal primazia que somente com o surgimento da Arqueologia eacute que pudemos
diferenciar um pouco dos seus elementos constitutivos no tocante a essas eacutepocasrdquo (2004 p
146) Isso denota tambeacutem que ele natildeo ignorava as praacuteticas beacutelicas o que nos ajuda a
compreender mais a representaccedilatildeo de Paacuteris Outro ponto interessante reside no fato de que a
couraccedila que Paacuteris veste natildeo eacute sua eacute de Licaacuteone seu irmatildeo Nosso heroacutei natildeo possui sua
armadura completa corroborando a sua habilidade como arqueiro esse guerreiro fazia parte
das tropas ligeiras natildeo das pesadas Os membros daquela precisavam se despir da armadura
completa pesada para poder exercer sua funccedilatildeo na guerra perseguir o inimigo Eles
geralmente eram pessoas de menor condiccedilatildeo financeira que natildeo podiam arcar com um
armamento completo ou ateacute mesmo mercenaacuterios estrangeiros Eram fundibulaacuterios peltastas
arqueiros essas armas satildeo muito mais baratas
As batalhas singulares seguem uma ordem tambeacutem primeiro haacute o tiro de lanccedilas soacute a
partir daiacute que o embate corpo a corpo com espadas se desenrola (III vv 346-360) Aqui o
tiro de Paacuteris natildeo fere nem mesmo a armadura de Menelau enquanto o tiro deste atravessa o
escudo e seu khitṓn sua tuacutenica por baixo da armadura Paacuteris se encurva impedindo que algo
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pior lhe aconteccedila A luta continua e Menelau passa a atacar Paacuteris com a espada que se
quebra Issonatildeo eacute atribuiacuteda agrave sua fragilidade mas a um desiacutegnio dos deuses Contudo como
vimos era passiacutevel de isso acontecer
Afrodite vendo a desvantagem desse heroacutei o retira do campo de batalha colocando-o
no taacutelamo agrave espera de Helena Natildeo fosse a intervenccedilatildeo da deusa Menelau teria alcanccedilado
alto kŷdos ele eacute o valor que os deuses atribuem ao homem Nas palavras da filoacutesofa argentina
Mariacutea Cecilia Colombani ldquose kucircdos [sic] descende dos deuses kleacuteos ascende ateacute elesrdquo
(DETIENNECOLOMBANI 2005 p 52) Leslie Kurk acrescenta que aquele que possui
kŷdos tem um ldquopoder especial conferido por um deus que faz um heroacutei invenciacutevelrdquo (KURK
apud LUNT 2010 p 64) Se um homem natildeo demonstra ser digno desse valor ele morre
aacutephantos (invisiacutevel) e nṓnymnos (sem nome sem gloacuteria)
No Canto VI (vv 521-525) Heitor ao ver nosso heroacutei afirma que nenhum anḗr
poderia deixar de valorizar (atimaacuteō) seus ldquotrabalhos na guerrardquo (eacutergon maacutekhēs) mas que natildeo
quer os exercer gerando aiacuteskhos (vergonha) Esse verbo (atimaacuteō) eacute composto de duas partes
o prefixo de negaccedilatildeo a- e o verbo timaacuteō (valorizar) que daacute origem agrave palavra timḗ uma das
noccedilotildees mais caras ao guerreiro ela eacute o valor de uma pessoa Para um guerreiro o campo de
batalha eacute o locus privilegiado de demonstraccedilatildeo desse valor de sua honra Desse modo como
vimos eacute na Iliacuteada mais do que na Odisseia que os heroacuteis tecircm a sua timḗ posta a prova
Richard B Rutherford sintetiza bem o que significa essa honra na Greacutecia antiga
No coraccedilatildeo do sistema de valores dos heroacuteis de Homero estaacute a honra τιmicroή expressa pelo respeito de seus pares e personificada em formas tangiacuteveis ndash tesouros presentes mulheres um lugar honoraacutevel no banquete Em tempo de guerra eacute inevitaacutevel que a honra seja ganha sobretudo pelas proezas em batalha habilidade como um liacuteder e um lutador Outras qualidades satildeo tambeacutem admiradas ndash habilidade como orador piedade bom senso e conselho lealdade hospitalidade gentileza mas essas satildeo secundaacuterias e a uacuteltima poderia de fato estar sem lugar no combate (RUTHERFORD 1996 p 40)
Segundo Redfield a timḗ eacute a medida de um homem em relaccedilatildeo ao outro implicando
numa comparaccedilatildeo de um indiviacuteduo com outro Isso soacute eacute possiacutevel se esses homens estatildeo
inseridos em uma sociedade na qual existe uma publicidade das accedilotildees45 ou seja na qual se
verifique uma uniatildeo do que entendemos hoje como vida privada e vida puacuteblica O valor de um
45 A sociedade grega eacute uma sociedade agoniacutestica Esse termo natildeo existe na liacutengua portuguesa eacute um adjetivo derivado de um processo de aportuguesamento cuja base etimoloacutegica eacute a palavra aacutegon (competiccedilatildeo) Foi utilizado para caracterizar a sociedade helecircnica no que diz respeito agrave noccedilatildeo de competiccedilatildeo o indiviacuteduo estaacute sempre sob o olhar do puacuteblico sendo sinalizado por ele quando comete atos dignos (honrados) e indignos (vergonhosos)
92
homem se lhe era atribuiacutedo natildeo por ele mesmo mas por outros homens Esse reconhecimento
eacute o que configura a kleacuteos a gloacuteria (ou reputaccedilatildeo)46 Esta eacute a gloacuteria dada pelos homens agravequeles
que se destacam Enquanto a vida tem um fim a kleacuteos eacute imortal pois ela se daacute atraveacutes da
rememoraccedilatildeo desses mortos grandiosos seja atraveacutes da oralidade ndash o canto do aedo ou a
narraccedilatildeo de mitos47 ndash seja atraveacutes da construccedilatildeo de tuacutemulos Na Iliacuteada uma passagem chama
atenccedilatildeo para isso trata-se de uma fala de Heitor (VII vv 81-91) Eacute no Canto VII tambeacutem (v 516) que Paacuteris recebe uma designaccedilatildeo interessante hyiograves
Priaacutemoio Ann Suter chama atenccedilatildeo para ela pois estaacute numa passagem que ldquoimplica numa
total reversatildeo da caracterizaccedilatildeo de covarde para heroacutei de mulherengo [womanizer] para
guerreirordquo (1984 p 71) Paacuteris como veremos depois de desafiar os guerreiros aqueus acaba
sendo enfrentado por Menelau e foge retornando depois para um combate singular Afrodite
ainda o retira da guerra e ele soacute volta a ela no Canto VII Justamente aqui no Canto que
intermedia sua fuga e seu retorno tanto no plano semacircntico quanto no linguiacutestico ocorre o
turning point de Paacuteris
No Canto VII tambeacutem Paacuteris mata seu primeiro adversaacuterio na Iliacuteada (vv 8-10) Ele eacute
Meneacutestio um korynḗtēs guerreiro que porta maccedila uma espeacutecie de porrete ou seja natildeo
utiliza as armas convencionais de guerra homeacuterica (espada ou lanccedila) Ele tambeacutem faz parte
das tropas ligeiras do exeacutercito aqueu assim como Paacuteris que eacute arqueiro do lado troiano Haacute
portanto uma equiparidade na luta o toxoacutetēs lutando contra o korynḗtēs No Canto seguinte
No Canto VIII Paacuteris continua demonstrar sua qualidade de arqueiro ele fere um dos cavalos
de Nestor com seu arco (VIII vv 80-84)
Paacuteris tambeacutem retorna agrave accedilatildeo no Canto XI Eacute nesse conjunto de Cantos (XI ao XIII)
que Paacuteris mais se mostra um guerreiro ativo utilizando sua arma principal o arco e flecha
Ele fere Macaacuteone afastando-o da luta e depois Euriacutepilo que estava retirando a armadura de
Apisaacuteone morto em batalha (XI vv504-509 vv 581-584) Outro alvo seu eacute Diomedes (XI
vv 369-395) Nosso heroacutei sai de um esconderijo (loacutekhos) e jacta-se A foacutermula utilizada eacute
ldquoeukhoacutemenos eacutepos ēuacutedardquo tiacutepica dessas situaccedilotildees de vangloacuteria (MARTIN 1989 p 29) Esse eacute
46 ldquoPara os gregos antigosrdquo segundo David Lunt ldquoa imortalidade heroica consistia em dois componentes gloacuteria e fama (kleacuteos) e honras cultuais (timḗ)rdquo (LUNT 2010 p 83) O culto ao heroacutei natildeo eacute mostrado na Iliacuteada a arqueologia jaacute mostrou que ele jaacute existia na eacutepoca de Homero (JONES 2010 p 14) A explicaccedilatildeo de Seth L Schein para o aedo da Iliacuteada e da Odisseia exclui-lo estaria no caraacuteter pan-helecircnico das obras ldquo[] a religiatildeo olimpiana de Homero eacute pan-helecircnica [] Homero transcende os limites do culto regional e local para criar na poesia uma unidade religiosa que natildeo existia historicamenterdquo (SCHEIN 2010 p 49) Christopher P Jones jaacute afirma o contraacuterio Homero influenciou o culto aos heroacuteis (JONES 2010 p 14) 47 David Lunt ao mostrar a etimologia da palavra kleacuteos mostra tambeacutem que ela tem uma estreita ligaccedilatildeo com essa cultura oral klyacuteein eacute ouvir Assim a ldquokleacuteos soacute pode ser possuiacuteda se algueacutem a proclama e algueacutem a escutardquo (LUNT 2010 p 88)
93
o comportamento tiacutepico de um arqueiro e por isso que Diomedes lhe adereccedila muitos insultos
A qualidade de Paacuteris como arqueiro (toxoacutetēs) eacute desprezada ldquoarco e flecha embora praticado
por certos indiviacuteduos como Paacuteris e Teucro eacute o mais longe possiacutevel marginalizada e o termo
lsquoarqueirorsquo pode ser ateacute mesmo usado como um insultordquo (RUTHERFORD 1996 p 38)
Paacuteris segue sua participaccedilatildeo em batalha liderando uma das colunas troianas contra os
acaios (XII v 93) Eneias heroacutei troiano de quem jaacute falamos em nossa introduccedilatildeo chama ao
seu auxiacutelio Paacuteris e outros guerreiros (XIII vv 489-495) Ainda nesse Canto Paacuteris mata outro
grego o coriacutentio Euqueacutenor estimulado pela perda de um amigo Harpaliatildeo (XIII vv 660-
663 671-672) Esta eacute a uacutenica vez em que um arco mata um aqueu Em todas as outras
passagens envolvendo tiros de arco apenas Teucro arqueiro aqueu mata com o arco Eacute
interessante perceber que o uacutenico arqueiro em atividade do lado aqueu se chama ldquoTroianordquo
ldquoTeucrordquo eacute outra denominaccedilatildeo para o troiano Isso corrobora a ideia do arco ser uma arma
tiacutepica desse exeacutercito Geralmente o arco apenas fere causando na maioria das vezes uma
reprimenda daquele que eacute atingido agravequele que atinge como eacute o caso de Diomedes e Paacuteris (e
ainda de Diomedes e Pacircndaro)
No Canto XV Paacuteris atinge por traacutes [oacutepisthe] Deiacuteoco quando este se retirava da luta
(XV vv 341-342) Esta eacute sua uacuteltima accedilatildeo em batalha a partir daiacute ele soacute eacute mencionado Aqui
em seu uacuteltimo ato beacutelico nosso heroacutei faz algo que natildeo eacute bem visto Afinal o combate deve
ser feito face-a-face e o ataque pela frente do guerreiro Matar ou ferir pelas costas eacute
desonroso vocecirc natildeo deu oportunidade da pessoa se defender nem dela ver quem a matou
Aqui aparece uma outra faceta da caracterizaccedilatildeo do guerreiro Paacuteris a qual parece ser
exclusiva a ele mas que eacute mais comum em batalha do que poderiacuteamos imaginar Em vaacuterias
passagens Paacuteris eacute mostrado sentindo medo Ele foge do embate singular quando vecirc que
Menelau de fato lutaria com ele (III vv 21-37) Sua fuga eacute inadmissiacutevel ele causou a guerra
O fato de ele ter desencadeado todo o conflito e ao se deparar com Menelau recuar de medo
mexe mais com os nervos de Heitor do que o proacuteprio fato de ele simplesmente fugir O
aristocrata que eacute um guerreiro deve enfrentar as batalhas e qualquer fuga eacute condenaacutevel
Ainda no Canto III (vv 39-45) Heitor ressalta que Paacuteris tem todas as qualidades
fenotiacutepicas necessaacuterias aos kaloigrave kagathoiacute mas que seu comportamento natildeo estava
condizendo com o de um Carece-lhe forccedila (biacuteē phresigraven) e coragem (alkḗ) A alkḗ eacute o traccedilo
distintivo do guerreiro junto com a andreiacutea a coragem varonil cara ao gecircnero masculino
Cremos que ela eacute o impulso positivo e a qualidade daquele que supera o medo para enfrentar
situaccedilotildees-problema eacute a justa medida entre inseguranccedila e convicccedilatildeo exacerbada Ela eacute uma
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caracteriacutestica intriacutenseca do ser humano mas se manifesta com mais ou menos intensidade em
um indiviacuteduo consoante trecircs aspectos a) predisposiccedilatildeo no caraacuteter na iacutendole do mesmo b)
incitaccedilatildeo por parte de outra pessoa ou c) motivaccedilatildeo por parte de um outro sentimento
No caso de Paacuteris a coragem se manifesta pela incitaccedilatildeo de outrem bem como pelo
medo de perder Helena veremos mais adiante que ele aceita devolver os tesouros que ele
trouxe de Esparta mas se nega a devolver a consorte Quando passamos por essas situaccedilotildees-
problema podemos encaraacute-las imediatamente ou podemos recuar diante delas a menos que
outra pessoa nos encoraje ou que tenhamos vergonha de recuar como eacute o caso de Paacuteris
tambeacutem
O ato corajoso desse heroacutei eacute mensurado a partir da sua intrepidez diante do confronto
com o perigo em um campo de batalha O valor de um kalograves kagathoacutes consiste na sua
coragem O valente eacute sempre o nobre o homem de estatuto social elevado A vitoacuteria eacute para
ele a distinccedilatildeo mais alta e o conteuacutedo proacuteprio da vida Do mesmo modo se daacute com os atletas
a vitoacuteria eacute essencial para que este possa reclamar para si um estatuto honoriacutefico semelhante ao
de um heroacutei que ao ficar cara a cara com um igual o enfrenta agrave medida que eacute conduzido
ldquopelo medo da vergonhardquo (BALOT 2004 p 416)48 Ele quer ser reconhecido pela sua
bravura natildeo pela sua fraqueza
Contudo por mais que o heroacutei deva ser intreacutepido isso natildeo implica necessariamente
que o ele seja proibido de sentir medo ele eacute intriacutenseco e natildeo eacute incomum um guerreiro
amedrontar-se na Iliacuteada Ateacute mesmo Aquiles o melhor dos aqueus sente medo Nicole
Loraux mostra que ldquona epopeia natildeo haacute guerreiro que natildeo tenha tremido alguma vez [] Natildeo
existe o grande guerreiro que natildeo tenha sentido um dia em todo o seu ser o tremor do terror
Como se o medo fosse a prova que qualifica o heroacuteirdquo (LORAUX 2003 p 97) Isso se daacute
porque eles satildeo humanos o homem eacute passiacutevel de sentir medo mas isso natildeo o qualifica como
um completo covarde Pelo contraacuterio ldquoO medo do bravo combatente revela a verdadeira
dimensatildeo do perigo que ele enfrente e que o engrandecerdquo (FONTES 2001 p 103)
Tanto a coragem quanto o medo coabitam o mesmo indiviacuteduo Este eacute corajoso agrave
medida que a coragem sobrepuja o medo eacute covarde quando o medo sobrepuja a coragem Nas
palavras de Simon Blackburn ldquoa coragem natildeo eacute a ausecircncia de medo () mas a capacidade de
sentir o grau adequado de medordquo (BLACKBURN 1997 p 80) Assim eacute incorreto afirmar
que o medo eacute diametralmente oposto agrave coragem bem como que um heroacutei eacute totalmente
48 Ryan Balot ainda afirma que a coragem eacute ldquoa qualidade ou disposiccedilatildeo do personagem que faz um indiviacuteduo superar o medo a fim de atingir um objetivo preacute-concebidordquo (BALOT 2004 p 407)
95
destemido Ser covarde natildeo eacute sinocircnimo de sentir medo a covardia implica tambeacutem na recusa
total agrave batalha e o natildeo retorno numa situaccedilatildeo de fuga
Contudo eacute fato que o medo pesa sobre os troianos e os arqueiros como um elemento
desqualificativo porque ele estaacute associado a outras caracteriacutesticas devalorativas Por isso que
Paacuteris seraacute sempre reprimido como veremos mas sem deixar contudo de ser um exemplo
aleacutem das qualidades aristocraacuteticas que ele porta quando ele recua em batalha ele retorna
matando guerreiros inimigos liderando colunas incitando os companheiros agrave luta Destarte
isso natildeo significa uma contradiccedilatildeo da Iliacuteada como afirmou Moses Finley (FINLEY 1982 p
43)49 mas um aspecto paidecircutico como ser humano tem-se o direito de sentir medo de
recuar Ter medo tambeacutem eacute comum como vimos recuar entretanto eacute uma atitude desonrosa
Por isso que Paacuteris retorna agrave batalha Contudo ele o faz depois de a) ser motivo de graccedila
[khaacuterma] para os inimigos que riem dele e b) ser censurado por Heitor e Helena ele sente
vergonha de seus atos depois que sua atitude eacute internalizada como sendo algo indigno de um
anecircr Aqui a neacutemesis de Heitor desencadeou aidṓs em Paacuteris Nessa censura Heitor afirma
que este carece de biacuteē (forccedila) e alkḗ (coragem) Contudo no Canto VI o mesmo Heitor
afirma que todos sabem que Paacuteris eacute corajoso (aacutelkimos) e tem valor (timḗ)
O coacutedigo de conduta do guerreiro seja ele de qual lado da batalha for eacute o mesmo
bem como a representaccedilatildeo dele Tanto aqueus quanto troianos estatildeo sob esse mesmo coacutedigo e
satildeo representados da mesma maneira com as mesmas vestimentas em batalha armam-se do
mesmo jeito como jaacute pudemos ver com os mesmos tipos de metal com as mesmas armas
Isso acontece tambeacutem na imageacutetica como nos mostra Franccedilois Lissarague grego e baacuterbaro eacute
representado da mesma maneira (LISSARAGUE 2002 p 113-114) O que vai diferenciar o
contingente troiano do aqueu eacute justamente o tipo de arma valorizada natildeo o valor do guerreiro
bem como se enfatizaraacute que mesmo o melhor guerreiro troiano natildeo eacute paacutereo para o melhor
guerreiro aqueu (Iliacuteada XXII v 158)
O problema de Paacuteris eacute a demora em entrar no campo de batalha esquivando-se o
quanto for possiacutevel (ldquoMas voluntaacuterio te escusas natildeo queres lutarrdquo) Mas nunca ele a
abandona completamente Essa liccedilatildeo eacute de extrema importacircncia para os futuros politḗs
guerreiros da poacutelis que aprendem a Iliacuteada e a Odisseia e fazem desse ideal de conduta
heroica seu proacuteprio ideal e tecircm como maacutexima a sentenccedila ldquohamarteicircn eikograves anthrṓpousrdquo errar
eacute humano (EURIacutePIDES Hipoacutelito v 615)
49 ldquoMuitas vezes o proacuteprio material apresentava contradiccedilotildees internas () [Paacuteris] () aparece simultaneamente como um despreziacutevel covarde e como um verdadeiro heroacuteirdquo (FINLEY 1982 p 43)
96
Destarte a Iliacuteada assim como a Odisseia configura-se num discurso de legitimaccedilatildeo
da etnicidade helecircnica aleacutem de um discurso paidecircutico Aliaacutes eacute atraveacutes da paideiacutea que essa
ideologia seraacute passada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ateacute chegar ao ponto de formar os kaloigrave
kagathoiacute aqueles bem-nascidos que viratildeo a governar a poacutelis e a vencer os jogos helecircnicos
como atletas Ateacute mesmo durante a Idade Meacutedia essas epopeias foram revisitadas e passaram
muito tempo sem serem estudadas e questionadas segundo Carlier pelo seu caraacuteter de texto
religioso Esse autor afirma que esse movimento de estudo das obras homeacutericas poderia ser
um convite ao questionamento da Biacuteblia que tambeacutem eacute um texto religioso e de funccedilatildeo
modelar (no entanto inserido em uma outra eacutetica diferente da sociedade de Homero)
(CARLIER 2008 p 13)
Alguns autores como Robert Aubreton e Richard B Rutherford defendem que a
Iliacuteada demonstra preferecircncia pelos troianos Os argumentos giram em torno de trecircs questotildees
praticamente a) a representaccedilatildeo familiar do lado troiano e de toda a ldquosensibilidaderdquo daiacute
oriunda (como a cena entre Heitor e Androcircmaca ou de Heacutecuba e Heitor) b) o fato dos
troianos ganharem a maioria das batalhas e c) a Iliacuteada terminar com os funerais de Heitor
configurando-o pois como o grande heroacutei dessa epopeia
Haacute problemas nesses argumentos a ldquocidaderdquo grega eacute improvisada enquanto a troiana
eacute a ldquocidaderdquo de fato (MACKIE 1996 p 1) Isso se daacute porque os gregos satildeo os invasores e os
troianos satildeo os invadidos As esposas pais filhos pequenos dos gregos ficaram em seus
palaacutecios quem vai agrave guerra eacute o anḗr Assim eacute inviaacutevel entre os gregos cenas relativas ao
oicirckos ao domiciacutelio
Os troianos ganham a maioria das batalhas porque assim quis um grego Aquiles pede
para sua matildee a deusa Teacutetis que interceda junto a Zeus para fazer com que os troianos
ganhassem todas as batalhas a fim de mostrar a Agamemnon o quanto ele fazia falta
Lembremo-nos de que o primeiro Canto da Iliacuteada trata justamente da rixa que apartou
Aquiles da guerra e que a proacutepria narrativa dessa epopeia diz respeito agrave ira desse heroacutei e das
suas consequecircncias
O funeral de Heitor encerra a Iliacuteada o de Aquiles contudo nem aparece nela Seria
um indicativo de que aquele heroacutei eacute mais importante do que este e que sua morte seria o
grande final do poema O problema eacute que a Iliacuteada natildeo era cantada num dia inteiro para o
puacuteblico primeiro porque sua reacutecita natildeo demoraria soacute um dia visto que ela tem 15693 versos
segundo porque esse poema era cantado em episoacutedios nas competiccedilotildees e nos banquetes
Assim podia se cantar soacute o episoacutedio da luta entre Menelau e Paacuteris ou soacute o episoacutedio em que
97
Helena descreve os guerreiros aqueus ou soacute o episoacutedio em que Paacuteris atira em Diomedes e ele
o rechaccedila e assim por diante Nem mesmo a divisatildeo em Cantos como conhecemos havia
sido feita somente os saacutebios alexandrinos fariam isso muitos seacuteculos depois da cristalizaccedilatildeo
do poema na escrita Desse modo natildeo podemos pensar os funerais de Heitor como o grande
fim da reacutecita era o grande fim desse episoacutedio Natildeo haacute o famigerado the end cinematograacutefico
na Iliacuteada
Tambeacutem existem as consideraccedilotildees acerca da bela morte por Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo que exploramos em nosso trabalho O que importa eacute o que o heroacutei faz em vida sua
morte eacute o fim de suas faccedilanhas incluindo o matar Por isso que Aquiles natildeo precisa morrer no
poema para ter seu valor corroborado O que corrobora o valor de Aquiles na Iliacuteada pode ser
justamente o funeral de Heitor assim como este seria honrado e rememorado pela morte do
guerreiro homenageado (VII vv 81-91) Aquiles o seraacute pela morte de Heitor Comparando
hipoteticamente se Aquiles viesse a morrer na Iliacuteada o valor de Paacuteris seu assassino seria
corroborado E Homero natildeo queria mostrar isso Paacuteris embora exemplo ainda eacute um
transgressor das leis da xeacutenia valor caro aos helenos e a todos os habitantes do Mediterracircneo
(VLASSOPOULOS 2013 p 90) e causador de uma guerra que fez perecer uma geraccedilatildeo de
hemiacutetheoi semideuses (os heroacuteis)
Em virtude do apresentado nesse capiacutetulo pudemos ver que os heroacuteis embora
partilhem aspectos em comum de sua categoria natildeo se constituem de uma massa indistinta
homogeneamente constituiacuteda cada heroacutei tem a sua peculiaridade A de Agamecircmnon eacute a sua
lideranccedila a de Odisseu sua meacutetis a de Aacutejax sua forccedila fiacutesica e a de Paacuteris sua beleza Homero
consegue construir personagens diferentes que natildeo agem da mesma maneira embora sejam
arautos de um mesmo coacutedigo de conduta
Entretanto embora sejam regidos por esse ideal de conduta os troianos satildeo diferentes
dos aqueus o uso que eles fazem desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes Paacuteris mesmo eacute
um transgressor e embora tente consertar seus erros continua sendo o causador da guerra que
tanto gera sofrimento a ambos os lados Ele ainda estaacute em estado de aacutetē Por isso seu valor
beacutelico eacute diminuiacutedo como destacar algueacutem que causou uma guerra John A Scott vecirc isso
como uma inovaccedilatildeo de Homero Paacuteris seria o principal guerreiro troiano mas como
desrespeitou a xeacutenia causando a Guerra de Troia perdeu seu posto para Heitor que seria um
personagem inventado para receber todas as caracteriacutesticas as quais teriam pertencido ao
proacuteprio Paacuteris na tradiccedilatildeo miacutetica (SCOTT 1913)
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Essa ideia contudo natildeo possui argumentaccedilatildeo suficiente para comprovaccedilatildeo ateacute
mesmo porque o nome de Heitor jaacute constava nas tabuinhas de Linear B (CHADWICK 1970
p 98) Natildeo podemos ir aleacutem da documentaccedilatildeo e afirmar que esse ou aquele personagem eacute
uma criaccedilatildeo exclusiva de Homero visto que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o resultado de inuacutemeras
tradiccedilotildees orais posteriores agrave composiccedilatildeo das obras Assim como Euriacutepides reelabora os mitos
da tradiccedilatildeo eacutepica em suas trageacutedias Homero tambeacutem o faz em suas epopeias ldquoos materiais
que o poeta utiliza para recordar satildeo versaacuteteis moacuteveis feitos de foacutermulas de episoacutedios e de
um repertoacuterio de informaccedilotildees variado que pode se empregado com certa liberdade e adequado
agraves conveniecircncias poemaacuteticas e meloacutedicasrdquo (NUNtildeEZ 2011 p 239)
Eacute por essa razatildeo que os poemas homeacutericos natildeo foram os primeiros do processo
discursivo sobre o qual nos debruccedilamos sendo ldquoobras musicais [] [que] formam um todo
orgacircnico no qual poesia e muacutesica se interpenetram e intercambiam significadosrdquo (NUNtildeEZ
2011 p 239-240 ndash grifos nossos) Do mesmo modo Euriacutepides ainda estaacute longe de ser a
uacuteltima etapa desse processo a poesia eacutepica e traacutegica influencia nosso proacuteprio modo de
escrever permanecendo ainda viva na nossa memoacuteria social E assim como a poesia o heroacutei
eacute ele mesmo um todo orgacircnico (LUKAacuteCS 2000 p 66) no que diz respeito ao seu coacutedigo de
conduta mas particularizado como indiviacuteduo pois um heroacutei nunca eacute igual a outro heroacutei
Desse modo a representaccedilatildeo de Paacuteris natildeo eacute em hipoacutetese alguma a representaccedilatildeo de
um anti-heroacutei Primeiramente porque eacute anacrocircnico denomina-lo desse modo Massaud
Moiseacutes nos mostra em seu Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios que a ideia de anti-heroacutei eacute
intriacutenseca ao romance do seacuteculo XVIII Para ele ldquoo anti-heroacutei natildeo se define como a
personagem que carrega defeitos ou taras ou comete delitos e crimes mas a que possui
debilidade ou indiferenciaccedilatildeo de caraacuteter a ponto de assemelhar-se a toda genterdquo (MOISEacuteS
1999 p 29) Aleacutem disso ldquoo heroacutei eleva e amplifica as accedilotildees que pratica o anti-heroacutei as
minimiza ou rebaixardquo (MOISEacuteS 1999 p 29)
Os heroacuteis de Homero e de Euriacutepides natildeo satildeo comuns a todas as pessoas eles
representam um passado miacutetico anterior agravequeles que ouvem as epopeias e assistem agraves
representaccedilotildees teatrais Satildeo ldquoimagens limitesrdquo (ROMILLY 2013 p 31) que representam o
extremo das accedilotildees e emoccedilotildees visto que satildeo paidecircuticos O heroacutei como vimos eacute um
hemitheoacutes algueacutem acima do homem comum e inferior aos deuses pois eacute mortal como noacutes
como o puacuteblico dos poetas possuindo atitudes semelhantes (visto que satildeo humanos tambeacutem)
mas definitivamente com um estatuto diferenciado dos brotoiacute comuns Paacuteris na trageacutedia
quando personagem ainda exerce esse papel ele natildeo se torna ldquomenos heroacuteirdquo por ser um
99
douacutelos um boukoacutelos visto que essas histoacuterias acerca de Troia pertencem tambeacutem agrave mitologia
grega e a ambientaccedilatildeo em Troia tambeacutem eacute uma estrateacutegia para provocar catarse as viacutetimas da
Guerra de Troia estatildeo sendo sempre comparadas agraves viacutetimas da proacutepria Guerra do Peloponeso
Edith Hall mostra como mesmo esses displacement plots (roteiros de deslocamento)
servem para legitimar a identidade helecircnica definindo suas fronteiras eacutetnicas
Mesmo com a pluralidade eacutetnica da trageacutedia e o seu interesse em heroacuteis e comunidades espalhadas por distacircncias vastas pelo mundo conhecido o foco ateniense o ldquoatenocentrismordquo da trageacutedia eacute manifestado de muitos jeitos [] mesmo peccedilas com nenhum foco oacutebvio em Atenas incluem frequentemente um aition [sic] uma explicaccedilatildeo pelo mito das origens dos costumes atenienses [] os tragedioacutegrafos usavam comunidades outras sem ser Atenas como lugares para autodefiniccedilatildeo eacutetnica o mundo baacuterbaro frequentemente funciona na imaginaccedilatildeo traacutegica como o lar dos viacutecios (por exemplo o despotismo persa a falta de lei dos traacutecios a efeminaccedilatildeo e a covardice orientais) concebidas como correlativos agraves virtudes democraacuteticas atenienses idealizadas liberdade de fala equanimidade diante da lei e coragem masculina (HALL 1997 p 100)
O baacuterbaro eacute a mateacuteria-prima sobre a qual os gregos definem suas fronteiras eacutetnicas eacute
observando-o que eles constroem a si mesmos Claude Mosseacute corrobora esse aspecto ao
afirmar que ldquoessa alteridade do baacuterbaro entretanto natildeo eacute necessariamente negativa eacute apenas
o avesso da civilizaccedilatildeo encarnada pelo gregordquo (MOSSEacute 2004 p 55) Entretanto esse
processo de classificaccedilatildeo natildeo eacute exclusivo ao seacuteculo V aC jaacute em Homero podemos ver um
esforccedilo de definiccedilatildeo dessas fronteiras quando o poeta caracteriza os troianos (sobretudo
Paacuteris) para desenvolver uma caracterizaccedilatildeo que implica numa diferenciaccedilatildeo pautada ao
mesmo tempo na valorizaccedilatildeo do inimigo o qual natildeo pode ser inferior a fim de enaltecer a
vitoacuteria e na marcaccedilatildeo de alteridades em relaccedilatildeo a ele
100
CONCLUSAtildeO
ldquoSe partires um dia rumo a Iacutetaca faz votos de que o caminho seja longo repleto de aventuras repleto de saberrdquo
(Iacutetaca ndash Konstantinos Kavaacutefis)50
Em virtude do apresentado pudemos compreender que a anaacutelise da Iliacuteada da
Odisseia e das trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides vai aleacutem da simples tentativa de
comprovaccedilatildeo de feitos heroicos da existecircncia de uma guerra da existecircncia do proacuteprio aedo e
da correlaccedilatildeo simplista com eventos da ldquorealidade histoacutericardquo Eacute mais profiacutecuo buscar a
compreensatildeo das estruturas poliacuteticas econocircmicas sociais culturais religiosas e institucionais
da eacutepoca em que os poemas foram compostos traccedilando como os gregos conseguiram
construir e consolidar suas fronteiras eacutetnicas de forma dinacircmica
Aleacutem disso a rememoraccedilatildeo dos heroacuteis e de suas faccedilanhas eacute importante para a
configuraccedilatildeo de todo um coacutedigo de conduta helecircnico corroborando a ideia de uma funccedilatildeo
paidecircutica das obras homeacutericas e traacutegicas No tocante agrave historicidade desses heroacuteis ela estaacute
ligada por um lado ao papel que suas personalidades desempenham na vida do puacuteblico 50 Traduccedilatildeo de Joseacute Paulo Paes Disponiacutevel em httpwwworg2combrkavafishtm
101
helecircnico ndash que os rememoram e os cultuam ndash e por outro agrave ligaccedilatildeo inextricaacutevel entre o autor
que compocircs os textos e o seu contexto histoacuterico fazendo com que a trama e os heroacuteis sejam
constituiacutedos com base na proacutepria sociedade na qual eles vivem e conhecem
Lembremo-nos de que a Iliacuteada por ter sido composta posteriormente diz respeito
mais as caracteriacutesticas deste periacuteodo do que do periacuteodo no qual se travou a guerra de Troia a
eacutepoca palaciana No contexto da poacutelis as caracteriacutesticas caras agrave personalidade de Paacuteris natildeo
seratildeo preteridas na paideiacutea Pelo contraacuterio Aristoacuteteles no seacuteculo IV dedica um espaccedilo em
sua Poliacutetica a consideraccedilotildees sobre o ensino da muacutesica e da ginaacutestica a qual objetiva dentre
outras coisas a manter o equiliacutebrio fiacutesico do cidadatildeo
No tocante ao nosso objeto principal Paacuteris concluiacutemos que ele como personagem da
Iliacuteada desempenha um modelo de como agir para os ouvintes da epopeia Isso se daacute porque
ele demonstra atitudes condizentes com a de um heroacutei ou seja o protagonista desses poemas
de exaltaccedilatildeo das faccedilanhas desses seres extraordinaacuterios que viveram numa eacutepoca precedente agrave
eacutepoca dos simples humanos que vivem agrave sombra desse passado glorioso
Devemos ter em mente que Paacuteris mesmo natildeo demonstrando muita destreza na guerra
natildeo deixa de ser um heroacutei ele possui essas caracteriacutesticas intriacutensecas a eles Heitor ao mesmo
tempo que o chama de covarde no Canto III iraacute reconhecer que ele possui coragem no Canto
VI como jaacute vimos em uma citaccedilatildeo anterior Quando Paacuteris comete um ato indecoroso procura
corrigi-lo a fim de reaver a sua honra assim acontece quando ele retorna para combater com
Menelau e retorna agrave guerra no Canto VI Paacuteris tambeacutem tem a sua bela morte seja falecendo
no campo de batalha seja matando
A Iliacuteada como influenciadora do discurso traacutegico mostra um heroacutei humano e
portanto em sua singularidade e em sua relaccedilatildeo com a sociedade na qual ele estaacute inserido
Essa sociedade o reconhece como um aacuteristos um melhor aquele que deve liderar contudo
para isso ele deve demonstrar pelas suas atitudes que eacute digno de seu posto deve zelar para
que sua timḗ sua honra natildeo seja manchada atraveacutes de accedilotildees que ponham em xeque sua aretḗ
sua virtude causando a neacutemesis da sociedade e seu proacuteprio aidṓs
Um heroacutei pode fraquejar tremer sentir medo mas este natildeo deve sobrepujar o iacutempeto
de ficar e lutar Quando ocorre a fuga o retrocesso este deve ser corrigido a fim de que se
restaure a timḗ e de que aquele que fugiu natildeo seja alvo da neacutemesis dos seus iacutesoi Eacute isso o que
acontece com Paacuteris que eacute muito mais do que uma simples ldquocontradiccedilatildeo da epopeiardquo ora ele
se mostra corajoso ora ele se mostra temente pois eacute a representaccedilatildeo de um ser humano Ele
102
recua e retorna agrave batalha configurando-se num exemplo de como se agir mas de fato ele eacute
representado de uma maneira diferente e singular pelo poeta
Isso se daacute devido agrave problemaacutetica da alteridade da qual tratamos no capiacutetulo sobre
Homero Paacuteris seraacute representado como um modelo de conduta mas tambeacutem como um
estereoacutetipo do Outro Inuacutemeros heroacuteis aqueus poderiam servir para expressar esse movimento
de fugaretorno mas um heroacutei troiano eacute escolhido Aliaacutes a maioria dos heroacuteis que fogem na
Iliacuteada eacute troiana O caso de Paacuteris se configura num problema de alteridade interna tanto por
ele ser o inimigo na guerra (o troiano) quanto por ser o transgressor de normas inclusive
universais (no caso a xeacutenia ou seja a hospitalidade)
Este modo de caracterizar Paacuteris ao longo do tempo vai cada vez mais sobrepujar-se agrave
sua representaccedilatildeo como um kalograves kagathoacutes helecircnico e gradativamente esse personagem
deixaraacute de ser o theoeidḗs para ser o baacuterbaros sobretudo na trageacutedia Mas essa questatildeo natildeo
diz mais respeito ao nosso trabalho aqui desenvolvido em torno da Iliacuteada um poema
composto cerca de trecircs seacuteculos antes desse gecircnero teatral ser cristalizado culturalmente nas
poacuteleis Em Euriacutepides o heroacutei natildeo perde uma dimensatildeo paidecircutica mas estaacute mais ligado agrave
ideia do erro o heroacutei erra e aprendemos com esses erros Paacuteris natildeo deixa de ser um heroacutei pois
pertence agrave tradiccedilatildeo miacutetica mas se torna na trageacutedia de uma vez por todas o baacuterbaro
Tivemos por objetivo com essa dissertaccedilatildeo analisar a representaccedilatildeo de Paacuteris na eacutepica
homeacuterica e nas trageacutedias de Euriacutepides perscrutando as mudanccedilas sociais e culturais que estatildeo
presentes nos textos literaacuterios Defendemos que a Iliacuteada jaacute traz a ideia de
identidadealteridade helecircnica mostrando um discurso eacutetnico que legitima a centralidade
aqueia em detrimento da troiana e como essa diferenciaccedilatildeo influencia na construccedilatildeo do
baacuterbaro na poesia traacutegica Tambeacutem mostramos como a epopeia e a trageacutedia pertencem a um
mesmo espaccedilo discursivo tornando profiacutecua a nossa anaacutelise e utilizando a Anaacutelise de
Discurso francesa para tal
Acreditamos que essa diferenciaccedilatildeo entre gregos e troianos em Homero natildeo diz
respeito a uma diferenciaccedilatildeo entre o grego e o baacuterbaro ou entre o grego e o estrangeiro mas
entre dois grupos eacutetnicos um que estaacute no Peloponeso e outro que se encontra na Aacutesia Menor
reapropriando o coacutedigo de conduta grego e estabelecendo contatos com culturas natildeo-
helecircnicas Mas historicamente satildeo os troianos gregos
Natildeo podemos afirmar com certeza absoluta Primeiramente porque as datas satildeo
fluidas convenciona-se atraveacutes de estudos arqueoloacutegicos e filoloacutegicos que Homero compotildee
no seacuteculo VIII aC Convenciona-se que a Guerra de Troia aconteceu no seacuteculo XIII aC
103
Aleacutem disso lidamos com um problema caro agrave Histoacuteria Antiga documentaccedilatildeo Ela eacute escassa e
nas escavaccedilotildees poucos materiais escritos foram encontrados Achou-se um selo com
hieroacuteglifos luvitas no siacutetio arqueoloacutegico de Hissarlik (antiga Troia hoje na Turquia) o qual
data provavelmente do segundo milecircnio antes de Cristo entretanto como podemos ter certeza
de que ele foi produzido laacute Sendo um noacute comercial importante vizinha do Helesponto o que
garante que aquele selo natildeo foi parar em Troia atraveacutes de comerciantes
Segundo o hititologista holandecircs Alwin Kloekhorst a hipoacutetese luvita (que se destacou
em 1995) vem sendo bastante questionada e ele defende que eacute mais provaacutevel que a liacutengua
falada em Troia nessa eacutepoca fosse o lecircmnio oriundo da regiatildeo de Lemnos e que deu origem
ao etrusco Ele tambeacutem mostra que Troia na eacutepoca da guerra provavelmente natildeo era grega
Trūiša (uma regiatildeo de Wilǔsa que seria Troia) estava sob domiacutenio hitita embora haja
evidecircncias de embates entre os ahhiyawa (aqueus) e esse povo pelo domiacutenio da regiatildeo na
eacutepoca Contudo a partir do seacuteculo VIII aC (quando Homero compotildee seus poemas e os
gregos entram em processo de ldquocolonizaccedilatildeordquo) provavelmente havia ldquoGreek-speakersrdquo na
regiatildeo onde fora Troia (KLOEKHORST 2013 p 48) Ela era parte das apoikiacuteai (ldquocolocircniasrdquo
gregas)51 O historiador americano Barry Strauss corrobora a ideia de Kloekhorst afirmando
que Troia era uma cidade grega desde 750 aC quando foi povoada por colonos gregos e
assim se manteve durante toda a Antiguidade (STRAUSS 2008 p 28)
Desse modo o mundo das apoikiacuteai seria diretamente influenciado pela cultura e liacutengua
gregas Vlassopoulos coloca que essas ldquocolocircniasrdquo eram loci privilegiados tanto de trocas
culturais entre gregos e outros povos bem como paradoxalmente ajudaram a consolidar um
modelo forte do que eacute ser grego
o processo de criar apoikiacuteai fizeram o modelo de uma comunidade grega se tornar abstrato e canocircnico uma comunidade com um corpo de cidadatildeos divididos entre tribos governado por magistrados conselhos e assembleia equipado com um tipo particular de espaccedilo puacuteblico (agoraacute) e adornado com um tipo particular de templo e edifiacutecio puacuteblico (teatro casa concelhia ginaacutesio) (VLASSOPOULOS 2013 p 277)
Os troianos satildeo um grupo eacutetnico dentro da comunidade helecircnica no discurso de Homero
tendo em Paacuteris a siacutentese de alteridade visto que ele desrespeita coacutedigos helecircnicos Muitas das
caracteriacutesticas desse personagem satildeo reapropriados por Euriacutepides para caracterizar o baacuterbaro
(inclusive ele mesmo que jaacute seraacute denominado baacuterbaros em suas trageacutedias) Dentre esses
51 Kostas Vlassopoulos explica que natildeo eacute apropriado atribuir o conceito de ldquocolocircniardquo aos movimentos expansionistas gregos do seacuteculo VIII pois a ldquocolonizaccedilatildeordquo grega eacute completamente diferente da colonizaccedilatildeo moderna (2013 p 103)
104
pontos de diferenciaccedilatildeo estatildeo a predominacircncia do arco como arma de guerra a capacidade de
se submeter o exeacutercito inimigo (como pudemos ver com a anaacutelise dos siacutemiles de animais mas
sem deixar de valorizar esse inimigo para a vitoacuteria ser gloriosa) o excesso de ouro a
expressatildeo verbo-corporal (discurso defensivo e dissuasivo o esconder-se o jactar-se) as
vestimentas o excesso de medo a lida com as artes musicais a luxuacuteria a efeminaccedilatildeo (do
aliado caacuterio) a suacuteplica pela vida e a procrastinaccedilatildeo para entrar em batalha
Euriacutepides por sua vez explora ao maacuteximo esses elementos e os troianos jaacute se encontram
completamente frigianizados ligados agrave Aacutesia e sendo mostrado como baacuterbaros Os gregos que
agem como baacuterbaros satildeo comparados aos troianos bem como eles estatildeo sempre sendo
designados desse modo Assim tambeacutem a proacutepria fronteira do que eacute baacuterbaro e do que eacute grego
encontra-se cada vez mais turva haacute uma crise nessa definiccedilatildeo e o grego em Euriacutepides pode
barbarizar-se facilmente visto que estaacute em meio a uma guerra
A produccedilatildeo historiograacutefica acerca da etnicidade helecircnica tem sido cada vez mais
comum e esperamos que nossa pesquisa contribua para essa discussatildeo Esperamos ademais
que ela contribua para as anaacutelises acerca dos poemas homeacutericos e das trageacutedias de Euriacutepides
que tecircm sido cada vez menos comuns Com essa dissertaccedilatildeo objetivamos tambeacutem fomentar
o interesse pelo tema e novas pesquisas acerca dessa temaacutetica Cremos ser muito importante o
estudo da literatura grega porque ela foi o norte da sociedade helecircnica e reverbera ateacute os dias
de hoje seja em produccedilotildees fiacutelmicas ou na literatura
A funcionalidade paidecircutica dos textos que estudamos contribui para tal movimento
bem como a proacutepria importacircncia desse legado cultural oriundo dos gregos o qual tambeacutem se
faz sentir ateacute hoje no modo de pensar de construir de escrever Pudemos ver com a anaacutelise
de Paacuteris como o autor da Iliacuteada trabalha com a ideia do heroacutei e como atraveacutes de sua
representaccedilatildeo ele define as fronteiras eacutetnicas que perpassam essa paideiacutea a qual estaacute presente
tambeacutem nas trageacutedias de Euriacutepides que corroboram e reapropriam esses elementos de
diferenciaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo dos personagens sobretudo de Paacuteris o baacuterbaro
Outrora a Greacutecia possuiacutea uma grande extensatildeo territorial e sua importacircncia poliacutetica
econocircmica e cultural era grosso modo e com fins assimilativos tatildeo grande quanto a da
Inglaterra a partir da Primeira Revoluccedilatildeo Industrial e a dos Estados Unidos depois da Segunda
Guerra Mundial Hoje o pequeno paiacutes europeu que aparece nos jornais diariamente devido a
um periacuteodo de crise e necessidade ainda exerce uma influecircncia muito grande no que diz
respeito a esse legado que permanece de peacute A cultura helecircnica e o estudo acerca desta ainda
natildeo estatildeo em vistas de entrar em crise
105
Anexo | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO
LETRA GREGA TRANSLITERACcedilAtildeO
αααα a
ᾳᾳᾳᾳ a
ββββ b
γγγγ g
δδδδ d
εεεε e
ζζζζ z
ηηηη ē
ῆῆῆῆ ecirc
ῃῃῃῃ ē
θθθθ th
106
ιιιι i
κκκκ k
λλλλ l
micromicromicromicro m
νννν n
ξξξξ x
οοοο o
ππππ p
ρρρρ r
ῥῥῥῥ rh
σ ςσ ςσ ςσ ς s
ττττ t
υυυυ y (entre consoantes) u (em ditongos)
φφφφ ph
χχχχ kh
ψψψψ ps
ωωωω ō
ῶῶῶῶ ocirc
ῳῳῳῳ ō
Observaccedilatildeo sobre os espiacuteritos o grego antigo possui uma marcaccedilatildeo especiacutefica denominada espiacuterito Ele vem sobre todas as vogais o rocirc (ρ) inicial e as semivogais dos ditongos que iniciarem a palavra O espiacuterito pode ser fraco ou forte quando ele eacute fraco (rsquo) a vogal se pronuncia normalmente e quando ele eacute forte (lsquo) a vogal eacute pronunciada de modo aspirado como se estivesse sendo acompanhada por um erre (r) O rocirc do iniacutecio das palavras sempre teraacute espiacuterito forte visto que ele jaacute eacute aspirado conforme estaacute na tabela Quando transliteradas as palavras com espiacuterito forte possuem um agaacute (h) na frente Assim por exemplo a palavra
107
οὐρανός (ceacuteu) eacute transliterada como ouranoacutes ἁmicroαρτία (falha) como hamartiacutea ῥῶ (a letra grega ρ) como rhocirc com o agaacute entre o erre e a proacutexima letra
Observaccedilatildeo sobre os conjuntos γγ γκ e γχ quando aparecem essas consoantes juntas o primeiro gama eacute transliterado como ene (n) pois ele se nasaliza Assim por exemplo ἀγγελος (mensageiro) eacute transliterada como aacutengelos ἀναγκαία (necessidade) como anankaiacutea ἐγχανδής (amplo) como enkhandḗs
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE FILOSOFIA E CIEcircNCIAS HUMANAS INSTITUTO DE HISTOacuteRIA PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM HISTOacuteRIA COMPARADA
Paacuteris Eacutepico Paacuteris Traacutegico
Um estudo comparado da etnicidade helecircnica entre Homero e
Euriacutepides (seacuteculos VIII e V aC)
Renata Cardoso de Sousa
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Histoacuteria Comparada do Instituto de Histoacuteria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC-UFRJ) como requisito parcial para a obtenccedilatildeo do grau de mestre
__________________________________________________________
Prof Dr Faacutebio de Souza Lessa (orientador)
__________________________________________________________
Prof Dr Alexandre Santos de Moraes
__________________________________________________________
Profordf Drordf Regina Maria da Cunha Bustamante
Rio de Janeiro
setembro de 2014
3
4
Agradecimentos
Repito em minha dissertaccedilatildeo as mesmas palavras que coloquei em minha monografia
se eu agradecesse aqui a todas as pessoas que me ajudaram a chegar onde estou hoje soacute os
agradecimentos teriam o tamanho do Le grand Bailly Assim vocecirc que sabe que participou
da minha vida e natildeo estaacute aqui natildeo se sinta excluiacutedo eu tenho a consciecircncia de que vocecirc
participou dela
Devo essa dissertaccedilatildeo primeiramente ao meu orientador Faacutebio de Souza Lessa que
acreditou em mim desde o 3ordm periacuteodo da graduaccedilatildeo quando me perguntou se eu queria ser
bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica sem nem saber o que eu queria estudar
Agradeccedilo tambeacutem aos leitores do meu projeto de pesquisa na qualificaccedilatildeo e da minha
dissertaccedilatildeo a Prof Drordf Regina Maria da Cunha Bustamante e o Prof Dr Alexandre Santos
de Moraes que deram contribuiccedilotildees preciosiacutessimas para o desfecho dela
Tambeacutem foram importantes aqueles que leram meu projeto no momento em que entrei
no Mestrado e ajudaram-me a repensar alguns pontos fulcrais dele Leila Rodrigues da Silva
Wagner Pinheiro Pereira Silvio de Almeida Carvalho Filho Andreacute Leonardo Chevitarese e
Vantuil Pereira Ao professor Joseacute DrsquoAssunccedilatildeo Barros que me ajudou a amadurecer minhas
perspectivas teoacuterico-metodoloacutegicas e a ver outras possibilidades dentro do meu proacuteprio
trabalho
Deixo meu agradecimento tambeacutem aos amigos e amigas colegas de academia ou natildeo
que sempre estiveram comigo nessa minha jornada histoacuterica (literalmente) e que aturaram o
Paacuteris ateacute o fim Bruna Moraes da Silva Danielle Vasconcellos Jeacutessica Gomes Jessyca
Rezende Beatriz Vasconcellos Joselita de Queiroz Nascimento Michelle Moreira Gonccedilalves
de Oliveira e Edson Moreira Guimaratildees Neto
Agraves professoras de Grego (Aacutetico e Moderno) Tatiana Maria Gandelman de Freitas e
Luciacutelia Brandatildeo Se eu consegui ler um artigo em grego se eu consegui ler alguma coisa da
Iliacuteada na liacutengua original ou se consegui escrever esta pequenina frase foi graccedilas a elas Agrave
professora Carole Anaiumls que com sua paciecircncia infinita conseguiu fazer com que em dois
anos eu conseguisse ter domiacutenio suficiente do francecircs para conseguir ler minha bibliografia
Aos meus professores de Graduaccedilatildeo e Ensino Fundamental e Meacutedio soacute sou o que sou
hoje devido agrave educaccedilatildeo que tive nos coleacutegios e na Universidade Agradeccedilo sobretudo aos
meus professores de Histoacuteria e especialmente agrave Queila nunca vou esquecer do primeiro dia
5
de aula de Histoacuteria da antiga 5ordf seacuterie quando ela pediu que escrevecircssemos na primeira paacutegina
do caderno ldquoHISTOacuteRIA Eacute VIDArdquo
Agrave todos os meus familiares que estiveram colados comigo nessa empreitada sobretudo
minha matildee (Eliane) irmatilde (Roberta) avoacute (Carmelita) e prima (Sylvia) por sempre me
incentivarem a continuar nessa carreira
E por uacuteltimo mas natildeo menos importante aos ldquoHomerosrdquo que compuseram a Iliacuteada e
a Odisseia e a Euriacutepides sem eles que aiacute mesmo natildeo haveria dissertaccedilatildeo alguma
6
Resumo
Pretendemos analisar de forma comparada a representaccedilatildeo de Paacuteris heroacutei cujo ato e
aacutetē (perdiccedilatildeo) causaram a Guerra de Troia (c 1250-1240 aC) na Iliacuteada de Homero e nas
trageacutedias Alexandre (fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia
em Aacuteulis e Orestes de Euriacutepides de modo a compreender quais satildeo e como se
desenvolveram as fronteiras eacutetnicas helecircnicas Utilizaremos para a anaacutelise desse processo
histoacuterico-discursivo a metodologia comparada de Marcel Detienne expressa em sua obra
Comparar o Incomparaacutevel e para a anaacutelise do nosso corpus documental a Anaacutelise de
Discurso Francesa presente nas obras teoacutericas de Eni P Orlandi Dominique Maingueneau e
Pierre Charaudeau
Palavras-chave Histoacuteria Comparada Anaacutelise de Discurso Homero Euriacutepides etnicidade
7
Abstract
We aim to analyze on a comparative basis the representation of Paris hero whose act
and aacutetē (perdition) caused the Trojan War (c 1250-1240 bC) in Homerrsquos Iliad and in
Euripidesrsquo tragedies Alexander (fragmentary) Andromache Trojan Women Hecuba
Helen Iphigenia in Aulis and Orestes in order to understand which are the hellenic ethnic
boundaries and how it has been developed We will use to analyze this historic-discursive
process the comparitive methodology of Marcel Detienne expressed in his Comparing the
incomparable and to analyze our corpus the French Discourse Analysis present in Eni P
Orlandi Dominique Maingueneau and Pierre Charaudeaursquos theoretical works
Keywords Comparative History Dicourse Analysis Homer Euripides ethnicity
8
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 09
CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE COMPOSICcedilAtildeO -------------p 24
CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES ----------------------------------------------------p 50
CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI ----------------------------------------------------------------------p 76
CONCLUSAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 100
ANEXO | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO --------------------------------------------------------p 105
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS ------------------------------------------------------------------p 107
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL --------------------------------------------------------------p 107
DICIONAacuteRIOS E GRAMAacuteTICAS ------------------------------------------------------------p 108
BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------p 109
9
INTRODUCcedilAtildeO | TEMA PROBLEMAS METODOLOGIAS
ldquoO conhecimento revisitado das tradiccedilotildees da histoacuteria e literatura da Guineacute-Bissau poderaacute funcionar dessa forma como um
Outro que nos complementa ajudando-nos a revisitar ateacute mesmo a imagem que fazemos de noacutes proacutepriosrdquo
(SECCO 2007 p 16-17)
Vivemos em um mundo plural e por isso nos embatemos frequentemente com Outros
que natildeo necessariamente habitam um paiacutes distante o diferente mora ao nosso lado convive
conosco porque dentro de uma mesma sociedade eacute possiacutevel estabelecer uma relaccedilatildeo de
alteridade A cada dia que esbarramos com algueacutem que partilha de costumes e ideias
diferentes das nossas nos modificamos tambeacutem eacute como na metaacutefora de bolas de bilhar de
Norbert Elias (1994 p 29) pois quando nos relacionamos com as pessoas conversamos com
elas nunca permanecemos iguais fazendo com que sempre estejamos modificando nossos
limites de aceitaccedilatildeorejeiccedilatildeo nossas fronteiras de convivecircncia
Natildeo era diferente na Antiguidade e em nossa epiacutegrafe poderiacuteamos muito bem
substituir ldquoGuineacute-Bissaurdquo por ldquoGreacutecia Antigardquo afinal estamos lidando com pessoas Eacute o
homem que constroacutei suas proacuteprias leis bem como eacute ele quem faz a histoacuteria vivendo-a Agrave
medida que o homem vive ele deixa indiacutecios de sua vivecircncia Satildeo dessas ldquopistasrdquo desses
ldquorastrosrdquo que noacutes historiadores podemos estudar as sociedades do passado No presente
estudo se debruccedila sobre um indiacutecio que ateacute pouco tempo era desconsiderado pela Histoacuteria
como documentaccedilatildeo a literatura
Objetivamos natildeo somente analisar os textos que compotildeem nosso corpus mas coloca-
los em comparaccedilatildeo Cremos que a Iliacuteada de Homero (VIII aC) e as trageacutedias Alexandre
(fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes
(seacuteculo V aC) natildeo satildeo apenas produto de uma sociedade mas que as epopeias influenciaram
na construccedilatildeo da sociedade na qual eram encenadas as trageacutedias bem como as trageacutedias e as
proacuteprias epopeias influenciaram na construccedilatildeo de suas proacuteprias sociedades
Para estabelecer essa comparaccedilatildeo escolhemos como norte o antropoacutelogo Marcel
Detienne que em seu livro Comparar o incomparaacutevel lanccedilou uma seacuterie de conceitos-chave
e procedimentos para trabalhar com as comparaccedilotildees temporais eou espaciais A comparaccedilatildeo
eacute algo intriacutenseco ao ser humano Contudo fazer uma comparaccedilatildeo e fazer Histoacuteria Comparada
10
eacute bem diferente eacute a partir dos anos 1920 com as obras de Marc Bloch que a Histoacuteria
Comparada vai tomando forma O objetivo dela para Bloch eacute ressaltar diferenccedilas e
semelhanccedilas em processos histoacutericos distintos tomando como base preferencialmente duas
sociedades contiacuteguas (BLOCH 1998 p 122-123) No Brasil eacute em fins da deacutecada de 1970
que esse meacutetodo comparativo eacute evidenciado Ciro Flamarion Cardoso e Heacutector Peacuterez Brignoli
chamam a atenccedilatildeo para a sua importacircncia nos estudos historiograacuteficos ressaltando ainda que
natildeo se trata de uma mera catalogaccedilatildeo de diferenccedilas e semelhanccedilas mas de busca de
peculiaridades (CARDOSO PEacuteREZ BRIGNOLI 1983 p 418)
Entretanto no iniacutecio do seacuteculo a Histoacuteria Comparada sofre uma crise com o crescente
destaque dado agrave Histoacuteria Cruzada o historiador Juumlrgen Kocka coloca que ambas devem se
relacionar que meacutetodo comparativo deve ser associado agrave histoire croisseacutee (KOCKA 2003 p
44) mas Michael Werner e Beacuteneacutedicte Zimmerman jaacute veem a Histoacuteria Comparada como algo
problemaacutetico em seu artigo Beyond comparison histoire croiseacutee and the chalenge of
reflexivity eles definem um meacutetodo de Histoacuteria Cruzada e mostram razotildees pelas quais a
Histoacuteria Comparada natildeo seria uma metodologia tatildeo adequada pois seu uso eacute binaacuterio
(semelhanccedilasdiferenccedilas) (WERNER ZIMMERMANN 2006 p 33)
Eacute no bojo dessas discussotildees que surge a proposta de Marcel Detienne ele critica a
ideia de que soacute se pode comparar sociedades contiacuteguas ressaltando a ideia de que se pode
ldquocomparar o incomparaacutevelrdquo pois as sociedades espalhadas pelo mundo embora plurais
compartilham algumas instituiccedilotildees (DETIENNE 2004 p 10 e 47) o casamento a fundaccedilatildeo
a morte etc Embora Detienne seja aacutecido em suas criacuteticas visto que Marc Bloch natildeo excluiacutea a
possibilidade de comparar sociedades distantes no tempo e no espaccedilo (BLOCH 1998 p
121) eacute ele que melhor define um meacutetodo comparativo fechado e por isso escolhemo-lo como
norte teoacuterico
Assim partindo de uma categoria1 (etnicidade) definimos como comparaacutevel2 a
representaccedilatildeo de Paacuteris tanto na epopeia homeacuterica quanto nas trageacutedias de Euriacutepides Essas
representaccedilotildees seratildeo devidamente analisadas em sua intrinsecidade atraveacutes da Anaacutelise de
Discursos cabendo a noacutes pesquisadores de Histoacuteria Comparada colocar essas experiecircncias
variadas lado a lado para contrastaacute-las eou aproximaacute-las Temos em mente que o meacutetodo eacute
um caminho e o objeto o qual pretendemos construir eacute que orienta a escolha dele
1 A categoria eacute um ldquotraccedilo significativo uma atitude mentalrdquo que faz parte de ldquoum conjunto uma configuraccedilatildeordquo (DETIENNE 2004 p 57) 2 Os comparaacuteveis satildeo ldquomecanismos de pensamento observaacuteveis nas articulaccedilotildees entre os elementos arranjados conforme a entrada lsquofigura inaugural que vem de forarsquo lsquonatildeo-iniacuteciorsquo ou outras [] satildeo orientaccedilotildees essas relaccedilotildees em cadeia essas escolhasrdquo (DETIENNE 2004 p 57-58)
11
(ANDRADE 1998 p 38) e visto que queremos estudar um processo ideoloacutegico de definiccedilatildeo
de fronteiras eacutetnicas que tem como recorte temporalidades distintas a metodologia
comparativa de Detienne encaixou-se adequadamente
Para ler nosso corpus documental adotamos como metodologia de leitura analiacutetica a
proposta por Eni Puccinelli Orlandi em seu livro Anaacutelise de Discurso Princiacutepios amp
Procedimentos Identificamo-nos com a Anaacutelise de Discurso francesa3 por dois motivos pela
natureza do nosso corpus e pela proposta soacutecio-histoacuterica desse meacutetodo Nossa documentaccedilatildeo
eacute formada por textos cada um deles eacute a unidade analiacutetica do discurso entendido como um
processo em curso (ORLANDI 2012 p 39) Assim tomamos o discurso de Homero e o
discurso de Euriacutepides como partes de um processo discursivo mais amplo
A Anaacutelise de Discurso trata de um sistema que envolve natildeo apenas o discurso em si
mas a relaccedilatildeo entre liacutengua ideologia e histoacuteria tendo em vista a produccedilatildeo de sentidos O
processo discursivo implica no perpasso da ideologia4 pelo discurso eacute ela que produz sentido
pois ldquose materializa na linguagemrdquo (ORLANDI 2012 p 96) A linguagem por sua vez ldquoeacute
linguagem porque faz sentido E [] soacute faz sentido porque se inscreve na histoacuteriardquo
(ORLANDI 2012 p 25 ndash grifos nossos) A histoacuteria eacute o sentido visto que o sujeito do
discurso ldquose faz (se significa) napela histoacuteriardquo (ORLANDI 2012 p 95)
A fim de chegarmos agrave compreensatildeo desse processo discursivo eacute necessaacuterio cumprir trecircs
etapas a partir da dessuperficializaccedilatildeo5 da superfiacutecie linguiacutestica (corpus documental)
selecionado (a) obtemos o objeto discursivo (b) que se transforma em processo discursivo
(c) ao chegarmos na formaccedilatildeo ideoloacutegica daquele objeto
(a) (b) (c)
3 A AD francesa eacute diferente da AD anglo-saxatilde enquanto aquela eacute oriunda da linguiacutestica e privilegia discursos escritos esta vem da antropologia e trabalha mais com discursos orais Aleacutem disso a francesa destaca os mais propoacutesitos textuais e a inglesa os comunicacionais (MAINGUENEAU 1997 p 16) 4 Defendemos que a ideologia em Homero eacute a proacutepria paideiacutea ldquoPor ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacuteticardquo (LESSA 2010 p 22) 5 O processo de dessuperficializaccedilatildeo consiste na ldquoanaacutelise do que chamamos materialidade linguiacutestica o como se diz o quem diz em que circunstacircncias etcrdquo (ORLANDI 2012 p 65)
dessuperficializaccedilatildeo
CORPUS
DOCUMENTAL
OBJETO
DISCURSIVO
PROCESSO
DISCURSIVO ideologia
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A Guerra de Troia (1250-1240 aC) eacute um dos eventos da Antiguidade Grega mais
relembrados por noacutes hoje em dia Enquanto para noacutes essas histoacuterias satildeo mitos natildeo existiram
de verdade para os gregos ela existiram de fato O passado que se reapropriava era um
passado veriacutedico de um tempo preteacuterito e a sua funccedilatildeo era extremamente didaacutetica com os
heroacuteis de outrora se aprendia a ser um verdadeiro homem Homero ou Euriacutepides ao
comporem seus textos natildeo questionavam a materialidade histoacuterica desses personagens e
mesmo Tuciacutedides um historiador utilizava a memoacuteria desses heroacuteis do passado em sua
Histoacuteria da Guerra do Peloponeso como se eles tivessem existido
Paacuteris Helena Heitor Menelau podem natildeo ter sido de ldquocarne e ossordquo mas
permanecem no nosso imaginaacuterio muitos filmes seacuteries de televisatildeo e mesmo livros de ficccedilatildeo
satildeo escritos tendo os mitos gregos como pano de fundo Essa reapropriaccedilatildeo do material miacutetico
natildeo eacute contudo exclusividade do mundo contemporacircneo tragedioacutegrafos e poetas dos periacuteodos
arcaico claacutessico e heleniacutestico tambeacutem manejavam esses mitos para compor suas proacuteprias
histoacuterias Do mesmo modo que podiam modificar as histoacuterias modificavam tambeacutem o caraacuteter
dos personagens
A imagem de Paacuteris como um completo covarde estaacute arraigada em nosso imaginaacuterio
Se tivermos em mente o desempenho de Paacuteris no Canto III da Iliacuteada essa ideia parece ser
bem apropriada (HOMERO Iliacuteada III vv 21-37) Tal episoacutedio nos chamou a atenccedilatildeo o
heroacutei foge (algo que ele natildeo deveria fazer pois eacute um heroacutei) Contudo Paacuteris decide retornar
para a luta (III vv 68-70) Em Euriacutepides natildeo temos cenas assim Paacuteris eacute apenas mencionado
No nosso corpus documental apenas em Aleacutexandros ele eacute de fato personagem (com falas
etc)
Assim como pretendemos analisar a sua representaccedilatildeo Atraveacutes da anaacutelise dos
adjetivosepiacutetetos que adornam sua caracterizaccedilatildeo e dos comentaacuterios dos outros personagens
acerca dele Catalogaremos esses elementos e inserindo-os no acircmbito do discurso iremos
delinear o personagem e qual o seu papel dentro da narrativa A helenista Irene de Jong
mostra que os personagens off-stage (que estatildeo fora do palco) tambeacutem desempenham papeacuteis
importantes denotando a ideia de que ldquolsquocontarrsquo natildeo precisa ser menos impressionante do que
lsquomostrarrsquordquo (DE JONG 2011 p 389)
A Iliacuteada e as trageacutedias euripidianas mostram momentos distintos da Greacutecia Antiga o
Periacuteodo Arcaico (VIII-VII aC) no qual a poesia grega floresceu com Homero e Hesiacuteodo
dois aedos que lanccedilaram as bases temaacuteticas para o gecircnero traacutegico o qual nasceu e entrou em
crise no Periacuteodo Claacutessico (V aC) e foi imortalizado por trecircs grandes tragedioacutegrafos Eacutesquilo
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Soacutefocles e Euriacutepides Ao recortarmos nossa pesquisa neste uacuteltimo traacutegico referimo-nos a
Atenas visto que seu cenaacuterio de composiccedilatildeo era nesta poacutelis
Em relaccedilatildeo a Euriacutepides natildeo temos problemas de dataccedilatildeo sabemos que ele eacute de fato
do seacuteculo V aC Entretanto com relaccedilatildeo a Homero esbarramos com esse problema Natildeo
sabemos quando ele foi composto ou quando ele foi colocado na escrita mas podemos chegar
a um consenso A maioria dos helenistas coloca a eacutepica homeacuterica no seacuteculo VIII aC poreacutem
haacute discordacircncias O historiador Gustavo Oliveira diferencia quatro abordagens acerca desses
embates acadecircmicos a) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram compostosrdquo
b) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram fixadosrdquo c) ldquoos poemas dizem
respeito ao periacuteodo que tentaram retratarrdquo d) ldquoos poemas dizem respeito ao passado recente
alcanccedilado na tentativa de atingir um passado ainda mais distanterdquo (OLIVEIRA 2012)6
Os defensores de (a) creem que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o reflexo da sociedade do
periacuteodo em que eles foram compostos e o historiador vecirc nisso um problema pois eacute necessaacuterio
fixar essa marca para se ter certeza de qual sociedade se analisa e ainda natildeo temos
comprovaccedilatildeo exata do periacuteodo em que a eacutepica homeacuterica foi composta Geralmente os
defensores dessa ideia colocam Homero no seacuteculo VIII aC
Recentemente ateacute mesmo a geneacutetica se debruccedilou sobre esse tema esses pesquisadores
acreditam que a liacutengua eacute como um DNA e as palavras genes Esses ldquogenesrdquo vatildeo passando de
uma liacutengua para outra criando raiacutezes etimoloacutegicas semelhantes como acontece na palavra
aacutegua (do proto-germacircnico watōr derivaram-se wato ndash goacutetico ndash water ndash inglecircs ndash wasser ndash
alematildeo ndash vatten ndash sueco ndash etc) (ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p
417) Eles isolam essas palavras em comum entre o hitita o grego moderno (essas duas as
quais se conhece a eacutepoca em que se desenvolveram) e o grego homeacuterico e atraveacutes de uma
frequecircncia de cadeia de Markov7 chegam agrave conclusatildeo que a antiguidade do grego da Iliacuteada eacute
de cerca de 2720 anos ou seja que seria mais ou menos de 707 aC Com a margem que eles
potildeem nesse meacutetodo os textos homeacutericos satildeo datados de entre 760 a 710 aC
O objetivo desses pesquisadores eacute mostrar que a ldquolinguagem pode ser usada como os
genes para ajudar na investigaccedilatildeo das questotildees histoacutericas arqueoloacutegicas e antropoloacutegicasrdquo
(ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p 419) e eles afirmam que como 6 Para conhecer quais helenistas partilham de quais opiniotildees consultar o artigo de Gustavo Oliveira intitulado Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas homeacutericos (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 7 Essa cadeia funciona do seguinte modo temos um objeto x do qual natildeo conhecemos nada mas tambeacutem temos dois objetos y e z que se relacionam com esse x e do qual conhecemos algo em comum Assim atraveacutes de uma foacutermula fixa conseguimos chegar ao resultado do nosso x Aqui no caso o x seria o grego homeacuterico o y e o z o hitita e o grego moderno
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esses textos satildeo oriundos de uma tradiccedilatildeo oral fica difiacutecil de dizer se essa data diz respeito a
quando eles foram produzidos ou cristalizados na escrita A importacircncia desse estudo eacute
tambeacutem mostrar como esse eacute um problema que natildeo intriga somente a noacutes cientistas humanos
mas aos cientistas das aacutereas de Exatas e Bioloacutegicas tambeacutem aumentando o leque de diaacutelogo
transdisciplinar Desse modo cremos que sua menccedilatildeo eacute essencial para chamar a atenccedilatildeo para
outras perspectivas de trabalho
Os defensores de (b) creem que os poemas dizem respeito agrave sociedade que os fixou na
escrita fazendo com que a dataccedilatildeo fique mais imprecisa ainda Natildeo haacute como chegar num
consenso como chegamos em (a) acerca de qual data seria mais apropriada Jaacute os que
defendem (c) acreditam que os poemas dizem respeito ao Periacuteodo Palaciano (XVII-1100
aC) pois fazem referecircncia a esse passado quando teria se desenrolado a Guerra de Troia
Essa proposta natildeo eacute tatildeo bem aceita embora alguns estudiosos admitam que haacute muacuteltiplas
temporalidades em Homero (OLIVEIRA 2012 p 133)
Os pesquisadores que adotam (d) como proposta de dataccedilatildeo acreditam que os eacutepicos
referem-se ao periacuteodo da desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) Um dos principais
defensores dessa ideia eacute o historiador Moses Finley ele afirma que ldquo[O mundo de Ulisses]
Era muito mais lsquosimplesrsquo na sua organizaccedilatildeo social e poliacutetica era iletrada [sic] e a sua
arquitetura natildeo era verdadeiramente monumental quer se destinasse aos vivos quer aos
mortosrdquo (FINLEY 1982 p 45) Eacute juntamente com (a) uma das principais perspectivas
Claude Mosseacute a inclui no seu verbete sobre Homero no Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega
(2004 p 171-172) mas admite que mesmo assim a dataccedilatildeo permanece um enigma para noacutes
Gustavo Oliveira afirma que ldquoo maior problema com essa tendecircncia de associar os poemas
homeacutericos com o periacuteodo da Idade das Trevas estaacute justamente na falta de documentaccedilatildeo que
comprove ou ao menos sugira sua probabilidaderdquo (OLIVEIRA 2012 p 135)
Do mesmo modo o historiador Alexandre Santos de Moraes aborda essa discussatildeo em
sua tese de doutorado afirmando ser o periacuteodo entre os seacuteculos X a IX aC o ideal para se
colocar o que a Iliacuteada e a Odisseia mostram a sociedade homeacuterica seria a sociedade da eacutepoca
de desestruturaccedilatildeo palaciana O autor revisita as teses de Anthony Snodgrass e Oswyn Murray
e toma Ian Morris como principal representante da dataccedilatildeo de Homero no seacuteculo VIII aC
desconstruindo muitos de seus argumentos A eacutepica homeacuterica natildeo deve ser considerada
oriunda de um periacuteodo no qual surge a escrita pois pertence agrave tradiccedilatildeo oral bem como natildeo
podemos atribuir a Homero a criaccedilatildeo de um sistema poliacuteade muitos autores afirmam que
podemos encontrar sinais da poacutelis em Homero
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Essa uacuteltima ideia eacute problemaacutetica a eacutepica jaacute traz o termo poacutelis mas ele natildeo diz respeito
agrave organizaccedilatildeo poliacutetica social econocircmica e administrativa que encontramos no Periacuteodo
Claacutessico O centro do poder em Homero eacute ainda o palaacutecio embora possamos encontrar
estruturas que estaratildeo presentes na poacutelis como a assembleia Nesses poemas haacute uma
miscelacircnea temporal muito grande natildeo podendo noacutes delimitarmos um uacutenico periacuteodo sem
sermos arbitraacuterios O proacuteprio Finley afirma que ldquoeacute com alguma liberdade que o historiador
fixa nos seacuteculos X e IX aC o mundo de Ulissesrdquo (FINLEY 1982 p 46)
Devido a essa polecircmica eacute muito difiacutecil para o historiador tomar uma posiccedilatildeo acerca da
data da composiccedilatildeo das epopeias Escolhemos o seacuteculo VIII aC agrave medida em que
defendemos que esses poemas dizem respeito jaacute a um movimento de conquista de apoikiacuteai
como defende o historiador Irad Malkin Mas eacute fato que a ancoragem histoacuterico-temporal
desses poemas pode retroceder mais no tempo visto que ele pertence a uma tradiccedilatildeo oral O
que vai mais nos interessar em nossa pesquisa eacute que a epopeia pertence a um tempo anterior
agraves trageacutedias
Sendo periacuteodos e gecircneros distintos cada um tende a representar Paacuteris de uma maneira
Nosso problema diz respeito a um processo que comeccedila com as epopeias de Homero e
continua a se desenvolver em outros gecircneros literaacuterios trata-se de um processo de elaboraccedilatildeo
de um coacutedigo de conduta social atraveacutes da praacutetica da paideiacutea8 o qual iraacute definir tambeacutem as
bases do que eacute grego e do que natildeo eacute Desde Homero haacute um discurso de alteridade Assim
indagamo-nos o que eacute grego9 O que natildeo eacute Era mais faacutecil para os gregos responderem agrave
uacuteltima pergunta definia-se o natildeo-grego para se definir o grego
Ao longo de toda a Odisseia o heroacutei Odisseu toma contato com Outros todavia eacute no
episoacutedio dos ciclopes em que se teraacute o contato com o grande representante da alteridade
helecircnica o qual seraacute recuperado por exemplo no drama satiacuterico Os Ciclopes de Euriacutepides
Odisseu os descreve assim ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo
cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεmicroίστων ἱκόmicroεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι
πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO
Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)
O que importa nessas sequecircncias natildeo eacute a caracterizaccedilatildeo dos ciclopes mas a definiccedilatildeo
daquilo que definitivamente natildeo eacute helecircnico Pela descriccedilatildeo de Odisseu podemos caracterizar 8 Literalmente paideiacutea significa ldquocriaccedilatildeo de meninosrdquo Ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas Para melhor definiccedilatildeo ver o capiacutetulo 1 de nossa dissertaccedilatildeo (Entre Homero e Euriacutepides dois estilos de composiccedilatildeo) 9 Vale ressaltar que ldquogregordquo aqui eacute uma conveniecircncia Haacute um intenso debate em torno do termo ldquohelenordquo ele eacute usado em Homero para designar determinado povo natildeo todos os povos gregos como seraacute no Periacuteodo Claacutessico
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os gregos eles vivem sob um coacutedigo de leis sua principal fonte de subsistecircncia eacute a
agricultura eles vivem em comunidade cultuam os deuses o patildeo eacute o seu principal alimento e
possuem caracteriacutesticas humanas sendo inclusive belos10
Por isso preferimos utilizar o conceito de alteridade tal qual Marc Augeacute propotildee Para ele
a identidade eacute produzida pelo reconhecimento de alteridades colocando em cena um Outro
(AUGEacute 1998 p 19 e 20) que pode ser a) o Outro exoacutetico que eacute definido a partir de um noacutes
homogecircneo b) o Outro eacutetnico homogecircneo ndash como eacute o caso dos gregos em relaccedilatildeo com os
baacuterbaros c) o Outro social (a mulher a crianccedila o transgressor) e o Outro iacutentimo pois temos
vaacuterias identidades (AUGEacute 2008 p 22-3)
Segundo esse antropoacutelogo ldquonatildeo existe afirmaccedilatildeo identitaacuteria sem redefiniccedilatildeo das relaccedilotildees
de alteridade como natildeo haacute cultura viva sem criaccedilatildeo culturalrdquo (AUGEacute 1998 p 28)
Identidade e alteridade natildeo se opotildeem natildeo se excluem formam um par complementando-se
visto que satildeo ldquocategorias [] que a constituem [a sociedade] e definemrdquo (AUGEacute 1998 p
10) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no
contato entre os colonizadores e os nativos
O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica o contato com
outras culturas eacute imbuiacutedo de choques Contudo Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de outro
retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas
em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para
definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) E se pararmos para pensar o conectivo
adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse
vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 p 63-4) o ldquooutrordquo assemelha-se ao
ldquomasrdquo ao adverso
Assim como o conceito de alteridade o de etnicidade tem um apelo marcadamente
antropoloacutegico Escolhemos trabalhar com o modo como Fredrik Barth entende a etnicidade e
mais ainda o que eacute uma fronteira eacutetnica e um grupo eacutetnico conceitos-chave para
entendermos sua abordagem Embora seja um texto claacutessico Barth conseguiu abarcar o que
compreendemos sobre etnicidade ou seja um discurso criado por um grupo para legitimar
seu lugar social sendo que esse discurso natildeo vem do nada mas sim da relaccedilatildeo com outros
grupos
10 O termo utilizado pelos helenos para designar o belo eacute kaloacutes que tem tanto uma conotaccedilatildeo de beleza externa quanto interna (virtude) podendo inclusive dependendo do contexto ser traduzido como ldquobomrdquo bem como o seu antocircnimo kakoacutes pode ser traduzido por ldquofeiordquo ou ldquomaurdquo
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O termo etnia vem de um outro eacutethnos que eacute ldquotoda classe de seres de origem ou de
condiccedilatildeo comumrdquo (BAILLY 2000 p 581) Ele pode designar tanto um bando de animais
(eacutethnea ndash nominativo eacutepico jocircnico plural ndash HOMERO Iliacuteada II 459 para gansos II 469
para moscas Odisseia XIV v 73 para porcos) quanto um conjunto de pessoas O termo
eacutethnos aparece geralmente ligado a uma estrutura formulaica como ldquoἂψ δ ἑτάρων εἰς
ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἐχάζετο κῆρ ἀλεείνωνrdquo (ldquomas de volta ao grupo ndash eacutethnos ndash dos companheiros retorna
evitando a morte em batalha - kḗrrdquo) ou ldquoἐπεὶ ἵκετο ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἑταίρωνrdquo (ldquodepois voltou ao grupo
ndash eacutethnos ndash de companheirosrdquo11) visto que se repetem algumas vezes ao longo da Iliacuteada (a
primeira estrutura mais do a segunda)
O conceito de etnicidade comeccedilou a ser debatido recentemente desde a deacutecada de 1970
que esse debate se destaca
O debate sobre a etnicidade foi alimentado desde a deacutecada de 1970 por uma abundante bibliografia que se enriqueceu de modo consideraacutevel o conhecimento empiacuterico das situaccedilotildees intereacutetnicas atuais em todas as partes do mundo natildeo chegou verdadeiramente ateacute hoje a permitir que se destaque uma teoria geral da etnicidade (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 120)
Contudo a heterogeneidade do debate natildeo permitia que se chegasse a uma definiccedilatildeo
mais concreta de etnicidade e uma proposta de conceituaccedilatildeo ainda natildeo havia sido elaborada
Confundia-se (e ainda se confunde) muito os termos ldquoraccedilardquo e ldquoetniardquo que se configuram em
instacircncias diferentes a etnia diz respeito agraves relaccedilotildees sociais entre o ldquonoacutesrdquo e o ldquoelesrdquo e a raccedila
diz mais respeito agraves configuraccedilotildees bioloacutegico-fenotiacutepicas que diferenciam um grupo do outro
Obviamente o argumento racial seraacute utilizado algumas vezes para essa diferenciaccedilatildeo
dicotocircmica mas isso quer dizer que ele tem relaccedilatildeo com o conceito de etnicidade natildeo que
seja sinocircnimo deste
Assim Glazer amp Moynihan defendem que ldquoa etnicidade refere-se a um conjunto de
atributos ou de traccedilos tais como a liacutengua a religiatildeo os costumes o que a aproxima da noccedilatildeo
de cultura ou agrave ascendecircncia comum presumida dos membros o que a torna proacutexima da noccedilatildeo
de raccedilardquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Outros autores relacionam a
etnicidade com o que impulsiona a formaccedilatildeo de um povo com a adequaccedilatildeo comportamental
das pessoas agraves normas sociais de um grupo ou agraves representaccedilotildees que condensam a pertenccedila a
um grupo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86)
11 Esses versos satildeo de traduccedilatildeo proacutepria
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Como pudemos ver as definiccedilotildees satildeo diversas Houve uma tentativa de juntar todas
essas definiccedilotildees para compor o conceito de etnicidade em fins da deacutecada de 1978 (Burgess)
mas que acabou por generalizaacute-lo No acircmbito da Histoacuteria Antiga o historiador americano
Jonathan M Hall procurou sumarizar em oito pontos o que ele entende por etnicidade a partir
de leituras diversas
(1) A etnicidade eacute um fenocircmeno mais social do que bioloacutegico Eacute definida mais por criteacuterios social e discursivamente construiacutedos do que por indiacutecios sociais
(2) Traccedilos culturais geneacuteticos linguiacutesticos religiosos ou comuns natildeo definem essencialmente o grupo eacutetnico Esses satildeo siacutembolos que satildeo manipulados de acordo com fronteiras atribuiacutedas construiacutedas subjetivamente
(3) O grupo eacutetnico eacute distinto de outros grupos sociais e associativos em virtude da associaccedilatildeo com um territoacuterio especiacutefico e um mito de origem compartilhado Essa noccedilatildeo de descendecircncia eacute mais putativa do que atual e julgada por consenso
(4) Os grupos eacutetnicos satildeo frequentemente formados pela apropriaccedilatildeo de recursos por uma seccedilatildeo da populaccedilatildeo ao custo de outra como resultado de uma conquista ou migraccedilatildeo de longa data ou pela reaccedilatildeo contra tais apropriaccedilotildees
(5) Os grupos eacutetnicos natildeo satildeo estaacuteticos ou monoliacuteticos mas dinacircmicos e fluidos Suas fronteiras satildeo permeaacuteveis ateacute certo grau e elas podem ser produto de um professo de assimilaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo
(6) Os indiviacuteduos natildeo precisam sempre agir em termos de sua pertenccedila a um grupo eacutetnico Quando contudo a identidade do grupo eacutetnico eacute ameaccedilada sua internalizaccedilatildeo como identidade social de cada um de seus membros implica numa convergecircncia de normas e comportamentos de grupo e a supressatildeo temporaacuteria da variabilidade individual no esforccedilo por uma identidade social positiva
(7) Tal convergecircncia comportamental e saliecircncia eacutetnica eacute mais comum entre (ainda que natildeo exclusiva a) grupos dominados e excluiacutedos
(8) A identidade eacutetnica soacute pode ser constituiacuteda em oposiccedilatildeo a outras identidades eacutetnicas (HALL 1997 p 33)
A definiccedilatildeo de Hall se aproxima bastante da defendida por Fredrik Barth e Abner
Cohen autores que nos chamaram a atenccedilatildeo Desse modo propomos nos debruccedilar sobre as
ideias deles dois visto que ambos nos chamaram a atenccedilatildeo ao tratar da etnicidade No
entanto escolhemos apenas um como norte teoacuterico o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth
Para esse autor o grupo eacutetnico natildeo eacute sinocircnimo de sociedade ou cultura Essa eacute uma premissa
fundamental visto que trabalhamos com dois grupos que compartilham de um mesmo coacutedigo
de conduta social Barth afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural
especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) esse ldquoconjunto culturalrdquo seria
justamente a paideiacutea com o coacutedigo de conduta que ela transmite
Aleacutem disso ele enfoca justamente nos limites desse grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo
de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com
outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos
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culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de
transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo
(LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando
os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios
para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)
A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se
define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado
pelo conceito de etnicidaderdquo afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart eacute aquele
que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e
satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de
traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees
raciaisrdquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 141)
A etnicidade tambeacutem implica na construccedilatildeo de representaccedilotildees sociais pois ldquoa
identificaccedilatildeo de outra pessoa como pertencente a um grupo eacutetnico implica compartilhamento
de criteacuterios de avaliaccedilatildeo e julgamentordquo (BARTH 2011 p 196) pois assim se tem a ideia de
que se ldquojoga o mesmo jogordquo nas palavras mesmo de Barth Essas representaccedilotildees satildeo
fundamentais para manter as caracteriacutesticas do grupo visto que a comunicaccedilatildeo eacute o locus
privilegiado de inculcaccedilatildeo delas
Ao pesquisarmos sobre o conceito de etnicidade encontramos outro autor que nos
chamou bastante atenccedilatildeo o antropoacutelogo iraquiano Abner Cohen Esse autor estuda as
sociedades africanas contemporacircneas mostrando como os costumes influenciam a poliacutetica e
como o discurso eacutetnico define relaccedilotildees de poder entre grupos eacutetnicos Assim como Barth
Cohen tambeacutem crecirc que o grupo se define e se redefine pelo contato com outros grupos
eacutetnicos ldquoum grupo eacutetnico se ajusta a novas realidades sociais adotando costumes de outros
grupos ou desenvolvendo novos costumes que satildeo compartilhados com outros gruposrdquo
(COHEN 1969 p 1)
Aleacutem disso o antropoacutelogo afirma que
Os diferentes grupos eacutetnicos organizam essas funccedilotildees [normas culturais valores mitos e siacutembolos] de modos diferentes de acordo com as suas tradiccedilotildees culturais e circunstacircncias estruturais Alguns grupos eacutetnicos fazem uso extensivo dos idiomas religiosos organizando essas funccedilotildees Outros grupos usam a descendecircncia [kinship] ou outras formas de relaccedilotildees morais em vez disso No curso do tempo o mesmo grupo pode mudar de um princiacutepio articulador para outro como resultado de mudanccedilas dentro do sistema poliacutetico encapsulado de ou outros desenvolvimentos ambos dentro ou fora do grupo (COHEN 1969 p 5-6)
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Contudo esbarramos no pensamento desse antropoacutelogo quando este afirma que ldquode
acordo com o meu uso um grupo eacutetnico eacute um grupo de interesse informal cujos membros satildeo
distintos dos membros de outros grupos dentro da mesma sociedaderdquo (COHEN 1969 p 4)
Isso seria aplicaacutevel somente agrave Iliacuteada visto que aqueus e troianos seriam membros de uma
mesma comunidade (que estaacute sob um mesmo coacutedigo de conduta) embora sejam membros de
diferentes grupos eacutetnicos Entretanto na realidade de Euriacutepides em que a dicotomia grego
baacuterbaro estaacute bem mais definida (e em crise) essa observaccedilatildeo natildeo se aplica a sociedade grega
eacute diferente da sociedade baacuterbara
Especificamente tratando da Antiguidade Grega alguns autores se debruccedilaram sobre a
questatildeo da etnicidade e da alteridade O mais antigo registro bibliograacutefico que trazemos em
nossa discussatildeo eacute o da helenista Helen Bacon Barbarians in Greek tragedy (1955) Em seu
doutorado ela faz uma anaacutelise dos elementos que caracterizam o baacuterbaro nas trageacutedias de
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides Tanto o vestuaacuterio como o modo de falar ou as accedilotildees definem
um personagem baacuterbaro mas dependendo do autor um ou outro elemento eacute enfatizado
Em 1989 Edith Hall publicou a sua tese doutoral Inventing the barbarian Greek
self-definition through tragedy que teve grande repercussatildeo no meio acadecircmico
Praticamente todos os livros que trazem a questatildeo da alteridadeetnicidade mencionam o
trabalho de Hall que se destina agrave anaacutelise da poesia traacutegica tambeacutem Sua hipoacutetese principal eacute a
de que quando os gregos escrevem sobre os baacuterbaros eles estatildeo fazendo um ldquoexerciacutecio de
auto-definiccedilatildeordquo pois eles satildeo opostos e que essa ldquoinvenccedilatildeordquo teria comeccedilado a partir das
Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) Aleacutem disso ela defende que a ideia de pan-helenismo
tem mais a ver com um ideal atenocecircntrico do que helenocecircntrico Com relaccedilatildeo a Homero ela
afirma que natildeo existe uma polarizaccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros no poema embora essa
diferenciaccedilatildeo existisse nessa eacutepoca admitindo que a Guerra de Troia originalmente seria
entre duas comunidades (HALL 1989 p 23) Contudo ela critica os autores que veem em
Homero uma diferenciaccedilatildeo clara entre gregos e troianos
Em 1993 a helenista francesa Jacqueline de Romilly escreve um artigo comentando o
livro de Edith Hall Les barbares dans la penseacutee de la Gregravece classique Ela chama a atenccedilatildeo
para o fato de que mais do que inventar o baacuterbaro os gregos inventaram o helenismo
(ROMILLY 1993 p 3) A autora reforccedila a ideia de que essa dicotomia eacute mais poliacutetica do que
racial embora admita que os gregos se liguem tambeacutem pelo criteacuterio da raccedila
No mesmo ano Barbara Cassin Nicole Loraux e Catherine Peschanski organizaram
Gregos baacuterbaros estrangeiros a cidade e seus outros com cinco ensaios das autoras
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sobre a questatildeo da alteridade na Greacutecia Claacutessica especificamente apresentados no Rio de
Janeiro a convite do Coleacutegio Internacional de Estudos Filosoacuteficos Transdisciplinares Elas
analisam sobretudo como a poacutelis lidava com os seus Outros categorizando e caracterizando
o estrangeiro A documentaccedilatildeo principal reside na historiografia helecircnica sendo Heroacutedoto
Tuciacutedides e Xenofonte os mais trabalhados Elas mostram como os gregos satildeo gregos por
cultura natildeo por natureza e como eles podem voltar a ser baacuterbaros atraveacutes do desrespeito dos
coacutedigos de valores helecircnicos (CASSIN LORAUX 1993 p 10)
Um ano depois Pericles Georges escreveu um livro que aborda natildeo soacute o Periacuteodo
Claacutessico mas tambeacutem o Arcaico Barbarian Asia and the Greek experience from the
Archaic Period to the age of Xenophon Sua proposta no livro eacute mostrar como os gregos
estereotiparam o baacuterbaro e qual a origem disso evidenciando como essa definiccedilatildeo ajudou a
construir a identidade grega No tocante a Homero ele tambeacutem natildeo crecirc haver diferenciaccedilatildeo
entre gregos e troianos mas admite que a Iliacuteada jaacute traz uma diferenciaccedilatildeo entre o noacutes e o eles
sobretudo ao se referir aos caacuterios e liacutedios
Antonio Mario Battegazzore escreveu em 1996 um artigo interessante sobre essa
polarizaccedilatildeo grego versus baacuterbaro La dicotomia greci-barbari nella Grecia Classica
riflessioni su cause ed effetti di una visione etnocecircntrica Seu trabalho eacute interessante pois
corrobora a ideia de que os gregos tecircm dois tipos de leitura sobre os baacuterbaros uma horizontal
(na qual os gregos reivindicam uma centralidade geograacutefico-cultural em relaccedilatildeo aos outros
povos) e uma vertical (os gregos satildeo evoluiacutedos pois o passado baacuterbaro ficou para traacutes os
baacuterbaroi de hoje satildeo atrasados visto que pararam no tempo) (BATTEGAZZORE 1996 p
23) Ele natildeo admite a possibilidade de diferenciaccedilatildeo entre troianos e gregos na Iliacuteada
analisando essa dicotomia no Periacuteodo Claacutessico
O historiador Irad Malkin em 1998 escreve um livro inovador no que diz repeito ao
uso conceitual da etnicidade para o mundo Antigo The returns of Odysseus colonization
and ethnicity Ele analisa os nostoiacute heroacuteis que cruzam regiotildees tentando voltar para casa na
mitologia grega e os relaciona agrave definiccedilatildeo da identidade helecircnica a partir do contato com
Outros O autor defende por exemplo a ideia de que Odisseu na verdade seria uma metaacutefora
para a colonizaccedilatildeo helecircnica que acontecia sobretudo no seacuteculo VIII aC sendo assim um
ldquoheroacutei proto-colonialrdquo (MALKIN 1998 p 3) Em 2001 Malkin organizou um livro com
ensaios especificamente sobre a etnicidade no mundo grego Ancient Perceptions of Greek
Ethnicity aquecendo os debates sobre o tema
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Em 2002 dois trabalhos se destacaram no tocante agrave questatildeo da etnicidade helecircnica o
de Jonathan M Hall (Hellenicity between ethnicity and culture) e a coletacircnea de Thomas
Harrison (Greeks and barbarians) Hall jaacute havia escrito um livro em 1997 sobre a questatildeo
eacutetnica no mundo grego (Ethnic identity in Greek Antiquity) e o seu novo livro na verdade
eacute um aprofundamento do tema e um alargamento da gama de documentos utilizados Ele
defende que existem determinados elementos que definem as fronteiras eacutetnicas helecircnicas os
quais jaacute apontamos aqui em nossa introduccedilatildeo O livro de Harrison traz vaacuterios ensaios
transdisciplinares sobre essas diferenciaccedilotildees entre gregos e baacuterbaros vistos de uma
multiplicidade de naturezas documentais que vatildeo desde a literatura ateacute a cultura material
helecircnica
A helenista Lynette Mitchell em 2007 publicou seu Panhellenism and the
barbarian in Archaic and Classical Greece Ela tenta definir o que eacute esse pan-helenismo
estendendo a anaacutelise para o Periacuteodo Arcaico e defendendo que essa ideia natildeo eacute apenas cultural
ou poliacutetica mas necessariamente possui ambas as conotaccedilotildees Dois anos depois o classicista
P M Fraser escreveu seu Greek ethnic terminology no qual analisa o vocabulaacuterio eacutetnico
desde Homero ateacute Bizacircncio Ele mostra como o termo eacutethnos mudou ao longo do tempo indo
da simples designaccedilatildeo de uma coletividade ateacute uma demarcaccedilatildeo bem niacutetida do noacuteseles bem
como relaciona a ele outros termos (como geacutenos e poacutelis) que desempenham essa marcaccedilatildeo
eacutetnica
Efi Papadodimas escreveu em 2010 um artigo digno de nota pois se debruccedila
especificamente sobre Euriacutepides The GreekBarbarian interaction in Euripides Andromache
Orestes Heracleidae a reassessment of Greek attitudes to foreigners Ele mostra como nas
trageacutedias euripidianas a dicotomia grego versus baacuterbaro estaacute cada vez mais fluida visto que o
tragedioacutegrafo testemunha a ldquobarbarizaccedilatildeordquo dos proacuteprios gregos Para o autor essa ideia de
que o baacuterbaro eacute um oposto entra em crise natildeo sendo difiacutecil encontrar em suas trageacutedias
gregos agindo como baacuterbaros
O historiador grego Kostas Vlassopoulos em seu Greeks and barbarians (2013)
tentou desconstruir a ideia de que o grego eacute diametralmente oposto ao baacuterbaro analisando
como gregos e baacuterbaros conviviam no espaccedilo mediterracircnico Esse eacute o principal argumento do
seu livro Os gregos num plano discursivo procuraram diferenciar o baacuterbaro de si a fim de
fundar sua proacutepria identidade mas na praacutetica os gregos dialogaram bastante com os natildeo-
gregos atraveacutes de trocas culturais as quais natildeo diziam respeito somente agrave imposiccedilatildeo mas agrave
circulaccedilatildeo mesmo de ideias e tecnologias pelo Mediterracircneo Essas trocas tiveram como
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principal palco o mundo das apoikiacuteai as ldquocolocircniasrdquo gregas as quais frequentemente ou
adotavam os costumes gregos (sobretudo o modo de organizaccedilatildeo poliacuteade) ou recebiam-nos e
modificavam-nos adaptando-os aos seus contextos
Nosso trabalho propotildee analisar comparativamente os elementos que definiam as
fronteiras eacutetnicas em Homero e em Euriacutepides sobretudo a partir da anaacutelise do heroacutei Paacuteris
visto por noacutes como o Outro por excelecircncia na Iliacuteada e nas trageacutedias do ciclo troiano
Dividimos nosso trabalho em trecircs capiacutetulos o primeiro trata da etnicidade de uma forma geral
dentro das poesias eacutepica e traacutegica dessuperficializando os textos que analisaremos em nosso
trabalho Jaacute o segundo trata de um aspecto recorrente na representaccedilatildeo de Paacuteris nossa
comparaacutevel ele como sendo um causador de males Vamos ver como Homero e Euriacutepides
tratam disso destacando como essa caracteriacutestica engloba uma seacuterie de elementos que
definem fronteiras eacutetnicas tanto na epopeia quanto na trageacutedia No terceiro capiacutetulo nos
debruccedilamos sobre um Paacuteris guerreiro e como a sua representaccedilatildeo como tal corrobora a
definiccedilatildeo desse personagem como sendo um Outro bem como Homero e Euriacutepides lidam
com essa alteridade dos troianos
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CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE
COMPOSICcedilAtildeO
ldquo[] a epopeia [de Homero] eacute aqui construiacuteda como uma trageacutediardquo
(ROMILLY 2013 p 47)
Nesse capiacutetulo vamos trabalhar a literariedade da epopeia homeacuterica e a trageacutedia
euripidiana ou seja o que faz dessas obras textos literaacuterios (ANDRADE 1998 p 27) que
satildeo ldquoobjeto[s] de conhecimento que representa[m] alegoricamente o ponto de vista do escritor
a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31) Faremos isso de modo a mostrar
como elas pertencem a um mesmo espaccedilo discursivo bem como a construccedilatildeo delas implica
em um discurso que molda uma etnicidade helecircnica Por isso a epiacutegrafe de Jacqueline de
Romilly se faz de extrema importacircncia para abrirmos nossa discussatildeo ela acredita que a
epopeia homeacuterica se constroacutei agrave maneira de uma trageacutedia Obviamente Homero natildeo previu a
existecircncia dos traacutegicos fazendo um poema que parecesse com uma trageacutedia futura Contudo
a afirmaccedilatildeo da helenista francesa implica na ideia de que as trageacutedias foram influenciadas
pelas epopeias
Os textos homeacutericos satildeo arquitextos12 natildeo somente para Euriacutepides mas para toda a
tradiccedilatildeo literaacuteria grega posterior sendo que tanto Homero quanto Euriacutepides satildeo hoje ambos
arquitextos eles influenciam no modo como produzimos textos (sejam eles escritos visuais
orais etc) Tanto a epopeia quanto a trageacutedia fazem parte do mesmo espaccedilo discursivo13 o
material miacutetico homeacuterico serviu aos tragedioacutegrafos a utilizaccedilatildeo de epiacutetetos e comentaacuterios
para caracterizar um personagem eacute tomada emprestada dessa tradiccedilatildeo eacutepica bem como a
utilizaccedilatildeo de algumas foacutermulas conhecidas do puacuteblico
Desse modo podemos dizer que poesia eacutepica e traacutegica fazem parte de uma mesma
tradiccedilatildeo mito-poeacutetica No entanto natildeo podemos afirmar que o mito se desenrola na trageacutedia
da mesma maneira que em Homero Se fosse assim dificilmente as peccedilas de teatro atrairiam a
atenccedilatildeo do puacuteblico ateniense do seacuteculo V aC afinal ningueacutem quer ver a mesma histoacuteria
contada do mesmo modo diversas vezes Nenhum texto embora influenciado por outros eacute
12 O arquitexto designa ldquoas obras que possuem um estatuto exemplar que pertencem ao corpus de referecircncia de um ou de vaacuterios posicionamentos de um discurso constituinterdquo (MAINGUENEAU 2008 p 64) 13 ldquoO lsquoespaccedilo discursivorsquo enfim delimita um subconjunto do campo discursivo ligando pelo menos duas formaccedilotildees discursivas que supotildee-se mantecircm relaccedilotildees privilegiadas cruciais para a compreensatildeo dos discursos consideradosrdquo (MAINGUENEAU 1997 p 117)
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igual a esses predecessores eles possuem um interdiscurso que eacute esse diaacutelogo com tradiccedilotildees
literaacuterias posteriores mas nunca satildeo coacutepias puras e simples
Homero mesmo embora seja um arquitexto natildeo pode ser considerado o iniacutecio de um
processo discursivo ele faz parte desse processo visto que nos seus textos jaacute existe um
interdiscurso Homero eacute um dos aedos que circulavam pela Greacutecia naquela eacutepoca e ainda
havia outros como ele antes dele Aleacutem disso ele eacute influenciado por vaacuterias tradiccedilotildees literaacuterias
que jaacute existiam Um exemplo disso eacute a utilizaccedilatildeo do contexto intralinguiacutestico da poesia
iacircmbica para compor alguns personagens como o proacuteprio Paacuteris (SUTER 1984) esse tipo de
verso era utilizado para acusar algueacutem de algo Assim a composiccedilatildeo de algumas sentenccedilas
relativas agrave Paacuteris sobretudo quando o sujeito enunciador eacute um personagem da Iliacuteada (como
Priacuteamo ou Heitor) conservam esse ato de linguagem14 iacircmbico
Escolhemos dois gecircneros15 discursivos para trabalhar com Paacuteris a epopeia de
Homero e as trageacutedias de Euriacutepides Antes de apresentarmos as anaacutelises comparadas do
nosso heroacutei em cada um deles eacute mister discorrermos sobre a natureza da composiccedilatildeo desses
dois textos pois trabalhamos com a Anaacutelise de Discurso como meacutetodo de leitura deles Para o
analista eacute importante dessuperficializar o corpus documental para criar um objeto discursivo
sobre o qual enfim nos debruccedilamos com fins analiacuteticos
Essa dessuperficializaccedilatildeo consiste em dirigir aos textos perguntas que vatildeo ancorar
nossa leitura em um determinado tempo espaccedilo e sociedade ldquoQuem escreveurdquo ldquoQuando
escreveurdquo ldquoOnde escreveurdquo ldquoDe onde essa pessoa veiordquo ldquoPara quem ela escreverdquo ldquoO
que ela defenderdquo ldquoQual o gecircnero do textordquo satildeo perguntas que devemos fazer antes de
comeccedilar a analisar qualquer documentaccedilatildeo
Esse processo tem a ver com a proacutepria classificaccedilatildeo do gecircnero discursivo ao qual
pertence um determinado discurso ldquoO fato de que um texto seja destinado a ser cantado lido
em voz alta acompanhado por instrumentos musicais de determinado tipo que circule de
determinada maneira e em certos espaccedilos tudo isto [sic] incide radicalmente sobre seu
modo de existecircncia semioacuteticardquo (MAINGUENEAU 1997 p 36) O gecircnero eacute tatildeo importante na
construccedilatildeo do discurso que na Greacutecia Antiga ele influenciava diretamente na escolha do
dialeto da composiccedilatildeo dos textos como a linguista britacircnica Anna Morpurgo Davies nos
explica
14 O ato de linguagem eacute uma sequecircncia linguiacutestica com um valor ilocutoacuterio ou seja dotado de uma determinada forccedila (no caso da poesia iacircmbica de acusaccedilatildeo) que pretende operar sobre o sujeito receptor uma transformaccedilatildeo 15 Podemos classificar os gecircneros de diferentes maneiras de acordo com suas condiccedilotildees comunicacionais (como fala onde fala etc) e estatutaacuterias (quem fala para quem fala qual o lugar social de cada sujeito do discurso etc)
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O verso eacutepico eacute escrito em alguma forma de jocircnico A trageacutedia aacutetica eacute escrita em aacutetico exceto pelos coros os quais estatildeo em uma forma doacuterica modificada A poesia liacuterica pode estar em eoacutelico a prosa literaacuteria natildeo Em um nuacutemero de instacircncias a escolha do dialeto eacute independente da origem do autor Piacutendaro era de Tebas mas natildeo escreve em beoacutecio Hesiacuteodo era tambeacutem da Beoacutecia mas compocircs em uma linguagem eacutepica ie em uma forma compoacutesita de jocircnico (DAVIES 2002 p 157)
A Iliacuteada natildeo era encenada do mesmo modo que as trageacutedias natildeo se restringiam a uma
reacutecita as performances eacutepica e traacutegica eram diferentes Para o melhor aproveitamento do
estudo do nosso corpus e corroboraccedilatildeo de nossas hipoacuteteses devemos observar natildeo somente as
semelhanccedilas e diferenccedilas mas tambeacutem quais as peculiaridades que cada gecircnero discursivo
nos traz Diferentemente da Iliacuteada as trageacutedias natildeo satildeo tatildeo extensas para termos uma noccedilatildeo
a maior das trageacutedias que vamos estudar (Orestes com 1693 versos) corresponde a somente
1078 da Iliacuteada (que possui 15693 versos) As reacutecitas aeacutedicas e rapsoacutedicas eram
episoacutedicas a Iliacuteada e a Odisseia natildeo eram cantadas de uma vez soacute selecionando-se apenas
episoacutedios Essa praacutetica estaacute presente na documentaccedilatildeo mesma no Canto VIII da Odisseia (vv
266-369) Demoacutedoco conta o episoacutedio da traiccedilatildeo de Afrodite e Ares
Outra diferenccedila a se sublinhar eacute o proacuteprio modo de compor o aedo natildeo escrevia seus
poemas ao contraacuterio do traacutegico O aedo memorizava o poema ou compunha-o na hora para o
seu puacuteblico utilizando uma mnemoteacutecnica16 Desse modo vemos se repetirem foacutermulas como
ldquoAssim que a Aurora de dedos de rosa surgiu matutinardquo [ἦmicroος δ᾽ ἠριγένεια φάνη
ῥοδοδάκτυλος Ἠώς] e epiacutetetos (como theoeidḗs relativo a Paacuteris) que equivaliam a uma
pausa necessaacuteria para o cantor se lembrar do que falaraacute a seguir e para ele poder compor
atraveacutes do manejo do hexacircmetro dactiacutelico os seus versos
Euriacutepides escreveu as suas trageacutedias e cada ator (em sua eacutepoca trecircs17) decorava suas
falas e as interpretava em cima do palco Surge aqui entatildeo mais um elemento que distingue o
gecircnero eacutepico do traacutegico a forma do texto Em Homero haacute diaacutelogos entre personagens espaccedilo
para eles falarem contudo isso se daacute atraveacutes do discurso indireto livre de um narrador
onisciente18 Nas trageacutedias esse narrador desaparece o discurso eacute direto mesmo quando se
trata do coro e os narradores satildeo sempre personagens Os diaacutelogos exerciam um papel muito 16 A mnemoteacutecnica seria a arte no caso do aedo de lembrar e improvisar se preciso os versos a serem recitados A tiacutetulo de aprofundamento do tema ver o capiacutetulo II de Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica de Marcel Detienne (consultar Referecircncias bibliograacuteficas) 17 Eacute atribuiacutedo a Soacutefocles a introduccedilatildeo do terceiro ator Ateacute entatildeo as trageacutedias eram interpretadas por apenas dois atores Cada vez mais o ator vai ganhando destaque nas produccedilotildees traacutegicas e a partir de 449 aC havia natildeo soacute competiccedilotildees de trageacutedias em si mas de atores tambeacutem (SCODEL 2011 p 53-54) 18 O narrador onisciente eacute aquele que conhece passado presente e futuro da histoacuteria e o iacutentimo de cada personagem mas que natildeo participa da trama
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importante em determinadas trageacutedias mesmo o falar da personagem jaacute mostrava a que
acircmbito social ela pertencia como acontece com o friacutegio de Orestes (que eacute marcadamente um
baacuterbaro) ou com Paacuteris em Alexandre cuja desenvoltura no falar denuncia que ele natildeo eacute um
pastor comum e excede aos outros
Aleacutem disso natildeo eacute o autor que interpreta suas peccedilas19 ele delega essa funccedilatildeo aos
atores A encenaccedilatildeo traacutegica natildeo corresponde somente agrave trageacutedia em si havia esses atores (no
caso de Euriacutepides trecircs20) que representavam os personagens O figurino as maacutescaras
deveriam trazer consigo as particularidades de cada personagem e torna-lo reconheciacutevel ao
puacuteblico eles deveriam saber quem era o mensageiro o deus o anciatildeo o heroacutei a mulher e
assim por diante Diferentemente o aedo eacute ele mesmo narrador de sua histoacuteria
Outro elemento eacute o espaccedilo da performance a reacutecita aeacutedica ocorre geralmente em
banquetes enquanto as encenaccedilotildees traacutegicas tecircm o espaccedilo do odeacuteon (teatro) para se desenrolar
Isso natildeo significa contudo que o puacuteblico do aedo seja mais restrito do que o do traacutegico
Podemos pensar que enquanto a epopeia geralmente era cantada no espaccedilo do banquete
aristocraacutetico21 a trageacutedia se encenava no espaccedilo da poacutelis custeada pelos cidadatildeos ricos e
aberta a toda a populaccedilatildeo (ROMILLY 1997 p 16) e por isso o alcance dela era maior22
Contudo natildeo podemos nos esquecer de que o poeta era itinerante fazendo suas epopeias
chegarem a vaacuterios lugares da Greacutecia Essa eacute uma ideia bastante explorada pelo historiador
Alexandre Santos de Moraes que ressalta
A certa estabilidade de que alguns aedos gozavam nos palaacutecios e ambientes aristocraacuteticos homeacutericos natildeo deve enublar nossas leituras [] quando encontramos o aedo iliaacutedico Tamiacuteris que viajava para competir com outros aedos ou mesmo o identificado no Hino Homeacuterico a Apolo que solicitara agraves donzelas deacutelias que perpetuassem sua fama par os outros aedos que por ali passassem chegamos agrave conclusatildeo de que esse sedentarismo nada mais era do que uma condiccedilatildeo momentacircnea [] A erracircncia portanto natildeo eacute apenas adequada a esses aedos eacute provaacutevel que tenha sido um meio indispensaacutevel para a ampliaccedilatildeo de seu repertoacuterio e a aquisiccedilatildeo de novos materiais e canccedilotildees (MORAES 2012 p 73 ndash grifos nossos)
Quando vamos estudar os mitos gregos ldquoconveacutem ter em conta essa fragmentariedade
das reliacutequias e a facilidade de variaccedilatildeo que oferecem os relatos dos poetasrdquo (GUAL 1996 p
19 Segundo Ruth Scodel no iniacutecio os tragedioacutegrafos poderiam ter sido eles mesmos atores em suas trageacutedias (SCODEL 2011 p 45) 20 Atribui-se a Soacutefocles o meacuterito de ter elevado de dois para trecircs o nuacutemero de atores Na eacutepoca de Eacutesquilo existiam somente dois (ROMILLY 1999 p 33) 21 Tambeacutem havia reacutecitas em concursos mas essas eram feitas por rapsodos que reproduziam versos de aedos 22 Embora os cidadatildeos mais pobres pudessem assistir agraves trageacutedias atraveacutes de um financiamento governamental (theōrikaacute) a maioria do puacuteblico no teatro advinha da elite (SCODEL 2011 p 53)
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24) Os mitos em si satildeo bastante variaacuteveis existem mitos que natildeo tecircm uma uacutenica versatildeo
Afrodite por exemplo eacute filha de Zeus em Homero (Iliacuteada V v 131) e filha de Uranos em
Hesiacuteodo (Teogonia vv 180-200) Os mitos eram passados de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela via
oral tanto pelos poetas quanto pelos proacuteprios ouvintes que passavam as histoacuterias adiante
Aleacutem disso como vimos esses mitos circulavam mesmo na eacutepoca traacutegica as peccedilas poderiam
ser apresentadas em localidades outras aleacutem de Atenas Por isso que os mitos possuiacuteam uma
variaccedilatildeo muito grande de regiatildeo para regiatildeo sobretudo antes de terem sido escritos como na
eacutepoca arcaica O poema ldquooriginalrdquo (se assim considerarmos que existia um) sempre chega
com modificaccedilotildees conforme passa de uma pessoa para outra
Esses textos foram copiados e recopiados ao longo dos seacuteculos durante a denominada
Idade Meacutedia os manuscritos eacutepicos traacutegicos e historiograacuteficos serviam para o ensino do
grego Os copistas reproduziam determinados textos gregos conforme o gosto de quem os
encomendava Devido a isso muito se pensou que durante a Idade Meacutedia as obras da Greacutecia
Antiga se perderam entretanto isso eacute inverificaacutevel visto que foi a partir dos manuscritos
conservados em bibliotecas que foram possiacuteveis as ediccedilotildees impressas que temos hoje
Por causa dessa circulaccedilatildeo intensa dos eacutepicos e das trageacutedias existem as
interpolaccedilotildees versos inseridos a posteriori Em relaccedilatildeo a Homero desde a Antiguidade23
seus poemas satildeo como o pomo da discoacuterdia pois muita tinta foi derramada e muitos autores
jaacute debateram tanto sobre sua verossimilhanccedila quanto pela sua autoria conteuacutedo ou forma
Esses estudos se baseiam nos poemas em texto jaacute cristalizados pela escrita24 O trabalho com
as obras de Homero assim esbarra com a Questatildeo Homeacuterica Ela se constitui de uma seacuterie de
debates acerca da autoria da veracidade e da unidade dos poemas e muito jaacute se escreveu sobre
ela desde o seacuteculo XVIII De fato um Homero parece natildeo ter existido mas cremos que o fio
condutor dos dois poemas que lhes datildeo unidade eacute a proacutepria ideologia que os perpassa Natildeo
se comprovou ainda a existecircncia da Guerra de Troia conjectura-se que se ela ocorreu
provavelmente foi entre 1250-1240 aC quando a regiatildeo de Wilǔsa estava em disputa No
entanto eacute fato que a sociedade representada por Homero tem uma materialidade histoacuterica
23 Robert Aubreton elenca os criacuteticos de Homero que satildeo conhecidos Demoacutecrito de Abdera Hiacutepias de Eacutelis Estesiacutembroto de Tasos Hiacutepias de Tasos Aristoacuteteles Cameleatildeo Heraacuteclides Pocircntico Filotas de Coacutes Zenoacutedoto de Eacutefeso Neoptoacutelemo de Paacuterio Aristoacutefanes de Bizacircncio e Aristarco 24 Eacute comum a ideia de que Pistiacutestrato tirano grego no seacuteculo VI mandou que se colocassem por escritos os poemas homeacutericos graccedilas aos escritos de Wolf que a partir de documentaccedilatildeo oriunda da Antiguidade concluiu isso (WHITMAN 1965 p 66) Contudo o helenista norte-americano Cedric Whitman afirma que essa ideia eacute impossiacutevel pois ldquoos dois grandes eacutepicos nacionais dos gregos ndash se lsquonacionalrsquo eacute colocado para significar pan-helecircnico ou pan-ateniense e de certo modo satildeo os dois ndash nunca poderia ter nascido de um programa cultural engendrado por um tirano [despot]rdquo (WHITMAN 1965 p 74) Ele mostra uma seacuterie de outras origens para o eacutepico mostrando que eacute mais plausiacutevel diversas versotildees tivessem existido
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Como mostramos em nossa introduccedilatildeo os poemas homeacutericos foram compostos no
seacuteculo VIII aC mas referem-se ao seacuteculo XIII aC Desse modo elas imiscuem dois
periacuteodos o Palaciano (XVII-XII aC) e o Poliacuteade Arcaico (VIII-VII aC) A arqueologia
tem nos revelado muito acerca dessa constataccedilatildeo e esbarraremos com algumas delas ao longo
do nosso estudo de caso Por exemplo em Homero haacute a presenccedila de duas praacuteticas funeraacuterias
a inumaccedilatildeo e a incineraccedilatildeo Aquela era mais comum na eacutepoca dos palaacutecios as escavaccedilotildees em
Cnossos e Micenas revelaram vaacuterios tuacutemulos escavados ou com cuacutepula (thoacuteloi) A praacutetica de
incinerar os mortos comeccedila a surgir na eacutepoca micecircnica mas se difunde ao longo do periacuteodo
poliacuteade A metalurgia do ferro natildeo era comum na Greacutecia na eacutepoca dos palaacutecios o bronze era
o metal predominante Jaacute na eacutepoca de composiccedilatildeo dos poemas ela era largamente praticada
O poeta mistura elementos de um tempo preteacuterito e de um presente a fim tanto de ambientar
sua obra quanto tornar a sociedade que ele representa familiar agrave sua audiecircncia
Estrabatildeo (c 6463 aC ndash 24 aC) geoacutegrafo grego resgata o debate entre Poliacutebio (203-
120 aC) e Eratoacutestenes (c 276273 aC ndash 194 aC) acerca dos poemas homeacutericos Este
uacuteltimo acredita que o intuito do poeta foi apenas entreter seu puacuteblico com uma histoacuteria
fantasiosa desprovendo seus poemas de quaisquer informaccedilotildees veriacutedicas Poliacutebio reconhece
que o relato homeacuterico eacute imerso em fantasia mas evidencia ldquoa existecircncia de dados histoacutericos e
geograacuteficos corretosrdquo (GABBA 1986 p 38) Estrabatildeo se inclina para essa uacuteltima opiniatildeo
reconhecendo que tanto a Iliacuteada quanto a Odisseia contam eventos que realmente ocorreram
como a guerra de Troia e as viagens de Odisseu do mesmo modo que afirma serem os dados
geograacuteficos e topograacuteficos de uma grande precisatildeo (GABBA 1986 p 39)
Hoje nos debruccedilamos sobre as epopeias de Homero cientes de que veraz eacute um termo
extremo para designar as narrativas homeacutericas Verossiacutemil talvez agrave medida que a arqueologia
nos forneceu muitos dados os quais mostram que Iliacuteada e a Odisseia natildeo estatildeo
completamente fora nem do tempo em que foram compostas nem do tempo a que se referem
Natildeo podemos contudo negar essa materialidade dos poemas porque ele possui uma
ancoragem social espacial e temporal
O texto literaacuterio eacute o ldquoobjeto de conhecimento que representa alegoricamente o ponto
de vista do escritor [autor] a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31 ndash grifos
nossos) e eacute essa ldquorealidade humanardquo que vai nos interessar tanto no estudo da poesia eacutepica
quanto da traacutegica sendo esses dois gecircneros discursivos profiacutecuos para o estudo da eacutepoca que
esses textos foram compostos As epopeias e as trageacutedias natildeo representam a sociedade
30
palaciana (do periacuteodo da Guerra de Troia) mas a sociedade poliacuteade arcaica e a claacutessica em
que o aedo e o tragedioacutegrafo compuseram respectivamente
No caso da trageacutedia essas interpolaccedilotildees tambeacutem existem a classicista Ruth Scodel
traz a ideia de que Ifigecircnia em Aacuteulis por exemplo tem partes que natildeo foram escritas por
Euriacutepides e que muitos especialistas concordam que a fala final do mensageiro natildeo estava na
trageacutedia original (SCODEL 2011 p 6) A exclusatildeo do nosso corpus da trageacutedia Rhesus
deveu-se dentre outros motivos ao fato de natildeo sabermos se ela realmente foi escrita por esse
tragedioacutegrafo A Antiguidade eacute um periacuteodo da Histoacuteria que possui escassez de documentaccedilatildeo
escrita e isso dificulta o trabalho do historiador da literatura grega Aleacutem disso esbarramos
frequentemente com esses problemas documentais os quais apresentamos acima Nesse
sentido a Arqueologia nos ajuda bastante ao trazer agrave luz a cultura material da eacutepoca bem
como o faz a Filologia ao tentar recuperar fragmentos perdidos de textos antigos
O papel desse uacuteltimo ramo das Ciecircncias Humanas eacute particularmente importante no
caso de um de nossos textos o fragmento traacutegico Alexandre de Euriacutepides Essa trageacutedia eacute
peculiar nesse estudo pois apenas fragmentos dela chegaram ateacute noacutes Sabemos como esses
materiais (em especial o papiro) satildeo pereciacuteveis e no caso de Alexandre aleacutem da maior parte
da trageacutedia ter se perdido no tempo muitas palavras e ateacute mesmo a indicaccedilatildeo de sujeitos
enunciadores desconhecemos no fragmento 54 por exemplo o personagem que fala pode ser
tanto Paacuteris quanto um mensageiro No fragmento 62a haacute vaacuterias lacunas no iniacutecio de alguns
versos (vv 4 6 11-14 16 e 17) devido ao desgaste do tempo nas bordas do papiro que levou
para sempre o que estava escrito ali
No entanto algumas sentenccedilas satildeo passiacuteveis de serem reconstituiacutedas e especialistas em
liacutengua grega constantemente se debruccedilam sobre esse tipo de documentaccedilatildeo para tentar
preencher esses vazios causados pela deterioraccedilatildeo do material Como satildeo vaacuterias as pessoas
que se dedicam a isso vaacuterios podem ser os resultados finais desses preenchimentos Abaixo
um exemplo de como trecircs estudiosos podem fazer essa reconstituiccedilatildeo de maneira diferente
Reconstituiccedilatildeo do Reconstituiccedilatildeo do argumento Reconstituiccedilatildeo do
31
argumento (test iii l 17-
18) de R A Coles (1974)
(test iii l 17-18) de W
Luppe (1977)
argumento (test iii l 17-
18) de Christopher
Collard e Martin Cropp
(2008)
ἐπερωτηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω [] π[1-2]ρειτο καὶ
[]
ἀπ[ολο]γηθεὶς [δ]ὲ επὶ τοῦ δυνά-
στο[υ] τ[ι]microωρ[ίαν] π[α]ρεῖτο καὶ
[]
ηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω[][()]ρειτο καὶ
[]
Luppe e Coles completam algumas lacunas que Collard e Cropp preferem deixar
apenas com a indicaccedilatildeo de que havia algo ali que foi perdido Assim como Collard e Cropp agraves
vezes datildeo certeza de algo que em Coles e Luppe estava indicado como uma suposiccedilatildeo (como
no caso da palavra dynaacutestou)
Desse modo esse tipo de documentaccedilatildeo estaacute sempre em modificaccedilatildeo embora como
David Kovacs reconhece (KOVACS 2002 p 48) o assunto do texto em si natildeo se modifique
(aqui no caso do argumento a ideia da existecircncia de um agoacuten que eacute o proacuteprio tema da peccedila
em si uma vez que ela trata da disputa entre Paacuteris e Diomedes pela vitoacuteria nos jogos
realizados por Troia) No caso de Alexandre o argumento25 encontrado apenas
posteriormente agrave descoberta dos restos da trageacutedia em si foi essencial para saber do que de
fato ela se tratava e para ajudar os pesquisadores a tentar chegar a um consenso sobre essas
perdas leacutexicas e de indicaccedilotildees dos sujeitos enunciadores
Essa trageacutedia provavelmente era a primeira de uma tetralogia (trageacutedia 1 + trageacutedia 2
+ trageacutedia 3 + drama satiacuterico) que se constituiacutea dela mesma de Palamedes (tambeacutem
fragmentaacuteria) de As Troianas e de Siacutesifo (desaparecida) Haacute questionamentos acerca dessa
ideia mas eacute inegaacutevel que as trecircs trageacutedias tecircm muito em comum a accedilatildeo de Alexandre
comeccedila na montanha (monte Ida) Palamedes se desenrola nas planiacutecies (a cidade em si) e As
Troianas eacute ambientada na praia (acampamento grego) o que denota uma organicidade na
composiccedilatildeo da trilogia e um movimento progressivo sobretudo porque a proacutepria Atenas era
assim constituiacuteda espacialmente (MARISCAL 2003 p 214 e p 444)
A helenista Luciacutea Romero Mariscal trabalha especificamente com Alexandre e suas
propostas chamaram nossa atenccedilatildeo pelo fato de ela mostrar como o tema da peccedila eacute
extremamente influenciado pelos acontecimentos da eacutepoca bem como ela conseguir
relacionar o personagem principal (Paacuteris) a Alcibiacuteades cidadatildeo ateniense que ajudou os
25 O argumento eacute uma anotaccedilatildeo feita por estudiosos copistas que antecede a trageacutedia Ele a resume e pode dar algumas informaccedilotildees importantes no tocante agrave sua apresentaccedilatildeo
32
espartanos durante a Guerra do Peloponeso (431-404 aC) e que possuiacutea ambiccedilotildees tiracircnicas26
Ruth Scodel chama atenccedilatildeo ao fato de que essas correlaccedilotildees satildeo comuns mas que sempre
encontram questionamentos
Edith Hall critica muito os autores que procuram relacionar a qualquer custo as
trageacutedias a um acontecimento da eacutepoca geralmente relativo agrave Guerra do Peloponeso
afirmando que elas natildeo representam a vida cotidiana de Atenas mas um ideal do que ela
deveria ser (HALL 2010 p 168 1997 p 94) Concordamos em parte com essa afirmaccedilatildeo
estamos lidando com um discurso no qual a ideologia dominante estaacute presente visto que se
trata aqui de uma legitimaccedilatildeo dos valores ideais que um cidadatildeo deve possuir No entanto
Euriacutepides quando escreve suas peccedilas natildeo eacute completamente indiferente aos acontecimentos da
sua eacutepoca pois como vimos todo texto literaacuterio representa o ponto de vista do autor sua
visatildeo de mundo De fato seria uma imprudecircncia acadecircmica querer encaixar cada trageacutedia
num acontecimento especiacutefico forccedilando uma correspondecircncia falaciosa mas eacute possiacutevel
reconhecer dilemas intriacutensecos agraves discussotildees acerca da guerra em algumas trageacutedias
Alexandre veremos parece ter conexatildeo latente com o episoacutedio da peste em Atenas bem
como Euriacutepides parece mostrar com As Troianas sua opiniatildeo acerca da invasatildeo de Melos ou
Siracusa
O contexto histoacuterico ateniense de Androcircmaca (c 426 aC) natildeo eacute o mesmo que o de
Orestes (c 408 aC) pois esta eacute encenada no fim da Guerra do Peloponeso e aquela no
iniacutecio Atenas muda muito nesses 27 anos de guerra e graccedilas sobretudo ao relato de
Tuciacutedides conhecemos mais pormenorizadamente os acontecimentos da eacutepoca Do mesmo
modo algumas trageacutedias trazem releituras do mito a fim de demonstrar algo especiacutefico
Helena traz uma Helena que nunca foi para Troia Ele toma emprestado de Estesiacutecoro e
Heroacutedoto a ideia de Helena ter ficado no Egito durante a Guerra de Troia em vez de ter
estado laacute o tempo todo (como acontece em Homero) (SCODEL 2011 p 162 HALL 2010
p 279) Um eiacutedolon teria sido colocado em Troia e na verdade a rainha estaria esperando por
seu esposo Menelau no Egito A Guerra de Troia afinal teria sido causada por uma ilusatildeo
por nada Isso reforccedila o discurso ldquopacifistardquo euripidiano em suas trageacutedias troianas
geralmente ambientadas num cenaacuterio poacutes-guerra a ideia de que a guerra traz mais prejuiacutezos e
sofrimentos do que benefiacutecios estaacute sempre presente (JOUAN 2000 p 5)
Esse episoacutedio nos mostra tambeacutem como o mito pode ter uma atualizaccedilatildeo eacutetica Helena
deixa de ser a maacute esposa e passa a ser um modelo para as esposas atenienses da eacutepoca pois
26 Vamos aprofundar essas ideias no capiacutetulo seguinte (Paacuteris o causador de males)
33
traz a ideia da fidelidade ao marido O proacuteprio Paacuteris deixa de ser um exemplo exclusivamente
heroico e se transforma no modelo do que eacute baacuterbaro como defendemos Isso tem a ver
diretamente com a proacutepria eacutepoca em que se compotildee a dicotomia ldquogrego versus baacuterbarordquo no
seacuteculo V aC se consolida ao mesmo tempo em que em Euriacutepides entra em crise sendo
necessaacuterio reiterar aos cidadatildeos atenienses a ideia do que eacute o baacuterbaro
Natildeo eacute correto afirmar que as Guerras Greco-Peacutersicas foram o marco inicial para se
pensar a etnicidade helecircnica (HALL 1989 p VLASSOPOULOS 2013 p 163) pois desde
Homero como estamos vendo isso eacute verificaacutevel O historiador Kostas Vlassopoulos chama a
atenccedilatildeo para esse debate
Acadecircmicos modernos tecircm frequentemente interpretado esse fenocircmeno [dos troianos serem mostrados praticamente iguais aos gregos] argumentando que no tempo de Homero (o seacuteculo oitavo) a identidade grega estava ainda incipiente [inchoate] e a justaposiccedilatildeo de todos os natildeo-gregos como baacuterbaros natildeo tomou lugar Essa eacute uma interpretaccedilatildeo histoacuterica que induz ao erro [misleading] [] mas tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo literaacuteria dos eacutepicos homeacutericos que induz ao erro Natildeo devemos subestimar a sofisticaccedilatildeo poeacutetica desses eacutepicos [] Quando ele descreve como o liacuteder dos caacuterios barbarophonoi [sic] ldquoveio para a guerra todo decorado com oureo como uma garota bobo que ele erardquo o tema da luxuacuteria efeminada baacuterbara e a desaprovaccedilatildeo grega disso estaacute claramente presente (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
Do mesmo modo natildeo eacute correto dizer que os gregos soacute comeccedilaram a lutar entre si a
partir da Guerra do Peloponeso muitos gregos lutaram contra gregos jaacute nas Guerras Greco-
Peacutersicas (VLASSOPOULOS 2013 p 55) As poacuteleis natildeo eram tatildeo unidas quanto geralmente
se pensa que elas satildeo ldquoos gregos natildeo tinham nenhum centro ou instituiccedilatildeo em torno da qual
se poderia organizar sua histoacuteria as comunidades falantes de grego estavam dispersas por
todo o Mediterracircneo e elas nunca alcanccedilaram uma unidade poliacutetica econocircmica ou socialrdquo
(VLASSOPOULOS 2007 p 91) Ainda segundo Kostas Vlassopoulos o que dava unidade a
essas comunidades eram as networks existentes marinheiros comerciantes soldados
intelectuais todos criavam uma rede de circulaccedilatildeo de pessoas produtos e ideias que unia
essas poacuteleis assemelhando-se agrave nossa globalizaccedilatildeo moderna (termo inclusive que o
historiador usa para se referir a esse fenocircmeno na Antiguidade grega)
Segundo o historiador britacircnico Frank William Walbank o que unia os gregos era
justamente a religiatildeo e a cultura em comum (2002 p 245) Essa ideologia era compartilhada
por todas as poacuteleis mas elas particularizavam-na Satildeo conhecidas as peculiaridades de
Esparta Atenas Corinto e principalmente das poacuteleis que ficavam em regiotildees de apoikiacuteai
(colocircnias) essas regiotildees eram loci privilegiados de trocas culturais entre a cultura grega e as
34
culturas Outras que rodeavam esses locais (VLASSOPOULOS 2013 p 277) O historiador
iraniano Irad Malkin mostra como Odisseu pode ser visto como um heroacutei protocolonial visto
que por todos os lugares que ele passa ele vai deixando sua ldquomarcardquo embatendo-se
constantemente com Outros no seu caminho de volta para casa (MALKIN 1998 p 2) O
proacuteprio mar era um ambiente propiacutecio ao encontro com alteridades muitas vezes hostis
(LESSA SOUSA 2014 p )
Debruccedilar-nos sobre as obras literaacuterias a fim de comprovar as descobertas
arqueoloacutegicas ou o que aconteceu de fato durante a guerra (seja a de Troia seja a do
Peloponeso) ou se os heroacuteis de miacuteticos existiram de verdade eacute uma veleidade Contudo natildeo eacute
impossiacutevel relacionaacute-las com o momento de sua composiccedilatildeo Portanto eacute mais profiacutecuo 1)
tentarmos compreender as representaccedilotildees de Paacuteris levando em conta os elementos de
ancoragem histoacuterica e social da obra relacionando texto com seus contextos intra e
extralinguiacutesticos e 2) buscarmos os modos pelos quais aquela sociedade funcionava e as
representaccedilotildees sociais que a legitimavam e mantinham as suas fronteiras eacutetnicas atraveacutes da
anaacutelise das praacuteticas discursivas O historiador italiano Emilio Gabba nos mostra
elucidativamente isso em relaccedilatildeo a Homero
Em qualquer caso e contemplando separadamente a investigaccedilatildeo sobre os poemas e a anaacutelise da realidade histoacuterica dos feitos descritos o aproveitamento histoacuterico da obra homeacuterica seraacute seguro e maior sempre que apontar para o estudo de aspectos como famiacutelia vida social e poliacutetica instituiccedilotildees e normas princiacutepios eacuteticos comportamento religioso cultura material ou fatores econocircmicos Os siacutemiles entre os poemas satildeo em suma particularmente reveladores (GABBA 1986 p 45 ndash grifos nossos)
Os costumes apresentados na Iliacuteada na Odisseia e nas trageacutedias satildeo modelares para
aqueles que ouvem os poemas ou assistem agraves encenaccedilotildees todo o modo de conduta social dos
heroacuteis eacute trabalhado de modo a servir como exemplo para os kaloigrave kaigrave agathoiacute ou seja os
ldquobelos e bonsrdquo os aristocratas Esses homens eram o puacuteblico do aedo (CARLIER 2008 p
15 AUBRETON 1968 p 138) e mais tarde seratildeo os dos traacutegicos O aedo cantava aquilo
que o puacuteblico queria ouvir Temos exemplo disso ateacute mesmo na proacutepria Odisseia pois
quando a canccedilatildeo de Demoacutedoco aedo da Feaacutecia natildeo agrada mais mandam-lhe parar de tocar
[] Δηmicroόδοκος δ᾽ ἤδη σχεθέτω φόρmicroιγγα λίγειαν οὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόmicroενος τάδ᾽ ἀείδει ἐξ οὗ δορπέοmicroέν τε καὶ ὤρορε θεῖος ἀοιδός ἐκ τοῦ δ᾽ οὔ πω παύσατ᾽ ὀιζυροῖο γόοιο ὁ ξεῖνος microάλα πού microιν ἄχος φρένας ἀmicroφιβέβηκεν
35
ἀλλ᾽ ἄγ᾽ ὁ microὲν σχεθέτω ἵν᾽ ὁmicroῶς τερπώmicroεθα πάντες ξεινοδόκοι καὶ ξεῖνος ἐπεὶ πολὺ κάλλιον οὕτως [] natildeo mais ressoe a ciacutetara o cantor Demoacutedoco pois sua poesia natildeo agrada a todo ouvinte Assim que nos pusemos a cear e o aedo comeccedilou o hoacutespede natildeo mais reteve o pranto a anguacutestia circum-envolveu seu pericaacuterdio Demoacutedoco jaacute basta Que anfitriotildees e o hoacutespede possam unir-se na alegria (Odisseia VIII vv 537-543)
Os traacutegicos natildeo tinham uma liberdade total para encenar o que quisessem eles
escreviam as suas trageacutedias as quais passavam por um crivo antes de serem encenadas
(SCODEL 2011 p 43) Aleacutem disso havia os juiacutezes responsaacuteveis por decidir qual peccedila
merecia o primeiro precircmio Aquela que ficava em segundo ou que nem ganhava era uma peccedila
que natildeo foi do gosto dos jurados27 Quando vamos estudar as trageacutedias eacute importante termos
em mente quais peccedilas ganharam pois isso significa que elas serviram mais ao modelo
ideoloacutegico poliacuteade No caso de Euriacutepides apenas duas trageacutedias suas ganharam o primeiro
precircmio (Ifigecircnia em Aacuteulis e Hipoacutelito) Orestes ganhou o segundo Na realidade sua fama foi
poacutestuma pois seu estilo de composiccedilatildeo influenciou bastante as geraccedilotildees posteriores de
tragedioacutegrafos Secircneca por exemplo para compor sua As Troianas inspirou-se nrsquoAs
Troianas e na Heacutecuba de Euriacutepides Aleacutem disso suas trageacutedias foram bastante reencenadas
em periacuteodos posteriores nos quais Atenas jaacute tinha perdido toda a sua gloacuteria e esplendor
(SCODEL 2011 p 43)
No teatro era a poacutelis que estava sendo representada desde os ritos que precediam a
encenaccedilatildeo traacutegica28 (inscrita num espaccedilo religioso pois eram realizadas dentro das Grandes
Dionisiacuteacas e das Leneias) ateacute todo o espaccedilo do odeacuteon (incluindo o palco atraveacutes das
encenaccedilotildees que colocavam em destaque as instituiccedilotildees e valores poliacuteades e os assentos do
puacuteblico (theaacutetron) que eram organizados de modo tal que os cidadatildeos podiam natildeo soacute
enxergar uns aos outros como tambeacutem podiam reconhecer atraveacutes do lugar que se ocupava
aqueles mais proeminentes dentro da poacutelis ateniense) Eacute a siacutentese da ideia da publicidade das
accedilotildees que existe desde a poesia eacutepica e atinge seu aacutepice durante a democracia uma
publicidade direcionada aos interesses poliacuteades
27 Sobre detalhes desse julgamento ver o toacutepico Finances and Contests do capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 28 Para mais detalhes sobre os ritos que precediam as competiccedilotildees traacutegicas ver o toacutepico The Festivals no capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas)
36
No entanto eacute inviaacutevel dimensionar a opiniatildeo dos sujeitos receptores natildeo podemos
especular sobre a recepccedilatildeo das peccedilas em relaccedilatildeo a todos os espectadores ainda mais quando
temos em mente que essas peccedilas podiam circular pelas outras poacuteleis e regiotildees de colonizaccedilatildeo
as quais possuiacuteam um puacuteblico bem mais heterogecircneo do que o ateniense (HALL 2006 p 29)
O mesmo acontece com as epopeias de Homero natildeo temos como precisar a recepccedilatildeo dos
poemas que tambeacutem tinham uma audiecircncia bem heterogecircnea Desse modo cabe a noacutes
historiadores observar qual o efeito pretendido sobre os sujeitos destinataacuterios ao se compor
esses textos
A Iliacuteada uacutenico poema homeacuterico que trata de Paacuteris nos conta a histoacuteria da ira de
Aquiles (ROMILLY sd p 18) Por causa dessa temaacutetica comum aos Cantos e da proto-pan-
helenicidade do poema (MITCHELL 2007 p 54) cremos que a Iliacuteada tem uma unidade
intriacutenseca Contudo essa opiniatildeo natildeo eacute uma unanimidade no tocante aos questionamentos
acerca da forma do poema havia duas escolas filoloacutegicas a de Alexandria e a de Peacutergamo
(surgidas por volta do seacuteculo IV aC) as quais possuiacuteam posturas divergentes acerca das
epopeias de Homero A primeira praticava a atetese tudo o que se cria natildeo pertencer agrave Iliacuteada
original se suprimia Jaacute a segunda preferia a exegese ou seja a criacutetica do texto sem omitir
versos
Em 1795 F A Wolf publicou seu Prolegomena ad Homerum o qual deu iniacutecio agrave
ldquoquestatildeo homeacutericardquo e a uma seacuterie de trabalhos denominados analistas neles procura-se
analisar as epopeias de Homero visando criticar filologicamente esses textos apontando para
as contradiccedilotildees as dissonacircncias entre Iliacuteada e Odisseia e os elementos de pouca
verossimilhanccedila na obra Em contraponto a essas teses haacute os unitaristas que defendem a
unidade dos poemas Ainda existem os neo-analistas eles natildeo desconsideram todo o debate
acerca de algumas incongruecircncias das epopeias mas creem que haja uma certa
homogeneidade das obras oriundas de uma tradiccedilatildeo anterior ao poeta o qual com sua
genialidade teria reunido e composto um texto uacutenico
Para Robert Aubreton e Gregory Nagy os poemas homeacutericos possuem uma unidade
intriacutenseca porque derivam dessa tradiccedilatildeo eacutepica precedente A proacutepria Telemaacutequia (Cantos I-
IV da Odisseia) as narrativas de retorno dos noacutestoi os relatos de batalhas singulares entre
heroacuteis satildeo temas anteriores agrave composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Homero ou quem quer que
tenha composto essas duas epopeias conhecia tais histoacuterias e se baseou nelas para compor as
suas proacuteprias
37
O que chama atenccedilatildeo eacute o que configura o sentido do discurso do aedo as noccedilotildees de
alḗtheia e lḗthē (ldquoesquecimentordquo) A funccedilatildeo do poeta eacute rememorar os feitos de deuses e
homens natildeo deixando que se esqueccedila deles Para a sociedade isso eacute fulcral o homem morre
fisicamente mas sua memoacuteria eacute imortal se ele assim merecer Para ganhar essa gloacuteria
imorredoura ele precisa ser reconhecido pela sua proacutepria sociedade e assim ser cantado por
geraccedilotildees Ele precisa agir em conformidade com o que aquela sociedade espera de um heroacutei
Dentre alguns valores ressaltamos alguns com os quais vamos trabalhar mais adiante a aretḗ
(excelecircncia) a timḗ (honra) kleacuteoskŷdos (gloacuteria) kalograves thaacutenatos (bela morte) e alkḗandreiacutea
(coragem)
Euriacutepides eacute influenciado por essa tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica e esses valores tambeacutem
perpassam as suas obras o heroacutei homeacuterico natildeo se diferencia tanto do heroacutei traacutegico pois haacute
muita tenuidade entre eles como veremos Contudo na trageacutedia a ideia da falha do erro
hamartiacutea eacute muito mais forte embora na epopeia exista uma ideia semelhante a qual traz agrave
tona um questionamento sobre a infalibilidade do heroacutei a aacutetē (perdiccedilatildeo) que tem estreita
ligaccedilatildeo com desiacutegnios divinos A trageacutedia traz o heroacutei falho e as situaccedilotildees que o envolvem
servem de catarse para o puacuteblico eacute assistindo agravequeles personagens que o cidadatildeo poliacuteade
toma consciecircncia dos problemas da sociedade e de si mesmo Ao mesmo tempo a trageacutedia
implica em permanecircncia e mudanccedila ela legitima os valores (pan-)helecircnicos e os critica a fim
de estimular essa mudanccedila e desse modo manter viva a sociedade
Aleacutem da forma29 um dos pontos que tornam a trageacutedia um gecircnero discursivo (visto
que haacute semelhanccedilas entre uma trageacutedia e outra) eacute a utilizaccedilatildeo do material miacutetico cultural
Essas histoacuterias se passavam em ldquoum passado que jaacute era remoto para a audiecircncia da Atenas
antigardquo (SCODEL 2011 p 3) Para os gregos os heroacuteis e deuses existiram de verdade eram
parte de sua histoacuteria Aquiles Paacuteris ou Heitor existiram para eles Como vimos o mesmo
mito eacute contado e recontado nos palcos mas o que vai diferenciar os tragedioacutegrafos de Homero
e por sua vez um tragedioacutegrafo do outro eacute 1) o modo como o mito eacute contado (figurino
maacutescaras diaacutelogos entre os personagens) 2) as modificaccedilotildees no mito que os autores fazem a
fim de servirem a seus propoacutesitos 3) as atualizaccedilotildees eacuteticas desses mitos e 4) as alusotildees aos
acontecimentos contemporacircneos 29 ldquoA trageacutedia era um tipo especiacutefico de drama Era encenada por atores (em Atenas natildeo mais que trecircs) e um coro de doze depois quinze que cantavam e danccedilavam auxiliados por um tocador de auloacutes um instrumento de sopro [reeded wind instrument] Na maioria das partes os atores usavam um verso falado principalmente o trimetro iacircmbico ou recitativo enquanto os coros cantavam entre cenas mas o liacuteder do coro poderia falar pelo grupo durante as cenas dos atores enquanto os atores poderiam cantar ambos em resposta ao coro e em monoacutedio [both in responsion with the chorus and in monody]rdquo (SCODEL 2011 p 3 ndash traduzido do original em inglecircs por Renata Cardoso de Sousa e Bruna Moraes da Silva)
38
Esse passado miacutetico eacute um dos elementos que constituem a fronteira eacutetnica helecircnica O
antropoacutelogo Christian Karner chama atenccedilatildeo para o fato de que a etnicidade eacute ldquoamplamente
associada agrave cultura descendecircncia memoacuteriahistoacuteria coletivas e liacutenguardquo (KARNER 2007 p
17) Ele retoma a ideia de ethnie (etnia) proposta por John Hutchinson e Anthony Smith que
seria um grupo restrito a um determinado espaccedilo que se designa sob um etnocircmio com mitos e
elementos culturais em comum uma memoacuteria histoacuterica compartilhada e um senso de
solidariedade entre os seus membros (KARNER 2007 p 18) Essa ideia dialoga bastante
com a noccedilatildeo de grupo eacutetnico de Fredrik Barth a qual delineamos em nossa Introduccedilatildeo
Portanto os gregos se constituiacuteam num grupo eacutetnico que utilizava o discurso como
meio de (re)definir suas fronteiras eacutetnicas e desse modo garantir a sua existecircncia No acircmbito
textual Homero eacute o responsaacutevel por tentar fixar essas fronteiras ele traz agrave memoacuteria as
histoacuterias dos heroacuteis do passado e dos deuses do presente bem como ressalta a importacircncia dos
ancestrais visto que um indiviacuteduo eacute sempre reconhecido por sua filiaccedilatildeo Aquiles eacute o Peacutelida
(filho de Peleu) Diomedes eacute o Tidida (filho de Tideu) e mesmo Zeus um deus tem como um
dos epiacutetetos ldquoCrocircnidardquo (filho de Cronos)
Euriacutepides apresenta constantemente o tema da destruiccedilatildeo da linhagem familiar como
um grande problema natildeo somente para o indiviacuteduo mas para a comunidade em nosso corpus
documental Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes trazem
episoacutedios de desmantelamento da famiacutelia A primeira trageacutedia mostra o sofrimento de
Androcircmaca ao tentar proteger seu filho da fuacuteria de Hermiacuteone sendo que a personagem
mesma jaacute sofrera com a morte de Astyacuteanax seu primogecircnito que eacute abordada em As
Troianas A filha de Helena por sua vez amargura-se por natildeo conseguir ter um filho com
Neoptoacutelemo seu marido sem filhos natildeo haacute herdeiros de bens materiais e imateriais como a
memoacuteria da linhagem Eacute como se o nome da famiacutelia morresse na memoacuteria social pois os
filhos satildeo responsaacuteveis por mantecirc-la viva Na Iliacuteada um dos maiores medos expressos eacute o de
perder o filho na guerra e natildeo ter a quem deixar a heranccedila ou ter que reparti-la com parentes
distantes (V vv 152-158)
Em As Troianas aleacutem do sofrimento de Androcircmaca vemos o de Heacutecuba que se
desespera por Polixena ter sido dada em sacrifiacutecio A rainha de Troia sofre tambeacutem em
Heacutecuba a perda do filho Polidoro morto brutalmente pelo traacutecio sedento de riquezas a quem
ele estava confiado Ifigecircnia se daraacute ao sacrifiacutecio assim como Polixena em Ifigecircnia em
Aacuteulis levando ao desespero sua matildee Clitemnestra Embora a preferecircncia seja por filhos do
sexo masculino eram as filhas as responsaacuteveis pelos funerais dos mortos as mulheres
39
exerciam um papel fundamental no enterro dos entes queridos (HALL 1997 p 106) As
trageacutedias mesmas nos mostram isso como eacute o caso de Antiacutegona de Soacutefocles o tema central
da peccedila eacute o esforccedilo da personagem homocircnima para conseguir dar um funeral adequado ao
irmatildeo que por ter assassinado o proacuteprio irmatildeo eacute condenado a ficar aos corvos sem enterro
Agamemnon pai de Ifigecircnia amaldiccediloa Paacuteris por ter causado toda a situaccedilatildeo de sua
famiacutelia natildeo fosse ele ter que partir para Troia para resgatar a cunhada a filha estaria a salvo
Contudo a sorte do rei de Micenas estaacute traccedilada de uma vez por todas pois sua mulher o
assassina no retorno da guerra Com a famiacutelia desmantelada Orestes filho do casal
desencadearaacute uma vinganccedila desmesurada mata a matildee e tenta matar Helena em Orestes
atraindo para si a fuacuteria das Eriacutenias divindades responsaacuteveis por atormentar aqueles que
cometiam atos indignos sobretudo o assassinato de familiares
Edith Hall mostra como ldquoa vida familiar de um cidadatildeo era um componente da sua
identidade poliacuteticardquo (HALL 1997 p 104) puacuteblico e privado se misturavam A experiecircncia
social eacute fundamental para que um indiviacuteduo se sinta pertencente a um grupo eacutetnico e ajude a
manter essas fronteiras Desse modo os espaccedilos puacuteblicos de convivecircncia (o banquete a
aacutegora o templo o ginaacutesio o teatro) satildeo loci importantes dentro do grupo eacutetnico helecircnico
bem como a publicidade das accedilotildees um grego eacute um homem essencialmente puacuteblico Ele estaacute
exposto aos olhares do seus iacutesoi (iguais) e estes lhe julgam conforme seus atos o homem
grego natildeo eacute somente o homem do ser mas tambeacutem eacute o homem do fazer
Para ser social o homem grego deveria se instruir a educaccedilatildeo tinha um papel muito
importante dentro da Heacutelade Devia-se conhecer os coacutedigos de conduta e principalmente
praticaacute-los Segundo a filoacuteloga Carmem Soares ldquoa trageacutedia eacute um gecircnero literaacuterio regido por
uma poeacutetica didaacutetico-hedonistardquo (SOARES 1999 p 16) ou seja ao mesmo tempo em que
gera prazer e entretenimento educa Essa natildeo eacute uma caracteriacutestica exclusiva dela a poeacutetica
didaacutetico-hedonista adveacutem da poesia eacutepica que contava com deleite as faccedilanhas dos heroacuteis e
dos deuses Sua funccedilatildeo eacute imortalizar esses seres extraordinaacuterios conservando suas memoacuterias
para as geraccedilotildees vindouras tomarem-nos de exemplo
Os mitos as histoacuterias desses heroacuteis do passado servem de advertecircncia aos vivos
agravequeles que as ouvem A epopeia e a trageacutedia compilam toda uma tradiccedilatildeo miacutetica e o mito
por excelecircncia tem justamente a funccedilatildeo de ldquorevelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 1972 p 13 ndash grifos nossos) Ele ldquopossui o
espantoso poder de engendrar as noccedilotildees fundamentais da ciecircncia e as principais formas da
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culturardquo (DETIENNE 2008 p 34) sua difusatildeo constitui uma praacutetica de paideiacutea Assim os
poemas homeacutericos possuem uma funccedilatildeo paidecircutica (VIEIRA 2002 p 14) bem como as
trageacutedias de Euriacutepides
Paideiacutea eacute um termo que aparece pela primeira vez na documentaccedilatildeo no seacuteculo V
aC30 em uma trageacutedia de Eacutesquilo (JAEGER 2010 p 335) Traduzir esse termo eacute muito
difiacutecil literalmente significa criaccedilatildeo de meninos (paicircs significa ldquocrianccedilardquo) comumente
traduz-se como educaccedilatildeo mas esse termo natildeo contempla todo o significado da paideiacutea
(MOSSEacute 2004 p 107-108) ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas
Ela ldquoacaba por englobar o conjunto de todas as exigecircncias ideais fiacutesicas e espirituais que
formam a kalokagathia no sentido de uma formaccedilatildeo espiritual conscienterdquo (JAEGER 2010
p 335) A paideiacutea se configura num aspecto ideoloacutegico da sociedade como nos explica o
historiador Faacutebio de Souza Lessa
Por ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacutetica (LESSA 2010 p 22)
Assim preferimos explicar aqui o sentido de paideiacutea e deixar a palavra sem traduccedilatildeo
para o portuguecircs ela se constitui da transmissatildeo de saberes e praacuteticas culturais Os poemas
satildeo loci de paideiacutea porque contam mitos eles trazem uma seacuterie de modos de conduta caros agrave
sociedade helecircnica que vatildeo servir para formar o kalograves kagathoacutes e no seacuteculo V aC o politḗs
(cidadatildeo) Esses homens vatildeo se inspirar nos heroacuteis e nas suas faccedilanhas nos seus atos que satildeo
passados agraves geraccedilotildees futuras por intermeacutedio da poesia seja ela eacutepica liacuterica ou traacutegica
[] para que a honra heroica permaneccedila viva no seio de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores permaneccedila marcado pelo seu selo [o do heroacutei] eacute preciso que a funccedilatildeo poeacutetica mais do que objeto de divertimento tenha conservado um papel de educaccedilatildeo e formaccedilatildeo que por ela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um este conjunto de saberes crenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura () a epopeia desempenha o papel de paideiacutea exaltando os heroacuteis exemplares assim como os gecircneros literaacuterios lsquopurosrsquo como o romance a autobiografia o diaacuterio iacutentimo o fazem hoje (VERNANT 1978 p 42 ndash grifos nossos)
30 Jaeger ainda sublinha que os ideais educativos da paideiacutea que vatildeo ser desenvolvidos no seacuteculo V aC se baseiam em praacuteticas educativas muito anteriores (JAEGER 2010 p 1)
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Esses heroacuteis seguem esse modo de conduta social que eacute expresso pelas suas accedilotildees
Quando eles se desviam desse coacutedigo satildeo submetidos a uma vergonha social ou
(principalmente na trageacutedia) satildeo viacutetimas de reviravoltas agraves vezes incontornaacuteveis em suas
vidas Paacuteris como veremos erra ao fugir da batalha mas quando acusado pelo seu irmatildeo de
ser covarde retorna para recuperar sua honra Jaacute Eacutedipo heroacutei da trilogia tebana de Soacutefocles
mancha a honra da sua famiacutelia ao casar-se com sua proacutepria matildee e dessa hamartiacutea
desencadeiam-se uma seacuterie de episoacutedios fatiacutedicos que culminam na desgraccedila de sua linhagem
Seu destino mesmo jaacute estava (mal) traccedilado quando seu pai se apaixonou por um homem a
pederastia era uma praacutetica educacional comum na Greacutecia na qual um erasteacutes (mais velho)
ficava responsaacutevel por iniciar um eroacutemenos (mais novo) na vida adulta Contudo relacionar-
se sexualmente com um homem era vetado
Essas normas ajudam a reforccedilar essas fronteiras eacutetnicas helecircnicas que satildeo
constantemente abaladas pelo contato com os Outros Enquanto em Homero essas fronteiras
estatildeo sendo formadas em Euriacutepides elas estatildeo turvas Em Androcircmaca As Troianas
Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes vemos que o grego eacute passiacutevel de se barbarizar
sobretudo quando esse grego eacute um espartano Na primeira trageacutedia Hermiacuteone (uma
espartana) tem atitudes controversas e eacute mostrada usando muito ouro (v 147) mas natildeo chega
a ser comparada a uma baacuterbara Ela ainda eacute porta-voz de valores helecircnicos reforccedilando a ideia
de que Androcircmaca eacute a baacuterbara (v 261) Ela afirma que ldquoNatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade gregardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) Ela ainda afirma que ldquoEsse eacute o
modo como os baacuterbaros satildeo pai dorme com filha filho com matildee e irmatilde com irmatildeo gente
proacutexima assassina gente proacutexima e natildeo tem lei para prevenir issordquo [τοιοῦτον πᾶν τὸ
βάρβαρον γένος πατήρ τε θυγατρὶ παῖς τε microητρὶ microείγνυται κόρη τ᾽ ἀδελφῷ διὰ
φόνου δ᾽ οἱ φίλτατοι χωροῦσι καὶ τῶνδ᾽ οὐδὲν ἐξείργει νόmicroος] (vv 173-176)
Percebamos a caracterizaccedilatildeo do baacuterbaro por ela nessa passagem ela critica aqueles
que mantecircm relaccedilotildees sexuais dentro do nuacutecleo familiar (pai filho filha matildee irmatildeos) e o
assassinato entre phiacuteltatoi31 O tema da trilogia tebana de Soacutefocles gira em torno disso
Eacutedipo se casa com a matildee e seus netos se matam entre si Eacute interessante o resgate desse tema
31 Essa palavra eacute de difiacutecil traduccedilatildeo Em sua raiz estaacute phiacutelos (amigo) e o Le Grand Bailly indica esse vocaacutebulo para que possamos ter uma traduccedilatildeo de phiacuteltatos Contudo essas palavras natildeo tecircm o mesmo significado haacute uma razatildeo para Euriacutepides escolher phiacuteltatos em vez de phiacutelos Contudo quando traduz Phiacuteltatos (nome proacuteprio) coloca que eacute literalmente ldquobem-amadordquo [bien-aimeacute] (BAILLY 2000 p 2083) Cremos que ldquogente proacuteximardquo eacute o que mais se aproxima do sentido dessa palavra visto que phiacutelos designa essa ideia satildeo pessoas que se conhecem que satildeo proacuteximas que se assassinam
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pois Tebas era inimiga de Atenas sendo a poacutelis que teria comeccedilado a Guerra do Peloponeso
ao invadir Plateia regiatildeo de domiacutenio ateniense Natildeo podemos afirmar que Euriacutepides tinha isso
em mente quando compocircs Androcircmaca pois natildeo podemos ir aleacutem do que a documentaccedilatildeo
nos mostra mas mostrar como sendo algo baacuterbaro hamartiacuteai de heroacuteis tebanos eacute no miacutenimo
curioso
Menelau nessa peccedila eacute quem recebe as criacuteticas mais duras vindas de Peleu durante
um agoacuten entre os dois personagens o anciatildeo o critica por ter deixado um friacutegio levar sua
esposa de sua proacutepria casa (vv 590-609) e afirma que os espartanos satildeo soacute bons de guerra
mesmo que em outras mateacuterias satildeo inferiores (vv 724-726) O homem espartano eacute
inferiorizado Em Orestes Menelau jaacute eacute comparado a um baacuterbaro Tiacutendaro o acusa de ter se
tornado um baacuterbaro por ter estado entre baacuterbaros (v 485) Em Androcircmaca os espartanos
ainda natildeo satildeo diretamente ldquobarbarizadosrdquo como acontece em Orestes aquela trageacutedia foi
encenada praticamente no iniacutecio da Guerra do Peloponeso enquanto esta foi no final quando
as inimizades se acirraram de tal maneira que os espartanos foram paulatinamente sendo
deixados de fora da fronteira eacutetnica helecircnica tornando-se Outros
Ainda em Orestes Piacutelades Electra e seu irmatildeo satildeo capazes de accedilotildees condenaacuteveis em
nome da vinganccedila Em Ifigecircnia em Aacuteulis vemos Agamemnon um grego levar sua filha ao
sacrifiacutecio e em As Troianas e Heacutecuba os gregos se comportam de maneira condenaacutevel em
relaccedilatildeo agraves cativas troianas piorando a situaccedilatildeo deploraacutevel em que jaacute se encontram com o fim
de Troia As rivalidades da Guerra do Peloponeso e a temaacutetica vencedorperdedor satildeo
expressas na produccedilatildeo textual da eacutepoca assim como hoje em dia eacute impossiacutevel ficar
indiferente aos acontecimentos que nos cercam Euriacutepides tambeacutem natildeo conseguiu fazecirc-lo em
sua eacutepoca A obras literaacuteria em si eacute um ldquoartefato fonomorfossintaacutetico eacute universo semacircntico eacute
campo sintomatoloacutegico da histoacuteria do social e da consciecircncia numa palavra eacute
presentificaccedilatildeo imageacutetica do homem em accedilatildeordquo (ANDRADE 1998 p 15)
Embora ambientadas em Troia essas trageacutedias traziam temas caros agrave realidade
ateniense Satildeo comuns peccedilas que se desenrolam em lugares estrangeiros (as quais Edith Hall
chama de ldquoroteiros de deslocamentordquo [displacement plots]) onde a etnicidade e os direitos de
cidadania satildeo contestados (HALL 1997 p 98) Os troianos como vimos eram um exemplo
de barbaacuterie mas frequentemente eram representados como viacutetimas dos gregos ganhando
uma certa ldquosimpatiardquo de Euriacutepides Hall acredita que ldquose a representaccedilatildeo traacutegica da Guerra de
Troia era para tornar os espartanos lsquobaacuterbarosrsquo e assimilaacute-los ao arqueacutetipo do persa arrogante
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entatildeo os lsquoateniensesrsquo desse mundo miacutetico contudo paradoxalmente pode ser a viacutetima troiana
da agressatildeo espartanardquo (HALL 1989 p 214)
A helenista Casey Dueacute coloca que a representaccedilatildeo dos troianos dessa maneira
ldquoconvida a audiecircncia a transcender as fronteiras eacutetnicas e poliacuteticas que dividem as naccedilotildees na
guerra Desse modo os atenienses podem explorar suas proacuteprias tristezas testemunhando o
sofrimento dos outros inclusive de suas proacuteprias viacutetimasrdquo (DUEacute 2006 p 116) Natildeo podemos
negar que a exposiccedilatildeo do sofrimento alheio eacute um apelativo para chamar a atenccedilatildeo acerca do
proacuteprio sofrimento ateniense a viuacuteva os oacuterfatildeos os prisioneiros de guerra satildeo categorias que
podem ser compartilhadas a qualquer momento pelos atenienses visto que se estaacute em uma
eacutepoca de guerra Do momento que ele mostra os malefiacutecios da guerra atraveacutes desses
personagens ele estaacute colocando sua visatildeo acerca dos prejuiacutezos desencadeados por ela bem
como questionando a legitimidade dela Embora natildeo participasse efusivamente da poliacutetica
como Eacutesquilo e Soacutefocles ele era uma pessoa de opiniatildeo na eacutepoca Se ele pudesse mostra-la
nos palcos um dos lugares para onde os olhares da poacutelis se voltavam ele poderia convidar as
pessoas que o assistiam a questionar tambeacutem essa guerra
Contudo acreditamos que a intenccedilatildeo natildeo era ldquouniversalizarrdquo o sofrimento nem colocar
o troiano como o ateniense em si mas mostrar que o espartano eacute tatildeo condenaacutevel que ateacute o
baacuterbaro era melhor Afirmamos isso porque o troiano embora visto dessa maneira piedosa
natildeo deixava de ser baacuterbaro devido agrave sua caracterizaccedilatildeo As fronteiras eacutetnicas como vimos
satildeo borradas em Euriacutepides mas natildeo eacute por caracterizar ldquomelhorrdquo o troiano mas por assimilar o
espartano (grego) a ele o exemplo de baacuterbaro Aleacutem disso como defendemos aqui essa
caracterizaccedilatildeo do troiano (que eacute compartilhada com o persa o egiacutepcio etc) jaacute vem dos
poemas homeacutericos
Geralmente quando falamos de identidadealteridade em Homero pensamos
primeiramente na Odisseia Esse poema eacute marcado pelo embate com Outros visto que
Odisseu viaja por terras longiacutenquas e agraves vezes hostis Eacute emblemaacutetico o encontro desse heroacutei
com o Ciacuteclope personagem-siacutentese daquilo que eacute natildeo ser grego Odisseu enquanto ldquoaedo de
si mesmordquo conta o que viu quando chegou agrave terra dos Ciacuteclopes
ἔθνα δανὴρ ἐνιαυε πελώριος ὅς ῥα τὰ microῆλα οἶος ποιmicroαίνεσκεν ἀπόπροθεν οὐδὲ microετ ἄλλους πωλεῖτ ἀλλ ἀπάνευθεν ἐὼν ἀθεmicroίστια ᾔδη καὶ γᾶρ θαῦmicro ἐτἐτυκτο πελώριον οὐδὲ ἐῴκει ἀνδρί γε σιτοφάγῳ ἀλλὰ ῥίῳ ὑλήεντι ὑψηλῶν ὀρέων ὅ τε φαίνεται οἶον ἀπἄλλων
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dormia um ente gigantesco que pascia a recircs sozinho nos confins O ser longiacutenquo natildeo convivia com ningueacutem sem lei um iacutempio Dissiacutemile de um homem comedor de patildeo o monstro colossal mais parecia o pico da cordilheira infinda sem vizinho agrave vista (HOMERO Odisseia IX vv 187-192)
Polifemo eacute descrito como um monstro eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o
ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute
ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) Os gregos se
definem pela publicidade de seus atos o homem grego eacute idealmente um homem puacuteblico
Todos veem o que todos fazem e todos vivem pela manutenccedilatildeo de sua comunidade Do
mesmo modo a lei noacutemos eacute o que diferencia o homem do animal que vive no acircmbito da
phyacutesis natureza e do aacutegrios selvagem
Odisseu adentra a caverna de Polifemo com seus companheiros e eles comeccedilam a
comer seu queijo (demonstrando ateacute pouca educaccedilatildeo visto que os hoacutespedes devem esperar
que o anfitriatildeo lhes ofereccedila algo para comer) Quando o Ciacuteclope chega Odisseu lhe faz uma
suacuteplica a qual eacute respondida com aspereza
νήπιός εἰς ὦ ξεῖν ἢ τηλόθεν εἰλήλουθας ὅς microε θεοὺς κέλεαι ἢ δειδίmicroεν ἢ αλέασθαι οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν οὐδὲ θεῶν microακάπων ἐπεὶ ἦ πολὺ φέρτεροί εἰmicroεν οὐδ ἂν ἐγὼ Διὸς ἔχθος ἀλεθάmicroενος πεφιδοίmicroην οὔτε σεῦ οὔθ ἑταρων εἰ microὴ θυmicroός microε κελεύοι
Ou eacutes um imbecil ou vens de longe estranho rogando que eu me dobre aos deuses ou que evite-os pois Zeus porta-broquel natildeo chega a preocupar Ciacuteclopes nem um outro oliacutempico somos bem mais fortes Natildeo te acolheria nem teus soacutecios para poupar-me da ira do Cronida O cor eacute meu tutor (HOMERO Odisseia IX vv 273-278)
O Ciacuteclope aqui desliza duas vezes primeiramente nega uma suacuteplica Isso gera um
estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) sendo que
ldquoa oposiccedilatildeo plural-singular litaiacute-aacutete lsquosuacuteplicas-perdiccedilatildeorsquo que parece indicar uma significativa
oposiccedilatildeo entre coletividade entendimento e reconhecimento de um lado e isolamento
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teimosia e cegueira de outro [devemos destacar]rdquo (MALTA 2006 p 58-9) Essa suacuteplica eacute a
do xeacutenos aquele que se hospeda em um lugar
Assim em segundo lugar ele nega um costume que factualmente natildeo eacute somente
grego (embora no plano do discurso ele tenha sido ldquoexclusivizadordquo pelos helenos ao longo do
tempo) mas eacute difundido por todo o Mediterracircneo a hospitalidade (xeacutenia) que eacute
[] um coacutedigo de conduta uma convenccedilatildeo natildeo escrita que atravessava as fronteiras do Mediterracircneo oriental Demonstrava-se por meio de uma etiqueta reconhecida em que havia troca de presentes e festivais e sua origem estava na xenuia da Idade do Bronze tardia [] que surge nas taacutebuas de Linear B [] A xenuia governaria na verdade o ingresso e a partida de visitantes estrangeiros aos palaacutecios do Peloponeso no seacuteculo XIII aC [suposto seacuteculo da ocorrecircncia da guerra de Troia] (HUGHES 2009 p 188)
Paacuteris tambeacutem transgride a xeacutenia configurando-se num Outro Tem-se admitido que os
troianos satildeo o Outro estrangeiro conjectura-se que Troia na verdade nunca fez parte da
Heacutelade e muitos autores se referem aos troianos como estrangeiros como se fosse algo oacutebvio
e natural Claude Mosseacute mostra que a Iliacuteada ldquoconserva a memoacuteria de uma grande expediccedilatildeo
dos Helenos da Europa [των Ελλήνων της Ευρώπης] contra Troiardquo (MOSSEacute 2000 p 10)
embora ldquohelenosrdquo designe apenas uma parte da Greacutecia em Homero (HALL 2002 p 129) e o
termo ldquoEuropardquo tivesse sido cunhado a posteriori (MITCHELL 2007 p 20) Hillary Mackie
crecirc que essa diferenciaccedilatildeo nesses termos se daacute porque eles representam duas culturas
diferentes no plano linguiacutestico (uma de elogio e outra de acusaccedilatildeo)
Kostas Vlassopoulos ao analisar a glocalizaccedilatildeo do natildeo-grego na Greacutecia ou seja os
modos pelos quais os gregos ldquoadotam e adaptamrdquo32 repertoacuterios estrangeiros ele fala que em
Homero jaacute acontecia isso visto que os heroacuteis troianos eram estrangeiros [foreigns]
(VLASSOPOULOS 2013 p 167) Para justificar essa ideia o historiador afirma que
[] no lado aqueu do Cataacutelogo das Naus enumera um sem-nuacutemero de comunidades de todo o mundo grego que manda contingentes a Troia sob a lideranccedila de Agamemnon enquanto o cataacutelogo dos aliados troianos enumera vaacuterias pessoas falando outras linguagens (allothrooi) [sic] que mandam suas tropas para ajudar os troianos incluindo os liacutecios os caacuterios os traacutecios os paflagocircnios os friacutegios os miacutesios e os peocircnios (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
32 Essa eacute uma expressatildeo muito utilizada por Kostas Vlassopoulos ao longo de seu livro
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Os caacuterios satildeo denominados barbaroacutephōnos33 (Iliacuteada II v 867) natildeo os troianos ldquoMas
outras satildeo as liacutenguas dos outros homens que se espalham ao longerdquo [ἄλλη δrsquo ἄλλων
γλῶσσα πολυσπερέων ἀνθρώπων] (II v 804) no exeacutercito troiano mas isso natildeo significa
que o troiano esteja falando outra liacutengua seus aliados eram de regiotildees natildeo-gregas
Discordamos dessas posiccedilotildees natildeo haacute na Iliacuteada nenhuma referecircncia ao caraacuteter
estrangeiro de Troia Contudo tambeacutem natildeo eacute adequado falarmos que os troianos eram iguais
aos gregos como ressalta Jacqueline de Romilly em seu Pourquoi la Gregravece ldquoentre os dois
[troianos e aqueus] como Zeus mesmo Homero tem a balanccedila igual [] Homero ignora tal
oposiccedilatildeo [Europa vesus Aacutesia]rdquo (ROMILLY 2013 p 38 e 39) Ela afirma que Homero natildeo os
diferencia porque se tratam de humanos guerreando e os valores da humanidade se
sobrepotildeem aos do grupo eacutetnico ldquoele natildeo marca as diferenccedilas entre indiviacuteduos e tampouco
entre os povos Do lado troiano como do lado aqueu satildeo lsquomortaisrsquo que se afrontamrdquo
(ROMILLY 2013 p 37)
Antonio Mario Battegazzore mostra que ldquoentre gregos e troianos estatildeo faltando
elementos mesmo que miacutenimos de distinccedilatildeo a alimentaccedilatildeo e o vestiaacuterio bem como os
princiacutepios morais satildeo idecircnticos para todos os cultos as habitaccedilotildees o modo de combater
valem para um como para outrordquo (1996 p 17) Ele concorda com Edith Hall ao dizer que natildeo
existe uma distinccedilatildeo entre Europa e Aacutesia na Iliacuteada (HALL 1989 p 39 BATTEGAZZORE
1996 p 17) De fato Homero natildeo traz esses termos geograacuteficos mas natildeo podemos dizer que
natildeo exista diferenciaccedilatildeo alguma como John Heath corrobora
Os troianos de Homero satildeo notoriamente difiacuteceis de ser distinguidos dos gregos eles cultuam os mesmos deuses lutam com taacuteticas idecircnticas e compartilham formas equivalentes de habitaccedilatildeo comida vestimenta funerais e parentesco Mesmo as diferenccedilas ndash poligamia oriental por exemplo ndash satildeo minimizadas Os principais protagonistas da guerra um da Europa e outro da Aacutesia ateacute falam a mesma liacutengua Os troianos natildeo aparentam ao menos para muitos leitores modernos mostrar os principais defeitos da psicologia do baacuterbaro que veio a caracterizaacute-los no quinto seacuteculo tirania luxuacuteria imoderada emocionalismo irrestrito afeminaccedilatildeo crueldade e servilidade De fato Homero eacute frequentemente admirado hoje em dia por sua descriccedilatildeo equacircnime de gregos e natildeo-gregos especialmente quando os eacutepicos satildeo comparados com a literatura ateniense da eacutepoca poacutes-Guerras Greco-Peacutersicas Essa interpretaccedilatildeo positiva dos troianos era uma exceccedilatildeo na antiguidade contudo e ainda haacute criacuteticos que veem um retrato negativo dos troianos como uma raccedila na Iliacuteada
33 Ele eacute composto de duas palavras o substantivo phōnḗ ldquovozrdquo e a onomatopeia bar bar analoacutegico ao nosso ldquoblaacute blaacuterdquo que designa uma linguagem incompreensiacutevel Assim o barbaroacutephōnos eacute aquele de quem natildeo se compreende a fala Desse modo se dos caacuterios soacute se ouve ldquobar barrdquo isso significa que eles natildeo falam o grego ou o falam mal (JANSE 2002 p 334-5) Como a liacutengua eacute um dos traccedilos marcantes de uma cultura (AUGEacute 1998 p 24-5) desconhecer o grego significa desconhecer a cultura grega o termo barbarophoacutenos acaba designando um povo estrangeiro No sumeacuterio e no babilocircnio jaacute existia uma palavra que utiliza esse recurso onomatopaico para definir o estrangeiro barbaru J Porkony coloca que algo semelhante ocorre no latim com o termo balbutio e no inglecircs com o termo baby satildeo palavras compostas de sons repetitivos (HALL 1989 p 4 n 5)
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Essa leitura estaacute errada eu acredito e entende mal tanto as convenccedilotildees eacutepicas e as maiores preocupaccedilotildees poeacuteticas de Homero (HEATH 2005 p 531)
Os troianos satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo de conduta dos gregos contudo eles
fazem um uso diferente de alguns aspectos desde Se um aspecto existe em Homero (como a
poligamia de Priacuteamo a maioria dos arqueiros no exeacutercito troiano etc) ele natildeo deve ser jamais
minimizado tem um porquecirc de o poeta colocar aquilo ali e simples explicaccedilotildees como ldquoeacute para
preencher a meacutetricardquo ou ldquoeacute uma interpolaccedilatildeo posteriorrdquo natildeo nos eacute suficiente para
compreender uma produccedilatildeo tatildeo complexa
De fato Homero natildeo distingue os troianos de modo a caracterizaacute-los como baacuterbaros
essa eacute uma denominaccedilatildeo inexistente nos poemas embora exista a palavra que lhe tenha dado
origem (barbaroacutephōnos) Contudo aqueus e troianos natildeo satildeo iguais se dentro de um mesmo
exeacutercito temos heroacuteis diferentes por que de um exeacutercito para outro natildeo haveria mudanccedilas
Os habitantes de Troia satildeo caracterizados de modo a serem diferenciados dos aqueus
Defendemos que os troianos satildeo um outro grupo eacutetnico eles satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo
de conduta grego mas o uso que eles fazem desses costumes eacute diferente E como veremos no
capiacutetulo seguinte muitos dos elementos de caracterizaccedilatildeo dos troianos sobretudo a de Paacuteris
seratildeo utilizados pela trageacutedia para caracterizar os baacuterbaros Um grupo eacutetnico eacute definido natildeo na
total mas na sutil diferenccedila
A fronteira eacutetnica depende da cultura utiliza a cultura mas natildeo eacute idecircntica a esta uacuteltima tomada em seu conjunto Dois grupos sociais vizinhos muito parecidos culturalmente podem chegar a considerar-se completamente diferentes e excludentes do ponto de vista eacutetnico opondo-se com base em um uacutenico elemento cultural isolado tomado como criteacuterio (CARDOSO 2005 p 11-2)
Jonathan Hall natildeo crecirc contudo que possa haver etnicidade na Iliacuteada
[hellip] a evidecircncia de uma diferenciaccedilatildeo eacutetnica de fato entre gregos e troianos na Iliacuteada natildeo eacute totalmente convincente Os troianos usam a onomaacutestica grega cultuam os mesmos deuses que os gregos possuem a mesma organizaccedilatildeo ciacutevica dos gregose satildeo retratados pelo poeta de forma natildeo menos (e talvez ateacute mais) simpaacutetica que os gregos Eacute admitivelmente verdade que Troia eacute retratada como extraordinariamente abastada e que alguns de seus ocupantes ndash notavelmente Paacuteris ndash adota uma vida de luxuacuteria doentia Tambeacutem haacute indiacutecios de que os troianos satildeo retratados como um tanto excitaacuteveis e um pouco desordenadamente em comparaccedilatildeo com o campo grego (HALL 2002 p 118 ndash grifos do autor)
O discurso eacute o mesmo os troianos satildeo quase iguais aos aqueus e esse ldquoquaserdquo natildeo eacute
suficiente para haver uma diferenciaccedilatildeo de fato entre os dois exeacutercitos Lynette Mitchell
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escreve o mesmo ldquoos aqueus natildeo satildeo qualitativamente diferenciados dos troianosrdquo
(MITCHELL 2007 p 44) mas afirma que os gregos jaacute tinham uma noccedilatildeo do que natildeo era
grego e do que era colocando mais uma vez na Odisseia sua anaacutelise acerca disso
(MITCHELL 2007 p 49-50)
Kostas Vlassopoulos afirma que existe uma diferenciaccedilatildeo EuOutro em Homero ldquoos
temas e motivos que mais tarde se tornaratildeo o instrumental [stock-in-trade] das descriccedilotildees
gregas do Outro estavam claramente presente na eacutepoca de Homero e tambeacutem estatildeo presentes
no poema [Iliacuteada]rdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 171) Contudo retorna agrave questatildeo dos
costumes iguais ldquoaqueus e troianos satildeo retratados cultuando os mesmos deuses falando a
mesma liacutengua aceitando o mesmo coacutedigo moral e valores sociaisrdquo (VLASSOPOULOS 2013
p 171)
No tocante aos costumes poderiacuteamos argumentar com base na proacutepria obra de
Vlassopoulos que os valores difundidos na Iliacuteada e na Odisseia natildeo eram exclusivos dos
gregos mas eram universais Esse autor afirma que ldquoMas como a Iliacuteada o poeta da Odisseia
natildeo estaacute geralmente interessado em explorar as diferenccedilas culturais e eacutetnicas em vez disso o
poema opta por salientar instituiccedilotildees como a troca de presentes e hospitalidade [guest-
friendship] que juntam pessoas de diferentes lugaresrdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 172)
Concordamos em parte tanto eram valores universais que ateacute hoje a Iliacuteada e a
Odisseia satildeo atuais sendo adaptadas sobretudo para o puacuteblico infanto-juvenil nossos paicircdes
contemporacircneos Na Iliacuteada os costumes satildeo os mesmos mas o uso que os troianos fazem de
alguns deles eacute diferenciada Algo parecido acontece na Canccedilatildeo de Rolando (XI dC) por
exemplo o costume de nomear as espadas eacute inerente ao francos As espadas quase que tecircm
uma anima proacutepria Rolando conversa com sua Durindana e quando estaacute a ponto de morrer
tenta quebra-la para que ningueacutem mais a possua mas natildeo obteacutem ecircxito visto que ela natildeo quer
se quebrar (vv 2338-2354) Marcuacutelio emir muccedilulmano (inimigo eacutepico dos francos) nomeia
natildeo soacute sua espada (Preciosa) mas tambeacutem sua lanccedila (Maltet) O exagero (nomear espada e
lanccedila animando em demasia os objetos) eacute o que diferencia o muccedilulmano (o Outro) do franco
Assim o casamento eacute comum a gregos e troianos mas Priacuteamo (rei troiano) eacute poliacutegamo
A assembleia eacute comum a gregos e troianos mas o modo de convoca-la e conduzi-la eacute
diferenciado sendo simplificado do lado troiano (MACKIE 1996 p 22) O cataacutelogo das
naus (Canto II) nomeia tanto gregos quanto troianos que foram para a guerra mas haacute mais
nomes especificados do lado grego do que no troiano o cataacutelogo troiano eacute bem mais
simplificado Aleacutem disso alguns costumes (como a xeacutenia) no plano do discurso foram
49
colocados como quase exclusivamente gregos ao longo do tempo sobretudo apoacutes as Guerras
Greco-Peacutersicas E eacute tambeacutem no plano do discurso que vemos algumas diferenccedilas entre os
troianos e os aqueus aqueles tecircm um modo de falar diferente como enfatiza Hilary Mackie
bem como os siacutemiles utilizados por Homero na composiccedilatildeo dos troianos revelam que em
batalha eles satildeo os animais caccedilados natildeo os caccediladores eles estatildeo em desvantagem na Iliacuteada
Os troianos portanto satildeo um Outro mas natildeo quer dizer que eles satildeo o Outro
estrangeiro que natildeo eacute grego Eles compartilham de um mesmo coacutedigo de conduta mas o
reapropriam constituindo-se de um outro grupo eacutetnico A ideia de que os troianos satildeo
estrangeiros surge a posteriori como vamos observar nos proacuteximos capiacutetulos sobretudo a
partir da caracterizaccedilatildeo de Paacuteris
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CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES
ldquoPaacuteris na Iliacuteada tanto heroacutei quanto arqueiro natildeo eacute nem um homem completo nem um guerreiro completordquo
(LISSARAGUE 2002 p 115)
Assim Paacuteris eacute visto pelo historiador francecircs Franccedilois Lissarague nem um homem
nem um guerreiro completo Eacute comum encontrarmos designaccedilotildees natildeo tatildeo heroicas a Paacuteris
vindo de helenistas contemporacircneos Ele eacute geralmente visto pelos autores que escrevem sobre
a Guerra de Troia como ldquovaidosordquo ldquofriacutevolordquo ldquococircmicordquo ldquoluxurianterdquo ldquogeralmente uma figura
natildeo heroicardquo (RUTHERFORD 1996 p 33 e 83) ldquoafeminadordquo ldquofrouxordquo (LORAUX 1989 p
93) ldquoplayboyrdquo ldquopateacuteticordquo (HUGHES 2009 219) ldquoegoiacutestardquo ldquosuperficialmente atrativordquo
(SCHEIN 2010 p 22 e 24) ldquotolordquo (CARLIER 2008 p 100) ldquonatildeo heroicordquo ldquoo mais
desmerecido dos filhos de Priacuteamordquo (REDFIELD 1994 p 113 e 114) ldquoalmofadinhardquo [fop]
(GRIFFIN 1983 p 8) ldquoantagonista [] de Aquilesrdquo (NAGY 1999 p 61)
ldquofujatildeordquoldquodesertorrdquo ldquocovarderdquo (AUBRETON 19561968 p 168202) ou ldquoidiotardquo (CLARKE
apud SUTER 1984 p 7)
No entanto isso natildeo acontece apenas com os autores contemporacircneos tanto Homero
como Euriacutepides trazem um Paacuteris constantemente sendo rechaccedilado O motivo principal eacute o fato
de ele ter causado a Guerra de Troia mas Homero traz aleacutem disso a ideia dele natildeo ser um
guerreiro tatildeo bom assim o que gera reprimendas tambeacutem Nesse capiacutetulo vamos ver como
nosso heroacutei eacute visto como um causador de males dentro desse espaccedilo discursivo e como os
outros personagens reagem a essa sua faceta Tanto a eacutepica quanto a trageacutedia trazem essa
ideia acerca desse personagem e haacute uma relaccedilatildeo entre ela e nossa comparaacutevel pois eacute
importante para definir alguns criteacuterios de etnicidade Entretanto em Homero ainda natildeo haacute a
ideia de Paacuteris como um baacuterbaros como jaacute haacute em Euriacutepides ele eacute algueacutem a quem se pode
causar vergonha34 (no bojo da ideia defendida por Ann Suter de que o discurso que cerca
Paacuteris tem a ver com o discurso iacircmbico)
34 Segundo E R Dodds a Greacutecia possui uma cultura de vergonha [shame-culture] natildeo uma cultura de culpa [guilt-culture] esta tem mais a ver com o que o indiviacuteduo pensa de si mesmo natildeo do que os outros pensam dele Assim dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode causar vergonha eacute mais apropriado do que dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode culpar Nesse ponto discordamos da terminologia utilizada por Ann Suter para tratar do personagem ldquoblamerdquo (culpa) natildeo eacute cabiacutevel para designar o discurso iacircmbico sendo preferiacutevel pois ldquoacusatoacuteriordquo
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Na Iliacuteada quando Paacuteris recua ante a fuacuteria de Menelau Heitor o repreende (III vv 39-
45) Quatro qualificaccedilotildees satildeo utilizadas pelo poeta atraveacutes das palavras do seu irmatildeo para
nosso heroacutei dyacutesparis (literalmente ldquodis-Paacuterisrdquo) eicircdos aacuteriste (ldquomelhor formardquo) gynaimaneacutes
(enlouquecedor de mulheres) e ēperopeutaacute (enganador) Dyacutesparis eacute uma qualificaccedilatildeo
interessante ela eacute composta de um prefixo e um substantivo dyacutes- eacute um prefixo de negaccedilatildeo e
Paacuteris o proacuteprio nome do heroacutei aqui tratado Pode ter dado origem ao termo latino dispare
que por sua vez originou nosso ldquodiacutesparrdquo (diferente dessemelhante) ldquoPaacuteris funestordquo eacute a
traduccedilatildeo que Carlos Alberto Nunes daacute a esse termo a qual eacute adequada ao seu significado
visto que essa expressatildeo denota as contrariedades do personagem e os maus pressaacutegios que
ocorreram antes de seu nascimento Embora menos proacutexima ao sentido original a traduccedilatildeo de
Haroldo de Campos manteacutem a alusatildeo jogando com o ritmo das palavras ldquoPaacuteris mal-paridordquo
Eicircdos (forma) aacuteriste (de aacuteristos ldquomelhorrdquo) denota a beleza fiacutesica de Paacuteris a qual
deveria ser pressuposto segundo Heitor para seu bom desempenho no campo de batalha por
ser o mais belo troiano deveria ser tambeacutem o melhor guerreiro Contudo essa denominaccedilatildeo
tem uma peculiaridade esse epiacuteteto soacute eacute utilizado para mulheres (SUTER 1984 p 72) De
homens apenas Heitor e Paacuteris satildeo denominados dessa maneira e essa foacutermula soacute aparece
quando um dos dois faz algo indigno de sua estirpe no acircmbito militar Por estar no vocativo (o
nominativo eacute eidos aacuteristos) eacute designativo de um insulto
Em Euriacutepides haacute algumas alusotildees agrave beleza fiacutesica de Paacuteris Entretanto as palavras
usadas satildeo diferentes em Alexandre (fr 61d v 8) o coro diz que Paacuteris possui ldquoformas que
se diferem dos outrosrdquo (morphecirc diapher[ ) Eacute uma designaccedilatildeo menos especiacutefica do que ldquoeicircdos
aacuteristerdquo utilizada por Homero Aleacutem disso sua beleza aparece intrinsecamente ligada ao
excesso de ouro agraves roupas que ele usa Eacute uma beleza acessoacuteria externa (literalmente)
baacuterbara que causou a desgraccedila de muitos Em Euriacutepides e em Homero sua beleza se liga a)
ao fato de ele pertencer a uma elite (Paacuteris eacute diferente das pessoas comuns por isso o coro de
Alexandre frisa essa ideia da beleza como distinccedilatildeo social e eacute a partir dela e de suas faccedilanhas
incompatiacuteveis com um douacutelos ndash escravo ndash que se desconfiaraacute da origem do pastor que ganhou
os jogos) e b) agrave ruiacutena que ela causou (Heacutecuba na peccedila homocircnima de Euriacutepides deixa claro
que Helena se deslumbrou com a riqueza e a beleza de Paacuteris)
Nosso heroacutei eacute um gynaimaneacutes na Iliacuteada Essa eacute uma qualificaccedilatildeo formada por dois
substantivos gynḗ (mulher) e maacutenē (loucura) palavra que deriva do verbo maiacutenomai (desejar
ardorosamente loucamente ndash ISIDRO PEREIRA 1951 p 113 ldquoser louco porrdquo [esser pazzo]
ndash NAZARI 1999 p 223 ficardeixar [rendre] louco ndash BAILLY 2000 p 1217 ndash ver microαίνω)
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Anatoille Bailly traduz essa palavra por ldquofou des femmesrdquo (louco por mulheres) (2000 p 422
ndash ver γυναικοmicroανής) Carlos Alberto Nunes como vimos acima traduz como ldquosedutor de
mulheresrdquo Haroldo de Campos por ldquomulherengordquo
Ann Suter nota que esse mesmo epiacuteteto eacute utilizado para designar Dionisos no Hino a
essa divindade (1984 p 74) traduzindo-o como ldquohe who drives women madrdquo (ldquoaquele que
deixa as mulheres loucasrdquo) e criticando aqueles que traduzem a palavra por ldquowomen crazyrdquo
(ldquolouco por mulheresrdquo) Assim enquanto Carlos Alberto Nunes e Ann Suter partem para uma
traduccedilatildeo que denota o aspecto ativo do adjetivo (Paacuteris como agente da
seduccedilatildeoenlouquecimento) Anatoille Bailly e Haroldo de Campos optam por um aspecto
passivo (Paacuteris como viacutetima dessa loucura) ldquoDeixar louco as mulheresrdquo ou ldquoser louco por
mulheresrdquo natildeo altera enfim a ideia de que Paacuteris eacute um homem relacionado a essa esfera da
seduccedilatildeo do amor da paixatildeo
Ēperopeutaacute natildeo eacute traduzido por Carlos Alberto Nunes ele une esse vocaacutebulo a
gynaimaneacutes sob a denominaccedilatildeo de ldquosedutor de mulheresrdquo Haroldo de Campos traduz como
ldquoimpostorrdquo denotando sua acepccedilatildeo ligada agrave enganaccedilatildeo O Le grand Bailly mostra duas
traduccedilotildees ligadas ao verbo ēperopeuacuteō ldquoenganadorrdquo e ldquosedutorrdquo (BAILLY 2000 906) Ann
Suter evidencia que esse epiacuteteto eacute utilizado tambeacutem na tradiccedilatildeo poeacutetica para Hermes e
Prometeu dois dos maiores enganadores da mitologia (1984 p 75-76) sendo ldquoenganadorrdquo
sua melhor traduccedilatildeo Esse epiacuteteto dialoga entatildeo diretamente com theoeidḗs epiacuteteto utilizado
para Paacuteris em vaacuterios cantos no que toca a esfera da dissimulaccedilatildeo
Theoeidḗs ndash que significa literalmente ldquode forma divinardquo (theoiacute ndash deuses eicircdos ndash
forma exterior aspecto ndash BAILLY 2000 p 584 NAZARI 1999 p 146) ndash denota a escassa
relaccedilatildeo de Paacuteris com o ambiente beacutelico Theoeidḗs acompanha mais Paacuteris que outros
personagens Eacute como o ldquode peacutes velozesrdquo de Aquiles ou o ldquode muitos ardisrdquo de Odisseu
acaba se transformando em um epiacuteteto quase que exclusivo para o heroacutei Esse eacute um adjetivo
que denota a beleza fiacutesica de um personagem (FONTES 2001 p 95) Ann Suter chama a
atenccedilatildeo para a proacutepria etimologia da palavra da sua formaccedilatildeo ter a ldquoforma de um deusrdquo eacute
problemaacutetico visto que os deuses sempre se disfarccedilam Assim ser theoeidḗs eacute ser de certo
modo falso vocecirc aparenta ser uma coisa que natildeo eacute (SUTER 1984 p 63)
Aleacutem disso segundo ainda Ann Suter theoeidḗs eacute um epiacuteteto natildeo-beacutelico
Aqueles aos quais esse epiacuteteto eacute aplicado com alguma frequecircncia pois satildeo notaacuteveis por serem todos homens mas nenhum guerreiro Teocliacutemeno o vidente Telecircmaco muito jovem para lutar Priacuteamo muito velho para lutar De fato os quarto
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pretendentes e Alciacutenoo compartilham tambeacutem essa caracteriacutestica comum a esse grupo (SUTER 1983 p 60-1)
Natildeo soacute esse epiacuteteto se repete frequentemente mas tambeacutem as quatro palavras que
analisamos elas fazem parte de uma foacutermula que aparece novamente no Canto XIII
(Δύσπαρι εἶδος ἄριστε γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ) e esta tem um tom acusador Satildeo palavras
que Heitor dirige a Paacuteris a fim de censuraacute-lo de constrangecirc-lo e de atraveacutes da neacutemesis35
fazer com que ele sinta vergonha de seu comportamento Os heroacuteis vivem sob a sombra do
aidṓs comumente traduzido como ldquovergonhardquo ou ldquorespeitordquo mas que de fato ldquoeacute o medo da
desaprovaccedilatildeo ou da condenaccedilatildeo pelos outros que faz um homem ficar e lutar bravamenterdquo
(SCHEIN 2010 p 177) Essa noccedilatildeo de aidṓs corrobora o caraacuteter agoniacutestico da sociedade
helecircnica se configura numa ldquovulnerabilidade agrave norma ideal expressa pela sociedaderdquo
(REDFIELD 1994 p 116) e faz parte do desenvolvimento da poesia iacircmbica (acusatoacuteria)
Heitor fala em sua reprimenda a Paacuteris no Canto III que o exeacutercito inimigo ri da
atitude de Paacuteris (v 43) haacute poucos risos na Iliacuteada como observou James M Redfield e
segundo esse autor em todas as situaccedilotildees ele ldquoeacute a marca da liberaccedilatildeo da tensatildeo socialrdquo
(REDFIELD 1994 p 286) A seguir Heitor continua sua reprimenda lembrando a Paacuteris que
foi ele quem causou a guerra devendo pois ele retornar ao campo de batalha para enfrentar
Menelau
O heroacutei ainda lembra o irmatildeo de que ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a
beleza natildeo te valeram de nada ao te vires lanccedilado na poeirardquo [οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃ κίθαρις
τά τε δῶρ᾽ Ἀφροδίτης ἥ τε κόmicroη τό τε εἶδος ὅτ᾽ ἐν κονίῃσι microιγείης] (III vv 46-55) Os
cabelos de Paacuteris (koacutemē) a ciacutetara (kiacutetharis) ndash instrumento musical ndash os dons de Afrodite (dōra
Aphrodiacutetēs) ndash relacionados ao amor e agrave beleza ndash e a sua forma fiacutesica (eicircdos) natildeo lhe servem
para o campo de batalha ali eacute o domiacutenio da forccedila (biacuteē) da coragem (alkḗ) natildeo da muacutesica da
beleza e do amor Aqui tambeacutem Paacuteris serve de khaacuterma um motivo de divertimento para os
outros Eacute algueacutem acusaacutevel vergonhoso que necessita ser repreendido com palavras
Mesmo Helena natildeo fica satisfeita com as atitudes de Paacuteris primeiramente recusa-se a
ir encontraacute-lo dizendo agrave Afrodite (que estava disfarccedilada) ldquoNatildeo voltarei para o taacutelamo pois
vergonhoso seria participar-lhe do leito as Troianas sem duacutevida haviam de murmurar jaacute
sobejam as dores que na alma suportordquo [κεῖσε δ᾽ ἐγὼν οὐκ εἶmicroι νεmicroεσσητὸν δέ κεν εἴη 35 Neacutemesis ldquoeacute uma ira mediada pelo sentido social um homem natildeo somente sente isso mas se sente correto em sentir issordquo (REDFIELD 1994 p 117) Ainda segundo esse autor neacutemesis se contrapotildee ao aidṓs os dois se relacionam agrave censura mas este seria uma censura interna (vocecirc vecirc que estaacute errado sente vergonha de si mesmo e faz o certo) e aquele uma externa (algueacutem vecirc que vocecirc estaacute fazendo algo errado censura vocecirc sente vergonha e faz o certo)
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κείνου πορσανέουσα λέχος Τρῳαὶ δέ micro᾽ ὀπίσσω πᾶσαι microωmicroήσονται ἔχω δ᾽ ἄχε᾽
ἄκριτα θυmicroῷ] (III vv 410-412 ndash grifos nossos) Helena teme a neacutemesis das troianas mas o
medo de desagradar aos deuses eacute maior Afrodite lhe ameaccedila e ela acaba indo encontrando-se
com Paacuteris (III vv 413-420)
Ao se defrontar com nosso heroacutei Helena assim como Heitor o reprova por ter
voltado para o palaacutecio e o instiga a retornar para combater Menelau
ἀλλ᾽ ἴθι νῦν προκάλεσσαι ἀρηΐφιλον Μενέλαον ἐξαῦτις microαχέσασθαι ἐναντίον ἀλλά σ᾽ ἔγωγε παύεσθαι κέλοmicroαι microηδὲ ξανθῷ Μενελάῳ ἀντίβιον πόλεmicroον πολεmicroίζειν ἠδὲ microάχεσθαι ἀφραδέως microή πως τάχ᾽ ὑπ᾽ αὐτοῦ δουρὶ δαmicroήῃς Vai provocar entatildeo logo o disciacutepulo de Ares potente para outra vez vos medirdes em duelo Aliaacutes aconselho-te a que natildeo faccedilas tamanha tolice pensando que podes com o louro heroacutei Menelau contender numa luta corpoacuterea que em pouco tempo sua lanccedila potente haacute de ao solo postrar-te (III vv 428-436)
Na Iliacuteada Helena eacute a uacutenica mulher mortal que repreende um homem um anḗr sendo
o homem repreendido justamente Paacuteris Isso seria um absurdo temos a ideia por causa de
uma construccedilatildeo historiograacutefica simplista e de uma documentaccedilatildeo oriunda em sua maioria do
Periacuteodo Claacutessico Ateniense de que a mulher natildeo possuiacutea voz na Greacutecia Antiga (LESSA
2010 p 15-6) Contudo a proacutepria documentaccedilatildeo do Periacuteodo Claacutessico nos mostra ldquobrechasrdquo
nesse ideal de comportamento as mulheres natildeo eram completamente passivas
A trageacutedia nesse sentido exerce um papel importante para que possamos estudar esse
aspecto Em Euriacutepides Helena Androcircmaca e Ifigecircnia culpam Paacuteris pela situaccedilatildeo em que se
encontram a elas eacute dada voz para expressar essa ideia Segundo o historiador Faacutebio de Souza
Lessa
as trageacutedias [] satildeo suportes de informaccedilatildeo importantes para a compreensatildeo da dinacircmica poliacuteade e em especial do comportamento feminino isto porque em cena a poacutelis refletia sobre si mesma havendo uma abordagem de problemaacuteticas totalmente atuais na Atenas do seacuteculo V aleacutem de permitirem ascender as contradiccedilotildees inerentes agrave consolidaccedilatildeo da mulher na poacutelis democraacutetica [] Para Richard Buxton a trageacutedia eacute o lugar do conflito das tensotildees e rupturas sendo as mulhetes neste espaccedilo agressivas dominadoras ativas e seres visiacuteveis (LESSA 2004 p 80)
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As trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides natildeo tratam da Guerra de Troia em si36 ou
elas se passam antes (como Alexandre) ou depois dela (como o resto de nossa
documentaccedilatildeo) Eacute nas trageacutedias que se passam depois da guerra que as mulheres em questatildeo
enunciam essa responsabilidade do Paacuteris pelos seus destinos e a voz feminina aqui eacute
imprescindiacutevel satildeo as mulheres e as crianccedilas que mais sofrem com a guerra Elas ficam sem
seus esposos e pais tornam-se cativas do inimigo veem suas vidas ruiacuterem Antes da
encenaccedilatildeo das trageacutedias algumas cerimocircnias se desenrolavam como a apresentaccedilatildeo dos
tesouros da cidade e dos oacuterfatildeos de guerra as crianccedilas cujos pais deram a vida por Atenas
eram sustentadas pela poacutelis e eles deveriam continuar ndash pelos seus pais pelo seu nome e pela
sua cidade ndash a lutar
Sendo a Iliacuteada um texto que circulava bastante no Periacuteodo Claacutessico (e congelado na
escrita durante ele) por ser utilizado para a paideiacutea o fato de Helena reprimir Paacuteris eacute
significativo Tanto esse poema quanto a Odisseia tambeacutem trazem um modelo feminino a
priori muito bem delimitado e fechado que muito influenciou na proacutepria construccedilatildeo do
modelo claacutessico Peneacutelope eacute o grande exemplo a mulher tecelatilde fiel ao marido submissa ao
filho homem que utiliza a meacutetis para urdir literalmente a trama que lhe garante os vinte anos
de espera por Odisseu
Em Homero a representaccedilatildeo de Helena denota algo que acontece tambeacutem no Periacuteodo
Claacutessico ldquoa sociedade poliacuteade buscou manter as mulheres distanciadas da esfera da accedilatildeo
masculina mas ao memso tempo concedeu-as a funccedilatildeo de policiar as accedilotildees dos cidadatildeos isto
eacute de vigiar o comportamento masculinordquo (LESSA 2004 p 77 ndash grifos do autor) Helena
nesse excerto do poema homeacuterico eacute a responsaacutevel por vigiar o comportamento de Paacuteris
reprimindo-o O helenista australiano Christopher Ransom crecirc que Paacuteris natildeo se deixa afetar
pela neacutemesis nem pelo aidṓs (RANSOM 2011 p 55) mas eacute atraveacutes da neacutemesis de Helena e
de Heitor que o heroacutei sentiria aidṓs pelos seus atos e voltaria para a guerra o que invalida sua
afirmaccedilatildeo Entretanto essa reprimenda natildeo surte efeito de pronto somente no Canto VI o
heroacutei retornaraacute para a guerra (e dela natildeo se ausentaraacute mais)
Paacuteris eacute mostrado frequentemente tambeacutem como causador de grande desgraccedila para os
combatentes tanto em Euriacutepides quanto em Homero No Canto XXII da Iliacuteada quando
Heitor diz que natildeo vai recuar da luta singular com Aquiles dando Helena e os bens do palaacutecio
ldquoque o divo Paacuteris nas cocircncavas naus para Troacuteia nos trouxe ndash causa que foi inicial desta
36 Agrave exceccedilatildeo de Rhesos a qual tem a autoria de Euriacutepides questionada e natildeo incluiacutemos em nosso corpus documental
56
guerra funestardquo [microάλ᾽ ὅσσά τ᾽ Ἀλέξανδρος κοίλῃς ἐνὶ νηυσὶν ἠγάγετο Τροίηνδ᾽ ἥ τ᾽
ἔπλετο νείκεος ἀρχή] (vv 115-116 ndash grifos nossos) A ideia de que Paacuteris foi o princiacutepio de
tudo tambeacutem se encontra presente no Canto V quando eacute mencionado relata-se que Feacutereclo
artiacutefice foi quem fabricou os navios nos quais Paacuteris foi atraacutes de Helena ldquoque tinham sido o
princiacutepio da grande desgraccedila dos Teucros e dele proacuteprio por ter desprezado os oraacutecrsquolos
divinosrdquo [ἀρχεκάκους37 αἳ πᾶσι κακὸν Τρώεσσι γένοντο οἷ τ᾽ αὐτῷ ἐπεὶ οὔ τι θεῶν ἐκ
θέσφατα ᾔδη] (V vv 63-64 ndash grifos nossos) Aqui a arkhekaacutekos dos troianos foi a proacutepria
partida de Paacuteris que eacute denominado como causador de uma meacutega pecircma aos seus conterracircneos
A expressatildeo se repete no Canto VI quando Heitor diz ldquoUm fautor de desgraccedilas fez
nascer o Olimpo para o magnacircnimo Priacuteamo os filhos e o povo Troiano Se concedido me
fosse assistir-lhe agrave descida para o Hades esquecer-se-ia minha alma por certo dos males
presentesrdquo [microέγα γάρ microιν Ὀλύmicroπιος ἔτρεφε πῆmicroα Τρωσί τε καὶ Πριάmicroῳ microεγαλήτορι
τοῖό τε παισίν εἰ κεῖνόν γε ἴδοιmicroι κατελθόντ᾽ Ἄϊδος εἴσω φαίην κε φρέν᾽ ἀτέρπου
ὀϊζύος ἐκλελαθέσθαι] (VI vv 280-285 ndash grifos nossos) Aqui a alusatildeo a Paacuteris como
causador da guerra de grandes desgraccedilas (meacutega pecircma) aparece novamente Ainda nesse
Canto quando Heitor repreende Paacuteris essa ideia tambeacutem se repete e o heroacutei acrescenta que
ldquoTu proacuteprio quiccedilaacute te indignaras caso encontrasse algueacutem que fugisse agrave defesa da paacutetria [σὺ
δ᾽ ἂν microαχέσαιο καὶ ἄλλῳ ὅν τινά που microεθιέντα ἴδοις στυγεροῦ πολέmicroοιο] (VI vv 329-
330)
Durante essa reprimenda (VI vv 326-342) Paacuteris eacute interpelado por Heitor como
daimoacutenirsquo (vocativo masculino singular de daiacutemōn) palavra que designa uma relaccedilatildeo iacutentima
entre os interlocutores bem como ldquoeacute costumeiramente usada quando o falante quer persuadir
o endereccedilado a mudar aquele comportamento ou atituderdquo (SUTER 1984 p 59) Comumente
traduzido por ldquodemocircniordquo muitas vezes confunde o leitor desavisado das obras de Homero
Essa traduccedilatildeo implica numa concepccedilatildeo cristatilde (ou seja posterior ao tempo ao qual nos
referimos) aleacutem de ser pela conotaccedilatildeo da palavra uma soluccedilatildeo pouco cabiacutevel pois o daiacutemōn
natildeo eacute ruim O termo designa uma divindade qualquer e nesse caso eacute uma interpelaccedilatildeo o
vocativo corrobora essa ideia
Heitor assim exorta Paacuteris agrave batalha chamando a atenccedilatildeo para o fato de ele ter
causado a guerra Ele por sua vez acalma Heitor dizendo que ele estaacute se preparando para a
batalha visto que ele jaacute havia sido exortado pela proacutepria Helena a qual lamenta natildeo lhe ter
sido destinado um homem melhor que sentisse vergonha pelos seus atos A reprimenda de
37 Archeacute eacute o princiacutepio kakoacutes eacute tanto o mau quanto o feio
57
Helena enfim surtiu efeito e Paacuteris de fato vai ao encontro de Heitor que ocorre ainda no
Canto VI (vv 503-525)
No entanto ele natildeo retorna sem escutar mais uma vez algo de Helena ela volta a
criticar o heroacutei afirmando que ele ldquonunca teve firmeza nem nunca haacute de tecirc-lardquo [δ᾽ οὔτ᾽ ἂρ
νῦν φρένες ἔmicroπεδοι38 οὔτ᾽ ἄρ᾽ ὀπίσσω ἔσσονται] (VI vv 352-353) Fica claro nessa
passagem que a aacutetē de Paacuteris foi o motor da guerra Ao retirar Helena de Menelau quando
estava alojado em seu palaacutecio ele cometeu uma infraccedilatildeo desrespeitou a hospitalidade
(xeacutenia) praacutetica cara aos helenos Essa transgressatildeo foi uma das engrenagens da aacutetē (cegueira)
de Paacuteris visto que a aacutetē se daacute de trecircs momentos (princiacutepio estadoato e consequecircncia) o
ldquoraptordquo de Helena eacute o ldquoestadoatordquo que teve como princiacutepio a escolha de Afrodite e a guerra
como consequecircncia (MALTA 2006 p 78)
Em Euriacutepides a maioria esmagadora das menccedilotildees a Paacuteris dizem respeito ao fato de ele
ter causado a guerra Alguns personagens como Agamemnon e Ifigecircnia em Ifigecircnia em Aacuteulis
(vv 467-468 vv 1283-1311) ou Androcircmaca e Helena em As Troianas (vv 919-934 vv
940-943 vv 597-600) culpam-no diretamente pelas suas ruiacutenas mas geralmente eacute o coro
quem o faz (As Troianas vv 780-781 Heacutecuba vv 629-656 vv 905-951 Helena vv
1110-1120 Androcircmaca vv 274-300 Ifigecircnia em Aacuteulis vv 573-589) Eacute importante
frisarmos a importacircncia do coro pois ele eacute uma espeacutecie de arauto da poacutelis
O coro era elemento fundamental No desempenho cumprido por ele vertia-se uma grande quantidade de comentaacuterio social instrutivo e cheio de ponderaccedilatildeo que continuamente reiterava e sumarizava os valores da comunidade as atitudes e atributos aceitos e estimados Os diaacutelogos tomaram da retoacuterica homeacuterica o seu estilo exortativo aconselham comentam orientam exortam denunciam mostram arrependimentos expotildeem de forma mordaz o que devia de ser aceito ou evitado dando expressotildees a reaccedilotildees extremas dramatizando seus castigos e suas recompensas (CODECcedilO 2010 p 72)
Aleacutem disso o coro estaacute aqui exercendo um papel que sua natureza intralinguiacutestica
desempenha ele canta em versos iacircmbicos (ROMILLY 2013 p 227) de natureza
acusatoacuteria Eacute de comum conhecimento que Paacuteris causou a guerra e o coro faz questatildeo de
lembrar disso Em Helena a personagem homocircnima se acusa dizendo que seu deacutemas (beleza
do corpo) causou a ruiacutena de Troia (vv 384-385) mas o coro na mesma trageacutedia vem
lembrar ldquosobre o mar cinza com remo baacuterbaro o homem que veio que veio trazendo aos
filhos de Priacuteamo vocecirc Helena como sua esposa da Lacedemocircnia Paacuteris o fatalmente
38 Phreacuten como jaacute vimos eacute o muacutesculo diafragma eacutempedos significa firme Robert P Keep traduzindo do alematildeo o dicionaacuterio homeacuterico de Georg Autenrieth denomina essa expressatildeo (phreacutenes eacutempedoi) por ldquounimpairedrdquo que por sua vez significa algo que natildeo tem sua forccedila reduzida
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casadordquo [ὅτ᾽ ἔδραmicroε ῥόθια πεδία βαρβάρῳ πλάτᾳ ὅτ᾽ ἔmicroολεν ἔmicroολε microέλεα Πριαmicroίδαις
ἄγων Λακεδαίmicroονος ἄπο λέχεα σέθεν ὦ Ἑλένα Πάρις αἰνόγαmicroος] (vv 1117-1120)
Aqui Paacuteris eacute denominado ainoacutegamos adjetivo composto da palavra ainoacutes (terriacutevel) e gaacutemos
(casamento) o que ratifica a causa da guerra e relembra a sua aacutetē homeacuterica O mesmo
acontece em As Troianas Menelau culpa Helena (As Troianas vv 1037-1038) mas o coro
vem lembrar de quem eacute a culpa (vv 780-781)
Mesmo em Alexandre Paacuteris aparece como algueacutem que tem uma responsabilidade em
relaccedilatildeo agraves origens da guerra Isso contudo fica impliacutecito Luciacutea Romero Mariscal defende
que a representaccedilatildeo de Paacuteris nesse fragmento eacute feita de modo a identifica-lo com dois grupos
sociais a) a populaccedilatildeo rural de Atenas que durante a Guerra do Peloponeso eacute
responsabilizada por ter levado a peste agrave cidade (MARISCAL 2003 p 169) e b) com os
tyacuterannoi cujas presenccedilas assolavam Atenas e criavam um clima de incerteza no tocante agrave
manutenccedilatildeo da democracia (MARISCAL 2005 p 14)
Alexandre foi interpretada justamente depois dessa grande peste ter assolado a poacutelis e
ter matado inclusive um de seus principais membros Peacutericles Luciacutea Mariscal coloca que
Ao apresentar as origens da guerra de Troia em termos de oposiccedilatildeo entre o espaccedilo poliacutetico da cidade e o espaccedilo apoliacutetico da montanha [o Ida onde Paacuteris foi criado] entre os sujeitos que habitam ditos espaccedilos contrapostos e entre as convenccedilotildees que assim o delimitam Euriacutepides aborda um dos temas que o pensamento poliacutetico tradicional havia jaacute explorado ao longo de sua histoacuteria e que durante a guerra do Peloponeso se converteu em uma experiecircncia traacutegica similar a que se representa em Alexandre sob a faacutebula miacutetica que deu peacute agrave guerra troiana Como assinala Ph Borgeaud ldquoConveacutem recordar com a tradiccedilatildeo grega que eacute uma guerra que haacute na origem da tomada de consciecircncia da oposiccedilatildeo entre o ruacutestico e o cidadatildeordquo [] eacute sobretudo ao princiacutepio da guerra do Peloponeso quando a tensatildeo entre os habitantes da cidade e os do campo se faz mais traumaacutetica ao abrir a cidade de Atenas as suas portas a uma ingente massa de populaccedilatildeo rural e agreste que a duras penas se integra na cidade e a contamina com os terriacuteveis resultados da virulenta propagaccedilatildeo da peste que descreve Tuciacutedides no segundo livro de sua Histoacuteria da Guerra do Peloponeso (MARISCAL 2003 p 168-169 ndash grifos nossos)
Segundo a autora eacute Paacuteris que traz consigo a crise para a cidade pois insiste em
participar dos jogos sabendo que natildeo eacute um nobre (MARISCAL 2003 p 165) O tema de
Alexandre gira em torno do agocircn (disputa) esportivo ganhado por Paacuteris na eacutepoca um pastor
ainda cuja descendecircncia nobre era desconhecida Era inconcebiacutevel que um doucirclos (escravo)
ou laacutetris (servo) ganhasse as provas esportivas nas quais os aristoiacute deveriam sobressair-se
Aliaacutes jaacute era inconcebiacutevel a concessatildeo dessa participaccedilatildeo de grupos menos privilegiados da
sociedade nesse tipo de evento Priacuteamo jaacute cometera um erro aiacute ao deixar que um simples
pastor se juntasse aos aristocratas nos jogos A sua participaccedilatildeo ldquoquebraraacute a ordem da cidade
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e provocaraacute uma cadeia de transgressotildees que teriam lugar em todos os acircmbitos da mesma Sua
pretensatildeo de tomar parte nos funerais equivale a formar parte da cidade a ocupar um lugar
que natildeo lhe pertencerdquo (MARISCAL 2003 p 165)
Desse modo Deiacutefobo irmatildeo de Paacuteris eacute quem vai pedir providecircncias acerca disso
exige que o pastor seja morto pela sua audaacutecia e vendo que o pai natildeo lhe daria suporte pede a
Heacutecuba que o faccedila Na iminecircncia da morte dele o pastor que acolheu o heroacutei chega para
impedir que isso aconteccedila mostrando as roupas que vestiam Paacuteris quando ele foi exposto e
uma cena de anagnoacuterisis (reconhecimento) se desenrola o laacutetris eacute reconhecido como aristoacutes e
reintegrado agrave famiacutelia troiana
Frequentemente em Euriacutepides Paacuteris estaacute relacionado a um ambiente aacutegrios
(selvagem) ele eacute denominado algumas vezes bouacutekolos (pastor) em Helena a personagem
homocircnima fala do passado de Paacuteris quando ele se sentava junto com seu gado (vv 358-359)
em Androcircmaca (v 706) Peleu se refere a Paacuteris natildeo como ldquoPaacuteris de Troiardquo mas como ldquoPaacuteris
do [Monte] Idardquo Marcar sua pertenccedila a um ambiente selvagem eacute revelador no que toca a
construccedilatildeo de sua representaccedilatildeo na trageacutedia gecircnero no qual eacute recorrente sua denominaccedilatildeo
como baacuterbaros O proacuteprio mito que envolve Paacuteris (sua exposiccedilatildeo no Monte Ida seu
acolhimento pela ursa e depois pelo pastor pessoa em contato constante com o aacutegrios)
denota que em Paacuteris coabitam duas instacircncias o nobre ligado ao ambiente do humano e o
camponecircs ligado ao ambiente do selvagem
Esse nobre contudo eacute um tirano Na Atenas Claacutessica esses tiranos eram vigiados de
perto e o recurso do ostracismo visava embarreirar a quebra da democracia os nomes
daqueles que poderiam oferecer riscos ao poder democraacutetico eram marcados em ostraacutekai
(pedaccedilos de ceracircmica) e aquele que obtivesse mais votos poderia ser exilado de Atenas Luciacutea
Mariscal relembra Jean-Pierre Vernant que ao analisar a representaccedilatildeo de Eacutedipo chama
atenccedilatildeo para a ideia de que a crianccedila exposta ao nascer e que retorna agrave sua regiatildeo natal para
reivindicar seus direitos eacute geralmente ligada agrave figura do tyacuterannos (MARISCAL 2005 p 14
n 9)
Luciacutea Mariscal tambeacutem nos lembra que em 417 aC Alcibiacuteades ldquoum homem como
Alexandre extraordinariamente bonito popular e que por essas datas vai ganhando um
discutido poderrdquo (MARISCAL 2005 p 17) vence competiccedilotildees atleacuteticas assim como Paacuteris
Esse mesmo Alcibiacuteades vai liderar os atenienses em uma invasatildeo a Siracusa e causar uma
derrota dura a essa poacutelis Ele tambeacutem passa um tempo em Esparta auxiliando o inimigo para
depois retornar a Atenas Assim ldquoO certo eacute que Alexandre compartilha com Alcibiacuteades o
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traccedilo mais singular [sentildeero] de ambos personagens a beleza Uma beleza extraordinaacuteria que
se entende como um sinal de excelecircncia mas que pode contudo malograr-serdquo (MARISCAL
2005 p 19)
Mesmo no campo de batalha quando luta Paacuteris eacute repreendido No Canto XI da Iliacuteada
como vimos Diomedes o reprime por tecirc-lo atingido
lsquoτοξότα λωβητὴρ κέρᾳ ἀγλαὲ παρθενοπῖπα εἰ microὲν δὴ ἀντίβιον σὺν τεύχεσι πειρηθείης οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃσι βιὸς καὶ ταρφέες ἰοί νῦν δέ micro᾽ ἐπιγράψας ταρσὸν ποδὸς εὔχεαι αὔτως οὐκ ἀλέγω ὡς εἴ microε γυνὴ βάλοι ἢ πάϊς ἄφρων κωφὸν γὰρ βέλος ἀνδρὸς ἀνάλκιδος οὐτιδανοῖο ἦ τ᾽ ἄλλως ὑπ᾽ ἐmicroεῖο καὶ εἴ κ᾽ ὀλίγον περ ἐπαύρῃ ὀξὺ βέλος πέλεται καὶ ἀκήριον αἶψα τίθησι τοῦ δὲ γυναικὸς microέν τ᾽ ἀmicroφίδρυφοί εἰσι παρειαί παῖδες δ᾽ ὀρφανικοί ὃ δέ θ᾽ αἵmicroατι γαῖαν ἐρεύθων πύθεται οἰωνοὶ δὲ περὶ πλέες ἠὲ γυναῖκεςrsquo
Fuacutetil frecheiro de cachos frisados espiatildeo de mulheres se te atrevesses armado a lutar frente a frente comigo nenhum amparo acharias nesse arco e nas setas inuacutemeras Soacute por me haveres riscado no peacute fazes tanto barulho ao que dou tanto valor como a tiro de crianccedila ou de moccedila Vatilde sempre eacute a flecha que um ser despreziacutevel e imbele dispara Bem diferente se daacute com meus tiros que embora de leve o dardo atinja o inimigo sem mais da existecircncia o despoja as roacuteseas faces natildeo cessa na dor de arranhar a consorte oacuterfatildeos os filhos lhe ficam e o solo tingido de sangue a apodrecer tatildeo-soacute abutres atrai natildeo mais belas mulheres (XI vv 385-395)
Isso se daacute porque Paacuteris eacute um arqueiro (que como veremos no capiacutetulo seguinte eacute
desvalorizado) e porque natildeo haacute paridade na luta ele na escala hieraacuterquica do campo de
batalha eacute inferior a Diomedes Aleacutem de ldquoarqueirordquo (toxoacuteta) Paacuteris eacute tambeacutem designado como
um patife malfeitor (lōbētḗr) e um espiatildeo de mulheres (virgens) (parthenopicircpa) Lōbētḗr
designa um ldquocomportamento ultrajante [] ofensivo agraves regras da sociedade heroicardquo (SUTER
1984 p 79) Natildeo eacute um epiacuteteto exclusivo de Paacuteris Tersites por exemplo eacute denominado desse
modo tambeacutem (Iliacuteada II v 275) por Odisseu
Suter argumenta que foi uma denominaccedilatildeo desnecessaacuteria por parte de Diomedes (e aiacute
eacute Diomedes quem eacute chamado de ldquofriacutevolordquo) visto que ambos estatildeo equiparados socialmente
natildeo seria o mesmo caso entre Odisseu e Tersites no qual este seria um membro inferior da
sociedade Socialmente natildeo ambos satildeo da elite um do lado troiano outro do lado aqueu
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contudo no campo de batalha sim eles estariam desequiparados como vimos Paacuteris eacute das
tropas ligeiras Diomedes seria membro das tropas pesadas ele usa os armamentos comuns
aos guerreiros homeacutericos Paacuteris deveria procurar algueacutem do seu estatuto beacutelico para lutar natildeo
com algueacutem que estaacute hierarquicamente acima de sua posiccedilatildeo no campo de batalha
Parthenopicircpa (paacuterthenos ndash virgem mulher que ainda natildeo eacute casada ndash acrescida do
verbo opipeuacuteō ndash ldquoolhar com inquietuderdquo (BAILLY 2000 p 1389) observar curiosamente
segundo Ann Suter eacute um epiacuteteto que demonstra covardice na batalha (1984 p 84) Associado
com a totalidade das outras denominaccedilotildees do verso eacute de fato desmerecedor em uma batalha
o que menos importa eacute desejar mulheres
Keacutera aglaegrave eacute uma denominaccedilatildeo bastante ambiacutegua Literalmente significa ldquocornos
brilhantesrdquo (keacuteras ldquocornosrdquo aglaoacutes brilhante) Pode referir-se tanto ao seu arco pois essa
arma podia ser feita de chifres de animais quanto a um penteado a um modo de arrumar o
cabelo (SUTER 1984 p 82) Carlos Alberto Nunes prefere essa uacuteltima acepccedilatildeo traduzindo
essa expressatildeo como ldquode cachos frisadosrdquo bem como Haroldo de Campos que traduz apenas
como ldquode cachosrdquo (ldquosoacuterdido sagitaacuterio de cachosrdquo) Referindo-se ou agrave beleza ou ao arco a
acepccedilatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave batalha eacute a mesma
Ainda nesse excerto Diomedes compara o disparo de arco e flecha de Paacuteris com o de
uma crianccedila (paacuteiumls) ou mulher (gynḗ) Eacute a segunda vez que Paacuteris eacute infantilizado na Iliacuteada a
primeira que se daacute indiretamente (visto que ele natildeo eacute mencionado mas por ser filho do rei de
Troia a denuacutencia vale para ele tambeacutem) eacute quando Menelau afirma que ldquoos seus filhos [de
Priacuteamo] soberbos natildeo satildeo de confianccedila [ἐπεί οἱ παῖδες ὑπερφίαλοι καὶ ἄπιστοι]rdquo (III v
105) e que o anciatildeo deve presenciar o acordo
Anatoille Bailly ao traduzir hyperphiacutealos em seu dicionaacuterio coloca que ldquoen parl des
Troyensrdquo (falando de troianos) significa ldquoorgulhoso arroganterdquo denotando uma distinccedilatildeo de
vocabulaacuterio ao se referir aos gregos Contudo o classicista John Heath coloca que essa
palavra natildeo denigre todos os troianos mas certos indiviacuteduos como Paacuteris que causou a
guerra defendendo que ldquonatildeo haacute nada no poema que sugere que Homero considera todos os
troianos moralmente lsquocontaminadosrsquo [lsquotaintedrsquo]rdquo (HEATH 2005 p 534) Cremos que haacute a
possibilidade de distinccedilatildeo no uso do vocaacutebulo pois os troianos afinal satildeo os inimigos na
guerra
A terceira vez tambeacutem indiretamente eacute quando Priacuteamo denomina os filhos restantes
de ldquocrianccedilas maacutes que causam afliccedilatildeordquo (kakagrave teacutekna katēphoacutenes) (XXIV v 253) Isso eacute uma
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desvalorizaccedilatildeo deles uma diminuiccedilatildeo de valor dessa pessoa que eacute comparada a uma crianccedila
pois a sociedade homeacuterica eacute patriarcal onde o anḗr eacute quem deteacutem o poder familiar poliacutetico
Aleacutem disso ele eacute comparado a uma mulher Christopher Ransom analisa a efeminaccedilatildeo
de Paacuteris mostrando que ldquoisso eacute uacutetil e informativo para analisar o lsquooutrorsquo o homem que
quebra as regras da masculinidade e cujas transgressotildees e excessos ajudam a definir o ideal de
masculinidade promovendo um contraste contra o qual a identidade do homem lsquorealrsquo pode ser
estabelecidardquo (RANSOM 2011 p 35) Ademais a crianccedila e a mulher satildeo um Outro tambeacutem
o Outro social (RANSOM 2011 p 36) Cremos que Paacuteris natildeo deixa de ser um personagem
paidecircutico natildeo por mostrar como natildeo agir mas justamente por mostrar como agir
Mesmo quando Paacuteris parece engrenar na luta Heitor jaacute desconfiado acaba o
insultando quando o encontra aparentemente parado ldquoPaacuteris funesto de belas feiccedilotildees sedutor
de mulheres onde se encontra Deiacutefobo e Heleno senhor poderoso Onde Aacutesio de Hiacutertaco
o filho Adamante gerado por Aacutesio Que eacute de Otrioneu Do fastiacutegio a altanada cidade dos
Teucros hoje desaba envolvendo-te alfim a preciacutepite Morterdquo [lsquoΔύσπαρι εἶδος ἄριστε
γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ ποῦ τοι Δηΐφοβός τε βίη θ᾽ Ἑλένοιο ἄνακτος Ἀσιάδης τ᾽
Ἀδάmicroας ἠδ᾽ Ἄσιος Ὑρτάκου υἱός ποῦ δέ τοι Ὀθρυονεύς νῦν ὤλετο πᾶσα κατ᾽ ἄκρης
Ἴλιος αἰπεινή νῦν τοι σῶς αἰπὺς ὄλεθροςrsquo] (XIII vv 769-773)
No Canto XXIV (vv 247-262) quando Priacuteamo censura seus filhos indiretamente
Paacuteris eacute insultado tambeacutem O anciatildeo fala que soacute restaram os filhos dignos de censura
(eleacutenkhea) os mentirosos (pseucircstai) os danccedilarinos (orkheacutestai) e os que cantam e danccedilam
(khoroitypiacuteēsin aacuteristoi) ou seja filhos que natildeo estatildeo aptos para entrar na guerra No campo de
batalha valoriza-se a intrepidez no combate e a habilidade guerreira em detrimento da danccedila
e do canto Mas isso natildeo quer dizer que essas praacuteticas natildeo satildeo valorizadas na sociedade grega
estes satildeo valorizados fora de um contexto beacutelico Pelo contraacuterio faz parte da paideiacutea
Entretanto ligar o Outro ao domiacutenio das artes musicais natildeo eacute incomum nas trageacutedias
Edith Hall nos mostra que em As Suplicantes de Eacutesquilo somente os baacuterbaros cantam
(HALL 1989 p 130) Em Euriacutepides natildeo eacute diferente em Ifigecircnia em Aacuteulis Paacuteris eacute mostrado
ldquotocando melodias asiaacuteticas [baacuterbaras] na syacuterinx imitando na sua flauta o auloacutes friacutegio do
Olimpordquo (vv 576-578) Assim nos parece que natildeo eacute todo instrumento musical que serve agrave
paideiacutea
Eacute interessante perceber que syacuterinx e o auloacutes satildeo tipos de flautas instrumentos que
deformam a face quando tocados pois temos que inchar as bochechas Essa deformaccedilatildeo eacute
uma metaacutefora para a proacutepria deformaccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo do personagem No periacuteodo
63
claacutessico Platatildeo Alcibiacuteades e Aristoacuteteles viam no auloacutes um instrumento com ldquoefeitos maleacutefi-
cos agrave formaccedilatildeo do caraacuteter do cidadatildeordquo (CERQUEIRA 2013 p 62) A lira a ciacutetara pelo
contraacuterio satildeo instrumentos bem vistos para a educaccedilatildeo do cidadatildeo por isso que o Paacuteris de
Homero toca-a Ele estaacute desempenhando ainda um exemplo a ser seguido algo que natildeo
acontece na trageacutedia como vimos Paacuteris ou eacute o pastor (ligado ao domiacutenio o aacutegrios do
selvagem) ou o escravo (o Outro social por excelecircncia do kaloacutes kagathoacutes) ou o baacuterbaro No
entanto ser um muacutesico profissional natildeo era bem visto na Atenas Claacutessica
um muacutesico de ofiacutecio portanto era visto como algueacutem inepto agrave vida ciacutevica e relapso na conduccedilatildeo de assuntos particulares Ele compartilhava da covardia feminina Esses foram os argumentos utilizados pelo Zeus de Euriacutepides na trageacutedia Antiacuteope para desqualificar o lirista Anfiatildeo ndash suspeita de feminilidade incompetecircncia militar e deacuteficit de coragem e virilidade (CERQUEIRA 1997 p 126)
A muacutesica fazia parte da paideiacutea mas ser um muacutesico profissional esbarrava num
estereoacutetipo semelhante ao do baacuterbaro implicando em uma alteridade social o muacutesico eacute
covarde eacute efeminado natildeo serve para a guerra Tendo em mente que Paacuteris tem em sua
caracterizaccedilatildeo esse elemento jaacute na Iliacuteada isso denota o quanto ela serviu para moldar uma
fronteira eacutetnica um Outro
Como pudemos perceber duas coisas desencadeiam reprimendas a Paacuteris na Iliacuteada a)
o fato de ele ter fugido da batalha com Menelau e de natildeo a ter terminado (mesmo que por um
desiacutegnio divino) e b) seu jactar-se desencadeado pelo ferimento de Diomedes Natildeo somente
Heitor seu irmatildeo o repreende mas outros heroacuteis Priacuteamo e mesmo Helena a mulher por
quem ele luta Na trageacutedia ele eacute lembrado majoritariamente como aquele que causou a
guerra Por ser o causador da desgraccedila de muitos o seu caraacuteter Outro precisa ser bem
delineado
Essas reprimendas que Paacuteris sofrem contudo natildeo passam em branco para ele ele
sempre as responde Quando Paacuteris foge do embate com Menelau recuando para dentro do
exeacutercito troiano Heitor lhe cobre de reprimendas No entanto elas natildeo ficam sem resposta
Ἕκτορ ἐπεί microε κατ᾽ αἶσαν ἐνείκεσας οὐδ᾽ ὑπὲρ αἶσαν αἰεί τοι κραδίη πέλεκυς ὥς ἐστιν ἀτειρὴς ὅς τ᾽ εἶσιν διὰ δουρὸς ὑπ᾽ ἀνέρος ὅς ῥά τε τέχνῃ νήϊον ἐκτάmicroνῃσιν ὀφέλλει δ᾽ ἀνδρὸς ἐρωήν ὣς σοὶ ἐνὶ στήθεσσιν ἀτάρβητος νόος ἐστί microή microοι δῶρ᾽ ἐρατὰ πρόφερε χρυσέης Ἀφροδίτης οὔ τοι ἀπόβλητ᾽ ἐστὶ θεῶν ἐρικυδέα δῶρα ὅσσά κεν αὐτοὶ δῶσιν ἑκὼν δ᾽ οὐκ ἄν τις ἕλοιτο
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Eacute justo Heitor o que dizes contraacuterio agrave razatildeo natildeo discorres Teu coraccedilatildeo eacute tatildeo duro quanto o accedilo semelha ao machado que manejado pelo homem lhe aumenta o poder e no tronco mui facilmente penetra talhando-o para o uso das naves Resoluccedilatildeo tatildeo intreacutepida encerras assim no imo peito Natildeo me censures por causa dos mimos da loura Afrodite pois despreziacuteveis natildeo satildeo os presentes valiosos que os deuses de seu bom grado concedem que agrave forccedila ningueacutem os alcanccedila (III vv 59-66)
Paacuteris divide a responsabilidade pela guerra natildeo fora somente ele quem a causou mas
Afrodite tambeacutem ao lhe prometer a mulher mais bela do mundo em troca do pomo dourado
Essa afirmaccedilatildeo entretanto natildeo parece diminuir a parte que cabe ao heroacutei Heitor mais a
frente se refere a ele como sendo o ldquofautor desta guerra [τοῦ εἴνεκα νεῖκος ὄρωρεν]rdquo
foacutermula que se repetiraacute vaacuterias vezes para Paacuteris ao longo da Iliacuteada
Esses versos tambeacutem mostram uma outra qualidade de Paacuteris a habilidade com as
palavras A importacircncia dessa habilidade retorna em Alexandre de Euriacutepides quando Paacuteris
deixa claro que ldquoFrequentemente um homem em desvantagem pela ineloquecircncia perde para
um eloquente mesmo que seu caso seja justordquo [ἀγλωσσίᾳ δὲ πολλάκις ληφθεὶς ἀνήρ
δίκαια λέξας ἧσσον εὐγλώσσου φέρει] (fr 56) O agloacutessos (literalmente ldquosem liacutenguardquo) natildeo
tem chance contra o eugloacutessos (literalmente ldquode boa liacutenguardquo) e Paacuteris tanto na Iliacuteada quanto
em Alexandre (textos em que ele eacute personagem) demonstra ser oacutetimo com as palavras
Sempre que ele eacute censurado por Heitor ou por Helena faz um discurso que acaba
acalmando o seu interlocutor ora atribuindo a responsabilidade da guerra natildeo apenas a ele
ora se propondo a entrar na batalha ora defendendo-se quando acusado de desserviccedilo por
Heitor num momento em que ele estaacute de fato lutando nas batalhas Essa eacute uma habilidade
que natildeo tem tanto valor na guerra quanto a forccedila fiacutesica e a estrateacutegia militar a Iliacuteada por ser
um poema beacutelico tem mais cenas de batalhas longas do que de diaacutelogos longos Contudo ter
uma boa retoacuterica clareza na fala enfim ser um haacutebil orador eacute uma virtude do anḗr
Os troianos satildeo oacutetimos falantes Hillary Mackie explora bastante essa ideia em seu
livro Talking Trojan speech and community in the Iliad Ela defende que o falar troiano
denota uma praise culture (cultura de elogio) enquanto o aqueu uma blame culture (cultura
de culpabilizaccedilatildeo) Ela mostra como os troianos muitas vezes conseguem dissuadir seus
inimigos da luta como acontece com Glauco e Diomedes (Iliacuteada VI vv 120-238) aquele
conta a este sua genealogia lembrando-o de que seus pais foram xeacutenoi hoacutespedes um do outro
Eles entatildeo decidem natildeo lutar e trocar presentes transportando a xeacutenia para o campo de
batalha
65
A autora tambeacutem sustenta que os troianos evitam embates em que tenham que desferir
insultos a outros guerreiros Quando haacute a interpelaccedilatildeo eles utilizam epiacutetetos de elogio natildeo de
reprimenda (MACKIE 1996 p 83) Heitor natildeo daacute treacuteplicas (como acontece nessa repreensatildeo
seguinda da defesa do Paacuteris ndash ele natildeo replica) e seu discurso eacute introspectivo e reflexivo
bastante poeacutetico e construiacutedo esteticamente para ser assim pelo poeta (MACKIE 1996 p
115) Aleacutem disso os troianos satildeo os uacutenicos heroacuteis que suplicam pela vida em batalha
Destarte podemos perceber que Paacuteris eacute um tiacutepico troiano nesse aspecto ele eacute haacutebil com as
palavras E se as palavras satildeo como flechas (MACKIE 1996 p 56) esse elemento combina
ainda com o fato de ele ser um arqueiro (sendo que como vimos a maioria do contingente de
arquearia da Guerra de Troia eacute oriunda dos troianos)
Ainda ligado agrave questatildeo do discurso de Paacuteris no Canto III (v 60) haacute um siacutemile
interessante e incomum na epopeia a comparaccedilatildeo de um humano (Heitor) com um objeto
(machado ndash peacutelekys) Seth Benardete afirma que
O siacutemile que Paacuteris usa eacute uacutenico em muitas coisas Em nenhum outro lugar um heroacutei eacute comparado a algo feito pelo homem nem a palavra technecirc eacute recorrente na Iliacuteada (bastante comum contudo se estivesse na Odisseia) nem erocircecirc eacute usada comumente para um homem mas para o arremesso de uma lanccedila Heitor natildeo eacute o madeireiro mas o machado ou ainda madeireiro e machado seu coraccedilatildeo multiplica sua forccedila ele eacute autossuficiente Ele carrega dentro de si os meios para um grande poder Ele eacute todo arma (BENARDETE 2005 p 51)
Isso torna seu discurso diferenciado Homero e seus personagens utilizam siacutemiles que
comparam o homem aos animais que satildeo seres animados Paacuteris compara um humano a um
ser inanimado Essa eacute mais uma particularidade desse personagem que esse excerto eacute
mostrado pela primeira vez falando dialogando na epopeia
Essa natildeo eacute a uacutenica vez que Paacuteris responderaacute Heitor no Canto VI Paacuteris responde agraves
acusaccedilotildees do heroacutei e lhe acalma afirmando que Heacutecuba natildeo trouxe ao mundo um anaacutelkydos
(sem-gloacuteria) (vv 332-341) Tambeacutem quando Heitor lhe acusa injustamente de estar parado na
guerra Paacuteris responde (XIII vv 774-788) Do mesmo modo natildeo seraacute soacute seu irmatildeo que
ouviraacute resposta de Paacuteris Helena tambeacutem ouve (III vv 438-446) Assim como se sucedeu
com Heitor Paacuteris acalma o seu interlocutor atraveacutes das palavras do myacutethos ndash amenizando a
situaccedilatildeo ndash e atribui o acontecido a um deus ele natildeo eacute o responsaacutevel sozinho pelo
malsucedido Afrodite eacute quem lhe daacute Helena de presente natildeo podendo ele negar Athenaacute
ajudou Menelau por isso que ele venceu natildeo foi por causa de sua inabilidade guerreira
66
Soacute haacute uma pessoa que Paacuteris natildeo responde depois que eacute interpelado de modo agressivo
Diomedes Sendo assim nosso heroacutei soacute retruca troianos e a ldquoHelenardquo que estaacute em Troia Esses
jogos interessantes de palavras e comparaccedilotildees satildeo comuns em Homero Por isso que eacute
interessante nos debruccedilarmos sobre esses siacutemiles de animais que envolvem Paacuteris Eles satildeo
muito frequentes na Iliacuteada Annie Schnapp-Gourbeillon ressalta que eles tecircm uma funccedilatildeo
especiacutefica no eacutepico
Explicar [rendre compte] valorar dar a medida aqui estaacute umas funccedilotildees fundamentais Na aproximaccedilatildeo analoacutegica o animal daacute a ver as virtudes dos heroacuteis aos quais ele se refere ele sugere ele enfatiza [met un valeur] ele retorna uma imagem amplificada e seletiva como um espelho sutilmente deformado [] ele eacute signo mensagem pressaacutegio [] Portador do sofrimento humano [] ator de uma reversatildeo indiziacutevel [] elemento fundamental de uma definiccedilatildeo social do indiviacuteduo [] (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 11)
Os siacutemiles de caccedila satildeo bastante elucidativos na hora de representar o lado mais fraco e
o mais forte Segundo Michael Clarke ldquoo contraste entre predador e caccedila eacute um padratildeo nas
falas [dos heroacuteis que comparam homens a animais] onde um guerreiro compara aqueles com
quem ele luta ou aqueles que ele vecirc a bravos ou covardes animaisrdquo (CLARKE 1995 p 9) O
narrador da Iliacuteada tambeacutem utiliza bastante esses siacutemiles tendo como o leatildeo o animal caccedilador
por excelecircncia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 39-40) encarnaccedilatildeo dos valores
heroicos em sua simbologia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 50) Quando Menelau
resolve enfrentar Paacuteris no iniacutecio do Canto III o leatildeo eacute o siacutemile que corresponde a Menelau
τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν ἀρηΐφιλος Μενέλαος ἐρχόmicroενον προπάροιθεν ὁmicroίλου microακρὰ βιβάντα ὥς τε λέων ἐχάρη microεγάλῳ ἐπὶ σώmicroατι κύρσας εὑρὼν ἢ ἔλαφον κεραὸν ἢ ἄγριον αἶγα πεινάων microάλα γάρ τε κατεσθίει εἴ περ ἂν αὐτὸν σεύωνται ταχέες τε κύνες θαλεροί τ᾽ αἰζηοί ὣς ἐχάρη Μενέλαος Ἀλέξανδρον θεοειδέα ὀφθαλmicroοῖσιν ἰδών φάτο γὰρ τίσεσθαι ἀλείτην αὐτίκα δ᾽ ἐξ ὀχέων σὺν τεύχεσιν ἆλτο χαmicroᾶζε τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν Ἀλέξανδρος θεοειδὴς ἐν προmicroάχοισι φανέντα κατεπλήγη φίλον ἦτορ ἂψ δ᾽ ἑτάρων εἰς ἔθνος ἐχάζετο κῆρ᾽ ἀλεείνων ὡς δ᾽ ὅτε τίς τε δράκοντα ἰδὼν παλίνορσος ἀπέστη οὔρεος ἐν βήσσῃς ὑπό τε τρόmicroος ἔλλαβε γυῖα ἂψ δ᾽ ἀνεχώρησεν ὦχρός τέ microιν εἷλε παρειάς ὣς αὖτις καθ᾽ ὅmicroιλον ἔδυ Τρώων ἀγερώχων δείσας Ἀτρέος υἱὸν Ἀλέξανδρος θεοειδής Logo que o viu Menelau o guerreiro disciacutepulo de Ares como avanccedilava com passo arrogante na frente do exeacutercito muito exultante ficou como leatildeo esfaimado que encontra um cervo morto de pontas em galho ou uma cabra selvagem
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avidamente o devora ainda mesmo que catildees mui ligeiros lhe venham vindo no encalccedilo e pastores de aspecto robusto dessa maneira exultou Menelau quando Paacuteris o belo teve ante os olhos pensando que iria por fim castigaacute-lo Rapidamente do carro pulou sem que as armas soltasse Quando o formoso Alexandre que um deus imortal parecia o viu agrave frente dos outros sentiu conturbar-se-lhe o peito e para o meio dos seus recuou escapando da Morte Como se daacute quando algueacutem nos convales dos montes estaca em frente de uma serpente a tremerem-lhe as pernas e os joelhos e retrocede de um salto com o rosto sem cor todo medo por esse modo afundou para o meio dos Teucros valentes Paacuteris o divo Alexandre do filho de Atreu temeroso (III vv 21-37)
Chama-nos atenccedilatildeo os siacutemiles utilizados Primeiramente um que remete agrave caccedila (leatildeo
versus cervo ou cabra) depois um que mostra o enfrentamento homem versus animal
(homem versus serpente humano versus selvagem) Paacuteris eacute assemelhado agrave cabra e ao veado
Ambos satildeo animais que possuem relaccedilatildeo com o deus Dioniso (SUTER 1984 p 111) Aleacutem
disso satildeo a caccedila do leatildeo Este sobrepuja em forccedila o veado e a cabra bem como estaacute no topo
da cadeia alimentar desse ambiente selvagem O siacutemile no Canto XIII (vv489-495) tambeacutem eacute
revelador o exeacutercito troiano eacute composto de carneiros animal que serve de caccedila
Outro siacutemile relacionado ao nosso heroacutei nessa passagem eacute o do pastor que teme a
serpente Este eacute peculiarmente interessante a serpente eacute o siacutembolo de Zeus que sob o epiacuteteto
Xeacutenios garante o cumprimento das regras da hospitalidade (xeacutenia) Levando em consideraccedilatildeo
que Paacuteris desrespeitou a xeacutenia ao retirar Helena de Menelau durante sua estadia em Esparta
haacute bastante razatildeo para ele temer a ldquoserpenterdquo a ira de Zeus recai sobre Paacuteris mesmo que no
momento Zeus esteja do lado dos troianos A transgressatildeo do nosso heroacutei se sobressai
Quando Paacuteris entra em batalha ele estaacute vestindo uma pele de leopardo comum nas
representaccedilotildees dos arqueiros citas na imageacutetica (LISSARAGUE 2002 p 104 e 105)
Segundo Aristoacuteteles esse animal eacute comum na Aacutesia Menor (lugar onde fica Troia) sendo um
animal muito selvagem (ARISTOacuteTELES Histoacuteria dos Animais VIII 27 9) O leopardo eacute
um animal associado a Dioniso e estaacute presente frequentemente em suas representaccedilotildees
(COHEN 2012 p 462) A associaccedilatildeo de Paacuteris com esse deus eacute trabalhada por Ann Suter em
sua tese visto que ela mostra como a poesia iacircmbica39 (uma blame poetry ldquopoesia
acusatoacuteriardquo) estaacute ligada agrave construccedilatildeo da representaccedilatildeo de Paacuteris por Homero A Iliacuteada natildeo eacute o
iniacutecio de um processo discursivo mas parte dele outros gecircneros poeacuteticos que tramitavam pela
sociedade influenciaram na composiccedilatildeo da eacutepica homeacuterica Ann Suter ressalta que nos versos
39 A partiacutecula ldquo-amb-rdquo (-αmicroβ-) estaacute ligada aos cultos dionisiacuteacos e ldquodesigna canccedilotildees e danccedilas em sua honrardquo (SUTER 1984 p 105) como o dithyacuterambos o thriacuteambos e o iacutethymbos
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em que Priacuteamo insulta seus filhos ldquoo vocabulaacuterio necessaacuterio para elogio e acusaccedilatildeo eacute usado
aqui νεικέω [injuriar] e αἰνέω [elogiar]rdquo (SUTER 1984 p 96) Esses verbos aparecem no
aoristo (neiacutekesse ḗnēsrsquo) Paacuteris causa neiacutekos pelo seu ainoacutes a Afrodite Desse modo tanto a
ideia de que os troianos fazem parte de uma cultura de elogio (praise culture) quanto a de
que Paacuteris eacute um personagem acusaacutevel (blame figure) podem ser corroboradas a partir dessa
utilizaccedilatildeo de ambos vocabulaacuterios pelo poeta
Outro siacutemile nos chama atenccedilatildeo quando Paacuteris volta ao campo de batalha
οὐδὲ Πάρις δήθυνεν ἐν ὑψηλοῖσι δόmicroοισιν ἀλλ᾽ ὅ γ᾽ ἐπεὶ κατέδυ κλυτὰ τεύχεα ποικίλα χαλκῷ σεύατ᾽ ἔπειτ᾽ ἀνὰ ἄστυ ποσὶ κραιπνοῖσι πεποιθώς ὡς δ᾽ ὅτε τις στατὸς ἵππος ἀκοστήσας ἐπὶ φάτνῃ δεσmicroὸν ἀπορρήξας θείῃ πεδίοιο κροαίνων εἰωθὼς λούεσθαι ἐϋρρεῖος ποταmicroοῖο κυδιόων ὑψοῦ δὲ κάρη ἔχει ἀmicroφὶ δὲ χαῖται ὤmicroοις ἀΐσσονται ὃ δ᾽ ἀγλαΐηφι πεποιθὼς ῥίmicroφά ἑ γοῦνα φέρει microετά τ ἤθεα καὶ νοmicroὸν ἵππων ὣς υἱὸς Πριάmicroοιο Πάρις κατὰ Περγάmicroου ἄκρης40 τεύχεσι παmicroφαίνων ὥς τ᾽ ἠλέκτωρ ἐβεβήκει καγχαλόων ταχέες δὲ πόδες φέρον αἶψα δ᾽ ἔπειτα Ἕκτορα δῖον ἔτετmicroεν ἀδελφεὸν εὖτ᾽ ἄρ᾽ ἔmicroελλε στρέψεσθ᾽ ἐκ χώρης ὅθι ᾗ ὀάριζε γυναικί
Paacuteris tambeacutem natildeo ficou muito tempo na estacircncia elevada mas tendo as armas de bronze vestido de fino trabalho corta apressado a cidade nos raacutepidos peacutes confiado Como galopa um cavalo habituado no estaacutebulo quando pode do laccedilo escapar e fogoso a planiacutecie atravessa para ir banhar-se impaciente na bela corrente do rio cheio de orgulho soleva a cabeccedila por sobre as espaacuteduas bate-lhe a crina agitada consciente da proacutepria beleza levam-no os peacutes para o prado onde os outros cavalos se reuacutenem Paacuteris o filho de Priacuteamo assim desde do alto da Acroacutepole da sacra Peacutergamo envolto em couraccedila que a vista ofuscava Vem exultante seus raacutepidos peacutes o conduzem em pouco tempo aonde Heitor se encontrava o divino guerreiro que tinha precisamente deixado o local em que agrave esposa falara (VI vv 503-517)
Paacuteris eacute mostrado como um cavalo dentre cavalos assim ele se encaminha para a
batalha O cavalo eacute um siacutembolo de destaque social (eacute um animal muito caro difiacutecil de se
manter demanda bastante recursos) e de auxiacutelio (ele desloca o guerreiro na guerra bem como
serve agrave competiccedilatildeo esportiva ndash SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 169) Aleacutem disso eacute
um animal que representa o troiano como eacute frequentemente perceptiacutevel em Homero
Euriacutepides tambeacutem destaca essa caracteriacutestica deles denominando-os phiacutelippoi (literalmente
40 O termo ldquoacroacutepolerdquo (akroacutepolis) natildeo aparece no original trata-se do alto mesmo de Troia Contudo a raiz dos dois termos eacute a mesma
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ldquoamigos dos cavalosrdquo Alexandre fr 62f) Esse siacutemile aparece justamente quando Paacuteris
retorna para o campo de batalha ele estaacute disposto a auxiliar seus iacutesoi O cavalo tambeacutem eacute um
animal que oscila entre o mundo dos homens e dos deuses (SCHNAPP-GOURBEILLON
1981 p 162) corroborando o caraacuteter theoeidḗs de Paacuteris e a ideia defendida por Ann Suter de
que Paacuteris eacute um nome que tem relaccedilatildeo com o divino Homero o usa nesses versos ao se referir
a ele antes de comparaacute-lo a um cavalo
Alguns personagens (como Astyacuteanax que tambeacutem eacute chamado de Skamaacutendrios) teriam
nomes duplos um para ser usado costumeiramente e outro em casos especiais dentro de
grupos especiais este uacuteltimo relacionando-se agrave esfera do divino Ann Suter utiliza-se do
pensamento de R Lazzaroni que mostra que existe na epopeia uma ldquolinguagem dos deusesrdquo
e uma ldquolinguagem dos homensrdquo (SUTER 1984 p 28) O nome Paacuteris que eacute menos comum
na Iliacuteada do que Aleacutexandros eacute utilizado apenas pela famiacutelia e ldquoem contextos em que o poeta
deseja enfatizar sua divindade nesse caso como uma fonte de inspiraccedilatildeo para um guerreiro
em combaterdquo (SUTER 1984 p 31) Paacuteris tambeacutem teria conexatildeo com a ilha de Paros um dos
lugares de culto a Dioniso
Quando Heitor jaacute estaacute morrendo diz a Aquiles que ldquoO coraccedilatildeo tens de ferro
impossiacutevel me fora dobraacute-lo Que isso poreacutem contra ti natildeo provoque a vinganccedila dos deuses
quando tiveres de a vida perder muito embora esforccedilado das Portas Ceacuteias em frente aos
ataques de Paacuteris e Apolordquo [ἦ γὰρ σοί γε σιδήρεος ἐν φρεσὶ θυmicroός φράζεο νῦν microή τοί τι
θεῶν microήνιmicroα41 γένωmicroαι ἤmicroατι τῷ ὅτε κέν σε Πάρις καὶ Φοῖβος Ἀπόλλων ἐσθλὸν
ἐόντ᾽ ὀλέσωσιν ἐνὶ Σκαιῇσι πύλῃσιν] (XXII vv 357-360) Aqui novamente Paacuteris eacute usado
num sentido divino pois remete agrave sua ligaccedilatildeo com o deus Apolo arqueiro como ele e que
lhe auxilia a atingir sua gloacuteria maacutexima ao matar o melhor dos aqueus Aquiles
Em Alexandre (fr 42d) Euriacutepides coloca que ldquoQuando ele (Paacuteris) se tornou um
homem jovem e excedeu muitos em beleza e forccedila a ele foi dado um segundo nome
Alexandre porque ele espantou bandidos e protegeu o rebanhordquo [γενόmicroενος δὲ νεανίσκος
καὶ πολλῶν διαφέρων κάλλει τε καὶ ῥώmicroῃ αὖθις Ἀλέχανδρος προσωνοmicroάσθη λῃστὰς
ἀmicroυνόmicroενος καὶ τοῖς ποιmicroνίοις ἀλεξήσας] Assim aqui ldquoAleacutexandrosrdquo eacute um distintivo um
41 Mecircnin (de mecircnis) eacute a primeira palavra da Iliacuteada significa ldquoirardquo O ultraje feito agrave timḗ de Aquiles por Agamemnon (a partir do momento que este lhe toma um geacuteras privileacutegio que lhe foi destinado Briseida) gera nele uma mecircnis a qual causa pecircma a todos ao longo da guerra A Iliacuteada eacute a histoacuteria da ira de Aquiles e suas consequecircncias como pontuou Jaqueline de Romilly (ROMILLY sd p 18) A palavra mecircnis ao longo do poema eacute utilizada para designar o que tem a ver com essa ira de Aquiles segundo Gregory Nagy (NAGY 1999 p 73 e 74) e isso nesta passagem se verifica
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segundo nome dado a uma pessoa que se destaca das outras Em As Troianas Helena usa
Paacuteris e Alexandre sem distinccedilatildeo
πρῶτον microὲν ἀρχὰς ἔτεκεν ἥδε τῶν κακῶν Πάριν τεκοῦσα δεύτερον δ᾽ ἀπώλεσε Τροίαν τε κἄmicro᾽ ὁ πρέσβυς οὐ κτανὼν βρέφος δαλοῦ πικρὸν microίmicroηmicro᾽ Ἀλέξανδρόν ποτε ἐνθένδε τἀπίλοιπ᾽ ἄκουσον ὡς ἔχει ἔκρινε τρισσὸν ζεῦγος ὅδε τριῶν θεῶν καὶ Παλλάδος microὲν ἦν Ἀλεξάνδρῳ δόσις Φρυξὶ στρατηγοῦνθ᾽ Ἑλλάδ᾽ ἐξανιστάναι Ἥρα δ᾽ ὑπέσχετ᾽ Ἀσιάδ᾽ Εὐρώπης θ᾽ ὅρους τυραννίδ᾽ ἕξειν εἴ σφε κρίνειεν Πάρις Κύπρις δὲ τοὐmicroὸν εἶδος ἐκπαγλουmicroένη δώσειν ὑπέσχετ᾽ εἰ θεὰς ὑπερδράmicroοι κάλλει [] ἦλθ᾽ οὐχὶ microικρὰν θεὸν ἔχων αὑτοῦ microέτα ὁ τῆσδ᾽ ἀλάστωρ εἴτ᾽ Ἀλέξανδρον θέλεις ὀνόmicroατι προσφωνεῖν νιν εἴτε καὶ Πάριν ὅν ὦ κάκιστε σοῖσιν ἐν δόmicroοις λιπὼν Σπάρτης ἀπῆρας νηὶ Κρησίαν χθόνα Primeiro essa aiacute gerou as origens dos males Paacuteris tendo gerado depois o velho destruiu Troacuteia e a mim ao natildeo matar o bebecirc acre imitaccedilatildeo de um ticcedilatildeo ndash Alexandre entatildeo A partir daiacute o restante escuta como eacute Aquele julgou um triplo jugo de trecircs deusas bem o dom de Palas para Alexandre era despovoar a Heacutelade comandando friacutegios Hera jurou que sobre a Aacutesia e os limites da Europa Paacuteris se a escolhesse teria a soberania Ciacutepris com minha aparecircncia se estonteando prometeu daacute-la se ultrapassasse as deusas em beleza [] [Paacuteris] Veio trazendo uma deusa natildeo miuacuteda consigo O nume vingador42 dessa aiacute se queres Chamar-lhe de Alexandre ou se de Paacuteris Deixando-o em tua casa oacute maldito43 De navio partiste de Esparta rumo a Creta (As Troianas vv 919-931 940-943 ndash grifos nossos)
O helenista Michael Lloyd chama a atenccedilatildeo para esse uso indistinto de Paacuteris e
Alexandre em Euriacutepides (LLOYD 1989 p 77) mas ele tambeacutem crecirc que esse uso eacute indistinto
em Homero o que discordamos mostramos com a anaacutelise de Ann Suter que eacute possiacutevel que
Paacuteris seja um nome divino e Alexandre um nome comum Cremos que essa indiferenccedila se daacute
em Euriacutepides porque nosso heroacutei em suas obras natildeo representa tanto um exemplo a ser
seguido mas porque ele eacute um baacuterbaros Paacuteris perde o caraacuteter helecircnico e helenizante que ele 42 Alaacutestōr eacute um gecircnio mau (ldquomauvais geacutenierdquo BAILLY 2000 p 73) o que reforccedila a ideia de Paacuteris como um causador de males 43 Kaacutekiste (vocativo de kaacutekistos) seria ldquoo pior de todosrdquo Aqui a palavra kakoacutes (que indica tanto o feio quanto o mau) aparece com o sufixo ndashistos que indica superlativo
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apresenta na Iliacuteada sendo aqui a suacutemula da alteridade completa ele tanto eacute o estrangeiro
como aquela pessoa indesejada na cidade
Quando comeccedilamos nossa pesquisa de graduaccedilatildeo natildeo tiacutenhamos conhecimento de
nenhum autor que tratasse de Paacuteris especificamente Conforme fomos pesquisando referecircncias
bibliograacuteficas descobrimos uma pequena discussatildeo filoloacutegica sobre essa dupla denominaccedilatildeo
de Paacuteris a qual eacute interessante recuperarmos Aliaacutes sobre Paacuteris especificamente apenas a
filologia debruccedilou-se
John A Scott (1913) crecirc que Aleacutexandros eacute uma traduccedilatildeo para o grego de Paacuteris De
etimologia imprecisa este seria um nome estrangeiro jaacute aquele formado pela composiccedilatildeo do
verbo aleacutexō (proteger defender) e do substantivo androacutes (homem varatildeo) seria grego porque
ambas as palavras que o formam satildeo gregas Aleacutem disso esse autor crecirc que Paacuteris eacute o grande
heroacutei da tradiccedilatildeo miacutetica em detrimento de Heitor seu irmatildeo Ele defende que Homero criou
Heitor para encarnar todos os valores heroicos que pertenciam a Paacuteris personagem o qual por
motivos morais natildeo poderia ser representado de maneira tatildeo heroica O nome Heacutektōr jaacute
existia nas tabuinhas de Linear B (e-ko-to) escrita da eacutepoca dos palaacutecios (XVII-XI aC)
(CHADWICK 1970 p 98) mas natildeo sabemos se Homero o pega emprestado para nomear
seu personagem ou se Heitor mesmo jaacute era um parte da tradiccedilatildeo miacutetica sendo recuperado por
Homero
Samuel E Bassett (1920) natildeo concorda nem discorda de John Scott mas mostra que haacute
pesquisas as quais apontam que Aleacutexandros poderia ser derivado do nome Alaksandu um
priacutencipe de Wilǔsa regiatildeo que seria a proacutepria Troia incluindo assim os avanccedilos da
Arqueologia Hititologistas defendem que Troia natildeo eacute nada mais que a regiatildeo denominada
Trūiša44
Na contracorrente dessa hipoacutetese de Scott veio Ann Suter (1984) com sua tese de
doutorado ParisAlexandros a study in Homeric technique of characterization com a
qual noacutes concordamos em muitos pontos Ela afirma que Paacuteris eacute mais utilizado num contexto
iacutentimo (pela famiacutelia ou seja troianos) sim mas que Aleacutexandros tambeacutem eacute usado pela sua
famiacutelia sendo o nome mais recorrente para denomina-lo Ela atribui esse fato agrave ideia de que
Paacuteris seria um nome divino utilizando a ideia de R Lazzaroni sobre a linguagem dos homens
6 A partiacutecula -iša eacute um sufixo dividindo a palavra (Trū-iša) temos como raiz o elemento trū- Em grego Troia eacute Troiacuteē (Τροίη) e provavelmete deriva de um vocaacutebulo mais antigo Trṓē (Τρώη) Trṓ-ē Como os hititas natildeo conheciam o som de ldquoōrdquo (ω) o -ū- poderia fazer esse papel (KLOEKHORST 2013 p 46) Assim a Troiacutee de Homero era a Trūiša hitita assim como o Aleacutexandros de Homero era o Alaksandu hitita Para mais informaccedilotildees ver sessatildeo V ndash Hipoacuteteses
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e a linguagem dos deuses em Homero Assim como inuacutemeros outros personagens da tradiccedilatildeo
miacutetica e das obras homeacutericas o segundo nome (mais incomum) do nosso heroacutei seria aquele
que o eleva agrave condiccedilatildeo de um ser divinizado visto que estaacute em constante relaccedilatildeo com
Afrodite e com Helena (que na tradiccedilatildeo miacutetica transforma-se em uma divindade apoacutes a
morte)
A autora tambeacutem defende que Paacuteris natildeo eacute um nome desprovido de etimologia (o que
caracterizaria sua origem estrangeira) poderia ser derivado de Paros uma ilha grega que tem
estreita relaccedilatildeo com o culto a Dioniso e com os festivais que lhe homenageiam atraveacutes da
reacutecita de versos iacircmbicos A poesia derivada do iacircmbico eacute de caraacuteter ldquoculpabilizanterdquo (blame
poetry) na qual se culpa algueacutem por algo disforizando essa pessoa Arquiacuteloco expoente
desse tipo de poesia era ele mesmo conhecido como Arquiacuteloco de Paros
Aleacutem disso ao observar que Paacuteris tem menos epiacutetetos que Aleacutexandros e que o
desenvolvimento formulaico daquela denominaccedilatildeo eacute precaacuterio em detrimento desta (o que natildeo
deveria acontecer pois Paacuteris eacute um nome que melhor se encaixa no hexacircmetro dactiacutelico) ela
chega agrave conclusatildeo de que aquela denominaccedilatildeo eacute mais recente do que Aleacutexandros sendo
impossiacutevel esta denominaccedilatildeo ser uma traduccedilatildeo daquela
Irene J F de Jong (1987) vai de encontro agrave tese de Scott argumentando que Paacuteris eacute um
nome utilizado no contexto troiano e Aleacutexandros em um contexto grego para ressaltar o
caraacuteter ldquoestrangeirordquo (DE JONG 1987 p 127) do personagem Segundo de Jong ldquoO poeta da
Iliacuteada ao manter o nome lsquotroianorsquo lsquoPaacuterisrsquo pode ter intencionado introduzir um elemento
lsquorealistarsquo na representaccedilatildeo dos troianos como falantes de uma liacutengua estrangeirardquo (DE JONG
1987 p 127) Assim ela concorda com John Scott pois Aleacutexandros continua sendo uma
traduccedilatildeo de Paacuteris Contudo ela confessa em uma nota de rodapeacute natildeo ter lido a tese de Ann
Suter embora a conheccedila (1987 p 127 n 4)
Discordando de todos os autores acima elencados Michael Lloyd (1989) argumenta que
natildeo haacute uma utilizaccedilatildeo consciente de Homero de Paacuteris e Aleacutexandros afirmando que natildeo haacute
distinccedilatildeo no emprego desses dois nomes em Homero e estendendo a anaacutelise a Euriacutepides Na
trageacutedia Paacuteris eacute utilizado mais vezes ainda do que Alexandre e Helena mesmo em As
Troianas utiliza os dois nomes para se referir a ele (LLOYD 1989 p 78) Ele conclui
assim que ldquoA nacionalidade do falante natildeo tem nada que ver com qual nome eacute usadordquo
(LLOYD 1989 p 77)
Essa discussatildeo eacute importante porque conforme o que os autores defendem pode-se
estabelecer uma relaccedilatildeo entre a denominaccedilatildeo dupla e o caraacuteter diferenciado de Paacuteris na Iliacuteada
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como representante de uma alteridade Entretanto acreditamos que essa dupla denominaccedilatildeo
tem a ver mais com um problema intratextual do que com um problema de definiccedilatildeo eacutetnica
pois concordamos com a anaacutelise de Ann Suter A definiccedilatildeo do caraacuteter diacutespar de Paacuteris como
um representante da alteridade e como um personagem-siacutentese das fronteiras eacutetnicas que
separas aqueus e troianos estaacute mais ligada ao discurso do poeta imbricado de uma ideologia
acerca dele e de seu grupo eacutetnico do que a escolha de um nome Esta estaacute mais ligada agrave
percepccedilatildeo de Paacuteris como um representante da aristocracia heroica
No seacuteculo V aC natildeo haacute duacutevidas de que os troianos pertencem a uma cultura Outra
de que eles satildeo baacuterbaroi Contudo natildeo podemos afirmar o mesmo para Homero Como
vimos muitos autores colocam os troianos como o Outro estrangeiro jaacute nas epopeias Eles
satildeo um Outro mas ainda natildeo deixam de partilhar um coacutedigo de conduta mesmo que com
suas reapropriaccedilotildees grego Satildeo essas reaprorpiaccedilotildees que configuram os troianos num grupo
eacutetnico distinto dos aqueus A ideia de que os troianos satildeo estrangeiros surge a posteriori
quando satildeo ldquofrigianizadosrdquo (HALL 1989 p 39) Um exemplo claro dessa ldquofrigianizaccedilatildeordquo
estaacute no diaacutelogo entre Orestes e o friacutegio em Orestes (vv 1506-1519 ndash grifos nossos)
ΟΡΕΣΤΗΣ ποῦ στιν οὗτος ὃς πέφευγεν ἐκ δόmicroων τοὐmicroὸν ξίφος ΦΡΥΞ προσκυνῶ σ᾽ ἄναξ νόmicroοισι βαρβάροισι προσπίτνων ΟΡΕΣΤΗΣ οὐκ ἐν Ἰλίῳ τάδ᾽ ἐστίν ἀλλ᾽ ἐν Ἀργείᾳ χθονί ΦΡΥΞ πανταχοῦ ζῆν ἡδὺ microᾶλλον ἢ θανεῖν τοῖς σώφροσιν ΟΡΕΣΤΗΣ οὔτι που κραυγὴν ἔθηκας Μενέλεῳ βοηδροmicroεῖν ΦΡΥΞ σοὶ microὲν οὖν ἔγωγ᾽ ἀmicroύνειν ἀξιώτερος γὰρ εἶ ΟΡΕΣΤΗΣ ἐνδίκως ἡ Τυνδάρειος ἆρα παῖς διώλετο ΦΡΥΞ ἐνδικώτατ᾽ εἴ γε λαιmicroοὺς εἶχε τριπτύχους θανεῖν ΟΡΕΣΤΗΣ δειλίᾳ γλώσσῃ χαρίζῃ τἄνδον οὐχ οὕτω φρονῶν ΦΡΥΞ οὐ γάρ ἥτις Ἑλλάδ᾽ αὐτοῖς Φρυξὶ διελυmicroήνατο ΟΡΕΣΤΗΣ ὄmicroοσον mdash εἰ δὲ microή κτενῶ σε mdash microὴ λέγειν ἐmicroὴν χάριν
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ΦΡΥΞ τὴν ἐmicroὴν ψυχὴν κατώmicroοσ᾽ ἣν ἂν εὐορκοῖmicro᾽ ἐγώ ΟΡΕΣΤΗΣ ὧδε κἀν Τροίᾳ σίδηρος πᾶσι Φρυξὶν ἦν φόβος ΦΡΥΞ ἄπεχε φάσγανον πέλας γὰρ δεινὸν ἀνταυγεῖ φόνον ORESTES Onde estaacute aquele que fugiu do palaacutecio agrave minha espada FRIacuteGIO (prosternando-se diante de Orestes) Eu te sauacutedo senhor prostrando-me segundo os modos baacuterbaros ORESTES Aqui natildeo estamos em Iacutelion mas em terra argiva FRIacuteGIO Em toda parte eacute mais doce viver do que morrer para os homens sensatos ORESTES Natildeo gritaste por acaso para que socorressem Menelau FRIacuteGIO Eu Pelo contraacuterio para que defendessem a ti Eacute que tu mereces mais ORESTES Foi entatildeo com justiccedila que a filha de Tindaacutereo morreu FRIacuteGIO Com toda a justiccedila Tivesse ela ao menos trecircs gargantas para morrer
ORESTES Por covardia procuras agradar com a liacutengua mas natildeo pensas assim no teu iacutentimo FRIacuteGIO Pois natildeo foi essa mulher a que arruinou a Heacutelade e com a Heacutelade os proacuteprios friacutegios ORESTES Jura ndash se natildeo mato-te ndash que natildeo falas para me agradar FRIacuteGIO Pela minha vida juro que eacute coisa por que farei jura sincera ORESTES Tambeacutem em Troia tinham assim medo do ferro os friacutegios todos FRIacuteGIO Afasta o glaacutedio Porque estando perto reflete uma morte terriacutevel
Aqui o friacutegio demostra ser um completo covarde prosterna-se grita Ele se mostra
extremamente temeroso pela sua vida e o seu discurso tenta dissuadir Orestes de assassinaacute-lo
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parece com o que se sucede no episoacutedio de Glauco e Diomedes no qual o embate fatal eacute
adiado E assim como Glauco o troiano de Orestes consegue que o priacutencipe o deixe vivo A
covardia a prosternaccedilatildeo e o grito satildeo traccedilos comuns de diferenciaccedilatildeo eacutetnica nas trageacutedias e
aqui aparece mais um elemento que jaacute se encontra na Iliacuteada a dissuasatildeo pela fala
Paacuteris aleacutem de ser um troiano eacute o causador da Guerra de Troia que fez perecer toda
uma linhagem de heroacuteis Em uma eacutepoca de guerra ele eacute a metaacutefora preferida tanto para os
espartanos (os inimigos na guerra) quanto para os atenienses perniciosos Nas trageacutedias de
Euriacutepides mesmo os espartanos satildeo representados de maneira pouco louvaacutevel a fronteira
entre o que eacute grego e o que natildeo eacute tambeacutem se encontra em crise e os espartanos (gregos) satildeo
comparados a baacuterbaros em suas trageacutedias O referencial de comparaccedilatildeo muitas vezes eacute o
troiano como acontece em Orestes Tiacutendaro pai de Helena ao reprimir Menelau por ouvir
Orestes matricida fala ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres estado muito tempo entre os baacuterbaros
[os troianos]rdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (EURIacutePIDES Orestes v 485)
Em Euriacutepides as questotildees acerca da alteridade entre aqueus e troianos e da etnicidade
do povo grego ficam mais claras em detrimento da Iliacuteada esse tragedioacutegrafo jaacute denomina os
troianos de baacuterbaroi termo que inexiste em Homero como vimos Euriacutepides encena suas
peccedilas no seacuteculo V aC num contexto no qual a poacutelis dos atenienses se encontra consolidada
mas jaacute entrava em crise em virtude da Guerra do Peloponeso Segundo Karl Reinhardt o
teatro euridipiano eacute exatamente o termocircmetro da crise A geraccedilatildeo jovem se coloca contra a
antiga mas ambas tecircm a chance de falar quase simultaneamente atraveacutes de seus poetas ndash
Euriacutepides e Soacutefocles ndash pois eles vivem num mesmo contexto (REINHARDT 2011 p 20)
O interessante eacute perceber que algumas caracteriacutesticas troianas vatildeo se perpetuar na
configuraccedilatildeo dos personagens sendo utilizadas para designar os baacuterbaros em geral o Outro
homogecircneo grego sobretudo os persas outro por excelecircncia O desrespeito agrave hospitalidade
comum ao Ciclope da Odisseia e a Paacuteris na Iliacuteada retornaraacute na trageacutedia como sinal de
barbaacuterie Quando Menelau chega ao Egito diz ldquoNenhum homem tem um coraccedilatildeo tatildeo
incivilizado a ponto de natildeo me dar comida ao ouvir meu nomerdquo [ἀνὴρ γὰρ οὐδεὶς ὧδε
βάρβαρος φρένας ὃς ὄνοmicro᾽ ἀκούσας τοὐmicroὸν οὐ δώσει βοράν] (EURIacutePIDES Helena vv
501-502) Seraacute comum por exemplo atribuir aos persas o domiacutenio do arco e contrastaacute-lo com
o modo grego de fazer guerra o tradicional face a face (HALL 1989 p 85) Eacute sobre esse
aspecto o modo de fazer guerra que nos debruccedilaremos em nosso proacuteximo capiacutetulo
76
CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI
ldquoEu estarei com vocecirc
Todas as vezes que contar a minha histoacuteria Por ser tudo o que eu fizrdquo
(Remember Me ndash James Horner)
Vamos analisar nesse capiacutetulo como Paacuteris eacute representado como heroacutei e guerreiro e
como essa representaccedilatildeo se liga agrave nossa comparaacutevel Defendemos que Paacuteris eacute um exemplo de
como se agir na Iliacuteada visto que essa eacute a caracteriacutestica primordial do heroacutei homeacuterico e em
Euriacutepides o seu estatuto heroico eacute afetado pois ele eacute visto mais um ldquopastorrdquo (boukoacutelos v
Ifigecircnia em Aacuteulis v 574) ldquoescravordquo (douacutelos v Alexandre fr 48) ldquomuacutesicordquo (Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 576-577) e principalmente ldquobaacuterbarordquo designaccedilotildees comuns a ele na poesia traacutegica
que destoam da construccedilatildeo da personalidade heroica ideal Isso natildeo significa contudo que a
caracterizaccedilatildeo feita por Homero natildeo influencie na construccedilatildeo de Paacuteris em Euriacutepides visto que
defendemos que jaacute em Homero existe uma alteridade entre aqueus e troianos
Se o filme Troia (dir Wolfgang Petersen EUA 2004) natildeo ganhou muita
popularidade pelo excesso de liberdade poeacutetica em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da Iliacuteada essa epiacutegrafe
da muacutesica-tema do filme Remember Me escrita por James Horner e interpretada por Josh
Groban e Tanja Tzarovska pelo contraacuterio traz algo intriacutenseco agrave caracterizaccedilatildeo do heroacutei ele eacute
tudo o que ele faz em batalha Satildeo as faccedilanhas heroicas que datildeo dinamicidade agrave epopeia que
satildeo de fato o material sobre o qual elas se debruccedilam Na trageacutedia essas faccedilanhas e os dramas
77
dos heroacuteis miacuteticos satildeo o material cataacutertico o qual o tragedioacutegrafo utiliza para compor suas
tramas Os atos dos heroacuteis satildeo exemplares para aqueles que os ouvem natildeo os heroacuteis per se
Essa ideia jaacute se encontra na Iliacuteada e para tratarmos de Paacuteris essa noccedilatildeo nos eacute
fundamental pois ele eacute um heroacutei agrave medida que demonstra atraveacutes dos seus atos como um
homem deve agir O locus privilegiado de atuaccedilatildeo de um heroacutei nesse poema eacute a batalha o
tema mesmo da Iliacuteada eacute a Guerra de Troia em si com os heroacuteis aqueus e troianos se
enfrentando fisicamente Esse cenaacuterio beacutelico encontramos somente na Iliacuteada pois em
Euriacutepides natildeo existe a possibilidade de analisarmos o comportamento de Paacuteris como um
combatente ele natildeo eacute mostrado como um nas suas trageacutedias Aliaacutes todas as trageacutedias do ciclo
troiano que analisamos natildeo se desenrolam na guerra Alexandre se passa antes da guerra
enquanto todas as outras se passam depois
Isso denota uma preferecircncia de Euriacutepides por mostrar um ambiente poacutes-beacutelico ele
trabalha com as consequecircncias de uma guerra para um povo Assim satildeo comuns temaacuteticas
que dizem respeito ao dilaceramento do nuacutecleo familiar da escravizaccedilatildeo daquele que era
livre privilegiando agraves vezes certos tipos de personagens que agrave primeira vista natildeo mereceriam
um destaque em uma obra traacutegica como por exemplo as escravas troianas Eacute por esse motivo
que muitos autores afirmam que Euriacutepides daacute voz a esses personagens ldquomarginaisrdquo (SAIumlD
2002 p 62) pois a degradaccedilatildeo que separa os extremos sociais (gregobaacuterbaro livreescravo)
eacute bem mais temiacutevel em uma sociedade em guerra a esposa do cidadatildeo pode virar a concubina
do inimigo Eacute soacute Atenas perder a guerra
A definiccedilatildeo do caraacuteter heroico muda ao longo dos seacuteculos sendo o heroacutei traacutegico
semelhante mas natildeo igual ao homeacuterico Gyumlorgy Lukaacutecs filoacutesofo alematildeo crecirc que o heroacutei
traacutegico traz um ldquobrilho renovadordquo sobre o homeacuterico explicando-o e transfigurando-o
(LUKAacuteCS 2000 p 33) Jacqueline de Romilly mostra como o sofrimento eacute intriacutenseco ao
heroacutei traacutegico ldquoPara ser traacutegico o heroacutei deve sofrer [] no espiacuterito mesmo do gecircnero traacutegico
a necessidade de pintar heroacuteis imperfeitos e atormentados em uma palavra de toma-los ndash
eles as exceccedilotildees ndash como paradigma da condiccedilatildeo humana e de seus malesrdquo (2013 p 210)
Na trageacutedia a noccedilatildeo de hamartiacutea (falha) se torna mais latente e o heroacutei eacute justamente
aquele a quem seus erros implicam em uma trama por exemplo Paacuteris em Alexandre eacute o
camponecircs eacute o habitante do ambiente selvagem (a montanha ndash PELOSO 2002 p 37) que
penetra na cidade reivindicando um reconhecimento o qual a priori natildeo lhe seria adequado
(os precircmios oriundos da vitoacuteria nos jogos troianos) Graccedilas aos erros de Clitemnestra e
Orestes os Aacutetridas sofrem uma desestruturaccedilatildeo familiar que vai se desenrolar em Orestes
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O heroacutei homeacuterico tambeacutem eacute falho mas essa falha estaacute ligada agrave aacutetē (perdiccedilatildeo) se
ocasiona uma situaccedilatildeo de desequiliacutebrio e o heroacutei tem que fazer por onde revertecirc-la Paacuteris e
Aquiles se assemelham nesse ponto ambos incorrem em aacutetē A causa da perdiccedilatildeo de Paacuteris eacute o
desrespeito da eacutetica hospitaleira retirando Helena do palaacutecio de seu esposo e a consequecircncia
direta eacute a proacutepria Guerra de Troia Jaacute a causa da perdiccedilatildeo de Aquiles eacute a recusa da suacuteplica
Agamecircmnon reconhece seu estado de aacutetē causado pela privaccedilatildeo do geacuteras (privileacutegio) de
Aquiles (a escrava troiana Briseida) e suplica a Aquiles seu retorno agrave guerra atraveacutes de uma
litḗ (suacuteplica) mas este a ignora Impedir que a aacutetē de outrem seja eliminada com a recusa de
uma suacuteplica acaba gerando um estado de aacutetē no proacuteprio Aquiles
O historiador Christopher Jones mostra como o termo hḗrōs (heroacutei) muda de acepccedilatildeo
ao longo tempo primeiramente essa palavra foi utilizada para denominar aqueles seres
puacuteblicos extraordinaacuterios executores de faccedilanhas mais extraordinaacuterias ainda os quais se
configuravam nos personagens principais das histoacuterias contadas pelas epopeias Com o passar
dos seacuteculos essa designaccedilatildeo foi ganhando uma nova roupagem e se infiltrando cada vez mais
nos interstiacutecios da sociedade e da vida privada Segundo Jones isso natildeo eacute uma decadecircncia
tampouco uma ressignificaccedilatildeo do termo visto que ele continua a ser usado para denominar
aqueles que tecircm poder no poacutes-morte mesmo numa acepccedilatildeo cristatilde O que acontece eacute a difusatildeo
e a continuidade da utilizaccedilatildeo de hḗrōs possibilitada pelo processo de expansatildeo da cultura
helecircnica o qual culmina no helenismo (c IV-I aC)
O termo passa a designar natildeo somente os heroacuteis da mitologia mas tambeacutem as pessoas
que se destacam na vida puacuteblica sobretudo ldquoaqueles que caiacuteram na guerra ou deram suas
vidas a serviccedilo de suas comunidades de outras maneirasrdquo (JONES 2010 p 1) Para Jones os
heroacuteis homeacutericos satildeo todos aqueles que lutaram em Troia seja grego ou troiano e tecircm mais a
ver com uma acepccedilatildeo ligada a senhor (lord) do que a guerreiro (warrior) No entanto como
vimos eacute na guerra que esse senhor pode demonstrar seu valor um senhor eacute necessariamente
um guerreiro no mundo homeacuterico Jones entretanto mostra uma resistecircncia da Atenas
Claacutessica em designar um morto comum de hḗrōs o que significa que eles mantecircm um certo
tradicionalismo em considerar apenas os heroacuteis mitoloacutegicos como hḗrōes (JONES 2010 p 3
4 e 21)
Em nossa pesquisa esbarramos sempre com a ideia de que Paacuteris na verdade seria um
anti-heroacutei pois ele apresenta uma seacuterie de atitudes que o caracterizariam como sendo uma
pessoa covarde medrosa etc Em primeiro lugar eacute necessaacuterio termos em mente que os heroacuteis
natildeo satildeo uma massa indistinta eles constituem um grupo social fechado com um coacutedigo de
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conduta modelar mas natildeo podemos nos esquecer de que uma sociedade eacute composta de
indiviacuteduos cada um com sua personalidade especiacutefica O eu natildeo se anula por causa do noacutes
ele se agrega ao noacutes contribuindo com sua singularidade ao todo
Vaacuterios autores se debruccedilaram de algum modo sobre os heroacuteis da Antiguidade de
maneira mais ou menos ampla tentando defini-los Joseph Campbell Robert Aubreton
Cedric Whitman Karl Kereacutenyi Gregory Nagy Seth L Schein Mariacutea Cecilia Colombani
Anastasia Serghidou David J Lunt e Christopher Jones Agrave exceccedilatildeo de Campbell Kereacutenyi
Serghidou e Lunt geralmente eles datildeo destaque aos heroacuteis homeacutericos Eacute interessante perceber
que natildeo haacute divergecircncia de opiniotildees mas complementaridade
Joseph Campbell foi pioneiro no tratamento dos heroacuteis seu estudo eacute de fins da deacutecada
de 1940 Muito influenciado pela Psicanaacutelise procura delinear o perfil do heroacutei em geral em
O heroacutei de mil faces Ele cria uma tipologia atraveacutes de um estudo comparado de vaacuterias
mitologias que abrange todos os heroacuteis de todas as eacutepocas e tradiccedilotildees epopeicas afirma que
esse personagem passa obrigatoriamente por doze estaacutegios em sua vida ela eacute permeada por
ritos de passagem Campbell natildeo fala de um heroacutei especiacutefico ou de uma determinada tradiccedilatildeo
heroica ele conceitua o heroacutei o vecirc como um homem que morreu como um ldquohomem
modernordquo mas que como um ldquohomem eternordquo ou seja ldquoaperfeiccediloado natildeo especiacutefico e
universalrdquo renasce para ldquoretornar ao nosso meio transfigurado e ensinar a liccedilatildeo de vida
renovada que aprendeurdquo (CAMPBELL 2007 p 28) Desse modo ele corrobora o valor
educacional que um heroacutei possui para aqueles que o rememoram aleacutem de pontuar o seu
caraacuteter mortal
Na deacutecada de 1950 Robert Aubreton escreveu um livro introdutoacuterio sobre Homero que
aborda de maneira diferente os heroacuteis Esse autor crecirc que haja uma psicologia em Homero
afirmando que a representaccedilatildeo deles eacute tatildeo humana que ldquoacabamos por consideraacute-lo natildeo mais
como heroacutei sobre-humano mas como homem igual a noacutes que por sua virtude e piedade
chega a se superarrdquo (AUBRETON 1968 p 188) Essa ldquopsicologia homeacutericardquo consiste
sobretudo na consideraccedilatildeo do heroacutei natildeo apenas em seu caraacuteter coletivo mas em sua
individualidade em sua especificidade Desse modo Aubreton divide esse capiacutetulo o qual ele
dedica aos heroacuteis de acordo com sua anaacutelise de cada um daqueles que ele crecirc serem
importantes nas epopeias Aquiles Paacutetroclo Agamecircmnon Heitor Paacuteris Menelau
Androcircmaca Helena Odisseu Peneacutelope Telecircmaco Nausiacutecaa e Eumeu Observemos que ele
inclui as mulheres (ldquoheroiacutenasrdquo segundo o autor) e o porqueiro Eumeu nessa seleccedilatildeo
80
aumentando a gama de possibilidades de definiccedilatildeo do heroacutei ele eacute um(a) personagem miacutetico
corroborando a ideia de Christopher Jones acerca do que eacute o hḗrōs na eacutepica
Enquanto Aubreton publicava seu livro Cedric Whitman escrevia seu Homer and the
heroic tradition lanccedilado em 1958 e bem recebido quase todos os autores que trabalham com
heroacuteis mencionam seu trabalho em seus proacuteprios Ele tenta compreender a Iliacuteada agrave luz das
noccedilotildees que regem aquela sociedade representada por Homero (e a relaccedilatildeo existente entre os
heroacuteis e essa sociedade) Para esse autor a Iliacuteada jaacute apresenta um discurso bem proacuteximo do
traacutegico no qual a humanidade dos heroacuteis eacute representada de modo mais acentuado e a
demonstraccedilatildeo de sentimentos (como raiva amor compadecimento) eacute comum Whitman
tambeacutem trabalha com a noccedilatildeo do heroacutei como modelo como aquele que passa todas essas
noccedilotildees aos ouvintes da epopeia construindo um estudo de caso de Aquiles
No mesmo ano Karl Kereacutenyi publicou o seu Os Heroacuteis Gregos o livro eacute o segundo
volume da seacuterie Mitologia Grega cujo primeiro volume trata dos deuses gregos A proposta
do livro eacute apresentar os heroacuteis gregos a leitores acadecircmicos ou natildeo debruccedilando-se natildeo
somente sobre os relatos escritos sobre eles mas tambeacutem a cultura material tratando tambeacutem
da questatildeo do culto ao heroacutei e de sua historicidade Para Kereacutenyi os heroacuteis se mostram
ldquoentrelaccedilados com a histoacuteria com os acontecimentos natildeo de um tempo primevo que estaacute fora
do tempo mas do tempo histoacuterico [] Eles surgem diante de noacutes como se tivessem de fato
existidordquo (KEREacuteNYI 1998 p 17) Ao escrever sobre a guerra de Troia mais uma vez
Aquiles eacute o grande destaque da anaacutelise assim como faz nosso proacuteximo autor
Gregory Nagy em seu livro The best of the Achaeans concepts of the hero in
Archaic Greek poetry (1979) trata dessa tradiccedilatildeo anterior agrave composiccedilatildeo dos eacutepicos
defendendo que sua unidade se daacute justamente por essa origem em comum deles Nagy procura
delinear um perfil de Aquiles o qual ele considera o principal heroacutei da Iliacuteada comparando-o
com outros heroacuteis (Heitor e Neoptoacutelemo) e resgata do eacutepico uma seacuterie de noccedilotildees (como
kleacuteos aacutekhos peacutenthos timḗ) imprescindiacuteveis tanto para a compreensatildeo da funccedilatildeo das epopeias
quanto dos cultos heroicos Ele defende que esse culto surgiu simultaneamente agrave composiccedilatildeo
dos eacutepicos e que os jogos ldquode coroardquo (Oliacutempicos Iacutestmicos Deacutelficos e Nemeios) satildeo oriundos
da praacutetica de jogos fuacutenebres possuindo pois uma estrita relaccedilatildeo com o proacuteprio culto ao heroacutei
Nas epopeias no entanto natildeo haacute a menccedilatildeo ao culto dos heroacuteis pelo fato de esse culto ser
estritamente local ele defende que jaacute existe uma conotaccedilatildeo pan-helecircnica nelas e colocar uma
praacutetica religiosa que destoe da religiatildeo oliacutempica comprometeria esse caraacuteter
81
Seth L Schein em The mortal hero an introduction to Homerrsquos Iliad (1984)
aproxima-se muito da anaacutelise de Nagy com relaccedilatildeo ao culto heroico ele natildeo existe nas
epopeias de Homero porque iria de encontro a toda a pan-helenicidade dos poemas definida
pela representaccedilatildeo apenas do culto aos deuses olimpianos Ele natildeo faz um estudo de caso de
nenhum heroacutei tentando abordaacute-los de maneira a tentar defini-los dentro da Iliacuteada Schein se
aproxima de Whitman em sua abordagem ao definir o heroacutei sob a oacutetica acentuada do humano
comparando o discurso das epopeias ao discurso traacutegico ele enfatiza o fato da morte ser a
uacutenica certeza que se tem acerca do destino de um heroacutei A proacutepria etimologia da palavra
hḗrōs denotaria isso
Hērōs parece ser etimologicamente relacionado com a palavra hōrē ldquoestaccedilatildeordquo [] em Homero hōrē significa em particular a ldquoestaccedilatildeo da primaverardquo e um ldquoheroacuteirdquo eacute ldquosazonalrdquo quando ele chega ao seu esplendor como flores na primavera soacute para ser cortado uma vez e para sempre (SCHEIN 2010 p 69)
Mariacutea Cecilia Colombani dedica dois pequenos toacutepicos aos heroacuteis em seu livro
introdutoacuterio sobre Homero (2005) Eles tratam da loacutegica aristocraacutetica e da funccedilatildeo da
soberania Colombani aborda uma seacuterie de noccedilotildees caras agrave aristocracia guerreira e que
perpassam todo o coacutedigo de conduta dessa sociedade que Homero representa Ela faz das
palavras de Louis Gernet que na deacutecada de 1960 publicou seu Anthropologie de la Gregravece
Antique as suas ldquoOs heroacuteis formam uma espeacutecie aparte entre os deuses e os homens seus
representantes satildeo efetivamente homens mas homens que depois da morte adquiriram uma
condiccedilatildeo e estatuto sobre-humanosrdquo (GERNET apud COLOMBANI 2005 p 58) Esses
homens segundo Colombani satildeo representantes de valores sociais (COLOMBANI 2005 p
60) e satildeo rememorados pela sociedade poliacuteade como exemplos a serem seguidos
Anastasia Serghidou escreveu um artigo sobre o heroacutei traacutegico especificamente no livro
Heacuteros et heroiumlnes dans les mythes et les cultes grecs organizado por Vinciane Pirenne-
Delforge e Emilio Suaacuterez de la Torre Ela acredita que ele eacute ldquofundado sobre a ideia de uma
divinizaccedilatildeo impossiacutevelrdquo sendo a imagem do heroacutei na trageacutedia ldquosemelhante ao homem mortal
ao qual o modelo heroico se coloca como aquele do personagem livre e do bom cidadatildeordquo
(SERGHIDOU 2000 p 1) A autora trabalha com a imagem do heroacutei decaiacutedo (heacuteros deacutechu)
colocando em primeiro plano a anaacutelise da dicotomia livre versus escravos O heroacutei eacute o homem
livre construiacutedo em contraposiccedilatildeo ao escravo e estaacute mais perto dos humanos do que os heroacuteis
de outrora
82
David J Lunt em sua tese Athletes heroes and the quest for imortality in Ancient
Greece (2010) tambeacutem retorna agrave questatildeo do culto aos heroacuteis aproximando-se tambeacutem da
abordagem de Nagy embora natildeo o mencione em sua discussatildeo bibliograacutefica Seu destaque
estaacute em mostrar como o heroacutei homeacuterico serviu de exemplo para os homens da poacutelis sobretudo
para os atletas Para isso ele delineia com mais precisatildeo o que seria um heroacutei para os gregos e
os modos pelos quais eles foram rememorados comeccedilando pelos heroacuteis homeacutericos passando
por Teseu os Dioacutescuros (Castor e Poacutelux) e Heacuteracles ateacute chegar nos heroacuteis de ldquocarne e ossordquo
que foram rememorados nas competiccedilotildees atleacuteticas atraveacutes das reacutecitas em sua homenagem
No mesmo ano Christopher Jones lanccedila New heroes in Antiquity from Achilles to
Antinoos livro cujo objetivo como vimos eacute mostrar como o termo hḗrōs (heroacutei) foi utilizado
ao longo do tempo para denominar natildeo mais aqueles grandes heroacuteis do passado mas tambeacutem
pessoas comuns que se destacavam de algum modo na sociedade ressaltando como a difusatildeo
dessas histoacuterias miacuteticas foram imprescindiacuteveis para que essa definiccedilatildeo penetrasse nos
interstiacutecios das sociedades do periacuteodo claacutessico Assim sua anaacutelise perpassa desde o heroacutei
homeacuterico (miacutetico) ateacute o heroacutei ldquoheroicizadordquo no caso o romano Antiacutenoo que morreu em 130
dC
Em virtude dessa revisatildeo bibliograacutefica de tratamento do heroacutei podemos concluir que a)
a mortalidade do heroacutei eacute constantemente reforccedilada b) eles natildeo estatildeo ligados apenas a um
plano mortal mas a um divino tambeacutem seja por terem parentescos com deuses seja por
serem protegidos de um seja por serem cultuados como divindades apoacutes suas mortes c) o
heroacutei eacute exemplar pois eacute portador de um coacutedigo de conduta no qual as suas aretaiacute estatildeo
sempre postas agrave prova sobretudo na batalha e assim os mortais comuns querem chegar o
mais proacuteximo possiacutevel dessa gloacuteria heroica seja associando um heroacutei agrave sua famiacutelia seja sendo
vitorioso em suas atividades d) eles tecircm uma materialidade histoacuterica pois os gregos criam na
veracidade dos mitos em que eles acreditavam e) o heroacutei traacutegico eacute mais falho do que o
homeacuterico o qual sempre procura restabelecer sua posiccedilatildeo de destaque com suas accedilotildees
Nenhum desses autores que trabalham diretamente com os heroacuteis fazem um estudo
especiacutefico de comparaccedilatildeo entre os heroacuteis homeacutericos e traacutegicos ou sobre Paacuteris seja na poesia
eacutepica seja na poesia traacutegica Contudo essas obras aqui mencionadas seratildeo fulcrais para a
anaacutelise de Paacuteris pois ele pertence agrave categoria dos heroacuteis
Na Iliacuteada Paacuteris eacute o heroacutei da paixatildeo seus epiacutetetos natildeo satildeo beacutelicos como os de outros
personagens e ele natildeo eacute o melhor guerreiro troiano como veremos Tambeacutem natildeo eacute um
personagem belicoso Como lembra Aubreton ldquoHomero faz de Paacuteris o homem amoroso por
83
excelecircncia e que natildeo pode resistir agrave paixatildeo que os deuses lhe inculcaramrdquo (AUBRETON
1968 p 202)
Enquanto o nosso heroacutei se arma para a guerra eacute designado por dicircos (divino
semelhante aos ceacuteus ndash ldquosky-likerdquo (SUTER 1984 p 59) epiacuteteto comum a outros personagens
como seu proacuteprio irmatildeo Tambeacutem aparece outro epiacuteteto recorrente de Paacuteris ldquomarido de
Helena cacheadardquo (Eleacutenēs poacutesis ēykoacutemoio) reforccedilando sua relaccedilatildeo com Helena Ann Suter
chama a atenccedilatildeo que essa construccedilatildeo formulaica aparece somente em relaccedilatildeo a Zeus e Hera
(1984 p 68) e que das cinco vezes que aparece quatro satildeo dentro do campo de batalha
(1984 p 70) Isso significa para a autora que ldquoa sua imagem como Ἑλένης πόσις ἠϋκόmicroοιο
eacute aquela de um guerreiro bem-sucedido e conselheiro [] Talvez Paacuteris natildeo se sinta em casa
no campo de batalha por natureza mas quando ele de fato luta eacute por causa de sua relaccedilatildeo
com Helenardquo (1984 p 70-1) Eacute o que Robert Aubreton afirma
Tendo conquistado a sua ldquodeusardquo [Helena] nada mais interessa a Paacuteris senatildeo conservaacute-la Para tanto satildeo-lhes necessaacuterias a vida e a salvaguarda de Troacuteia Ele soacute luta em caso extremo quando Troia corre perigo quando por conseguinte seu amor estaacute ameaccedilado Eacute hostil a qualquer compromisso que possa resultar em devolver a Menelau aquela que lhe arrebatou (AUBRETON 1956 p 169)
Essa relaccedilatildeo intriacutenseca de Paacuteris com a paixatildeo (seja pelos seus epiacutetetos seja pela
relaccedilatildeo protecional que Afrodite estabelece com ele) tem uma relaccedilatildeo latente com a sua
proacutepria atuaccedilatildeo na batalha como excelente heroacutei do amor ele deixa a desejar como heroacutei
beacutelico Amor e guerra natildeo combinam Paacuteris treme e muda de cor ao se defrontar com Menelau
(III v 35) ele fica ocirckhroacutes paacutelido
Ainda na Iliacuteada a makhlosyacutenē a luxuacuteria de Paacuteris aparece como a engrenagem-
princiacutepio dessa aacutetē cuja consequecircncia eacute a proacutepria guerra (visto que se remete agrave escolha de
Afrodite) (XXIV vv 25-30) Em Euriacutepides essa ideia de que o enlace amoroso entre Paacuteris e
Helena eacute o causador da guerra retorna (As Troianas vv 398-399 vv 780-781 Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 467-468 Helena vv 25-30 vv 223-224 vv666-668) embora o tragedioacutegrafo
oscile dependendo da obra e de quem eacute o enunciador (se grego ou troiano) em atribuir a
Helena um papel ativo ou passivo em sua retirada do palaacutecio
No Canto VII da Iliacuteada (vv 354-365) os troianos se reuacutenem em assembleia Antenor
um conselheiro afirma que o que se deve fazer eacute devolver Helena e os tesouros aos gregos
Paacuteris no entanto descarta essa possibilidade natildeo se opondo no entanto a entregar os bens
materiais O problema eacute Helena ele jamais a devolveraacute Paacuteris natildeo faz questatildeo das riquezas as
84
quais parece natildeo lhe faltam no Canto XI ele inclusive utiliza-se delas para ldquoincentivarrdquo
Antiacutemaco a fazer oposiccedilatildeo contra a devoluccedilatildeo da esposa ldquo[Teucro] Prostra a Pisandro
depois e o nas pugnas intreacutepido Hipoacuteloco filhos de Antiacutemaco o saacutebio que mais do que
todos fazia oposiccedilatildeo para Helena natildeo ser restituiacuteda ao marido ndash fruto de belos presentes por
parte de Paacuteris muito ourordquo [αὐτὰρ ὃ Πείσανδρόν τε καὶ Ἱππόλοχον microενεχάρmicroην υἱέας
Ἀντιmicroάχοιο δαΐφρονος ὅς ῥα microάλιστα χρυσὸν Ἀλεξάνδροιο δεδεγmicroένος ἀγλαὰ δῶρα
οὐκ εἴασχ᾽ Ἑλένην δόmicroεναι ξανθῷ Μενελάῳ] (XI vv 122-125 ndash grifos nossos) Fica claro
que Paacuteris ldquocomprardquo a opiniatildeo de Antiacutemaco com ldquoaglaaacute docircrardquo e ldquomaacutelista khrysogravenrdquo
Essa ideia de que os troianos possuem ouro em demasia eacute recorrente em Euriacutepides Em
Heacutecuba (vv 10-12) Polidoro relata que Priacuteamo ldquocomigo muito ouro enviourdquo [πολὺν δὲ σὺν
ἐmicroοὶ χρυσὸν ἐκπέmicroπει ndash grifos nossos] para o traacutecio que o hospedou (e acabou o matando
para ficar com todo esse ouro) Novamente (vv 492-493) os troianos satildeo mostrados
possuindo muito ouro quando Taltiacutebio pergunta se a mulher que ele vecirc eacute Heacutecuba a ldquorainha
dos friacutegios de muito ourordquo [ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν] Em As Troianas no
agṓn entre Heacutecuba e Helena a primeira ressalta que a segunda ldquoVislumbrando-o [Paacuteris] com
trajes baacuterbaros e com ouro luzindo teu espiacuterito desvairou-serdquo [ὃν εἰσιδοῦσα βαρβάροις
ἐσθήmicroασι χρυσῷ τε λαmicroπρὸν ἐξεmicroαργώθης φρένας ndash grifos nossos] (vv 991-992)
Em Helena o adjetivo polykhryacutesos (no acusativo plural polykhryacutesous) eacute usado para
designar os doacutemoi (construccedilotildees) troianos Em Ifigecircnia em Aacuteulis Agamemnon comenta o
princiacutepio da guerra quando ldquoO homem que julgou as deusas (assim eacute a histoacuteria que os
homens contam) veio da Friacutegia para a Lacedemocircnia vestido roupas de cores vibrantes e
brilhando com joias de ouro a luxuacuteria dos baacuterbarosrdquo [ἐλθὼν δ᾽ ἐκ Φρυγῶν ὁ τὰς θεὰς
κρίνων ὅδ᾽ ὡς ὁ microῦθος Ἀργείων ἔχει Λακεδαίmicroον᾽ ἀνθηρὸς microὲν εἱmicroάτων στολῇ
χρυσῷ δὲ λαmicroπρός βαρβάρῳ χλιδήmicroατι] (vv 71-74) Esse excerto revela que o ouro eacute a
ldquoluxuacuteria dos baacuterbarosrdquo a predileccedilatildeo pelo ouro eacute um costume do Outro e o distingue dos
gregos A helenista Helen Bacon afirma que Euriacutepides eacute menos detalhista que Soacutefocles e
Eacutesquilo ao descrever as vestimentas baacuterbaras embora o embate com o baacuterbaro esteja mais
presente em suas obras mas que o ouro em excesso a riqueza das roupas eacute um elemento
distintivo do baacuterbaro (BACON 1955 p 87 123 e 124) servindo assim como um marcador
eacutetnico Muito ouro eacute sinal de excesso por isso eacute que os baacuterbaros satildeo caracterizados com o
adorno de muitas joias (HALL 1989 p 80)
Em Androcircmaca esse adjetivo (no dativo polychryacutesō) eacute novamente utilizado para
designar os troianos (v 2) Contudo a proacutepria Hermiacuteone (v 147-154) uma grega usa muito
85
ouro e a proacutepria Helena se deixa seduzir pelo ouro de Paacuteris como vimos no excerto de As
Troianas Natildeo podemos deixar de observar que Hermione eacute uma espartana
Os espartanos nas obras de Euriacutepides satildeo representados como pessoas que se
assemelham aos baacuterbaros como fica claro por exemplo na passagem em que Tiacutendaro
recrimina Menelau dizendo-lhe ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres vivido tanto tempo entre os
baacuterbarosrdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (Orestes v 485) Euriacutepides os
representa dessa maneira porque eles satildeo os inimigos dos atenienses na Guerra do
Peloponeso o grego pode voltar a um estado de barbaacuterie como acontece com os espartanos
Assim representar Hermiacuteone usando muito ouro ou depreciar Menelau (como acontece em
Orestes ou Ifigecircnia em Aacuteulis que inclusive ganha o primeiro precircmio na competiccedilatildeo traacutegica
em que foi encenada) eacute representar o espartano como semelhante ao baacuterbaro porque eacute digno
de cometer atos baacuterbaros sobretudo durante a guerra
Entretanto por mais que Euriacutepides faccedila essas correlaccedilotildees dada a natureza ldquotemaacutetica e
simboacutelicardquo de suas obras (BACON 1955 p 124) o troiano ainda eacute o referencial de barbaacuterie
em Androcircmaca Hermione afirma agrave personagem-tiacutetulo que ldquonatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade helecircnicardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) pedindo para que ela natildeo
introduza costumes do seu ldquobaacuterbaron geacutenosrdquo laacute Em Orestes a caracterizaccedilatildeo do friacutegio como
um homem medroso covarde que se prosterna e elabora um discurso defensivo para manter a
sua vida corrobora seu pertencimento ao domiacutenio dos baacuterbaros
Na Iliacuteada o excesso de ouro de Troia natildeo designa barbaacuterie mas definitivamente
designa uma alteridade Somente os troianos satildeo relacionados agrave posse do ouro (II vv 229-
231) e eles satildeo justamente o inimigo na guerra Embora os heroacuteis homeacutericos sejam regidos
por um ideal de conduta comum os troianos satildeo diferentes dos aqueus o uso que eles fazem
desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes
Paacuteris se utiliza de todos os meios para manter a posse de sua amada Helena desde
suas riquezas ateacute mesmo sua vida ele soacute entra em batalha quando se vecirc a ponto de perde-la
Por isso ele natildeo possui tantos epiacutetetos ligados agrave guerra Heroacuteis como Aquiles Agamecircmnon
Menelau Odisseu e o proacuteprio Heitor satildeo qualificados com adjetivos relacionados ao ambiente
beacutelico No Canto III da Iliacuteada no qual Helena mostra alguns heroacuteis a Priacuteamo fica evidente
isso Vejamos os epiacutetetos desses guerreiros em comparaccedilatildeo aos de Paacuteris no supracitado
Canto
86
Agamemnon ldquohomem de aspecto imponenterdquo (v 166) ldquorei poderosordquo (v 178) ldquotatildeo belo e
de tal corpulecircnciardquo (v 167) ldquotatildeo belo conspectordquo (v 169) ldquomajestade tatildeo
granderdquo (v 170) ldquode Atreu descendenterdquo (v 178) ldquotatildeo grande rei chefe de
homens quatildeo forte e notaacutevel guerreirordquo (v 179) ldquoventurosordquo (v 182) ldquofilho
dileto dos deusesrdquo (v182)
Odisseu ldquode espaldas mais largas de ver e de peito mais amplordquo (v 194) ldquoguieiro
velosordquo (v 197) ldquoastucioso guerreirordquo (v 200) ldquoem toda sorte de ardis
entendido e varatildeo prudentiacutessimordquo (v 203) ldquoo astuciosordquo (v 216) ldquoindiviacuteduo
bisonho que o cetro na matildeo mantivesse () imaginara talvez ser pessoa
inexperta ou insensatardquo (vv 218-220)
Menelau ldquode Ares forte disciacutepulordquo [areḯphilos] (v 206)
Aacutejax
Telamocircnio
ldquotatildeo belo e de tal corpulecircnciardquo (v 226) ldquode bem maior estatura e de espaldas
mais largas que os outrosrdquo (v 227) ldquobaluarte dos homens Aquivosrdquo (v 229)
ldquogiganterdquo (v 229)
Heitor ldquode penacho ondulanterdquo (v 83)
Paacuteris ldquodivordquo [theoeidḗs dicircos] (vv 16 37 100 328 437) ldquobelordquo (v 27) ldquode
formas divinasrdquo (v 58) ldquode belas feiccedilotildeesrdquo (v 39) ldquosedutor de mulheresrdquo (v
39) ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a belezardquo (v 54) ldquomarido
de Helena de belos cabelosrdquo (v 328)
Agamemnon eacute o aacutenax ele eacute o chefe da expediccedilatildeo rei de todos os reis eacute o chefe de
homens o notaacutevel guerreiro aqui estaacute denotado seu aspecto beacutelico sobretudo pela sua
habilidade de comando Odisseu com a sua astuacutecia tambeacutem possui um aspecto beacutelico isso se
daacute porque essa meacutetis natildeo estaacute ligada apenas agrave dissimulaccedilatildeo agrave mentira mas ao planejamento
mesmo necessaacuterio a uma guerra Eacute ele que tem a ideia do cavalo de Troia que garante a
vitoacuteria dos gregos essa guerra foi ganha pela meacutetis Menelau eacute amigo de Ares (areḯphilos)
deus da guerra e Aacutejax eacute o gigante corpulento personagem cuja forccedila fiacutesica sobrepuja por
exemplo a forccedila da meacutetis ligada agrave inteligecircncia Do mesmo modo o penacho de Heitor se
refere a uma parte do seu elmo que por sua vez eacute parte da armadura de um guerreiro e ainda
pode se referir agrave sua habilidade com os cavalos (ressaltada em outros Cantos) pois o penacho
lembra a crina desse animal Como vimos o cavalo eacute necessaacuterio agrave guerra deslocando os
guerreiros no campo de batalha e agraves vezes auxiliando-os nas lutas Paacuteris natildeo possui epiacutetetos
87
beacutelicos e o uacutenico elemento relacionado agrave guerra que ele possui eacute o arco o qual eacute
desvalorizado
Na trageacutedia o arco eacute a arma do baacuterbaro por excelecircncia que por sua vez se
materializa na figura do persa Paacuteris eacute mostrado como um arqueiro duas vezes (Heacutecuba vv
387-388 Orestes v 1409) nas trageacutedias que analisamos assim como Teucro (Helena vv
75-77) A diferenccedila eacute que tanto em Heacutecuba quanto em Orestes o arco de Paacuteris eacute mencionado
em contexto beacutelico e em Helena Teucro usa seu arco fora da guerra e o iria utilizaacute-lo para
matar uma mulher natildeo um homem Homero tambeacutem traz essa ideia de diferenciaccedilatildeo de uso
do arco
Paacuteris entra na guerra com ldquoarco e espadardquo (toacutexa kai xiacutephos) e ldquoduas lanccedilas na matildeordquo
(dyacuteo kekorythmeacutena khalkocirc) Paacuteris eacute um arqueiro e isso fica bastante claro ao longo da Iliacuteada
Se teve uma arma que natildeo mudou muito ao longo do tempo foi o arco (KEEGAN 1995 p
179) embora variantes tenham surgido (como a besta ndash crossbow) ele eacute oriundo do Oriente
tendo entrado de uma vez por todas nas fileiras da infantaria grega atraveacutes do contato dos
cretenses com a Siacuteria e o Egito (SUTHERLAND 2001 p 113)
Na Guerra do Peloponeso (431-404 aC) os arqueiros ganharam um destaque muito
grande Marcos Alvito afirma inclusive que as forccedilas secundaacuterias (peltastas arqueiros
fundibulaacuterios e demais tropas ligeiras) tiveram um papel decisivo (SOUZA 1988 p 64)
embora a falange hopliacutetica sempre fora preferida a esse modo de luta (LISSARAGUE 2002
p 117) Essa preferecircncia se daacute em virtude de uma tradiccedilatildeo de se preterir as tropas ligeiras em
detrimento de uma forma de luta aristocraacutetica que implica na valorizaccedilatildeo do combate corpo a
corpo
Essa valorizaccedilatildeo jaacute comeccedila na Iliacuteada haacute pouquiacutessimos arqueiros e talvez se todos
eles morressem em batalha a Guerra de Troia natildeo seria encerrada por causa disso afinal
ldquoAqueus e Troianos se batem corpo-a-corpo e natildeo ficam agrave espera de apoio de flechas ou
de lanccedilas de longe atiradas lutando de bem pertordquo (Ἀχαιοί τε Τρῶές τε δῄουν
ἀλλήλους αὐτοσχεδόν οὐδ᾽ ἄρα τοί γε τόξων ἀϊκὰς ἀmicroφὶς microένον οὐδ᾽ ἔτ᾽ ἀκόντων
ἀλλ᾽ οἵ γ᾽ ἐγγύθεν ἱστάmicroενοι) (XV vv 707-712 ndash grifos nossos)
Mencionados haacute seis arqueiros na Iliacuteada Filoctetes e Teucro do lado aqueu Paacuteris
Pacircndaro Heleno e Doacutelon do lado troiano Tanto Paacuteris quanto Pacircndaro e Heleno usam o arco
em batalha Doacutelon aparece em apenas um Canto da Iliacuteada para morrer nas matildeos de Odisseu e
Diomedes e sua funccedilatildeo eacute a de espiar os aqueus natildeo de lutar contra eles natildeo chegando a
entrar em batalhas Filoctetes vem acompanhado de um grupo de arqueiros que natildeo chegam a
88
entrar em accedilatildeo Tampouco o proacuteprio heroacutei o faz ele foi abandonado em uma ilha por seus
companheiros no caminho para Troia em decorrecircncia de um ferimento que exalava um odor
terriacutevel
Haacute ainda o povo da Loacutecrida um povo arqueiro o qual foi auxiliar os aqueus Eacute
mencionado uma vez no poema mas ele natildeo entra em batalha os loacutecrios satildeo medrosos
demais para isso (XII vv 712-718) Do lado aqueu Teucro eacute o uacutenico que luta em batalha
com o arco e ele aparece em Helena de Euriacutepides portando-o ele quase atira na esposa de
Menelau durante a peccedila Ele vai parar no Egito onde estaacute tambeacutem Helena O motivo Ele foi
expulso de sua terra pelo pai Ser exilado era algo vexatoacuterio o economista Eacutemile Mireaux
mostra que os exilados comeccedilam a surgir por volta do seacuteculo VII aC mas que a praacutetica de
um membro de uma comunidade se exilar natildeo era tatildeo incomum antes dessa data
A estes contingentes de desenraizados deve-se finalmente acrescentar todos aqueles que uma vinganccedila um crime um homiciacutedio agraves vezes acidental obrigaram a deixar a famiacutelia e a cidade e a procurar o refuacutegio da hospitalidade agraves vezes para sempre Pois quando o fugitivo culpado eacute apenas um bastardo ou mesmo um simples filho segundo raras satildeo as famiacutelias dispostas a assumir o encargo do pagamento de uma composiccedilatildeo para recuperar um membro que em regra geral natildeo eacute senatildeo um encargo suplementar para o patrimocircnio familiar (MIREAUX sd p 255)
Na Atenas Claacutessica a praacutetica do ostracismo vem reforccedilar a ideia de que ser privado de
viver em sua terra era um dos piores castigos os cidadatildeos atenienses escreviam em um
pedaccedilo de ceracircmica oacutestrakon o nome de quem deveria ser exilado por ser perigoso agrave ordem
democraacutetica Teucro em Helena representa algueacutem indesejado o que corrobora a ideia de
que o arco era uma arma que denotava vileza Ser privado de sua poacutelis era o equivalente a
estar morto (HALL 1997 p 97)
Mas falta algum arqueiro nesse time aqueu natildeo Ou foi esquecido o famoso arco de
Odisseu objeto que definiraacute o destino de Peneacutelope no palaacutecio de Iacutetaca Justamente seu arco
estaacute em casa Odisseu natildeo o utiliza na guerra Aqui o arco tem uma funccedilatildeo outra a qual natildeo
se perdera atraveacutes do tempo caccedila e esporte passatempos comuns da aristocracia Desse
modo a maioria do contingente de arquearia eacute oriundo do lado troiano da guerra
Os arqueiros natildeo lutam face a face atiram de longe suas setas O seu comportamento
na Iliacuteada eacute bastante peculiar eles compartilham de uma comunicaccedilatildeo natildeo-verbal e verbal
bastante parecida escondem-se e jactam-se quando ferem o inimigo (por exemplo V vv
100-106 XIII vv 593-597 vv 712-718) Aleacutem disso fugir e sentir medo eacute bem mais comum
entre eles do que entre os outros guerreiros (por exemplo III vv 33-37 XII vv 712-718)
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Esse comportamento natildeo eacute adequado dentro do coacutedigo de conduta guerreira o que torna o
grupo dos arqueiros de certa forma marginalizado no campo de batalha pertencendo a uma
categoria hieraacuterquica inferior agrave daqueles que usam a lanccedila ou a espada na luta
Paacuteris aparece na Iliacuteada pela primeira vez no Canto III os dois exeacutercitos se aproximam
e ele chama os aqueus para lutar em um embate singular (III vv 15-20) quando um guerreiro
luta sozinho com outro corpo-a-corpo Esse tipo de combate eacute o que mais acontece nessa
epopeia Mesmo numa batalha coletiva em que todo o exeacutercito estaacute lutando satildeo batalhas
singulares que ocorrem sabemos o nome de quem mata e de quem morre
Por isso que natildeo podemos dizer que haacute a valorizaccedilatildeo somente de um em detrimento do
outro ambos ndash morto e assassino ndash satildeo relembrados Jean-Pierre Vernant e Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo se debruccedilaram de maneiras diferentes sobre esse tema da bela morte utilizando as
mesmas passagens da Iliacuteada As suas noccedilotildees resumem-se nos diagramas abaixo
No primeiro diagrama vemos a visatildeo de Vernant agravequeles que morrem em batalha eacute
implicada uma seacuterie de caracteriacutesticas que os tornam aacuteristoi (os melhores) Eacute o fato de morrer
em batalha que lhe daacute esse estatuto Para Rennoacute (segundo diagrama) natildeo eacute a sua morte que
lhe implica a qualidade de aacuteristos mas a morte dos outros matando em batalha que se
consegue angariar para si essas seacuteries de caracteriacutesticas configurando-se pois em aacuteristoi
Quando esses guerreiros implacaacuteveis esses aacuteristoi morrem eacute que se daacute a bela morte pois foi
a morte de pessoas honoraacuteveis Cremos que tanto Vernant quanto Rennoacute natildeo satildeo visotildees
diacutespares mas complementares acerca da bela morte Tanto uma concepccedilatildeo quanto outra estaacute
presente na Iliacuteada Homero ldquoequilibra igualmente a grandeza dos assassinos e o paacutethos
(sofrimento) dos assassinadosrdquo (SCHEIN 2010 p 72)
Nesse embate singular contra Menelau ele se veste antes (vv 328-339) A descriccedilatildeo eacute
longa porque no proacuteprio vestir-se haacute um processo e uma estrutura formulaica 1) cnecircmides
(ldquocaneleirasrdquo) 2) couraccedila 3) espada 4) escudo 5) elmo e 6) lanccedila Aqui estaacute basicamente
90
todos os apetrechos necessaacuterios a um guerreiro e os quais estaratildeo presentes na armadura do
hoacuteplita Isso eacute interessante para que possamos comparar com o que a Arqueologia tem
trazido para noacutes Natildeo haacute por exemplo registros arqueoloacutegicos de cnecircmides no periacuteodo de
desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) como haacute no Poliacuteade Arcaico mas isso natildeo impede
que elas natildeo fossem feitas naquele periacuteodo em um material pereciacutevel (ZANON 2004 p
136) O mesmo acontece com as couraccedilas mas nada tambeacutem impede que elas fossem
derretidas para a reutilizaccedilatildeo do metal (ZANON 2004 p 137)
A espada (xiacutephos) que Paacuteris traz com cravos de prata tem correspondente
arqueoloacutegico de origem minoica esse tipo de espada natildeo era muito forte e quebrava saindo a
lacircmina do cabo Assim o guerreiro ficava desarmado (ZANON 2004 p 139) Embora natildeo
saibamos como eacute a espada de Menelau (soacute nos eacute dito que esse heroacutei se armou do mesmo
modo que Paacuteris) ela se quebra no decorrer da luta singular Isso mostra que o poeta da Iliacuteada
possuiacutea um conhecimento da cultura material palaciana Contudo esse tipo de espada natildeo
servia para corte (como acontece na epopeia) apenas para perfuraccedilatildeo Espadas que cortam e
perfuram soacute apareceriam por volta de 1200 aC (ZANON 2004 p 140)
Esse eacute mais um exemplo de mistura perioacutedica a espada corta e perfura como eacute de
conhecimento da audiecircncia homeacuterica mas o aspecto dela eacute o de uma espada palaciana
ldquoHomerordquo segundo a arqueoacuteloga brasileira Camila Aline Zanon ldquojuntou esses retalhos e os
costurou com tal primazia que somente com o surgimento da Arqueologia eacute que pudemos
diferenciar um pouco dos seus elementos constitutivos no tocante a essas eacutepocasrdquo (2004 p
146) Isso denota tambeacutem que ele natildeo ignorava as praacuteticas beacutelicas o que nos ajuda a
compreender mais a representaccedilatildeo de Paacuteris Outro ponto interessante reside no fato de que a
couraccedila que Paacuteris veste natildeo eacute sua eacute de Licaacuteone seu irmatildeo Nosso heroacutei natildeo possui sua
armadura completa corroborando a sua habilidade como arqueiro esse guerreiro fazia parte
das tropas ligeiras natildeo das pesadas Os membros daquela precisavam se despir da armadura
completa pesada para poder exercer sua funccedilatildeo na guerra perseguir o inimigo Eles
geralmente eram pessoas de menor condiccedilatildeo financeira que natildeo podiam arcar com um
armamento completo ou ateacute mesmo mercenaacuterios estrangeiros Eram fundibulaacuterios peltastas
arqueiros essas armas satildeo muito mais baratas
As batalhas singulares seguem uma ordem tambeacutem primeiro haacute o tiro de lanccedilas soacute a
partir daiacute que o embate corpo a corpo com espadas se desenrola (III vv 346-360) Aqui o
tiro de Paacuteris natildeo fere nem mesmo a armadura de Menelau enquanto o tiro deste atravessa o
escudo e seu khitṓn sua tuacutenica por baixo da armadura Paacuteris se encurva impedindo que algo
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pior lhe aconteccedila A luta continua e Menelau passa a atacar Paacuteris com a espada que se
quebra Issonatildeo eacute atribuiacuteda agrave sua fragilidade mas a um desiacutegnio dos deuses Contudo como
vimos era passiacutevel de isso acontecer
Afrodite vendo a desvantagem desse heroacutei o retira do campo de batalha colocando-o
no taacutelamo agrave espera de Helena Natildeo fosse a intervenccedilatildeo da deusa Menelau teria alcanccedilado
alto kŷdos ele eacute o valor que os deuses atribuem ao homem Nas palavras da filoacutesofa argentina
Mariacutea Cecilia Colombani ldquose kucircdos [sic] descende dos deuses kleacuteos ascende ateacute elesrdquo
(DETIENNECOLOMBANI 2005 p 52) Leslie Kurk acrescenta que aquele que possui
kŷdos tem um ldquopoder especial conferido por um deus que faz um heroacutei invenciacutevelrdquo (KURK
apud LUNT 2010 p 64) Se um homem natildeo demonstra ser digno desse valor ele morre
aacutephantos (invisiacutevel) e nṓnymnos (sem nome sem gloacuteria)
No Canto VI (vv 521-525) Heitor ao ver nosso heroacutei afirma que nenhum anḗr
poderia deixar de valorizar (atimaacuteō) seus ldquotrabalhos na guerrardquo (eacutergon maacutekhēs) mas que natildeo
quer os exercer gerando aiacuteskhos (vergonha) Esse verbo (atimaacuteō) eacute composto de duas partes
o prefixo de negaccedilatildeo a- e o verbo timaacuteō (valorizar) que daacute origem agrave palavra timḗ uma das
noccedilotildees mais caras ao guerreiro ela eacute o valor de uma pessoa Para um guerreiro o campo de
batalha eacute o locus privilegiado de demonstraccedilatildeo desse valor de sua honra Desse modo como
vimos eacute na Iliacuteada mais do que na Odisseia que os heroacuteis tecircm a sua timḗ posta a prova
Richard B Rutherford sintetiza bem o que significa essa honra na Greacutecia antiga
No coraccedilatildeo do sistema de valores dos heroacuteis de Homero estaacute a honra τιmicroή expressa pelo respeito de seus pares e personificada em formas tangiacuteveis ndash tesouros presentes mulheres um lugar honoraacutevel no banquete Em tempo de guerra eacute inevitaacutevel que a honra seja ganha sobretudo pelas proezas em batalha habilidade como um liacuteder e um lutador Outras qualidades satildeo tambeacutem admiradas ndash habilidade como orador piedade bom senso e conselho lealdade hospitalidade gentileza mas essas satildeo secundaacuterias e a uacuteltima poderia de fato estar sem lugar no combate (RUTHERFORD 1996 p 40)
Segundo Redfield a timḗ eacute a medida de um homem em relaccedilatildeo ao outro implicando
numa comparaccedilatildeo de um indiviacuteduo com outro Isso soacute eacute possiacutevel se esses homens estatildeo
inseridos em uma sociedade na qual existe uma publicidade das accedilotildees45 ou seja na qual se
verifique uma uniatildeo do que entendemos hoje como vida privada e vida puacuteblica O valor de um
45 A sociedade grega eacute uma sociedade agoniacutestica Esse termo natildeo existe na liacutengua portuguesa eacute um adjetivo derivado de um processo de aportuguesamento cuja base etimoloacutegica eacute a palavra aacutegon (competiccedilatildeo) Foi utilizado para caracterizar a sociedade helecircnica no que diz respeito agrave noccedilatildeo de competiccedilatildeo o indiviacuteduo estaacute sempre sob o olhar do puacuteblico sendo sinalizado por ele quando comete atos dignos (honrados) e indignos (vergonhosos)
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homem se lhe era atribuiacutedo natildeo por ele mesmo mas por outros homens Esse reconhecimento
eacute o que configura a kleacuteos a gloacuteria (ou reputaccedilatildeo)46 Esta eacute a gloacuteria dada pelos homens agravequeles
que se destacam Enquanto a vida tem um fim a kleacuteos eacute imortal pois ela se daacute atraveacutes da
rememoraccedilatildeo desses mortos grandiosos seja atraveacutes da oralidade ndash o canto do aedo ou a
narraccedilatildeo de mitos47 ndash seja atraveacutes da construccedilatildeo de tuacutemulos Na Iliacuteada uma passagem chama
atenccedilatildeo para isso trata-se de uma fala de Heitor (VII vv 81-91) Eacute no Canto VII tambeacutem (v 516) que Paacuteris recebe uma designaccedilatildeo interessante hyiograves
Priaacutemoio Ann Suter chama atenccedilatildeo para ela pois estaacute numa passagem que ldquoimplica numa
total reversatildeo da caracterizaccedilatildeo de covarde para heroacutei de mulherengo [womanizer] para
guerreirordquo (1984 p 71) Paacuteris como veremos depois de desafiar os guerreiros aqueus acaba
sendo enfrentado por Menelau e foge retornando depois para um combate singular Afrodite
ainda o retira da guerra e ele soacute volta a ela no Canto VII Justamente aqui no Canto que
intermedia sua fuga e seu retorno tanto no plano semacircntico quanto no linguiacutestico ocorre o
turning point de Paacuteris
No Canto VII tambeacutem Paacuteris mata seu primeiro adversaacuterio na Iliacuteada (vv 8-10) Ele eacute
Meneacutestio um korynḗtēs guerreiro que porta maccedila uma espeacutecie de porrete ou seja natildeo
utiliza as armas convencionais de guerra homeacuterica (espada ou lanccedila) Ele tambeacutem faz parte
das tropas ligeiras do exeacutercito aqueu assim como Paacuteris que eacute arqueiro do lado troiano Haacute
portanto uma equiparidade na luta o toxoacutetēs lutando contra o korynḗtēs No Canto seguinte
No Canto VIII Paacuteris continua demonstrar sua qualidade de arqueiro ele fere um dos cavalos
de Nestor com seu arco (VIII vv 80-84)
Paacuteris tambeacutem retorna agrave accedilatildeo no Canto XI Eacute nesse conjunto de Cantos (XI ao XIII)
que Paacuteris mais se mostra um guerreiro ativo utilizando sua arma principal o arco e flecha
Ele fere Macaacuteone afastando-o da luta e depois Euriacutepilo que estava retirando a armadura de
Apisaacuteone morto em batalha (XI vv504-509 vv 581-584) Outro alvo seu eacute Diomedes (XI
vv 369-395) Nosso heroacutei sai de um esconderijo (loacutekhos) e jacta-se A foacutermula utilizada eacute
ldquoeukhoacutemenos eacutepos ēuacutedardquo tiacutepica dessas situaccedilotildees de vangloacuteria (MARTIN 1989 p 29) Esse eacute
46 ldquoPara os gregos antigosrdquo segundo David Lunt ldquoa imortalidade heroica consistia em dois componentes gloacuteria e fama (kleacuteos) e honras cultuais (timḗ)rdquo (LUNT 2010 p 83) O culto ao heroacutei natildeo eacute mostrado na Iliacuteada a arqueologia jaacute mostrou que ele jaacute existia na eacutepoca de Homero (JONES 2010 p 14) A explicaccedilatildeo de Seth L Schein para o aedo da Iliacuteada e da Odisseia exclui-lo estaria no caraacuteter pan-helecircnico das obras ldquo[] a religiatildeo olimpiana de Homero eacute pan-helecircnica [] Homero transcende os limites do culto regional e local para criar na poesia uma unidade religiosa que natildeo existia historicamenterdquo (SCHEIN 2010 p 49) Christopher P Jones jaacute afirma o contraacuterio Homero influenciou o culto aos heroacuteis (JONES 2010 p 14) 47 David Lunt ao mostrar a etimologia da palavra kleacuteos mostra tambeacutem que ela tem uma estreita ligaccedilatildeo com essa cultura oral klyacuteein eacute ouvir Assim a ldquokleacuteos soacute pode ser possuiacuteda se algueacutem a proclama e algueacutem a escutardquo (LUNT 2010 p 88)
93
o comportamento tiacutepico de um arqueiro e por isso que Diomedes lhe adereccedila muitos insultos
A qualidade de Paacuteris como arqueiro (toxoacutetēs) eacute desprezada ldquoarco e flecha embora praticado
por certos indiviacuteduos como Paacuteris e Teucro eacute o mais longe possiacutevel marginalizada e o termo
lsquoarqueirorsquo pode ser ateacute mesmo usado como um insultordquo (RUTHERFORD 1996 p 38)
Paacuteris segue sua participaccedilatildeo em batalha liderando uma das colunas troianas contra os
acaios (XII v 93) Eneias heroacutei troiano de quem jaacute falamos em nossa introduccedilatildeo chama ao
seu auxiacutelio Paacuteris e outros guerreiros (XIII vv 489-495) Ainda nesse Canto Paacuteris mata outro
grego o coriacutentio Euqueacutenor estimulado pela perda de um amigo Harpaliatildeo (XIII vv 660-
663 671-672) Esta eacute a uacutenica vez em que um arco mata um aqueu Em todas as outras
passagens envolvendo tiros de arco apenas Teucro arqueiro aqueu mata com o arco Eacute
interessante perceber que o uacutenico arqueiro em atividade do lado aqueu se chama ldquoTroianordquo
ldquoTeucrordquo eacute outra denominaccedilatildeo para o troiano Isso corrobora a ideia do arco ser uma arma
tiacutepica desse exeacutercito Geralmente o arco apenas fere causando na maioria das vezes uma
reprimenda daquele que eacute atingido agravequele que atinge como eacute o caso de Diomedes e Paacuteris (e
ainda de Diomedes e Pacircndaro)
No Canto XV Paacuteris atinge por traacutes [oacutepisthe] Deiacuteoco quando este se retirava da luta
(XV vv 341-342) Esta eacute sua uacuteltima accedilatildeo em batalha a partir daiacute ele soacute eacute mencionado Aqui
em seu uacuteltimo ato beacutelico nosso heroacutei faz algo que natildeo eacute bem visto Afinal o combate deve
ser feito face-a-face e o ataque pela frente do guerreiro Matar ou ferir pelas costas eacute
desonroso vocecirc natildeo deu oportunidade da pessoa se defender nem dela ver quem a matou
Aqui aparece uma outra faceta da caracterizaccedilatildeo do guerreiro Paacuteris a qual parece ser
exclusiva a ele mas que eacute mais comum em batalha do que poderiacuteamos imaginar Em vaacuterias
passagens Paacuteris eacute mostrado sentindo medo Ele foge do embate singular quando vecirc que
Menelau de fato lutaria com ele (III vv 21-37) Sua fuga eacute inadmissiacutevel ele causou a guerra
O fato de ele ter desencadeado todo o conflito e ao se deparar com Menelau recuar de medo
mexe mais com os nervos de Heitor do que o proacuteprio fato de ele simplesmente fugir O
aristocrata que eacute um guerreiro deve enfrentar as batalhas e qualquer fuga eacute condenaacutevel
Ainda no Canto III (vv 39-45) Heitor ressalta que Paacuteris tem todas as qualidades
fenotiacutepicas necessaacuterias aos kaloigrave kagathoiacute mas que seu comportamento natildeo estava
condizendo com o de um Carece-lhe forccedila (biacuteē phresigraven) e coragem (alkḗ) A alkḗ eacute o traccedilo
distintivo do guerreiro junto com a andreiacutea a coragem varonil cara ao gecircnero masculino
Cremos que ela eacute o impulso positivo e a qualidade daquele que supera o medo para enfrentar
situaccedilotildees-problema eacute a justa medida entre inseguranccedila e convicccedilatildeo exacerbada Ela eacute uma
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caracteriacutestica intriacutenseca do ser humano mas se manifesta com mais ou menos intensidade em
um indiviacuteduo consoante trecircs aspectos a) predisposiccedilatildeo no caraacuteter na iacutendole do mesmo b)
incitaccedilatildeo por parte de outra pessoa ou c) motivaccedilatildeo por parte de um outro sentimento
No caso de Paacuteris a coragem se manifesta pela incitaccedilatildeo de outrem bem como pelo
medo de perder Helena veremos mais adiante que ele aceita devolver os tesouros que ele
trouxe de Esparta mas se nega a devolver a consorte Quando passamos por essas situaccedilotildees-
problema podemos encaraacute-las imediatamente ou podemos recuar diante delas a menos que
outra pessoa nos encoraje ou que tenhamos vergonha de recuar como eacute o caso de Paacuteris
tambeacutem
O ato corajoso desse heroacutei eacute mensurado a partir da sua intrepidez diante do confronto
com o perigo em um campo de batalha O valor de um kalograves kagathoacutes consiste na sua
coragem O valente eacute sempre o nobre o homem de estatuto social elevado A vitoacuteria eacute para
ele a distinccedilatildeo mais alta e o conteuacutedo proacuteprio da vida Do mesmo modo se daacute com os atletas
a vitoacuteria eacute essencial para que este possa reclamar para si um estatuto honoriacutefico semelhante ao
de um heroacutei que ao ficar cara a cara com um igual o enfrenta agrave medida que eacute conduzido
ldquopelo medo da vergonhardquo (BALOT 2004 p 416)48 Ele quer ser reconhecido pela sua
bravura natildeo pela sua fraqueza
Contudo por mais que o heroacutei deva ser intreacutepido isso natildeo implica necessariamente
que o ele seja proibido de sentir medo ele eacute intriacutenseco e natildeo eacute incomum um guerreiro
amedrontar-se na Iliacuteada Ateacute mesmo Aquiles o melhor dos aqueus sente medo Nicole
Loraux mostra que ldquona epopeia natildeo haacute guerreiro que natildeo tenha tremido alguma vez [] Natildeo
existe o grande guerreiro que natildeo tenha sentido um dia em todo o seu ser o tremor do terror
Como se o medo fosse a prova que qualifica o heroacuteirdquo (LORAUX 2003 p 97) Isso se daacute
porque eles satildeo humanos o homem eacute passiacutevel de sentir medo mas isso natildeo o qualifica como
um completo covarde Pelo contraacuterio ldquoO medo do bravo combatente revela a verdadeira
dimensatildeo do perigo que ele enfrente e que o engrandecerdquo (FONTES 2001 p 103)
Tanto a coragem quanto o medo coabitam o mesmo indiviacuteduo Este eacute corajoso agrave
medida que a coragem sobrepuja o medo eacute covarde quando o medo sobrepuja a coragem Nas
palavras de Simon Blackburn ldquoa coragem natildeo eacute a ausecircncia de medo () mas a capacidade de
sentir o grau adequado de medordquo (BLACKBURN 1997 p 80) Assim eacute incorreto afirmar
que o medo eacute diametralmente oposto agrave coragem bem como que um heroacutei eacute totalmente
48 Ryan Balot ainda afirma que a coragem eacute ldquoa qualidade ou disposiccedilatildeo do personagem que faz um indiviacuteduo superar o medo a fim de atingir um objetivo preacute-concebidordquo (BALOT 2004 p 407)
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destemido Ser covarde natildeo eacute sinocircnimo de sentir medo a covardia implica tambeacutem na recusa
total agrave batalha e o natildeo retorno numa situaccedilatildeo de fuga
Contudo eacute fato que o medo pesa sobre os troianos e os arqueiros como um elemento
desqualificativo porque ele estaacute associado a outras caracteriacutesticas devalorativas Por isso que
Paacuteris seraacute sempre reprimido como veremos mas sem deixar contudo de ser um exemplo
aleacutem das qualidades aristocraacuteticas que ele porta quando ele recua em batalha ele retorna
matando guerreiros inimigos liderando colunas incitando os companheiros agrave luta Destarte
isso natildeo significa uma contradiccedilatildeo da Iliacuteada como afirmou Moses Finley (FINLEY 1982 p
43)49 mas um aspecto paidecircutico como ser humano tem-se o direito de sentir medo de
recuar Ter medo tambeacutem eacute comum como vimos recuar entretanto eacute uma atitude desonrosa
Por isso que Paacuteris retorna agrave batalha Contudo ele o faz depois de a) ser motivo de graccedila
[khaacuterma] para os inimigos que riem dele e b) ser censurado por Heitor e Helena ele sente
vergonha de seus atos depois que sua atitude eacute internalizada como sendo algo indigno de um
anecircr Aqui a neacutemesis de Heitor desencadeou aidṓs em Paacuteris Nessa censura Heitor afirma
que este carece de biacuteē (forccedila) e alkḗ (coragem) Contudo no Canto VI o mesmo Heitor
afirma que todos sabem que Paacuteris eacute corajoso (aacutelkimos) e tem valor (timḗ)
O coacutedigo de conduta do guerreiro seja ele de qual lado da batalha for eacute o mesmo
bem como a representaccedilatildeo dele Tanto aqueus quanto troianos estatildeo sob esse mesmo coacutedigo e
satildeo representados da mesma maneira com as mesmas vestimentas em batalha armam-se do
mesmo jeito como jaacute pudemos ver com os mesmos tipos de metal com as mesmas armas
Isso acontece tambeacutem na imageacutetica como nos mostra Franccedilois Lissarague grego e baacuterbaro eacute
representado da mesma maneira (LISSARAGUE 2002 p 113-114) O que vai diferenciar o
contingente troiano do aqueu eacute justamente o tipo de arma valorizada natildeo o valor do guerreiro
bem como se enfatizaraacute que mesmo o melhor guerreiro troiano natildeo eacute paacutereo para o melhor
guerreiro aqueu (Iliacuteada XXII v 158)
O problema de Paacuteris eacute a demora em entrar no campo de batalha esquivando-se o
quanto for possiacutevel (ldquoMas voluntaacuterio te escusas natildeo queres lutarrdquo) Mas nunca ele a
abandona completamente Essa liccedilatildeo eacute de extrema importacircncia para os futuros politḗs
guerreiros da poacutelis que aprendem a Iliacuteada e a Odisseia e fazem desse ideal de conduta
heroica seu proacuteprio ideal e tecircm como maacutexima a sentenccedila ldquohamarteicircn eikograves anthrṓpousrdquo errar
eacute humano (EURIacutePIDES Hipoacutelito v 615)
49 ldquoMuitas vezes o proacuteprio material apresentava contradiccedilotildees internas () [Paacuteris] () aparece simultaneamente como um despreziacutevel covarde e como um verdadeiro heroacuteirdquo (FINLEY 1982 p 43)
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Destarte a Iliacuteada assim como a Odisseia configura-se num discurso de legitimaccedilatildeo
da etnicidade helecircnica aleacutem de um discurso paidecircutico Aliaacutes eacute atraveacutes da paideiacutea que essa
ideologia seraacute passada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ateacute chegar ao ponto de formar os kaloigrave
kagathoiacute aqueles bem-nascidos que viratildeo a governar a poacutelis e a vencer os jogos helecircnicos
como atletas Ateacute mesmo durante a Idade Meacutedia essas epopeias foram revisitadas e passaram
muito tempo sem serem estudadas e questionadas segundo Carlier pelo seu caraacuteter de texto
religioso Esse autor afirma que esse movimento de estudo das obras homeacutericas poderia ser
um convite ao questionamento da Biacuteblia que tambeacutem eacute um texto religioso e de funccedilatildeo
modelar (no entanto inserido em uma outra eacutetica diferente da sociedade de Homero)
(CARLIER 2008 p 13)
Alguns autores como Robert Aubreton e Richard B Rutherford defendem que a
Iliacuteada demonstra preferecircncia pelos troianos Os argumentos giram em torno de trecircs questotildees
praticamente a) a representaccedilatildeo familiar do lado troiano e de toda a ldquosensibilidaderdquo daiacute
oriunda (como a cena entre Heitor e Androcircmaca ou de Heacutecuba e Heitor) b) o fato dos
troianos ganharem a maioria das batalhas e c) a Iliacuteada terminar com os funerais de Heitor
configurando-o pois como o grande heroacutei dessa epopeia
Haacute problemas nesses argumentos a ldquocidaderdquo grega eacute improvisada enquanto a troiana
eacute a ldquocidaderdquo de fato (MACKIE 1996 p 1) Isso se daacute porque os gregos satildeo os invasores e os
troianos satildeo os invadidos As esposas pais filhos pequenos dos gregos ficaram em seus
palaacutecios quem vai agrave guerra eacute o anḗr Assim eacute inviaacutevel entre os gregos cenas relativas ao
oicirckos ao domiciacutelio
Os troianos ganham a maioria das batalhas porque assim quis um grego Aquiles pede
para sua matildee a deusa Teacutetis que interceda junto a Zeus para fazer com que os troianos
ganhassem todas as batalhas a fim de mostrar a Agamemnon o quanto ele fazia falta
Lembremo-nos de que o primeiro Canto da Iliacuteada trata justamente da rixa que apartou
Aquiles da guerra e que a proacutepria narrativa dessa epopeia diz respeito agrave ira desse heroacutei e das
suas consequecircncias
O funeral de Heitor encerra a Iliacuteada o de Aquiles contudo nem aparece nela Seria
um indicativo de que aquele heroacutei eacute mais importante do que este e que sua morte seria o
grande final do poema O problema eacute que a Iliacuteada natildeo era cantada num dia inteiro para o
puacuteblico primeiro porque sua reacutecita natildeo demoraria soacute um dia visto que ela tem 15693 versos
segundo porque esse poema era cantado em episoacutedios nas competiccedilotildees e nos banquetes
Assim podia se cantar soacute o episoacutedio da luta entre Menelau e Paacuteris ou soacute o episoacutedio em que
97
Helena descreve os guerreiros aqueus ou soacute o episoacutedio em que Paacuteris atira em Diomedes e ele
o rechaccedila e assim por diante Nem mesmo a divisatildeo em Cantos como conhecemos havia
sido feita somente os saacutebios alexandrinos fariam isso muitos seacuteculos depois da cristalizaccedilatildeo
do poema na escrita Desse modo natildeo podemos pensar os funerais de Heitor como o grande
fim da reacutecita era o grande fim desse episoacutedio Natildeo haacute o famigerado the end cinematograacutefico
na Iliacuteada
Tambeacutem existem as consideraccedilotildees acerca da bela morte por Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo que exploramos em nosso trabalho O que importa eacute o que o heroacutei faz em vida sua
morte eacute o fim de suas faccedilanhas incluindo o matar Por isso que Aquiles natildeo precisa morrer no
poema para ter seu valor corroborado O que corrobora o valor de Aquiles na Iliacuteada pode ser
justamente o funeral de Heitor assim como este seria honrado e rememorado pela morte do
guerreiro homenageado (VII vv 81-91) Aquiles o seraacute pela morte de Heitor Comparando
hipoteticamente se Aquiles viesse a morrer na Iliacuteada o valor de Paacuteris seu assassino seria
corroborado E Homero natildeo queria mostrar isso Paacuteris embora exemplo ainda eacute um
transgressor das leis da xeacutenia valor caro aos helenos e a todos os habitantes do Mediterracircneo
(VLASSOPOULOS 2013 p 90) e causador de uma guerra que fez perecer uma geraccedilatildeo de
hemiacutetheoi semideuses (os heroacuteis)
Em virtude do apresentado nesse capiacutetulo pudemos ver que os heroacuteis embora
partilhem aspectos em comum de sua categoria natildeo se constituem de uma massa indistinta
homogeneamente constituiacuteda cada heroacutei tem a sua peculiaridade A de Agamecircmnon eacute a sua
lideranccedila a de Odisseu sua meacutetis a de Aacutejax sua forccedila fiacutesica e a de Paacuteris sua beleza Homero
consegue construir personagens diferentes que natildeo agem da mesma maneira embora sejam
arautos de um mesmo coacutedigo de conduta
Entretanto embora sejam regidos por esse ideal de conduta os troianos satildeo diferentes
dos aqueus o uso que eles fazem desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes Paacuteris mesmo eacute
um transgressor e embora tente consertar seus erros continua sendo o causador da guerra que
tanto gera sofrimento a ambos os lados Ele ainda estaacute em estado de aacutetē Por isso seu valor
beacutelico eacute diminuiacutedo como destacar algueacutem que causou uma guerra John A Scott vecirc isso
como uma inovaccedilatildeo de Homero Paacuteris seria o principal guerreiro troiano mas como
desrespeitou a xeacutenia causando a Guerra de Troia perdeu seu posto para Heitor que seria um
personagem inventado para receber todas as caracteriacutesticas as quais teriam pertencido ao
proacuteprio Paacuteris na tradiccedilatildeo miacutetica (SCOTT 1913)
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Essa ideia contudo natildeo possui argumentaccedilatildeo suficiente para comprovaccedilatildeo ateacute
mesmo porque o nome de Heitor jaacute constava nas tabuinhas de Linear B (CHADWICK 1970
p 98) Natildeo podemos ir aleacutem da documentaccedilatildeo e afirmar que esse ou aquele personagem eacute
uma criaccedilatildeo exclusiva de Homero visto que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o resultado de inuacutemeras
tradiccedilotildees orais posteriores agrave composiccedilatildeo das obras Assim como Euriacutepides reelabora os mitos
da tradiccedilatildeo eacutepica em suas trageacutedias Homero tambeacutem o faz em suas epopeias ldquoos materiais
que o poeta utiliza para recordar satildeo versaacuteteis moacuteveis feitos de foacutermulas de episoacutedios e de
um repertoacuterio de informaccedilotildees variado que pode se empregado com certa liberdade e adequado
agraves conveniecircncias poemaacuteticas e meloacutedicasrdquo (NUNtildeEZ 2011 p 239)
Eacute por essa razatildeo que os poemas homeacutericos natildeo foram os primeiros do processo
discursivo sobre o qual nos debruccedilamos sendo ldquoobras musicais [] [que] formam um todo
orgacircnico no qual poesia e muacutesica se interpenetram e intercambiam significadosrdquo (NUNtildeEZ
2011 p 239-240 ndash grifos nossos) Do mesmo modo Euriacutepides ainda estaacute longe de ser a
uacuteltima etapa desse processo a poesia eacutepica e traacutegica influencia nosso proacuteprio modo de
escrever permanecendo ainda viva na nossa memoacuteria social E assim como a poesia o heroacutei
eacute ele mesmo um todo orgacircnico (LUKAacuteCS 2000 p 66) no que diz respeito ao seu coacutedigo de
conduta mas particularizado como indiviacuteduo pois um heroacutei nunca eacute igual a outro heroacutei
Desse modo a representaccedilatildeo de Paacuteris natildeo eacute em hipoacutetese alguma a representaccedilatildeo de
um anti-heroacutei Primeiramente porque eacute anacrocircnico denomina-lo desse modo Massaud
Moiseacutes nos mostra em seu Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios que a ideia de anti-heroacutei eacute
intriacutenseca ao romance do seacuteculo XVIII Para ele ldquoo anti-heroacutei natildeo se define como a
personagem que carrega defeitos ou taras ou comete delitos e crimes mas a que possui
debilidade ou indiferenciaccedilatildeo de caraacuteter a ponto de assemelhar-se a toda genterdquo (MOISEacuteS
1999 p 29) Aleacutem disso ldquoo heroacutei eleva e amplifica as accedilotildees que pratica o anti-heroacutei as
minimiza ou rebaixardquo (MOISEacuteS 1999 p 29)
Os heroacuteis de Homero e de Euriacutepides natildeo satildeo comuns a todas as pessoas eles
representam um passado miacutetico anterior agravequeles que ouvem as epopeias e assistem agraves
representaccedilotildees teatrais Satildeo ldquoimagens limitesrdquo (ROMILLY 2013 p 31) que representam o
extremo das accedilotildees e emoccedilotildees visto que satildeo paidecircuticos O heroacutei como vimos eacute um
hemitheoacutes algueacutem acima do homem comum e inferior aos deuses pois eacute mortal como noacutes
como o puacuteblico dos poetas possuindo atitudes semelhantes (visto que satildeo humanos tambeacutem)
mas definitivamente com um estatuto diferenciado dos brotoiacute comuns Paacuteris na trageacutedia
quando personagem ainda exerce esse papel ele natildeo se torna ldquomenos heroacuteirdquo por ser um
99
douacutelos um boukoacutelos visto que essas histoacuterias acerca de Troia pertencem tambeacutem agrave mitologia
grega e a ambientaccedilatildeo em Troia tambeacutem eacute uma estrateacutegia para provocar catarse as viacutetimas da
Guerra de Troia estatildeo sendo sempre comparadas agraves viacutetimas da proacutepria Guerra do Peloponeso
Edith Hall mostra como mesmo esses displacement plots (roteiros de deslocamento)
servem para legitimar a identidade helecircnica definindo suas fronteiras eacutetnicas
Mesmo com a pluralidade eacutetnica da trageacutedia e o seu interesse em heroacuteis e comunidades espalhadas por distacircncias vastas pelo mundo conhecido o foco ateniense o ldquoatenocentrismordquo da trageacutedia eacute manifestado de muitos jeitos [] mesmo peccedilas com nenhum foco oacutebvio em Atenas incluem frequentemente um aition [sic] uma explicaccedilatildeo pelo mito das origens dos costumes atenienses [] os tragedioacutegrafos usavam comunidades outras sem ser Atenas como lugares para autodefiniccedilatildeo eacutetnica o mundo baacuterbaro frequentemente funciona na imaginaccedilatildeo traacutegica como o lar dos viacutecios (por exemplo o despotismo persa a falta de lei dos traacutecios a efeminaccedilatildeo e a covardice orientais) concebidas como correlativos agraves virtudes democraacuteticas atenienses idealizadas liberdade de fala equanimidade diante da lei e coragem masculina (HALL 1997 p 100)
O baacuterbaro eacute a mateacuteria-prima sobre a qual os gregos definem suas fronteiras eacutetnicas eacute
observando-o que eles constroem a si mesmos Claude Mosseacute corrobora esse aspecto ao
afirmar que ldquoessa alteridade do baacuterbaro entretanto natildeo eacute necessariamente negativa eacute apenas
o avesso da civilizaccedilatildeo encarnada pelo gregordquo (MOSSEacute 2004 p 55) Entretanto esse
processo de classificaccedilatildeo natildeo eacute exclusivo ao seacuteculo V aC jaacute em Homero podemos ver um
esforccedilo de definiccedilatildeo dessas fronteiras quando o poeta caracteriza os troianos (sobretudo
Paacuteris) para desenvolver uma caracterizaccedilatildeo que implica numa diferenciaccedilatildeo pautada ao
mesmo tempo na valorizaccedilatildeo do inimigo o qual natildeo pode ser inferior a fim de enaltecer a
vitoacuteria e na marcaccedilatildeo de alteridades em relaccedilatildeo a ele
100
CONCLUSAtildeO
ldquoSe partires um dia rumo a Iacutetaca faz votos de que o caminho seja longo repleto de aventuras repleto de saberrdquo
(Iacutetaca ndash Konstantinos Kavaacutefis)50
Em virtude do apresentado pudemos compreender que a anaacutelise da Iliacuteada da
Odisseia e das trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides vai aleacutem da simples tentativa de
comprovaccedilatildeo de feitos heroicos da existecircncia de uma guerra da existecircncia do proacuteprio aedo e
da correlaccedilatildeo simplista com eventos da ldquorealidade histoacutericardquo Eacute mais profiacutecuo buscar a
compreensatildeo das estruturas poliacuteticas econocircmicas sociais culturais religiosas e institucionais
da eacutepoca em que os poemas foram compostos traccedilando como os gregos conseguiram
construir e consolidar suas fronteiras eacutetnicas de forma dinacircmica
Aleacutem disso a rememoraccedilatildeo dos heroacuteis e de suas faccedilanhas eacute importante para a
configuraccedilatildeo de todo um coacutedigo de conduta helecircnico corroborando a ideia de uma funccedilatildeo
paidecircutica das obras homeacutericas e traacutegicas No tocante agrave historicidade desses heroacuteis ela estaacute
ligada por um lado ao papel que suas personalidades desempenham na vida do puacuteblico 50 Traduccedilatildeo de Joseacute Paulo Paes Disponiacutevel em httpwwworg2combrkavafishtm
101
helecircnico ndash que os rememoram e os cultuam ndash e por outro agrave ligaccedilatildeo inextricaacutevel entre o autor
que compocircs os textos e o seu contexto histoacuterico fazendo com que a trama e os heroacuteis sejam
constituiacutedos com base na proacutepria sociedade na qual eles vivem e conhecem
Lembremo-nos de que a Iliacuteada por ter sido composta posteriormente diz respeito
mais as caracteriacutesticas deste periacuteodo do que do periacuteodo no qual se travou a guerra de Troia a
eacutepoca palaciana No contexto da poacutelis as caracteriacutesticas caras agrave personalidade de Paacuteris natildeo
seratildeo preteridas na paideiacutea Pelo contraacuterio Aristoacuteteles no seacuteculo IV dedica um espaccedilo em
sua Poliacutetica a consideraccedilotildees sobre o ensino da muacutesica e da ginaacutestica a qual objetiva dentre
outras coisas a manter o equiliacutebrio fiacutesico do cidadatildeo
No tocante ao nosso objeto principal Paacuteris concluiacutemos que ele como personagem da
Iliacuteada desempenha um modelo de como agir para os ouvintes da epopeia Isso se daacute porque
ele demonstra atitudes condizentes com a de um heroacutei ou seja o protagonista desses poemas
de exaltaccedilatildeo das faccedilanhas desses seres extraordinaacuterios que viveram numa eacutepoca precedente agrave
eacutepoca dos simples humanos que vivem agrave sombra desse passado glorioso
Devemos ter em mente que Paacuteris mesmo natildeo demonstrando muita destreza na guerra
natildeo deixa de ser um heroacutei ele possui essas caracteriacutesticas intriacutensecas a eles Heitor ao mesmo
tempo que o chama de covarde no Canto III iraacute reconhecer que ele possui coragem no Canto
VI como jaacute vimos em uma citaccedilatildeo anterior Quando Paacuteris comete um ato indecoroso procura
corrigi-lo a fim de reaver a sua honra assim acontece quando ele retorna para combater com
Menelau e retorna agrave guerra no Canto VI Paacuteris tambeacutem tem a sua bela morte seja falecendo
no campo de batalha seja matando
A Iliacuteada como influenciadora do discurso traacutegico mostra um heroacutei humano e
portanto em sua singularidade e em sua relaccedilatildeo com a sociedade na qual ele estaacute inserido
Essa sociedade o reconhece como um aacuteristos um melhor aquele que deve liderar contudo
para isso ele deve demonstrar pelas suas atitudes que eacute digno de seu posto deve zelar para
que sua timḗ sua honra natildeo seja manchada atraveacutes de accedilotildees que ponham em xeque sua aretḗ
sua virtude causando a neacutemesis da sociedade e seu proacuteprio aidṓs
Um heroacutei pode fraquejar tremer sentir medo mas este natildeo deve sobrepujar o iacutempeto
de ficar e lutar Quando ocorre a fuga o retrocesso este deve ser corrigido a fim de que se
restaure a timḗ e de que aquele que fugiu natildeo seja alvo da neacutemesis dos seus iacutesoi Eacute isso o que
acontece com Paacuteris que eacute muito mais do que uma simples ldquocontradiccedilatildeo da epopeiardquo ora ele
se mostra corajoso ora ele se mostra temente pois eacute a representaccedilatildeo de um ser humano Ele
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recua e retorna agrave batalha configurando-se num exemplo de como se agir mas de fato ele eacute
representado de uma maneira diferente e singular pelo poeta
Isso se daacute devido agrave problemaacutetica da alteridade da qual tratamos no capiacutetulo sobre
Homero Paacuteris seraacute representado como um modelo de conduta mas tambeacutem como um
estereoacutetipo do Outro Inuacutemeros heroacuteis aqueus poderiam servir para expressar esse movimento
de fugaretorno mas um heroacutei troiano eacute escolhido Aliaacutes a maioria dos heroacuteis que fogem na
Iliacuteada eacute troiana O caso de Paacuteris se configura num problema de alteridade interna tanto por
ele ser o inimigo na guerra (o troiano) quanto por ser o transgressor de normas inclusive
universais (no caso a xeacutenia ou seja a hospitalidade)
Este modo de caracterizar Paacuteris ao longo do tempo vai cada vez mais sobrepujar-se agrave
sua representaccedilatildeo como um kalograves kagathoacutes helecircnico e gradativamente esse personagem
deixaraacute de ser o theoeidḗs para ser o baacuterbaros sobretudo na trageacutedia Mas essa questatildeo natildeo
diz mais respeito ao nosso trabalho aqui desenvolvido em torno da Iliacuteada um poema
composto cerca de trecircs seacuteculos antes desse gecircnero teatral ser cristalizado culturalmente nas
poacuteleis Em Euriacutepides o heroacutei natildeo perde uma dimensatildeo paidecircutica mas estaacute mais ligado agrave
ideia do erro o heroacutei erra e aprendemos com esses erros Paacuteris natildeo deixa de ser um heroacutei pois
pertence agrave tradiccedilatildeo miacutetica mas se torna na trageacutedia de uma vez por todas o baacuterbaro
Tivemos por objetivo com essa dissertaccedilatildeo analisar a representaccedilatildeo de Paacuteris na eacutepica
homeacuterica e nas trageacutedias de Euriacutepides perscrutando as mudanccedilas sociais e culturais que estatildeo
presentes nos textos literaacuterios Defendemos que a Iliacuteada jaacute traz a ideia de
identidadealteridade helecircnica mostrando um discurso eacutetnico que legitima a centralidade
aqueia em detrimento da troiana e como essa diferenciaccedilatildeo influencia na construccedilatildeo do
baacuterbaro na poesia traacutegica Tambeacutem mostramos como a epopeia e a trageacutedia pertencem a um
mesmo espaccedilo discursivo tornando profiacutecua a nossa anaacutelise e utilizando a Anaacutelise de
Discurso francesa para tal
Acreditamos que essa diferenciaccedilatildeo entre gregos e troianos em Homero natildeo diz
respeito a uma diferenciaccedilatildeo entre o grego e o baacuterbaro ou entre o grego e o estrangeiro mas
entre dois grupos eacutetnicos um que estaacute no Peloponeso e outro que se encontra na Aacutesia Menor
reapropriando o coacutedigo de conduta grego e estabelecendo contatos com culturas natildeo-
helecircnicas Mas historicamente satildeo os troianos gregos
Natildeo podemos afirmar com certeza absoluta Primeiramente porque as datas satildeo
fluidas convenciona-se atraveacutes de estudos arqueoloacutegicos e filoloacutegicos que Homero compotildee
no seacuteculo VIII aC Convenciona-se que a Guerra de Troia aconteceu no seacuteculo XIII aC
103
Aleacutem disso lidamos com um problema caro agrave Histoacuteria Antiga documentaccedilatildeo Ela eacute escassa e
nas escavaccedilotildees poucos materiais escritos foram encontrados Achou-se um selo com
hieroacuteglifos luvitas no siacutetio arqueoloacutegico de Hissarlik (antiga Troia hoje na Turquia) o qual
data provavelmente do segundo milecircnio antes de Cristo entretanto como podemos ter certeza
de que ele foi produzido laacute Sendo um noacute comercial importante vizinha do Helesponto o que
garante que aquele selo natildeo foi parar em Troia atraveacutes de comerciantes
Segundo o hititologista holandecircs Alwin Kloekhorst a hipoacutetese luvita (que se destacou
em 1995) vem sendo bastante questionada e ele defende que eacute mais provaacutevel que a liacutengua
falada em Troia nessa eacutepoca fosse o lecircmnio oriundo da regiatildeo de Lemnos e que deu origem
ao etrusco Ele tambeacutem mostra que Troia na eacutepoca da guerra provavelmente natildeo era grega
Trūiša (uma regiatildeo de Wilǔsa que seria Troia) estava sob domiacutenio hitita embora haja
evidecircncias de embates entre os ahhiyawa (aqueus) e esse povo pelo domiacutenio da regiatildeo na
eacutepoca Contudo a partir do seacuteculo VIII aC (quando Homero compotildee seus poemas e os
gregos entram em processo de ldquocolonizaccedilatildeordquo) provavelmente havia ldquoGreek-speakersrdquo na
regiatildeo onde fora Troia (KLOEKHORST 2013 p 48) Ela era parte das apoikiacuteai (ldquocolocircniasrdquo
gregas)51 O historiador americano Barry Strauss corrobora a ideia de Kloekhorst afirmando
que Troia era uma cidade grega desde 750 aC quando foi povoada por colonos gregos e
assim se manteve durante toda a Antiguidade (STRAUSS 2008 p 28)
Desse modo o mundo das apoikiacuteai seria diretamente influenciado pela cultura e liacutengua
gregas Vlassopoulos coloca que essas ldquocolocircniasrdquo eram loci privilegiados tanto de trocas
culturais entre gregos e outros povos bem como paradoxalmente ajudaram a consolidar um
modelo forte do que eacute ser grego
o processo de criar apoikiacuteai fizeram o modelo de uma comunidade grega se tornar abstrato e canocircnico uma comunidade com um corpo de cidadatildeos divididos entre tribos governado por magistrados conselhos e assembleia equipado com um tipo particular de espaccedilo puacuteblico (agoraacute) e adornado com um tipo particular de templo e edifiacutecio puacuteblico (teatro casa concelhia ginaacutesio) (VLASSOPOULOS 2013 p 277)
Os troianos satildeo um grupo eacutetnico dentro da comunidade helecircnica no discurso de Homero
tendo em Paacuteris a siacutentese de alteridade visto que ele desrespeita coacutedigos helecircnicos Muitas das
caracteriacutesticas desse personagem satildeo reapropriados por Euriacutepides para caracterizar o baacuterbaro
(inclusive ele mesmo que jaacute seraacute denominado baacuterbaros em suas trageacutedias) Dentre esses
51 Kostas Vlassopoulos explica que natildeo eacute apropriado atribuir o conceito de ldquocolocircniardquo aos movimentos expansionistas gregos do seacuteculo VIII pois a ldquocolonizaccedilatildeordquo grega eacute completamente diferente da colonizaccedilatildeo moderna (2013 p 103)
104
pontos de diferenciaccedilatildeo estatildeo a predominacircncia do arco como arma de guerra a capacidade de
se submeter o exeacutercito inimigo (como pudemos ver com a anaacutelise dos siacutemiles de animais mas
sem deixar de valorizar esse inimigo para a vitoacuteria ser gloriosa) o excesso de ouro a
expressatildeo verbo-corporal (discurso defensivo e dissuasivo o esconder-se o jactar-se) as
vestimentas o excesso de medo a lida com as artes musicais a luxuacuteria a efeminaccedilatildeo (do
aliado caacuterio) a suacuteplica pela vida e a procrastinaccedilatildeo para entrar em batalha
Euriacutepides por sua vez explora ao maacuteximo esses elementos e os troianos jaacute se encontram
completamente frigianizados ligados agrave Aacutesia e sendo mostrado como baacuterbaros Os gregos que
agem como baacuterbaros satildeo comparados aos troianos bem como eles estatildeo sempre sendo
designados desse modo Assim tambeacutem a proacutepria fronteira do que eacute baacuterbaro e do que eacute grego
encontra-se cada vez mais turva haacute uma crise nessa definiccedilatildeo e o grego em Euriacutepides pode
barbarizar-se facilmente visto que estaacute em meio a uma guerra
A produccedilatildeo historiograacutefica acerca da etnicidade helecircnica tem sido cada vez mais
comum e esperamos que nossa pesquisa contribua para essa discussatildeo Esperamos ademais
que ela contribua para as anaacutelises acerca dos poemas homeacutericos e das trageacutedias de Euriacutepides
que tecircm sido cada vez menos comuns Com essa dissertaccedilatildeo objetivamos tambeacutem fomentar
o interesse pelo tema e novas pesquisas acerca dessa temaacutetica Cremos ser muito importante o
estudo da literatura grega porque ela foi o norte da sociedade helecircnica e reverbera ateacute os dias
de hoje seja em produccedilotildees fiacutelmicas ou na literatura
A funcionalidade paidecircutica dos textos que estudamos contribui para tal movimento
bem como a proacutepria importacircncia desse legado cultural oriundo dos gregos o qual tambeacutem se
faz sentir ateacute hoje no modo de pensar de construir de escrever Pudemos ver com a anaacutelise
de Paacuteris como o autor da Iliacuteada trabalha com a ideia do heroacutei e como atraveacutes de sua
representaccedilatildeo ele define as fronteiras eacutetnicas que perpassam essa paideiacutea a qual estaacute presente
tambeacutem nas trageacutedias de Euriacutepides que corroboram e reapropriam esses elementos de
diferenciaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo dos personagens sobretudo de Paacuteris o baacuterbaro
Outrora a Greacutecia possuiacutea uma grande extensatildeo territorial e sua importacircncia poliacutetica
econocircmica e cultural era grosso modo e com fins assimilativos tatildeo grande quanto a da
Inglaterra a partir da Primeira Revoluccedilatildeo Industrial e a dos Estados Unidos depois da Segunda
Guerra Mundial Hoje o pequeno paiacutes europeu que aparece nos jornais diariamente devido a
um periacuteodo de crise e necessidade ainda exerce uma influecircncia muito grande no que diz
respeito a esse legado que permanece de peacute A cultura helecircnica e o estudo acerca desta ainda
natildeo estatildeo em vistas de entrar em crise
105
Anexo | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO
LETRA GREGA TRANSLITERACcedilAtildeO
αααα a
ᾳᾳᾳᾳ a
ββββ b
γγγγ g
δδδδ d
εεεε e
ζζζζ z
ηηηη ē
ῆῆῆῆ ecirc
ῃῃῃῃ ē
θθθθ th
106
ιιιι i
κκκκ k
λλλλ l
micromicromicromicro m
νννν n
ξξξξ x
οοοο o
ππππ p
ρρρρ r
ῥῥῥῥ rh
σ ςσ ςσ ςσ ς s
ττττ t
υυυυ y (entre consoantes) u (em ditongos)
φφφφ ph
χχχχ kh
ψψψψ ps
ωωωω ō
ῶῶῶῶ ocirc
ῳῳῳῳ ō
Observaccedilatildeo sobre os espiacuteritos o grego antigo possui uma marcaccedilatildeo especiacutefica denominada espiacuterito Ele vem sobre todas as vogais o rocirc (ρ) inicial e as semivogais dos ditongos que iniciarem a palavra O espiacuterito pode ser fraco ou forte quando ele eacute fraco (rsquo) a vogal se pronuncia normalmente e quando ele eacute forte (lsquo) a vogal eacute pronunciada de modo aspirado como se estivesse sendo acompanhada por um erre (r) O rocirc do iniacutecio das palavras sempre teraacute espiacuterito forte visto que ele jaacute eacute aspirado conforme estaacute na tabela Quando transliteradas as palavras com espiacuterito forte possuem um agaacute (h) na frente Assim por exemplo a palavra
107
οὐρανός (ceacuteu) eacute transliterada como ouranoacutes ἁmicroαρτία (falha) como hamartiacutea ῥῶ (a letra grega ρ) como rhocirc com o agaacute entre o erre e a proacutexima letra
Observaccedilatildeo sobre os conjuntos γγ γκ e γχ quando aparecem essas consoantes juntas o primeiro gama eacute transliterado como ene (n) pois ele se nasaliza Assim por exemplo ἀγγελος (mensageiro) eacute transliterada como aacutengelos ἀναγκαία (necessidade) como anankaiacutea ἐγχανδής (amplo) como enkhandḗs
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3
4
Agradecimentos
Repito em minha dissertaccedilatildeo as mesmas palavras que coloquei em minha monografia
se eu agradecesse aqui a todas as pessoas que me ajudaram a chegar onde estou hoje soacute os
agradecimentos teriam o tamanho do Le grand Bailly Assim vocecirc que sabe que participou
da minha vida e natildeo estaacute aqui natildeo se sinta excluiacutedo eu tenho a consciecircncia de que vocecirc
participou dela
Devo essa dissertaccedilatildeo primeiramente ao meu orientador Faacutebio de Souza Lessa que
acreditou em mim desde o 3ordm periacuteodo da graduaccedilatildeo quando me perguntou se eu queria ser
bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica sem nem saber o que eu queria estudar
Agradeccedilo tambeacutem aos leitores do meu projeto de pesquisa na qualificaccedilatildeo e da minha
dissertaccedilatildeo a Prof Drordf Regina Maria da Cunha Bustamante e o Prof Dr Alexandre Santos
de Moraes que deram contribuiccedilotildees preciosiacutessimas para o desfecho dela
Tambeacutem foram importantes aqueles que leram meu projeto no momento em que entrei
no Mestrado e ajudaram-me a repensar alguns pontos fulcrais dele Leila Rodrigues da Silva
Wagner Pinheiro Pereira Silvio de Almeida Carvalho Filho Andreacute Leonardo Chevitarese e
Vantuil Pereira Ao professor Joseacute DrsquoAssunccedilatildeo Barros que me ajudou a amadurecer minhas
perspectivas teoacuterico-metodoloacutegicas e a ver outras possibilidades dentro do meu proacuteprio
trabalho
Deixo meu agradecimento tambeacutem aos amigos e amigas colegas de academia ou natildeo
que sempre estiveram comigo nessa minha jornada histoacuterica (literalmente) e que aturaram o
Paacuteris ateacute o fim Bruna Moraes da Silva Danielle Vasconcellos Jeacutessica Gomes Jessyca
Rezende Beatriz Vasconcellos Joselita de Queiroz Nascimento Michelle Moreira Gonccedilalves
de Oliveira e Edson Moreira Guimaratildees Neto
Agraves professoras de Grego (Aacutetico e Moderno) Tatiana Maria Gandelman de Freitas e
Luciacutelia Brandatildeo Se eu consegui ler um artigo em grego se eu consegui ler alguma coisa da
Iliacuteada na liacutengua original ou se consegui escrever esta pequenina frase foi graccedilas a elas Agrave
professora Carole Anaiumls que com sua paciecircncia infinita conseguiu fazer com que em dois
anos eu conseguisse ter domiacutenio suficiente do francecircs para conseguir ler minha bibliografia
Aos meus professores de Graduaccedilatildeo e Ensino Fundamental e Meacutedio soacute sou o que sou
hoje devido agrave educaccedilatildeo que tive nos coleacutegios e na Universidade Agradeccedilo sobretudo aos
meus professores de Histoacuteria e especialmente agrave Queila nunca vou esquecer do primeiro dia
5
de aula de Histoacuteria da antiga 5ordf seacuterie quando ela pediu que escrevecircssemos na primeira paacutegina
do caderno ldquoHISTOacuteRIA Eacute VIDArdquo
Agrave todos os meus familiares que estiveram colados comigo nessa empreitada sobretudo
minha matildee (Eliane) irmatilde (Roberta) avoacute (Carmelita) e prima (Sylvia) por sempre me
incentivarem a continuar nessa carreira
E por uacuteltimo mas natildeo menos importante aos ldquoHomerosrdquo que compuseram a Iliacuteada e
a Odisseia e a Euriacutepides sem eles que aiacute mesmo natildeo haveria dissertaccedilatildeo alguma
6
Resumo
Pretendemos analisar de forma comparada a representaccedilatildeo de Paacuteris heroacutei cujo ato e
aacutetē (perdiccedilatildeo) causaram a Guerra de Troia (c 1250-1240 aC) na Iliacuteada de Homero e nas
trageacutedias Alexandre (fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia
em Aacuteulis e Orestes de Euriacutepides de modo a compreender quais satildeo e como se
desenvolveram as fronteiras eacutetnicas helecircnicas Utilizaremos para a anaacutelise desse processo
histoacuterico-discursivo a metodologia comparada de Marcel Detienne expressa em sua obra
Comparar o Incomparaacutevel e para a anaacutelise do nosso corpus documental a Anaacutelise de
Discurso Francesa presente nas obras teoacutericas de Eni P Orlandi Dominique Maingueneau e
Pierre Charaudeau
Palavras-chave Histoacuteria Comparada Anaacutelise de Discurso Homero Euriacutepides etnicidade
7
Abstract
We aim to analyze on a comparative basis the representation of Paris hero whose act
and aacutetē (perdition) caused the Trojan War (c 1250-1240 bC) in Homerrsquos Iliad and in
Euripidesrsquo tragedies Alexander (fragmentary) Andromache Trojan Women Hecuba
Helen Iphigenia in Aulis and Orestes in order to understand which are the hellenic ethnic
boundaries and how it has been developed We will use to analyze this historic-discursive
process the comparitive methodology of Marcel Detienne expressed in his Comparing the
incomparable and to analyze our corpus the French Discourse Analysis present in Eni P
Orlandi Dominique Maingueneau and Pierre Charaudeaursquos theoretical works
Keywords Comparative History Dicourse Analysis Homer Euripides ethnicity
8
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 09
CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE COMPOSICcedilAtildeO -------------p 24
CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES ----------------------------------------------------p 50
CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI ----------------------------------------------------------------------p 76
CONCLUSAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 100
ANEXO | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO --------------------------------------------------------p 105
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS ------------------------------------------------------------------p 107
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL --------------------------------------------------------------p 107
DICIONAacuteRIOS E GRAMAacuteTICAS ------------------------------------------------------------p 108
BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------p 109
9
INTRODUCcedilAtildeO | TEMA PROBLEMAS METODOLOGIAS
ldquoO conhecimento revisitado das tradiccedilotildees da histoacuteria e literatura da Guineacute-Bissau poderaacute funcionar dessa forma como um
Outro que nos complementa ajudando-nos a revisitar ateacute mesmo a imagem que fazemos de noacutes proacutepriosrdquo
(SECCO 2007 p 16-17)
Vivemos em um mundo plural e por isso nos embatemos frequentemente com Outros
que natildeo necessariamente habitam um paiacutes distante o diferente mora ao nosso lado convive
conosco porque dentro de uma mesma sociedade eacute possiacutevel estabelecer uma relaccedilatildeo de
alteridade A cada dia que esbarramos com algueacutem que partilha de costumes e ideias
diferentes das nossas nos modificamos tambeacutem eacute como na metaacutefora de bolas de bilhar de
Norbert Elias (1994 p 29) pois quando nos relacionamos com as pessoas conversamos com
elas nunca permanecemos iguais fazendo com que sempre estejamos modificando nossos
limites de aceitaccedilatildeorejeiccedilatildeo nossas fronteiras de convivecircncia
Natildeo era diferente na Antiguidade e em nossa epiacutegrafe poderiacuteamos muito bem
substituir ldquoGuineacute-Bissaurdquo por ldquoGreacutecia Antigardquo afinal estamos lidando com pessoas Eacute o
homem que constroacutei suas proacuteprias leis bem como eacute ele quem faz a histoacuteria vivendo-a Agrave
medida que o homem vive ele deixa indiacutecios de sua vivecircncia Satildeo dessas ldquopistasrdquo desses
ldquorastrosrdquo que noacutes historiadores podemos estudar as sociedades do passado No presente
estudo se debruccedila sobre um indiacutecio que ateacute pouco tempo era desconsiderado pela Histoacuteria
como documentaccedilatildeo a literatura
Objetivamos natildeo somente analisar os textos que compotildeem nosso corpus mas coloca-
los em comparaccedilatildeo Cremos que a Iliacuteada de Homero (VIII aC) e as trageacutedias Alexandre
(fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes
(seacuteculo V aC) natildeo satildeo apenas produto de uma sociedade mas que as epopeias influenciaram
na construccedilatildeo da sociedade na qual eram encenadas as trageacutedias bem como as trageacutedias e as
proacuteprias epopeias influenciaram na construccedilatildeo de suas proacuteprias sociedades
Para estabelecer essa comparaccedilatildeo escolhemos como norte o antropoacutelogo Marcel
Detienne que em seu livro Comparar o incomparaacutevel lanccedilou uma seacuterie de conceitos-chave
e procedimentos para trabalhar com as comparaccedilotildees temporais eou espaciais A comparaccedilatildeo
eacute algo intriacutenseco ao ser humano Contudo fazer uma comparaccedilatildeo e fazer Histoacuteria Comparada
10
eacute bem diferente eacute a partir dos anos 1920 com as obras de Marc Bloch que a Histoacuteria
Comparada vai tomando forma O objetivo dela para Bloch eacute ressaltar diferenccedilas e
semelhanccedilas em processos histoacutericos distintos tomando como base preferencialmente duas
sociedades contiacuteguas (BLOCH 1998 p 122-123) No Brasil eacute em fins da deacutecada de 1970
que esse meacutetodo comparativo eacute evidenciado Ciro Flamarion Cardoso e Heacutector Peacuterez Brignoli
chamam a atenccedilatildeo para a sua importacircncia nos estudos historiograacuteficos ressaltando ainda que
natildeo se trata de uma mera catalogaccedilatildeo de diferenccedilas e semelhanccedilas mas de busca de
peculiaridades (CARDOSO PEacuteREZ BRIGNOLI 1983 p 418)
Entretanto no iniacutecio do seacuteculo a Histoacuteria Comparada sofre uma crise com o crescente
destaque dado agrave Histoacuteria Cruzada o historiador Juumlrgen Kocka coloca que ambas devem se
relacionar que meacutetodo comparativo deve ser associado agrave histoire croisseacutee (KOCKA 2003 p
44) mas Michael Werner e Beacuteneacutedicte Zimmerman jaacute veem a Histoacuteria Comparada como algo
problemaacutetico em seu artigo Beyond comparison histoire croiseacutee and the chalenge of
reflexivity eles definem um meacutetodo de Histoacuteria Cruzada e mostram razotildees pelas quais a
Histoacuteria Comparada natildeo seria uma metodologia tatildeo adequada pois seu uso eacute binaacuterio
(semelhanccedilasdiferenccedilas) (WERNER ZIMMERMANN 2006 p 33)
Eacute no bojo dessas discussotildees que surge a proposta de Marcel Detienne ele critica a
ideia de que soacute se pode comparar sociedades contiacuteguas ressaltando a ideia de que se pode
ldquocomparar o incomparaacutevelrdquo pois as sociedades espalhadas pelo mundo embora plurais
compartilham algumas instituiccedilotildees (DETIENNE 2004 p 10 e 47) o casamento a fundaccedilatildeo
a morte etc Embora Detienne seja aacutecido em suas criacuteticas visto que Marc Bloch natildeo excluiacutea a
possibilidade de comparar sociedades distantes no tempo e no espaccedilo (BLOCH 1998 p
121) eacute ele que melhor define um meacutetodo comparativo fechado e por isso escolhemo-lo como
norte teoacuterico
Assim partindo de uma categoria1 (etnicidade) definimos como comparaacutevel2 a
representaccedilatildeo de Paacuteris tanto na epopeia homeacuterica quanto nas trageacutedias de Euriacutepides Essas
representaccedilotildees seratildeo devidamente analisadas em sua intrinsecidade atraveacutes da Anaacutelise de
Discursos cabendo a noacutes pesquisadores de Histoacuteria Comparada colocar essas experiecircncias
variadas lado a lado para contrastaacute-las eou aproximaacute-las Temos em mente que o meacutetodo eacute
um caminho e o objeto o qual pretendemos construir eacute que orienta a escolha dele
1 A categoria eacute um ldquotraccedilo significativo uma atitude mentalrdquo que faz parte de ldquoum conjunto uma configuraccedilatildeordquo (DETIENNE 2004 p 57) 2 Os comparaacuteveis satildeo ldquomecanismos de pensamento observaacuteveis nas articulaccedilotildees entre os elementos arranjados conforme a entrada lsquofigura inaugural que vem de forarsquo lsquonatildeo-iniacuteciorsquo ou outras [] satildeo orientaccedilotildees essas relaccedilotildees em cadeia essas escolhasrdquo (DETIENNE 2004 p 57-58)
11
(ANDRADE 1998 p 38) e visto que queremos estudar um processo ideoloacutegico de definiccedilatildeo
de fronteiras eacutetnicas que tem como recorte temporalidades distintas a metodologia
comparativa de Detienne encaixou-se adequadamente
Para ler nosso corpus documental adotamos como metodologia de leitura analiacutetica a
proposta por Eni Puccinelli Orlandi em seu livro Anaacutelise de Discurso Princiacutepios amp
Procedimentos Identificamo-nos com a Anaacutelise de Discurso francesa3 por dois motivos pela
natureza do nosso corpus e pela proposta soacutecio-histoacuterica desse meacutetodo Nossa documentaccedilatildeo
eacute formada por textos cada um deles eacute a unidade analiacutetica do discurso entendido como um
processo em curso (ORLANDI 2012 p 39) Assim tomamos o discurso de Homero e o
discurso de Euriacutepides como partes de um processo discursivo mais amplo
A Anaacutelise de Discurso trata de um sistema que envolve natildeo apenas o discurso em si
mas a relaccedilatildeo entre liacutengua ideologia e histoacuteria tendo em vista a produccedilatildeo de sentidos O
processo discursivo implica no perpasso da ideologia4 pelo discurso eacute ela que produz sentido
pois ldquose materializa na linguagemrdquo (ORLANDI 2012 p 96) A linguagem por sua vez ldquoeacute
linguagem porque faz sentido E [] soacute faz sentido porque se inscreve na histoacuteriardquo
(ORLANDI 2012 p 25 ndash grifos nossos) A histoacuteria eacute o sentido visto que o sujeito do
discurso ldquose faz (se significa) napela histoacuteriardquo (ORLANDI 2012 p 95)
A fim de chegarmos agrave compreensatildeo desse processo discursivo eacute necessaacuterio cumprir trecircs
etapas a partir da dessuperficializaccedilatildeo5 da superfiacutecie linguiacutestica (corpus documental)
selecionado (a) obtemos o objeto discursivo (b) que se transforma em processo discursivo
(c) ao chegarmos na formaccedilatildeo ideoloacutegica daquele objeto
(a) (b) (c)
3 A AD francesa eacute diferente da AD anglo-saxatilde enquanto aquela eacute oriunda da linguiacutestica e privilegia discursos escritos esta vem da antropologia e trabalha mais com discursos orais Aleacutem disso a francesa destaca os mais propoacutesitos textuais e a inglesa os comunicacionais (MAINGUENEAU 1997 p 16) 4 Defendemos que a ideologia em Homero eacute a proacutepria paideiacutea ldquoPor ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacuteticardquo (LESSA 2010 p 22) 5 O processo de dessuperficializaccedilatildeo consiste na ldquoanaacutelise do que chamamos materialidade linguiacutestica o como se diz o quem diz em que circunstacircncias etcrdquo (ORLANDI 2012 p 65)
dessuperficializaccedilatildeo
CORPUS
DOCUMENTAL
OBJETO
DISCURSIVO
PROCESSO
DISCURSIVO ideologia
12
A Guerra de Troia (1250-1240 aC) eacute um dos eventos da Antiguidade Grega mais
relembrados por noacutes hoje em dia Enquanto para noacutes essas histoacuterias satildeo mitos natildeo existiram
de verdade para os gregos ela existiram de fato O passado que se reapropriava era um
passado veriacutedico de um tempo preteacuterito e a sua funccedilatildeo era extremamente didaacutetica com os
heroacuteis de outrora se aprendia a ser um verdadeiro homem Homero ou Euriacutepides ao
comporem seus textos natildeo questionavam a materialidade histoacuterica desses personagens e
mesmo Tuciacutedides um historiador utilizava a memoacuteria desses heroacuteis do passado em sua
Histoacuteria da Guerra do Peloponeso como se eles tivessem existido
Paacuteris Helena Heitor Menelau podem natildeo ter sido de ldquocarne e ossordquo mas
permanecem no nosso imaginaacuterio muitos filmes seacuteries de televisatildeo e mesmo livros de ficccedilatildeo
satildeo escritos tendo os mitos gregos como pano de fundo Essa reapropriaccedilatildeo do material miacutetico
natildeo eacute contudo exclusividade do mundo contemporacircneo tragedioacutegrafos e poetas dos periacuteodos
arcaico claacutessico e heleniacutestico tambeacutem manejavam esses mitos para compor suas proacuteprias
histoacuterias Do mesmo modo que podiam modificar as histoacuterias modificavam tambeacutem o caraacuteter
dos personagens
A imagem de Paacuteris como um completo covarde estaacute arraigada em nosso imaginaacuterio
Se tivermos em mente o desempenho de Paacuteris no Canto III da Iliacuteada essa ideia parece ser
bem apropriada (HOMERO Iliacuteada III vv 21-37) Tal episoacutedio nos chamou a atenccedilatildeo o
heroacutei foge (algo que ele natildeo deveria fazer pois eacute um heroacutei) Contudo Paacuteris decide retornar
para a luta (III vv 68-70) Em Euriacutepides natildeo temos cenas assim Paacuteris eacute apenas mencionado
No nosso corpus documental apenas em Aleacutexandros ele eacute de fato personagem (com falas
etc)
Assim como pretendemos analisar a sua representaccedilatildeo Atraveacutes da anaacutelise dos
adjetivosepiacutetetos que adornam sua caracterizaccedilatildeo e dos comentaacuterios dos outros personagens
acerca dele Catalogaremos esses elementos e inserindo-os no acircmbito do discurso iremos
delinear o personagem e qual o seu papel dentro da narrativa A helenista Irene de Jong
mostra que os personagens off-stage (que estatildeo fora do palco) tambeacutem desempenham papeacuteis
importantes denotando a ideia de que ldquolsquocontarrsquo natildeo precisa ser menos impressionante do que
lsquomostrarrsquordquo (DE JONG 2011 p 389)
A Iliacuteada e as trageacutedias euripidianas mostram momentos distintos da Greacutecia Antiga o
Periacuteodo Arcaico (VIII-VII aC) no qual a poesia grega floresceu com Homero e Hesiacuteodo
dois aedos que lanccedilaram as bases temaacuteticas para o gecircnero traacutegico o qual nasceu e entrou em
crise no Periacuteodo Claacutessico (V aC) e foi imortalizado por trecircs grandes tragedioacutegrafos Eacutesquilo
13
Soacutefocles e Euriacutepides Ao recortarmos nossa pesquisa neste uacuteltimo traacutegico referimo-nos a
Atenas visto que seu cenaacuterio de composiccedilatildeo era nesta poacutelis
Em relaccedilatildeo a Euriacutepides natildeo temos problemas de dataccedilatildeo sabemos que ele eacute de fato
do seacuteculo V aC Entretanto com relaccedilatildeo a Homero esbarramos com esse problema Natildeo
sabemos quando ele foi composto ou quando ele foi colocado na escrita mas podemos chegar
a um consenso A maioria dos helenistas coloca a eacutepica homeacuterica no seacuteculo VIII aC poreacutem
haacute discordacircncias O historiador Gustavo Oliveira diferencia quatro abordagens acerca desses
embates acadecircmicos a) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram compostosrdquo
b) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram fixadosrdquo c) ldquoos poemas dizem
respeito ao periacuteodo que tentaram retratarrdquo d) ldquoos poemas dizem respeito ao passado recente
alcanccedilado na tentativa de atingir um passado ainda mais distanterdquo (OLIVEIRA 2012)6
Os defensores de (a) creem que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o reflexo da sociedade do
periacuteodo em que eles foram compostos e o historiador vecirc nisso um problema pois eacute necessaacuterio
fixar essa marca para se ter certeza de qual sociedade se analisa e ainda natildeo temos
comprovaccedilatildeo exata do periacuteodo em que a eacutepica homeacuterica foi composta Geralmente os
defensores dessa ideia colocam Homero no seacuteculo VIII aC
Recentemente ateacute mesmo a geneacutetica se debruccedilou sobre esse tema esses pesquisadores
acreditam que a liacutengua eacute como um DNA e as palavras genes Esses ldquogenesrdquo vatildeo passando de
uma liacutengua para outra criando raiacutezes etimoloacutegicas semelhantes como acontece na palavra
aacutegua (do proto-germacircnico watōr derivaram-se wato ndash goacutetico ndash water ndash inglecircs ndash wasser ndash
alematildeo ndash vatten ndash sueco ndash etc) (ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p
417) Eles isolam essas palavras em comum entre o hitita o grego moderno (essas duas as
quais se conhece a eacutepoca em que se desenvolveram) e o grego homeacuterico e atraveacutes de uma
frequecircncia de cadeia de Markov7 chegam agrave conclusatildeo que a antiguidade do grego da Iliacuteada eacute
de cerca de 2720 anos ou seja que seria mais ou menos de 707 aC Com a margem que eles
potildeem nesse meacutetodo os textos homeacutericos satildeo datados de entre 760 a 710 aC
O objetivo desses pesquisadores eacute mostrar que a ldquolinguagem pode ser usada como os
genes para ajudar na investigaccedilatildeo das questotildees histoacutericas arqueoloacutegicas e antropoloacutegicasrdquo
(ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p 419) e eles afirmam que como 6 Para conhecer quais helenistas partilham de quais opiniotildees consultar o artigo de Gustavo Oliveira intitulado Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas homeacutericos (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 7 Essa cadeia funciona do seguinte modo temos um objeto x do qual natildeo conhecemos nada mas tambeacutem temos dois objetos y e z que se relacionam com esse x e do qual conhecemos algo em comum Assim atraveacutes de uma foacutermula fixa conseguimos chegar ao resultado do nosso x Aqui no caso o x seria o grego homeacuterico o y e o z o hitita e o grego moderno
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esses textos satildeo oriundos de uma tradiccedilatildeo oral fica difiacutecil de dizer se essa data diz respeito a
quando eles foram produzidos ou cristalizados na escrita A importacircncia desse estudo eacute
tambeacutem mostrar como esse eacute um problema que natildeo intriga somente a noacutes cientistas humanos
mas aos cientistas das aacutereas de Exatas e Bioloacutegicas tambeacutem aumentando o leque de diaacutelogo
transdisciplinar Desse modo cremos que sua menccedilatildeo eacute essencial para chamar a atenccedilatildeo para
outras perspectivas de trabalho
Os defensores de (b) creem que os poemas dizem respeito agrave sociedade que os fixou na
escrita fazendo com que a dataccedilatildeo fique mais imprecisa ainda Natildeo haacute como chegar num
consenso como chegamos em (a) acerca de qual data seria mais apropriada Jaacute os que
defendem (c) acreditam que os poemas dizem respeito ao Periacuteodo Palaciano (XVII-1100
aC) pois fazem referecircncia a esse passado quando teria se desenrolado a Guerra de Troia
Essa proposta natildeo eacute tatildeo bem aceita embora alguns estudiosos admitam que haacute muacuteltiplas
temporalidades em Homero (OLIVEIRA 2012 p 133)
Os pesquisadores que adotam (d) como proposta de dataccedilatildeo acreditam que os eacutepicos
referem-se ao periacuteodo da desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) Um dos principais
defensores dessa ideia eacute o historiador Moses Finley ele afirma que ldquo[O mundo de Ulisses]
Era muito mais lsquosimplesrsquo na sua organizaccedilatildeo social e poliacutetica era iletrada [sic] e a sua
arquitetura natildeo era verdadeiramente monumental quer se destinasse aos vivos quer aos
mortosrdquo (FINLEY 1982 p 45) Eacute juntamente com (a) uma das principais perspectivas
Claude Mosseacute a inclui no seu verbete sobre Homero no Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega
(2004 p 171-172) mas admite que mesmo assim a dataccedilatildeo permanece um enigma para noacutes
Gustavo Oliveira afirma que ldquoo maior problema com essa tendecircncia de associar os poemas
homeacutericos com o periacuteodo da Idade das Trevas estaacute justamente na falta de documentaccedilatildeo que
comprove ou ao menos sugira sua probabilidaderdquo (OLIVEIRA 2012 p 135)
Do mesmo modo o historiador Alexandre Santos de Moraes aborda essa discussatildeo em
sua tese de doutorado afirmando ser o periacuteodo entre os seacuteculos X a IX aC o ideal para se
colocar o que a Iliacuteada e a Odisseia mostram a sociedade homeacuterica seria a sociedade da eacutepoca
de desestruturaccedilatildeo palaciana O autor revisita as teses de Anthony Snodgrass e Oswyn Murray
e toma Ian Morris como principal representante da dataccedilatildeo de Homero no seacuteculo VIII aC
desconstruindo muitos de seus argumentos A eacutepica homeacuterica natildeo deve ser considerada
oriunda de um periacuteodo no qual surge a escrita pois pertence agrave tradiccedilatildeo oral bem como natildeo
podemos atribuir a Homero a criaccedilatildeo de um sistema poliacuteade muitos autores afirmam que
podemos encontrar sinais da poacutelis em Homero
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Essa uacuteltima ideia eacute problemaacutetica a eacutepica jaacute traz o termo poacutelis mas ele natildeo diz respeito
agrave organizaccedilatildeo poliacutetica social econocircmica e administrativa que encontramos no Periacuteodo
Claacutessico O centro do poder em Homero eacute ainda o palaacutecio embora possamos encontrar
estruturas que estaratildeo presentes na poacutelis como a assembleia Nesses poemas haacute uma
miscelacircnea temporal muito grande natildeo podendo noacutes delimitarmos um uacutenico periacuteodo sem
sermos arbitraacuterios O proacuteprio Finley afirma que ldquoeacute com alguma liberdade que o historiador
fixa nos seacuteculos X e IX aC o mundo de Ulissesrdquo (FINLEY 1982 p 46)
Devido a essa polecircmica eacute muito difiacutecil para o historiador tomar uma posiccedilatildeo acerca da
data da composiccedilatildeo das epopeias Escolhemos o seacuteculo VIII aC agrave medida em que
defendemos que esses poemas dizem respeito jaacute a um movimento de conquista de apoikiacuteai
como defende o historiador Irad Malkin Mas eacute fato que a ancoragem histoacuterico-temporal
desses poemas pode retroceder mais no tempo visto que ele pertence a uma tradiccedilatildeo oral O
que vai mais nos interessar em nossa pesquisa eacute que a epopeia pertence a um tempo anterior
agraves trageacutedias
Sendo periacuteodos e gecircneros distintos cada um tende a representar Paacuteris de uma maneira
Nosso problema diz respeito a um processo que comeccedila com as epopeias de Homero e
continua a se desenvolver em outros gecircneros literaacuterios trata-se de um processo de elaboraccedilatildeo
de um coacutedigo de conduta social atraveacutes da praacutetica da paideiacutea8 o qual iraacute definir tambeacutem as
bases do que eacute grego e do que natildeo eacute Desde Homero haacute um discurso de alteridade Assim
indagamo-nos o que eacute grego9 O que natildeo eacute Era mais faacutecil para os gregos responderem agrave
uacuteltima pergunta definia-se o natildeo-grego para se definir o grego
Ao longo de toda a Odisseia o heroacutei Odisseu toma contato com Outros todavia eacute no
episoacutedio dos ciclopes em que se teraacute o contato com o grande representante da alteridade
helecircnica o qual seraacute recuperado por exemplo no drama satiacuterico Os Ciclopes de Euriacutepides
Odisseu os descreve assim ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo
cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεmicroίστων ἱκόmicroεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι
πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO
Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)
O que importa nessas sequecircncias natildeo eacute a caracterizaccedilatildeo dos ciclopes mas a definiccedilatildeo
daquilo que definitivamente natildeo eacute helecircnico Pela descriccedilatildeo de Odisseu podemos caracterizar 8 Literalmente paideiacutea significa ldquocriaccedilatildeo de meninosrdquo Ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas Para melhor definiccedilatildeo ver o capiacutetulo 1 de nossa dissertaccedilatildeo (Entre Homero e Euriacutepides dois estilos de composiccedilatildeo) 9 Vale ressaltar que ldquogregordquo aqui eacute uma conveniecircncia Haacute um intenso debate em torno do termo ldquohelenordquo ele eacute usado em Homero para designar determinado povo natildeo todos os povos gregos como seraacute no Periacuteodo Claacutessico
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os gregos eles vivem sob um coacutedigo de leis sua principal fonte de subsistecircncia eacute a
agricultura eles vivem em comunidade cultuam os deuses o patildeo eacute o seu principal alimento e
possuem caracteriacutesticas humanas sendo inclusive belos10
Por isso preferimos utilizar o conceito de alteridade tal qual Marc Augeacute propotildee Para ele
a identidade eacute produzida pelo reconhecimento de alteridades colocando em cena um Outro
(AUGEacute 1998 p 19 e 20) que pode ser a) o Outro exoacutetico que eacute definido a partir de um noacutes
homogecircneo b) o Outro eacutetnico homogecircneo ndash como eacute o caso dos gregos em relaccedilatildeo com os
baacuterbaros c) o Outro social (a mulher a crianccedila o transgressor) e o Outro iacutentimo pois temos
vaacuterias identidades (AUGEacute 2008 p 22-3)
Segundo esse antropoacutelogo ldquonatildeo existe afirmaccedilatildeo identitaacuteria sem redefiniccedilatildeo das relaccedilotildees
de alteridade como natildeo haacute cultura viva sem criaccedilatildeo culturalrdquo (AUGEacute 1998 p 28)
Identidade e alteridade natildeo se opotildeem natildeo se excluem formam um par complementando-se
visto que satildeo ldquocategorias [] que a constituem [a sociedade] e definemrdquo (AUGEacute 1998 p
10) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no
contato entre os colonizadores e os nativos
O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica o contato com
outras culturas eacute imbuiacutedo de choques Contudo Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de outro
retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas
em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para
definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) E se pararmos para pensar o conectivo
adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse
vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 p 63-4) o ldquooutrordquo assemelha-se ao
ldquomasrdquo ao adverso
Assim como o conceito de alteridade o de etnicidade tem um apelo marcadamente
antropoloacutegico Escolhemos trabalhar com o modo como Fredrik Barth entende a etnicidade e
mais ainda o que eacute uma fronteira eacutetnica e um grupo eacutetnico conceitos-chave para
entendermos sua abordagem Embora seja um texto claacutessico Barth conseguiu abarcar o que
compreendemos sobre etnicidade ou seja um discurso criado por um grupo para legitimar
seu lugar social sendo que esse discurso natildeo vem do nada mas sim da relaccedilatildeo com outros
grupos
10 O termo utilizado pelos helenos para designar o belo eacute kaloacutes que tem tanto uma conotaccedilatildeo de beleza externa quanto interna (virtude) podendo inclusive dependendo do contexto ser traduzido como ldquobomrdquo bem como o seu antocircnimo kakoacutes pode ser traduzido por ldquofeiordquo ou ldquomaurdquo
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O termo etnia vem de um outro eacutethnos que eacute ldquotoda classe de seres de origem ou de
condiccedilatildeo comumrdquo (BAILLY 2000 p 581) Ele pode designar tanto um bando de animais
(eacutethnea ndash nominativo eacutepico jocircnico plural ndash HOMERO Iliacuteada II 459 para gansos II 469
para moscas Odisseia XIV v 73 para porcos) quanto um conjunto de pessoas O termo
eacutethnos aparece geralmente ligado a uma estrutura formulaica como ldquoἂψ δ ἑτάρων εἰς
ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἐχάζετο κῆρ ἀλεείνωνrdquo (ldquomas de volta ao grupo ndash eacutethnos ndash dos companheiros retorna
evitando a morte em batalha - kḗrrdquo) ou ldquoἐπεὶ ἵκετο ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἑταίρωνrdquo (ldquodepois voltou ao grupo
ndash eacutethnos ndash de companheirosrdquo11) visto que se repetem algumas vezes ao longo da Iliacuteada (a
primeira estrutura mais do a segunda)
O conceito de etnicidade comeccedilou a ser debatido recentemente desde a deacutecada de 1970
que esse debate se destaca
O debate sobre a etnicidade foi alimentado desde a deacutecada de 1970 por uma abundante bibliografia que se enriqueceu de modo consideraacutevel o conhecimento empiacuterico das situaccedilotildees intereacutetnicas atuais em todas as partes do mundo natildeo chegou verdadeiramente ateacute hoje a permitir que se destaque uma teoria geral da etnicidade (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 120)
Contudo a heterogeneidade do debate natildeo permitia que se chegasse a uma definiccedilatildeo
mais concreta de etnicidade e uma proposta de conceituaccedilatildeo ainda natildeo havia sido elaborada
Confundia-se (e ainda se confunde) muito os termos ldquoraccedilardquo e ldquoetniardquo que se configuram em
instacircncias diferentes a etnia diz respeito agraves relaccedilotildees sociais entre o ldquonoacutesrdquo e o ldquoelesrdquo e a raccedila
diz mais respeito agraves configuraccedilotildees bioloacutegico-fenotiacutepicas que diferenciam um grupo do outro
Obviamente o argumento racial seraacute utilizado algumas vezes para essa diferenciaccedilatildeo
dicotocircmica mas isso quer dizer que ele tem relaccedilatildeo com o conceito de etnicidade natildeo que
seja sinocircnimo deste
Assim Glazer amp Moynihan defendem que ldquoa etnicidade refere-se a um conjunto de
atributos ou de traccedilos tais como a liacutengua a religiatildeo os costumes o que a aproxima da noccedilatildeo
de cultura ou agrave ascendecircncia comum presumida dos membros o que a torna proacutexima da noccedilatildeo
de raccedilardquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Outros autores relacionam a
etnicidade com o que impulsiona a formaccedilatildeo de um povo com a adequaccedilatildeo comportamental
das pessoas agraves normas sociais de um grupo ou agraves representaccedilotildees que condensam a pertenccedila a
um grupo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86)
11 Esses versos satildeo de traduccedilatildeo proacutepria
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Como pudemos ver as definiccedilotildees satildeo diversas Houve uma tentativa de juntar todas
essas definiccedilotildees para compor o conceito de etnicidade em fins da deacutecada de 1978 (Burgess)
mas que acabou por generalizaacute-lo No acircmbito da Histoacuteria Antiga o historiador americano
Jonathan M Hall procurou sumarizar em oito pontos o que ele entende por etnicidade a partir
de leituras diversas
(1) A etnicidade eacute um fenocircmeno mais social do que bioloacutegico Eacute definida mais por criteacuterios social e discursivamente construiacutedos do que por indiacutecios sociais
(2) Traccedilos culturais geneacuteticos linguiacutesticos religiosos ou comuns natildeo definem essencialmente o grupo eacutetnico Esses satildeo siacutembolos que satildeo manipulados de acordo com fronteiras atribuiacutedas construiacutedas subjetivamente
(3) O grupo eacutetnico eacute distinto de outros grupos sociais e associativos em virtude da associaccedilatildeo com um territoacuterio especiacutefico e um mito de origem compartilhado Essa noccedilatildeo de descendecircncia eacute mais putativa do que atual e julgada por consenso
(4) Os grupos eacutetnicos satildeo frequentemente formados pela apropriaccedilatildeo de recursos por uma seccedilatildeo da populaccedilatildeo ao custo de outra como resultado de uma conquista ou migraccedilatildeo de longa data ou pela reaccedilatildeo contra tais apropriaccedilotildees
(5) Os grupos eacutetnicos natildeo satildeo estaacuteticos ou monoliacuteticos mas dinacircmicos e fluidos Suas fronteiras satildeo permeaacuteveis ateacute certo grau e elas podem ser produto de um professo de assimilaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo
(6) Os indiviacuteduos natildeo precisam sempre agir em termos de sua pertenccedila a um grupo eacutetnico Quando contudo a identidade do grupo eacutetnico eacute ameaccedilada sua internalizaccedilatildeo como identidade social de cada um de seus membros implica numa convergecircncia de normas e comportamentos de grupo e a supressatildeo temporaacuteria da variabilidade individual no esforccedilo por uma identidade social positiva
(7) Tal convergecircncia comportamental e saliecircncia eacutetnica eacute mais comum entre (ainda que natildeo exclusiva a) grupos dominados e excluiacutedos
(8) A identidade eacutetnica soacute pode ser constituiacuteda em oposiccedilatildeo a outras identidades eacutetnicas (HALL 1997 p 33)
A definiccedilatildeo de Hall se aproxima bastante da defendida por Fredrik Barth e Abner
Cohen autores que nos chamaram a atenccedilatildeo Desse modo propomos nos debruccedilar sobre as
ideias deles dois visto que ambos nos chamaram a atenccedilatildeo ao tratar da etnicidade No
entanto escolhemos apenas um como norte teoacuterico o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth
Para esse autor o grupo eacutetnico natildeo eacute sinocircnimo de sociedade ou cultura Essa eacute uma premissa
fundamental visto que trabalhamos com dois grupos que compartilham de um mesmo coacutedigo
de conduta social Barth afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural
especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) esse ldquoconjunto culturalrdquo seria
justamente a paideiacutea com o coacutedigo de conduta que ela transmite
Aleacutem disso ele enfoca justamente nos limites desse grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo
de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com
outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos
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culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de
transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo
(LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando
os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios
para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)
A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se
define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado
pelo conceito de etnicidaderdquo afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart eacute aquele
que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e
satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de
traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees
raciaisrdquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 141)
A etnicidade tambeacutem implica na construccedilatildeo de representaccedilotildees sociais pois ldquoa
identificaccedilatildeo de outra pessoa como pertencente a um grupo eacutetnico implica compartilhamento
de criteacuterios de avaliaccedilatildeo e julgamentordquo (BARTH 2011 p 196) pois assim se tem a ideia de
que se ldquojoga o mesmo jogordquo nas palavras mesmo de Barth Essas representaccedilotildees satildeo
fundamentais para manter as caracteriacutesticas do grupo visto que a comunicaccedilatildeo eacute o locus
privilegiado de inculcaccedilatildeo delas
Ao pesquisarmos sobre o conceito de etnicidade encontramos outro autor que nos
chamou bastante atenccedilatildeo o antropoacutelogo iraquiano Abner Cohen Esse autor estuda as
sociedades africanas contemporacircneas mostrando como os costumes influenciam a poliacutetica e
como o discurso eacutetnico define relaccedilotildees de poder entre grupos eacutetnicos Assim como Barth
Cohen tambeacutem crecirc que o grupo se define e se redefine pelo contato com outros grupos
eacutetnicos ldquoum grupo eacutetnico se ajusta a novas realidades sociais adotando costumes de outros
grupos ou desenvolvendo novos costumes que satildeo compartilhados com outros gruposrdquo
(COHEN 1969 p 1)
Aleacutem disso o antropoacutelogo afirma que
Os diferentes grupos eacutetnicos organizam essas funccedilotildees [normas culturais valores mitos e siacutembolos] de modos diferentes de acordo com as suas tradiccedilotildees culturais e circunstacircncias estruturais Alguns grupos eacutetnicos fazem uso extensivo dos idiomas religiosos organizando essas funccedilotildees Outros grupos usam a descendecircncia [kinship] ou outras formas de relaccedilotildees morais em vez disso No curso do tempo o mesmo grupo pode mudar de um princiacutepio articulador para outro como resultado de mudanccedilas dentro do sistema poliacutetico encapsulado de ou outros desenvolvimentos ambos dentro ou fora do grupo (COHEN 1969 p 5-6)
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Contudo esbarramos no pensamento desse antropoacutelogo quando este afirma que ldquode
acordo com o meu uso um grupo eacutetnico eacute um grupo de interesse informal cujos membros satildeo
distintos dos membros de outros grupos dentro da mesma sociedaderdquo (COHEN 1969 p 4)
Isso seria aplicaacutevel somente agrave Iliacuteada visto que aqueus e troianos seriam membros de uma
mesma comunidade (que estaacute sob um mesmo coacutedigo de conduta) embora sejam membros de
diferentes grupos eacutetnicos Entretanto na realidade de Euriacutepides em que a dicotomia grego
baacuterbaro estaacute bem mais definida (e em crise) essa observaccedilatildeo natildeo se aplica a sociedade grega
eacute diferente da sociedade baacuterbara
Especificamente tratando da Antiguidade Grega alguns autores se debruccedilaram sobre a
questatildeo da etnicidade e da alteridade O mais antigo registro bibliograacutefico que trazemos em
nossa discussatildeo eacute o da helenista Helen Bacon Barbarians in Greek tragedy (1955) Em seu
doutorado ela faz uma anaacutelise dos elementos que caracterizam o baacuterbaro nas trageacutedias de
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides Tanto o vestuaacuterio como o modo de falar ou as accedilotildees definem
um personagem baacuterbaro mas dependendo do autor um ou outro elemento eacute enfatizado
Em 1989 Edith Hall publicou a sua tese doutoral Inventing the barbarian Greek
self-definition through tragedy que teve grande repercussatildeo no meio acadecircmico
Praticamente todos os livros que trazem a questatildeo da alteridadeetnicidade mencionam o
trabalho de Hall que se destina agrave anaacutelise da poesia traacutegica tambeacutem Sua hipoacutetese principal eacute a
de que quando os gregos escrevem sobre os baacuterbaros eles estatildeo fazendo um ldquoexerciacutecio de
auto-definiccedilatildeordquo pois eles satildeo opostos e que essa ldquoinvenccedilatildeordquo teria comeccedilado a partir das
Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) Aleacutem disso ela defende que a ideia de pan-helenismo
tem mais a ver com um ideal atenocecircntrico do que helenocecircntrico Com relaccedilatildeo a Homero ela
afirma que natildeo existe uma polarizaccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros no poema embora essa
diferenciaccedilatildeo existisse nessa eacutepoca admitindo que a Guerra de Troia originalmente seria
entre duas comunidades (HALL 1989 p 23) Contudo ela critica os autores que veem em
Homero uma diferenciaccedilatildeo clara entre gregos e troianos
Em 1993 a helenista francesa Jacqueline de Romilly escreve um artigo comentando o
livro de Edith Hall Les barbares dans la penseacutee de la Gregravece classique Ela chama a atenccedilatildeo
para o fato de que mais do que inventar o baacuterbaro os gregos inventaram o helenismo
(ROMILLY 1993 p 3) A autora reforccedila a ideia de que essa dicotomia eacute mais poliacutetica do que
racial embora admita que os gregos se liguem tambeacutem pelo criteacuterio da raccedila
No mesmo ano Barbara Cassin Nicole Loraux e Catherine Peschanski organizaram
Gregos baacuterbaros estrangeiros a cidade e seus outros com cinco ensaios das autoras
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sobre a questatildeo da alteridade na Greacutecia Claacutessica especificamente apresentados no Rio de
Janeiro a convite do Coleacutegio Internacional de Estudos Filosoacuteficos Transdisciplinares Elas
analisam sobretudo como a poacutelis lidava com os seus Outros categorizando e caracterizando
o estrangeiro A documentaccedilatildeo principal reside na historiografia helecircnica sendo Heroacutedoto
Tuciacutedides e Xenofonte os mais trabalhados Elas mostram como os gregos satildeo gregos por
cultura natildeo por natureza e como eles podem voltar a ser baacuterbaros atraveacutes do desrespeito dos
coacutedigos de valores helecircnicos (CASSIN LORAUX 1993 p 10)
Um ano depois Pericles Georges escreveu um livro que aborda natildeo soacute o Periacuteodo
Claacutessico mas tambeacutem o Arcaico Barbarian Asia and the Greek experience from the
Archaic Period to the age of Xenophon Sua proposta no livro eacute mostrar como os gregos
estereotiparam o baacuterbaro e qual a origem disso evidenciando como essa definiccedilatildeo ajudou a
construir a identidade grega No tocante a Homero ele tambeacutem natildeo crecirc haver diferenciaccedilatildeo
entre gregos e troianos mas admite que a Iliacuteada jaacute traz uma diferenciaccedilatildeo entre o noacutes e o eles
sobretudo ao se referir aos caacuterios e liacutedios
Antonio Mario Battegazzore escreveu em 1996 um artigo interessante sobre essa
polarizaccedilatildeo grego versus baacuterbaro La dicotomia greci-barbari nella Grecia Classica
riflessioni su cause ed effetti di una visione etnocecircntrica Seu trabalho eacute interessante pois
corrobora a ideia de que os gregos tecircm dois tipos de leitura sobre os baacuterbaros uma horizontal
(na qual os gregos reivindicam uma centralidade geograacutefico-cultural em relaccedilatildeo aos outros
povos) e uma vertical (os gregos satildeo evoluiacutedos pois o passado baacuterbaro ficou para traacutes os
baacuterbaroi de hoje satildeo atrasados visto que pararam no tempo) (BATTEGAZZORE 1996 p
23) Ele natildeo admite a possibilidade de diferenciaccedilatildeo entre troianos e gregos na Iliacuteada
analisando essa dicotomia no Periacuteodo Claacutessico
O historiador Irad Malkin em 1998 escreve um livro inovador no que diz repeito ao
uso conceitual da etnicidade para o mundo Antigo The returns of Odysseus colonization
and ethnicity Ele analisa os nostoiacute heroacuteis que cruzam regiotildees tentando voltar para casa na
mitologia grega e os relaciona agrave definiccedilatildeo da identidade helecircnica a partir do contato com
Outros O autor defende por exemplo a ideia de que Odisseu na verdade seria uma metaacutefora
para a colonizaccedilatildeo helecircnica que acontecia sobretudo no seacuteculo VIII aC sendo assim um
ldquoheroacutei proto-colonialrdquo (MALKIN 1998 p 3) Em 2001 Malkin organizou um livro com
ensaios especificamente sobre a etnicidade no mundo grego Ancient Perceptions of Greek
Ethnicity aquecendo os debates sobre o tema
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Em 2002 dois trabalhos se destacaram no tocante agrave questatildeo da etnicidade helecircnica o
de Jonathan M Hall (Hellenicity between ethnicity and culture) e a coletacircnea de Thomas
Harrison (Greeks and barbarians) Hall jaacute havia escrito um livro em 1997 sobre a questatildeo
eacutetnica no mundo grego (Ethnic identity in Greek Antiquity) e o seu novo livro na verdade
eacute um aprofundamento do tema e um alargamento da gama de documentos utilizados Ele
defende que existem determinados elementos que definem as fronteiras eacutetnicas helecircnicas os
quais jaacute apontamos aqui em nossa introduccedilatildeo O livro de Harrison traz vaacuterios ensaios
transdisciplinares sobre essas diferenciaccedilotildees entre gregos e baacuterbaros vistos de uma
multiplicidade de naturezas documentais que vatildeo desde a literatura ateacute a cultura material
helecircnica
A helenista Lynette Mitchell em 2007 publicou seu Panhellenism and the
barbarian in Archaic and Classical Greece Ela tenta definir o que eacute esse pan-helenismo
estendendo a anaacutelise para o Periacuteodo Arcaico e defendendo que essa ideia natildeo eacute apenas cultural
ou poliacutetica mas necessariamente possui ambas as conotaccedilotildees Dois anos depois o classicista
P M Fraser escreveu seu Greek ethnic terminology no qual analisa o vocabulaacuterio eacutetnico
desde Homero ateacute Bizacircncio Ele mostra como o termo eacutethnos mudou ao longo do tempo indo
da simples designaccedilatildeo de uma coletividade ateacute uma demarcaccedilatildeo bem niacutetida do noacuteseles bem
como relaciona a ele outros termos (como geacutenos e poacutelis) que desempenham essa marcaccedilatildeo
eacutetnica
Efi Papadodimas escreveu em 2010 um artigo digno de nota pois se debruccedila
especificamente sobre Euriacutepides The GreekBarbarian interaction in Euripides Andromache
Orestes Heracleidae a reassessment of Greek attitudes to foreigners Ele mostra como nas
trageacutedias euripidianas a dicotomia grego versus baacuterbaro estaacute cada vez mais fluida visto que o
tragedioacutegrafo testemunha a ldquobarbarizaccedilatildeordquo dos proacuteprios gregos Para o autor essa ideia de
que o baacuterbaro eacute um oposto entra em crise natildeo sendo difiacutecil encontrar em suas trageacutedias
gregos agindo como baacuterbaros
O historiador grego Kostas Vlassopoulos em seu Greeks and barbarians (2013)
tentou desconstruir a ideia de que o grego eacute diametralmente oposto ao baacuterbaro analisando
como gregos e baacuterbaros conviviam no espaccedilo mediterracircnico Esse eacute o principal argumento do
seu livro Os gregos num plano discursivo procuraram diferenciar o baacuterbaro de si a fim de
fundar sua proacutepria identidade mas na praacutetica os gregos dialogaram bastante com os natildeo-
gregos atraveacutes de trocas culturais as quais natildeo diziam respeito somente agrave imposiccedilatildeo mas agrave
circulaccedilatildeo mesmo de ideias e tecnologias pelo Mediterracircneo Essas trocas tiveram como
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principal palco o mundo das apoikiacuteai as ldquocolocircniasrdquo gregas as quais frequentemente ou
adotavam os costumes gregos (sobretudo o modo de organizaccedilatildeo poliacuteade) ou recebiam-nos e
modificavam-nos adaptando-os aos seus contextos
Nosso trabalho propotildee analisar comparativamente os elementos que definiam as
fronteiras eacutetnicas em Homero e em Euriacutepides sobretudo a partir da anaacutelise do heroacutei Paacuteris
visto por noacutes como o Outro por excelecircncia na Iliacuteada e nas trageacutedias do ciclo troiano
Dividimos nosso trabalho em trecircs capiacutetulos o primeiro trata da etnicidade de uma forma geral
dentro das poesias eacutepica e traacutegica dessuperficializando os textos que analisaremos em nosso
trabalho Jaacute o segundo trata de um aspecto recorrente na representaccedilatildeo de Paacuteris nossa
comparaacutevel ele como sendo um causador de males Vamos ver como Homero e Euriacutepides
tratam disso destacando como essa caracteriacutestica engloba uma seacuterie de elementos que
definem fronteiras eacutetnicas tanto na epopeia quanto na trageacutedia No terceiro capiacutetulo nos
debruccedilamos sobre um Paacuteris guerreiro e como a sua representaccedilatildeo como tal corrobora a
definiccedilatildeo desse personagem como sendo um Outro bem como Homero e Euriacutepides lidam
com essa alteridade dos troianos
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CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE
COMPOSICcedilAtildeO
ldquo[] a epopeia [de Homero] eacute aqui construiacuteda como uma trageacutediardquo
(ROMILLY 2013 p 47)
Nesse capiacutetulo vamos trabalhar a literariedade da epopeia homeacuterica e a trageacutedia
euripidiana ou seja o que faz dessas obras textos literaacuterios (ANDRADE 1998 p 27) que
satildeo ldquoobjeto[s] de conhecimento que representa[m] alegoricamente o ponto de vista do escritor
a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31) Faremos isso de modo a mostrar
como elas pertencem a um mesmo espaccedilo discursivo bem como a construccedilatildeo delas implica
em um discurso que molda uma etnicidade helecircnica Por isso a epiacutegrafe de Jacqueline de
Romilly se faz de extrema importacircncia para abrirmos nossa discussatildeo ela acredita que a
epopeia homeacuterica se constroacutei agrave maneira de uma trageacutedia Obviamente Homero natildeo previu a
existecircncia dos traacutegicos fazendo um poema que parecesse com uma trageacutedia futura Contudo
a afirmaccedilatildeo da helenista francesa implica na ideia de que as trageacutedias foram influenciadas
pelas epopeias
Os textos homeacutericos satildeo arquitextos12 natildeo somente para Euriacutepides mas para toda a
tradiccedilatildeo literaacuteria grega posterior sendo que tanto Homero quanto Euriacutepides satildeo hoje ambos
arquitextos eles influenciam no modo como produzimos textos (sejam eles escritos visuais
orais etc) Tanto a epopeia quanto a trageacutedia fazem parte do mesmo espaccedilo discursivo13 o
material miacutetico homeacuterico serviu aos tragedioacutegrafos a utilizaccedilatildeo de epiacutetetos e comentaacuterios
para caracterizar um personagem eacute tomada emprestada dessa tradiccedilatildeo eacutepica bem como a
utilizaccedilatildeo de algumas foacutermulas conhecidas do puacuteblico
Desse modo podemos dizer que poesia eacutepica e traacutegica fazem parte de uma mesma
tradiccedilatildeo mito-poeacutetica No entanto natildeo podemos afirmar que o mito se desenrola na trageacutedia
da mesma maneira que em Homero Se fosse assim dificilmente as peccedilas de teatro atrairiam a
atenccedilatildeo do puacuteblico ateniense do seacuteculo V aC afinal ningueacutem quer ver a mesma histoacuteria
contada do mesmo modo diversas vezes Nenhum texto embora influenciado por outros eacute
12 O arquitexto designa ldquoas obras que possuem um estatuto exemplar que pertencem ao corpus de referecircncia de um ou de vaacuterios posicionamentos de um discurso constituinterdquo (MAINGUENEAU 2008 p 64) 13 ldquoO lsquoespaccedilo discursivorsquo enfim delimita um subconjunto do campo discursivo ligando pelo menos duas formaccedilotildees discursivas que supotildee-se mantecircm relaccedilotildees privilegiadas cruciais para a compreensatildeo dos discursos consideradosrdquo (MAINGUENEAU 1997 p 117)
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igual a esses predecessores eles possuem um interdiscurso que eacute esse diaacutelogo com tradiccedilotildees
literaacuterias posteriores mas nunca satildeo coacutepias puras e simples
Homero mesmo embora seja um arquitexto natildeo pode ser considerado o iniacutecio de um
processo discursivo ele faz parte desse processo visto que nos seus textos jaacute existe um
interdiscurso Homero eacute um dos aedos que circulavam pela Greacutecia naquela eacutepoca e ainda
havia outros como ele antes dele Aleacutem disso ele eacute influenciado por vaacuterias tradiccedilotildees literaacuterias
que jaacute existiam Um exemplo disso eacute a utilizaccedilatildeo do contexto intralinguiacutestico da poesia
iacircmbica para compor alguns personagens como o proacuteprio Paacuteris (SUTER 1984) esse tipo de
verso era utilizado para acusar algueacutem de algo Assim a composiccedilatildeo de algumas sentenccedilas
relativas agrave Paacuteris sobretudo quando o sujeito enunciador eacute um personagem da Iliacuteada (como
Priacuteamo ou Heitor) conservam esse ato de linguagem14 iacircmbico
Escolhemos dois gecircneros15 discursivos para trabalhar com Paacuteris a epopeia de
Homero e as trageacutedias de Euriacutepides Antes de apresentarmos as anaacutelises comparadas do
nosso heroacutei em cada um deles eacute mister discorrermos sobre a natureza da composiccedilatildeo desses
dois textos pois trabalhamos com a Anaacutelise de Discurso como meacutetodo de leitura deles Para o
analista eacute importante dessuperficializar o corpus documental para criar um objeto discursivo
sobre o qual enfim nos debruccedilamos com fins analiacuteticos
Essa dessuperficializaccedilatildeo consiste em dirigir aos textos perguntas que vatildeo ancorar
nossa leitura em um determinado tempo espaccedilo e sociedade ldquoQuem escreveurdquo ldquoQuando
escreveurdquo ldquoOnde escreveurdquo ldquoDe onde essa pessoa veiordquo ldquoPara quem ela escreverdquo ldquoO
que ela defenderdquo ldquoQual o gecircnero do textordquo satildeo perguntas que devemos fazer antes de
comeccedilar a analisar qualquer documentaccedilatildeo
Esse processo tem a ver com a proacutepria classificaccedilatildeo do gecircnero discursivo ao qual
pertence um determinado discurso ldquoO fato de que um texto seja destinado a ser cantado lido
em voz alta acompanhado por instrumentos musicais de determinado tipo que circule de
determinada maneira e em certos espaccedilos tudo isto [sic] incide radicalmente sobre seu
modo de existecircncia semioacuteticardquo (MAINGUENEAU 1997 p 36) O gecircnero eacute tatildeo importante na
construccedilatildeo do discurso que na Greacutecia Antiga ele influenciava diretamente na escolha do
dialeto da composiccedilatildeo dos textos como a linguista britacircnica Anna Morpurgo Davies nos
explica
14 O ato de linguagem eacute uma sequecircncia linguiacutestica com um valor ilocutoacuterio ou seja dotado de uma determinada forccedila (no caso da poesia iacircmbica de acusaccedilatildeo) que pretende operar sobre o sujeito receptor uma transformaccedilatildeo 15 Podemos classificar os gecircneros de diferentes maneiras de acordo com suas condiccedilotildees comunicacionais (como fala onde fala etc) e estatutaacuterias (quem fala para quem fala qual o lugar social de cada sujeito do discurso etc)
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O verso eacutepico eacute escrito em alguma forma de jocircnico A trageacutedia aacutetica eacute escrita em aacutetico exceto pelos coros os quais estatildeo em uma forma doacuterica modificada A poesia liacuterica pode estar em eoacutelico a prosa literaacuteria natildeo Em um nuacutemero de instacircncias a escolha do dialeto eacute independente da origem do autor Piacutendaro era de Tebas mas natildeo escreve em beoacutecio Hesiacuteodo era tambeacutem da Beoacutecia mas compocircs em uma linguagem eacutepica ie em uma forma compoacutesita de jocircnico (DAVIES 2002 p 157)
A Iliacuteada natildeo era encenada do mesmo modo que as trageacutedias natildeo se restringiam a uma
reacutecita as performances eacutepica e traacutegica eram diferentes Para o melhor aproveitamento do
estudo do nosso corpus e corroboraccedilatildeo de nossas hipoacuteteses devemos observar natildeo somente as
semelhanccedilas e diferenccedilas mas tambeacutem quais as peculiaridades que cada gecircnero discursivo
nos traz Diferentemente da Iliacuteada as trageacutedias natildeo satildeo tatildeo extensas para termos uma noccedilatildeo
a maior das trageacutedias que vamos estudar (Orestes com 1693 versos) corresponde a somente
1078 da Iliacuteada (que possui 15693 versos) As reacutecitas aeacutedicas e rapsoacutedicas eram
episoacutedicas a Iliacuteada e a Odisseia natildeo eram cantadas de uma vez soacute selecionando-se apenas
episoacutedios Essa praacutetica estaacute presente na documentaccedilatildeo mesma no Canto VIII da Odisseia (vv
266-369) Demoacutedoco conta o episoacutedio da traiccedilatildeo de Afrodite e Ares
Outra diferenccedila a se sublinhar eacute o proacuteprio modo de compor o aedo natildeo escrevia seus
poemas ao contraacuterio do traacutegico O aedo memorizava o poema ou compunha-o na hora para o
seu puacuteblico utilizando uma mnemoteacutecnica16 Desse modo vemos se repetirem foacutermulas como
ldquoAssim que a Aurora de dedos de rosa surgiu matutinardquo [ἦmicroος δ᾽ ἠριγένεια φάνη
ῥοδοδάκτυλος Ἠώς] e epiacutetetos (como theoeidḗs relativo a Paacuteris) que equivaliam a uma
pausa necessaacuteria para o cantor se lembrar do que falaraacute a seguir e para ele poder compor
atraveacutes do manejo do hexacircmetro dactiacutelico os seus versos
Euriacutepides escreveu as suas trageacutedias e cada ator (em sua eacutepoca trecircs17) decorava suas
falas e as interpretava em cima do palco Surge aqui entatildeo mais um elemento que distingue o
gecircnero eacutepico do traacutegico a forma do texto Em Homero haacute diaacutelogos entre personagens espaccedilo
para eles falarem contudo isso se daacute atraveacutes do discurso indireto livre de um narrador
onisciente18 Nas trageacutedias esse narrador desaparece o discurso eacute direto mesmo quando se
trata do coro e os narradores satildeo sempre personagens Os diaacutelogos exerciam um papel muito 16 A mnemoteacutecnica seria a arte no caso do aedo de lembrar e improvisar se preciso os versos a serem recitados A tiacutetulo de aprofundamento do tema ver o capiacutetulo II de Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica de Marcel Detienne (consultar Referecircncias bibliograacuteficas) 17 Eacute atribuiacutedo a Soacutefocles a introduccedilatildeo do terceiro ator Ateacute entatildeo as trageacutedias eram interpretadas por apenas dois atores Cada vez mais o ator vai ganhando destaque nas produccedilotildees traacutegicas e a partir de 449 aC havia natildeo soacute competiccedilotildees de trageacutedias em si mas de atores tambeacutem (SCODEL 2011 p 53-54) 18 O narrador onisciente eacute aquele que conhece passado presente e futuro da histoacuteria e o iacutentimo de cada personagem mas que natildeo participa da trama
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importante em determinadas trageacutedias mesmo o falar da personagem jaacute mostrava a que
acircmbito social ela pertencia como acontece com o friacutegio de Orestes (que eacute marcadamente um
baacuterbaro) ou com Paacuteris em Alexandre cuja desenvoltura no falar denuncia que ele natildeo eacute um
pastor comum e excede aos outros
Aleacutem disso natildeo eacute o autor que interpreta suas peccedilas19 ele delega essa funccedilatildeo aos
atores A encenaccedilatildeo traacutegica natildeo corresponde somente agrave trageacutedia em si havia esses atores (no
caso de Euriacutepides trecircs20) que representavam os personagens O figurino as maacutescaras
deveriam trazer consigo as particularidades de cada personagem e torna-lo reconheciacutevel ao
puacuteblico eles deveriam saber quem era o mensageiro o deus o anciatildeo o heroacutei a mulher e
assim por diante Diferentemente o aedo eacute ele mesmo narrador de sua histoacuteria
Outro elemento eacute o espaccedilo da performance a reacutecita aeacutedica ocorre geralmente em
banquetes enquanto as encenaccedilotildees traacutegicas tecircm o espaccedilo do odeacuteon (teatro) para se desenrolar
Isso natildeo significa contudo que o puacuteblico do aedo seja mais restrito do que o do traacutegico
Podemos pensar que enquanto a epopeia geralmente era cantada no espaccedilo do banquete
aristocraacutetico21 a trageacutedia se encenava no espaccedilo da poacutelis custeada pelos cidadatildeos ricos e
aberta a toda a populaccedilatildeo (ROMILLY 1997 p 16) e por isso o alcance dela era maior22
Contudo natildeo podemos nos esquecer de que o poeta era itinerante fazendo suas epopeias
chegarem a vaacuterios lugares da Greacutecia Essa eacute uma ideia bastante explorada pelo historiador
Alexandre Santos de Moraes que ressalta
A certa estabilidade de que alguns aedos gozavam nos palaacutecios e ambientes aristocraacuteticos homeacutericos natildeo deve enublar nossas leituras [] quando encontramos o aedo iliaacutedico Tamiacuteris que viajava para competir com outros aedos ou mesmo o identificado no Hino Homeacuterico a Apolo que solicitara agraves donzelas deacutelias que perpetuassem sua fama par os outros aedos que por ali passassem chegamos agrave conclusatildeo de que esse sedentarismo nada mais era do que uma condiccedilatildeo momentacircnea [] A erracircncia portanto natildeo eacute apenas adequada a esses aedos eacute provaacutevel que tenha sido um meio indispensaacutevel para a ampliaccedilatildeo de seu repertoacuterio e a aquisiccedilatildeo de novos materiais e canccedilotildees (MORAES 2012 p 73 ndash grifos nossos)
Quando vamos estudar os mitos gregos ldquoconveacutem ter em conta essa fragmentariedade
das reliacutequias e a facilidade de variaccedilatildeo que oferecem os relatos dos poetasrdquo (GUAL 1996 p
19 Segundo Ruth Scodel no iniacutecio os tragedioacutegrafos poderiam ter sido eles mesmos atores em suas trageacutedias (SCODEL 2011 p 45) 20 Atribui-se a Soacutefocles o meacuterito de ter elevado de dois para trecircs o nuacutemero de atores Na eacutepoca de Eacutesquilo existiam somente dois (ROMILLY 1999 p 33) 21 Tambeacutem havia reacutecitas em concursos mas essas eram feitas por rapsodos que reproduziam versos de aedos 22 Embora os cidadatildeos mais pobres pudessem assistir agraves trageacutedias atraveacutes de um financiamento governamental (theōrikaacute) a maioria do puacuteblico no teatro advinha da elite (SCODEL 2011 p 53)
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24) Os mitos em si satildeo bastante variaacuteveis existem mitos que natildeo tecircm uma uacutenica versatildeo
Afrodite por exemplo eacute filha de Zeus em Homero (Iliacuteada V v 131) e filha de Uranos em
Hesiacuteodo (Teogonia vv 180-200) Os mitos eram passados de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela via
oral tanto pelos poetas quanto pelos proacuteprios ouvintes que passavam as histoacuterias adiante
Aleacutem disso como vimos esses mitos circulavam mesmo na eacutepoca traacutegica as peccedilas poderiam
ser apresentadas em localidades outras aleacutem de Atenas Por isso que os mitos possuiacuteam uma
variaccedilatildeo muito grande de regiatildeo para regiatildeo sobretudo antes de terem sido escritos como na
eacutepoca arcaica O poema ldquooriginalrdquo (se assim considerarmos que existia um) sempre chega
com modificaccedilotildees conforme passa de uma pessoa para outra
Esses textos foram copiados e recopiados ao longo dos seacuteculos durante a denominada
Idade Meacutedia os manuscritos eacutepicos traacutegicos e historiograacuteficos serviam para o ensino do
grego Os copistas reproduziam determinados textos gregos conforme o gosto de quem os
encomendava Devido a isso muito se pensou que durante a Idade Meacutedia as obras da Greacutecia
Antiga se perderam entretanto isso eacute inverificaacutevel visto que foi a partir dos manuscritos
conservados em bibliotecas que foram possiacuteveis as ediccedilotildees impressas que temos hoje
Por causa dessa circulaccedilatildeo intensa dos eacutepicos e das trageacutedias existem as
interpolaccedilotildees versos inseridos a posteriori Em relaccedilatildeo a Homero desde a Antiguidade23
seus poemas satildeo como o pomo da discoacuterdia pois muita tinta foi derramada e muitos autores
jaacute debateram tanto sobre sua verossimilhanccedila quanto pela sua autoria conteuacutedo ou forma
Esses estudos se baseiam nos poemas em texto jaacute cristalizados pela escrita24 O trabalho com
as obras de Homero assim esbarra com a Questatildeo Homeacuterica Ela se constitui de uma seacuterie de
debates acerca da autoria da veracidade e da unidade dos poemas e muito jaacute se escreveu sobre
ela desde o seacuteculo XVIII De fato um Homero parece natildeo ter existido mas cremos que o fio
condutor dos dois poemas que lhes datildeo unidade eacute a proacutepria ideologia que os perpassa Natildeo
se comprovou ainda a existecircncia da Guerra de Troia conjectura-se que se ela ocorreu
provavelmente foi entre 1250-1240 aC quando a regiatildeo de Wilǔsa estava em disputa No
entanto eacute fato que a sociedade representada por Homero tem uma materialidade histoacuterica
23 Robert Aubreton elenca os criacuteticos de Homero que satildeo conhecidos Demoacutecrito de Abdera Hiacutepias de Eacutelis Estesiacutembroto de Tasos Hiacutepias de Tasos Aristoacuteteles Cameleatildeo Heraacuteclides Pocircntico Filotas de Coacutes Zenoacutedoto de Eacutefeso Neoptoacutelemo de Paacuterio Aristoacutefanes de Bizacircncio e Aristarco 24 Eacute comum a ideia de que Pistiacutestrato tirano grego no seacuteculo VI mandou que se colocassem por escritos os poemas homeacutericos graccedilas aos escritos de Wolf que a partir de documentaccedilatildeo oriunda da Antiguidade concluiu isso (WHITMAN 1965 p 66) Contudo o helenista norte-americano Cedric Whitman afirma que essa ideia eacute impossiacutevel pois ldquoos dois grandes eacutepicos nacionais dos gregos ndash se lsquonacionalrsquo eacute colocado para significar pan-helecircnico ou pan-ateniense e de certo modo satildeo os dois ndash nunca poderia ter nascido de um programa cultural engendrado por um tirano [despot]rdquo (WHITMAN 1965 p 74) Ele mostra uma seacuterie de outras origens para o eacutepico mostrando que eacute mais plausiacutevel diversas versotildees tivessem existido
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Como mostramos em nossa introduccedilatildeo os poemas homeacutericos foram compostos no
seacuteculo VIII aC mas referem-se ao seacuteculo XIII aC Desse modo elas imiscuem dois
periacuteodos o Palaciano (XVII-XII aC) e o Poliacuteade Arcaico (VIII-VII aC) A arqueologia
tem nos revelado muito acerca dessa constataccedilatildeo e esbarraremos com algumas delas ao longo
do nosso estudo de caso Por exemplo em Homero haacute a presenccedila de duas praacuteticas funeraacuterias
a inumaccedilatildeo e a incineraccedilatildeo Aquela era mais comum na eacutepoca dos palaacutecios as escavaccedilotildees em
Cnossos e Micenas revelaram vaacuterios tuacutemulos escavados ou com cuacutepula (thoacuteloi) A praacutetica de
incinerar os mortos comeccedila a surgir na eacutepoca micecircnica mas se difunde ao longo do periacuteodo
poliacuteade A metalurgia do ferro natildeo era comum na Greacutecia na eacutepoca dos palaacutecios o bronze era
o metal predominante Jaacute na eacutepoca de composiccedilatildeo dos poemas ela era largamente praticada
O poeta mistura elementos de um tempo preteacuterito e de um presente a fim tanto de ambientar
sua obra quanto tornar a sociedade que ele representa familiar agrave sua audiecircncia
Estrabatildeo (c 6463 aC ndash 24 aC) geoacutegrafo grego resgata o debate entre Poliacutebio (203-
120 aC) e Eratoacutestenes (c 276273 aC ndash 194 aC) acerca dos poemas homeacutericos Este
uacuteltimo acredita que o intuito do poeta foi apenas entreter seu puacuteblico com uma histoacuteria
fantasiosa desprovendo seus poemas de quaisquer informaccedilotildees veriacutedicas Poliacutebio reconhece
que o relato homeacuterico eacute imerso em fantasia mas evidencia ldquoa existecircncia de dados histoacutericos e
geograacuteficos corretosrdquo (GABBA 1986 p 38) Estrabatildeo se inclina para essa uacuteltima opiniatildeo
reconhecendo que tanto a Iliacuteada quanto a Odisseia contam eventos que realmente ocorreram
como a guerra de Troia e as viagens de Odisseu do mesmo modo que afirma serem os dados
geograacuteficos e topograacuteficos de uma grande precisatildeo (GABBA 1986 p 39)
Hoje nos debruccedilamos sobre as epopeias de Homero cientes de que veraz eacute um termo
extremo para designar as narrativas homeacutericas Verossiacutemil talvez agrave medida que a arqueologia
nos forneceu muitos dados os quais mostram que Iliacuteada e a Odisseia natildeo estatildeo
completamente fora nem do tempo em que foram compostas nem do tempo a que se referem
Natildeo podemos contudo negar essa materialidade dos poemas porque ele possui uma
ancoragem social espacial e temporal
O texto literaacuterio eacute o ldquoobjeto de conhecimento que representa alegoricamente o ponto
de vista do escritor [autor] a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31 ndash grifos
nossos) e eacute essa ldquorealidade humanardquo que vai nos interessar tanto no estudo da poesia eacutepica
quanto da traacutegica sendo esses dois gecircneros discursivos profiacutecuos para o estudo da eacutepoca que
esses textos foram compostos As epopeias e as trageacutedias natildeo representam a sociedade
30
palaciana (do periacuteodo da Guerra de Troia) mas a sociedade poliacuteade arcaica e a claacutessica em
que o aedo e o tragedioacutegrafo compuseram respectivamente
No caso da trageacutedia essas interpolaccedilotildees tambeacutem existem a classicista Ruth Scodel
traz a ideia de que Ifigecircnia em Aacuteulis por exemplo tem partes que natildeo foram escritas por
Euriacutepides e que muitos especialistas concordam que a fala final do mensageiro natildeo estava na
trageacutedia original (SCODEL 2011 p 6) A exclusatildeo do nosso corpus da trageacutedia Rhesus
deveu-se dentre outros motivos ao fato de natildeo sabermos se ela realmente foi escrita por esse
tragedioacutegrafo A Antiguidade eacute um periacuteodo da Histoacuteria que possui escassez de documentaccedilatildeo
escrita e isso dificulta o trabalho do historiador da literatura grega Aleacutem disso esbarramos
frequentemente com esses problemas documentais os quais apresentamos acima Nesse
sentido a Arqueologia nos ajuda bastante ao trazer agrave luz a cultura material da eacutepoca bem
como o faz a Filologia ao tentar recuperar fragmentos perdidos de textos antigos
O papel desse uacuteltimo ramo das Ciecircncias Humanas eacute particularmente importante no
caso de um de nossos textos o fragmento traacutegico Alexandre de Euriacutepides Essa trageacutedia eacute
peculiar nesse estudo pois apenas fragmentos dela chegaram ateacute noacutes Sabemos como esses
materiais (em especial o papiro) satildeo pereciacuteveis e no caso de Alexandre aleacutem da maior parte
da trageacutedia ter se perdido no tempo muitas palavras e ateacute mesmo a indicaccedilatildeo de sujeitos
enunciadores desconhecemos no fragmento 54 por exemplo o personagem que fala pode ser
tanto Paacuteris quanto um mensageiro No fragmento 62a haacute vaacuterias lacunas no iniacutecio de alguns
versos (vv 4 6 11-14 16 e 17) devido ao desgaste do tempo nas bordas do papiro que levou
para sempre o que estava escrito ali
No entanto algumas sentenccedilas satildeo passiacuteveis de serem reconstituiacutedas e especialistas em
liacutengua grega constantemente se debruccedilam sobre esse tipo de documentaccedilatildeo para tentar
preencher esses vazios causados pela deterioraccedilatildeo do material Como satildeo vaacuterias as pessoas
que se dedicam a isso vaacuterios podem ser os resultados finais desses preenchimentos Abaixo
um exemplo de como trecircs estudiosos podem fazer essa reconstituiccedilatildeo de maneira diferente
Reconstituiccedilatildeo do Reconstituiccedilatildeo do argumento Reconstituiccedilatildeo do
31
argumento (test iii l 17-
18) de R A Coles (1974)
(test iii l 17-18) de W
Luppe (1977)
argumento (test iii l 17-
18) de Christopher
Collard e Martin Cropp
(2008)
ἐπερωτηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω [] π[1-2]ρειτο καὶ
[]
ἀπ[ολο]γηθεὶς [δ]ὲ επὶ τοῦ δυνά-
στο[υ] τ[ι]microωρ[ίαν] π[α]ρεῖτο καὶ
[]
ηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω[][()]ρειτο καὶ
[]
Luppe e Coles completam algumas lacunas que Collard e Cropp preferem deixar
apenas com a indicaccedilatildeo de que havia algo ali que foi perdido Assim como Collard e Cropp agraves
vezes datildeo certeza de algo que em Coles e Luppe estava indicado como uma suposiccedilatildeo (como
no caso da palavra dynaacutestou)
Desse modo esse tipo de documentaccedilatildeo estaacute sempre em modificaccedilatildeo embora como
David Kovacs reconhece (KOVACS 2002 p 48) o assunto do texto em si natildeo se modifique
(aqui no caso do argumento a ideia da existecircncia de um agoacuten que eacute o proacuteprio tema da peccedila
em si uma vez que ela trata da disputa entre Paacuteris e Diomedes pela vitoacuteria nos jogos
realizados por Troia) No caso de Alexandre o argumento25 encontrado apenas
posteriormente agrave descoberta dos restos da trageacutedia em si foi essencial para saber do que de
fato ela se tratava e para ajudar os pesquisadores a tentar chegar a um consenso sobre essas
perdas leacutexicas e de indicaccedilotildees dos sujeitos enunciadores
Essa trageacutedia provavelmente era a primeira de uma tetralogia (trageacutedia 1 + trageacutedia 2
+ trageacutedia 3 + drama satiacuterico) que se constituiacutea dela mesma de Palamedes (tambeacutem
fragmentaacuteria) de As Troianas e de Siacutesifo (desaparecida) Haacute questionamentos acerca dessa
ideia mas eacute inegaacutevel que as trecircs trageacutedias tecircm muito em comum a accedilatildeo de Alexandre
comeccedila na montanha (monte Ida) Palamedes se desenrola nas planiacutecies (a cidade em si) e As
Troianas eacute ambientada na praia (acampamento grego) o que denota uma organicidade na
composiccedilatildeo da trilogia e um movimento progressivo sobretudo porque a proacutepria Atenas era
assim constituiacuteda espacialmente (MARISCAL 2003 p 214 e p 444)
A helenista Luciacutea Romero Mariscal trabalha especificamente com Alexandre e suas
propostas chamaram nossa atenccedilatildeo pelo fato de ela mostrar como o tema da peccedila eacute
extremamente influenciado pelos acontecimentos da eacutepoca bem como ela conseguir
relacionar o personagem principal (Paacuteris) a Alcibiacuteades cidadatildeo ateniense que ajudou os
25 O argumento eacute uma anotaccedilatildeo feita por estudiosos copistas que antecede a trageacutedia Ele a resume e pode dar algumas informaccedilotildees importantes no tocante agrave sua apresentaccedilatildeo
32
espartanos durante a Guerra do Peloponeso (431-404 aC) e que possuiacutea ambiccedilotildees tiracircnicas26
Ruth Scodel chama atenccedilatildeo ao fato de que essas correlaccedilotildees satildeo comuns mas que sempre
encontram questionamentos
Edith Hall critica muito os autores que procuram relacionar a qualquer custo as
trageacutedias a um acontecimento da eacutepoca geralmente relativo agrave Guerra do Peloponeso
afirmando que elas natildeo representam a vida cotidiana de Atenas mas um ideal do que ela
deveria ser (HALL 2010 p 168 1997 p 94) Concordamos em parte com essa afirmaccedilatildeo
estamos lidando com um discurso no qual a ideologia dominante estaacute presente visto que se
trata aqui de uma legitimaccedilatildeo dos valores ideais que um cidadatildeo deve possuir No entanto
Euriacutepides quando escreve suas peccedilas natildeo eacute completamente indiferente aos acontecimentos da
sua eacutepoca pois como vimos todo texto literaacuterio representa o ponto de vista do autor sua
visatildeo de mundo De fato seria uma imprudecircncia acadecircmica querer encaixar cada trageacutedia
num acontecimento especiacutefico forccedilando uma correspondecircncia falaciosa mas eacute possiacutevel
reconhecer dilemas intriacutensecos agraves discussotildees acerca da guerra em algumas trageacutedias
Alexandre veremos parece ter conexatildeo latente com o episoacutedio da peste em Atenas bem
como Euriacutepides parece mostrar com As Troianas sua opiniatildeo acerca da invasatildeo de Melos ou
Siracusa
O contexto histoacuterico ateniense de Androcircmaca (c 426 aC) natildeo eacute o mesmo que o de
Orestes (c 408 aC) pois esta eacute encenada no fim da Guerra do Peloponeso e aquela no
iniacutecio Atenas muda muito nesses 27 anos de guerra e graccedilas sobretudo ao relato de
Tuciacutedides conhecemos mais pormenorizadamente os acontecimentos da eacutepoca Do mesmo
modo algumas trageacutedias trazem releituras do mito a fim de demonstrar algo especiacutefico
Helena traz uma Helena que nunca foi para Troia Ele toma emprestado de Estesiacutecoro e
Heroacutedoto a ideia de Helena ter ficado no Egito durante a Guerra de Troia em vez de ter
estado laacute o tempo todo (como acontece em Homero) (SCODEL 2011 p 162 HALL 2010
p 279) Um eiacutedolon teria sido colocado em Troia e na verdade a rainha estaria esperando por
seu esposo Menelau no Egito A Guerra de Troia afinal teria sido causada por uma ilusatildeo
por nada Isso reforccedila o discurso ldquopacifistardquo euripidiano em suas trageacutedias troianas
geralmente ambientadas num cenaacuterio poacutes-guerra a ideia de que a guerra traz mais prejuiacutezos e
sofrimentos do que benefiacutecios estaacute sempre presente (JOUAN 2000 p 5)
Esse episoacutedio nos mostra tambeacutem como o mito pode ter uma atualizaccedilatildeo eacutetica Helena
deixa de ser a maacute esposa e passa a ser um modelo para as esposas atenienses da eacutepoca pois
26 Vamos aprofundar essas ideias no capiacutetulo seguinte (Paacuteris o causador de males)
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traz a ideia da fidelidade ao marido O proacuteprio Paacuteris deixa de ser um exemplo exclusivamente
heroico e se transforma no modelo do que eacute baacuterbaro como defendemos Isso tem a ver
diretamente com a proacutepria eacutepoca em que se compotildee a dicotomia ldquogrego versus baacuterbarordquo no
seacuteculo V aC se consolida ao mesmo tempo em que em Euriacutepides entra em crise sendo
necessaacuterio reiterar aos cidadatildeos atenienses a ideia do que eacute o baacuterbaro
Natildeo eacute correto afirmar que as Guerras Greco-Peacutersicas foram o marco inicial para se
pensar a etnicidade helecircnica (HALL 1989 p VLASSOPOULOS 2013 p 163) pois desde
Homero como estamos vendo isso eacute verificaacutevel O historiador Kostas Vlassopoulos chama a
atenccedilatildeo para esse debate
Acadecircmicos modernos tecircm frequentemente interpretado esse fenocircmeno [dos troianos serem mostrados praticamente iguais aos gregos] argumentando que no tempo de Homero (o seacuteculo oitavo) a identidade grega estava ainda incipiente [inchoate] e a justaposiccedilatildeo de todos os natildeo-gregos como baacuterbaros natildeo tomou lugar Essa eacute uma interpretaccedilatildeo histoacuterica que induz ao erro [misleading] [] mas tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo literaacuteria dos eacutepicos homeacutericos que induz ao erro Natildeo devemos subestimar a sofisticaccedilatildeo poeacutetica desses eacutepicos [] Quando ele descreve como o liacuteder dos caacuterios barbarophonoi [sic] ldquoveio para a guerra todo decorado com oureo como uma garota bobo que ele erardquo o tema da luxuacuteria efeminada baacuterbara e a desaprovaccedilatildeo grega disso estaacute claramente presente (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
Do mesmo modo natildeo eacute correto dizer que os gregos soacute comeccedilaram a lutar entre si a
partir da Guerra do Peloponeso muitos gregos lutaram contra gregos jaacute nas Guerras Greco-
Peacutersicas (VLASSOPOULOS 2013 p 55) As poacuteleis natildeo eram tatildeo unidas quanto geralmente
se pensa que elas satildeo ldquoos gregos natildeo tinham nenhum centro ou instituiccedilatildeo em torno da qual
se poderia organizar sua histoacuteria as comunidades falantes de grego estavam dispersas por
todo o Mediterracircneo e elas nunca alcanccedilaram uma unidade poliacutetica econocircmica ou socialrdquo
(VLASSOPOULOS 2007 p 91) Ainda segundo Kostas Vlassopoulos o que dava unidade a
essas comunidades eram as networks existentes marinheiros comerciantes soldados
intelectuais todos criavam uma rede de circulaccedilatildeo de pessoas produtos e ideias que unia
essas poacuteleis assemelhando-se agrave nossa globalizaccedilatildeo moderna (termo inclusive que o
historiador usa para se referir a esse fenocircmeno na Antiguidade grega)
Segundo o historiador britacircnico Frank William Walbank o que unia os gregos era
justamente a religiatildeo e a cultura em comum (2002 p 245) Essa ideologia era compartilhada
por todas as poacuteleis mas elas particularizavam-na Satildeo conhecidas as peculiaridades de
Esparta Atenas Corinto e principalmente das poacuteleis que ficavam em regiotildees de apoikiacuteai
(colocircnias) essas regiotildees eram loci privilegiados de trocas culturais entre a cultura grega e as
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culturas Outras que rodeavam esses locais (VLASSOPOULOS 2013 p 277) O historiador
iraniano Irad Malkin mostra como Odisseu pode ser visto como um heroacutei protocolonial visto
que por todos os lugares que ele passa ele vai deixando sua ldquomarcardquo embatendo-se
constantemente com Outros no seu caminho de volta para casa (MALKIN 1998 p 2) O
proacuteprio mar era um ambiente propiacutecio ao encontro com alteridades muitas vezes hostis
(LESSA SOUSA 2014 p )
Debruccedilar-nos sobre as obras literaacuterias a fim de comprovar as descobertas
arqueoloacutegicas ou o que aconteceu de fato durante a guerra (seja a de Troia seja a do
Peloponeso) ou se os heroacuteis de miacuteticos existiram de verdade eacute uma veleidade Contudo natildeo eacute
impossiacutevel relacionaacute-las com o momento de sua composiccedilatildeo Portanto eacute mais profiacutecuo 1)
tentarmos compreender as representaccedilotildees de Paacuteris levando em conta os elementos de
ancoragem histoacuterica e social da obra relacionando texto com seus contextos intra e
extralinguiacutesticos e 2) buscarmos os modos pelos quais aquela sociedade funcionava e as
representaccedilotildees sociais que a legitimavam e mantinham as suas fronteiras eacutetnicas atraveacutes da
anaacutelise das praacuteticas discursivas O historiador italiano Emilio Gabba nos mostra
elucidativamente isso em relaccedilatildeo a Homero
Em qualquer caso e contemplando separadamente a investigaccedilatildeo sobre os poemas e a anaacutelise da realidade histoacuterica dos feitos descritos o aproveitamento histoacuterico da obra homeacuterica seraacute seguro e maior sempre que apontar para o estudo de aspectos como famiacutelia vida social e poliacutetica instituiccedilotildees e normas princiacutepios eacuteticos comportamento religioso cultura material ou fatores econocircmicos Os siacutemiles entre os poemas satildeo em suma particularmente reveladores (GABBA 1986 p 45 ndash grifos nossos)
Os costumes apresentados na Iliacuteada na Odisseia e nas trageacutedias satildeo modelares para
aqueles que ouvem os poemas ou assistem agraves encenaccedilotildees todo o modo de conduta social dos
heroacuteis eacute trabalhado de modo a servir como exemplo para os kaloigrave kaigrave agathoiacute ou seja os
ldquobelos e bonsrdquo os aristocratas Esses homens eram o puacuteblico do aedo (CARLIER 2008 p
15 AUBRETON 1968 p 138) e mais tarde seratildeo os dos traacutegicos O aedo cantava aquilo
que o puacuteblico queria ouvir Temos exemplo disso ateacute mesmo na proacutepria Odisseia pois
quando a canccedilatildeo de Demoacutedoco aedo da Feaacutecia natildeo agrada mais mandam-lhe parar de tocar
[] Δηmicroόδοκος δ᾽ ἤδη σχεθέτω φόρmicroιγγα λίγειαν οὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόmicroενος τάδ᾽ ἀείδει ἐξ οὗ δορπέοmicroέν τε καὶ ὤρορε θεῖος ἀοιδός ἐκ τοῦ δ᾽ οὔ πω παύσατ᾽ ὀιζυροῖο γόοιο ὁ ξεῖνος microάλα πού microιν ἄχος φρένας ἀmicroφιβέβηκεν
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ἀλλ᾽ ἄγ᾽ ὁ microὲν σχεθέτω ἵν᾽ ὁmicroῶς τερπώmicroεθα πάντες ξεινοδόκοι καὶ ξεῖνος ἐπεὶ πολὺ κάλλιον οὕτως [] natildeo mais ressoe a ciacutetara o cantor Demoacutedoco pois sua poesia natildeo agrada a todo ouvinte Assim que nos pusemos a cear e o aedo comeccedilou o hoacutespede natildeo mais reteve o pranto a anguacutestia circum-envolveu seu pericaacuterdio Demoacutedoco jaacute basta Que anfitriotildees e o hoacutespede possam unir-se na alegria (Odisseia VIII vv 537-543)
Os traacutegicos natildeo tinham uma liberdade total para encenar o que quisessem eles
escreviam as suas trageacutedias as quais passavam por um crivo antes de serem encenadas
(SCODEL 2011 p 43) Aleacutem disso havia os juiacutezes responsaacuteveis por decidir qual peccedila
merecia o primeiro precircmio Aquela que ficava em segundo ou que nem ganhava era uma peccedila
que natildeo foi do gosto dos jurados27 Quando vamos estudar as trageacutedias eacute importante termos
em mente quais peccedilas ganharam pois isso significa que elas serviram mais ao modelo
ideoloacutegico poliacuteade No caso de Euriacutepides apenas duas trageacutedias suas ganharam o primeiro
precircmio (Ifigecircnia em Aacuteulis e Hipoacutelito) Orestes ganhou o segundo Na realidade sua fama foi
poacutestuma pois seu estilo de composiccedilatildeo influenciou bastante as geraccedilotildees posteriores de
tragedioacutegrafos Secircneca por exemplo para compor sua As Troianas inspirou-se nrsquoAs
Troianas e na Heacutecuba de Euriacutepides Aleacutem disso suas trageacutedias foram bastante reencenadas
em periacuteodos posteriores nos quais Atenas jaacute tinha perdido toda a sua gloacuteria e esplendor
(SCODEL 2011 p 43)
No teatro era a poacutelis que estava sendo representada desde os ritos que precediam a
encenaccedilatildeo traacutegica28 (inscrita num espaccedilo religioso pois eram realizadas dentro das Grandes
Dionisiacuteacas e das Leneias) ateacute todo o espaccedilo do odeacuteon (incluindo o palco atraveacutes das
encenaccedilotildees que colocavam em destaque as instituiccedilotildees e valores poliacuteades e os assentos do
puacuteblico (theaacutetron) que eram organizados de modo tal que os cidadatildeos podiam natildeo soacute
enxergar uns aos outros como tambeacutem podiam reconhecer atraveacutes do lugar que se ocupava
aqueles mais proeminentes dentro da poacutelis ateniense) Eacute a siacutentese da ideia da publicidade das
accedilotildees que existe desde a poesia eacutepica e atinge seu aacutepice durante a democracia uma
publicidade direcionada aos interesses poliacuteades
27 Sobre detalhes desse julgamento ver o toacutepico Finances and Contests do capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 28 Para mais detalhes sobre os ritos que precediam as competiccedilotildees traacutegicas ver o toacutepico The Festivals no capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas)
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No entanto eacute inviaacutevel dimensionar a opiniatildeo dos sujeitos receptores natildeo podemos
especular sobre a recepccedilatildeo das peccedilas em relaccedilatildeo a todos os espectadores ainda mais quando
temos em mente que essas peccedilas podiam circular pelas outras poacuteleis e regiotildees de colonizaccedilatildeo
as quais possuiacuteam um puacuteblico bem mais heterogecircneo do que o ateniense (HALL 2006 p 29)
O mesmo acontece com as epopeias de Homero natildeo temos como precisar a recepccedilatildeo dos
poemas que tambeacutem tinham uma audiecircncia bem heterogecircnea Desse modo cabe a noacutes
historiadores observar qual o efeito pretendido sobre os sujeitos destinataacuterios ao se compor
esses textos
A Iliacuteada uacutenico poema homeacuterico que trata de Paacuteris nos conta a histoacuteria da ira de
Aquiles (ROMILLY sd p 18) Por causa dessa temaacutetica comum aos Cantos e da proto-pan-
helenicidade do poema (MITCHELL 2007 p 54) cremos que a Iliacuteada tem uma unidade
intriacutenseca Contudo essa opiniatildeo natildeo eacute uma unanimidade no tocante aos questionamentos
acerca da forma do poema havia duas escolas filoloacutegicas a de Alexandria e a de Peacutergamo
(surgidas por volta do seacuteculo IV aC) as quais possuiacuteam posturas divergentes acerca das
epopeias de Homero A primeira praticava a atetese tudo o que se cria natildeo pertencer agrave Iliacuteada
original se suprimia Jaacute a segunda preferia a exegese ou seja a criacutetica do texto sem omitir
versos
Em 1795 F A Wolf publicou seu Prolegomena ad Homerum o qual deu iniacutecio agrave
ldquoquestatildeo homeacutericardquo e a uma seacuterie de trabalhos denominados analistas neles procura-se
analisar as epopeias de Homero visando criticar filologicamente esses textos apontando para
as contradiccedilotildees as dissonacircncias entre Iliacuteada e Odisseia e os elementos de pouca
verossimilhanccedila na obra Em contraponto a essas teses haacute os unitaristas que defendem a
unidade dos poemas Ainda existem os neo-analistas eles natildeo desconsideram todo o debate
acerca de algumas incongruecircncias das epopeias mas creem que haja uma certa
homogeneidade das obras oriundas de uma tradiccedilatildeo anterior ao poeta o qual com sua
genialidade teria reunido e composto um texto uacutenico
Para Robert Aubreton e Gregory Nagy os poemas homeacutericos possuem uma unidade
intriacutenseca porque derivam dessa tradiccedilatildeo eacutepica precedente A proacutepria Telemaacutequia (Cantos I-
IV da Odisseia) as narrativas de retorno dos noacutestoi os relatos de batalhas singulares entre
heroacuteis satildeo temas anteriores agrave composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Homero ou quem quer que
tenha composto essas duas epopeias conhecia tais histoacuterias e se baseou nelas para compor as
suas proacuteprias
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O que chama atenccedilatildeo eacute o que configura o sentido do discurso do aedo as noccedilotildees de
alḗtheia e lḗthē (ldquoesquecimentordquo) A funccedilatildeo do poeta eacute rememorar os feitos de deuses e
homens natildeo deixando que se esqueccedila deles Para a sociedade isso eacute fulcral o homem morre
fisicamente mas sua memoacuteria eacute imortal se ele assim merecer Para ganhar essa gloacuteria
imorredoura ele precisa ser reconhecido pela sua proacutepria sociedade e assim ser cantado por
geraccedilotildees Ele precisa agir em conformidade com o que aquela sociedade espera de um heroacutei
Dentre alguns valores ressaltamos alguns com os quais vamos trabalhar mais adiante a aretḗ
(excelecircncia) a timḗ (honra) kleacuteoskŷdos (gloacuteria) kalograves thaacutenatos (bela morte) e alkḗandreiacutea
(coragem)
Euriacutepides eacute influenciado por essa tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica e esses valores tambeacutem
perpassam as suas obras o heroacutei homeacuterico natildeo se diferencia tanto do heroacutei traacutegico pois haacute
muita tenuidade entre eles como veremos Contudo na trageacutedia a ideia da falha do erro
hamartiacutea eacute muito mais forte embora na epopeia exista uma ideia semelhante a qual traz agrave
tona um questionamento sobre a infalibilidade do heroacutei a aacutetē (perdiccedilatildeo) que tem estreita
ligaccedilatildeo com desiacutegnios divinos A trageacutedia traz o heroacutei falho e as situaccedilotildees que o envolvem
servem de catarse para o puacuteblico eacute assistindo agravequeles personagens que o cidadatildeo poliacuteade
toma consciecircncia dos problemas da sociedade e de si mesmo Ao mesmo tempo a trageacutedia
implica em permanecircncia e mudanccedila ela legitima os valores (pan-)helecircnicos e os critica a fim
de estimular essa mudanccedila e desse modo manter viva a sociedade
Aleacutem da forma29 um dos pontos que tornam a trageacutedia um gecircnero discursivo (visto
que haacute semelhanccedilas entre uma trageacutedia e outra) eacute a utilizaccedilatildeo do material miacutetico cultural
Essas histoacuterias se passavam em ldquoum passado que jaacute era remoto para a audiecircncia da Atenas
antigardquo (SCODEL 2011 p 3) Para os gregos os heroacuteis e deuses existiram de verdade eram
parte de sua histoacuteria Aquiles Paacuteris ou Heitor existiram para eles Como vimos o mesmo
mito eacute contado e recontado nos palcos mas o que vai diferenciar os tragedioacutegrafos de Homero
e por sua vez um tragedioacutegrafo do outro eacute 1) o modo como o mito eacute contado (figurino
maacutescaras diaacutelogos entre os personagens) 2) as modificaccedilotildees no mito que os autores fazem a
fim de servirem a seus propoacutesitos 3) as atualizaccedilotildees eacuteticas desses mitos e 4) as alusotildees aos
acontecimentos contemporacircneos 29 ldquoA trageacutedia era um tipo especiacutefico de drama Era encenada por atores (em Atenas natildeo mais que trecircs) e um coro de doze depois quinze que cantavam e danccedilavam auxiliados por um tocador de auloacutes um instrumento de sopro [reeded wind instrument] Na maioria das partes os atores usavam um verso falado principalmente o trimetro iacircmbico ou recitativo enquanto os coros cantavam entre cenas mas o liacuteder do coro poderia falar pelo grupo durante as cenas dos atores enquanto os atores poderiam cantar ambos em resposta ao coro e em monoacutedio [both in responsion with the chorus and in monody]rdquo (SCODEL 2011 p 3 ndash traduzido do original em inglecircs por Renata Cardoso de Sousa e Bruna Moraes da Silva)
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Esse passado miacutetico eacute um dos elementos que constituem a fronteira eacutetnica helecircnica O
antropoacutelogo Christian Karner chama atenccedilatildeo para o fato de que a etnicidade eacute ldquoamplamente
associada agrave cultura descendecircncia memoacuteriahistoacuteria coletivas e liacutenguardquo (KARNER 2007 p
17) Ele retoma a ideia de ethnie (etnia) proposta por John Hutchinson e Anthony Smith que
seria um grupo restrito a um determinado espaccedilo que se designa sob um etnocircmio com mitos e
elementos culturais em comum uma memoacuteria histoacuterica compartilhada e um senso de
solidariedade entre os seus membros (KARNER 2007 p 18) Essa ideia dialoga bastante
com a noccedilatildeo de grupo eacutetnico de Fredrik Barth a qual delineamos em nossa Introduccedilatildeo
Portanto os gregos se constituiacuteam num grupo eacutetnico que utilizava o discurso como
meio de (re)definir suas fronteiras eacutetnicas e desse modo garantir a sua existecircncia No acircmbito
textual Homero eacute o responsaacutevel por tentar fixar essas fronteiras ele traz agrave memoacuteria as
histoacuterias dos heroacuteis do passado e dos deuses do presente bem como ressalta a importacircncia dos
ancestrais visto que um indiviacuteduo eacute sempre reconhecido por sua filiaccedilatildeo Aquiles eacute o Peacutelida
(filho de Peleu) Diomedes eacute o Tidida (filho de Tideu) e mesmo Zeus um deus tem como um
dos epiacutetetos ldquoCrocircnidardquo (filho de Cronos)
Euriacutepides apresenta constantemente o tema da destruiccedilatildeo da linhagem familiar como
um grande problema natildeo somente para o indiviacuteduo mas para a comunidade em nosso corpus
documental Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes trazem
episoacutedios de desmantelamento da famiacutelia A primeira trageacutedia mostra o sofrimento de
Androcircmaca ao tentar proteger seu filho da fuacuteria de Hermiacuteone sendo que a personagem
mesma jaacute sofrera com a morte de Astyacuteanax seu primogecircnito que eacute abordada em As
Troianas A filha de Helena por sua vez amargura-se por natildeo conseguir ter um filho com
Neoptoacutelemo seu marido sem filhos natildeo haacute herdeiros de bens materiais e imateriais como a
memoacuteria da linhagem Eacute como se o nome da famiacutelia morresse na memoacuteria social pois os
filhos satildeo responsaacuteveis por mantecirc-la viva Na Iliacuteada um dos maiores medos expressos eacute o de
perder o filho na guerra e natildeo ter a quem deixar a heranccedila ou ter que reparti-la com parentes
distantes (V vv 152-158)
Em As Troianas aleacutem do sofrimento de Androcircmaca vemos o de Heacutecuba que se
desespera por Polixena ter sido dada em sacrifiacutecio A rainha de Troia sofre tambeacutem em
Heacutecuba a perda do filho Polidoro morto brutalmente pelo traacutecio sedento de riquezas a quem
ele estava confiado Ifigecircnia se daraacute ao sacrifiacutecio assim como Polixena em Ifigecircnia em
Aacuteulis levando ao desespero sua matildee Clitemnestra Embora a preferecircncia seja por filhos do
sexo masculino eram as filhas as responsaacuteveis pelos funerais dos mortos as mulheres
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exerciam um papel fundamental no enterro dos entes queridos (HALL 1997 p 106) As
trageacutedias mesmas nos mostram isso como eacute o caso de Antiacutegona de Soacutefocles o tema central
da peccedila eacute o esforccedilo da personagem homocircnima para conseguir dar um funeral adequado ao
irmatildeo que por ter assassinado o proacuteprio irmatildeo eacute condenado a ficar aos corvos sem enterro
Agamemnon pai de Ifigecircnia amaldiccediloa Paacuteris por ter causado toda a situaccedilatildeo de sua
famiacutelia natildeo fosse ele ter que partir para Troia para resgatar a cunhada a filha estaria a salvo
Contudo a sorte do rei de Micenas estaacute traccedilada de uma vez por todas pois sua mulher o
assassina no retorno da guerra Com a famiacutelia desmantelada Orestes filho do casal
desencadearaacute uma vinganccedila desmesurada mata a matildee e tenta matar Helena em Orestes
atraindo para si a fuacuteria das Eriacutenias divindades responsaacuteveis por atormentar aqueles que
cometiam atos indignos sobretudo o assassinato de familiares
Edith Hall mostra como ldquoa vida familiar de um cidadatildeo era um componente da sua
identidade poliacuteticardquo (HALL 1997 p 104) puacuteblico e privado se misturavam A experiecircncia
social eacute fundamental para que um indiviacuteduo se sinta pertencente a um grupo eacutetnico e ajude a
manter essas fronteiras Desse modo os espaccedilos puacuteblicos de convivecircncia (o banquete a
aacutegora o templo o ginaacutesio o teatro) satildeo loci importantes dentro do grupo eacutetnico helecircnico
bem como a publicidade das accedilotildees um grego eacute um homem essencialmente puacuteblico Ele estaacute
exposto aos olhares do seus iacutesoi (iguais) e estes lhe julgam conforme seus atos o homem
grego natildeo eacute somente o homem do ser mas tambeacutem eacute o homem do fazer
Para ser social o homem grego deveria se instruir a educaccedilatildeo tinha um papel muito
importante dentro da Heacutelade Devia-se conhecer os coacutedigos de conduta e principalmente
praticaacute-los Segundo a filoacuteloga Carmem Soares ldquoa trageacutedia eacute um gecircnero literaacuterio regido por
uma poeacutetica didaacutetico-hedonistardquo (SOARES 1999 p 16) ou seja ao mesmo tempo em que
gera prazer e entretenimento educa Essa natildeo eacute uma caracteriacutestica exclusiva dela a poeacutetica
didaacutetico-hedonista adveacutem da poesia eacutepica que contava com deleite as faccedilanhas dos heroacuteis e
dos deuses Sua funccedilatildeo eacute imortalizar esses seres extraordinaacuterios conservando suas memoacuterias
para as geraccedilotildees vindouras tomarem-nos de exemplo
Os mitos as histoacuterias desses heroacuteis do passado servem de advertecircncia aos vivos
agravequeles que as ouvem A epopeia e a trageacutedia compilam toda uma tradiccedilatildeo miacutetica e o mito
por excelecircncia tem justamente a funccedilatildeo de ldquorevelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 1972 p 13 ndash grifos nossos) Ele ldquopossui o
espantoso poder de engendrar as noccedilotildees fundamentais da ciecircncia e as principais formas da
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culturardquo (DETIENNE 2008 p 34) sua difusatildeo constitui uma praacutetica de paideiacutea Assim os
poemas homeacutericos possuem uma funccedilatildeo paidecircutica (VIEIRA 2002 p 14) bem como as
trageacutedias de Euriacutepides
Paideiacutea eacute um termo que aparece pela primeira vez na documentaccedilatildeo no seacuteculo V
aC30 em uma trageacutedia de Eacutesquilo (JAEGER 2010 p 335) Traduzir esse termo eacute muito
difiacutecil literalmente significa criaccedilatildeo de meninos (paicircs significa ldquocrianccedilardquo) comumente
traduz-se como educaccedilatildeo mas esse termo natildeo contempla todo o significado da paideiacutea
(MOSSEacute 2004 p 107-108) ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas
Ela ldquoacaba por englobar o conjunto de todas as exigecircncias ideais fiacutesicas e espirituais que
formam a kalokagathia no sentido de uma formaccedilatildeo espiritual conscienterdquo (JAEGER 2010
p 335) A paideiacutea se configura num aspecto ideoloacutegico da sociedade como nos explica o
historiador Faacutebio de Souza Lessa
Por ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacutetica (LESSA 2010 p 22)
Assim preferimos explicar aqui o sentido de paideiacutea e deixar a palavra sem traduccedilatildeo
para o portuguecircs ela se constitui da transmissatildeo de saberes e praacuteticas culturais Os poemas
satildeo loci de paideiacutea porque contam mitos eles trazem uma seacuterie de modos de conduta caros agrave
sociedade helecircnica que vatildeo servir para formar o kalograves kagathoacutes e no seacuteculo V aC o politḗs
(cidadatildeo) Esses homens vatildeo se inspirar nos heroacuteis e nas suas faccedilanhas nos seus atos que satildeo
passados agraves geraccedilotildees futuras por intermeacutedio da poesia seja ela eacutepica liacuterica ou traacutegica
[] para que a honra heroica permaneccedila viva no seio de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores permaneccedila marcado pelo seu selo [o do heroacutei] eacute preciso que a funccedilatildeo poeacutetica mais do que objeto de divertimento tenha conservado um papel de educaccedilatildeo e formaccedilatildeo que por ela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um este conjunto de saberes crenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura () a epopeia desempenha o papel de paideiacutea exaltando os heroacuteis exemplares assim como os gecircneros literaacuterios lsquopurosrsquo como o romance a autobiografia o diaacuterio iacutentimo o fazem hoje (VERNANT 1978 p 42 ndash grifos nossos)
30 Jaeger ainda sublinha que os ideais educativos da paideiacutea que vatildeo ser desenvolvidos no seacuteculo V aC se baseiam em praacuteticas educativas muito anteriores (JAEGER 2010 p 1)
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Esses heroacuteis seguem esse modo de conduta social que eacute expresso pelas suas accedilotildees
Quando eles se desviam desse coacutedigo satildeo submetidos a uma vergonha social ou
(principalmente na trageacutedia) satildeo viacutetimas de reviravoltas agraves vezes incontornaacuteveis em suas
vidas Paacuteris como veremos erra ao fugir da batalha mas quando acusado pelo seu irmatildeo de
ser covarde retorna para recuperar sua honra Jaacute Eacutedipo heroacutei da trilogia tebana de Soacutefocles
mancha a honra da sua famiacutelia ao casar-se com sua proacutepria matildee e dessa hamartiacutea
desencadeiam-se uma seacuterie de episoacutedios fatiacutedicos que culminam na desgraccedila de sua linhagem
Seu destino mesmo jaacute estava (mal) traccedilado quando seu pai se apaixonou por um homem a
pederastia era uma praacutetica educacional comum na Greacutecia na qual um erasteacutes (mais velho)
ficava responsaacutevel por iniciar um eroacutemenos (mais novo) na vida adulta Contudo relacionar-
se sexualmente com um homem era vetado
Essas normas ajudam a reforccedilar essas fronteiras eacutetnicas helecircnicas que satildeo
constantemente abaladas pelo contato com os Outros Enquanto em Homero essas fronteiras
estatildeo sendo formadas em Euriacutepides elas estatildeo turvas Em Androcircmaca As Troianas
Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes vemos que o grego eacute passiacutevel de se barbarizar
sobretudo quando esse grego eacute um espartano Na primeira trageacutedia Hermiacuteone (uma
espartana) tem atitudes controversas e eacute mostrada usando muito ouro (v 147) mas natildeo chega
a ser comparada a uma baacuterbara Ela ainda eacute porta-voz de valores helecircnicos reforccedilando a ideia
de que Androcircmaca eacute a baacuterbara (v 261) Ela afirma que ldquoNatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade gregardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) Ela ainda afirma que ldquoEsse eacute o
modo como os baacuterbaros satildeo pai dorme com filha filho com matildee e irmatilde com irmatildeo gente
proacutexima assassina gente proacutexima e natildeo tem lei para prevenir issordquo [τοιοῦτον πᾶν τὸ
βάρβαρον γένος πατήρ τε θυγατρὶ παῖς τε microητρὶ microείγνυται κόρη τ᾽ ἀδελφῷ διὰ
φόνου δ᾽ οἱ φίλτατοι χωροῦσι καὶ τῶνδ᾽ οὐδὲν ἐξείργει νόmicroος] (vv 173-176)
Percebamos a caracterizaccedilatildeo do baacuterbaro por ela nessa passagem ela critica aqueles
que mantecircm relaccedilotildees sexuais dentro do nuacutecleo familiar (pai filho filha matildee irmatildeos) e o
assassinato entre phiacuteltatoi31 O tema da trilogia tebana de Soacutefocles gira em torno disso
Eacutedipo se casa com a matildee e seus netos se matam entre si Eacute interessante o resgate desse tema
31 Essa palavra eacute de difiacutecil traduccedilatildeo Em sua raiz estaacute phiacutelos (amigo) e o Le Grand Bailly indica esse vocaacutebulo para que possamos ter uma traduccedilatildeo de phiacuteltatos Contudo essas palavras natildeo tecircm o mesmo significado haacute uma razatildeo para Euriacutepides escolher phiacuteltatos em vez de phiacutelos Contudo quando traduz Phiacuteltatos (nome proacuteprio) coloca que eacute literalmente ldquobem-amadordquo [bien-aimeacute] (BAILLY 2000 p 2083) Cremos que ldquogente proacuteximardquo eacute o que mais se aproxima do sentido dessa palavra visto que phiacutelos designa essa ideia satildeo pessoas que se conhecem que satildeo proacuteximas que se assassinam
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pois Tebas era inimiga de Atenas sendo a poacutelis que teria comeccedilado a Guerra do Peloponeso
ao invadir Plateia regiatildeo de domiacutenio ateniense Natildeo podemos afirmar que Euriacutepides tinha isso
em mente quando compocircs Androcircmaca pois natildeo podemos ir aleacutem do que a documentaccedilatildeo
nos mostra mas mostrar como sendo algo baacuterbaro hamartiacuteai de heroacuteis tebanos eacute no miacutenimo
curioso
Menelau nessa peccedila eacute quem recebe as criacuteticas mais duras vindas de Peleu durante
um agoacuten entre os dois personagens o anciatildeo o critica por ter deixado um friacutegio levar sua
esposa de sua proacutepria casa (vv 590-609) e afirma que os espartanos satildeo soacute bons de guerra
mesmo que em outras mateacuterias satildeo inferiores (vv 724-726) O homem espartano eacute
inferiorizado Em Orestes Menelau jaacute eacute comparado a um baacuterbaro Tiacutendaro o acusa de ter se
tornado um baacuterbaro por ter estado entre baacuterbaros (v 485) Em Androcircmaca os espartanos
ainda natildeo satildeo diretamente ldquobarbarizadosrdquo como acontece em Orestes aquela trageacutedia foi
encenada praticamente no iniacutecio da Guerra do Peloponeso enquanto esta foi no final quando
as inimizades se acirraram de tal maneira que os espartanos foram paulatinamente sendo
deixados de fora da fronteira eacutetnica helecircnica tornando-se Outros
Ainda em Orestes Piacutelades Electra e seu irmatildeo satildeo capazes de accedilotildees condenaacuteveis em
nome da vinganccedila Em Ifigecircnia em Aacuteulis vemos Agamemnon um grego levar sua filha ao
sacrifiacutecio e em As Troianas e Heacutecuba os gregos se comportam de maneira condenaacutevel em
relaccedilatildeo agraves cativas troianas piorando a situaccedilatildeo deploraacutevel em que jaacute se encontram com o fim
de Troia As rivalidades da Guerra do Peloponeso e a temaacutetica vencedorperdedor satildeo
expressas na produccedilatildeo textual da eacutepoca assim como hoje em dia eacute impossiacutevel ficar
indiferente aos acontecimentos que nos cercam Euriacutepides tambeacutem natildeo conseguiu fazecirc-lo em
sua eacutepoca A obras literaacuteria em si eacute um ldquoartefato fonomorfossintaacutetico eacute universo semacircntico eacute
campo sintomatoloacutegico da histoacuteria do social e da consciecircncia numa palavra eacute
presentificaccedilatildeo imageacutetica do homem em accedilatildeordquo (ANDRADE 1998 p 15)
Embora ambientadas em Troia essas trageacutedias traziam temas caros agrave realidade
ateniense Satildeo comuns peccedilas que se desenrolam em lugares estrangeiros (as quais Edith Hall
chama de ldquoroteiros de deslocamentordquo [displacement plots]) onde a etnicidade e os direitos de
cidadania satildeo contestados (HALL 1997 p 98) Os troianos como vimos eram um exemplo
de barbaacuterie mas frequentemente eram representados como viacutetimas dos gregos ganhando
uma certa ldquosimpatiardquo de Euriacutepides Hall acredita que ldquose a representaccedilatildeo traacutegica da Guerra de
Troia era para tornar os espartanos lsquobaacuterbarosrsquo e assimilaacute-los ao arqueacutetipo do persa arrogante
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entatildeo os lsquoateniensesrsquo desse mundo miacutetico contudo paradoxalmente pode ser a viacutetima troiana
da agressatildeo espartanardquo (HALL 1989 p 214)
A helenista Casey Dueacute coloca que a representaccedilatildeo dos troianos dessa maneira
ldquoconvida a audiecircncia a transcender as fronteiras eacutetnicas e poliacuteticas que dividem as naccedilotildees na
guerra Desse modo os atenienses podem explorar suas proacuteprias tristezas testemunhando o
sofrimento dos outros inclusive de suas proacuteprias viacutetimasrdquo (DUEacute 2006 p 116) Natildeo podemos
negar que a exposiccedilatildeo do sofrimento alheio eacute um apelativo para chamar a atenccedilatildeo acerca do
proacuteprio sofrimento ateniense a viuacuteva os oacuterfatildeos os prisioneiros de guerra satildeo categorias que
podem ser compartilhadas a qualquer momento pelos atenienses visto que se estaacute em uma
eacutepoca de guerra Do momento que ele mostra os malefiacutecios da guerra atraveacutes desses
personagens ele estaacute colocando sua visatildeo acerca dos prejuiacutezos desencadeados por ela bem
como questionando a legitimidade dela Embora natildeo participasse efusivamente da poliacutetica
como Eacutesquilo e Soacutefocles ele era uma pessoa de opiniatildeo na eacutepoca Se ele pudesse mostra-la
nos palcos um dos lugares para onde os olhares da poacutelis se voltavam ele poderia convidar as
pessoas que o assistiam a questionar tambeacutem essa guerra
Contudo acreditamos que a intenccedilatildeo natildeo era ldquouniversalizarrdquo o sofrimento nem colocar
o troiano como o ateniense em si mas mostrar que o espartano eacute tatildeo condenaacutevel que ateacute o
baacuterbaro era melhor Afirmamos isso porque o troiano embora visto dessa maneira piedosa
natildeo deixava de ser baacuterbaro devido agrave sua caracterizaccedilatildeo As fronteiras eacutetnicas como vimos
satildeo borradas em Euriacutepides mas natildeo eacute por caracterizar ldquomelhorrdquo o troiano mas por assimilar o
espartano (grego) a ele o exemplo de baacuterbaro Aleacutem disso como defendemos aqui essa
caracterizaccedilatildeo do troiano (que eacute compartilhada com o persa o egiacutepcio etc) jaacute vem dos
poemas homeacutericos
Geralmente quando falamos de identidadealteridade em Homero pensamos
primeiramente na Odisseia Esse poema eacute marcado pelo embate com Outros visto que
Odisseu viaja por terras longiacutenquas e agraves vezes hostis Eacute emblemaacutetico o encontro desse heroacutei
com o Ciacuteclope personagem-siacutentese daquilo que eacute natildeo ser grego Odisseu enquanto ldquoaedo de
si mesmordquo conta o que viu quando chegou agrave terra dos Ciacuteclopes
ἔθνα δανὴρ ἐνιαυε πελώριος ὅς ῥα τὰ microῆλα οἶος ποιmicroαίνεσκεν ἀπόπροθεν οὐδὲ microετ ἄλλους πωλεῖτ ἀλλ ἀπάνευθεν ἐὼν ἀθεmicroίστια ᾔδη καὶ γᾶρ θαῦmicro ἐτἐτυκτο πελώριον οὐδὲ ἐῴκει ἀνδρί γε σιτοφάγῳ ἀλλὰ ῥίῳ ὑλήεντι ὑψηλῶν ὀρέων ὅ τε φαίνεται οἶον ἀπἄλλων
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dormia um ente gigantesco que pascia a recircs sozinho nos confins O ser longiacutenquo natildeo convivia com ningueacutem sem lei um iacutempio Dissiacutemile de um homem comedor de patildeo o monstro colossal mais parecia o pico da cordilheira infinda sem vizinho agrave vista (HOMERO Odisseia IX vv 187-192)
Polifemo eacute descrito como um monstro eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o
ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute
ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) Os gregos se
definem pela publicidade de seus atos o homem grego eacute idealmente um homem puacuteblico
Todos veem o que todos fazem e todos vivem pela manutenccedilatildeo de sua comunidade Do
mesmo modo a lei noacutemos eacute o que diferencia o homem do animal que vive no acircmbito da
phyacutesis natureza e do aacutegrios selvagem
Odisseu adentra a caverna de Polifemo com seus companheiros e eles comeccedilam a
comer seu queijo (demonstrando ateacute pouca educaccedilatildeo visto que os hoacutespedes devem esperar
que o anfitriatildeo lhes ofereccedila algo para comer) Quando o Ciacuteclope chega Odisseu lhe faz uma
suacuteplica a qual eacute respondida com aspereza
νήπιός εἰς ὦ ξεῖν ἢ τηλόθεν εἰλήλουθας ὅς microε θεοὺς κέλεαι ἢ δειδίmicroεν ἢ αλέασθαι οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν οὐδὲ θεῶν microακάπων ἐπεὶ ἦ πολὺ φέρτεροί εἰmicroεν οὐδ ἂν ἐγὼ Διὸς ἔχθος ἀλεθάmicroενος πεφιδοίmicroην οὔτε σεῦ οὔθ ἑταρων εἰ microὴ θυmicroός microε κελεύοι
Ou eacutes um imbecil ou vens de longe estranho rogando que eu me dobre aos deuses ou que evite-os pois Zeus porta-broquel natildeo chega a preocupar Ciacuteclopes nem um outro oliacutempico somos bem mais fortes Natildeo te acolheria nem teus soacutecios para poupar-me da ira do Cronida O cor eacute meu tutor (HOMERO Odisseia IX vv 273-278)
O Ciacuteclope aqui desliza duas vezes primeiramente nega uma suacuteplica Isso gera um
estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) sendo que
ldquoa oposiccedilatildeo plural-singular litaiacute-aacutete lsquosuacuteplicas-perdiccedilatildeorsquo que parece indicar uma significativa
oposiccedilatildeo entre coletividade entendimento e reconhecimento de um lado e isolamento
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teimosia e cegueira de outro [devemos destacar]rdquo (MALTA 2006 p 58-9) Essa suacuteplica eacute a
do xeacutenos aquele que se hospeda em um lugar
Assim em segundo lugar ele nega um costume que factualmente natildeo eacute somente
grego (embora no plano do discurso ele tenha sido ldquoexclusivizadordquo pelos helenos ao longo do
tempo) mas eacute difundido por todo o Mediterracircneo a hospitalidade (xeacutenia) que eacute
[] um coacutedigo de conduta uma convenccedilatildeo natildeo escrita que atravessava as fronteiras do Mediterracircneo oriental Demonstrava-se por meio de uma etiqueta reconhecida em que havia troca de presentes e festivais e sua origem estava na xenuia da Idade do Bronze tardia [] que surge nas taacutebuas de Linear B [] A xenuia governaria na verdade o ingresso e a partida de visitantes estrangeiros aos palaacutecios do Peloponeso no seacuteculo XIII aC [suposto seacuteculo da ocorrecircncia da guerra de Troia] (HUGHES 2009 p 188)
Paacuteris tambeacutem transgride a xeacutenia configurando-se num Outro Tem-se admitido que os
troianos satildeo o Outro estrangeiro conjectura-se que Troia na verdade nunca fez parte da
Heacutelade e muitos autores se referem aos troianos como estrangeiros como se fosse algo oacutebvio
e natural Claude Mosseacute mostra que a Iliacuteada ldquoconserva a memoacuteria de uma grande expediccedilatildeo
dos Helenos da Europa [των Ελλήνων της Ευρώπης] contra Troiardquo (MOSSEacute 2000 p 10)
embora ldquohelenosrdquo designe apenas uma parte da Greacutecia em Homero (HALL 2002 p 129) e o
termo ldquoEuropardquo tivesse sido cunhado a posteriori (MITCHELL 2007 p 20) Hillary Mackie
crecirc que essa diferenciaccedilatildeo nesses termos se daacute porque eles representam duas culturas
diferentes no plano linguiacutestico (uma de elogio e outra de acusaccedilatildeo)
Kostas Vlassopoulos ao analisar a glocalizaccedilatildeo do natildeo-grego na Greacutecia ou seja os
modos pelos quais os gregos ldquoadotam e adaptamrdquo32 repertoacuterios estrangeiros ele fala que em
Homero jaacute acontecia isso visto que os heroacuteis troianos eram estrangeiros [foreigns]
(VLASSOPOULOS 2013 p 167) Para justificar essa ideia o historiador afirma que
[] no lado aqueu do Cataacutelogo das Naus enumera um sem-nuacutemero de comunidades de todo o mundo grego que manda contingentes a Troia sob a lideranccedila de Agamemnon enquanto o cataacutelogo dos aliados troianos enumera vaacuterias pessoas falando outras linguagens (allothrooi) [sic] que mandam suas tropas para ajudar os troianos incluindo os liacutecios os caacuterios os traacutecios os paflagocircnios os friacutegios os miacutesios e os peocircnios (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
32 Essa eacute uma expressatildeo muito utilizada por Kostas Vlassopoulos ao longo de seu livro
46
Os caacuterios satildeo denominados barbaroacutephōnos33 (Iliacuteada II v 867) natildeo os troianos ldquoMas
outras satildeo as liacutenguas dos outros homens que se espalham ao longerdquo [ἄλλη δrsquo ἄλλων
γλῶσσα πολυσπερέων ἀνθρώπων] (II v 804) no exeacutercito troiano mas isso natildeo significa
que o troiano esteja falando outra liacutengua seus aliados eram de regiotildees natildeo-gregas
Discordamos dessas posiccedilotildees natildeo haacute na Iliacuteada nenhuma referecircncia ao caraacuteter
estrangeiro de Troia Contudo tambeacutem natildeo eacute adequado falarmos que os troianos eram iguais
aos gregos como ressalta Jacqueline de Romilly em seu Pourquoi la Gregravece ldquoentre os dois
[troianos e aqueus] como Zeus mesmo Homero tem a balanccedila igual [] Homero ignora tal
oposiccedilatildeo [Europa vesus Aacutesia]rdquo (ROMILLY 2013 p 38 e 39) Ela afirma que Homero natildeo os
diferencia porque se tratam de humanos guerreando e os valores da humanidade se
sobrepotildeem aos do grupo eacutetnico ldquoele natildeo marca as diferenccedilas entre indiviacuteduos e tampouco
entre os povos Do lado troiano como do lado aqueu satildeo lsquomortaisrsquo que se afrontamrdquo
(ROMILLY 2013 p 37)
Antonio Mario Battegazzore mostra que ldquoentre gregos e troianos estatildeo faltando
elementos mesmo que miacutenimos de distinccedilatildeo a alimentaccedilatildeo e o vestiaacuterio bem como os
princiacutepios morais satildeo idecircnticos para todos os cultos as habitaccedilotildees o modo de combater
valem para um como para outrordquo (1996 p 17) Ele concorda com Edith Hall ao dizer que natildeo
existe uma distinccedilatildeo entre Europa e Aacutesia na Iliacuteada (HALL 1989 p 39 BATTEGAZZORE
1996 p 17) De fato Homero natildeo traz esses termos geograacuteficos mas natildeo podemos dizer que
natildeo exista diferenciaccedilatildeo alguma como John Heath corrobora
Os troianos de Homero satildeo notoriamente difiacuteceis de ser distinguidos dos gregos eles cultuam os mesmos deuses lutam com taacuteticas idecircnticas e compartilham formas equivalentes de habitaccedilatildeo comida vestimenta funerais e parentesco Mesmo as diferenccedilas ndash poligamia oriental por exemplo ndash satildeo minimizadas Os principais protagonistas da guerra um da Europa e outro da Aacutesia ateacute falam a mesma liacutengua Os troianos natildeo aparentam ao menos para muitos leitores modernos mostrar os principais defeitos da psicologia do baacuterbaro que veio a caracterizaacute-los no quinto seacuteculo tirania luxuacuteria imoderada emocionalismo irrestrito afeminaccedilatildeo crueldade e servilidade De fato Homero eacute frequentemente admirado hoje em dia por sua descriccedilatildeo equacircnime de gregos e natildeo-gregos especialmente quando os eacutepicos satildeo comparados com a literatura ateniense da eacutepoca poacutes-Guerras Greco-Peacutersicas Essa interpretaccedilatildeo positiva dos troianos era uma exceccedilatildeo na antiguidade contudo e ainda haacute criacuteticos que veem um retrato negativo dos troianos como uma raccedila na Iliacuteada
33 Ele eacute composto de duas palavras o substantivo phōnḗ ldquovozrdquo e a onomatopeia bar bar analoacutegico ao nosso ldquoblaacute blaacuterdquo que designa uma linguagem incompreensiacutevel Assim o barbaroacutephōnos eacute aquele de quem natildeo se compreende a fala Desse modo se dos caacuterios soacute se ouve ldquobar barrdquo isso significa que eles natildeo falam o grego ou o falam mal (JANSE 2002 p 334-5) Como a liacutengua eacute um dos traccedilos marcantes de uma cultura (AUGEacute 1998 p 24-5) desconhecer o grego significa desconhecer a cultura grega o termo barbarophoacutenos acaba designando um povo estrangeiro No sumeacuterio e no babilocircnio jaacute existia uma palavra que utiliza esse recurso onomatopaico para definir o estrangeiro barbaru J Porkony coloca que algo semelhante ocorre no latim com o termo balbutio e no inglecircs com o termo baby satildeo palavras compostas de sons repetitivos (HALL 1989 p 4 n 5)
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Essa leitura estaacute errada eu acredito e entende mal tanto as convenccedilotildees eacutepicas e as maiores preocupaccedilotildees poeacuteticas de Homero (HEATH 2005 p 531)
Os troianos satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo de conduta dos gregos contudo eles
fazem um uso diferente de alguns aspectos desde Se um aspecto existe em Homero (como a
poligamia de Priacuteamo a maioria dos arqueiros no exeacutercito troiano etc) ele natildeo deve ser jamais
minimizado tem um porquecirc de o poeta colocar aquilo ali e simples explicaccedilotildees como ldquoeacute para
preencher a meacutetricardquo ou ldquoeacute uma interpolaccedilatildeo posteriorrdquo natildeo nos eacute suficiente para
compreender uma produccedilatildeo tatildeo complexa
De fato Homero natildeo distingue os troianos de modo a caracterizaacute-los como baacuterbaros
essa eacute uma denominaccedilatildeo inexistente nos poemas embora exista a palavra que lhe tenha dado
origem (barbaroacutephōnos) Contudo aqueus e troianos natildeo satildeo iguais se dentro de um mesmo
exeacutercito temos heroacuteis diferentes por que de um exeacutercito para outro natildeo haveria mudanccedilas
Os habitantes de Troia satildeo caracterizados de modo a serem diferenciados dos aqueus
Defendemos que os troianos satildeo um outro grupo eacutetnico eles satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo
de conduta grego mas o uso que eles fazem desses costumes eacute diferente E como veremos no
capiacutetulo seguinte muitos dos elementos de caracterizaccedilatildeo dos troianos sobretudo a de Paacuteris
seratildeo utilizados pela trageacutedia para caracterizar os baacuterbaros Um grupo eacutetnico eacute definido natildeo na
total mas na sutil diferenccedila
A fronteira eacutetnica depende da cultura utiliza a cultura mas natildeo eacute idecircntica a esta uacuteltima tomada em seu conjunto Dois grupos sociais vizinhos muito parecidos culturalmente podem chegar a considerar-se completamente diferentes e excludentes do ponto de vista eacutetnico opondo-se com base em um uacutenico elemento cultural isolado tomado como criteacuterio (CARDOSO 2005 p 11-2)
Jonathan Hall natildeo crecirc contudo que possa haver etnicidade na Iliacuteada
[hellip] a evidecircncia de uma diferenciaccedilatildeo eacutetnica de fato entre gregos e troianos na Iliacuteada natildeo eacute totalmente convincente Os troianos usam a onomaacutestica grega cultuam os mesmos deuses que os gregos possuem a mesma organizaccedilatildeo ciacutevica dos gregose satildeo retratados pelo poeta de forma natildeo menos (e talvez ateacute mais) simpaacutetica que os gregos Eacute admitivelmente verdade que Troia eacute retratada como extraordinariamente abastada e que alguns de seus ocupantes ndash notavelmente Paacuteris ndash adota uma vida de luxuacuteria doentia Tambeacutem haacute indiacutecios de que os troianos satildeo retratados como um tanto excitaacuteveis e um pouco desordenadamente em comparaccedilatildeo com o campo grego (HALL 2002 p 118 ndash grifos do autor)
O discurso eacute o mesmo os troianos satildeo quase iguais aos aqueus e esse ldquoquaserdquo natildeo eacute
suficiente para haver uma diferenciaccedilatildeo de fato entre os dois exeacutercitos Lynette Mitchell
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escreve o mesmo ldquoos aqueus natildeo satildeo qualitativamente diferenciados dos troianosrdquo
(MITCHELL 2007 p 44) mas afirma que os gregos jaacute tinham uma noccedilatildeo do que natildeo era
grego e do que era colocando mais uma vez na Odisseia sua anaacutelise acerca disso
(MITCHELL 2007 p 49-50)
Kostas Vlassopoulos afirma que existe uma diferenciaccedilatildeo EuOutro em Homero ldquoos
temas e motivos que mais tarde se tornaratildeo o instrumental [stock-in-trade] das descriccedilotildees
gregas do Outro estavam claramente presente na eacutepoca de Homero e tambeacutem estatildeo presentes
no poema [Iliacuteada]rdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 171) Contudo retorna agrave questatildeo dos
costumes iguais ldquoaqueus e troianos satildeo retratados cultuando os mesmos deuses falando a
mesma liacutengua aceitando o mesmo coacutedigo moral e valores sociaisrdquo (VLASSOPOULOS 2013
p 171)
No tocante aos costumes poderiacuteamos argumentar com base na proacutepria obra de
Vlassopoulos que os valores difundidos na Iliacuteada e na Odisseia natildeo eram exclusivos dos
gregos mas eram universais Esse autor afirma que ldquoMas como a Iliacuteada o poeta da Odisseia
natildeo estaacute geralmente interessado em explorar as diferenccedilas culturais e eacutetnicas em vez disso o
poema opta por salientar instituiccedilotildees como a troca de presentes e hospitalidade [guest-
friendship] que juntam pessoas de diferentes lugaresrdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 172)
Concordamos em parte tanto eram valores universais que ateacute hoje a Iliacuteada e a
Odisseia satildeo atuais sendo adaptadas sobretudo para o puacuteblico infanto-juvenil nossos paicircdes
contemporacircneos Na Iliacuteada os costumes satildeo os mesmos mas o uso que os troianos fazem de
alguns deles eacute diferenciada Algo parecido acontece na Canccedilatildeo de Rolando (XI dC) por
exemplo o costume de nomear as espadas eacute inerente ao francos As espadas quase que tecircm
uma anima proacutepria Rolando conversa com sua Durindana e quando estaacute a ponto de morrer
tenta quebra-la para que ningueacutem mais a possua mas natildeo obteacutem ecircxito visto que ela natildeo quer
se quebrar (vv 2338-2354) Marcuacutelio emir muccedilulmano (inimigo eacutepico dos francos) nomeia
natildeo soacute sua espada (Preciosa) mas tambeacutem sua lanccedila (Maltet) O exagero (nomear espada e
lanccedila animando em demasia os objetos) eacute o que diferencia o muccedilulmano (o Outro) do franco
Assim o casamento eacute comum a gregos e troianos mas Priacuteamo (rei troiano) eacute poliacutegamo
A assembleia eacute comum a gregos e troianos mas o modo de convoca-la e conduzi-la eacute
diferenciado sendo simplificado do lado troiano (MACKIE 1996 p 22) O cataacutelogo das
naus (Canto II) nomeia tanto gregos quanto troianos que foram para a guerra mas haacute mais
nomes especificados do lado grego do que no troiano o cataacutelogo troiano eacute bem mais
simplificado Aleacutem disso alguns costumes (como a xeacutenia) no plano do discurso foram
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colocados como quase exclusivamente gregos ao longo do tempo sobretudo apoacutes as Guerras
Greco-Peacutersicas E eacute tambeacutem no plano do discurso que vemos algumas diferenccedilas entre os
troianos e os aqueus aqueles tecircm um modo de falar diferente como enfatiza Hilary Mackie
bem como os siacutemiles utilizados por Homero na composiccedilatildeo dos troianos revelam que em
batalha eles satildeo os animais caccedilados natildeo os caccediladores eles estatildeo em desvantagem na Iliacuteada
Os troianos portanto satildeo um Outro mas natildeo quer dizer que eles satildeo o Outro
estrangeiro que natildeo eacute grego Eles compartilham de um mesmo coacutedigo de conduta mas o
reapropriam constituindo-se de um outro grupo eacutetnico A ideia de que os troianos satildeo
estrangeiros surge a posteriori como vamos observar nos proacuteximos capiacutetulos sobretudo a
partir da caracterizaccedilatildeo de Paacuteris
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CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES
ldquoPaacuteris na Iliacuteada tanto heroacutei quanto arqueiro natildeo eacute nem um homem completo nem um guerreiro completordquo
(LISSARAGUE 2002 p 115)
Assim Paacuteris eacute visto pelo historiador francecircs Franccedilois Lissarague nem um homem
nem um guerreiro completo Eacute comum encontrarmos designaccedilotildees natildeo tatildeo heroicas a Paacuteris
vindo de helenistas contemporacircneos Ele eacute geralmente visto pelos autores que escrevem sobre
a Guerra de Troia como ldquovaidosordquo ldquofriacutevolordquo ldquococircmicordquo ldquoluxurianterdquo ldquogeralmente uma figura
natildeo heroicardquo (RUTHERFORD 1996 p 33 e 83) ldquoafeminadordquo ldquofrouxordquo (LORAUX 1989 p
93) ldquoplayboyrdquo ldquopateacuteticordquo (HUGHES 2009 219) ldquoegoiacutestardquo ldquosuperficialmente atrativordquo
(SCHEIN 2010 p 22 e 24) ldquotolordquo (CARLIER 2008 p 100) ldquonatildeo heroicordquo ldquoo mais
desmerecido dos filhos de Priacuteamordquo (REDFIELD 1994 p 113 e 114) ldquoalmofadinhardquo [fop]
(GRIFFIN 1983 p 8) ldquoantagonista [] de Aquilesrdquo (NAGY 1999 p 61)
ldquofujatildeordquoldquodesertorrdquo ldquocovarderdquo (AUBRETON 19561968 p 168202) ou ldquoidiotardquo (CLARKE
apud SUTER 1984 p 7)
No entanto isso natildeo acontece apenas com os autores contemporacircneos tanto Homero
como Euriacutepides trazem um Paacuteris constantemente sendo rechaccedilado O motivo principal eacute o fato
de ele ter causado a Guerra de Troia mas Homero traz aleacutem disso a ideia dele natildeo ser um
guerreiro tatildeo bom assim o que gera reprimendas tambeacutem Nesse capiacutetulo vamos ver como
nosso heroacutei eacute visto como um causador de males dentro desse espaccedilo discursivo e como os
outros personagens reagem a essa sua faceta Tanto a eacutepica quanto a trageacutedia trazem essa
ideia acerca desse personagem e haacute uma relaccedilatildeo entre ela e nossa comparaacutevel pois eacute
importante para definir alguns criteacuterios de etnicidade Entretanto em Homero ainda natildeo haacute a
ideia de Paacuteris como um baacuterbaros como jaacute haacute em Euriacutepides ele eacute algueacutem a quem se pode
causar vergonha34 (no bojo da ideia defendida por Ann Suter de que o discurso que cerca
Paacuteris tem a ver com o discurso iacircmbico)
34 Segundo E R Dodds a Greacutecia possui uma cultura de vergonha [shame-culture] natildeo uma cultura de culpa [guilt-culture] esta tem mais a ver com o que o indiviacuteduo pensa de si mesmo natildeo do que os outros pensam dele Assim dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode causar vergonha eacute mais apropriado do que dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode culpar Nesse ponto discordamos da terminologia utilizada por Ann Suter para tratar do personagem ldquoblamerdquo (culpa) natildeo eacute cabiacutevel para designar o discurso iacircmbico sendo preferiacutevel pois ldquoacusatoacuteriordquo
51
Na Iliacuteada quando Paacuteris recua ante a fuacuteria de Menelau Heitor o repreende (III vv 39-
45) Quatro qualificaccedilotildees satildeo utilizadas pelo poeta atraveacutes das palavras do seu irmatildeo para
nosso heroacutei dyacutesparis (literalmente ldquodis-Paacuterisrdquo) eicircdos aacuteriste (ldquomelhor formardquo) gynaimaneacutes
(enlouquecedor de mulheres) e ēperopeutaacute (enganador) Dyacutesparis eacute uma qualificaccedilatildeo
interessante ela eacute composta de um prefixo e um substantivo dyacutes- eacute um prefixo de negaccedilatildeo e
Paacuteris o proacuteprio nome do heroacutei aqui tratado Pode ter dado origem ao termo latino dispare
que por sua vez originou nosso ldquodiacutesparrdquo (diferente dessemelhante) ldquoPaacuteris funestordquo eacute a
traduccedilatildeo que Carlos Alberto Nunes daacute a esse termo a qual eacute adequada ao seu significado
visto que essa expressatildeo denota as contrariedades do personagem e os maus pressaacutegios que
ocorreram antes de seu nascimento Embora menos proacutexima ao sentido original a traduccedilatildeo de
Haroldo de Campos manteacutem a alusatildeo jogando com o ritmo das palavras ldquoPaacuteris mal-paridordquo
Eicircdos (forma) aacuteriste (de aacuteristos ldquomelhorrdquo) denota a beleza fiacutesica de Paacuteris a qual
deveria ser pressuposto segundo Heitor para seu bom desempenho no campo de batalha por
ser o mais belo troiano deveria ser tambeacutem o melhor guerreiro Contudo essa denominaccedilatildeo
tem uma peculiaridade esse epiacuteteto soacute eacute utilizado para mulheres (SUTER 1984 p 72) De
homens apenas Heitor e Paacuteris satildeo denominados dessa maneira e essa foacutermula soacute aparece
quando um dos dois faz algo indigno de sua estirpe no acircmbito militar Por estar no vocativo (o
nominativo eacute eidos aacuteristos) eacute designativo de um insulto
Em Euriacutepides haacute algumas alusotildees agrave beleza fiacutesica de Paacuteris Entretanto as palavras
usadas satildeo diferentes em Alexandre (fr 61d v 8) o coro diz que Paacuteris possui ldquoformas que
se diferem dos outrosrdquo (morphecirc diapher[ ) Eacute uma designaccedilatildeo menos especiacutefica do que ldquoeicircdos
aacuteristerdquo utilizada por Homero Aleacutem disso sua beleza aparece intrinsecamente ligada ao
excesso de ouro agraves roupas que ele usa Eacute uma beleza acessoacuteria externa (literalmente)
baacuterbara que causou a desgraccedila de muitos Em Euriacutepides e em Homero sua beleza se liga a)
ao fato de ele pertencer a uma elite (Paacuteris eacute diferente das pessoas comuns por isso o coro de
Alexandre frisa essa ideia da beleza como distinccedilatildeo social e eacute a partir dela e de suas faccedilanhas
incompatiacuteveis com um douacutelos ndash escravo ndash que se desconfiaraacute da origem do pastor que ganhou
os jogos) e b) agrave ruiacutena que ela causou (Heacutecuba na peccedila homocircnima de Euriacutepides deixa claro
que Helena se deslumbrou com a riqueza e a beleza de Paacuteris)
Nosso heroacutei eacute um gynaimaneacutes na Iliacuteada Essa eacute uma qualificaccedilatildeo formada por dois
substantivos gynḗ (mulher) e maacutenē (loucura) palavra que deriva do verbo maiacutenomai (desejar
ardorosamente loucamente ndash ISIDRO PEREIRA 1951 p 113 ldquoser louco porrdquo [esser pazzo]
ndash NAZARI 1999 p 223 ficardeixar [rendre] louco ndash BAILLY 2000 p 1217 ndash ver microαίνω)
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Anatoille Bailly traduz essa palavra por ldquofou des femmesrdquo (louco por mulheres) (2000 p 422
ndash ver γυναικοmicroανής) Carlos Alberto Nunes como vimos acima traduz como ldquosedutor de
mulheresrdquo Haroldo de Campos por ldquomulherengordquo
Ann Suter nota que esse mesmo epiacuteteto eacute utilizado para designar Dionisos no Hino a
essa divindade (1984 p 74) traduzindo-o como ldquohe who drives women madrdquo (ldquoaquele que
deixa as mulheres loucasrdquo) e criticando aqueles que traduzem a palavra por ldquowomen crazyrdquo
(ldquolouco por mulheresrdquo) Assim enquanto Carlos Alberto Nunes e Ann Suter partem para uma
traduccedilatildeo que denota o aspecto ativo do adjetivo (Paacuteris como agente da
seduccedilatildeoenlouquecimento) Anatoille Bailly e Haroldo de Campos optam por um aspecto
passivo (Paacuteris como viacutetima dessa loucura) ldquoDeixar louco as mulheresrdquo ou ldquoser louco por
mulheresrdquo natildeo altera enfim a ideia de que Paacuteris eacute um homem relacionado a essa esfera da
seduccedilatildeo do amor da paixatildeo
Ēperopeutaacute natildeo eacute traduzido por Carlos Alberto Nunes ele une esse vocaacutebulo a
gynaimaneacutes sob a denominaccedilatildeo de ldquosedutor de mulheresrdquo Haroldo de Campos traduz como
ldquoimpostorrdquo denotando sua acepccedilatildeo ligada agrave enganaccedilatildeo O Le grand Bailly mostra duas
traduccedilotildees ligadas ao verbo ēperopeuacuteō ldquoenganadorrdquo e ldquosedutorrdquo (BAILLY 2000 906) Ann
Suter evidencia que esse epiacuteteto eacute utilizado tambeacutem na tradiccedilatildeo poeacutetica para Hermes e
Prometeu dois dos maiores enganadores da mitologia (1984 p 75-76) sendo ldquoenganadorrdquo
sua melhor traduccedilatildeo Esse epiacuteteto dialoga entatildeo diretamente com theoeidḗs epiacuteteto utilizado
para Paacuteris em vaacuterios cantos no que toca a esfera da dissimulaccedilatildeo
Theoeidḗs ndash que significa literalmente ldquode forma divinardquo (theoiacute ndash deuses eicircdos ndash
forma exterior aspecto ndash BAILLY 2000 p 584 NAZARI 1999 p 146) ndash denota a escassa
relaccedilatildeo de Paacuteris com o ambiente beacutelico Theoeidḗs acompanha mais Paacuteris que outros
personagens Eacute como o ldquode peacutes velozesrdquo de Aquiles ou o ldquode muitos ardisrdquo de Odisseu
acaba se transformando em um epiacuteteto quase que exclusivo para o heroacutei Esse eacute um adjetivo
que denota a beleza fiacutesica de um personagem (FONTES 2001 p 95) Ann Suter chama a
atenccedilatildeo para a proacutepria etimologia da palavra da sua formaccedilatildeo ter a ldquoforma de um deusrdquo eacute
problemaacutetico visto que os deuses sempre se disfarccedilam Assim ser theoeidḗs eacute ser de certo
modo falso vocecirc aparenta ser uma coisa que natildeo eacute (SUTER 1984 p 63)
Aleacutem disso segundo ainda Ann Suter theoeidḗs eacute um epiacuteteto natildeo-beacutelico
Aqueles aos quais esse epiacuteteto eacute aplicado com alguma frequecircncia pois satildeo notaacuteveis por serem todos homens mas nenhum guerreiro Teocliacutemeno o vidente Telecircmaco muito jovem para lutar Priacuteamo muito velho para lutar De fato os quarto
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pretendentes e Alciacutenoo compartilham tambeacutem essa caracteriacutestica comum a esse grupo (SUTER 1983 p 60-1)
Natildeo soacute esse epiacuteteto se repete frequentemente mas tambeacutem as quatro palavras que
analisamos elas fazem parte de uma foacutermula que aparece novamente no Canto XIII
(Δύσπαρι εἶδος ἄριστε γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ) e esta tem um tom acusador Satildeo palavras
que Heitor dirige a Paacuteris a fim de censuraacute-lo de constrangecirc-lo e de atraveacutes da neacutemesis35
fazer com que ele sinta vergonha de seu comportamento Os heroacuteis vivem sob a sombra do
aidṓs comumente traduzido como ldquovergonhardquo ou ldquorespeitordquo mas que de fato ldquoeacute o medo da
desaprovaccedilatildeo ou da condenaccedilatildeo pelos outros que faz um homem ficar e lutar bravamenterdquo
(SCHEIN 2010 p 177) Essa noccedilatildeo de aidṓs corrobora o caraacuteter agoniacutestico da sociedade
helecircnica se configura numa ldquovulnerabilidade agrave norma ideal expressa pela sociedaderdquo
(REDFIELD 1994 p 116) e faz parte do desenvolvimento da poesia iacircmbica (acusatoacuteria)
Heitor fala em sua reprimenda a Paacuteris no Canto III que o exeacutercito inimigo ri da
atitude de Paacuteris (v 43) haacute poucos risos na Iliacuteada como observou James M Redfield e
segundo esse autor em todas as situaccedilotildees ele ldquoeacute a marca da liberaccedilatildeo da tensatildeo socialrdquo
(REDFIELD 1994 p 286) A seguir Heitor continua sua reprimenda lembrando a Paacuteris que
foi ele quem causou a guerra devendo pois ele retornar ao campo de batalha para enfrentar
Menelau
O heroacutei ainda lembra o irmatildeo de que ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a
beleza natildeo te valeram de nada ao te vires lanccedilado na poeirardquo [οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃ κίθαρις
τά τε δῶρ᾽ Ἀφροδίτης ἥ τε κόmicroη τό τε εἶδος ὅτ᾽ ἐν κονίῃσι microιγείης] (III vv 46-55) Os
cabelos de Paacuteris (koacutemē) a ciacutetara (kiacutetharis) ndash instrumento musical ndash os dons de Afrodite (dōra
Aphrodiacutetēs) ndash relacionados ao amor e agrave beleza ndash e a sua forma fiacutesica (eicircdos) natildeo lhe servem
para o campo de batalha ali eacute o domiacutenio da forccedila (biacuteē) da coragem (alkḗ) natildeo da muacutesica da
beleza e do amor Aqui tambeacutem Paacuteris serve de khaacuterma um motivo de divertimento para os
outros Eacute algueacutem acusaacutevel vergonhoso que necessita ser repreendido com palavras
Mesmo Helena natildeo fica satisfeita com as atitudes de Paacuteris primeiramente recusa-se a
ir encontraacute-lo dizendo agrave Afrodite (que estava disfarccedilada) ldquoNatildeo voltarei para o taacutelamo pois
vergonhoso seria participar-lhe do leito as Troianas sem duacutevida haviam de murmurar jaacute
sobejam as dores que na alma suportordquo [κεῖσε δ᾽ ἐγὼν οὐκ εἶmicroι νεmicroεσσητὸν δέ κεν εἴη 35 Neacutemesis ldquoeacute uma ira mediada pelo sentido social um homem natildeo somente sente isso mas se sente correto em sentir issordquo (REDFIELD 1994 p 117) Ainda segundo esse autor neacutemesis se contrapotildee ao aidṓs os dois se relacionam agrave censura mas este seria uma censura interna (vocecirc vecirc que estaacute errado sente vergonha de si mesmo e faz o certo) e aquele uma externa (algueacutem vecirc que vocecirc estaacute fazendo algo errado censura vocecirc sente vergonha e faz o certo)
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κείνου πορσανέουσα λέχος Τρῳαὶ δέ micro᾽ ὀπίσσω πᾶσαι microωmicroήσονται ἔχω δ᾽ ἄχε᾽
ἄκριτα θυmicroῷ] (III vv 410-412 ndash grifos nossos) Helena teme a neacutemesis das troianas mas o
medo de desagradar aos deuses eacute maior Afrodite lhe ameaccedila e ela acaba indo encontrando-se
com Paacuteris (III vv 413-420)
Ao se defrontar com nosso heroacutei Helena assim como Heitor o reprova por ter
voltado para o palaacutecio e o instiga a retornar para combater Menelau
ἀλλ᾽ ἴθι νῦν προκάλεσσαι ἀρηΐφιλον Μενέλαον ἐξαῦτις microαχέσασθαι ἐναντίον ἀλλά σ᾽ ἔγωγε παύεσθαι κέλοmicroαι microηδὲ ξανθῷ Μενελάῳ ἀντίβιον πόλεmicroον πολεmicroίζειν ἠδὲ microάχεσθαι ἀφραδέως microή πως τάχ᾽ ὑπ᾽ αὐτοῦ δουρὶ δαmicroήῃς Vai provocar entatildeo logo o disciacutepulo de Ares potente para outra vez vos medirdes em duelo Aliaacutes aconselho-te a que natildeo faccedilas tamanha tolice pensando que podes com o louro heroacutei Menelau contender numa luta corpoacuterea que em pouco tempo sua lanccedila potente haacute de ao solo postrar-te (III vv 428-436)
Na Iliacuteada Helena eacute a uacutenica mulher mortal que repreende um homem um anḗr sendo
o homem repreendido justamente Paacuteris Isso seria um absurdo temos a ideia por causa de
uma construccedilatildeo historiograacutefica simplista e de uma documentaccedilatildeo oriunda em sua maioria do
Periacuteodo Claacutessico Ateniense de que a mulher natildeo possuiacutea voz na Greacutecia Antiga (LESSA
2010 p 15-6) Contudo a proacutepria documentaccedilatildeo do Periacuteodo Claacutessico nos mostra ldquobrechasrdquo
nesse ideal de comportamento as mulheres natildeo eram completamente passivas
A trageacutedia nesse sentido exerce um papel importante para que possamos estudar esse
aspecto Em Euriacutepides Helena Androcircmaca e Ifigecircnia culpam Paacuteris pela situaccedilatildeo em que se
encontram a elas eacute dada voz para expressar essa ideia Segundo o historiador Faacutebio de Souza
Lessa
as trageacutedias [] satildeo suportes de informaccedilatildeo importantes para a compreensatildeo da dinacircmica poliacuteade e em especial do comportamento feminino isto porque em cena a poacutelis refletia sobre si mesma havendo uma abordagem de problemaacuteticas totalmente atuais na Atenas do seacuteculo V aleacutem de permitirem ascender as contradiccedilotildees inerentes agrave consolidaccedilatildeo da mulher na poacutelis democraacutetica [] Para Richard Buxton a trageacutedia eacute o lugar do conflito das tensotildees e rupturas sendo as mulhetes neste espaccedilo agressivas dominadoras ativas e seres visiacuteveis (LESSA 2004 p 80)
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As trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides natildeo tratam da Guerra de Troia em si36 ou
elas se passam antes (como Alexandre) ou depois dela (como o resto de nossa
documentaccedilatildeo) Eacute nas trageacutedias que se passam depois da guerra que as mulheres em questatildeo
enunciam essa responsabilidade do Paacuteris pelos seus destinos e a voz feminina aqui eacute
imprescindiacutevel satildeo as mulheres e as crianccedilas que mais sofrem com a guerra Elas ficam sem
seus esposos e pais tornam-se cativas do inimigo veem suas vidas ruiacuterem Antes da
encenaccedilatildeo das trageacutedias algumas cerimocircnias se desenrolavam como a apresentaccedilatildeo dos
tesouros da cidade e dos oacuterfatildeos de guerra as crianccedilas cujos pais deram a vida por Atenas
eram sustentadas pela poacutelis e eles deveriam continuar ndash pelos seus pais pelo seu nome e pela
sua cidade ndash a lutar
Sendo a Iliacuteada um texto que circulava bastante no Periacuteodo Claacutessico (e congelado na
escrita durante ele) por ser utilizado para a paideiacutea o fato de Helena reprimir Paacuteris eacute
significativo Tanto esse poema quanto a Odisseia tambeacutem trazem um modelo feminino a
priori muito bem delimitado e fechado que muito influenciou na proacutepria construccedilatildeo do
modelo claacutessico Peneacutelope eacute o grande exemplo a mulher tecelatilde fiel ao marido submissa ao
filho homem que utiliza a meacutetis para urdir literalmente a trama que lhe garante os vinte anos
de espera por Odisseu
Em Homero a representaccedilatildeo de Helena denota algo que acontece tambeacutem no Periacuteodo
Claacutessico ldquoa sociedade poliacuteade buscou manter as mulheres distanciadas da esfera da accedilatildeo
masculina mas ao memso tempo concedeu-as a funccedilatildeo de policiar as accedilotildees dos cidadatildeos isto
eacute de vigiar o comportamento masculinordquo (LESSA 2004 p 77 ndash grifos do autor) Helena
nesse excerto do poema homeacuterico eacute a responsaacutevel por vigiar o comportamento de Paacuteris
reprimindo-o O helenista australiano Christopher Ransom crecirc que Paacuteris natildeo se deixa afetar
pela neacutemesis nem pelo aidṓs (RANSOM 2011 p 55) mas eacute atraveacutes da neacutemesis de Helena e
de Heitor que o heroacutei sentiria aidṓs pelos seus atos e voltaria para a guerra o que invalida sua
afirmaccedilatildeo Entretanto essa reprimenda natildeo surte efeito de pronto somente no Canto VI o
heroacutei retornaraacute para a guerra (e dela natildeo se ausentaraacute mais)
Paacuteris eacute mostrado frequentemente tambeacutem como causador de grande desgraccedila para os
combatentes tanto em Euriacutepides quanto em Homero No Canto XXII da Iliacuteada quando
Heitor diz que natildeo vai recuar da luta singular com Aquiles dando Helena e os bens do palaacutecio
ldquoque o divo Paacuteris nas cocircncavas naus para Troacuteia nos trouxe ndash causa que foi inicial desta
36 Agrave exceccedilatildeo de Rhesos a qual tem a autoria de Euriacutepides questionada e natildeo incluiacutemos em nosso corpus documental
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guerra funestardquo [microάλ᾽ ὅσσά τ᾽ Ἀλέξανδρος κοίλῃς ἐνὶ νηυσὶν ἠγάγετο Τροίηνδ᾽ ἥ τ᾽
ἔπλετο νείκεος ἀρχή] (vv 115-116 ndash grifos nossos) A ideia de que Paacuteris foi o princiacutepio de
tudo tambeacutem se encontra presente no Canto V quando eacute mencionado relata-se que Feacutereclo
artiacutefice foi quem fabricou os navios nos quais Paacuteris foi atraacutes de Helena ldquoque tinham sido o
princiacutepio da grande desgraccedila dos Teucros e dele proacuteprio por ter desprezado os oraacutecrsquolos
divinosrdquo [ἀρχεκάκους37 αἳ πᾶσι κακὸν Τρώεσσι γένοντο οἷ τ᾽ αὐτῷ ἐπεὶ οὔ τι θεῶν ἐκ
θέσφατα ᾔδη] (V vv 63-64 ndash grifos nossos) Aqui a arkhekaacutekos dos troianos foi a proacutepria
partida de Paacuteris que eacute denominado como causador de uma meacutega pecircma aos seus conterracircneos
A expressatildeo se repete no Canto VI quando Heitor diz ldquoUm fautor de desgraccedilas fez
nascer o Olimpo para o magnacircnimo Priacuteamo os filhos e o povo Troiano Se concedido me
fosse assistir-lhe agrave descida para o Hades esquecer-se-ia minha alma por certo dos males
presentesrdquo [microέγα γάρ microιν Ὀλύmicroπιος ἔτρεφε πῆmicroα Τρωσί τε καὶ Πριάmicroῳ microεγαλήτορι
τοῖό τε παισίν εἰ κεῖνόν γε ἴδοιmicroι κατελθόντ᾽ Ἄϊδος εἴσω φαίην κε φρέν᾽ ἀτέρπου
ὀϊζύος ἐκλελαθέσθαι] (VI vv 280-285 ndash grifos nossos) Aqui a alusatildeo a Paacuteris como
causador da guerra de grandes desgraccedilas (meacutega pecircma) aparece novamente Ainda nesse
Canto quando Heitor repreende Paacuteris essa ideia tambeacutem se repete e o heroacutei acrescenta que
ldquoTu proacuteprio quiccedilaacute te indignaras caso encontrasse algueacutem que fugisse agrave defesa da paacutetria [σὺ
δ᾽ ἂν microαχέσαιο καὶ ἄλλῳ ὅν τινά που microεθιέντα ἴδοις στυγεροῦ πολέmicroοιο] (VI vv 329-
330)
Durante essa reprimenda (VI vv 326-342) Paacuteris eacute interpelado por Heitor como
daimoacutenirsquo (vocativo masculino singular de daiacutemōn) palavra que designa uma relaccedilatildeo iacutentima
entre os interlocutores bem como ldquoeacute costumeiramente usada quando o falante quer persuadir
o endereccedilado a mudar aquele comportamento ou atituderdquo (SUTER 1984 p 59) Comumente
traduzido por ldquodemocircniordquo muitas vezes confunde o leitor desavisado das obras de Homero
Essa traduccedilatildeo implica numa concepccedilatildeo cristatilde (ou seja posterior ao tempo ao qual nos
referimos) aleacutem de ser pela conotaccedilatildeo da palavra uma soluccedilatildeo pouco cabiacutevel pois o daiacutemōn
natildeo eacute ruim O termo designa uma divindade qualquer e nesse caso eacute uma interpelaccedilatildeo o
vocativo corrobora essa ideia
Heitor assim exorta Paacuteris agrave batalha chamando a atenccedilatildeo para o fato de ele ter
causado a guerra Ele por sua vez acalma Heitor dizendo que ele estaacute se preparando para a
batalha visto que ele jaacute havia sido exortado pela proacutepria Helena a qual lamenta natildeo lhe ter
sido destinado um homem melhor que sentisse vergonha pelos seus atos A reprimenda de
37 Archeacute eacute o princiacutepio kakoacutes eacute tanto o mau quanto o feio
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Helena enfim surtiu efeito e Paacuteris de fato vai ao encontro de Heitor que ocorre ainda no
Canto VI (vv 503-525)
No entanto ele natildeo retorna sem escutar mais uma vez algo de Helena ela volta a
criticar o heroacutei afirmando que ele ldquonunca teve firmeza nem nunca haacute de tecirc-lardquo [δ᾽ οὔτ᾽ ἂρ
νῦν φρένες ἔmicroπεδοι38 οὔτ᾽ ἄρ᾽ ὀπίσσω ἔσσονται] (VI vv 352-353) Fica claro nessa
passagem que a aacutetē de Paacuteris foi o motor da guerra Ao retirar Helena de Menelau quando
estava alojado em seu palaacutecio ele cometeu uma infraccedilatildeo desrespeitou a hospitalidade
(xeacutenia) praacutetica cara aos helenos Essa transgressatildeo foi uma das engrenagens da aacutetē (cegueira)
de Paacuteris visto que a aacutetē se daacute de trecircs momentos (princiacutepio estadoato e consequecircncia) o
ldquoraptordquo de Helena eacute o ldquoestadoatordquo que teve como princiacutepio a escolha de Afrodite e a guerra
como consequecircncia (MALTA 2006 p 78)
Em Euriacutepides a maioria esmagadora das menccedilotildees a Paacuteris dizem respeito ao fato de ele
ter causado a guerra Alguns personagens como Agamemnon e Ifigecircnia em Ifigecircnia em Aacuteulis
(vv 467-468 vv 1283-1311) ou Androcircmaca e Helena em As Troianas (vv 919-934 vv
940-943 vv 597-600) culpam-no diretamente pelas suas ruiacutenas mas geralmente eacute o coro
quem o faz (As Troianas vv 780-781 Heacutecuba vv 629-656 vv 905-951 Helena vv
1110-1120 Androcircmaca vv 274-300 Ifigecircnia em Aacuteulis vv 573-589) Eacute importante
frisarmos a importacircncia do coro pois ele eacute uma espeacutecie de arauto da poacutelis
O coro era elemento fundamental No desempenho cumprido por ele vertia-se uma grande quantidade de comentaacuterio social instrutivo e cheio de ponderaccedilatildeo que continuamente reiterava e sumarizava os valores da comunidade as atitudes e atributos aceitos e estimados Os diaacutelogos tomaram da retoacuterica homeacuterica o seu estilo exortativo aconselham comentam orientam exortam denunciam mostram arrependimentos expotildeem de forma mordaz o que devia de ser aceito ou evitado dando expressotildees a reaccedilotildees extremas dramatizando seus castigos e suas recompensas (CODECcedilO 2010 p 72)
Aleacutem disso o coro estaacute aqui exercendo um papel que sua natureza intralinguiacutestica
desempenha ele canta em versos iacircmbicos (ROMILLY 2013 p 227) de natureza
acusatoacuteria Eacute de comum conhecimento que Paacuteris causou a guerra e o coro faz questatildeo de
lembrar disso Em Helena a personagem homocircnima se acusa dizendo que seu deacutemas (beleza
do corpo) causou a ruiacutena de Troia (vv 384-385) mas o coro na mesma trageacutedia vem
lembrar ldquosobre o mar cinza com remo baacuterbaro o homem que veio que veio trazendo aos
filhos de Priacuteamo vocecirc Helena como sua esposa da Lacedemocircnia Paacuteris o fatalmente
38 Phreacuten como jaacute vimos eacute o muacutesculo diafragma eacutempedos significa firme Robert P Keep traduzindo do alematildeo o dicionaacuterio homeacuterico de Georg Autenrieth denomina essa expressatildeo (phreacutenes eacutempedoi) por ldquounimpairedrdquo que por sua vez significa algo que natildeo tem sua forccedila reduzida
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casadordquo [ὅτ᾽ ἔδραmicroε ῥόθια πεδία βαρβάρῳ πλάτᾳ ὅτ᾽ ἔmicroολεν ἔmicroολε microέλεα Πριαmicroίδαις
ἄγων Λακεδαίmicroονος ἄπο λέχεα σέθεν ὦ Ἑλένα Πάρις αἰνόγαmicroος] (vv 1117-1120)
Aqui Paacuteris eacute denominado ainoacutegamos adjetivo composto da palavra ainoacutes (terriacutevel) e gaacutemos
(casamento) o que ratifica a causa da guerra e relembra a sua aacutetē homeacuterica O mesmo
acontece em As Troianas Menelau culpa Helena (As Troianas vv 1037-1038) mas o coro
vem lembrar de quem eacute a culpa (vv 780-781)
Mesmo em Alexandre Paacuteris aparece como algueacutem que tem uma responsabilidade em
relaccedilatildeo agraves origens da guerra Isso contudo fica impliacutecito Luciacutea Romero Mariscal defende
que a representaccedilatildeo de Paacuteris nesse fragmento eacute feita de modo a identifica-lo com dois grupos
sociais a) a populaccedilatildeo rural de Atenas que durante a Guerra do Peloponeso eacute
responsabilizada por ter levado a peste agrave cidade (MARISCAL 2003 p 169) e b) com os
tyacuterannoi cujas presenccedilas assolavam Atenas e criavam um clima de incerteza no tocante agrave
manutenccedilatildeo da democracia (MARISCAL 2005 p 14)
Alexandre foi interpretada justamente depois dessa grande peste ter assolado a poacutelis e
ter matado inclusive um de seus principais membros Peacutericles Luciacutea Mariscal coloca que
Ao apresentar as origens da guerra de Troia em termos de oposiccedilatildeo entre o espaccedilo poliacutetico da cidade e o espaccedilo apoliacutetico da montanha [o Ida onde Paacuteris foi criado] entre os sujeitos que habitam ditos espaccedilos contrapostos e entre as convenccedilotildees que assim o delimitam Euriacutepides aborda um dos temas que o pensamento poliacutetico tradicional havia jaacute explorado ao longo de sua histoacuteria e que durante a guerra do Peloponeso se converteu em uma experiecircncia traacutegica similar a que se representa em Alexandre sob a faacutebula miacutetica que deu peacute agrave guerra troiana Como assinala Ph Borgeaud ldquoConveacutem recordar com a tradiccedilatildeo grega que eacute uma guerra que haacute na origem da tomada de consciecircncia da oposiccedilatildeo entre o ruacutestico e o cidadatildeordquo [] eacute sobretudo ao princiacutepio da guerra do Peloponeso quando a tensatildeo entre os habitantes da cidade e os do campo se faz mais traumaacutetica ao abrir a cidade de Atenas as suas portas a uma ingente massa de populaccedilatildeo rural e agreste que a duras penas se integra na cidade e a contamina com os terriacuteveis resultados da virulenta propagaccedilatildeo da peste que descreve Tuciacutedides no segundo livro de sua Histoacuteria da Guerra do Peloponeso (MARISCAL 2003 p 168-169 ndash grifos nossos)
Segundo a autora eacute Paacuteris que traz consigo a crise para a cidade pois insiste em
participar dos jogos sabendo que natildeo eacute um nobre (MARISCAL 2003 p 165) O tema de
Alexandre gira em torno do agocircn (disputa) esportivo ganhado por Paacuteris na eacutepoca um pastor
ainda cuja descendecircncia nobre era desconhecida Era inconcebiacutevel que um doucirclos (escravo)
ou laacutetris (servo) ganhasse as provas esportivas nas quais os aristoiacute deveriam sobressair-se
Aliaacutes jaacute era inconcebiacutevel a concessatildeo dessa participaccedilatildeo de grupos menos privilegiados da
sociedade nesse tipo de evento Priacuteamo jaacute cometera um erro aiacute ao deixar que um simples
pastor se juntasse aos aristocratas nos jogos A sua participaccedilatildeo ldquoquebraraacute a ordem da cidade
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e provocaraacute uma cadeia de transgressotildees que teriam lugar em todos os acircmbitos da mesma Sua
pretensatildeo de tomar parte nos funerais equivale a formar parte da cidade a ocupar um lugar
que natildeo lhe pertencerdquo (MARISCAL 2003 p 165)
Desse modo Deiacutefobo irmatildeo de Paacuteris eacute quem vai pedir providecircncias acerca disso
exige que o pastor seja morto pela sua audaacutecia e vendo que o pai natildeo lhe daria suporte pede a
Heacutecuba que o faccedila Na iminecircncia da morte dele o pastor que acolheu o heroacutei chega para
impedir que isso aconteccedila mostrando as roupas que vestiam Paacuteris quando ele foi exposto e
uma cena de anagnoacuterisis (reconhecimento) se desenrola o laacutetris eacute reconhecido como aristoacutes e
reintegrado agrave famiacutelia troiana
Frequentemente em Euriacutepides Paacuteris estaacute relacionado a um ambiente aacutegrios
(selvagem) ele eacute denominado algumas vezes bouacutekolos (pastor) em Helena a personagem
homocircnima fala do passado de Paacuteris quando ele se sentava junto com seu gado (vv 358-359)
em Androcircmaca (v 706) Peleu se refere a Paacuteris natildeo como ldquoPaacuteris de Troiardquo mas como ldquoPaacuteris
do [Monte] Idardquo Marcar sua pertenccedila a um ambiente selvagem eacute revelador no que toca a
construccedilatildeo de sua representaccedilatildeo na trageacutedia gecircnero no qual eacute recorrente sua denominaccedilatildeo
como baacuterbaros O proacuteprio mito que envolve Paacuteris (sua exposiccedilatildeo no Monte Ida seu
acolhimento pela ursa e depois pelo pastor pessoa em contato constante com o aacutegrios)
denota que em Paacuteris coabitam duas instacircncias o nobre ligado ao ambiente do humano e o
camponecircs ligado ao ambiente do selvagem
Esse nobre contudo eacute um tirano Na Atenas Claacutessica esses tiranos eram vigiados de
perto e o recurso do ostracismo visava embarreirar a quebra da democracia os nomes
daqueles que poderiam oferecer riscos ao poder democraacutetico eram marcados em ostraacutekai
(pedaccedilos de ceracircmica) e aquele que obtivesse mais votos poderia ser exilado de Atenas Luciacutea
Mariscal relembra Jean-Pierre Vernant que ao analisar a representaccedilatildeo de Eacutedipo chama
atenccedilatildeo para a ideia de que a crianccedila exposta ao nascer e que retorna agrave sua regiatildeo natal para
reivindicar seus direitos eacute geralmente ligada agrave figura do tyacuterannos (MARISCAL 2005 p 14
n 9)
Luciacutea Mariscal tambeacutem nos lembra que em 417 aC Alcibiacuteades ldquoum homem como
Alexandre extraordinariamente bonito popular e que por essas datas vai ganhando um
discutido poderrdquo (MARISCAL 2005 p 17) vence competiccedilotildees atleacuteticas assim como Paacuteris
Esse mesmo Alcibiacuteades vai liderar os atenienses em uma invasatildeo a Siracusa e causar uma
derrota dura a essa poacutelis Ele tambeacutem passa um tempo em Esparta auxiliando o inimigo para
depois retornar a Atenas Assim ldquoO certo eacute que Alexandre compartilha com Alcibiacuteades o
60
traccedilo mais singular [sentildeero] de ambos personagens a beleza Uma beleza extraordinaacuteria que
se entende como um sinal de excelecircncia mas que pode contudo malograr-serdquo (MARISCAL
2005 p 19)
Mesmo no campo de batalha quando luta Paacuteris eacute repreendido No Canto XI da Iliacuteada
como vimos Diomedes o reprime por tecirc-lo atingido
lsquoτοξότα λωβητὴρ κέρᾳ ἀγλαὲ παρθενοπῖπα εἰ microὲν δὴ ἀντίβιον σὺν τεύχεσι πειρηθείης οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃσι βιὸς καὶ ταρφέες ἰοί νῦν δέ micro᾽ ἐπιγράψας ταρσὸν ποδὸς εὔχεαι αὔτως οὐκ ἀλέγω ὡς εἴ microε γυνὴ βάλοι ἢ πάϊς ἄφρων κωφὸν γὰρ βέλος ἀνδρὸς ἀνάλκιδος οὐτιδανοῖο ἦ τ᾽ ἄλλως ὑπ᾽ ἐmicroεῖο καὶ εἴ κ᾽ ὀλίγον περ ἐπαύρῃ ὀξὺ βέλος πέλεται καὶ ἀκήριον αἶψα τίθησι τοῦ δὲ γυναικὸς microέν τ᾽ ἀmicroφίδρυφοί εἰσι παρειαί παῖδες δ᾽ ὀρφανικοί ὃ δέ θ᾽ αἵmicroατι γαῖαν ἐρεύθων πύθεται οἰωνοὶ δὲ περὶ πλέες ἠὲ γυναῖκεςrsquo
Fuacutetil frecheiro de cachos frisados espiatildeo de mulheres se te atrevesses armado a lutar frente a frente comigo nenhum amparo acharias nesse arco e nas setas inuacutemeras Soacute por me haveres riscado no peacute fazes tanto barulho ao que dou tanto valor como a tiro de crianccedila ou de moccedila Vatilde sempre eacute a flecha que um ser despreziacutevel e imbele dispara Bem diferente se daacute com meus tiros que embora de leve o dardo atinja o inimigo sem mais da existecircncia o despoja as roacuteseas faces natildeo cessa na dor de arranhar a consorte oacuterfatildeos os filhos lhe ficam e o solo tingido de sangue a apodrecer tatildeo-soacute abutres atrai natildeo mais belas mulheres (XI vv 385-395)
Isso se daacute porque Paacuteris eacute um arqueiro (que como veremos no capiacutetulo seguinte eacute
desvalorizado) e porque natildeo haacute paridade na luta ele na escala hieraacuterquica do campo de
batalha eacute inferior a Diomedes Aleacutem de ldquoarqueirordquo (toxoacuteta) Paacuteris eacute tambeacutem designado como
um patife malfeitor (lōbētḗr) e um espiatildeo de mulheres (virgens) (parthenopicircpa) Lōbētḗr
designa um ldquocomportamento ultrajante [] ofensivo agraves regras da sociedade heroicardquo (SUTER
1984 p 79) Natildeo eacute um epiacuteteto exclusivo de Paacuteris Tersites por exemplo eacute denominado desse
modo tambeacutem (Iliacuteada II v 275) por Odisseu
Suter argumenta que foi uma denominaccedilatildeo desnecessaacuteria por parte de Diomedes (e aiacute
eacute Diomedes quem eacute chamado de ldquofriacutevolordquo) visto que ambos estatildeo equiparados socialmente
natildeo seria o mesmo caso entre Odisseu e Tersites no qual este seria um membro inferior da
sociedade Socialmente natildeo ambos satildeo da elite um do lado troiano outro do lado aqueu
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contudo no campo de batalha sim eles estariam desequiparados como vimos Paacuteris eacute das
tropas ligeiras Diomedes seria membro das tropas pesadas ele usa os armamentos comuns
aos guerreiros homeacutericos Paacuteris deveria procurar algueacutem do seu estatuto beacutelico para lutar natildeo
com algueacutem que estaacute hierarquicamente acima de sua posiccedilatildeo no campo de batalha
Parthenopicircpa (paacuterthenos ndash virgem mulher que ainda natildeo eacute casada ndash acrescida do
verbo opipeuacuteō ndash ldquoolhar com inquietuderdquo (BAILLY 2000 p 1389) observar curiosamente
segundo Ann Suter eacute um epiacuteteto que demonstra covardice na batalha (1984 p 84) Associado
com a totalidade das outras denominaccedilotildees do verso eacute de fato desmerecedor em uma batalha
o que menos importa eacute desejar mulheres
Keacutera aglaegrave eacute uma denominaccedilatildeo bastante ambiacutegua Literalmente significa ldquocornos
brilhantesrdquo (keacuteras ldquocornosrdquo aglaoacutes brilhante) Pode referir-se tanto ao seu arco pois essa
arma podia ser feita de chifres de animais quanto a um penteado a um modo de arrumar o
cabelo (SUTER 1984 p 82) Carlos Alberto Nunes prefere essa uacuteltima acepccedilatildeo traduzindo
essa expressatildeo como ldquode cachos frisadosrdquo bem como Haroldo de Campos que traduz apenas
como ldquode cachosrdquo (ldquosoacuterdido sagitaacuterio de cachosrdquo) Referindo-se ou agrave beleza ou ao arco a
acepccedilatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave batalha eacute a mesma
Ainda nesse excerto Diomedes compara o disparo de arco e flecha de Paacuteris com o de
uma crianccedila (paacuteiumls) ou mulher (gynḗ) Eacute a segunda vez que Paacuteris eacute infantilizado na Iliacuteada a
primeira que se daacute indiretamente (visto que ele natildeo eacute mencionado mas por ser filho do rei de
Troia a denuacutencia vale para ele tambeacutem) eacute quando Menelau afirma que ldquoos seus filhos [de
Priacuteamo] soberbos natildeo satildeo de confianccedila [ἐπεί οἱ παῖδες ὑπερφίαλοι καὶ ἄπιστοι]rdquo (III v
105) e que o anciatildeo deve presenciar o acordo
Anatoille Bailly ao traduzir hyperphiacutealos em seu dicionaacuterio coloca que ldquoen parl des
Troyensrdquo (falando de troianos) significa ldquoorgulhoso arroganterdquo denotando uma distinccedilatildeo de
vocabulaacuterio ao se referir aos gregos Contudo o classicista John Heath coloca que essa
palavra natildeo denigre todos os troianos mas certos indiviacuteduos como Paacuteris que causou a
guerra defendendo que ldquonatildeo haacute nada no poema que sugere que Homero considera todos os
troianos moralmente lsquocontaminadosrsquo [lsquotaintedrsquo]rdquo (HEATH 2005 p 534) Cremos que haacute a
possibilidade de distinccedilatildeo no uso do vocaacutebulo pois os troianos afinal satildeo os inimigos na
guerra
A terceira vez tambeacutem indiretamente eacute quando Priacuteamo denomina os filhos restantes
de ldquocrianccedilas maacutes que causam afliccedilatildeordquo (kakagrave teacutekna katēphoacutenes) (XXIV v 253) Isso eacute uma
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desvalorizaccedilatildeo deles uma diminuiccedilatildeo de valor dessa pessoa que eacute comparada a uma crianccedila
pois a sociedade homeacuterica eacute patriarcal onde o anḗr eacute quem deteacutem o poder familiar poliacutetico
Aleacutem disso ele eacute comparado a uma mulher Christopher Ransom analisa a efeminaccedilatildeo
de Paacuteris mostrando que ldquoisso eacute uacutetil e informativo para analisar o lsquooutrorsquo o homem que
quebra as regras da masculinidade e cujas transgressotildees e excessos ajudam a definir o ideal de
masculinidade promovendo um contraste contra o qual a identidade do homem lsquorealrsquo pode ser
estabelecidardquo (RANSOM 2011 p 35) Ademais a crianccedila e a mulher satildeo um Outro tambeacutem
o Outro social (RANSOM 2011 p 36) Cremos que Paacuteris natildeo deixa de ser um personagem
paidecircutico natildeo por mostrar como natildeo agir mas justamente por mostrar como agir
Mesmo quando Paacuteris parece engrenar na luta Heitor jaacute desconfiado acaba o
insultando quando o encontra aparentemente parado ldquoPaacuteris funesto de belas feiccedilotildees sedutor
de mulheres onde se encontra Deiacutefobo e Heleno senhor poderoso Onde Aacutesio de Hiacutertaco
o filho Adamante gerado por Aacutesio Que eacute de Otrioneu Do fastiacutegio a altanada cidade dos
Teucros hoje desaba envolvendo-te alfim a preciacutepite Morterdquo [lsquoΔύσπαρι εἶδος ἄριστε
γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ ποῦ τοι Δηΐφοβός τε βίη θ᾽ Ἑλένοιο ἄνακτος Ἀσιάδης τ᾽
Ἀδάmicroας ἠδ᾽ Ἄσιος Ὑρτάκου υἱός ποῦ δέ τοι Ὀθρυονεύς νῦν ὤλετο πᾶσα κατ᾽ ἄκρης
Ἴλιος αἰπεινή νῦν τοι σῶς αἰπὺς ὄλεθροςrsquo] (XIII vv 769-773)
No Canto XXIV (vv 247-262) quando Priacuteamo censura seus filhos indiretamente
Paacuteris eacute insultado tambeacutem O anciatildeo fala que soacute restaram os filhos dignos de censura
(eleacutenkhea) os mentirosos (pseucircstai) os danccedilarinos (orkheacutestai) e os que cantam e danccedilam
(khoroitypiacuteēsin aacuteristoi) ou seja filhos que natildeo estatildeo aptos para entrar na guerra No campo de
batalha valoriza-se a intrepidez no combate e a habilidade guerreira em detrimento da danccedila
e do canto Mas isso natildeo quer dizer que essas praacuteticas natildeo satildeo valorizadas na sociedade grega
estes satildeo valorizados fora de um contexto beacutelico Pelo contraacuterio faz parte da paideiacutea
Entretanto ligar o Outro ao domiacutenio das artes musicais natildeo eacute incomum nas trageacutedias
Edith Hall nos mostra que em As Suplicantes de Eacutesquilo somente os baacuterbaros cantam
(HALL 1989 p 130) Em Euriacutepides natildeo eacute diferente em Ifigecircnia em Aacuteulis Paacuteris eacute mostrado
ldquotocando melodias asiaacuteticas [baacuterbaras] na syacuterinx imitando na sua flauta o auloacutes friacutegio do
Olimpordquo (vv 576-578) Assim nos parece que natildeo eacute todo instrumento musical que serve agrave
paideiacutea
Eacute interessante perceber que syacuterinx e o auloacutes satildeo tipos de flautas instrumentos que
deformam a face quando tocados pois temos que inchar as bochechas Essa deformaccedilatildeo eacute
uma metaacutefora para a proacutepria deformaccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo do personagem No periacuteodo
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claacutessico Platatildeo Alcibiacuteades e Aristoacuteteles viam no auloacutes um instrumento com ldquoefeitos maleacutefi-
cos agrave formaccedilatildeo do caraacuteter do cidadatildeordquo (CERQUEIRA 2013 p 62) A lira a ciacutetara pelo
contraacuterio satildeo instrumentos bem vistos para a educaccedilatildeo do cidadatildeo por isso que o Paacuteris de
Homero toca-a Ele estaacute desempenhando ainda um exemplo a ser seguido algo que natildeo
acontece na trageacutedia como vimos Paacuteris ou eacute o pastor (ligado ao domiacutenio o aacutegrios do
selvagem) ou o escravo (o Outro social por excelecircncia do kaloacutes kagathoacutes) ou o baacuterbaro No
entanto ser um muacutesico profissional natildeo era bem visto na Atenas Claacutessica
um muacutesico de ofiacutecio portanto era visto como algueacutem inepto agrave vida ciacutevica e relapso na conduccedilatildeo de assuntos particulares Ele compartilhava da covardia feminina Esses foram os argumentos utilizados pelo Zeus de Euriacutepides na trageacutedia Antiacuteope para desqualificar o lirista Anfiatildeo ndash suspeita de feminilidade incompetecircncia militar e deacuteficit de coragem e virilidade (CERQUEIRA 1997 p 126)
A muacutesica fazia parte da paideiacutea mas ser um muacutesico profissional esbarrava num
estereoacutetipo semelhante ao do baacuterbaro implicando em uma alteridade social o muacutesico eacute
covarde eacute efeminado natildeo serve para a guerra Tendo em mente que Paacuteris tem em sua
caracterizaccedilatildeo esse elemento jaacute na Iliacuteada isso denota o quanto ela serviu para moldar uma
fronteira eacutetnica um Outro
Como pudemos perceber duas coisas desencadeiam reprimendas a Paacuteris na Iliacuteada a)
o fato de ele ter fugido da batalha com Menelau e de natildeo a ter terminado (mesmo que por um
desiacutegnio divino) e b) seu jactar-se desencadeado pelo ferimento de Diomedes Natildeo somente
Heitor seu irmatildeo o repreende mas outros heroacuteis Priacuteamo e mesmo Helena a mulher por
quem ele luta Na trageacutedia ele eacute lembrado majoritariamente como aquele que causou a
guerra Por ser o causador da desgraccedila de muitos o seu caraacuteter Outro precisa ser bem
delineado
Essas reprimendas que Paacuteris sofrem contudo natildeo passam em branco para ele ele
sempre as responde Quando Paacuteris foge do embate com Menelau recuando para dentro do
exeacutercito troiano Heitor lhe cobre de reprimendas No entanto elas natildeo ficam sem resposta
Ἕκτορ ἐπεί microε κατ᾽ αἶσαν ἐνείκεσας οὐδ᾽ ὑπὲρ αἶσαν αἰεί τοι κραδίη πέλεκυς ὥς ἐστιν ἀτειρὴς ὅς τ᾽ εἶσιν διὰ δουρὸς ὑπ᾽ ἀνέρος ὅς ῥά τε τέχνῃ νήϊον ἐκτάmicroνῃσιν ὀφέλλει δ᾽ ἀνδρὸς ἐρωήν ὣς σοὶ ἐνὶ στήθεσσιν ἀτάρβητος νόος ἐστί microή microοι δῶρ᾽ ἐρατὰ πρόφερε χρυσέης Ἀφροδίτης οὔ τοι ἀπόβλητ᾽ ἐστὶ θεῶν ἐρικυδέα δῶρα ὅσσά κεν αὐτοὶ δῶσιν ἑκὼν δ᾽ οὐκ ἄν τις ἕλοιτο
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Eacute justo Heitor o que dizes contraacuterio agrave razatildeo natildeo discorres Teu coraccedilatildeo eacute tatildeo duro quanto o accedilo semelha ao machado que manejado pelo homem lhe aumenta o poder e no tronco mui facilmente penetra talhando-o para o uso das naves Resoluccedilatildeo tatildeo intreacutepida encerras assim no imo peito Natildeo me censures por causa dos mimos da loura Afrodite pois despreziacuteveis natildeo satildeo os presentes valiosos que os deuses de seu bom grado concedem que agrave forccedila ningueacutem os alcanccedila (III vv 59-66)
Paacuteris divide a responsabilidade pela guerra natildeo fora somente ele quem a causou mas
Afrodite tambeacutem ao lhe prometer a mulher mais bela do mundo em troca do pomo dourado
Essa afirmaccedilatildeo entretanto natildeo parece diminuir a parte que cabe ao heroacutei Heitor mais a
frente se refere a ele como sendo o ldquofautor desta guerra [τοῦ εἴνεκα νεῖκος ὄρωρεν]rdquo
foacutermula que se repetiraacute vaacuterias vezes para Paacuteris ao longo da Iliacuteada
Esses versos tambeacutem mostram uma outra qualidade de Paacuteris a habilidade com as
palavras A importacircncia dessa habilidade retorna em Alexandre de Euriacutepides quando Paacuteris
deixa claro que ldquoFrequentemente um homem em desvantagem pela ineloquecircncia perde para
um eloquente mesmo que seu caso seja justordquo [ἀγλωσσίᾳ δὲ πολλάκις ληφθεὶς ἀνήρ
δίκαια λέξας ἧσσον εὐγλώσσου φέρει] (fr 56) O agloacutessos (literalmente ldquosem liacutenguardquo) natildeo
tem chance contra o eugloacutessos (literalmente ldquode boa liacutenguardquo) e Paacuteris tanto na Iliacuteada quanto
em Alexandre (textos em que ele eacute personagem) demonstra ser oacutetimo com as palavras
Sempre que ele eacute censurado por Heitor ou por Helena faz um discurso que acaba
acalmando o seu interlocutor ora atribuindo a responsabilidade da guerra natildeo apenas a ele
ora se propondo a entrar na batalha ora defendendo-se quando acusado de desserviccedilo por
Heitor num momento em que ele estaacute de fato lutando nas batalhas Essa eacute uma habilidade
que natildeo tem tanto valor na guerra quanto a forccedila fiacutesica e a estrateacutegia militar a Iliacuteada por ser
um poema beacutelico tem mais cenas de batalhas longas do que de diaacutelogos longos Contudo ter
uma boa retoacuterica clareza na fala enfim ser um haacutebil orador eacute uma virtude do anḗr
Os troianos satildeo oacutetimos falantes Hillary Mackie explora bastante essa ideia em seu
livro Talking Trojan speech and community in the Iliad Ela defende que o falar troiano
denota uma praise culture (cultura de elogio) enquanto o aqueu uma blame culture (cultura
de culpabilizaccedilatildeo) Ela mostra como os troianos muitas vezes conseguem dissuadir seus
inimigos da luta como acontece com Glauco e Diomedes (Iliacuteada VI vv 120-238) aquele
conta a este sua genealogia lembrando-o de que seus pais foram xeacutenoi hoacutespedes um do outro
Eles entatildeo decidem natildeo lutar e trocar presentes transportando a xeacutenia para o campo de
batalha
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A autora tambeacutem sustenta que os troianos evitam embates em que tenham que desferir
insultos a outros guerreiros Quando haacute a interpelaccedilatildeo eles utilizam epiacutetetos de elogio natildeo de
reprimenda (MACKIE 1996 p 83) Heitor natildeo daacute treacuteplicas (como acontece nessa repreensatildeo
seguinda da defesa do Paacuteris ndash ele natildeo replica) e seu discurso eacute introspectivo e reflexivo
bastante poeacutetico e construiacutedo esteticamente para ser assim pelo poeta (MACKIE 1996 p
115) Aleacutem disso os troianos satildeo os uacutenicos heroacuteis que suplicam pela vida em batalha
Destarte podemos perceber que Paacuteris eacute um tiacutepico troiano nesse aspecto ele eacute haacutebil com as
palavras E se as palavras satildeo como flechas (MACKIE 1996 p 56) esse elemento combina
ainda com o fato de ele ser um arqueiro (sendo que como vimos a maioria do contingente de
arquearia da Guerra de Troia eacute oriunda dos troianos)
Ainda ligado agrave questatildeo do discurso de Paacuteris no Canto III (v 60) haacute um siacutemile
interessante e incomum na epopeia a comparaccedilatildeo de um humano (Heitor) com um objeto
(machado ndash peacutelekys) Seth Benardete afirma que
O siacutemile que Paacuteris usa eacute uacutenico em muitas coisas Em nenhum outro lugar um heroacutei eacute comparado a algo feito pelo homem nem a palavra technecirc eacute recorrente na Iliacuteada (bastante comum contudo se estivesse na Odisseia) nem erocircecirc eacute usada comumente para um homem mas para o arremesso de uma lanccedila Heitor natildeo eacute o madeireiro mas o machado ou ainda madeireiro e machado seu coraccedilatildeo multiplica sua forccedila ele eacute autossuficiente Ele carrega dentro de si os meios para um grande poder Ele eacute todo arma (BENARDETE 2005 p 51)
Isso torna seu discurso diferenciado Homero e seus personagens utilizam siacutemiles que
comparam o homem aos animais que satildeo seres animados Paacuteris compara um humano a um
ser inanimado Essa eacute mais uma particularidade desse personagem que esse excerto eacute
mostrado pela primeira vez falando dialogando na epopeia
Essa natildeo eacute a uacutenica vez que Paacuteris responderaacute Heitor no Canto VI Paacuteris responde agraves
acusaccedilotildees do heroacutei e lhe acalma afirmando que Heacutecuba natildeo trouxe ao mundo um anaacutelkydos
(sem-gloacuteria) (vv 332-341) Tambeacutem quando Heitor lhe acusa injustamente de estar parado na
guerra Paacuteris responde (XIII vv 774-788) Do mesmo modo natildeo seraacute soacute seu irmatildeo que
ouviraacute resposta de Paacuteris Helena tambeacutem ouve (III vv 438-446) Assim como se sucedeu
com Heitor Paacuteris acalma o seu interlocutor atraveacutes das palavras do myacutethos ndash amenizando a
situaccedilatildeo ndash e atribui o acontecido a um deus ele natildeo eacute o responsaacutevel sozinho pelo
malsucedido Afrodite eacute quem lhe daacute Helena de presente natildeo podendo ele negar Athenaacute
ajudou Menelau por isso que ele venceu natildeo foi por causa de sua inabilidade guerreira
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Soacute haacute uma pessoa que Paacuteris natildeo responde depois que eacute interpelado de modo agressivo
Diomedes Sendo assim nosso heroacutei soacute retruca troianos e a ldquoHelenardquo que estaacute em Troia Esses
jogos interessantes de palavras e comparaccedilotildees satildeo comuns em Homero Por isso que eacute
interessante nos debruccedilarmos sobre esses siacutemiles de animais que envolvem Paacuteris Eles satildeo
muito frequentes na Iliacuteada Annie Schnapp-Gourbeillon ressalta que eles tecircm uma funccedilatildeo
especiacutefica no eacutepico
Explicar [rendre compte] valorar dar a medida aqui estaacute umas funccedilotildees fundamentais Na aproximaccedilatildeo analoacutegica o animal daacute a ver as virtudes dos heroacuteis aos quais ele se refere ele sugere ele enfatiza [met un valeur] ele retorna uma imagem amplificada e seletiva como um espelho sutilmente deformado [] ele eacute signo mensagem pressaacutegio [] Portador do sofrimento humano [] ator de uma reversatildeo indiziacutevel [] elemento fundamental de uma definiccedilatildeo social do indiviacuteduo [] (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 11)
Os siacutemiles de caccedila satildeo bastante elucidativos na hora de representar o lado mais fraco e
o mais forte Segundo Michael Clarke ldquoo contraste entre predador e caccedila eacute um padratildeo nas
falas [dos heroacuteis que comparam homens a animais] onde um guerreiro compara aqueles com
quem ele luta ou aqueles que ele vecirc a bravos ou covardes animaisrdquo (CLARKE 1995 p 9) O
narrador da Iliacuteada tambeacutem utiliza bastante esses siacutemiles tendo como o leatildeo o animal caccedilador
por excelecircncia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 39-40) encarnaccedilatildeo dos valores
heroicos em sua simbologia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 50) Quando Menelau
resolve enfrentar Paacuteris no iniacutecio do Canto III o leatildeo eacute o siacutemile que corresponde a Menelau
τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν ἀρηΐφιλος Μενέλαος ἐρχόmicroενον προπάροιθεν ὁmicroίλου microακρὰ βιβάντα ὥς τε λέων ἐχάρη microεγάλῳ ἐπὶ σώmicroατι κύρσας εὑρὼν ἢ ἔλαφον κεραὸν ἢ ἄγριον αἶγα πεινάων microάλα γάρ τε κατεσθίει εἴ περ ἂν αὐτὸν σεύωνται ταχέες τε κύνες θαλεροί τ᾽ αἰζηοί ὣς ἐχάρη Μενέλαος Ἀλέξανδρον θεοειδέα ὀφθαλmicroοῖσιν ἰδών φάτο γὰρ τίσεσθαι ἀλείτην αὐτίκα δ᾽ ἐξ ὀχέων σὺν τεύχεσιν ἆλτο χαmicroᾶζε τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν Ἀλέξανδρος θεοειδὴς ἐν προmicroάχοισι φανέντα κατεπλήγη φίλον ἦτορ ἂψ δ᾽ ἑτάρων εἰς ἔθνος ἐχάζετο κῆρ᾽ ἀλεείνων ὡς δ᾽ ὅτε τίς τε δράκοντα ἰδὼν παλίνορσος ἀπέστη οὔρεος ἐν βήσσῃς ὑπό τε τρόmicroος ἔλλαβε γυῖα ἂψ δ᾽ ἀνεχώρησεν ὦχρός τέ microιν εἷλε παρειάς ὣς αὖτις καθ᾽ ὅmicroιλον ἔδυ Τρώων ἀγερώχων δείσας Ἀτρέος υἱὸν Ἀλέξανδρος θεοειδής Logo que o viu Menelau o guerreiro disciacutepulo de Ares como avanccedilava com passo arrogante na frente do exeacutercito muito exultante ficou como leatildeo esfaimado que encontra um cervo morto de pontas em galho ou uma cabra selvagem
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avidamente o devora ainda mesmo que catildees mui ligeiros lhe venham vindo no encalccedilo e pastores de aspecto robusto dessa maneira exultou Menelau quando Paacuteris o belo teve ante os olhos pensando que iria por fim castigaacute-lo Rapidamente do carro pulou sem que as armas soltasse Quando o formoso Alexandre que um deus imortal parecia o viu agrave frente dos outros sentiu conturbar-se-lhe o peito e para o meio dos seus recuou escapando da Morte Como se daacute quando algueacutem nos convales dos montes estaca em frente de uma serpente a tremerem-lhe as pernas e os joelhos e retrocede de um salto com o rosto sem cor todo medo por esse modo afundou para o meio dos Teucros valentes Paacuteris o divo Alexandre do filho de Atreu temeroso (III vv 21-37)
Chama-nos atenccedilatildeo os siacutemiles utilizados Primeiramente um que remete agrave caccedila (leatildeo
versus cervo ou cabra) depois um que mostra o enfrentamento homem versus animal
(homem versus serpente humano versus selvagem) Paacuteris eacute assemelhado agrave cabra e ao veado
Ambos satildeo animais que possuem relaccedilatildeo com o deus Dioniso (SUTER 1984 p 111) Aleacutem
disso satildeo a caccedila do leatildeo Este sobrepuja em forccedila o veado e a cabra bem como estaacute no topo
da cadeia alimentar desse ambiente selvagem O siacutemile no Canto XIII (vv489-495) tambeacutem eacute
revelador o exeacutercito troiano eacute composto de carneiros animal que serve de caccedila
Outro siacutemile relacionado ao nosso heroacutei nessa passagem eacute o do pastor que teme a
serpente Este eacute peculiarmente interessante a serpente eacute o siacutembolo de Zeus que sob o epiacuteteto
Xeacutenios garante o cumprimento das regras da hospitalidade (xeacutenia) Levando em consideraccedilatildeo
que Paacuteris desrespeitou a xeacutenia ao retirar Helena de Menelau durante sua estadia em Esparta
haacute bastante razatildeo para ele temer a ldquoserpenterdquo a ira de Zeus recai sobre Paacuteris mesmo que no
momento Zeus esteja do lado dos troianos A transgressatildeo do nosso heroacutei se sobressai
Quando Paacuteris entra em batalha ele estaacute vestindo uma pele de leopardo comum nas
representaccedilotildees dos arqueiros citas na imageacutetica (LISSARAGUE 2002 p 104 e 105)
Segundo Aristoacuteteles esse animal eacute comum na Aacutesia Menor (lugar onde fica Troia) sendo um
animal muito selvagem (ARISTOacuteTELES Histoacuteria dos Animais VIII 27 9) O leopardo eacute
um animal associado a Dioniso e estaacute presente frequentemente em suas representaccedilotildees
(COHEN 2012 p 462) A associaccedilatildeo de Paacuteris com esse deus eacute trabalhada por Ann Suter em
sua tese visto que ela mostra como a poesia iacircmbica39 (uma blame poetry ldquopoesia
acusatoacuteriardquo) estaacute ligada agrave construccedilatildeo da representaccedilatildeo de Paacuteris por Homero A Iliacuteada natildeo eacute o
iniacutecio de um processo discursivo mas parte dele outros gecircneros poeacuteticos que tramitavam pela
sociedade influenciaram na composiccedilatildeo da eacutepica homeacuterica Ann Suter ressalta que nos versos
39 A partiacutecula ldquo-amb-rdquo (-αmicroβ-) estaacute ligada aos cultos dionisiacuteacos e ldquodesigna canccedilotildees e danccedilas em sua honrardquo (SUTER 1984 p 105) como o dithyacuterambos o thriacuteambos e o iacutethymbos
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em que Priacuteamo insulta seus filhos ldquoo vocabulaacuterio necessaacuterio para elogio e acusaccedilatildeo eacute usado
aqui νεικέω [injuriar] e αἰνέω [elogiar]rdquo (SUTER 1984 p 96) Esses verbos aparecem no
aoristo (neiacutekesse ḗnēsrsquo) Paacuteris causa neiacutekos pelo seu ainoacutes a Afrodite Desse modo tanto a
ideia de que os troianos fazem parte de uma cultura de elogio (praise culture) quanto a de
que Paacuteris eacute um personagem acusaacutevel (blame figure) podem ser corroboradas a partir dessa
utilizaccedilatildeo de ambos vocabulaacuterios pelo poeta
Outro siacutemile nos chama atenccedilatildeo quando Paacuteris volta ao campo de batalha
οὐδὲ Πάρις δήθυνεν ἐν ὑψηλοῖσι δόmicroοισιν ἀλλ᾽ ὅ γ᾽ ἐπεὶ κατέδυ κλυτὰ τεύχεα ποικίλα χαλκῷ σεύατ᾽ ἔπειτ᾽ ἀνὰ ἄστυ ποσὶ κραιπνοῖσι πεποιθώς ὡς δ᾽ ὅτε τις στατὸς ἵππος ἀκοστήσας ἐπὶ φάτνῃ δεσmicroὸν ἀπορρήξας θείῃ πεδίοιο κροαίνων εἰωθὼς λούεσθαι ἐϋρρεῖος ποταmicroοῖο κυδιόων ὑψοῦ δὲ κάρη ἔχει ἀmicroφὶ δὲ χαῖται ὤmicroοις ἀΐσσονται ὃ δ᾽ ἀγλαΐηφι πεποιθὼς ῥίmicroφά ἑ γοῦνα φέρει microετά τ ἤθεα καὶ νοmicroὸν ἵππων ὣς υἱὸς Πριάmicroοιο Πάρις κατὰ Περγάmicroου ἄκρης40 τεύχεσι παmicroφαίνων ὥς τ᾽ ἠλέκτωρ ἐβεβήκει καγχαλόων ταχέες δὲ πόδες φέρον αἶψα δ᾽ ἔπειτα Ἕκτορα δῖον ἔτετmicroεν ἀδελφεὸν εὖτ᾽ ἄρ᾽ ἔmicroελλε στρέψεσθ᾽ ἐκ χώρης ὅθι ᾗ ὀάριζε γυναικί
Paacuteris tambeacutem natildeo ficou muito tempo na estacircncia elevada mas tendo as armas de bronze vestido de fino trabalho corta apressado a cidade nos raacutepidos peacutes confiado Como galopa um cavalo habituado no estaacutebulo quando pode do laccedilo escapar e fogoso a planiacutecie atravessa para ir banhar-se impaciente na bela corrente do rio cheio de orgulho soleva a cabeccedila por sobre as espaacuteduas bate-lhe a crina agitada consciente da proacutepria beleza levam-no os peacutes para o prado onde os outros cavalos se reuacutenem Paacuteris o filho de Priacuteamo assim desde do alto da Acroacutepole da sacra Peacutergamo envolto em couraccedila que a vista ofuscava Vem exultante seus raacutepidos peacutes o conduzem em pouco tempo aonde Heitor se encontrava o divino guerreiro que tinha precisamente deixado o local em que agrave esposa falara (VI vv 503-517)
Paacuteris eacute mostrado como um cavalo dentre cavalos assim ele se encaminha para a
batalha O cavalo eacute um siacutembolo de destaque social (eacute um animal muito caro difiacutecil de se
manter demanda bastante recursos) e de auxiacutelio (ele desloca o guerreiro na guerra bem como
serve agrave competiccedilatildeo esportiva ndash SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 169) Aleacutem disso eacute
um animal que representa o troiano como eacute frequentemente perceptiacutevel em Homero
Euriacutepides tambeacutem destaca essa caracteriacutestica deles denominando-os phiacutelippoi (literalmente
40 O termo ldquoacroacutepolerdquo (akroacutepolis) natildeo aparece no original trata-se do alto mesmo de Troia Contudo a raiz dos dois termos eacute a mesma
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ldquoamigos dos cavalosrdquo Alexandre fr 62f) Esse siacutemile aparece justamente quando Paacuteris
retorna para o campo de batalha ele estaacute disposto a auxiliar seus iacutesoi O cavalo tambeacutem eacute um
animal que oscila entre o mundo dos homens e dos deuses (SCHNAPP-GOURBEILLON
1981 p 162) corroborando o caraacuteter theoeidḗs de Paacuteris e a ideia defendida por Ann Suter de
que Paacuteris eacute um nome que tem relaccedilatildeo com o divino Homero o usa nesses versos ao se referir
a ele antes de comparaacute-lo a um cavalo
Alguns personagens (como Astyacuteanax que tambeacutem eacute chamado de Skamaacutendrios) teriam
nomes duplos um para ser usado costumeiramente e outro em casos especiais dentro de
grupos especiais este uacuteltimo relacionando-se agrave esfera do divino Ann Suter utiliza-se do
pensamento de R Lazzaroni que mostra que existe na epopeia uma ldquolinguagem dos deusesrdquo
e uma ldquolinguagem dos homensrdquo (SUTER 1984 p 28) O nome Paacuteris que eacute menos comum
na Iliacuteada do que Aleacutexandros eacute utilizado apenas pela famiacutelia e ldquoem contextos em que o poeta
deseja enfatizar sua divindade nesse caso como uma fonte de inspiraccedilatildeo para um guerreiro
em combaterdquo (SUTER 1984 p 31) Paacuteris tambeacutem teria conexatildeo com a ilha de Paros um dos
lugares de culto a Dioniso
Quando Heitor jaacute estaacute morrendo diz a Aquiles que ldquoO coraccedilatildeo tens de ferro
impossiacutevel me fora dobraacute-lo Que isso poreacutem contra ti natildeo provoque a vinganccedila dos deuses
quando tiveres de a vida perder muito embora esforccedilado das Portas Ceacuteias em frente aos
ataques de Paacuteris e Apolordquo [ἦ γὰρ σοί γε σιδήρεος ἐν φρεσὶ θυmicroός φράζεο νῦν microή τοί τι
θεῶν microήνιmicroα41 γένωmicroαι ἤmicroατι τῷ ὅτε κέν σε Πάρις καὶ Φοῖβος Ἀπόλλων ἐσθλὸν
ἐόντ᾽ ὀλέσωσιν ἐνὶ Σκαιῇσι πύλῃσιν] (XXII vv 357-360) Aqui novamente Paacuteris eacute usado
num sentido divino pois remete agrave sua ligaccedilatildeo com o deus Apolo arqueiro como ele e que
lhe auxilia a atingir sua gloacuteria maacutexima ao matar o melhor dos aqueus Aquiles
Em Alexandre (fr 42d) Euriacutepides coloca que ldquoQuando ele (Paacuteris) se tornou um
homem jovem e excedeu muitos em beleza e forccedila a ele foi dado um segundo nome
Alexandre porque ele espantou bandidos e protegeu o rebanhordquo [γενόmicroενος δὲ νεανίσκος
καὶ πολλῶν διαφέρων κάλλει τε καὶ ῥώmicroῃ αὖθις Ἀλέχανδρος προσωνοmicroάσθη λῃστὰς
ἀmicroυνόmicroενος καὶ τοῖς ποιmicroνίοις ἀλεξήσας] Assim aqui ldquoAleacutexandrosrdquo eacute um distintivo um
41 Mecircnin (de mecircnis) eacute a primeira palavra da Iliacuteada significa ldquoirardquo O ultraje feito agrave timḗ de Aquiles por Agamemnon (a partir do momento que este lhe toma um geacuteras privileacutegio que lhe foi destinado Briseida) gera nele uma mecircnis a qual causa pecircma a todos ao longo da guerra A Iliacuteada eacute a histoacuteria da ira de Aquiles e suas consequecircncias como pontuou Jaqueline de Romilly (ROMILLY sd p 18) A palavra mecircnis ao longo do poema eacute utilizada para designar o que tem a ver com essa ira de Aquiles segundo Gregory Nagy (NAGY 1999 p 73 e 74) e isso nesta passagem se verifica
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segundo nome dado a uma pessoa que se destaca das outras Em As Troianas Helena usa
Paacuteris e Alexandre sem distinccedilatildeo
πρῶτον microὲν ἀρχὰς ἔτεκεν ἥδε τῶν κακῶν Πάριν τεκοῦσα δεύτερον δ᾽ ἀπώλεσε Τροίαν τε κἄmicro᾽ ὁ πρέσβυς οὐ κτανὼν βρέφος δαλοῦ πικρὸν microίmicroηmicro᾽ Ἀλέξανδρόν ποτε ἐνθένδε τἀπίλοιπ᾽ ἄκουσον ὡς ἔχει ἔκρινε τρισσὸν ζεῦγος ὅδε τριῶν θεῶν καὶ Παλλάδος microὲν ἦν Ἀλεξάνδρῳ δόσις Φρυξὶ στρατηγοῦνθ᾽ Ἑλλάδ᾽ ἐξανιστάναι Ἥρα δ᾽ ὑπέσχετ᾽ Ἀσιάδ᾽ Εὐρώπης θ᾽ ὅρους τυραννίδ᾽ ἕξειν εἴ σφε κρίνειεν Πάρις Κύπρις δὲ τοὐmicroὸν εἶδος ἐκπαγλουmicroένη δώσειν ὑπέσχετ᾽ εἰ θεὰς ὑπερδράmicroοι κάλλει [] ἦλθ᾽ οὐχὶ microικρὰν θεὸν ἔχων αὑτοῦ microέτα ὁ τῆσδ᾽ ἀλάστωρ εἴτ᾽ Ἀλέξανδρον θέλεις ὀνόmicroατι προσφωνεῖν νιν εἴτε καὶ Πάριν ὅν ὦ κάκιστε σοῖσιν ἐν δόmicroοις λιπὼν Σπάρτης ἀπῆρας νηὶ Κρησίαν χθόνα Primeiro essa aiacute gerou as origens dos males Paacuteris tendo gerado depois o velho destruiu Troacuteia e a mim ao natildeo matar o bebecirc acre imitaccedilatildeo de um ticcedilatildeo ndash Alexandre entatildeo A partir daiacute o restante escuta como eacute Aquele julgou um triplo jugo de trecircs deusas bem o dom de Palas para Alexandre era despovoar a Heacutelade comandando friacutegios Hera jurou que sobre a Aacutesia e os limites da Europa Paacuteris se a escolhesse teria a soberania Ciacutepris com minha aparecircncia se estonteando prometeu daacute-la se ultrapassasse as deusas em beleza [] [Paacuteris] Veio trazendo uma deusa natildeo miuacuteda consigo O nume vingador42 dessa aiacute se queres Chamar-lhe de Alexandre ou se de Paacuteris Deixando-o em tua casa oacute maldito43 De navio partiste de Esparta rumo a Creta (As Troianas vv 919-931 940-943 ndash grifos nossos)
O helenista Michael Lloyd chama a atenccedilatildeo para esse uso indistinto de Paacuteris e
Alexandre em Euriacutepides (LLOYD 1989 p 77) mas ele tambeacutem crecirc que esse uso eacute indistinto
em Homero o que discordamos mostramos com a anaacutelise de Ann Suter que eacute possiacutevel que
Paacuteris seja um nome divino e Alexandre um nome comum Cremos que essa indiferenccedila se daacute
em Euriacutepides porque nosso heroacutei em suas obras natildeo representa tanto um exemplo a ser
seguido mas porque ele eacute um baacuterbaros Paacuteris perde o caraacuteter helecircnico e helenizante que ele 42 Alaacutestōr eacute um gecircnio mau (ldquomauvais geacutenierdquo BAILLY 2000 p 73) o que reforccedila a ideia de Paacuteris como um causador de males 43 Kaacutekiste (vocativo de kaacutekistos) seria ldquoo pior de todosrdquo Aqui a palavra kakoacutes (que indica tanto o feio quanto o mau) aparece com o sufixo ndashistos que indica superlativo
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apresenta na Iliacuteada sendo aqui a suacutemula da alteridade completa ele tanto eacute o estrangeiro
como aquela pessoa indesejada na cidade
Quando comeccedilamos nossa pesquisa de graduaccedilatildeo natildeo tiacutenhamos conhecimento de
nenhum autor que tratasse de Paacuteris especificamente Conforme fomos pesquisando referecircncias
bibliograacuteficas descobrimos uma pequena discussatildeo filoloacutegica sobre essa dupla denominaccedilatildeo
de Paacuteris a qual eacute interessante recuperarmos Aliaacutes sobre Paacuteris especificamente apenas a
filologia debruccedilou-se
John A Scott (1913) crecirc que Aleacutexandros eacute uma traduccedilatildeo para o grego de Paacuteris De
etimologia imprecisa este seria um nome estrangeiro jaacute aquele formado pela composiccedilatildeo do
verbo aleacutexō (proteger defender) e do substantivo androacutes (homem varatildeo) seria grego porque
ambas as palavras que o formam satildeo gregas Aleacutem disso esse autor crecirc que Paacuteris eacute o grande
heroacutei da tradiccedilatildeo miacutetica em detrimento de Heitor seu irmatildeo Ele defende que Homero criou
Heitor para encarnar todos os valores heroicos que pertenciam a Paacuteris personagem o qual por
motivos morais natildeo poderia ser representado de maneira tatildeo heroica O nome Heacutektōr jaacute
existia nas tabuinhas de Linear B (e-ko-to) escrita da eacutepoca dos palaacutecios (XVII-XI aC)
(CHADWICK 1970 p 98) mas natildeo sabemos se Homero o pega emprestado para nomear
seu personagem ou se Heitor mesmo jaacute era um parte da tradiccedilatildeo miacutetica sendo recuperado por
Homero
Samuel E Bassett (1920) natildeo concorda nem discorda de John Scott mas mostra que haacute
pesquisas as quais apontam que Aleacutexandros poderia ser derivado do nome Alaksandu um
priacutencipe de Wilǔsa regiatildeo que seria a proacutepria Troia incluindo assim os avanccedilos da
Arqueologia Hititologistas defendem que Troia natildeo eacute nada mais que a regiatildeo denominada
Trūiša44
Na contracorrente dessa hipoacutetese de Scott veio Ann Suter (1984) com sua tese de
doutorado ParisAlexandros a study in Homeric technique of characterization com a
qual noacutes concordamos em muitos pontos Ela afirma que Paacuteris eacute mais utilizado num contexto
iacutentimo (pela famiacutelia ou seja troianos) sim mas que Aleacutexandros tambeacutem eacute usado pela sua
famiacutelia sendo o nome mais recorrente para denomina-lo Ela atribui esse fato agrave ideia de que
Paacuteris seria um nome divino utilizando a ideia de R Lazzaroni sobre a linguagem dos homens
6 A partiacutecula -iša eacute um sufixo dividindo a palavra (Trū-iša) temos como raiz o elemento trū- Em grego Troia eacute Troiacuteē (Τροίη) e provavelmete deriva de um vocaacutebulo mais antigo Trṓē (Τρώη) Trṓ-ē Como os hititas natildeo conheciam o som de ldquoōrdquo (ω) o -ū- poderia fazer esse papel (KLOEKHORST 2013 p 46) Assim a Troiacutee de Homero era a Trūiša hitita assim como o Aleacutexandros de Homero era o Alaksandu hitita Para mais informaccedilotildees ver sessatildeo V ndash Hipoacuteteses
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e a linguagem dos deuses em Homero Assim como inuacutemeros outros personagens da tradiccedilatildeo
miacutetica e das obras homeacutericas o segundo nome (mais incomum) do nosso heroacutei seria aquele
que o eleva agrave condiccedilatildeo de um ser divinizado visto que estaacute em constante relaccedilatildeo com
Afrodite e com Helena (que na tradiccedilatildeo miacutetica transforma-se em uma divindade apoacutes a
morte)
A autora tambeacutem defende que Paacuteris natildeo eacute um nome desprovido de etimologia (o que
caracterizaria sua origem estrangeira) poderia ser derivado de Paros uma ilha grega que tem
estreita relaccedilatildeo com o culto a Dioniso e com os festivais que lhe homenageiam atraveacutes da
reacutecita de versos iacircmbicos A poesia derivada do iacircmbico eacute de caraacuteter ldquoculpabilizanterdquo (blame
poetry) na qual se culpa algueacutem por algo disforizando essa pessoa Arquiacuteloco expoente
desse tipo de poesia era ele mesmo conhecido como Arquiacuteloco de Paros
Aleacutem disso ao observar que Paacuteris tem menos epiacutetetos que Aleacutexandros e que o
desenvolvimento formulaico daquela denominaccedilatildeo eacute precaacuterio em detrimento desta (o que natildeo
deveria acontecer pois Paacuteris eacute um nome que melhor se encaixa no hexacircmetro dactiacutelico) ela
chega agrave conclusatildeo de que aquela denominaccedilatildeo eacute mais recente do que Aleacutexandros sendo
impossiacutevel esta denominaccedilatildeo ser uma traduccedilatildeo daquela
Irene J F de Jong (1987) vai de encontro agrave tese de Scott argumentando que Paacuteris eacute um
nome utilizado no contexto troiano e Aleacutexandros em um contexto grego para ressaltar o
caraacuteter ldquoestrangeirordquo (DE JONG 1987 p 127) do personagem Segundo de Jong ldquoO poeta da
Iliacuteada ao manter o nome lsquotroianorsquo lsquoPaacuterisrsquo pode ter intencionado introduzir um elemento
lsquorealistarsquo na representaccedilatildeo dos troianos como falantes de uma liacutengua estrangeirardquo (DE JONG
1987 p 127) Assim ela concorda com John Scott pois Aleacutexandros continua sendo uma
traduccedilatildeo de Paacuteris Contudo ela confessa em uma nota de rodapeacute natildeo ter lido a tese de Ann
Suter embora a conheccedila (1987 p 127 n 4)
Discordando de todos os autores acima elencados Michael Lloyd (1989) argumenta que
natildeo haacute uma utilizaccedilatildeo consciente de Homero de Paacuteris e Aleacutexandros afirmando que natildeo haacute
distinccedilatildeo no emprego desses dois nomes em Homero e estendendo a anaacutelise a Euriacutepides Na
trageacutedia Paacuteris eacute utilizado mais vezes ainda do que Alexandre e Helena mesmo em As
Troianas utiliza os dois nomes para se referir a ele (LLOYD 1989 p 78) Ele conclui
assim que ldquoA nacionalidade do falante natildeo tem nada que ver com qual nome eacute usadordquo
(LLOYD 1989 p 77)
Essa discussatildeo eacute importante porque conforme o que os autores defendem pode-se
estabelecer uma relaccedilatildeo entre a denominaccedilatildeo dupla e o caraacuteter diferenciado de Paacuteris na Iliacuteada
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como representante de uma alteridade Entretanto acreditamos que essa dupla denominaccedilatildeo
tem a ver mais com um problema intratextual do que com um problema de definiccedilatildeo eacutetnica
pois concordamos com a anaacutelise de Ann Suter A definiccedilatildeo do caraacuteter diacutespar de Paacuteris como
um representante da alteridade e como um personagem-siacutentese das fronteiras eacutetnicas que
separas aqueus e troianos estaacute mais ligada ao discurso do poeta imbricado de uma ideologia
acerca dele e de seu grupo eacutetnico do que a escolha de um nome Esta estaacute mais ligada agrave
percepccedilatildeo de Paacuteris como um representante da aristocracia heroica
No seacuteculo V aC natildeo haacute duacutevidas de que os troianos pertencem a uma cultura Outra
de que eles satildeo baacuterbaroi Contudo natildeo podemos afirmar o mesmo para Homero Como
vimos muitos autores colocam os troianos como o Outro estrangeiro jaacute nas epopeias Eles
satildeo um Outro mas ainda natildeo deixam de partilhar um coacutedigo de conduta mesmo que com
suas reapropriaccedilotildees grego Satildeo essas reaprorpiaccedilotildees que configuram os troianos num grupo
eacutetnico distinto dos aqueus A ideia de que os troianos satildeo estrangeiros surge a posteriori
quando satildeo ldquofrigianizadosrdquo (HALL 1989 p 39) Um exemplo claro dessa ldquofrigianizaccedilatildeordquo
estaacute no diaacutelogo entre Orestes e o friacutegio em Orestes (vv 1506-1519 ndash grifos nossos)
ΟΡΕΣΤΗΣ ποῦ στιν οὗτος ὃς πέφευγεν ἐκ δόmicroων τοὐmicroὸν ξίφος ΦΡΥΞ προσκυνῶ σ᾽ ἄναξ νόmicroοισι βαρβάροισι προσπίτνων ΟΡΕΣΤΗΣ οὐκ ἐν Ἰλίῳ τάδ᾽ ἐστίν ἀλλ᾽ ἐν Ἀργείᾳ χθονί ΦΡΥΞ πανταχοῦ ζῆν ἡδὺ microᾶλλον ἢ θανεῖν τοῖς σώφροσιν ΟΡΕΣΤΗΣ οὔτι που κραυγὴν ἔθηκας Μενέλεῳ βοηδροmicroεῖν ΦΡΥΞ σοὶ microὲν οὖν ἔγωγ᾽ ἀmicroύνειν ἀξιώτερος γὰρ εἶ ΟΡΕΣΤΗΣ ἐνδίκως ἡ Τυνδάρειος ἆρα παῖς διώλετο ΦΡΥΞ ἐνδικώτατ᾽ εἴ γε λαιmicroοὺς εἶχε τριπτύχους θανεῖν ΟΡΕΣΤΗΣ δειλίᾳ γλώσσῃ χαρίζῃ τἄνδον οὐχ οὕτω φρονῶν ΦΡΥΞ οὐ γάρ ἥτις Ἑλλάδ᾽ αὐτοῖς Φρυξὶ διελυmicroήνατο ΟΡΕΣΤΗΣ ὄmicroοσον mdash εἰ δὲ microή κτενῶ σε mdash microὴ λέγειν ἐmicroὴν χάριν
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ΦΡΥΞ τὴν ἐmicroὴν ψυχὴν κατώmicroοσ᾽ ἣν ἂν εὐορκοῖmicro᾽ ἐγώ ΟΡΕΣΤΗΣ ὧδε κἀν Τροίᾳ σίδηρος πᾶσι Φρυξὶν ἦν φόβος ΦΡΥΞ ἄπεχε φάσγανον πέλας γὰρ δεινὸν ἀνταυγεῖ φόνον ORESTES Onde estaacute aquele que fugiu do palaacutecio agrave minha espada FRIacuteGIO (prosternando-se diante de Orestes) Eu te sauacutedo senhor prostrando-me segundo os modos baacuterbaros ORESTES Aqui natildeo estamos em Iacutelion mas em terra argiva FRIacuteGIO Em toda parte eacute mais doce viver do que morrer para os homens sensatos ORESTES Natildeo gritaste por acaso para que socorressem Menelau FRIacuteGIO Eu Pelo contraacuterio para que defendessem a ti Eacute que tu mereces mais ORESTES Foi entatildeo com justiccedila que a filha de Tindaacutereo morreu FRIacuteGIO Com toda a justiccedila Tivesse ela ao menos trecircs gargantas para morrer
ORESTES Por covardia procuras agradar com a liacutengua mas natildeo pensas assim no teu iacutentimo FRIacuteGIO Pois natildeo foi essa mulher a que arruinou a Heacutelade e com a Heacutelade os proacuteprios friacutegios ORESTES Jura ndash se natildeo mato-te ndash que natildeo falas para me agradar FRIacuteGIO Pela minha vida juro que eacute coisa por que farei jura sincera ORESTES Tambeacutem em Troia tinham assim medo do ferro os friacutegios todos FRIacuteGIO Afasta o glaacutedio Porque estando perto reflete uma morte terriacutevel
Aqui o friacutegio demostra ser um completo covarde prosterna-se grita Ele se mostra
extremamente temeroso pela sua vida e o seu discurso tenta dissuadir Orestes de assassinaacute-lo
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parece com o que se sucede no episoacutedio de Glauco e Diomedes no qual o embate fatal eacute
adiado E assim como Glauco o troiano de Orestes consegue que o priacutencipe o deixe vivo A
covardia a prosternaccedilatildeo e o grito satildeo traccedilos comuns de diferenciaccedilatildeo eacutetnica nas trageacutedias e
aqui aparece mais um elemento que jaacute se encontra na Iliacuteada a dissuasatildeo pela fala
Paacuteris aleacutem de ser um troiano eacute o causador da Guerra de Troia que fez perecer toda
uma linhagem de heroacuteis Em uma eacutepoca de guerra ele eacute a metaacutefora preferida tanto para os
espartanos (os inimigos na guerra) quanto para os atenienses perniciosos Nas trageacutedias de
Euriacutepides mesmo os espartanos satildeo representados de maneira pouco louvaacutevel a fronteira
entre o que eacute grego e o que natildeo eacute tambeacutem se encontra em crise e os espartanos (gregos) satildeo
comparados a baacuterbaros em suas trageacutedias O referencial de comparaccedilatildeo muitas vezes eacute o
troiano como acontece em Orestes Tiacutendaro pai de Helena ao reprimir Menelau por ouvir
Orestes matricida fala ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres estado muito tempo entre os baacuterbaros
[os troianos]rdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (EURIacutePIDES Orestes v 485)
Em Euriacutepides as questotildees acerca da alteridade entre aqueus e troianos e da etnicidade
do povo grego ficam mais claras em detrimento da Iliacuteada esse tragedioacutegrafo jaacute denomina os
troianos de baacuterbaroi termo que inexiste em Homero como vimos Euriacutepides encena suas
peccedilas no seacuteculo V aC num contexto no qual a poacutelis dos atenienses se encontra consolidada
mas jaacute entrava em crise em virtude da Guerra do Peloponeso Segundo Karl Reinhardt o
teatro euridipiano eacute exatamente o termocircmetro da crise A geraccedilatildeo jovem se coloca contra a
antiga mas ambas tecircm a chance de falar quase simultaneamente atraveacutes de seus poetas ndash
Euriacutepides e Soacutefocles ndash pois eles vivem num mesmo contexto (REINHARDT 2011 p 20)
O interessante eacute perceber que algumas caracteriacutesticas troianas vatildeo se perpetuar na
configuraccedilatildeo dos personagens sendo utilizadas para designar os baacuterbaros em geral o Outro
homogecircneo grego sobretudo os persas outro por excelecircncia O desrespeito agrave hospitalidade
comum ao Ciclope da Odisseia e a Paacuteris na Iliacuteada retornaraacute na trageacutedia como sinal de
barbaacuterie Quando Menelau chega ao Egito diz ldquoNenhum homem tem um coraccedilatildeo tatildeo
incivilizado a ponto de natildeo me dar comida ao ouvir meu nomerdquo [ἀνὴρ γὰρ οὐδεὶς ὧδε
βάρβαρος φρένας ὃς ὄνοmicro᾽ ἀκούσας τοὐmicroὸν οὐ δώσει βοράν] (EURIacutePIDES Helena vv
501-502) Seraacute comum por exemplo atribuir aos persas o domiacutenio do arco e contrastaacute-lo com
o modo grego de fazer guerra o tradicional face a face (HALL 1989 p 85) Eacute sobre esse
aspecto o modo de fazer guerra que nos debruccedilaremos em nosso proacuteximo capiacutetulo
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CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI
ldquoEu estarei com vocecirc
Todas as vezes que contar a minha histoacuteria Por ser tudo o que eu fizrdquo
(Remember Me ndash James Horner)
Vamos analisar nesse capiacutetulo como Paacuteris eacute representado como heroacutei e guerreiro e
como essa representaccedilatildeo se liga agrave nossa comparaacutevel Defendemos que Paacuteris eacute um exemplo de
como se agir na Iliacuteada visto que essa eacute a caracteriacutestica primordial do heroacutei homeacuterico e em
Euriacutepides o seu estatuto heroico eacute afetado pois ele eacute visto mais um ldquopastorrdquo (boukoacutelos v
Ifigecircnia em Aacuteulis v 574) ldquoescravordquo (douacutelos v Alexandre fr 48) ldquomuacutesicordquo (Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 576-577) e principalmente ldquobaacuterbarordquo designaccedilotildees comuns a ele na poesia traacutegica
que destoam da construccedilatildeo da personalidade heroica ideal Isso natildeo significa contudo que a
caracterizaccedilatildeo feita por Homero natildeo influencie na construccedilatildeo de Paacuteris em Euriacutepides visto que
defendemos que jaacute em Homero existe uma alteridade entre aqueus e troianos
Se o filme Troia (dir Wolfgang Petersen EUA 2004) natildeo ganhou muita
popularidade pelo excesso de liberdade poeacutetica em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da Iliacuteada essa epiacutegrafe
da muacutesica-tema do filme Remember Me escrita por James Horner e interpretada por Josh
Groban e Tanja Tzarovska pelo contraacuterio traz algo intriacutenseco agrave caracterizaccedilatildeo do heroacutei ele eacute
tudo o que ele faz em batalha Satildeo as faccedilanhas heroicas que datildeo dinamicidade agrave epopeia que
satildeo de fato o material sobre o qual elas se debruccedilam Na trageacutedia essas faccedilanhas e os dramas
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dos heroacuteis miacuteticos satildeo o material cataacutertico o qual o tragedioacutegrafo utiliza para compor suas
tramas Os atos dos heroacuteis satildeo exemplares para aqueles que os ouvem natildeo os heroacuteis per se
Essa ideia jaacute se encontra na Iliacuteada e para tratarmos de Paacuteris essa noccedilatildeo nos eacute
fundamental pois ele eacute um heroacutei agrave medida que demonstra atraveacutes dos seus atos como um
homem deve agir O locus privilegiado de atuaccedilatildeo de um heroacutei nesse poema eacute a batalha o
tema mesmo da Iliacuteada eacute a Guerra de Troia em si com os heroacuteis aqueus e troianos se
enfrentando fisicamente Esse cenaacuterio beacutelico encontramos somente na Iliacuteada pois em
Euriacutepides natildeo existe a possibilidade de analisarmos o comportamento de Paacuteris como um
combatente ele natildeo eacute mostrado como um nas suas trageacutedias Aliaacutes todas as trageacutedias do ciclo
troiano que analisamos natildeo se desenrolam na guerra Alexandre se passa antes da guerra
enquanto todas as outras se passam depois
Isso denota uma preferecircncia de Euriacutepides por mostrar um ambiente poacutes-beacutelico ele
trabalha com as consequecircncias de uma guerra para um povo Assim satildeo comuns temaacuteticas
que dizem respeito ao dilaceramento do nuacutecleo familiar da escravizaccedilatildeo daquele que era
livre privilegiando agraves vezes certos tipos de personagens que agrave primeira vista natildeo mereceriam
um destaque em uma obra traacutegica como por exemplo as escravas troianas Eacute por esse motivo
que muitos autores afirmam que Euriacutepides daacute voz a esses personagens ldquomarginaisrdquo (SAIumlD
2002 p 62) pois a degradaccedilatildeo que separa os extremos sociais (gregobaacuterbaro livreescravo)
eacute bem mais temiacutevel em uma sociedade em guerra a esposa do cidadatildeo pode virar a concubina
do inimigo Eacute soacute Atenas perder a guerra
A definiccedilatildeo do caraacuteter heroico muda ao longo dos seacuteculos sendo o heroacutei traacutegico
semelhante mas natildeo igual ao homeacuterico Gyumlorgy Lukaacutecs filoacutesofo alematildeo crecirc que o heroacutei
traacutegico traz um ldquobrilho renovadordquo sobre o homeacuterico explicando-o e transfigurando-o
(LUKAacuteCS 2000 p 33) Jacqueline de Romilly mostra como o sofrimento eacute intriacutenseco ao
heroacutei traacutegico ldquoPara ser traacutegico o heroacutei deve sofrer [] no espiacuterito mesmo do gecircnero traacutegico
a necessidade de pintar heroacuteis imperfeitos e atormentados em uma palavra de toma-los ndash
eles as exceccedilotildees ndash como paradigma da condiccedilatildeo humana e de seus malesrdquo (2013 p 210)
Na trageacutedia a noccedilatildeo de hamartiacutea (falha) se torna mais latente e o heroacutei eacute justamente
aquele a quem seus erros implicam em uma trama por exemplo Paacuteris em Alexandre eacute o
camponecircs eacute o habitante do ambiente selvagem (a montanha ndash PELOSO 2002 p 37) que
penetra na cidade reivindicando um reconhecimento o qual a priori natildeo lhe seria adequado
(os precircmios oriundos da vitoacuteria nos jogos troianos) Graccedilas aos erros de Clitemnestra e
Orestes os Aacutetridas sofrem uma desestruturaccedilatildeo familiar que vai se desenrolar em Orestes
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O heroacutei homeacuterico tambeacutem eacute falho mas essa falha estaacute ligada agrave aacutetē (perdiccedilatildeo) se
ocasiona uma situaccedilatildeo de desequiliacutebrio e o heroacutei tem que fazer por onde revertecirc-la Paacuteris e
Aquiles se assemelham nesse ponto ambos incorrem em aacutetē A causa da perdiccedilatildeo de Paacuteris eacute o
desrespeito da eacutetica hospitaleira retirando Helena do palaacutecio de seu esposo e a consequecircncia
direta eacute a proacutepria Guerra de Troia Jaacute a causa da perdiccedilatildeo de Aquiles eacute a recusa da suacuteplica
Agamecircmnon reconhece seu estado de aacutetē causado pela privaccedilatildeo do geacuteras (privileacutegio) de
Aquiles (a escrava troiana Briseida) e suplica a Aquiles seu retorno agrave guerra atraveacutes de uma
litḗ (suacuteplica) mas este a ignora Impedir que a aacutetē de outrem seja eliminada com a recusa de
uma suacuteplica acaba gerando um estado de aacutetē no proacuteprio Aquiles
O historiador Christopher Jones mostra como o termo hḗrōs (heroacutei) muda de acepccedilatildeo
ao longo tempo primeiramente essa palavra foi utilizada para denominar aqueles seres
puacuteblicos extraordinaacuterios executores de faccedilanhas mais extraordinaacuterias ainda os quais se
configuravam nos personagens principais das histoacuterias contadas pelas epopeias Com o passar
dos seacuteculos essa designaccedilatildeo foi ganhando uma nova roupagem e se infiltrando cada vez mais
nos interstiacutecios da sociedade e da vida privada Segundo Jones isso natildeo eacute uma decadecircncia
tampouco uma ressignificaccedilatildeo do termo visto que ele continua a ser usado para denominar
aqueles que tecircm poder no poacutes-morte mesmo numa acepccedilatildeo cristatilde O que acontece eacute a difusatildeo
e a continuidade da utilizaccedilatildeo de hḗrōs possibilitada pelo processo de expansatildeo da cultura
helecircnica o qual culmina no helenismo (c IV-I aC)
O termo passa a designar natildeo somente os heroacuteis da mitologia mas tambeacutem as pessoas
que se destacam na vida puacuteblica sobretudo ldquoaqueles que caiacuteram na guerra ou deram suas
vidas a serviccedilo de suas comunidades de outras maneirasrdquo (JONES 2010 p 1) Para Jones os
heroacuteis homeacutericos satildeo todos aqueles que lutaram em Troia seja grego ou troiano e tecircm mais a
ver com uma acepccedilatildeo ligada a senhor (lord) do que a guerreiro (warrior) No entanto como
vimos eacute na guerra que esse senhor pode demonstrar seu valor um senhor eacute necessariamente
um guerreiro no mundo homeacuterico Jones entretanto mostra uma resistecircncia da Atenas
Claacutessica em designar um morto comum de hḗrōs o que significa que eles mantecircm um certo
tradicionalismo em considerar apenas os heroacuteis mitoloacutegicos como hḗrōes (JONES 2010 p 3
4 e 21)
Em nossa pesquisa esbarramos sempre com a ideia de que Paacuteris na verdade seria um
anti-heroacutei pois ele apresenta uma seacuterie de atitudes que o caracterizariam como sendo uma
pessoa covarde medrosa etc Em primeiro lugar eacute necessaacuterio termos em mente que os heroacuteis
natildeo satildeo uma massa indistinta eles constituem um grupo social fechado com um coacutedigo de
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conduta modelar mas natildeo podemos nos esquecer de que uma sociedade eacute composta de
indiviacuteduos cada um com sua personalidade especiacutefica O eu natildeo se anula por causa do noacutes
ele se agrega ao noacutes contribuindo com sua singularidade ao todo
Vaacuterios autores se debruccedilaram de algum modo sobre os heroacuteis da Antiguidade de
maneira mais ou menos ampla tentando defini-los Joseph Campbell Robert Aubreton
Cedric Whitman Karl Kereacutenyi Gregory Nagy Seth L Schein Mariacutea Cecilia Colombani
Anastasia Serghidou David J Lunt e Christopher Jones Agrave exceccedilatildeo de Campbell Kereacutenyi
Serghidou e Lunt geralmente eles datildeo destaque aos heroacuteis homeacutericos Eacute interessante perceber
que natildeo haacute divergecircncia de opiniotildees mas complementaridade
Joseph Campbell foi pioneiro no tratamento dos heroacuteis seu estudo eacute de fins da deacutecada
de 1940 Muito influenciado pela Psicanaacutelise procura delinear o perfil do heroacutei em geral em
O heroacutei de mil faces Ele cria uma tipologia atraveacutes de um estudo comparado de vaacuterias
mitologias que abrange todos os heroacuteis de todas as eacutepocas e tradiccedilotildees epopeicas afirma que
esse personagem passa obrigatoriamente por doze estaacutegios em sua vida ela eacute permeada por
ritos de passagem Campbell natildeo fala de um heroacutei especiacutefico ou de uma determinada tradiccedilatildeo
heroica ele conceitua o heroacutei o vecirc como um homem que morreu como um ldquohomem
modernordquo mas que como um ldquohomem eternordquo ou seja ldquoaperfeiccediloado natildeo especiacutefico e
universalrdquo renasce para ldquoretornar ao nosso meio transfigurado e ensinar a liccedilatildeo de vida
renovada que aprendeurdquo (CAMPBELL 2007 p 28) Desse modo ele corrobora o valor
educacional que um heroacutei possui para aqueles que o rememoram aleacutem de pontuar o seu
caraacuteter mortal
Na deacutecada de 1950 Robert Aubreton escreveu um livro introdutoacuterio sobre Homero que
aborda de maneira diferente os heroacuteis Esse autor crecirc que haja uma psicologia em Homero
afirmando que a representaccedilatildeo deles eacute tatildeo humana que ldquoacabamos por consideraacute-lo natildeo mais
como heroacutei sobre-humano mas como homem igual a noacutes que por sua virtude e piedade
chega a se superarrdquo (AUBRETON 1968 p 188) Essa ldquopsicologia homeacutericardquo consiste
sobretudo na consideraccedilatildeo do heroacutei natildeo apenas em seu caraacuteter coletivo mas em sua
individualidade em sua especificidade Desse modo Aubreton divide esse capiacutetulo o qual ele
dedica aos heroacuteis de acordo com sua anaacutelise de cada um daqueles que ele crecirc serem
importantes nas epopeias Aquiles Paacutetroclo Agamecircmnon Heitor Paacuteris Menelau
Androcircmaca Helena Odisseu Peneacutelope Telecircmaco Nausiacutecaa e Eumeu Observemos que ele
inclui as mulheres (ldquoheroiacutenasrdquo segundo o autor) e o porqueiro Eumeu nessa seleccedilatildeo
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aumentando a gama de possibilidades de definiccedilatildeo do heroacutei ele eacute um(a) personagem miacutetico
corroborando a ideia de Christopher Jones acerca do que eacute o hḗrōs na eacutepica
Enquanto Aubreton publicava seu livro Cedric Whitman escrevia seu Homer and the
heroic tradition lanccedilado em 1958 e bem recebido quase todos os autores que trabalham com
heroacuteis mencionam seu trabalho em seus proacuteprios Ele tenta compreender a Iliacuteada agrave luz das
noccedilotildees que regem aquela sociedade representada por Homero (e a relaccedilatildeo existente entre os
heroacuteis e essa sociedade) Para esse autor a Iliacuteada jaacute apresenta um discurso bem proacuteximo do
traacutegico no qual a humanidade dos heroacuteis eacute representada de modo mais acentuado e a
demonstraccedilatildeo de sentimentos (como raiva amor compadecimento) eacute comum Whitman
tambeacutem trabalha com a noccedilatildeo do heroacutei como modelo como aquele que passa todas essas
noccedilotildees aos ouvintes da epopeia construindo um estudo de caso de Aquiles
No mesmo ano Karl Kereacutenyi publicou o seu Os Heroacuteis Gregos o livro eacute o segundo
volume da seacuterie Mitologia Grega cujo primeiro volume trata dos deuses gregos A proposta
do livro eacute apresentar os heroacuteis gregos a leitores acadecircmicos ou natildeo debruccedilando-se natildeo
somente sobre os relatos escritos sobre eles mas tambeacutem a cultura material tratando tambeacutem
da questatildeo do culto ao heroacutei e de sua historicidade Para Kereacutenyi os heroacuteis se mostram
ldquoentrelaccedilados com a histoacuteria com os acontecimentos natildeo de um tempo primevo que estaacute fora
do tempo mas do tempo histoacuterico [] Eles surgem diante de noacutes como se tivessem de fato
existidordquo (KEREacuteNYI 1998 p 17) Ao escrever sobre a guerra de Troia mais uma vez
Aquiles eacute o grande destaque da anaacutelise assim como faz nosso proacuteximo autor
Gregory Nagy em seu livro The best of the Achaeans concepts of the hero in
Archaic Greek poetry (1979) trata dessa tradiccedilatildeo anterior agrave composiccedilatildeo dos eacutepicos
defendendo que sua unidade se daacute justamente por essa origem em comum deles Nagy procura
delinear um perfil de Aquiles o qual ele considera o principal heroacutei da Iliacuteada comparando-o
com outros heroacuteis (Heitor e Neoptoacutelemo) e resgata do eacutepico uma seacuterie de noccedilotildees (como
kleacuteos aacutekhos peacutenthos timḗ) imprescindiacuteveis tanto para a compreensatildeo da funccedilatildeo das epopeias
quanto dos cultos heroicos Ele defende que esse culto surgiu simultaneamente agrave composiccedilatildeo
dos eacutepicos e que os jogos ldquode coroardquo (Oliacutempicos Iacutestmicos Deacutelficos e Nemeios) satildeo oriundos
da praacutetica de jogos fuacutenebres possuindo pois uma estrita relaccedilatildeo com o proacuteprio culto ao heroacutei
Nas epopeias no entanto natildeo haacute a menccedilatildeo ao culto dos heroacuteis pelo fato de esse culto ser
estritamente local ele defende que jaacute existe uma conotaccedilatildeo pan-helecircnica nelas e colocar uma
praacutetica religiosa que destoe da religiatildeo oliacutempica comprometeria esse caraacuteter
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Seth L Schein em The mortal hero an introduction to Homerrsquos Iliad (1984)
aproxima-se muito da anaacutelise de Nagy com relaccedilatildeo ao culto heroico ele natildeo existe nas
epopeias de Homero porque iria de encontro a toda a pan-helenicidade dos poemas definida
pela representaccedilatildeo apenas do culto aos deuses olimpianos Ele natildeo faz um estudo de caso de
nenhum heroacutei tentando abordaacute-los de maneira a tentar defini-los dentro da Iliacuteada Schein se
aproxima de Whitman em sua abordagem ao definir o heroacutei sob a oacutetica acentuada do humano
comparando o discurso das epopeias ao discurso traacutegico ele enfatiza o fato da morte ser a
uacutenica certeza que se tem acerca do destino de um heroacutei A proacutepria etimologia da palavra
hḗrōs denotaria isso
Hērōs parece ser etimologicamente relacionado com a palavra hōrē ldquoestaccedilatildeordquo [] em Homero hōrē significa em particular a ldquoestaccedilatildeo da primaverardquo e um ldquoheroacuteirdquo eacute ldquosazonalrdquo quando ele chega ao seu esplendor como flores na primavera soacute para ser cortado uma vez e para sempre (SCHEIN 2010 p 69)
Mariacutea Cecilia Colombani dedica dois pequenos toacutepicos aos heroacuteis em seu livro
introdutoacuterio sobre Homero (2005) Eles tratam da loacutegica aristocraacutetica e da funccedilatildeo da
soberania Colombani aborda uma seacuterie de noccedilotildees caras agrave aristocracia guerreira e que
perpassam todo o coacutedigo de conduta dessa sociedade que Homero representa Ela faz das
palavras de Louis Gernet que na deacutecada de 1960 publicou seu Anthropologie de la Gregravece
Antique as suas ldquoOs heroacuteis formam uma espeacutecie aparte entre os deuses e os homens seus
representantes satildeo efetivamente homens mas homens que depois da morte adquiriram uma
condiccedilatildeo e estatuto sobre-humanosrdquo (GERNET apud COLOMBANI 2005 p 58) Esses
homens segundo Colombani satildeo representantes de valores sociais (COLOMBANI 2005 p
60) e satildeo rememorados pela sociedade poliacuteade como exemplos a serem seguidos
Anastasia Serghidou escreveu um artigo sobre o heroacutei traacutegico especificamente no livro
Heacuteros et heroiumlnes dans les mythes et les cultes grecs organizado por Vinciane Pirenne-
Delforge e Emilio Suaacuterez de la Torre Ela acredita que ele eacute ldquofundado sobre a ideia de uma
divinizaccedilatildeo impossiacutevelrdquo sendo a imagem do heroacutei na trageacutedia ldquosemelhante ao homem mortal
ao qual o modelo heroico se coloca como aquele do personagem livre e do bom cidadatildeordquo
(SERGHIDOU 2000 p 1) A autora trabalha com a imagem do heroacutei decaiacutedo (heacuteros deacutechu)
colocando em primeiro plano a anaacutelise da dicotomia livre versus escravos O heroacutei eacute o homem
livre construiacutedo em contraposiccedilatildeo ao escravo e estaacute mais perto dos humanos do que os heroacuteis
de outrora
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David J Lunt em sua tese Athletes heroes and the quest for imortality in Ancient
Greece (2010) tambeacutem retorna agrave questatildeo do culto aos heroacuteis aproximando-se tambeacutem da
abordagem de Nagy embora natildeo o mencione em sua discussatildeo bibliograacutefica Seu destaque
estaacute em mostrar como o heroacutei homeacuterico serviu de exemplo para os homens da poacutelis sobretudo
para os atletas Para isso ele delineia com mais precisatildeo o que seria um heroacutei para os gregos e
os modos pelos quais eles foram rememorados comeccedilando pelos heroacuteis homeacutericos passando
por Teseu os Dioacutescuros (Castor e Poacutelux) e Heacuteracles ateacute chegar nos heroacuteis de ldquocarne e ossordquo
que foram rememorados nas competiccedilotildees atleacuteticas atraveacutes das reacutecitas em sua homenagem
No mesmo ano Christopher Jones lanccedila New heroes in Antiquity from Achilles to
Antinoos livro cujo objetivo como vimos eacute mostrar como o termo hḗrōs (heroacutei) foi utilizado
ao longo do tempo para denominar natildeo mais aqueles grandes heroacuteis do passado mas tambeacutem
pessoas comuns que se destacavam de algum modo na sociedade ressaltando como a difusatildeo
dessas histoacuterias miacuteticas foram imprescindiacuteveis para que essa definiccedilatildeo penetrasse nos
interstiacutecios das sociedades do periacuteodo claacutessico Assim sua anaacutelise perpassa desde o heroacutei
homeacuterico (miacutetico) ateacute o heroacutei ldquoheroicizadordquo no caso o romano Antiacutenoo que morreu em 130
dC
Em virtude dessa revisatildeo bibliograacutefica de tratamento do heroacutei podemos concluir que a)
a mortalidade do heroacutei eacute constantemente reforccedilada b) eles natildeo estatildeo ligados apenas a um
plano mortal mas a um divino tambeacutem seja por terem parentescos com deuses seja por
serem protegidos de um seja por serem cultuados como divindades apoacutes suas mortes c) o
heroacutei eacute exemplar pois eacute portador de um coacutedigo de conduta no qual as suas aretaiacute estatildeo
sempre postas agrave prova sobretudo na batalha e assim os mortais comuns querem chegar o
mais proacuteximo possiacutevel dessa gloacuteria heroica seja associando um heroacutei agrave sua famiacutelia seja sendo
vitorioso em suas atividades d) eles tecircm uma materialidade histoacuterica pois os gregos criam na
veracidade dos mitos em que eles acreditavam e) o heroacutei traacutegico eacute mais falho do que o
homeacuterico o qual sempre procura restabelecer sua posiccedilatildeo de destaque com suas accedilotildees
Nenhum desses autores que trabalham diretamente com os heroacuteis fazem um estudo
especiacutefico de comparaccedilatildeo entre os heroacuteis homeacutericos e traacutegicos ou sobre Paacuteris seja na poesia
eacutepica seja na poesia traacutegica Contudo essas obras aqui mencionadas seratildeo fulcrais para a
anaacutelise de Paacuteris pois ele pertence agrave categoria dos heroacuteis
Na Iliacuteada Paacuteris eacute o heroacutei da paixatildeo seus epiacutetetos natildeo satildeo beacutelicos como os de outros
personagens e ele natildeo eacute o melhor guerreiro troiano como veremos Tambeacutem natildeo eacute um
personagem belicoso Como lembra Aubreton ldquoHomero faz de Paacuteris o homem amoroso por
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excelecircncia e que natildeo pode resistir agrave paixatildeo que os deuses lhe inculcaramrdquo (AUBRETON
1968 p 202)
Enquanto o nosso heroacutei se arma para a guerra eacute designado por dicircos (divino
semelhante aos ceacuteus ndash ldquosky-likerdquo (SUTER 1984 p 59) epiacuteteto comum a outros personagens
como seu proacuteprio irmatildeo Tambeacutem aparece outro epiacuteteto recorrente de Paacuteris ldquomarido de
Helena cacheadardquo (Eleacutenēs poacutesis ēykoacutemoio) reforccedilando sua relaccedilatildeo com Helena Ann Suter
chama a atenccedilatildeo que essa construccedilatildeo formulaica aparece somente em relaccedilatildeo a Zeus e Hera
(1984 p 68) e que das cinco vezes que aparece quatro satildeo dentro do campo de batalha
(1984 p 70) Isso significa para a autora que ldquoa sua imagem como Ἑλένης πόσις ἠϋκόmicroοιο
eacute aquela de um guerreiro bem-sucedido e conselheiro [] Talvez Paacuteris natildeo se sinta em casa
no campo de batalha por natureza mas quando ele de fato luta eacute por causa de sua relaccedilatildeo
com Helenardquo (1984 p 70-1) Eacute o que Robert Aubreton afirma
Tendo conquistado a sua ldquodeusardquo [Helena] nada mais interessa a Paacuteris senatildeo conservaacute-la Para tanto satildeo-lhes necessaacuterias a vida e a salvaguarda de Troacuteia Ele soacute luta em caso extremo quando Troia corre perigo quando por conseguinte seu amor estaacute ameaccedilado Eacute hostil a qualquer compromisso que possa resultar em devolver a Menelau aquela que lhe arrebatou (AUBRETON 1956 p 169)
Essa relaccedilatildeo intriacutenseca de Paacuteris com a paixatildeo (seja pelos seus epiacutetetos seja pela
relaccedilatildeo protecional que Afrodite estabelece com ele) tem uma relaccedilatildeo latente com a sua
proacutepria atuaccedilatildeo na batalha como excelente heroacutei do amor ele deixa a desejar como heroacutei
beacutelico Amor e guerra natildeo combinam Paacuteris treme e muda de cor ao se defrontar com Menelau
(III v 35) ele fica ocirckhroacutes paacutelido
Ainda na Iliacuteada a makhlosyacutenē a luxuacuteria de Paacuteris aparece como a engrenagem-
princiacutepio dessa aacutetē cuja consequecircncia eacute a proacutepria guerra (visto que se remete agrave escolha de
Afrodite) (XXIV vv 25-30) Em Euriacutepides essa ideia de que o enlace amoroso entre Paacuteris e
Helena eacute o causador da guerra retorna (As Troianas vv 398-399 vv 780-781 Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 467-468 Helena vv 25-30 vv 223-224 vv666-668) embora o tragedioacutegrafo
oscile dependendo da obra e de quem eacute o enunciador (se grego ou troiano) em atribuir a
Helena um papel ativo ou passivo em sua retirada do palaacutecio
No Canto VII da Iliacuteada (vv 354-365) os troianos se reuacutenem em assembleia Antenor
um conselheiro afirma que o que se deve fazer eacute devolver Helena e os tesouros aos gregos
Paacuteris no entanto descarta essa possibilidade natildeo se opondo no entanto a entregar os bens
materiais O problema eacute Helena ele jamais a devolveraacute Paacuteris natildeo faz questatildeo das riquezas as
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quais parece natildeo lhe faltam no Canto XI ele inclusive utiliza-se delas para ldquoincentivarrdquo
Antiacutemaco a fazer oposiccedilatildeo contra a devoluccedilatildeo da esposa ldquo[Teucro] Prostra a Pisandro
depois e o nas pugnas intreacutepido Hipoacuteloco filhos de Antiacutemaco o saacutebio que mais do que
todos fazia oposiccedilatildeo para Helena natildeo ser restituiacuteda ao marido ndash fruto de belos presentes por
parte de Paacuteris muito ourordquo [αὐτὰρ ὃ Πείσανδρόν τε καὶ Ἱππόλοχον microενεχάρmicroην υἱέας
Ἀντιmicroάχοιο δαΐφρονος ὅς ῥα microάλιστα χρυσὸν Ἀλεξάνδροιο δεδεγmicroένος ἀγλαὰ δῶρα
οὐκ εἴασχ᾽ Ἑλένην δόmicroεναι ξανθῷ Μενελάῳ] (XI vv 122-125 ndash grifos nossos) Fica claro
que Paacuteris ldquocomprardquo a opiniatildeo de Antiacutemaco com ldquoaglaaacute docircrardquo e ldquomaacutelista khrysogravenrdquo
Essa ideia de que os troianos possuem ouro em demasia eacute recorrente em Euriacutepides Em
Heacutecuba (vv 10-12) Polidoro relata que Priacuteamo ldquocomigo muito ouro enviourdquo [πολὺν δὲ σὺν
ἐmicroοὶ χρυσὸν ἐκπέmicroπει ndash grifos nossos] para o traacutecio que o hospedou (e acabou o matando
para ficar com todo esse ouro) Novamente (vv 492-493) os troianos satildeo mostrados
possuindo muito ouro quando Taltiacutebio pergunta se a mulher que ele vecirc eacute Heacutecuba a ldquorainha
dos friacutegios de muito ourordquo [ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν] Em As Troianas no
agṓn entre Heacutecuba e Helena a primeira ressalta que a segunda ldquoVislumbrando-o [Paacuteris] com
trajes baacuterbaros e com ouro luzindo teu espiacuterito desvairou-serdquo [ὃν εἰσιδοῦσα βαρβάροις
ἐσθήmicroασι χρυσῷ τε λαmicroπρὸν ἐξεmicroαργώθης φρένας ndash grifos nossos] (vv 991-992)
Em Helena o adjetivo polykhryacutesos (no acusativo plural polykhryacutesous) eacute usado para
designar os doacutemoi (construccedilotildees) troianos Em Ifigecircnia em Aacuteulis Agamemnon comenta o
princiacutepio da guerra quando ldquoO homem que julgou as deusas (assim eacute a histoacuteria que os
homens contam) veio da Friacutegia para a Lacedemocircnia vestido roupas de cores vibrantes e
brilhando com joias de ouro a luxuacuteria dos baacuterbarosrdquo [ἐλθὼν δ᾽ ἐκ Φρυγῶν ὁ τὰς θεὰς
κρίνων ὅδ᾽ ὡς ὁ microῦθος Ἀργείων ἔχει Λακεδαίmicroον᾽ ἀνθηρὸς microὲν εἱmicroάτων στολῇ
χρυσῷ δὲ λαmicroπρός βαρβάρῳ χλιδήmicroατι] (vv 71-74) Esse excerto revela que o ouro eacute a
ldquoluxuacuteria dos baacuterbarosrdquo a predileccedilatildeo pelo ouro eacute um costume do Outro e o distingue dos
gregos A helenista Helen Bacon afirma que Euriacutepides eacute menos detalhista que Soacutefocles e
Eacutesquilo ao descrever as vestimentas baacuterbaras embora o embate com o baacuterbaro esteja mais
presente em suas obras mas que o ouro em excesso a riqueza das roupas eacute um elemento
distintivo do baacuterbaro (BACON 1955 p 87 123 e 124) servindo assim como um marcador
eacutetnico Muito ouro eacute sinal de excesso por isso eacute que os baacuterbaros satildeo caracterizados com o
adorno de muitas joias (HALL 1989 p 80)
Em Androcircmaca esse adjetivo (no dativo polychryacutesō) eacute novamente utilizado para
designar os troianos (v 2) Contudo a proacutepria Hermiacuteone (v 147-154) uma grega usa muito
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ouro e a proacutepria Helena se deixa seduzir pelo ouro de Paacuteris como vimos no excerto de As
Troianas Natildeo podemos deixar de observar que Hermione eacute uma espartana
Os espartanos nas obras de Euriacutepides satildeo representados como pessoas que se
assemelham aos baacuterbaros como fica claro por exemplo na passagem em que Tiacutendaro
recrimina Menelau dizendo-lhe ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres vivido tanto tempo entre os
baacuterbarosrdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (Orestes v 485) Euriacutepides os
representa dessa maneira porque eles satildeo os inimigos dos atenienses na Guerra do
Peloponeso o grego pode voltar a um estado de barbaacuterie como acontece com os espartanos
Assim representar Hermiacuteone usando muito ouro ou depreciar Menelau (como acontece em
Orestes ou Ifigecircnia em Aacuteulis que inclusive ganha o primeiro precircmio na competiccedilatildeo traacutegica
em que foi encenada) eacute representar o espartano como semelhante ao baacuterbaro porque eacute digno
de cometer atos baacuterbaros sobretudo durante a guerra
Entretanto por mais que Euriacutepides faccedila essas correlaccedilotildees dada a natureza ldquotemaacutetica e
simboacutelicardquo de suas obras (BACON 1955 p 124) o troiano ainda eacute o referencial de barbaacuterie
em Androcircmaca Hermione afirma agrave personagem-tiacutetulo que ldquonatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade helecircnicardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) pedindo para que ela natildeo
introduza costumes do seu ldquobaacuterbaron geacutenosrdquo laacute Em Orestes a caracterizaccedilatildeo do friacutegio como
um homem medroso covarde que se prosterna e elabora um discurso defensivo para manter a
sua vida corrobora seu pertencimento ao domiacutenio dos baacuterbaros
Na Iliacuteada o excesso de ouro de Troia natildeo designa barbaacuterie mas definitivamente
designa uma alteridade Somente os troianos satildeo relacionados agrave posse do ouro (II vv 229-
231) e eles satildeo justamente o inimigo na guerra Embora os heroacuteis homeacutericos sejam regidos
por um ideal de conduta comum os troianos satildeo diferentes dos aqueus o uso que eles fazem
desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes
Paacuteris se utiliza de todos os meios para manter a posse de sua amada Helena desde
suas riquezas ateacute mesmo sua vida ele soacute entra em batalha quando se vecirc a ponto de perde-la
Por isso ele natildeo possui tantos epiacutetetos ligados agrave guerra Heroacuteis como Aquiles Agamecircmnon
Menelau Odisseu e o proacuteprio Heitor satildeo qualificados com adjetivos relacionados ao ambiente
beacutelico No Canto III da Iliacuteada no qual Helena mostra alguns heroacuteis a Priacuteamo fica evidente
isso Vejamos os epiacutetetos desses guerreiros em comparaccedilatildeo aos de Paacuteris no supracitado
Canto
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Agamemnon ldquohomem de aspecto imponenterdquo (v 166) ldquorei poderosordquo (v 178) ldquotatildeo belo e
de tal corpulecircnciardquo (v 167) ldquotatildeo belo conspectordquo (v 169) ldquomajestade tatildeo
granderdquo (v 170) ldquode Atreu descendenterdquo (v 178) ldquotatildeo grande rei chefe de
homens quatildeo forte e notaacutevel guerreirordquo (v 179) ldquoventurosordquo (v 182) ldquofilho
dileto dos deusesrdquo (v182)
Odisseu ldquode espaldas mais largas de ver e de peito mais amplordquo (v 194) ldquoguieiro
velosordquo (v 197) ldquoastucioso guerreirordquo (v 200) ldquoem toda sorte de ardis
entendido e varatildeo prudentiacutessimordquo (v 203) ldquoo astuciosordquo (v 216) ldquoindiviacuteduo
bisonho que o cetro na matildeo mantivesse () imaginara talvez ser pessoa
inexperta ou insensatardquo (vv 218-220)
Menelau ldquode Ares forte disciacutepulordquo [areḯphilos] (v 206)
Aacutejax
Telamocircnio
ldquotatildeo belo e de tal corpulecircnciardquo (v 226) ldquode bem maior estatura e de espaldas
mais largas que os outrosrdquo (v 227) ldquobaluarte dos homens Aquivosrdquo (v 229)
ldquogiganterdquo (v 229)
Heitor ldquode penacho ondulanterdquo (v 83)
Paacuteris ldquodivordquo [theoeidḗs dicircos] (vv 16 37 100 328 437) ldquobelordquo (v 27) ldquode
formas divinasrdquo (v 58) ldquode belas feiccedilotildeesrdquo (v 39) ldquosedutor de mulheresrdquo (v
39) ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a belezardquo (v 54) ldquomarido
de Helena de belos cabelosrdquo (v 328)
Agamemnon eacute o aacutenax ele eacute o chefe da expediccedilatildeo rei de todos os reis eacute o chefe de
homens o notaacutevel guerreiro aqui estaacute denotado seu aspecto beacutelico sobretudo pela sua
habilidade de comando Odisseu com a sua astuacutecia tambeacutem possui um aspecto beacutelico isso se
daacute porque essa meacutetis natildeo estaacute ligada apenas agrave dissimulaccedilatildeo agrave mentira mas ao planejamento
mesmo necessaacuterio a uma guerra Eacute ele que tem a ideia do cavalo de Troia que garante a
vitoacuteria dos gregos essa guerra foi ganha pela meacutetis Menelau eacute amigo de Ares (areḯphilos)
deus da guerra e Aacutejax eacute o gigante corpulento personagem cuja forccedila fiacutesica sobrepuja por
exemplo a forccedila da meacutetis ligada agrave inteligecircncia Do mesmo modo o penacho de Heitor se
refere a uma parte do seu elmo que por sua vez eacute parte da armadura de um guerreiro e ainda
pode se referir agrave sua habilidade com os cavalos (ressaltada em outros Cantos) pois o penacho
lembra a crina desse animal Como vimos o cavalo eacute necessaacuterio agrave guerra deslocando os
guerreiros no campo de batalha e agraves vezes auxiliando-os nas lutas Paacuteris natildeo possui epiacutetetos
87
beacutelicos e o uacutenico elemento relacionado agrave guerra que ele possui eacute o arco o qual eacute
desvalorizado
Na trageacutedia o arco eacute a arma do baacuterbaro por excelecircncia que por sua vez se
materializa na figura do persa Paacuteris eacute mostrado como um arqueiro duas vezes (Heacutecuba vv
387-388 Orestes v 1409) nas trageacutedias que analisamos assim como Teucro (Helena vv
75-77) A diferenccedila eacute que tanto em Heacutecuba quanto em Orestes o arco de Paacuteris eacute mencionado
em contexto beacutelico e em Helena Teucro usa seu arco fora da guerra e o iria utilizaacute-lo para
matar uma mulher natildeo um homem Homero tambeacutem traz essa ideia de diferenciaccedilatildeo de uso
do arco
Paacuteris entra na guerra com ldquoarco e espadardquo (toacutexa kai xiacutephos) e ldquoduas lanccedilas na matildeordquo
(dyacuteo kekorythmeacutena khalkocirc) Paacuteris eacute um arqueiro e isso fica bastante claro ao longo da Iliacuteada
Se teve uma arma que natildeo mudou muito ao longo do tempo foi o arco (KEEGAN 1995 p
179) embora variantes tenham surgido (como a besta ndash crossbow) ele eacute oriundo do Oriente
tendo entrado de uma vez por todas nas fileiras da infantaria grega atraveacutes do contato dos
cretenses com a Siacuteria e o Egito (SUTHERLAND 2001 p 113)
Na Guerra do Peloponeso (431-404 aC) os arqueiros ganharam um destaque muito
grande Marcos Alvito afirma inclusive que as forccedilas secundaacuterias (peltastas arqueiros
fundibulaacuterios e demais tropas ligeiras) tiveram um papel decisivo (SOUZA 1988 p 64)
embora a falange hopliacutetica sempre fora preferida a esse modo de luta (LISSARAGUE 2002
p 117) Essa preferecircncia se daacute em virtude de uma tradiccedilatildeo de se preterir as tropas ligeiras em
detrimento de uma forma de luta aristocraacutetica que implica na valorizaccedilatildeo do combate corpo a
corpo
Essa valorizaccedilatildeo jaacute comeccedila na Iliacuteada haacute pouquiacutessimos arqueiros e talvez se todos
eles morressem em batalha a Guerra de Troia natildeo seria encerrada por causa disso afinal
ldquoAqueus e Troianos se batem corpo-a-corpo e natildeo ficam agrave espera de apoio de flechas ou
de lanccedilas de longe atiradas lutando de bem pertordquo (Ἀχαιοί τε Τρῶές τε δῄουν
ἀλλήλους αὐτοσχεδόν οὐδ᾽ ἄρα τοί γε τόξων ἀϊκὰς ἀmicroφὶς microένον οὐδ᾽ ἔτ᾽ ἀκόντων
ἀλλ᾽ οἵ γ᾽ ἐγγύθεν ἱστάmicroενοι) (XV vv 707-712 ndash grifos nossos)
Mencionados haacute seis arqueiros na Iliacuteada Filoctetes e Teucro do lado aqueu Paacuteris
Pacircndaro Heleno e Doacutelon do lado troiano Tanto Paacuteris quanto Pacircndaro e Heleno usam o arco
em batalha Doacutelon aparece em apenas um Canto da Iliacuteada para morrer nas matildeos de Odisseu e
Diomedes e sua funccedilatildeo eacute a de espiar os aqueus natildeo de lutar contra eles natildeo chegando a
entrar em batalhas Filoctetes vem acompanhado de um grupo de arqueiros que natildeo chegam a
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entrar em accedilatildeo Tampouco o proacuteprio heroacutei o faz ele foi abandonado em uma ilha por seus
companheiros no caminho para Troia em decorrecircncia de um ferimento que exalava um odor
terriacutevel
Haacute ainda o povo da Loacutecrida um povo arqueiro o qual foi auxiliar os aqueus Eacute
mencionado uma vez no poema mas ele natildeo entra em batalha os loacutecrios satildeo medrosos
demais para isso (XII vv 712-718) Do lado aqueu Teucro eacute o uacutenico que luta em batalha
com o arco e ele aparece em Helena de Euriacutepides portando-o ele quase atira na esposa de
Menelau durante a peccedila Ele vai parar no Egito onde estaacute tambeacutem Helena O motivo Ele foi
expulso de sua terra pelo pai Ser exilado era algo vexatoacuterio o economista Eacutemile Mireaux
mostra que os exilados comeccedilam a surgir por volta do seacuteculo VII aC mas que a praacutetica de
um membro de uma comunidade se exilar natildeo era tatildeo incomum antes dessa data
A estes contingentes de desenraizados deve-se finalmente acrescentar todos aqueles que uma vinganccedila um crime um homiciacutedio agraves vezes acidental obrigaram a deixar a famiacutelia e a cidade e a procurar o refuacutegio da hospitalidade agraves vezes para sempre Pois quando o fugitivo culpado eacute apenas um bastardo ou mesmo um simples filho segundo raras satildeo as famiacutelias dispostas a assumir o encargo do pagamento de uma composiccedilatildeo para recuperar um membro que em regra geral natildeo eacute senatildeo um encargo suplementar para o patrimocircnio familiar (MIREAUX sd p 255)
Na Atenas Claacutessica a praacutetica do ostracismo vem reforccedilar a ideia de que ser privado de
viver em sua terra era um dos piores castigos os cidadatildeos atenienses escreviam em um
pedaccedilo de ceracircmica oacutestrakon o nome de quem deveria ser exilado por ser perigoso agrave ordem
democraacutetica Teucro em Helena representa algueacutem indesejado o que corrobora a ideia de
que o arco era uma arma que denotava vileza Ser privado de sua poacutelis era o equivalente a
estar morto (HALL 1997 p 97)
Mas falta algum arqueiro nesse time aqueu natildeo Ou foi esquecido o famoso arco de
Odisseu objeto que definiraacute o destino de Peneacutelope no palaacutecio de Iacutetaca Justamente seu arco
estaacute em casa Odisseu natildeo o utiliza na guerra Aqui o arco tem uma funccedilatildeo outra a qual natildeo
se perdera atraveacutes do tempo caccedila e esporte passatempos comuns da aristocracia Desse
modo a maioria do contingente de arquearia eacute oriundo do lado troiano da guerra
Os arqueiros natildeo lutam face a face atiram de longe suas setas O seu comportamento
na Iliacuteada eacute bastante peculiar eles compartilham de uma comunicaccedilatildeo natildeo-verbal e verbal
bastante parecida escondem-se e jactam-se quando ferem o inimigo (por exemplo V vv
100-106 XIII vv 593-597 vv 712-718) Aleacutem disso fugir e sentir medo eacute bem mais comum
entre eles do que entre os outros guerreiros (por exemplo III vv 33-37 XII vv 712-718)
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Esse comportamento natildeo eacute adequado dentro do coacutedigo de conduta guerreira o que torna o
grupo dos arqueiros de certa forma marginalizado no campo de batalha pertencendo a uma
categoria hieraacuterquica inferior agrave daqueles que usam a lanccedila ou a espada na luta
Paacuteris aparece na Iliacuteada pela primeira vez no Canto III os dois exeacutercitos se aproximam
e ele chama os aqueus para lutar em um embate singular (III vv 15-20) quando um guerreiro
luta sozinho com outro corpo-a-corpo Esse tipo de combate eacute o que mais acontece nessa
epopeia Mesmo numa batalha coletiva em que todo o exeacutercito estaacute lutando satildeo batalhas
singulares que ocorrem sabemos o nome de quem mata e de quem morre
Por isso que natildeo podemos dizer que haacute a valorizaccedilatildeo somente de um em detrimento do
outro ambos ndash morto e assassino ndash satildeo relembrados Jean-Pierre Vernant e Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo se debruccedilaram de maneiras diferentes sobre esse tema da bela morte utilizando as
mesmas passagens da Iliacuteada As suas noccedilotildees resumem-se nos diagramas abaixo
No primeiro diagrama vemos a visatildeo de Vernant agravequeles que morrem em batalha eacute
implicada uma seacuterie de caracteriacutesticas que os tornam aacuteristoi (os melhores) Eacute o fato de morrer
em batalha que lhe daacute esse estatuto Para Rennoacute (segundo diagrama) natildeo eacute a sua morte que
lhe implica a qualidade de aacuteristos mas a morte dos outros matando em batalha que se
consegue angariar para si essas seacuteries de caracteriacutesticas configurando-se pois em aacuteristoi
Quando esses guerreiros implacaacuteveis esses aacuteristoi morrem eacute que se daacute a bela morte pois foi
a morte de pessoas honoraacuteveis Cremos que tanto Vernant quanto Rennoacute natildeo satildeo visotildees
diacutespares mas complementares acerca da bela morte Tanto uma concepccedilatildeo quanto outra estaacute
presente na Iliacuteada Homero ldquoequilibra igualmente a grandeza dos assassinos e o paacutethos
(sofrimento) dos assassinadosrdquo (SCHEIN 2010 p 72)
Nesse embate singular contra Menelau ele se veste antes (vv 328-339) A descriccedilatildeo eacute
longa porque no proacuteprio vestir-se haacute um processo e uma estrutura formulaica 1) cnecircmides
(ldquocaneleirasrdquo) 2) couraccedila 3) espada 4) escudo 5) elmo e 6) lanccedila Aqui estaacute basicamente
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todos os apetrechos necessaacuterios a um guerreiro e os quais estaratildeo presentes na armadura do
hoacuteplita Isso eacute interessante para que possamos comparar com o que a Arqueologia tem
trazido para noacutes Natildeo haacute por exemplo registros arqueoloacutegicos de cnecircmides no periacuteodo de
desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) como haacute no Poliacuteade Arcaico mas isso natildeo impede
que elas natildeo fossem feitas naquele periacuteodo em um material pereciacutevel (ZANON 2004 p
136) O mesmo acontece com as couraccedilas mas nada tambeacutem impede que elas fossem
derretidas para a reutilizaccedilatildeo do metal (ZANON 2004 p 137)
A espada (xiacutephos) que Paacuteris traz com cravos de prata tem correspondente
arqueoloacutegico de origem minoica esse tipo de espada natildeo era muito forte e quebrava saindo a
lacircmina do cabo Assim o guerreiro ficava desarmado (ZANON 2004 p 139) Embora natildeo
saibamos como eacute a espada de Menelau (soacute nos eacute dito que esse heroacutei se armou do mesmo
modo que Paacuteris) ela se quebra no decorrer da luta singular Isso mostra que o poeta da Iliacuteada
possuiacutea um conhecimento da cultura material palaciana Contudo esse tipo de espada natildeo
servia para corte (como acontece na epopeia) apenas para perfuraccedilatildeo Espadas que cortam e
perfuram soacute apareceriam por volta de 1200 aC (ZANON 2004 p 140)
Esse eacute mais um exemplo de mistura perioacutedica a espada corta e perfura como eacute de
conhecimento da audiecircncia homeacuterica mas o aspecto dela eacute o de uma espada palaciana
ldquoHomerordquo segundo a arqueoacuteloga brasileira Camila Aline Zanon ldquojuntou esses retalhos e os
costurou com tal primazia que somente com o surgimento da Arqueologia eacute que pudemos
diferenciar um pouco dos seus elementos constitutivos no tocante a essas eacutepocasrdquo (2004 p
146) Isso denota tambeacutem que ele natildeo ignorava as praacuteticas beacutelicas o que nos ajuda a
compreender mais a representaccedilatildeo de Paacuteris Outro ponto interessante reside no fato de que a
couraccedila que Paacuteris veste natildeo eacute sua eacute de Licaacuteone seu irmatildeo Nosso heroacutei natildeo possui sua
armadura completa corroborando a sua habilidade como arqueiro esse guerreiro fazia parte
das tropas ligeiras natildeo das pesadas Os membros daquela precisavam se despir da armadura
completa pesada para poder exercer sua funccedilatildeo na guerra perseguir o inimigo Eles
geralmente eram pessoas de menor condiccedilatildeo financeira que natildeo podiam arcar com um
armamento completo ou ateacute mesmo mercenaacuterios estrangeiros Eram fundibulaacuterios peltastas
arqueiros essas armas satildeo muito mais baratas
As batalhas singulares seguem uma ordem tambeacutem primeiro haacute o tiro de lanccedilas soacute a
partir daiacute que o embate corpo a corpo com espadas se desenrola (III vv 346-360) Aqui o
tiro de Paacuteris natildeo fere nem mesmo a armadura de Menelau enquanto o tiro deste atravessa o
escudo e seu khitṓn sua tuacutenica por baixo da armadura Paacuteris se encurva impedindo que algo
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pior lhe aconteccedila A luta continua e Menelau passa a atacar Paacuteris com a espada que se
quebra Issonatildeo eacute atribuiacuteda agrave sua fragilidade mas a um desiacutegnio dos deuses Contudo como
vimos era passiacutevel de isso acontecer
Afrodite vendo a desvantagem desse heroacutei o retira do campo de batalha colocando-o
no taacutelamo agrave espera de Helena Natildeo fosse a intervenccedilatildeo da deusa Menelau teria alcanccedilado
alto kŷdos ele eacute o valor que os deuses atribuem ao homem Nas palavras da filoacutesofa argentina
Mariacutea Cecilia Colombani ldquose kucircdos [sic] descende dos deuses kleacuteos ascende ateacute elesrdquo
(DETIENNECOLOMBANI 2005 p 52) Leslie Kurk acrescenta que aquele que possui
kŷdos tem um ldquopoder especial conferido por um deus que faz um heroacutei invenciacutevelrdquo (KURK
apud LUNT 2010 p 64) Se um homem natildeo demonstra ser digno desse valor ele morre
aacutephantos (invisiacutevel) e nṓnymnos (sem nome sem gloacuteria)
No Canto VI (vv 521-525) Heitor ao ver nosso heroacutei afirma que nenhum anḗr
poderia deixar de valorizar (atimaacuteō) seus ldquotrabalhos na guerrardquo (eacutergon maacutekhēs) mas que natildeo
quer os exercer gerando aiacuteskhos (vergonha) Esse verbo (atimaacuteō) eacute composto de duas partes
o prefixo de negaccedilatildeo a- e o verbo timaacuteō (valorizar) que daacute origem agrave palavra timḗ uma das
noccedilotildees mais caras ao guerreiro ela eacute o valor de uma pessoa Para um guerreiro o campo de
batalha eacute o locus privilegiado de demonstraccedilatildeo desse valor de sua honra Desse modo como
vimos eacute na Iliacuteada mais do que na Odisseia que os heroacuteis tecircm a sua timḗ posta a prova
Richard B Rutherford sintetiza bem o que significa essa honra na Greacutecia antiga
No coraccedilatildeo do sistema de valores dos heroacuteis de Homero estaacute a honra τιmicroή expressa pelo respeito de seus pares e personificada em formas tangiacuteveis ndash tesouros presentes mulheres um lugar honoraacutevel no banquete Em tempo de guerra eacute inevitaacutevel que a honra seja ganha sobretudo pelas proezas em batalha habilidade como um liacuteder e um lutador Outras qualidades satildeo tambeacutem admiradas ndash habilidade como orador piedade bom senso e conselho lealdade hospitalidade gentileza mas essas satildeo secundaacuterias e a uacuteltima poderia de fato estar sem lugar no combate (RUTHERFORD 1996 p 40)
Segundo Redfield a timḗ eacute a medida de um homem em relaccedilatildeo ao outro implicando
numa comparaccedilatildeo de um indiviacuteduo com outro Isso soacute eacute possiacutevel se esses homens estatildeo
inseridos em uma sociedade na qual existe uma publicidade das accedilotildees45 ou seja na qual se
verifique uma uniatildeo do que entendemos hoje como vida privada e vida puacuteblica O valor de um
45 A sociedade grega eacute uma sociedade agoniacutestica Esse termo natildeo existe na liacutengua portuguesa eacute um adjetivo derivado de um processo de aportuguesamento cuja base etimoloacutegica eacute a palavra aacutegon (competiccedilatildeo) Foi utilizado para caracterizar a sociedade helecircnica no que diz respeito agrave noccedilatildeo de competiccedilatildeo o indiviacuteduo estaacute sempre sob o olhar do puacuteblico sendo sinalizado por ele quando comete atos dignos (honrados) e indignos (vergonhosos)
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homem se lhe era atribuiacutedo natildeo por ele mesmo mas por outros homens Esse reconhecimento
eacute o que configura a kleacuteos a gloacuteria (ou reputaccedilatildeo)46 Esta eacute a gloacuteria dada pelos homens agravequeles
que se destacam Enquanto a vida tem um fim a kleacuteos eacute imortal pois ela se daacute atraveacutes da
rememoraccedilatildeo desses mortos grandiosos seja atraveacutes da oralidade ndash o canto do aedo ou a
narraccedilatildeo de mitos47 ndash seja atraveacutes da construccedilatildeo de tuacutemulos Na Iliacuteada uma passagem chama
atenccedilatildeo para isso trata-se de uma fala de Heitor (VII vv 81-91) Eacute no Canto VII tambeacutem (v 516) que Paacuteris recebe uma designaccedilatildeo interessante hyiograves
Priaacutemoio Ann Suter chama atenccedilatildeo para ela pois estaacute numa passagem que ldquoimplica numa
total reversatildeo da caracterizaccedilatildeo de covarde para heroacutei de mulherengo [womanizer] para
guerreirordquo (1984 p 71) Paacuteris como veremos depois de desafiar os guerreiros aqueus acaba
sendo enfrentado por Menelau e foge retornando depois para um combate singular Afrodite
ainda o retira da guerra e ele soacute volta a ela no Canto VII Justamente aqui no Canto que
intermedia sua fuga e seu retorno tanto no plano semacircntico quanto no linguiacutestico ocorre o
turning point de Paacuteris
No Canto VII tambeacutem Paacuteris mata seu primeiro adversaacuterio na Iliacuteada (vv 8-10) Ele eacute
Meneacutestio um korynḗtēs guerreiro que porta maccedila uma espeacutecie de porrete ou seja natildeo
utiliza as armas convencionais de guerra homeacuterica (espada ou lanccedila) Ele tambeacutem faz parte
das tropas ligeiras do exeacutercito aqueu assim como Paacuteris que eacute arqueiro do lado troiano Haacute
portanto uma equiparidade na luta o toxoacutetēs lutando contra o korynḗtēs No Canto seguinte
No Canto VIII Paacuteris continua demonstrar sua qualidade de arqueiro ele fere um dos cavalos
de Nestor com seu arco (VIII vv 80-84)
Paacuteris tambeacutem retorna agrave accedilatildeo no Canto XI Eacute nesse conjunto de Cantos (XI ao XIII)
que Paacuteris mais se mostra um guerreiro ativo utilizando sua arma principal o arco e flecha
Ele fere Macaacuteone afastando-o da luta e depois Euriacutepilo que estava retirando a armadura de
Apisaacuteone morto em batalha (XI vv504-509 vv 581-584) Outro alvo seu eacute Diomedes (XI
vv 369-395) Nosso heroacutei sai de um esconderijo (loacutekhos) e jacta-se A foacutermula utilizada eacute
ldquoeukhoacutemenos eacutepos ēuacutedardquo tiacutepica dessas situaccedilotildees de vangloacuteria (MARTIN 1989 p 29) Esse eacute
46 ldquoPara os gregos antigosrdquo segundo David Lunt ldquoa imortalidade heroica consistia em dois componentes gloacuteria e fama (kleacuteos) e honras cultuais (timḗ)rdquo (LUNT 2010 p 83) O culto ao heroacutei natildeo eacute mostrado na Iliacuteada a arqueologia jaacute mostrou que ele jaacute existia na eacutepoca de Homero (JONES 2010 p 14) A explicaccedilatildeo de Seth L Schein para o aedo da Iliacuteada e da Odisseia exclui-lo estaria no caraacuteter pan-helecircnico das obras ldquo[] a religiatildeo olimpiana de Homero eacute pan-helecircnica [] Homero transcende os limites do culto regional e local para criar na poesia uma unidade religiosa que natildeo existia historicamenterdquo (SCHEIN 2010 p 49) Christopher P Jones jaacute afirma o contraacuterio Homero influenciou o culto aos heroacuteis (JONES 2010 p 14) 47 David Lunt ao mostrar a etimologia da palavra kleacuteos mostra tambeacutem que ela tem uma estreita ligaccedilatildeo com essa cultura oral klyacuteein eacute ouvir Assim a ldquokleacuteos soacute pode ser possuiacuteda se algueacutem a proclama e algueacutem a escutardquo (LUNT 2010 p 88)
93
o comportamento tiacutepico de um arqueiro e por isso que Diomedes lhe adereccedila muitos insultos
A qualidade de Paacuteris como arqueiro (toxoacutetēs) eacute desprezada ldquoarco e flecha embora praticado
por certos indiviacuteduos como Paacuteris e Teucro eacute o mais longe possiacutevel marginalizada e o termo
lsquoarqueirorsquo pode ser ateacute mesmo usado como um insultordquo (RUTHERFORD 1996 p 38)
Paacuteris segue sua participaccedilatildeo em batalha liderando uma das colunas troianas contra os
acaios (XII v 93) Eneias heroacutei troiano de quem jaacute falamos em nossa introduccedilatildeo chama ao
seu auxiacutelio Paacuteris e outros guerreiros (XIII vv 489-495) Ainda nesse Canto Paacuteris mata outro
grego o coriacutentio Euqueacutenor estimulado pela perda de um amigo Harpaliatildeo (XIII vv 660-
663 671-672) Esta eacute a uacutenica vez em que um arco mata um aqueu Em todas as outras
passagens envolvendo tiros de arco apenas Teucro arqueiro aqueu mata com o arco Eacute
interessante perceber que o uacutenico arqueiro em atividade do lado aqueu se chama ldquoTroianordquo
ldquoTeucrordquo eacute outra denominaccedilatildeo para o troiano Isso corrobora a ideia do arco ser uma arma
tiacutepica desse exeacutercito Geralmente o arco apenas fere causando na maioria das vezes uma
reprimenda daquele que eacute atingido agravequele que atinge como eacute o caso de Diomedes e Paacuteris (e
ainda de Diomedes e Pacircndaro)
No Canto XV Paacuteris atinge por traacutes [oacutepisthe] Deiacuteoco quando este se retirava da luta
(XV vv 341-342) Esta eacute sua uacuteltima accedilatildeo em batalha a partir daiacute ele soacute eacute mencionado Aqui
em seu uacuteltimo ato beacutelico nosso heroacutei faz algo que natildeo eacute bem visto Afinal o combate deve
ser feito face-a-face e o ataque pela frente do guerreiro Matar ou ferir pelas costas eacute
desonroso vocecirc natildeo deu oportunidade da pessoa se defender nem dela ver quem a matou
Aqui aparece uma outra faceta da caracterizaccedilatildeo do guerreiro Paacuteris a qual parece ser
exclusiva a ele mas que eacute mais comum em batalha do que poderiacuteamos imaginar Em vaacuterias
passagens Paacuteris eacute mostrado sentindo medo Ele foge do embate singular quando vecirc que
Menelau de fato lutaria com ele (III vv 21-37) Sua fuga eacute inadmissiacutevel ele causou a guerra
O fato de ele ter desencadeado todo o conflito e ao se deparar com Menelau recuar de medo
mexe mais com os nervos de Heitor do que o proacuteprio fato de ele simplesmente fugir O
aristocrata que eacute um guerreiro deve enfrentar as batalhas e qualquer fuga eacute condenaacutevel
Ainda no Canto III (vv 39-45) Heitor ressalta que Paacuteris tem todas as qualidades
fenotiacutepicas necessaacuterias aos kaloigrave kagathoiacute mas que seu comportamento natildeo estava
condizendo com o de um Carece-lhe forccedila (biacuteē phresigraven) e coragem (alkḗ) A alkḗ eacute o traccedilo
distintivo do guerreiro junto com a andreiacutea a coragem varonil cara ao gecircnero masculino
Cremos que ela eacute o impulso positivo e a qualidade daquele que supera o medo para enfrentar
situaccedilotildees-problema eacute a justa medida entre inseguranccedila e convicccedilatildeo exacerbada Ela eacute uma
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caracteriacutestica intriacutenseca do ser humano mas se manifesta com mais ou menos intensidade em
um indiviacuteduo consoante trecircs aspectos a) predisposiccedilatildeo no caraacuteter na iacutendole do mesmo b)
incitaccedilatildeo por parte de outra pessoa ou c) motivaccedilatildeo por parte de um outro sentimento
No caso de Paacuteris a coragem se manifesta pela incitaccedilatildeo de outrem bem como pelo
medo de perder Helena veremos mais adiante que ele aceita devolver os tesouros que ele
trouxe de Esparta mas se nega a devolver a consorte Quando passamos por essas situaccedilotildees-
problema podemos encaraacute-las imediatamente ou podemos recuar diante delas a menos que
outra pessoa nos encoraje ou que tenhamos vergonha de recuar como eacute o caso de Paacuteris
tambeacutem
O ato corajoso desse heroacutei eacute mensurado a partir da sua intrepidez diante do confronto
com o perigo em um campo de batalha O valor de um kalograves kagathoacutes consiste na sua
coragem O valente eacute sempre o nobre o homem de estatuto social elevado A vitoacuteria eacute para
ele a distinccedilatildeo mais alta e o conteuacutedo proacuteprio da vida Do mesmo modo se daacute com os atletas
a vitoacuteria eacute essencial para que este possa reclamar para si um estatuto honoriacutefico semelhante ao
de um heroacutei que ao ficar cara a cara com um igual o enfrenta agrave medida que eacute conduzido
ldquopelo medo da vergonhardquo (BALOT 2004 p 416)48 Ele quer ser reconhecido pela sua
bravura natildeo pela sua fraqueza
Contudo por mais que o heroacutei deva ser intreacutepido isso natildeo implica necessariamente
que o ele seja proibido de sentir medo ele eacute intriacutenseco e natildeo eacute incomum um guerreiro
amedrontar-se na Iliacuteada Ateacute mesmo Aquiles o melhor dos aqueus sente medo Nicole
Loraux mostra que ldquona epopeia natildeo haacute guerreiro que natildeo tenha tremido alguma vez [] Natildeo
existe o grande guerreiro que natildeo tenha sentido um dia em todo o seu ser o tremor do terror
Como se o medo fosse a prova que qualifica o heroacuteirdquo (LORAUX 2003 p 97) Isso se daacute
porque eles satildeo humanos o homem eacute passiacutevel de sentir medo mas isso natildeo o qualifica como
um completo covarde Pelo contraacuterio ldquoO medo do bravo combatente revela a verdadeira
dimensatildeo do perigo que ele enfrente e que o engrandecerdquo (FONTES 2001 p 103)
Tanto a coragem quanto o medo coabitam o mesmo indiviacuteduo Este eacute corajoso agrave
medida que a coragem sobrepuja o medo eacute covarde quando o medo sobrepuja a coragem Nas
palavras de Simon Blackburn ldquoa coragem natildeo eacute a ausecircncia de medo () mas a capacidade de
sentir o grau adequado de medordquo (BLACKBURN 1997 p 80) Assim eacute incorreto afirmar
que o medo eacute diametralmente oposto agrave coragem bem como que um heroacutei eacute totalmente
48 Ryan Balot ainda afirma que a coragem eacute ldquoa qualidade ou disposiccedilatildeo do personagem que faz um indiviacuteduo superar o medo a fim de atingir um objetivo preacute-concebidordquo (BALOT 2004 p 407)
95
destemido Ser covarde natildeo eacute sinocircnimo de sentir medo a covardia implica tambeacutem na recusa
total agrave batalha e o natildeo retorno numa situaccedilatildeo de fuga
Contudo eacute fato que o medo pesa sobre os troianos e os arqueiros como um elemento
desqualificativo porque ele estaacute associado a outras caracteriacutesticas devalorativas Por isso que
Paacuteris seraacute sempre reprimido como veremos mas sem deixar contudo de ser um exemplo
aleacutem das qualidades aristocraacuteticas que ele porta quando ele recua em batalha ele retorna
matando guerreiros inimigos liderando colunas incitando os companheiros agrave luta Destarte
isso natildeo significa uma contradiccedilatildeo da Iliacuteada como afirmou Moses Finley (FINLEY 1982 p
43)49 mas um aspecto paidecircutico como ser humano tem-se o direito de sentir medo de
recuar Ter medo tambeacutem eacute comum como vimos recuar entretanto eacute uma atitude desonrosa
Por isso que Paacuteris retorna agrave batalha Contudo ele o faz depois de a) ser motivo de graccedila
[khaacuterma] para os inimigos que riem dele e b) ser censurado por Heitor e Helena ele sente
vergonha de seus atos depois que sua atitude eacute internalizada como sendo algo indigno de um
anecircr Aqui a neacutemesis de Heitor desencadeou aidṓs em Paacuteris Nessa censura Heitor afirma
que este carece de biacuteē (forccedila) e alkḗ (coragem) Contudo no Canto VI o mesmo Heitor
afirma que todos sabem que Paacuteris eacute corajoso (aacutelkimos) e tem valor (timḗ)
O coacutedigo de conduta do guerreiro seja ele de qual lado da batalha for eacute o mesmo
bem como a representaccedilatildeo dele Tanto aqueus quanto troianos estatildeo sob esse mesmo coacutedigo e
satildeo representados da mesma maneira com as mesmas vestimentas em batalha armam-se do
mesmo jeito como jaacute pudemos ver com os mesmos tipos de metal com as mesmas armas
Isso acontece tambeacutem na imageacutetica como nos mostra Franccedilois Lissarague grego e baacuterbaro eacute
representado da mesma maneira (LISSARAGUE 2002 p 113-114) O que vai diferenciar o
contingente troiano do aqueu eacute justamente o tipo de arma valorizada natildeo o valor do guerreiro
bem como se enfatizaraacute que mesmo o melhor guerreiro troiano natildeo eacute paacutereo para o melhor
guerreiro aqueu (Iliacuteada XXII v 158)
O problema de Paacuteris eacute a demora em entrar no campo de batalha esquivando-se o
quanto for possiacutevel (ldquoMas voluntaacuterio te escusas natildeo queres lutarrdquo) Mas nunca ele a
abandona completamente Essa liccedilatildeo eacute de extrema importacircncia para os futuros politḗs
guerreiros da poacutelis que aprendem a Iliacuteada e a Odisseia e fazem desse ideal de conduta
heroica seu proacuteprio ideal e tecircm como maacutexima a sentenccedila ldquohamarteicircn eikograves anthrṓpousrdquo errar
eacute humano (EURIacutePIDES Hipoacutelito v 615)
49 ldquoMuitas vezes o proacuteprio material apresentava contradiccedilotildees internas () [Paacuteris] () aparece simultaneamente como um despreziacutevel covarde e como um verdadeiro heroacuteirdquo (FINLEY 1982 p 43)
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Destarte a Iliacuteada assim como a Odisseia configura-se num discurso de legitimaccedilatildeo
da etnicidade helecircnica aleacutem de um discurso paidecircutico Aliaacutes eacute atraveacutes da paideiacutea que essa
ideologia seraacute passada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ateacute chegar ao ponto de formar os kaloigrave
kagathoiacute aqueles bem-nascidos que viratildeo a governar a poacutelis e a vencer os jogos helecircnicos
como atletas Ateacute mesmo durante a Idade Meacutedia essas epopeias foram revisitadas e passaram
muito tempo sem serem estudadas e questionadas segundo Carlier pelo seu caraacuteter de texto
religioso Esse autor afirma que esse movimento de estudo das obras homeacutericas poderia ser
um convite ao questionamento da Biacuteblia que tambeacutem eacute um texto religioso e de funccedilatildeo
modelar (no entanto inserido em uma outra eacutetica diferente da sociedade de Homero)
(CARLIER 2008 p 13)
Alguns autores como Robert Aubreton e Richard B Rutherford defendem que a
Iliacuteada demonstra preferecircncia pelos troianos Os argumentos giram em torno de trecircs questotildees
praticamente a) a representaccedilatildeo familiar do lado troiano e de toda a ldquosensibilidaderdquo daiacute
oriunda (como a cena entre Heitor e Androcircmaca ou de Heacutecuba e Heitor) b) o fato dos
troianos ganharem a maioria das batalhas e c) a Iliacuteada terminar com os funerais de Heitor
configurando-o pois como o grande heroacutei dessa epopeia
Haacute problemas nesses argumentos a ldquocidaderdquo grega eacute improvisada enquanto a troiana
eacute a ldquocidaderdquo de fato (MACKIE 1996 p 1) Isso se daacute porque os gregos satildeo os invasores e os
troianos satildeo os invadidos As esposas pais filhos pequenos dos gregos ficaram em seus
palaacutecios quem vai agrave guerra eacute o anḗr Assim eacute inviaacutevel entre os gregos cenas relativas ao
oicirckos ao domiciacutelio
Os troianos ganham a maioria das batalhas porque assim quis um grego Aquiles pede
para sua matildee a deusa Teacutetis que interceda junto a Zeus para fazer com que os troianos
ganhassem todas as batalhas a fim de mostrar a Agamemnon o quanto ele fazia falta
Lembremo-nos de que o primeiro Canto da Iliacuteada trata justamente da rixa que apartou
Aquiles da guerra e que a proacutepria narrativa dessa epopeia diz respeito agrave ira desse heroacutei e das
suas consequecircncias
O funeral de Heitor encerra a Iliacuteada o de Aquiles contudo nem aparece nela Seria
um indicativo de que aquele heroacutei eacute mais importante do que este e que sua morte seria o
grande final do poema O problema eacute que a Iliacuteada natildeo era cantada num dia inteiro para o
puacuteblico primeiro porque sua reacutecita natildeo demoraria soacute um dia visto que ela tem 15693 versos
segundo porque esse poema era cantado em episoacutedios nas competiccedilotildees e nos banquetes
Assim podia se cantar soacute o episoacutedio da luta entre Menelau e Paacuteris ou soacute o episoacutedio em que
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Helena descreve os guerreiros aqueus ou soacute o episoacutedio em que Paacuteris atira em Diomedes e ele
o rechaccedila e assim por diante Nem mesmo a divisatildeo em Cantos como conhecemos havia
sido feita somente os saacutebios alexandrinos fariam isso muitos seacuteculos depois da cristalizaccedilatildeo
do poema na escrita Desse modo natildeo podemos pensar os funerais de Heitor como o grande
fim da reacutecita era o grande fim desse episoacutedio Natildeo haacute o famigerado the end cinematograacutefico
na Iliacuteada
Tambeacutem existem as consideraccedilotildees acerca da bela morte por Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo que exploramos em nosso trabalho O que importa eacute o que o heroacutei faz em vida sua
morte eacute o fim de suas faccedilanhas incluindo o matar Por isso que Aquiles natildeo precisa morrer no
poema para ter seu valor corroborado O que corrobora o valor de Aquiles na Iliacuteada pode ser
justamente o funeral de Heitor assim como este seria honrado e rememorado pela morte do
guerreiro homenageado (VII vv 81-91) Aquiles o seraacute pela morte de Heitor Comparando
hipoteticamente se Aquiles viesse a morrer na Iliacuteada o valor de Paacuteris seu assassino seria
corroborado E Homero natildeo queria mostrar isso Paacuteris embora exemplo ainda eacute um
transgressor das leis da xeacutenia valor caro aos helenos e a todos os habitantes do Mediterracircneo
(VLASSOPOULOS 2013 p 90) e causador de uma guerra que fez perecer uma geraccedilatildeo de
hemiacutetheoi semideuses (os heroacuteis)
Em virtude do apresentado nesse capiacutetulo pudemos ver que os heroacuteis embora
partilhem aspectos em comum de sua categoria natildeo se constituem de uma massa indistinta
homogeneamente constituiacuteda cada heroacutei tem a sua peculiaridade A de Agamecircmnon eacute a sua
lideranccedila a de Odisseu sua meacutetis a de Aacutejax sua forccedila fiacutesica e a de Paacuteris sua beleza Homero
consegue construir personagens diferentes que natildeo agem da mesma maneira embora sejam
arautos de um mesmo coacutedigo de conduta
Entretanto embora sejam regidos por esse ideal de conduta os troianos satildeo diferentes
dos aqueus o uso que eles fazem desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes Paacuteris mesmo eacute
um transgressor e embora tente consertar seus erros continua sendo o causador da guerra que
tanto gera sofrimento a ambos os lados Ele ainda estaacute em estado de aacutetē Por isso seu valor
beacutelico eacute diminuiacutedo como destacar algueacutem que causou uma guerra John A Scott vecirc isso
como uma inovaccedilatildeo de Homero Paacuteris seria o principal guerreiro troiano mas como
desrespeitou a xeacutenia causando a Guerra de Troia perdeu seu posto para Heitor que seria um
personagem inventado para receber todas as caracteriacutesticas as quais teriam pertencido ao
proacuteprio Paacuteris na tradiccedilatildeo miacutetica (SCOTT 1913)
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Essa ideia contudo natildeo possui argumentaccedilatildeo suficiente para comprovaccedilatildeo ateacute
mesmo porque o nome de Heitor jaacute constava nas tabuinhas de Linear B (CHADWICK 1970
p 98) Natildeo podemos ir aleacutem da documentaccedilatildeo e afirmar que esse ou aquele personagem eacute
uma criaccedilatildeo exclusiva de Homero visto que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o resultado de inuacutemeras
tradiccedilotildees orais posteriores agrave composiccedilatildeo das obras Assim como Euriacutepides reelabora os mitos
da tradiccedilatildeo eacutepica em suas trageacutedias Homero tambeacutem o faz em suas epopeias ldquoos materiais
que o poeta utiliza para recordar satildeo versaacuteteis moacuteveis feitos de foacutermulas de episoacutedios e de
um repertoacuterio de informaccedilotildees variado que pode se empregado com certa liberdade e adequado
agraves conveniecircncias poemaacuteticas e meloacutedicasrdquo (NUNtildeEZ 2011 p 239)
Eacute por essa razatildeo que os poemas homeacutericos natildeo foram os primeiros do processo
discursivo sobre o qual nos debruccedilamos sendo ldquoobras musicais [] [que] formam um todo
orgacircnico no qual poesia e muacutesica se interpenetram e intercambiam significadosrdquo (NUNtildeEZ
2011 p 239-240 ndash grifos nossos) Do mesmo modo Euriacutepides ainda estaacute longe de ser a
uacuteltima etapa desse processo a poesia eacutepica e traacutegica influencia nosso proacuteprio modo de
escrever permanecendo ainda viva na nossa memoacuteria social E assim como a poesia o heroacutei
eacute ele mesmo um todo orgacircnico (LUKAacuteCS 2000 p 66) no que diz respeito ao seu coacutedigo de
conduta mas particularizado como indiviacuteduo pois um heroacutei nunca eacute igual a outro heroacutei
Desse modo a representaccedilatildeo de Paacuteris natildeo eacute em hipoacutetese alguma a representaccedilatildeo de
um anti-heroacutei Primeiramente porque eacute anacrocircnico denomina-lo desse modo Massaud
Moiseacutes nos mostra em seu Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios que a ideia de anti-heroacutei eacute
intriacutenseca ao romance do seacuteculo XVIII Para ele ldquoo anti-heroacutei natildeo se define como a
personagem que carrega defeitos ou taras ou comete delitos e crimes mas a que possui
debilidade ou indiferenciaccedilatildeo de caraacuteter a ponto de assemelhar-se a toda genterdquo (MOISEacuteS
1999 p 29) Aleacutem disso ldquoo heroacutei eleva e amplifica as accedilotildees que pratica o anti-heroacutei as
minimiza ou rebaixardquo (MOISEacuteS 1999 p 29)
Os heroacuteis de Homero e de Euriacutepides natildeo satildeo comuns a todas as pessoas eles
representam um passado miacutetico anterior agravequeles que ouvem as epopeias e assistem agraves
representaccedilotildees teatrais Satildeo ldquoimagens limitesrdquo (ROMILLY 2013 p 31) que representam o
extremo das accedilotildees e emoccedilotildees visto que satildeo paidecircuticos O heroacutei como vimos eacute um
hemitheoacutes algueacutem acima do homem comum e inferior aos deuses pois eacute mortal como noacutes
como o puacuteblico dos poetas possuindo atitudes semelhantes (visto que satildeo humanos tambeacutem)
mas definitivamente com um estatuto diferenciado dos brotoiacute comuns Paacuteris na trageacutedia
quando personagem ainda exerce esse papel ele natildeo se torna ldquomenos heroacuteirdquo por ser um
99
douacutelos um boukoacutelos visto que essas histoacuterias acerca de Troia pertencem tambeacutem agrave mitologia
grega e a ambientaccedilatildeo em Troia tambeacutem eacute uma estrateacutegia para provocar catarse as viacutetimas da
Guerra de Troia estatildeo sendo sempre comparadas agraves viacutetimas da proacutepria Guerra do Peloponeso
Edith Hall mostra como mesmo esses displacement plots (roteiros de deslocamento)
servem para legitimar a identidade helecircnica definindo suas fronteiras eacutetnicas
Mesmo com a pluralidade eacutetnica da trageacutedia e o seu interesse em heroacuteis e comunidades espalhadas por distacircncias vastas pelo mundo conhecido o foco ateniense o ldquoatenocentrismordquo da trageacutedia eacute manifestado de muitos jeitos [] mesmo peccedilas com nenhum foco oacutebvio em Atenas incluem frequentemente um aition [sic] uma explicaccedilatildeo pelo mito das origens dos costumes atenienses [] os tragedioacutegrafos usavam comunidades outras sem ser Atenas como lugares para autodefiniccedilatildeo eacutetnica o mundo baacuterbaro frequentemente funciona na imaginaccedilatildeo traacutegica como o lar dos viacutecios (por exemplo o despotismo persa a falta de lei dos traacutecios a efeminaccedilatildeo e a covardice orientais) concebidas como correlativos agraves virtudes democraacuteticas atenienses idealizadas liberdade de fala equanimidade diante da lei e coragem masculina (HALL 1997 p 100)
O baacuterbaro eacute a mateacuteria-prima sobre a qual os gregos definem suas fronteiras eacutetnicas eacute
observando-o que eles constroem a si mesmos Claude Mosseacute corrobora esse aspecto ao
afirmar que ldquoessa alteridade do baacuterbaro entretanto natildeo eacute necessariamente negativa eacute apenas
o avesso da civilizaccedilatildeo encarnada pelo gregordquo (MOSSEacute 2004 p 55) Entretanto esse
processo de classificaccedilatildeo natildeo eacute exclusivo ao seacuteculo V aC jaacute em Homero podemos ver um
esforccedilo de definiccedilatildeo dessas fronteiras quando o poeta caracteriza os troianos (sobretudo
Paacuteris) para desenvolver uma caracterizaccedilatildeo que implica numa diferenciaccedilatildeo pautada ao
mesmo tempo na valorizaccedilatildeo do inimigo o qual natildeo pode ser inferior a fim de enaltecer a
vitoacuteria e na marcaccedilatildeo de alteridades em relaccedilatildeo a ele
100
CONCLUSAtildeO
ldquoSe partires um dia rumo a Iacutetaca faz votos de que o caminho seja longo repleto de aventuras repleto de saberrdquo
(Iacutetaca ndash Konstantinos Kavaacutefis)50
Em virtude do apresentado pudemos compreender que a anaacutelise da Iliacuteada da
Odisseia e das trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides vai aleacutem da simples tentativa de
comprovaccedilatildeo de feitos heroicos da existecircncia de uma guerra da existecircncia do proacuteprio aedo e
da correlaccedilatildeo simplista com eventos da ldquorealidade histoacutericardquo Eacute mais profiacutecuo buscar a
compreensatildeo das estruturas poliacuteticas econocircmicas sociais culturais religiosas e institucionais
da eacutepoca em que os poemas foram compostos traccedilando como os gregos conseguiram
construir e consolidar suas fronteiras eacutetnicas de forma dinacircmica
Aleacutem disso a rememoraccedilatildeo dos heroacuteis e de suas faccedilanhas eacute importante para a
configuraccedilatildeo de todo um coacutedigo de conduta helecircnico corroborando a ideia de uma funccedilatildeo
paidecircutica das obras homeacutericas e traacutegicas No tocante agrave historicidade desses heroacuteis ela estaacute
ligada por um lado ao papel que suas personalidades desempenham na vida do puacuteblico 50 Traduccedilatildeo de Joseacute Paulo Paes Disponiacutevel em httpwwworg2combrkavafishtm
101
helecircnico ndash que os rememoram e os cultuam ndash e por outro agrave ligaccedilatildeo inextricaacutevel entre o autor
que compocircs os textos e o seu contexto histoacuterico fazendo com que a trama e os heroacuteis sejam
constituiacutedos com base na proacutepria sociedade na qual eles vivem e conhecem
Lembremo-nos de que a Iliacuteada por ter sido composta posteriormente diz respeito
mais as caracteriacutesticas deste periacuteodo do que do periacuteodo no qual se travou a guerra de Troia a
eacutepoca palaciana No contexto da poacutelis as caracteriacutesticas caras agrave personalidade de Paacuteris natildeo
seratildeo preteridas na paideiacutea Pelo contraacuterio Aristoacuteteles no seacuteculo IV dedica um espaccedilo em
sua Poliacutetica a consideraccedilotildees sobre o ensino da muacutesica e da ginaacutestica a qual objetiva dentre
outras coisas a manter o equiliacutebrio fiacutesico do cidadatildeo
No tocante ao nosso objeto principal Paacuteris concluiacutemos que ele como personagem da
Iliacuteada desempenha um modelo de como agir para os ouvintes da epopeia Isso se daacute porque
ele demonstra atitudes condizentes com a de um heroacutei ou seja o protagonista desses poemas
de exaltaccedilatildeo das faccedilanhas desses seres extraordinaacuterios que viveram numa eacutepoca precedente agrave
eacutepoca dos simples humanos que vivem agrave sombra desse passado glorioso
Devemos ter em mente que Paacuteris mesmo natildeo demonstrando muita destreza na guerra
natildeo deixa de ser um heroacutei ele possui essas caracteriacutesticas intriacutensecas a eles Heitor ao mesmo
tempo que o chama de covarde no Canto III iraacute reconhecer que ele possui coragem no Canto
VI como jaacute vimos em uma citaccedilatildeo anterior Quando Paacuteris comete um ato indecoroso procura
corrigi-lo a fim de reaver a sua honra assim acontece quando ele retorna para combater com
Menelau e retorna agrave guerra no Canto VI Paacuteris tambeacutem tem a sua bela morte seja falecendo
no campo de batalha seja matando
A Iliacuteada como influenciadora do discurso traacutegico mostra um heroacutei humano e
portanto em sua singularidade e em sua relaccedilatildeo com a sociedade na qual ele estaacute inserido
Essa sociedade o reconhece como um aacuteristos um melhor aquele que deve liderar contudo
para isso ele deve demonstrar pelas suas atitudes que eacute digno de seu posto deve zelar para
que sua timḗ sua honra natildeo seja manchada atraveacutes de accedilotildees que ponham em xeque sua aretḗ
sua virtude causando a neacutemesis da sociedade e seu proacuteprio aidṓs
Um heroacutei pode fraquejar tremer sentir medo mas este natildeo deve sobrepujar o iacutempeto
de ficar e lutar Quando ocorre a fuga o retrocesso este deve ser corrigido a fim de que se
restaure a timḗ e de que aquele que fugiu natildeo seja alvo da neacutemesis dos seus iacutesoi Eacute isso o que
acontece com Paacuteris que eacute muito mais do que uma simples ldquocontradiccedilatildeo da epopeiardquo ora ele
se mostra corajoso ora ele se mostra temente pois eacute a representaccedilatildeo de um ser humano Ele
102
recua e retorna agrave batalha configurando-se num exemplo de como se agir mas de fato ele eacute
representado de uma maneira diferente e singular pelo poeta
Isso se daacute devido agrave problemaacutetica da alteridade da qual tratamos no capiacutetulo sobre
Homero Paacuteris seraacute representado como um modelo de conduta mas tambeacutem como um
estereoacutetipo do Outro Inuacutemeros heroacuteis aqueus poderiam servir para expressar esse movimento
de fugaretorno mas um heroacutei troiano eacute escolhido Aliaacutes a maioria dos heroacuteis que fogem na
Iliacuteada eacute troiana O caso de Paacuteris se configura num problema de alteridade interna tanto por
ele ser o inimigo na guerra (o troiano) quanto por ser o transgressor de normas inclusive
universais (no caso a xeacutenia ou seja a hospitalidade)
Este modo de caracterizar Paacuteris ao longo do tempo vai cada vez mais sobrepujar-se agrave
sua representaccedilatildeo como um kalograves kagathoacutes helecircnico e gradativamente esse personagem
deixaraacute de ser o theoeidḗs para ser o baacuterbaros sobretudo na trageacutedia Mas essa questatildeo natildeo
diz mais respeito ao nosso trabalho aqui desenvolvido em torno da Iliacuteada um poema
composto cerca de trecircs seacuteculos antes desse gecircnero teatral ser cristalizado culturalmente nas
poacuteleis Em Euriacutepides o heroacutei natildeo perde uma dimensatildeo paidecircutica mas estaacute mais ligado agrave
ideia do erro o heroacutei erra e aprendemos com esses erros Paacuteris natildeo deixa de ser um heroacutei pois
pertence agrave tradiccedilatildeo miacutetica mas se torna na trageacutedia de uma vez por todas o baacuterbaro
Tivemos por objetivo com essa dissertaccedilatildeo analisar a representaccedilatildeo de Paacuteris na eacutepica
homeacuterica e nas trageacutedias de Euriacutepides perscrutando as mudanccedilas sociais e culturais que estatildeo
presentes nos textos literaacuterios Defendemos que a Iliacuteada jaacute traz a ideia de
identidadealteridade helecircnica mostrando um discurso eacutetnico que legitima a centralidade
aqueia em detrimento da troiana e como essa diferenciaccedilatildeo influencia na construccedilatildeo do
baacuterbaro na poesia traacutegica Tambeacutem mostramos como a epopeia e a trageacutedia pertencem a um
mesmo espaccedilo discursivo tornando profiacutecua a nossa anaacutelise e utilizando a Anaacutelise de
Discurso francesa para tal
Acreditamos que essa diferenciaccedilatildeo entre gregos e troianos em Homero natildeo diz
respeito a uma diferenciaccedilatildeo entre o grego e o baacuterbaro ou entre o grego e o estrangeiro mas
entre dois grupos eacutetnicos um que estaacute no Peloponeso e outro que se encontra na Aacutesia Menor
reapropriando o coacutedigo de conduta grego e estabelecendo contatos com culturas natildeo-
helecircnicas Mas historicamente satildeo os troianos gregos
Natildeo podemos afirmar com certeza absoluta Primeiramente porque as datas satildeo
fluidas convenciona-se atraveacutes de estudos arqueoloacutegicos e filoloacutegicos que Homero compotildee
no seacuteculo VIII aC Convenciona-se que a Guerra de Troia aconteceu no seacuteculo XIII aC
103
Aleacutem disso lidamos com um problema caro agrave Histoacuteria Antiga documentaccedilatildeo Ela eacute escassa e
nas escavaccedilotildees poucos materiais escritos foram encontrados Achou-se um selo com
hieroacuteglifos luvitas no siacutetio arqueoloacutegico de Hissarlik (antiga Troia hoje na Turquia) o qual
data provavelmente do segundo milecircnio antes de Cristo entretanto como podemos ter certeza
de que ele foi produzido laacute Sendo um noacute comercial importante vizinha do Helesponto o que
garante que aquele selo natildeo foi parar em Troia atraveacutes de comerciantes
Segundo o hititologista holandecircs Alwin Kloekhorst a hipoacutetese luvita (que se destacou
em 1995) vem sendo bastante questionada e ele defende que eacute mais provaacutevel que a liacutengua
falada em Troia nessa eacutepoca fosse o lecircmnio oriundo da regiatildeo de Lemnos e que deu origem
ao etrusco Ele tambeacutem mostra que Troia na eacutepoca da guerra provavelmente natildeo era grega
Trūiša (uma regiatildeo de Wilǔsa que seria Troia) estava sob domiacutenio hitita embora haja
evidecircncias de embates entre os ahhiyawa (aqueus) e esse povo pelo domiacutenio da regiatildeo na
eacutepoca Contudo a partir do seacuteculo VIII aC (quando Homero compotildee seus poemas e os
gregos entram em processo de ldquocolonizaccedilatildeordquo) provavelmente havia ldquoGreek-speakersrdquo na
regiatildeo onde fora Troia (KLOEKHORST 2013 p 48) Ela era parte das apoikiacuteai (ldquocolocircniasrdquo
gregas)51 O historiador americano Barry Strauss corrobora a ideia de Kloekhorst afirmando
que Troia era uma cidade grega desde 750 aC quando foi povoada por colonos gregos e
assim se manteve durante toda a Antiguidade (STRAUSS 2008 p 28)
Desse modo o mundo das apoikiacuteai seria diretamente influenciado pela cultura e liacutengua
gregas Vlassopoulos coloca que essas ldquocolocircniasrdquo eram loci privilegiados tanto de trocas
culturais entre gregos e outros povos bem como paradoxalmente ajudaram a consolidar um
modelo forte do que eacute ser grego
o processo de criar apoikiacuteai fizeram o modelo de uma comunidade grega se tornar abstrato e canocircnico uma comunidade com um corpo de cidadatildeos divididos entre tribos governado por magistrados conselhos e assembleia equipado com um tipo particular de espaccedilo puacuteblico (agoraacute) e adornado com um tipo particular de templo e edifiacutecio puacuteblico (teatro casa concelhia ginaacutesio) (VLASSOPOULOS 2013 p 277)
Os troianos satildeo um grupo eacutetnico dentro da comunidade helecircnica no discurso de Homero
tendo em Paacuteris a siacutentese de alteridade visto que ele desrespeita coacutedigos helecircnicos Muitas das
caracteriacutesticas desse personagem satildeo reapropriados por Euriacutepides para caracterizar o baacuterbaro
(inclusive ele mesmo que jaacute seraacute denominado baacuterbaros em suas trageacutedias) Dentre esses
51 Kostas Vlassopoulos explica que natildeo eacute apropriado atribuir o conceito de ldquocolocircniardquo aos movimentos expansionistas gregos do seacuteculo VIII pois a ldquocolonizaccedilatildeordquo grega eacute completamente diferente da colonizaccedilatildeo moderna (2013 p 103)
104
pontos de diferenciaccedilatildeo estatildeo a predominacircncia do arco como arma de guerra a capacidade de
se submeter o exeacutercito inimigo (como pudemos ver com a anaacutelise dos siacutemiles de animais mas
sem deixar de valorizar esse inimigo para a vitoacuteria ser gloriosa) o excesso de ouro a
expressatildeo verbo-corporal (discurso defensivo e dissuasivo o esconder-se o jactar-se) as
vestimentas o excesso de medo a lida com as artes musicais a luxuacuteria a efeminaccedilatildeo (do
aliado caacuterio) a suacuteplica pela vida e a procrastinaccedilatildeo para entrar em batalha
Euriacutepides por sua vez explora ao maacuteximo esses elementos e os troianos jaacute se encontram
completamente frigianizados ligados agrave Aacutesia e sendo mostrado como baacuterbaros Os gregos que
agem como baacuterbaros satildeo comparados aos troianos bem como eles estatildeo sempre sendo
designados desse modo Assim tambeacutem a proacutepria fronteira do que eacute baacuterbaro e do que eacute grego
encontra-se cada vez mais turva haacute uma crise nessa definiccedilatildeo e o grego em Euriacutepides pode
barbarizar-se facilmente visto que estaacute em meio a uma guerra
A produccedilatildeo historiograacutefica acerca da etnicidade helecircnica tem sido cada vez mais
comum e esperamos que nossa pesquisa contribua para essa discussatildeo Esperamos ademais
que ela contribua para as anaacutelises acerca dos poemas homeacutericos e das trageacutedias de Euriacutepides
que tecircm sido cada vez menos comuns Com essa dissertaccedilatildeo objetivamos tambeacutem fomentar
o interesse pelo tema e novas pesquisas acerca dessa temaacutetica Cremos ser muito importante o
estudo da literatura grega porque ela foi o norte da sociedade helecircnica e reverbera ateacute os dias
de hoje seja em produccedilotildees fiacutelmicas ou na literatura
A funcionalidade paidecircutica dos textos que estudamos contribui para tal movimento
bem como a proacutepria importacircncia desse legado cultural oriundo dos gregos o qual tambeacutem se
faz sentir ateacute hoje no modo de pensar de construir de escrever Pudemos ver com a anaacutelise
de Paacuteris como o autor da Iliacuteada trabalha com a ideia do heroacutei e como atraveacutes de sua
representaccedilatildeo ele define as fronteiras eacutetnicas que perpassam essa paideiacutea a qual estaacute presente
tambeacutem nas trageacutedias de Euriacutepides que corroboram e reapropriam esses elementos de
diferenciaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo dos personagens sobretudo de Paacuteris o baacuterbaro
Outrora a Greacutecia possuiacutea uma grande extensatildeo territorial e sua importacircncia poliacutetica
econocircmica e cultural era grosso modo e com fins assimilativos tatildeo grande quanto a da
Inglaterra a partir da Primeira Revoluccedilatildeo Industrial e a dos Estados Unidos depois da Segunda
Guerra Mundial Hoje o pequeno paiacutes europeu que aparece nos jornais diariamente devido a
um periacuteodo de crise e necessidade ainda exerce uma influecircncia muito grande no que diz
respeito a esse legado que permanece de peacute A cultura helecircnica e o estudo acerca desta ainda
natildeo estatildeo em vistas de entrar em crise
105
Anexo | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO
LETRA GREGA TRANSLITERACcedilAtildeO
αααα a
ᾳᾳᾳᾳ a
ββββ b
γγγγ g
δδδδ d
εεεε e
ζζζζ z
ηηηη ē
ῆῆῆῆ ecirc
ῃῃῃῃ ē
θθθθ th
106
ιιιι i
κκκκ k
λλλλ l
micromicromicromicro m
νννν n
ξξξξ x
οοοο o
ππππ p
ρρρρ r
ῥῥῥῥ rh
σ ςσ ςσ ςσ ς s
ττττ t
υυυυ y (entre consoantes) u (em ditongos)
φφφφ ph
χχχχ kh
ψψψψ ps
ωωωω ō
ῶῶῶῶ ocirc
ῳῳῳῳ ō
Observaccedilatildeo sobre os espiacuteritos o grego antigo possui uma marcaccedilatildeo especiacutefica denominada espiacuterito Ele vem sobre todas as vogais o rocirc (ρ) inicial e as semivogais dos ditongos que iniciarem a palavra O espiacuterito pode ser fraco ou forte quando ele eacute fraco (rsquo) a vogal se pronuncia normalmente e quando ele eacute forte (lsquo) a vogal eacute pronunciada de modo aspirado como se estivesse sendo acompanhada por um erre (r) O rocirc do iniacutecio das palavras sempre teraacute espiacuterito forte visto que ele jaacute eacute aspirado conforme estaacute na tabela Quando transliteradas as palavras com espiacuterito forte possuem um agaacute (h) na frente Assim por exemplo a palavra
107
οὐρανός (ceacuteu) eacute transliterada como ouranoacutes ἁmicroαρτία (falha) como hamartiacutea ῥῶ (a letra grega ρ) como rhocirc com o agaacute entre o erre e a proacutexima letra
Observaccedilatildeo sobre os conjuntos γγ γκ e γχ quando aparecem essas consoantes juntas o primeiro gama eacute transliterado como ene (n) pois ele se nasaliza Assim por exemplo ἀγγελος (mensageiro) eacute transliterada como aacutengelos ἀναγκαία (necessidade) como anankaiacutea ἐγχανδής (amplo) como enkhandḗs
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4
Agradecimentos
Repito em minha dissertaccedilatildeo as mesmas palavras que coloquei em minha monografia
se eu agradecesse aqui a todas as pessoas que me ajudaram a chegar onde estou hoje soacute os
agradecimentos teriam o tamanho do Le grand Bailly Assim vocecirc que sabe que participou
da minha vida e natildeo estaacute aqui natildeo se sinta excluiacutedo eu tenho a consciecircncia de que vocecirc
participou dela
Devo essa dissertaccedilatildeo primeiramente ao meu orientador Faacutebio de Souza Lessa que
acreditou em mim desde o 3ordm periacuteodo da graduaccedilatildeo quando me perguntou se eu queria ser
bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica sem nem saber o que eu queria estudar
Agradeccedilo tambeacutem aos leitores do meu projeto de pesquisa na qualificaccedilatildeo e da minha
dissertaccedilatildeo a Prof Drordf Regina Maria da Cunha Bustamante e o Prof Dr Alexandre Santos
de Moraes que deram contribuiccedilotildees preciosiacutessimas para o desfecho dela
Tambeacutem foram importantes aqueles que leram meu projeto no momento em que entrei
no Mestrado e ajudaram-me a repensar alguns pontos fulcrais dele Leila Rodrigues da Silva
Wagner Pinheiro Pereira Silvio de Almeida Carvalho Filho Andreacute Leonardo Chevitarese e
Vantuil Pereira Ao professor Joseacute DrsquoAssunccedilatildeo Barros que me ajudou a amadurecer minhas
perspectivas teoacuterico-metodoloacutegicas e a ver outras possibilidades dentro do meu proacuteprio
trabalho
Deixo meu agradecimento tambeacutem aos amigos e amigas colegas de academia ou natildeo
que sempre estiveram comigo nessa minha jornada histoacuterica (literalmente) e que aturaram o
Paacuteris ateacute o fim Bruna Moraes da Silva Danielle Vasconcellos Jeacutessica Gomes Jessyca
Rezende Beatriz Vasconcellos Joselita de Queiroz Nascimento Michelle Moreira Gonccedilalves
de Oliveira e Edson Moreira Guimaratildees Neto
Agraves professoras de Grego (Aacutetico e Moderno) Tatiana Maria Gandelman de Freitas e
Luciacutelia Brandatildeo Se eu consegui ler um artigo em grego se eu consegui ler alguma coisa da
Iliacuteada na liacutengua original ou se consegui escrever esta pequenina frase foi graccedilas a elas Agrave
professora Carole Anaiumls que com sua paciecircncia infinita conseguiu fazer com que em dois
anos eu conseguisse ter domiacutenio suficiente do francecircs para conseguir ler minha bibliografia
Aos meus professores de Graduaccedilatildeo e Ensino Fundamental e Meacutedio soacute sou o que sou
hoje devido agrave educaccedilatildeo que tive nos coleacutegios e na Universidade Agradeccedilo sobretudo aos
meus professores de Histoacuteria e especialmente agrave Queila nunca vou esquecer do primeiro dia
5
de aula de Histoacuteria da antiga 5ordf seacuterie quando ela pediu que escrevecircssemos na primeira paacutegina
do caderno ldquoHISTOacuteRIA Eacute VIDArdquo
Agrave todos os meus familiares que estiveram colados comigo nessa empreitada sobretudo
minha matildee (Eliane) irmatilde (Roberta) avoacute (Carmelita) e prima (Sylvia) por sempre me
incentivarem a continuar nessa carreira
E por uacuteltimo mas natildeo menos importante aos ldquoHomerosrdquo que compuseram a Iliacuteada e
a Odisseia e a Euriacutepides sem eles que aiacute mesmo natildeo haveria dissertaccedilatildeo alguma
6
Resumo
Pretendemos analisar de forma comparada a representaccedilatildeo de Paacuteris heroacutei cujo ato e
aacutetē (perdiccedilatildeo) causaram a Guerra de Troia (c 1250-1240 aC) na Iliacuteada de Homero e nas
trageacutedias Alexandre (fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia
em Aacuteulis e Orestes de Euriacutepides de modo a compreender quais satildeo e como se
desenvolveram as fronteiras eacutetnicas helecircnicas Utilizaremos para a anaacutelise desse processo
histoacuterico-discursivo a metodologia comparada de Marcel Detienne expressa em sua obra
Comparar o Incomparaacutevel e para a anaacutelise do nosso corpus documental a Anaacutelise de
Discurso Francesa presente nas obras teoacutericas de Eni P Orlandi Dominique Maingueneau e
Pierre Charaudeau
Palavras-chave Histoacuteria Comparada Anaacutelise de Discurso Homero Euriacutepides etnicidade
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Abstract
We aim to analyze on a comparative basis the representation of Paris hero whose act
and aacutetē (perdition) caused the Trojan War (c 1250-1240 bC) in Homerrsquos Iliad and in
Euripidesrsquo tragedies Alexander (fragmentary) Andromache Trojan Women Hecuba
Helen Iphigenia in Aulis and Orestes in order to understand which are the hellenic ethnic
boundaries and how it has been developed We will use to analyze this historic-discursive
process the comparitive methodology of Marcel Detienne expressed in his Comparing the
incomparable and to analyze our corpus the French Discourse Analysis present in Eni P
Orlandi Dominique Maingueneau and Pierre Charaudeaursquos theoretical works
Keywords Comparative History Dicourse Analysis Homer Euripides ethnicity
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Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 09
CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE COMPOSICcedilAtildeO -------------p 24
CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES ----------------------------------------------------p 50
CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI ----------------------------------------------------------------------p 76
CONCLUSAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 100
ANEXO | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO --------------------------------------------------------p 105
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS ------------------------------------------------------------------p 107
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL --------------------------------------------------------------p 107
DICIONAacuteRIOS E GRAMAacuteTICAS ------------------------------------------------------------p 108
BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------p 109
9
INTRODUCcedilAtildeO | TEMA PROBLEMAS METODOLOGIAS
ldquoO conhecimento revisitado das tradiccedilotildees da histoacuteria e literatura da Guineacute-Bissau poderaacute funcionar dessa forma como um
Outro que nos complementa ajudando-nos a revisitar ateacute mesmo a imagem que fazemos de noacutes proacutepriosrdquo
(SECCO 2007 p 16-17)
Vivemos em um mundo plural e por isso nos embatemos frequentemente com Outros
que natildeo necessariamente habitam um paiacutes distante o diferente mora ao nosso lado convive
conosco porque dentro de uma mesma sociedade eacute possiacutevel estabelecer uma relaccedilatildeo de
alteridade A cada dia que esbarramos com algueacutem que partilha de costumes e ideias
diferentes das nossas nos modificamos tambeacutem eacute como na metaacutefora de bolas de bilhar de
Norbert Elias (1994 p 29) pois quando nos relacionamos com as pessoas conversamos com
elas nunca permanecemos iguais fazendo com que sempre estejamos modificando nossos
limites de aceitaccedilatildeorejeiccedilatildeo nossas fronteiras de convivecircncia
Natildeo era diferente na Antiguidade e em nossa epiacutegrafe poderiacuteamos muito bem
substituir ldquoGuineacute-Bissaurdquo por ldquoGreacutecia Antigardquo afinal estamos lidando com pessoas Eacute o
homem que constroacutei suas proacuteprias leis bem como eacute ele quem faz a histoacuteria vivendo-a Agrave
medida que o homem vive ele deixa indiacutecios de sua vivecircncia Satildeo dessas ldquopistasrdquo desses
ldquorastrosrdquo que noacutes historiadores podemos estudar as sociedades do passado No presente
estudo se debruccedila sobre um indiacutecio que ateacute pouco tempo era desconsiderado pela Histoacuteria
como documentaccedilatildeo a literatura
Objetivamos natildeo somente analisar os textos que compotildeem nosso corpus mas coloca-
los em comparaccedilatildeo Cremos que a Iliacuteada de Homero (VIII aC) e as trageacutedias Alexandre
(fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes
(seacuteculo V aC) natildeo satildeo apenas produto de uma sociedade mas que as epopeias influenciaram
na construccedilatildeo da sociedade na qual eram encenadas as trageacutedias bem como as trageacutedias e as
proacuteprias epopeias influenciaram na construccedilatildeo de suas proacuteprias sociedades
Para estabelecer essa comparaccedilatildeo escolhemos como norte o antropoacutelogo Marcel
Detienne que em seu livro Comparar o incomparaacutevel lanccedilou uma seacuterie de conceitos-chave
e procedimentos para trabalhar com as comparaccedilotildees temporais eou espaciais A comparaccedilatildeo
eacute algo intriacutenseco ao ser humano Contudo fazer uma comparaccedilatildeo e fazer Histoacuteria Comparada
10
eacute bem diferente eacute a partir dos anos 1920 com as obras de Marc Bloch que a Histoacuteria
Comparada vai tomando forma O objetivo dela para Bloch eacute ressaltar diferenccedilas e
semelhanccedilas em processos histoacutericos distintos tomando como base preferencialmente duas
sociedades contiacuteguas (BLOCH 1998 p 122-123) No Brasil eacute em fins da deacutecada de 1970
que esse meacutetodo comparativo eacute evidenciado Ciro Flamarion Cardoso e Heacutector Peacuterez Brignoli
chamam a atenccedilatildeo para a sua importacircncia nos estudos historiograacuteficos ressaltando ainda que
natildeo se trata de uma mera catalogaccedilatildeo de diferenccedilas e semelhanccedilas mas de busca de
peculiaridades (CARDOSO PEacuteREZ BRIGNOLI 1983 p 418)
Entretanto no iniacutecio do seacuteculo a Histoacuteria Comparada sofre uma crise com o crescente
destaque dado agrave Histoacuteria Cruzada o historiador Juumlrgen Kocka coloca que ambas devem se
relacionar que meacutetodo comparativo deve ser associado agrave histoire croisseacutee (KOCKA 2003 p
44) mas Michael Werner e Beacuteneacutedicte Zimmerman jaacute veem a Histoacuteria Comparada como algo
problemaacutetico em seu artigo Beyond comparison histoire croiseacutee and the chalenge of
reflexivity eles definem um meacutetodo de Histoacuteria Cruzada e mostram razotildees pelas quais a
Histoacuteria Comparada natildeo seria uma metodologia tatildeo adequada pois seu uso eacute binaacuterio
(semelhanccedilasdiferenccedilas) (WERNER ZIMMERMANN 2006 p 33)
Eacute no bojo dessas discussotildees que surge a proposta de Marcel Detienne ele critica a
ideia de que soacute se pode comparar sociedades contiacuteguas ressaltando a ideia de que se pode
ldquocomparar o incomparaacutevelrdquo pois as sociedades espalhadas pelo mundo embora plurais
compartilham algumas instituiccedilotildees (DETIENNE 2004 p 10 e 47) o casamento a fundaccedilatildeo
a morte etc Embora Detienne seja aacutecido em suas criacuteticas visto que Marc Bloch natildeo excluiacutea a
possibilidade de comparar sociedades distantes no tempo e no espaccedilo (BLOCH 1998 p
121) eacute ele que melhor define um meacutetodo comparativo fechado e por isso escolhemo-lo como
norte teoacuterico
Assim partindo de uma categoria1 (etnicidade) definimos como comparaacutevel2 a
representaccedilatildeo de Paacuteris tanto na epopeia homeacuterica quanto nas trageacutedias de Euriacutepides Essas
representaccedilotildees seratildeo devidamente analisadas em sua intrinsecidade atraveacutes da Anaacutelise de
Discursos cabendo a noacutes pesquisadores de Histoacuteria Comparada colocar essas experiecircncias
variadas lado a lado para contrastaacute-las eou aproximaacute-las Temos em mente que o meacutetodo eacute
um caminho e o objeto o qual pretendemos construir eacute que orienta a escolha dele
1 A categoria eacute um ldquotraccedilo significativo uma atitude mentalrdquo que faz parte de ldquoum conjunto uma configuraccedilatildeordquo (DETIENNE 2004 p 57) 2 Os comparaacuteveis satildeo ldquomecanismos de pensamento observaacuteveis nas articulaccedilotildees entre os elementos arranjados conforme a entrada lsquofigura inaugural que vem de forarsquo lsquonatildeo-iniacuteciorsquo ou outras [] satildeo orientaccedilotildees essas relaccedilotildees em cadeia essas escolhasrdquo (DETIENNE 2004 p 57-58)
11
(ANDRADE 1998 p 38) e visto que queremos estudar um processo ideoloacutegico de definiccedilatildeo
de fronteiras eacutetnicas que tem como recorte temporalidades distintas a metodologia
comparativa de Detienne encaixou-se adequadamente
Para ler nosso corpus documental adotamos como metodologia de leitura analiacutetica a
proposta por Eni Puccinelli Orlandi em seu livro Anaacutelise de Discurso Princiacutepios amp
Procedimentos Identificamo-nos com a Anaacutelise de Discurso francesa3 por dois motivos pela
natureza do nosso corpus e pela proposta soacutecio-histoacuterica desse meacutetodo Nossa documentaccedilatildeo
eacute formada por textos cada um deles eacute a unidade analiacutetica do discurso entendido como um
processo em curso (ORLANDI 2012 p 39) Assim tomamos o discurso de Homero e o
discurso de Euriacutepides como partes de um processo discursivo mais amplo
A Anaacutelise de Discurso trata de um sistema que envolve natildeo apenas o discurso em si
mas a relaccedilatildeo entre liacutengua ideologia e histoacuteria tendo em vista a produccedilatildeo de sentidos O
processo discursivo implica no perpasso da ideologia4 pelo discurso eacute ela que produz sentido
pois ldquose materializa na linguagemrdquo (ORLANDI 2012 p 96) A linguagem por sua vez ldquoeacute
linguagem porque faz sentido E [] soacute faz sentido porque se inscreve na histoacuteriardquo
(ORLANDI 2012 p 25 ndash grifos nossos) A histoacuteria eacute o sentido visto que o sujeito do
discurso ldquose faz (se significa) napela histoacuteriardquo (ORLANDI 2012 p 95)
A fim de chegarmos agrave compreensatildeo desse processo discursivo eacute necessaacuterio cumprir trecircs
etapas a partir da dessuperficializaccedilatildeo5 da superfiacutecie linguiacutestica (corpus documental)
selecionado (a) obtemos o objeto discursivo (b) que se transforma em processo discursivo
(c) ao chegarmos na formaccedilatildeo ideoloacutegica daquele objeto
(a) (b) (c)
3 A AD francesa eacute diferente da AD anglo-saxatilde enquanto aquela eacute oriunda da linguiacutestica e privilegia discursos escritos esta vem da antropologia e trabalha mais com discursos orais Aleacutem disso a francesa destaca os mais propoacutesitos textuais e a inglesa os comunicacionais (MAINGUENEAU 1997 p 16) 4 Defendemos que a ideologia em Homero eacute a proacutepria paideiacutea ldquoPor ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacuteticardquo (LESSA 2010 p 22) 5 O processo de dessuperficializaccedilatildeo consiste na ldquoanaacutelise do que chamamos materialidade linguiacutestica o como se diz o quem diz em que circunstacircncias etcrdquo (ORLANDI 2012 p 65)
dessuperficializaccedilatildeo
CORPUS
DOCUMENTAL
OBJETO
DISCURSIVO
PROCESSO
DISCURSIVO ideologia
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A Guerra de Troia (1250-1240 aC) eacute um dos eventos da Antiguidade Grega mais
relembrados por noacutes hoje em dia Enquanto para noacutes essas histoacuterias satildeo mitos natildeo existiram
de verdade para os gregos ela existiram de fato O passado que se reapropriava era um
passado veriacutedico de um tempo preteacuterito e a sua funccedilatildeo era extremamente didaacutetica com os
heroacuteis de outrora se aprendia a ser um verdadeiro homem Homero ou Euriacutepides ao
comporem seus textos natildeo questionavam a materialidade histoacuterica desses personagens e
mesmo Tuciacutedides um historiador utilizava a memoacuteria desses heroacuteis do passado em sua
Histoacuteria da Guerra do Peloponeso como se eles tivessem existido
Paacuteris Helena Heitor Menelau podem natildeo ter sido de ldquocarne e ossordquo mas
permanecem no nosso imaginaacuterio muitos filmes seacuteries de televisatildeo e mesmo livros de ficccedilatildeo
satildeo escritos tendo os mitos gregos como pano de fundo Essa reapropriaccedilatildeo do material miacutetico
natildeo eacute contudo exclusividade do mundo contemporacircneo tragedioacutegrafos e poetas dos periacuteodos
arcaico claacutessico e heleniacutestico tambeacutem manejavam esses mitos para compor suas proacuteprias
histoacuterias Do mesmo modo que podiam modificar as histoacuterias modificavam tambeacutem o caraacuteter
dos personagens
A imagem de Paacuteris como um completo covarde estaacute arraigada em nosso imaginaacuterio
Se tivermos em mente o desempenho de Paacuteris no Canto III da Iliacuteada essa ideia parece ser
bem apropriada (HOMERO Iliacuteada III vv 21-37) Tal episoacutedio nos chamou a atenccedilatildeo o
heroacutei foge (algo que ele natildeo deveria fazer pois eacute um heroacutei) Contudo Paacuteris decide retornar
para a luta (III vv 68-70) Em Euriacutepides natildeo temos cenas assim Paacuteris eacute apenas mencionado
No nosso corpus documental apenas em Aleacutexandros ele eacute de fato personagem (com falas
etc)
Assim como pretendemos analisar a sua representaccedilatildeo Atraveacutes da anaacutelise dos
adjetivosepiacutetetos que adornam sua caracterizaccedilatildeo e dos comentaacuterios dos outros personagens
acerca dele Catalogaremos esses elementos e inserindo-os no acircmbito do discurso iremos
delinear o personagem e qual o seu papel dentro da narrativa A helenista Irene de Jong
mostra que os personagens off-stage (que estatildeo fora do palco) tambeacutem desempenham papeacuteis
importantes denotando a ideia de que ldquolsquocontarrsquo natildeo precisa ser menos impressionante do que
lsquomostrarrsquordquo (DE JONG 2011 p 389)
A Iliacuteada e as trageacutedias euripidianas mostram momentos distintos da Greacutecia Antiga o
Periacuteodo Arcaico (VIII-VII aC) no qual a poesia grega floresceu com Homero e Hesiacuteodo
dois aedos que lanccedilaram as bases temaacuteticas para o gecircnero traacutegico o qual nasceu e entrou em
crise no Periacuteodo Claacutessico (V aC) e foi imortalizado por trecircs grandes tragedioacutegrafos Eacutesquilo
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Soacutefocles e Euriacutepides Ao recortarmos nossa pesquisa neste uacuteltimo traacutegico referimo-nos a
Atenas visto que seu cenaacuterio de composiccedilatildeo era nesta poacutelis
Em relaccedilatildeo a Euriacutepides natildeo temos problemas de dataccedilatildeo sabemos que ele eacute de fato
do seacuteculo V aC Entretanto com relaccedilatildeo a Homero esbarramos com esse problema Natildeo
sabemos quando ele foi composto ou quando ele foi colocado na escrita mas podemos chegar
a um consenso A maioria dos helenistas coloca a eacutepica homeacuterica no seacuteculo VIII aC poreacutem
haacute discordacircncias O historiador Gustavo Oliveira diferencia quatro abordagens acerca desses
embates acadecircmicos a) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram compostosrdquo
b) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram fixadosrdquo c) ldquoos poemas dizem
respeito ao periacuteodo que tentaram retratarrdquo d) ldquoos poemas dizem respeito ao passado recente
alcanccedilado na tentativa de atingir um passado ainda mais distanterdquo (OLIVEIRA 2012)6
Os defensores de (a) creem que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o reflexo da sociedade do
periacuteodo em que eles foram compostos e o historiador vecirc nisso um problema pois eacute necessaacuterio
fixar essa marca para se ter certeza de qual sociedade se analisa e ainda natildeo temos
comprovaccedilatildeo exata do periacuteodo em que a eacutepica homeacuterica foi composta Geralmente os
defensores dessa ideia colocam Homero no seacuteculo VIII aC
Recentemente ateacute mesmo a geneacutetica se debruccedilou sobre esse tema esses pesquisadores
acreditam que a liacutengua eacute como um DNA e as palavras genes Esses ldquogenesrdquo vatildeo passando de
uma liacutengua para outra criando raiacutezes etimoloacutegicas semelhantes como acontece na palavra
aacutegua (do proto-germacircnico watōr derivaram-se wato ndash goacutetico ndash water ndash inglecircs ndash wasser ndash
alematildeo ndash vatten ndash sueco ndash etc) (ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p
417) Eles isolam essas palavras em comum entre o hitita o grego moderno (essas duas as
quais se conhece a eacutepoca em que se desenvolveram) e o grego homeacuterico e atraveacutes de uma
frequecircncia de cadeia de Markov7 chegam agrave conclusatildeo que a antiguidade do grego da Iliacuteada eacute
de cerca de 2720 anos ou seja que seria mais ou menos de 707 aC Com a margem que eles
potildeem nesse meacutetodo os textos homeacutericos satildeo datados de entre 760 a 710 aC
O objetivo desses pesquisadores eacute mostrar que a ldquolinguagem pode ser usada como os
genes para ajudar na investigaccedilatildeo das questotildees histoacutericas arqueoloacutegicas e antropoloacutegicasrdquo
(ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p 419) e eles afirmam que como 6 Para conhecer quais helenistas partilham de quais opiniotildees consultar o artigo de Gustavo Oliveira intitulado Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas homeacutericos (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 7 Essa cadeia funciona do seguinte modo temos um objeto x do qual natildeo conhecemos nada mas tambeacutem temos dois objetos y e z que se relacionam com esse x e do qual conhecemos algo em comum Assim atraveacutes de uma foacutermula fixa conseguimos chegar ao resultado do nosso x Aqui no caso o x seria o grego homeacuterico o y e o z o hitita e o grego moderno
14
esses textos satildeo oriundos de uma tradiccedilatildeo oral fica difiacutecil de dizer se essa data diz respeito a
quando eles foram produzidos ou cristalizados na escrita A importacircncia desse estudo eacute
tambeacutem mostrar como esse eacute um problema que natildeo intriga somente a noacutes cientistas humanos
mas aos cientistas das aacutereas de Exatas e Bioloacutegicas tambeacutem aumentando o leque de diaacutelogo
transdisciplinar Desse modo cremos que sua menccedilatildeo eacute essencial para chamar a atenccedilatildeo para
outras perspectivas de trabalho
Os defensores de (b) creem que os poemas dizem respeito agrave sociedade que os fixou na
escrita fazendo com que a dataccedilatildeo fique mais imprecisa ainda Natildeo haacute como chegar num
consenso como chegamos em (a) acerca de qual data seria mais apropriada Jaacute os que
defendem (c) acreditam que os poemas dizem respeito ao Periacuteodo Palaciano (XVII-1100
aC) pois fazem referecircncia a esse passado quando teria se desenrolado a Guerra de Troia
Essa proposta natildeo eacute tatildeo bem aceita embora alguns estudiosos admitam que haacute muacuteltiplas
temporalidades em Homero (OLIVEIRA 2012 p 133)
Os pesquisadores que adotam (d) como proposta de dataccedilatildeo acreditam que os eacutepicos
referem-se ao periacuteodo da desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) Um dos principais
defensores dessa ideia eacute o historiador Moses Finley ele afirma que ldquo[O mundo de Ulisses]
Era muito mais lsquosimplesrsquo na sua organizaccedilatildeo social e poliacutetica era iletrada [sic] e a sua
arquitetura natildeo era verdadeiramente monumental quer se destinasse aos vivos quer aos
mortosrdquo (FINLEY 1982 p 45) Eacute juntamente com (a) uma das principais perspectivas
Claude Mosseacute a inclui no seu verbete sobre Homero no Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega
(2004 p 171-172) mas admite que mesmo assim a dataccedilatildeo permanece um enigma para noacutes
Gustavo Oliveira afirma que ldquoo maior problema com essa tendecircncia de associar os poemas
homeacutericos com o periacuteodo da Idade das Trevas estaacute justamente na falta de documentaccedilatildeo que
comprove ou ao menos sugira sua probabilidaderdquo (OLIVEIRA 2012 p 135)
Do mesmo modo o historiador Alexandre Santos de Moraes aborda essa discussatildeo em
sua tese de doutorado afirmando ser o periacuteodo entre os seacuteculos X a IX aC o ideal para se
colocar o que a Iliacuteada e a Odisseia mostram a sociedade homeacuterica seria a sociedade da eacutepoca
de desestruturaccedilatildeo palaciana O autor revisita as teses de Anthony Snodgrass e Oswyn Murray
e toma Ian Morris como principal representante da dataccedilatildeo de Homero no seacuteculo VIII aC
desconstruindo muitos de seus argumentos A eacutepica homeacuterica natildeo deve ser considerada
oriunda de um periacuteodo no qual surge a escrita pois pertence agrave tradiccedilatildeo oral bem como natildeo
podemos atribuir a Homero a criaccedilatildeo de um sistema poliacuteade muitos autores afirmam que
podemos encontrar sinais da poacutelis em Homero
15
Essa uacuteltima ideia eacute problemaacutetica a eacutepica jaacute traz o termo poacutelis mas ele natildeo diz respeito
agrave organizaccedilatildeo poliacutetica social econocircmica e administrativa que encontramos no Periacuteodo
Claacutessico O centro do poder em Homero eacute ainda o palaacutecio embora possamos encontrar
estruturas que estaratildeo presentes na poacutelis como a assembleia Nesses poemas haacute uma
miscelacircnea temporal muito grande natildeo podendo noacutes delimitarmos um uacutenico periacuteodo sem
sermos arbitraacuterios O proacuteprio Finley afirma que ldquoeacute com alguma liberdade que o historiador
fixa nos seacuteculos X e IX aC o mundo de Ulissesrdquo (FINLEY 1982 p 46)
Devido a essa polecircmica eacute muito difiacutecil para o historiador tomar uma posiccedilatildeo acerca da
data da composiccedilatildeo das epopeias Escolhemos o seacuteculo VIII aC agrave medida em que
defendemos que esses poemas dizem respeito jaacute a um movimento de conquista de apoikiacuteai
como defende o historiador Irad Malkin Mas eacute fato que a ancoragem histoacuterico-temporal
desses poemas pode retroceder mais no tempo visto que ele pertence a uma tradiccedilatildeo oral O
que vai mais nos interessar em nossa pesquisa eacute que a epopeia pertence a um tempo anterior
agraves trageacutedias
Sendo periacuteodos e gecircneros distintos cada um tende a representar Paacuteris de uma maneira
Nosso problema diz respeito a um processo que comeccedila com as epopeias de Homero e
continua a se desenvolver em outros gecircneros literaacuterios trata-se de um processo de elaboraccedilatildeo
de um coacutedigo de conduta social atraveacutes da praacutetica da paideiacutea8 o qual iraacute definir tambeacutem as
bases do que eacute grego e do que natildeo eacute Desde Homero haacute um discurso de alteridade Assim
indagamo-nos o que eacute grego9 O que natildeo eacute Era mais faacutecil para os gregos responderem agrave
uacuteltima pergunta definia-se o natildeo-grego para se definir o grego
Ao longo de toda a Odisseia o heroacutei Odisseu toma contato com Outros todavia eacute no
episoacutedio dos ciclopes em que se teraacute o contato com o grande representante da alteridade
helecircnica o qual seraacute recuperado por exemplo no drama satiacuterico Os Ciclopes de Euriacutepides
Odisseu os descreve assim ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo
cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεmicroίστων ἱκόmicroεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι
πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO
Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)
O que importa nessas sequecircncias natildeo eacute a caracterizaccedilatildeo dos ciclopes mas a definiccedilatildeo
daquilo que definitivamente natildeo eacute helecircnico Pela descriccedilatildeo de Odisseu podemos caracterizar 8 Literalmente paideiacutea significa ldquocriaccedilatildeo de meninosrdquo Ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas Para melhor definiccedilatildeo ver o capiacutetulo 1 de nossa dissertaccedilatildeo (Entre Homero e Euriacutepides dois estilos de composiccedilatildeo) 9 Vale ressaltar que ldquogregordquo aqui eacute uma conveniecircncia Haacute um intenso debate em torno do termo ldquohelenordquo ele eacute usado em Homero para designar determinado povo natildeo todos os povos gregos como seraacute no Periacuteodo Claacutessico
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os gregos eles vivem sob um coacutedigo de leis sua principal fonte de subsistecircncia eacute a
agricultura eles vivem em comunidade cultuam os deuses o patildeo eacute o seu principal alimento e
possuem caracteriacutesticas humanas sendo inclusive belos10
Por isso preferimos utilizar o conceito de alteridade tal qual Marc Augeacute propotildee Para ele
a identidade eacute produzida pelo reconhecimento de alteridades colocando em cena um Outro
(AUGEacute 1998 p 19 e 20) que pode ser a) o Outro exoacutetico que eacute definido a partir de um noacutes
homogecircneo b) o Outro eacutetnico homogecircneo ndash como eacute o caso dos gregos em relaccedilatildeo com os
baacuterbaros c) o Outro social (a mulher a crianccedila o transgressor) e o Outro iacutentimo pois temos
vaacuterias identidades (AUGEacute 2008 p 22-3)
Segundo esse antropoacutelogo ldquonatildeo existe afirmaccedilatildeo identitaacuteria sem redefiniccedilatildeo das relaccedilotildees
de alteridade como natildeo haacute cultura viva sem criaccedilatildeo culturalrdquo (AUGEacute 1998 p 28)
Identidade e alteridade natildeo se opotildeem natildeo se excluem formam um par complementando-se
visto que satildeo ldquocategorias [] que a constituem [a sociedade] e definemrdquo (AUGEacute 1998 p
10) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no
contato entre os colonizadores e os nativos
O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica o contato com
outras culturas eacute imbuiacutedo de choques Contudo Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de outro
retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas
em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para
definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) E se pararmos para pensar o conectivo
adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse
vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 p 63-4) o ldquooutrordquo assemelha-se ao
ldquomasrdquo ao adverso
Assim como o conceito de alteridade o de etnicidade tem um apelo marcadamente
antropoloacutegico Escolhemos trabalhar com o modo como Fredrik Barth entende a etnicidade e
mais ainda o que eacute uma fronteira eacutetnica e um grupo eacutetnico conceitos-chave para
entendermos sua abordagem Embora seja um texto claacutessico Barth conseguiu abarcar o que
compreendemos sobre etnicidade ou seja um discurso criado por um grupo para legitimar
seu lugar social sendo que esse discurso natildeo vem do nada mas sim da relaccedilatildeo com outros
grupos
10 O termo utilizado pelos helenos para designar o belo eacute kaloacutes que tem tanto uma conotaccedilatildeo de beleza externa quanto interna (virtude) podendo inclusive dependendo do contexto ser traduzido como ldquobomrdquo bem como o seu antocircnimo kakoacutes pode ser traduzido por ldquofeiordquo ou ldquomaurdquo
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O termo etnia vem de um outro eacutethnos que eacute ldquotoda classe de seres de origem ou de
condiccedilatildeo comumrdquo (BAILLY 2000 p 581) Ele pode designar tanto um bando de animais
(eacutethnea ndash nominativo eacutepico jocircnico plural ndash HOMERO Iliacuteada II 459 para gansos II 469
para moscas Odisseia XIV v 73 para porcos) quanto um conjunto de pessoas O termo
eacutethnos aparece geralmente ligado a uma estrutura formulaica como ldquoἂψ δ ἑτάρων εἰς
ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἐχάζετο κῆρ ἀλεείνωνrdquo (ldquomas de volta ao grupo ndash eacutethnos ndash dos companheiros retorna
evitando a morte em batalha - kḗrrdquo) ou ldquoἐπεὶ ἵκετο ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἑταίρωνrdquo (ldquodepois voltou ao grupo
ndash eacutethnos ndash de companheirosrdquo11) visto que se repetem algumas vezes ao longo da Iliacuteada (a
primeira estrutura mais do a segunda)
O conceito de etnicidade comeccedilou a ser debatido recentemente desde a deacutecada de 1970
que esse debate se destaca
O debate sobre a etnicidade foi alimentado desde a deacutecada de 1970 por uma abundante bibliografia que se enriqueceu de modo consideraacutevel o conhecimento empiacuterico das situaccedilotildees intereacutetnicas atuais em todas as partes do mundo natildeo chegou verdadeiramente ateacute hoje a permitir que se destaque uma teoria geral da etnicidade (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 120)
Contudo a heterogeneidade do debate natildeo permitia que se chegasse a uma definiccedilatildeo
mais concreta de etnicidade e uma proposta de conceituaccedilatildeo ainda natildeo havia sido elaborada
Confundia-se (e ainda se confunde) muito os termos ldquoraccedilardquo e ldquoetniardquo que se configuram em
instacircncias diferentes a etnia diz respeito agraves relaccedilotildees sociais entre o ldquonoacutesrdquo e o ldquoelesrdquo e a raccedila
diz mais respeito agraves configuraccedilotildees bioloacutegico-fenotiacutepicas que diferenciam um grupo do outro
Obviamente o argumento racial seraacute utilizado algumas vezes para essa diferenciaccedilatildeo
dicotocircmica mas isso quer dizer que ele tem relaccedilatildeo com o conceito de etnicidade natildeo que
seja sinocircnimo deste
Assim Glazer amp Moynihan defendem que ldquoa etnicidade refere-se a um conjunto de
atributos ou de traccedilos tais como a liacutengua a religiatildeo os costumes o que a aproxima da noccedilatildeo
de cultura ou agrave ascendecircncia comum presumida dos membros o que a torna proacutexima da noccedilatildeo
de raccedilardquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Outros autores relacionam a
etnicidade com o que impulsiona a formaccedilatildeo de um povo com a adequaccedilatildeo comportamental
das pessoas agraves normas sociais de um grupo ou agraves representaccedilotildees que condensam a pertenccedila a
um grupo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86)
11 Esses versos satildeo de traduccedilatildeo proacutepria
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Como pudemos ver as definiccedilotildees satildeo diversas Houve uma tentativa de juntar todas
essas definiccedilotildees para compor o conceito de etnicidade em fins da deacutecada de 1978 (Burgess)
mas que acabou por generalizaacute-lo No acircmbito da Histoacuteria Antiga o historiador americano
Jonathan M Hall procurou sumarizar em oito pontos o que ele entende por etnicidade a partir
de leituras diversas
(1) A etnicidade eacute um fenocircmeno mais social do que bioloacutegico Eacute definida mais por criteacuterios social e discursivamente construiacutedos do que por indiacutecios sociais
(2) Traccedilos culturais geneacuteticos linguiacutesticos religiosos ou comuns natildeo definem essencialmente o grupo eacutetnico Esses satildeo siacutembolos que satildeo manipulados de acordo com fronteiras atribuiacutedas construiacutedas subjetivamente
(3) O grupo eacutetnico eacute distinto de outros grupos sociais e associativos em virtude da associaccedilatildeo com um territoacuterio especiacutefico e um mito de origem compartilhado Essa noccedilatildeo de descendecircncia eacute mais putativa do que atual e julgada por consenso
(4) Os grupos eacutetnicos satildeo frequentemente formados pela apropriaccedilatildeo de recursos por uma seccedilatildeo da populaccedilatildeo ao custo de outra como resultado de uma conquista ou migraccedilatildeo de longa data ou pela reaccedilatildeo contra tais apropriaccedilotildees
(5) Os grupos eacutetnicos natildeo satildeo estaacuteticos ou monoliacuteticos mas dinacircmicos e fluidos Suas fronteiras satildeo permeaacuteveis ateacute certo grau e elas podem ser produto de um professo de assimilaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo
(6) Os indiviacuteduos natildeo precisam sempre agir em termos de sua pertenccedila a um grupo eacutetnico Quando contudo a identidade do grupo eacutetnico eacute ameaccedilada sua internalizaccedilatildeo como identidade social de cada um de seus membros implica numa convergecircncia de normas e comportamentos de grupo e a supressatildeo temporaacuteria da variabilidade individual no esforccedilo por uma identidade social positiva
(7) Tal convergecircncia comportamental e saliecircncia eacutetnica eacute mais comum entre (ainda que natildeo exclusiva a) grupos dominados e excluiacutedos
(8) A identidade eacutetnica soacute pode ser constituiacuteda em oposiccedilatildeo a outras identidades eacutetnicas (HALL 1997 p 33)
A definiccedilatildeo de Hall se aproxima bastante da defendida por Fredrik Barth e Abner
Cohen autores que nos chamaram a atenccedilatildeo Desse modo propomos nos debruccedilar sobre as
ideias deles dois visto que ambos nos chamaram a atenccedilatildeo ao tratar da etnicidade No
entanto escolhemos apenas um como norte teoacuterico o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth
Para esse autor o grupo eacutetnico natildeo eacute sinocircnimo de sociedade ou cultura Essa eacute uma premissa
fundamental visto que trabalhamos com dois grupos que compartilham de um mesmo coacutedigo
de conduta social Barth afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural
especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) esse ldquoconjunto culturalrdquo seria
justamente a paideiacutea com o coacutedigo de conduta que ela transmite
Aleacutem disso ele enfoca justamente nos limites desse grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo
de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com
outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos
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culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de
transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo
(LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando
os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios
para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)
A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se
define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado
pelo conceito de etnicidaderdquo afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart eacute aquele
que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e
satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de
traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees
raciaisrdquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 141)
A etnicidade tambeacutem implica na construccedilatildeo de representaccedilotildees sociais pois ldquoa
identificaccedilatildeo de outra pessoa como pertencente a um grupo eacutetnico implica compartilhamento
de criteacuterios de avaliaccedilatildeo e julgamentordquo (BARTH 2011 p 196) pois assim se tem a ideia de
que se ldquojoga o mesmo jogordquo nas palavras mesmo de Barth Essas representaccedilotildees satildeo
fundamentais para manter as caracteriacutesticas do grupo visto que a comunicaccedilatildeo eacute o locus
privilegiado de inculcaccedilatildeo delas
Ao pesquisarmos sobre o conceito de etnicidade encontramos outro autor que nos
chamou bastante atenccedilatildeo o antropoacutelogo iraquiano Abner Cohen Esse autor estuda as
sociedades africanas contemporacircneas mostrando como os costumes influenciam a poliacutetica e
como o discurso eacutetnico define relaccedilotildees de poder entre grupos eacutetnicos Assim como Barth
Cohen tambeacutem crecirc que o grupo se define e se redefine pelo contato com outros grupos
eacutetnicos ldquoum grupo eacutetnico se ajusta a novas realidades sociais adotando costumes de outros
grupos ou desenvolvendo novos costumes que satildeo compartilhados com outros gruposrdquo
(COHEN 1969 p 1)
Aleacutem disso o antropoacutelogo afirma que
Os diferentes grupos eacutetnicos organizam essas funccedilotildees [normas culturais valores mitos e siacutembolos] de modos diferentes de acordo com as suas tradiccedilotildees culturais e circunstacircncias estruturais Alguns grupos eacutetnicos fazem uso extensivo dos idiomas religiosos organizando essas funccedilotildees Outros grupos usam a descendecircncia [kinship] ou outras formas de relaccedilotildees morais em vez disso No curso do tempo o mesmo grupo pode mudar de um princiacutepio articulador para outro como resultado de mudanccedilas dentro do sistema poliacutetico encapsulado de ou outros desenvolvimentos ambos dentro ou fora do grupo (COHEN 1969 p 5-6)
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Contudo esbarramos no pensamento desse antropoacutelogo quando este afirma que ldquode
acordo com o meu uso um grupo eacutetnico eacute um grupo de interesse informal cujos membros satildeo
distintos dos membros de outros grupos dentro da mesma sociedaderdquo (COHEN 1969 p 4)
Isso seria aplicaacutevel somente agrave Iliacuteada visto que aqueus e troianos seriam membros de uma
mesma comunidade (que estaacute sob um mesmo coacutedigo de conduta) embora sejam membros de
diferentes grupos eacutetnicos Entretanto na realidade de Euriacutepides em que a dicotomia grego
baacuterbaro estaacute bem mais definida (e em crise) essa observaccedilatildeo natildeo se aplica a sociedade grega
eacute diferente da sociedade baacuterbara
Especificamente tratando da Antiguidade Grega alguns autores se debruccedilaram sobre a
questatildeo da etnicidade e da alteridade O mais antigo registro bibliograacutefico que trazemos em
nossa discussatildeo eacute o da helenista Helen Bacon Barbarians in Greek tragedy (1955) Em seu
doutorado ela faz uma anaacutelise dos elementos que caracterizam o baacuterbaro nas trageacutedias de
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides Tanto o vestuaacuterio como o modo de falar ou as accedilotildees definem
um personagem baacuterbaro mas dependendo do autor um ou outro elemento eacute enfatizado
Em 1989 Edith Hall publicou a sua tese doutoral Inventing the barbarian Greek
self-definition through tragedy que teve grande repercussatildeo no meio acadecircmico
Praticamente todos os livros que trazem a questatildeo da alteridadeetnicidade mencionam o
trabalho de Hall que se destina agrave anaacutelise da poesia traacutegica tambeacutem Sua hipoacutetese principal eacute a
de que quando os gregos escrevem sobre os baacuterbaros eles estatildeo fazendo um ldquoexerciacutecio de
auto-definiccedilatildeordquo pois eles satildeo opostos e que essa ldquoinvenccedilatildeordquo teria comeccedilado a partir das
Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) Aleacutem disso ela defende que a ideia de pan-helenismo
tem mais a ver com um ideal atenocecircntrico do que helenocecircntrico Com relaccedilatildeo a Homero ela
afirma que natildeo existe uma polarizaccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros no poema embora essa
diferenciaccedilatildeo existisse nessa eacutepoca admitindo que a Guerra de Troia originalmente seria
entre duas comunidades (HALL 1989 p 23) Contudo ela critica os autores que veem em
Homero uma diferenciaccedilatildeo clara entre gregos e troianos
Em 1993 a helenista francesa Jacqueline de Romilly escreve um artigo comentando o
livro de Edith Hall Les barbares dans la penseacutee de la Gregravece classique Ela chama a atenccedilatildeo
para o fato de que mais do que inventar o baacuterbaro os gregos inventaram o helenismo
(ROMILLY 1993 p 3) A autora reforccedila a ideia de que essa dicotomia eacute mais poliacutetica do que
racial embora admita que os gregos se liguem tambeacutem pelo criteacuterio da raccedila
No mesmo ano Barbara Cassin Nicole Loraux e Catherine Peschanski organizaram
Gregos baacuterbaros estrangeiros a cidade e seus outros com cinco ensaios das autoras
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sobre a questatildeo da alteridade na Greacutecia Claacutessica especificamente apresentados no Rio de
Janeiro a convite do Coleacutegio Internacional de Estudos Filosoacuteficos Transdisciplinares Elas
analisam sobretudo como a poacutelis lidava com os seus Outros categorizando e caracterizando
o estrangeiro A documentaccedilatildeo principal reside na historiografia helecircnica sendo Heroacutedoto
Tuciacutedides e Xenofonte os mais trabalhados Elas mostram como os gregos satildeo gregos por
cultura natildeo por natureza e como eles podem voltar a ser baacuterbaros atraveacutes do desrespeito dos
coacutedigos de valores helecircnicos (CASSIN LORAUX 1993 p 10)
Um ano depois Pericles Georges escreveu um livro que aborda natildeo soacute o Periacuteodo
Claacutessico mas tambeacutem o Arcaico Barbarian Asia and the Greek experience from the
Archaic Period to the age of Xenophon Sua proposta no livro eacute mostrar como os gregos
estereotiparam o baacuterbaro e qual a origem disso evidenciando como essa definiccedilatildeo ajudou a
construir a identidade grega No tocante a Homero ele tambeacutem natildeo crecirc haver diferenciaccedilatildeo
entre gregos e troianos mas admite que a Iliacuteada jaacute traz uma diferenciaccedilatildeo entre o noacutes e o eles
sobretudo ao se referir aos caacuterios e liacutedios
Antonio Mario Battegazzore escreveu em 1996 um artigo interessante sobre essa
polarizaccedilatildeo grego versus baacuterbaro La dicotomia greci-barbari nella Grecia Classica
riflessioni su cause ed effetti di una visione etnocecircntrica Seu trabalho eacute interessante pois
corrobora a ideia de que os gregos tecircm dois tipos de leitura sobre os baacuterbaros uma horizontal
(na qual os gregos reivindicam uma centralidade geograacutefico-cultural em relaccedilatildeo aos outros
povos) e uma vertical (os gregos satildeo evoluiacutedos pois o passado baacuterbaro ficou para traacutes os
baacuterbaroi de hoje satildeo atrasados visto que pararam no tempo) (BATTEGAZZORE 1996 p
23) Ele natildeo admite a possibilidade de diferenciaccedilatildeo entre troianos e gregos na Iliacuteada
analisando essa dicotomia no Periacuteodo Claacutessico
O historiador Irad Malkin em 1998 escreve um livro inovador no que diz repeito ao
uso conceitual da etnicidade para o mundo Antigo The returns of Odysseus colonization
and ethnicity Ele analisa os nostoiacute heroacuteis que cruzam regiotildees tentando voltar para casa na
mitologia grega e os relaciona agrave definiccedilatildeo da identidade helecircnica a partir do contato com
Outros O autor defende por exemplo a ideia de que Odisseu na verdade seria uma metaacutefora
para a colonizaccedilatildeo helecircnica que acontecia sobretudo no seacuteculo VIII aC sendo assim um
ldquoheroacutei proto-colonialrdquo (MALKIN 1998 p 3) Em 2001 Malkin organizou um livro com
ensaios especificamente sobre a etnicidade no mundo grego Ancient Perceptions of Greek
Ethnicity aquecendo os debates sobre o tema
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Em 2002 dois trabalhos se destacaram no tocante agrave questatildeo da etnicidade helecircnica o
de Jonathan M Hall (Hellenicity between ethnicity and culture) e a coletacircnea de Thomas
Harrison (Greeks and barbarians) Hall jaacute havia escrito um livro em 1997 sobre a questatildeo
eacutetnica no mundo grego (Ethnic identity in Greek Antiquity) e o seu novo livro na verdade
eacute um aprofundamento do tema e um alargamento da gama de documentos utilizados Ele
defende que existem determinados elementos que definem as fronteiras eacutetnicas helecircnicas os
quais jaacute apontamos aqui em nossa introduccedilatildeo O livro de Harrison traz vaacuterios ensaios
transdisciplinares sobre essas diferenciaccedilotildees entre gregos e baacuterbaros vistos de uma
multiplicidade de naturezas documentais que vatildeo desde a literatura ateacute a cultura material
helecircnica
A helenista Lynette Mitchell em 2007 publicou seu Panhellenism and the
barbarian in Archaic and Classical Greece Ela tenta definir o que eacute esse pan-helenismo
estendendo a anaacutelise para o Periacuteodo Arcaico e defendendo que essa ideia natildeo eacute apenas cultural
ou poliacutetica mas necessariamente possui ambas as conotaccedilotildees Dois anos depois o classicista
P M Fraser escreveu seu Greek ethnic terminology no qual analisa o vocabulaacuterio eacutetnico
desde Homero ateacute Bizacircncio Ele mostra como o termo eacutethnos mudou ao longo do tempo indo
da simples designaccedilatildeo de uma coletividade ateacute uma demarcaccedilatildeo bem niacutetida do noacuteseles bem
como relaciona a ele outros termos (como geacutenos e poacutelis) que desempenham essa marcaccedilatildeo
eacutetnica
Efi Papadodimas escreveu em 2010 um artigo digno de nota pois se debruccedila
especificamente sobre Euriacutepides The GreekBarbarian interaction in Euripides Andromache
Orestes Heracleidae a reassessment of Greek attitudes to foreigners Ele mostra como nas
trageacutedias euripidianas a dicotomia grego versus baacuterbaro estaacute cada vez mais fluida visto que o
tragedioacutegrafo testemunha a ldquobarbarizaccedilatildeordquo dos proacuteprios gregos Para o autor essa ideia de
que o baacuterbaro eacute um oposto entra em crise natildeo sendo difiacutecil encontrar em suas trageacutedias
gregos agindo como baacuterbaros
O historiador grego Kostas Vlassopoulos em seu Greeks and barbarians (2013)
tentou desconstruir a ideia de que o grego eacute diametralmente oposto ao baacuterbaro analisando
como gregos e baacuterbaros conviviam no espaccedilo mediterracircnico Esse eacute o principal argumento do
seu livro Os gregos num plano discursivo procuraram diferenciar o baacuterbaro de si a fim de
fundar sua proacutepria identidade mas na praacutetica os gregos dialogaram bastante com os natildeo-
gregos atraveacutes de trocas culturais as quais natildeo diziam respeito somente agrave imposiccedilatildeo mas agrave
circulaccedilatildeo mesmo de ideias e tecnologias pelo Mediterracircneo Essas trocas tiveram como
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principal palco o mundo das apoikiacuteai as ldquocolocircniasrdquo gregas as quais frequentemente ou
adotavam os costumes gregos (sobretudo o modo de organizaccedilatildeo poliacuteade) ou recebiam-nos e
modificavam-nos adaptando-os aos seus contextos
Nosso trabalho propotildee analisar comparativamente os elementos que definiam as
fronteiras eacutetnicas em Homero e em Euriacutepides sobretudo a partir da anaacutelise do heroacutei Paacuteris
visto por noacutes como o Outro por excelecircncia na Iliacuteada e nas trageacutedias do ciclo troiano
Dividimos nosso trabalho em trecircs capiacutetulos o primeiro trata da etnicidade de uma forma geral
dentro das poesias eacutepica e traacutegica dessuperficializando os textos que analisaremos em nosso
trabalho Jaacute o segundo trata de um aspecto recorrente na representaccedilatildeo de Paacuteris nossa
comparaacutevel ele como sendo um causador de males Vamos ver como Homero e Euriacutepides
tratam disso destacando como essa caracteriacutestica engloba uma seacuterie de elementos que
definem fronteiras eacutetnicas tanto na epopeia quanto na trageacutedia No terceiro capiacutetulo nos
debruccedilamos sobre um Paacuteris guerreiro e como a sua representaccedilatildeo como tal corrobora a
definiccedilatildeo desse personagem como sendo um Outro bem como Homero e Euriacutepides lidam
com essa alteridade dos troianos
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CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE
COMPOSICcedilAtildeO
ldquo[] a epopeia [de Homero] eacute aqui construiacuteda como uma trageacutediardquo
(ROMILLY 2013 p 47)
Nesse capiacutetulo vamos trabalhar a literariedade da epopeia homeacuterica e a trageacutedia
euripidiana ou seja o que faz dessas obras textos literaacuterios (ANDRADE 1998 p 27) que
satildeo ldquoobjeto[s] de conhecimento que representa[m] alegoricamente o ponto de vista do escritor
a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31) Faremos isso de modo a mostrar
como elas pertencem a um mesmo espaccedilo discursivo bem como a construccedilatildeo delas implica
em um discurso que molda uma etnicidade helecircnica Por isso a epiacutegrafe de Jacqueline de
Romilly se faz de extrema importacircncia para abrirmos nossa discussatildeo ela acredita que a
epopeia homeacuterica se constroacutei agrave maneira de uma trageacutedia Obviamente Homero natildeo previu a
existecircncia dos traacutegicos fazendo um poema que parecesse com uma trageacutedia futura Contudo
a afirmaccedilatildeo da helenista francesa implica na ideia de que as trageacutedias foram influenciadas
pelas epopeias
Os textos homeacutericos satildeo arquitextos12 natildeo somente para Euriacutepides mas para toda a
tradiccedilatildeo literaacuteria grega posterior sendo que tanto Homero quanto Euriacutepides satildeo hoje ambos
arquitextos eles influenciam no modo como produzimos textos (sejam eles escritos visuais
orais etc) Tanto a epopeia quanto a trageacutedia fazem parte do mesmo espaccedilo discursivo13 o
material miacutetico homeacuterico serviu aos tragedioacutegrafos a utilizaccedilatildeo de epiacutetetos e comentaacuterios
para caracterizar um personagem eacute tomada emprestada dessa tradiccedilatildeo eacutepica bem como a
utilizaccedilatildeo de algumas foacutermulas conhecidas do puacuteblico
Desse modo podemos dizer que poesia eacutepica e traacutegica fazem parte de uma mesma
tradiccedilatildeo mito-poeacutetica No entanto natildeo podemos afirmar que o mito se desenrola na trageacutedia
da mesma maneira que em Homero Se fosse assim dificilmente as peccedilas de teatro atrairiam a
atenccedilatildeo do puacuteblico ateniense do seacuteculo V aC afinal ningueacutem quer ver a mesma histoacuteria
contada do mesmo modo diversas vezes Nenhum texto embora influenciado por outros eacute
12 O arquitexto designa ldquoas obras que possuem um estatuto exemplar que pertencem ao corpus de referecircncia de um ou de vaacuterios posicionamentos de um discurso constituinterdquo (MAINGUENEAU 2008 p 64) 13 ldquoO lsquoespaccedilo discursivorsquo enfim delimita um subconjunto do campo discursivo ligando pelo menos duas formaccedilotildees discursivas que supotildee-se mantecircm relaccedilotildees privilegiadas cruciais para a compreensatildeo dos discursos consideradosrdquo (MAINGUENEAU 1997 p 117)
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igual a esses predecessores eles possuem um interdiscurso que eacute esse diaacutelogo com tradiccedilotildees
literaacuterias posteriores mas nunca satildeo coacutepias puras e simples
Homero mesmo embora seja um arquitexto natildeo pode ser considerado o iniacutecio de um
processo discursivo ele faz parte desse processo visto que nos seus textos jaacute existe um
interdiscurso Homero eacute um dos aedos que circulavam pela Greacutecia naquela eacutepoca e ainda
havia outros como ele antes dele Aleacutem disso ele eacute influenciado por vaacuterias tradiccedilotildees literaacuterias
que jaacute existiam Um exemplo disso eacute a utilizaccedilatildeo do contexto intralinguiacutestico da poesia
iacircmbica para compor alguns personagens como o proacuteprio Paacuteris (SUTER 1984) esse tipo de
verso era utilizado para acusar algueacutem de algo Assim a composiccedilatildeo de algumas sentenccedilas
relativas agrave Paacuteris sobretudo quando o sujeito enunciador eacute um personagem da Iliacuteada (como
Priacuteamo ou Heitor) conservam esse ato de linguagem14 iacircmbico
Escolhemos dois gecircneros15 discursivos para trabalhar com Paacuteris a epopeia de
Homero e as trageacutedias de Euriacutepides Antes de apresentarmos as anaacutelises comparadas do
nosso heroacutei em cada um deles eacute mister discorrermos sobre a natureza da composiccedilatildeo desses
dois textos pois trabalhamos com a Anaacutelise de Discurso como meacutetodo de leitura deles Para o
analista eacute importante dessuperficializar o corpus documental para criar um objeto discursivo
sobre o qual enfim nos debruccedilamos com fins analiacuteticos
Essa dessuperficializaccedilatildeo consiste em dirigir aos textos perguntas que vatildeo ancorar
nossa leitura em um determinado tempo espaccedilo e sociedade ldquoQuem escreveurdquo ldquoQuando
escreveurdquo ldquoOnde escreveurdquo ldquoDe onde essa pessoa veiordquo ldquoPara quem ela escreverdquo ldquoO
que ela defenderdquo ldquoQual o gecircnero do textordquo satildeo perguntas que devemos fazer antes de
comeccedilar a analisar qualquer documentaccedilatildeo
Esse processo tem a ver com a proacutepria classificaccedilatildeo do gecircnero discursivo ao qual
pertence um determinado discurso ldquoO fato de que um texto seja destinado a ser cantado lido
em voz alta acompanhado por instrumentos musicais de determinado tipo que circule de
determinada maneira e em certos espaccedilos tudo isto [sic] incide radicalmente sobre seu
modo de existecircncia semioacuteticardquo (MAINGUENEAU 1997 p 36) O gecircnero eacute tatildeo importante na
construccedilatildeo do discurso que na Greacutecia Antiga ele influenciava diretamente na escolha do
dialeto da composiccedilatildeo dos textos como a linguista britacircnica Anna Morpurgo Davies nos
explica
14 O ato de linguagem eacute uma sequecircncia linguiacutestica com um valor ilocutoacuterio ou seja dotado de uma determinada forccedila (no caso da poesia iacircmbica de acusaccedilatildeo) que pretende operar sobre o sujeito receptor uma transformaccedilatildeo 15 Podemos classificar os gecircneros de diferentes maneiras de acordo com suas condiccedilotildees comunicacionais (como fala onde fala etc) e estatutaacuterias (quem fala para quem fala qual o lugar social de cada sujeito do discurso etc)
26
O verso eacutepico eacute escrito em alguma forma de jocircnico A trageacutedia aacutetica eacute escrita em aacutetico exceto pelos coros os quais estatildeo em uma forma doacuterica modificada A poesia liacuterica pode estar em eoacutelico a prosa literaacuteria natildeo Em um nuacutemero de instacircncias a escolha do dialeto eacute independente da origem do autor Piacutendaro era de Tebas mas natildeo escreve em beoacutecio Hesiacuteodo era tambeacutem da Beoacutecia mas compocircs em uma linguagem eacutepica ie em uma forma compoacutesita de jocircnico (DAVIES 2002 p 157)
A Iliacuteada natildeo era encenada do mesmo modo que as trageacutedias natildeo se restringiam a uma
reacutecita as performances eacutepica e traacutegica eram diferentes Para o melhor aproveitamento do
estudo do nosso corpus e corroboraccedilatildeo de nossas hipoacuteteses devemos observar natildeo somente as
semelhanccedilas e diferenccedilas mas tambeacutem quais as peculiaridades que cada gecircnero discursivo
nos traz Diferentemente da Iliacuteada as trageacutedias natildeo satildeo tatildeo extensas para termos uma noccedilatildeo
a maior das trageacutedias que vamos estudar (Orestes com 1693 versos) corresponde a somente
1078 da Iliacuteada (que possui 15693 versos) As reacutecitas aeacutedicas e rapsoacutedicas eram
episoacutedicas a Iliacuteada e a Odisseia natildeo eram cantadas de uma vez soacute selecionando-se apenas
episoacutedios Essa praacutetica estaacute presente na documentaccedilatildeo mesma no Canto VIII da Odisseia (vv
266-369) Demoacutedoco conta o episoacutedio da traiccedilatildeo de Afrodite e Ares
Outra diferenccedila a se sublinhar eacute o proacuteprio modo de compor o aedo natildeo escrevia seus
poemas ao contraacuterio do traacutegico O aedo memorizava o poema ou compunha-o na hora para o
seu puacuteblico utilizando uma mnemoteacutecnica16 Desse modo vemos se repetirem foacutermulas como
ldquoAssim que a Aurora de dedos de rosa surgiu matutinardquo [ἦmicroος δ᾽ ἠριγένεια φάνη
ῥοδοδάκτυλος Ἠώς] e epiacutetetos (como theoeidḗs relativo a Paacuteris) que equivaliam a uma
pausa necessaacuteria para o cantor se lembrar do que falaraacute a seguir e para ele poder compor
atraveacutes do manejo do hexacircmetro dactiacutelico os seus versos
Euriacutepides escreveu as suas trageacutedias e cada ator (em sua eacutepoca trecircs17) decorava suas
falas e as interpretava em cima do palco Surge aqui entatildeo mais um elemento que distingue o
gecircnero eacutepico do traacutegico a forma do texto Em Homero haacute diaacutelogos entre personagens espaccedilo
para eles falarem contudo isso se daacute atraveacutes do discurso indireto livre de um narrador
onisciente18 Nas trageacutedias esse narrador desaparece o discurso eacute direto mesmo quando se
trata do coro e os narradores satildeo sempre personagens Os diaacutelogos exerciam um papel muito 16 A mnemoteacutecnica seria a arte no caso do aedo de lembrar e improvisar se preciso os versos a serem recitados A tiacutetulo de aprofundamento do tema ver o capiacutetulo II de Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica de Marcel Detienne (consultar Referecircncias bibliograacuteficas) 17 Eacute atribuiacutedo a Soacutefocles a introduccedilatildeo do terceiro ator Ateacute entatildeo as trageacutedias eram interpretadas por apenas dois atores Cada vez mais o ator vai ganhando destaque nas produccedilotildees traacutegicas e a partir de 449 aC havia natildeo soacute competiccedilotildees de trageacutedias em si mas de atores tambeacutem (SCODEL 2011 p 53-54) 18 O narrador onisciente eacute aquele que conhece passado presente e futuro da histoacuteria e o iacutentimo de cada personagem mas que natildeo participa da trama
27
importante em determinadas trageacutedias mesmo o falar da personagem jaacute mostrava a que
acircmbito social ela pertencia como acontece com o friacutegio de Orestes (que eacute marcadamente um
baacuterbaro) ou com Paacuteris em Alexandre cuja desenvoltura no falar denuncia que ele natildeo eacute um
pastor comum e excede aos outros
Aleacutem disso natildeo eacute o autor que interpreta suas peccedilas19 ele delega essa funccedilatildeo aos
atores A encenaccedilatildeo traacutegica natildeo corresponde somente agrave trageacutedia em si havia esses atores (no
caso de Euriacutepides trecircs20) que representavam os personagens O figurino as maacutescaras
deveriam trazer consigo as particularidades de cada personagem e torna-lo reconheciacutevel ao
puacuteblico eles deveriam saber quem era o mensageiro o deus o anciatildeo o heroacutei a mulher e
assim por diante Diferentemente o aedo eacute ele mesmo narrador de sua histoacuteria
Outro elemento eacute o espaccedilo da performance a reacutecita aeacutedica ocorre geralmente em
banquetes enquanto as encenaccedilotildees traacutegicas tecircm o espaccedilo do odeacuteon (teatro) para se desenrolar
Isso natildeo significa contudo que o puacuteblico do aedo seja mais restrito do que o do traacutegico
Podemos pensar que enquanto a epopeia geralmente era cantada no espaccedilo do banquete
aristocraacutetico21 a trageacutedia se encenava no espaccedilo da poacutelis custeada pelos cidadatildeos ricos e
aberta a toda a populaccedilatildeo (ROMILLY 1997 p 16) e por isso o alcance dela era maior22
Contudo natildeo podemos nos esquecer de que o poeta era itinerante fazendo suas epopeias
chegarem a vaacuterios lugares da Greacutecia Essa eacute uma ideia bastante explorada pelo historiador
Alexandre Santos de Moraes que ressalta
A certa estabilidade de que alguns aedos gozavam nos palaacutecios e ambientes aristocraacuteticos homeacutericos natildeo deve enublar nossas leituras [] quando encontramos o aedo iliaacutedico Tamiacuteris que viajava para competir com outros aedos ou mesmo o identificado no Hino Homeacuterico a Apolo que solicitara agraves donzelas deacutelias que perpetuassem sua fama par os outros aedos que por ali passassem chegamos agrave conclusatildeo de que esse sedentarismo nada mais era do que uma condiccedilatildeo momentacircnea [] A erracircncia portanto natildeo eacute apenas adequada a esses aedos eacute provaacutevel que tenha sido um meio indispensaacutevel para a ampliaccedilatildeo de seu repertoacuterio e a aquisiccedilatildeo de novos materiais e canccedilotildees (MORAES 2012 p 73 ndash grifos nossos)
Quando vamos estudar os mitos gregos ldquoconveacutem ter em conta essa fragmentariedade
das reliacutequias e a facilidade de variaccedilatildeo que oferecem os relatos dos poetasrdquo (GUAL 1996 p
19 Segundo Ruth Scodel no iniacutecio os tragedioacutegrafos poderiam ter sido eles mesmos atores em suas trageacutedias (SCODEL 2011 p 45) 20 Atribui-se a Soacutefocles o meacuterito de ter elevado de dois para trecircs o nuacutemero de atores Na eacutepoca de Eacutesquilo existiam somente dois (ROMILLY 1999 p 33) 21 Tambeacutem havia reacutecitas em concursos mas essas eram feitas por rapsodos que reproduziam versos de aedos 22 Embora os cidadatildeos mais pobres pudessem assistir agraves trageacutedias atraveacutes de um financiamento governamental (theōrikaacute) a maioria do puacuteblico no teatro advinha da elite (SCODEL 2011 p 53)
28
24) Os mitos em si satildeo bastante variaacuteveis existem mitos que natildeo tecircm uma uacutenica versatildeo
Afrodite por exemplo eacute filha de Zeus em Homero (Iliacuteada V v 131) e filha de Uranos em
Hesiacuteodo (Teogonia vv 180-200) Os mitos eram passados de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela via
oral tanto pelos poetas quanto pelos proacuteprios ouvintes que passavam as histoacuterias adiante
Aleacutem disso como vimos esses mitos circulavam mesmo na eacutepoca traacutegica as peccedilas poderiam
ser apresentadas em localidades outras aleacutem de Atenas Por isso que os mitos possuiacuteam uma
variaccedilatildeo muito grande de regiatildeo para regiatildeo sobretudo antes de terem sido escritos como na
eacutepoca arcaica O poema ldquooriginalrdquo (se assim considerarmos que existia um) sempre chega
com modificaccedilotildees conforme passa de uma pessoa para outra
Esses textos foram copiados e recopiados ao longo dos seacuteculos durante a denominada
Idade Meacutedia os manuscritos eacutepicos traacutegicos e historiograacuteficos serviam para o ensino do
grego Os copistas reproduziam determinados textos gregos conforme o gosto de quem os
encomendava Devido a isso muito se pensou que durante a Idade Meacutedia as obras da Greacutecia
Antiga se perderam entretanto isso eacute inverificaacutevel visto que foi a partir dos manuscritos
conservados em bibliotecas que foram possiacuteveis as ediccedilotildees impressas que temos hoje
Por causa dessa circulaccedilatildeo intensa dos eacutepicos e das trageacutedias existem as
interpolaccedilotildees versos inseridos a posteriori Em relaccedilatildeo a Homero desde a Antiguidade23
seus poemas satildeo como o pomo da discoacuterdia pois muita tinta foi derramada e muitos autores
jaacute debateram tanto sobre sua verossimilhanccedila quanto pela sua autoria conteuacutedo ou forma
Esses estudos se baseiam nos poemas em texto jaacute cristalizados pela escrita24 O trabalho com
as obras de Homero assim esbarra com a Questatildeo Homeacuterica Ela se constitui de uma seacuterie de
debates acerca da autoria da veracidade e da unidade dos poemas e muito jaacute se escreveu sobre
ela desde o seacuteculo XVIII De fato um Homero parece natildeo ter existido mas cremos que o fio
condutor dos dois poemas que lhes datildeo unidade eacute a proacutepria ideologia que os perpassa Natildeo
se comprovou ainda a existecircncia da Guerra de Troia conjectura-se que se ela ocorreu
provavelmente foi entre 1250-1240 aC quando a regiatildeo de Wilǔsa estava em disputa No
entanto eacute fato que a sociedade representada por Homero tem uma materialidade histoacuterica
23 Robert Aubreton elenca os criacuteticos de Homero que satildeo conhecidos Demoacutecrito de Abdera Hiacutepias de Eacutelis Estesiacutembroto de Tasos Hiacutepias de Tasos Aristoacuteteles Cameleatildeo Heraacuteclides Pocircntico Filotas de Coacutes Zenoacutedoto de Eacutefeso Neoptoacutelemo de Paacuterio Aristoacutefanes de Bizacircncio e Aristarco 24 Eacute comum a ideia de que Pistiacutestrato tirano grego no seacuteculo VI mandou que se colocassem por escritos os poemas homeacutericos graccedilas aos escritos de Wolf que a partir de documentaccedilatildeo oriunda da Antiguidade concluiu isso (WHITMAN 1965 p 66) Contudo o helenista norte-americano Cedric Whitman afirma que essa ideia eacute impossiacutevel pois ldquoos dois grandes eacutepicos nacionais dos gregos ndash se lsquonacionalrsquo eacute colocado para significar pan-helecircnico ou pan-ateniense e de certo modo satildeo os dois ndash nunca poderia ter nascido de um programa cultural engendrado por um tirano [despot]rdquo (WHITMAN 1965 p 74) Ele mostra uma seacuterie de outras origens para o eacutepico mostrando que eacute mais plausiacutevel diversas versotildees tivessem existido
29
Como mostramos em nossa introduccedilatildeo os poemas homeacutericos foram compostos no
seacuteculo VIII aC mas referem-se ao seacuteculo XIII aC Desse modo elas imiscuem dois
periacuteodos o Palaciano (XVII-XII aC) e o Poliacuteade Arcaico (VIII-VII aC) A arqueologia
tem nos revelado muito acerca dessa constataccedilatildeo e esbarraremos com algumas delas ao longo
do nosso estudo de caso Por exemplo em Homero haacute a presenccedila de duas praacuteticas funeraacuterias
a inumaccedilatildeo e a incineraccedilatildeo Aquela era mais comum na eacutepoca dos palaacutecios as escavaccedilotildees em
Cnossos e Micenas revelaram vaacuterios tuacutemulos escavados ou com cuacutepula (thoacuteloi) A praacutetica de
incinerar os mortos comeccedila a surgir na eacutepoca micecircnica mas se difunde ao longo do periacuteodo
poliacuteade A metalurgia do ferro natildeo era comum na Greacutecia na eacutepoca dos palaacutecios o bronze era
o metal predominante Jaacute na eacutepoca de composiccedilatildeo dos poemas ela era largamente praticada
O poeta mistura elementos de um tempo preteacuterito e de um presente a fim tanto de ambientar
sua obra quanto tornar a sociedade que ele representa familiar agrave sua audiecircncia
Estrabatildeo (c 6463 aC ndash 24 aC) geoacutegrafo grego resgata o debate entre Poliacutebio (203-
120 aC) e Eratoacutestenes (c 276273 aC ndash 194 aC) acerca dos poemas homeacutericos Este
uacuteltimo acredita que o intuito do poeta foi apenas entreter seu puacuteblico com uma histoacuteria
fantasiosa desprovendo seus poemas de quaisquer informaccedilotildees veriacutedicas Poliacutebio reconhece
que o relato homeacuterico eacute imerso em fantasia mas evidencia ldquoa existecircncia de dados histoacutericos e
geograacuteficos corretosrdquo (GABBA 1986 p 38) Estrabatildeo se inclina para essa uacuteltima opiniatildeo
reconhecendo que tanto a Iliacuteada quanto a Odisseia contam eventos que realmente ocorreram
como a guerra de Troia e as viagens de Odisseu do mesmo modo que afirma serem os dados
geograacuteficos e topograacuteficos de uma grande precisatildeo (GABBA 1986 p 39)
Hoje nos debruccedilamos sobre as epopeias de Homero cientes de que veraz eacute um termo
extremo para designar as narrativas homeacutericas Verossiacutemil talvez agrave medida que a arqueologia
nos forneceu muitos dados os quais mostram que Iliacuteada e a Odisseia natildeo estatildeo
completamente fora nem do tempo em que foram compostas nem do tempo a que se referem
Natildeo podemos contudo negar essa materialidade dos poemas porque ele possui uma
ancoragem social espacial e temporal
O texto literaacuterio eacute o ldquoobjeto de conhecimento que representa alegoricamente o ponto
de vista do escritor [autor] a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31 ndash grifos
nossos) e eacute essa ldquorealidade humanardquo que vai nos interessar tanto no estudo da poesia eacutepica
quanto da traacutegica sendo esses dois gecircneros discursivos profiacutecuos para o estudo da eacutepoca que
esses textos foram compostos As epopeias e as trageacutedias natildeo representam a sociedade
30
palaciana (do periacuteodo da Guerra de Troia) mas a sociedade poliacuteade arcaica e a claacutessica em
que o aedo e o tragedioacutegrafo compuseram respectivamente
No caso da trageacutedia essas interpolaccedilotildees tambeacutem existem a classicista Ruth Scodel
traz a ideia de que Ifigecircnia em Aacuteulis por exemplo tem partes que natildeo foram escritas por
Euriacutepides e que muitos especialistas concordam que a fala final do mensageiro natildeo estava na
trageacutedia original (SCODEL 2011 p 6) A exclusatildeo do nosso corpus da trageacutedia Rhesus
deveu-se dentre outros motivos ao fato de natildeo sabermos se ela realmente foi escrita por esse
tragedioacutegrafo A Antiguidade eacute um periacuteodo da Histoacuteria que possui escassez de documentaccedilatildeo
escrita e isso dificulta o trabalho do historiador da literatura grega Aleacutem disso esbarramos
frequentemente com esses problemas documentais os quais apresentamos acima Nesse
sentido a Arqueologia nos ajuda bastante ao trazer agrave luz a cultura material da eacutepoca bem
como o faz a Filologia ao tentar recuperar fragmentos perdidos de textos antigos
O papel desse uacuteltimo ramo das Ciecircncias Humanas eacute particularmente importante no
caso de um de nossos textos o fragmento traacutegico Alexandre de Euriacutepides Essa trageacutedia eacute
peculiar nesse estudo pois apenas fragmentos dela chegaram ateacute noacutes Sabemos como esses
materiais (em especial o papiro) satildeo pereciacuteveis e no caso de Alexandre aleacutem da maior parte
da trageacutedia ter se perdido no tempo muitas palavras e ateacute mesmo a indicaccedilatildeo de sujeitos
enunciadores desconhecemos no fragmento 54 por exemplo o personagem que fala pode ser
tanto Paacuteris quanto um mensageiro No fragmento 62a haacute vaacuterias lacunas no iniacutecio de alguns
versos (vv 4 6 11-14 16 e 17) devido ao desgaste do tempo nas bordas do papiro que levou
para sempre o que estava escrito ali
No entanto algumas sentenccedilas satildeo passiacuteveis de serem reconstituiacutedas e especialistas em
liacutengua grega constantemente se debruccedilam sobre esse tipo de documentaccedilatildeo para tentar
preencher esses vazios causados pela deterioraccedilatildeo do material Como satildeo vaacuterias as pessoas
que se dedicam a isso vaacuterios podem ser os resultados finais desses preenchimentos Abaixo
um exemplo de como trecircs estudiosos podem fazer essa reconstituiccedilatildeo de maneira diferente
Reconstituiccedilatildeo do Reconstituiccedilatildeo do argumento Reconstituiccedilatildeo do
31
argumento (test iii l 17-
18) de R A Coles (1974)
(test iii l 17-18) de W
Luppe (1977)
argumento (test iii l 17-
18) de Christopher
Collard e Martin Cropp
(2008)
ἐπερωτηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω [] π[1-2]ρειτο καὶ
[]
ἀπ[ολο]γηθεὶς [δ]ὲ επὶ τοῦ δυνά-
στο[υ] τ[ι]microωρ[ίαν] π[α]ρεῖτο καὶ
[]
ηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω[][()]ρειτο καὶ
[]
Luppe e Coles completam algumas lacunas que Collard e Cropp preferem deixar
apenas com a indicaccedilatildeo de que havia algo ali que foi perdido Assim como Collard e Cropp agraves
vezes datildeo certeza de algo que em Coles e Luppe estava indicado como uma suposiccedilatildeo (como
no caso da palavra dynaacutestou)
Desse modo esse tipo de documentaccedilatildeo estaacute sempre em modificaccedilatildeo embora como
David Kovacs reconhece (KOVACS 2002 p 48) o assunto do texto em si natildeo se modifique
(aqui no caso do argumento a ideia da existecircncia de um agoacuten que eacute o proacuteprio tema da peccedila
em si uma vez que ela trata da disputa entre Paacuteris e Diomedes pela vitoacuteria nos jogos
realizados por Troia) No caso de Alexandre o argumento25 encontrado apenas
posteriormente agrave descoberta dos restos da trageacutedia em si foi essencial para saber do que de
fato ela se tratava e para ajudar os pesquisadores a tentar chegar a um consenso sobre essas
perdas leacutexicas e de indicaccedilotildees dos sujeitos enunciadores
Essa trageacutedia provavelmente era a primeira de uma tetralogia (trageacutedia 1 + trageacutedia 2
+ trageacutedia 3 + drama satiacuterico) que se constituiacutea dela mesma de Palamedes (tambeacutem
fragmentaacuteria) de As Troianas e de Siacutesifo (desaparecida) Haacute questionamentos acerca dessa
ideia mas eacute inegaacutevel que as trecircs trageacutedias tecircm muito em comum a accedilatildeo de Alexandre
comeccedila na montanha (monte Ida) Palamedes se desenrola nas planiacutecies (a cidade em si) e As
Troianas eacute ambientada na praia (acampamento grego) o que denota uma organicidade na
composiccedilatildeo da trilogia e um movimento progressivo sobretudo porque a proacutepria Atenas era
assim constituiacuteda espacialmente (MARISCAL 2003 p 214 e p 444)
A helenista Luciacutea Romero Mariscal trabalha especificamente com Alexandre e suas
propostas chamaram nossa atenccedilatildeo pelo fato de ela mostrar como o tema da peccedila eacute
extremamente influenciado pelos acontecimentos da eacutepoca bem como ela conseguir
relacionar o personagem principal (Paacuteris) a Alcibiacuteades cidadatildeo ateniense que ajudou os
25 O argumento eacute uma anotaccedilatildeo feita por estudiosos copistas que antecede a trageacutedia Ele a resume e pode dar algumas informaccedilotildees importantes no tocante agrave sua apresentaccedilatildeo
32
espartanos durante a Guerra do Peloponeso (431-404 aC) e que possuiacutea ambiccedilotildees tiracircnicas26
Ruth Scodel chama atenccedilatildeo ao fato de que essas correlaccedilotildees satildeo comuns mas que sempre
encontram questionamentos
Edith Hall critica muito os autores que procuram relacionar a qualquer custo as
trageacutedias a um acontecimento da eacutepoca geralmente relativo agrave Guerra do Peloponeso
afirmando que elas natildeo representam a vida cotidiana de Atenas mas um ideal do que ela
deveria ser (HALL 2010 p 168 1997 p 94) Concordamos em parte com essa afirmaccedilatildeo
estamos lidando com um discurso no qual a ideologia dominante estaacute presente visto que se
trata aqui de uma legitimaccedilatildeo dos valores ideais que um cidadatildeo deve possuir No entanto
Euriacutepides quando escreve suas peccedilas natildeo eacute completamente indiferente aos acontecimentos da
sua eacutepoca pois como vimos todo texto literaacuterio representa o ponto de vista do autor sua
visatildeo de mundo De fato seria uma imprudecircncia acadecircmica querer encaixar cada trageacutedia
num acontecimento especiacutefico forccedilando uma correspondecircncia falaciosa mas eacute possiacutevel
reconhecer dilemas intriacutensecos agraves discussotildees acerca da guerra em algumas trageacutedias
Alexandre veremos parece ter conexatildeo latente com o episoacutedio da peste em Atenas bem
como Euriacutepides parece mostrar com As Troianas sua opiniatildeo acerca da invasatildeo de Melos ou
Siracusa
O contexto histoacuterico ateniense de Androcircmaca (c 426 aC) natildeo eacute o mesmo que o de
Orestes (c 408 aC) pois esta eacute encenada no fim da Guerra do Peloponeso e aquela no
iniacutecio Atenas muda muito nesses 27 anos de guerra e graccedilas sobretudo ao relato de
Tuciacutedides conhecemos mais pormenorizadamente os acontecimentos da eacutepoca Do mesmo
modo algumas trageacutedias trazem releituras do mito a fim de demonstrar algo especiacutefico
Helena traz uma Helena que nunca foi para Troia Ele toma emprestado de Estesiacutecoro e
Heroacutedoto a ideia de Helena ter ficado no Egito durante a Guerra de Troia em vez de ter
estado laacute o tempo todo (como acontece em Homero) (SCODEL 2011 p 162 HALL 2010
p 279) Um eiacutedolon teria sido colocado em Troia e na verdade a rainha estaria esperando por
seu esposo Menelau no Egito A Guerra de Troia afinal teria sido causada por uma ilusatildeo
por nada Isso reforccedila o discurso ldquopacifistardquo euripidiano em suas trageacutedias troianas
geralmente ambientadas num cenaacuterio poacutes-guerra a ideia de que a guerra traz mais prejuiacutezos e
sofrimentos do que benefiacutecios estaacute sempre presente (JOUAN 2000 p 5)
Esse episoacutedio nos mostra tambeacutem como o mito pode ter uma atualizaccedilatildeo eacutetica Helena
deixa de ser a maacute esposa e passa a ser um modelo para as esposas atenienses da eacutepoca pois
26 Vamos aprofundar essas ideias no capiacutetulo seguinte (Paacuteris o causador de males)
33
traz a ideia da fidelidade ao marido O proacuteprio Paacuteris deixa de ser um exemplo exclusivamente
heroico e se transforma no modelo do que eacute baacuterbaro como defendemos Isso tem a ver
diretamente com a proacutepria eacutepoca em que se compotildee a dicotomia ldquogrego versus baacuterbarordquo no
seacuteculo V aC se consolida ao mesmo tempo em que em Euriacutepides entra em crise sendo
necessaacuterio reiterar aos cidadatildeos atenienses a ideia do que eacute o baacuterbaro
Natildeo eacute correto afirmar que as Guerras Greco-Peacutersicas foram o marco inicial para se
pensar a etnicidade helecircnica (HALL 1989 p VLASSOPOULOS 2013 p 163) pois desde
Homero como estamos vendo isso eacute verificaacutevel O historiador Kostas Vlassopoulos chama a
atenccedilatildeo para esse debate
Acadecircmicos modernos tecircm frequentemente interpretado esse fenocircmeno [dos troianos serem mostrados praticamente iguais aos gregos] argumentando que no tempo de Homero (o seacuteculo oitavo) a identidade grega estava ainda incipiente [inchoate] e a justaposiccedilatildeo de todos os natildeo-gregos como baacuterbaros natildeo tomou lugar Essa eacute uma interpretaccedilatildeo histoacuterica que induz ao erro [misleading] [] mas tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo literaacuteria dos eacutepicos homeacutericos que induz ao erro Natildeo devemos subestimar a sofisticaccedilatildeo poeacutetica desses eacutepicos [] Quando ele descreve como o liacuteder dos caacuterios barbarophonoi [sic] ldquoveio para a guerra todo decorado com oureo como uma garota bobo que ele erardquo o tema da luxuacuteria efeminada baacuterbara e a desaprovaccedilatildeo grega disso estaacute claramente presente (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
Do mesmo modo natildeo eacute correto dizer que os gregos soacute comeccedilaram a lutar entre si a
partir da Guerra do Peloponeso muitos gregos lutaram contra gregos jaacute nas Guerras Greco-
Peacutersicas (VLASSOPOULOS 2013 p 55) As poacuteleis natildeo eram tatildeo unidas quanto geralmente
se pensa que elas satildeo ldquoos gregos natildeo tinham nenhum centro ou instituiccedilatildeo em torno da qual
se poderia organizar sua histoacuteria as comunidades falantes de grego estavam dispersas por
todo o Mediterracircneo e elas nunca alcanccedilaram uma unidade poliacutetica econocircmica ou socialrdquo
(VLASSOPOULOS 2007 p 91) Ainda segundo Kostas Vlassopoulos o que dava unidade a
essas comunidades eram as networks existentes marinheiros comerciantes soldados
intelectuais todos criavam uma rede de circulaccedilatildeo de pessoas produtos e ideias que unia
essas poacuteleis assemelhando-se agrave nossa globalizaccedilatildeo moderna (termo inclusive que o
historiador usa para se referir a esse fenocircmeno na Antiguidade grega)
Segundo o historiador britacircnico Frank William Walbank o que unia os gregos era
justamente a religiatildeo e a cultura em comum (2002 p 245) Essa ideologia era compartilhada
por todas as poacuteleis mas elas particularizavam-na Satildeo conhecidas as peculiaridades de
Esparta Atenas Corinto e principalmente das poacuteleis que ficavam em regiotildees de apoikiacuteai
(colocircnias) essas regiotildees eram loci privilegiados de trocas culturais entre a cultura grega e as
34
culturas Outras que rodeavam esses locais (VLASSOPOULOS 2013 p 277) O historiador
iraniano Irad Malkin mostra como Odisseu pode ser visto como um heroacutei protocolonial visto
que por todos os lugares que ele passa ele vai deixando sua ldquomarcardquo embatendo-se
constantemente com Outros no seu caminho de volta para casa (MALKIN 1998 p 2) O
proacuteprio mar era um ambiente propiacutecio ao encontro com alteridades muitas vezes hostis
(LESSA SOUSA 2014 p )
Debruccedilar-nos sobre as obras literaacuterias a fim de comprovar as descobertas
arqueoloacutegicas ou o que aconteceu de fato durante a guerra (seja a de Troia seja a do
Peloponeso) ou se os heroacuteis de miacuteticos existiram de verdade eacute uma veleidade Contudo natildeo eacute
impossiacutevel relacionaacute-las com o momento de sua composiccedilatildeo Portanto eacute mais profiacutecuo 1)
tentarmos compreender as representaccedilotildees de Paacuteris levando em conta os elementos de
ancoragem histoacuterica e social da obra relacionando texto com seus contextos intra e
extralinguiacutesticos e 2) buscarmos os modos pelos quais aquela sociedade funcionava e as
representaccedilotildees sociais que a legitimavam e mantinham as suas fronteiras eacutetnicas atraveacutes da
anaacutelise das praacuteticas discursivas O historiador italiano Emilio Gabba nos mostra
elucidativamente isso em relaccedilatildeo a Homero
Em qualquer caso e contemplando separadamente a investigaccedilatildeo sobre os poemas e a anaacutelise da realidade histoacuterica dos feitos descritos o aproveitamento histoacuterico da obra homeacuterica seraacute seguro e maior sempre que apontar para o estudo de aspectos como famiacutelia vida social e poliacutetica instituiccedilotildees e normas princiacutepios eacuteticos comportamento religioso cultura material ou fatores econocircmicos Os siacutemiles entre os poemas satildeo em suma particularmente reveladores (GABBA 1986 p 45 ndash grifos nossos)
Os costumes apresentados na Iliacuteada na Odisseia e nas trageacutedias satildeo modelares para
aqueles que ouvem os poemas ou assistem agraves encenaccedilotildees todo o modo de conduta social dos
heroacuteis eacute trabalhado de modo a servir como exemplo para os kaloigrave kaigrave agathoiacute ou seja os
ldquobelos e bonsrdquo os aristocratas Esses homens eram o puacuteblico do aedo (CARLIER 2008 p
15 AUBRETON 1968 p 138) e mais tarde seratildeo os dos traacutegicos O aedo cantava aquilo
que o puacuteblico queria ouvir Temos exemplo disso ateacute mesmo na proacutepria Odisseia pois
quando a canccedilatildeo de Demoacutedoco aedo da Feaacutecia natildeo agrada mais mandam-lhe parar de tocar
[] Δηmicroόδοκος δ᾽ ἤδη σχεθέτω φόρmicroιγγα λίγειαν οὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόmicroενος τάδ᾽ ἀείδει ἐξ οὗ δορπέοmicroέν τε καὶ ὤρορε θεῖος ἀοιδός ἐκ τοῦ δ᾽ οὔ πω παύσατ᾽ ὀιζυροῖο γόοιο ὁ ξεῖνος microάλα πού microιν ἄχος φρένας ἀmicroφιβέβηκεν
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ἀλλ᾽ ἄγ᾽ ὁ microὲν σχεθέτω ἵν᾽ ὁmicroῶς τερπώmicroεθα πάντες ξεινοδόκοι καὶ ξεῖνος ἐπεὶ πολὺ κάλλιον οὕτως [] natildeo mais ressoe a ciacutetara o cantor Demoacutedoco pois sua poesia natildeo agrada a todo ouvinte Assim que nos pusemos a cear e o aedo comeccedilou o hoacutespede natildeo mais reteve o pranto a anguacutestia circum-envolveu seu pericaacuterdio Demoacutedoco jaacute basta Que anfitriotildees e o hoacutespede possam unir-se na alegria (Odisseia VIII vv 537-543)
Os traacutegicos natildeo tinham uma liberdade total para encenar o que quisessem eles
escreviam as suas trageacutedias as quais passavam por um crivo antes de serem encenadas
(SCODEL 2011 p 43) Aleacutem disso havia os juiacutezes responsaacuteveis por decidir qual peccedila
merecia o primeiro precircmio Aquela que ficava em segundo ou que nem ganhava era uma peccedila
que natildeo foi do gosto dos jurados27 Quando vamos estudar as trageacutedias eacute importante termos
em mente quais peccedilas ganharam pois isso significa que elas serviram mais ao modelo
ideoloacutegico poliacuteade No caso de Euriacutepides apenas duas trageacutedias suas ganharam o primeiro
precircmio (Ifigecircnia em Aacuteulis e Hipoacutelito) Orestes ganhou o segundo Na realidade sua fama foi
poacutestuma pois seu estilo de composiccedilatildeo influenciou bastante as geraccedilotildees posteriores de
tragedioacutegrafos Secircneca por exemplo para compor sua As Troianas inspirou-se nrsquoAs
Troianas e na Heacutecuba de Euriacutepides Aleacutem disso suas trageacutedias foram bastante reencenadas
em periacuteodos posteriores nos quais Atenas jaacute tinha perdido toda a sua gloacuteria e esplendor
(SCODEL 2011 p 43)
No teatro era a poacutelis que estava sendo representada desde os ritos que precediam a
encenaccedilatildeo traacutegica28 (inscrita num espaccedilo religioso pois eram realizadas dentro das Grandes
Dionisiacuteacas e das Leneias) ateacute todo o espaccedilo do odeacuteon (incluindo o palco atraveacutes das
encenaccedilotildees que colocavam em destaque as instituiccedilotildees e valores poliacuteades e os assentos do
puacuteblico (theaacutetron) que eram organizados de modo tal que os cidadatildeos podiam natildeo soacute
enxergar uns aos outros como tambeacutem podiam reconhecer atraveacutes do lugar que se ocupava
aqueles mais proeminentes dentro da poacutelis ateniense) Eacute a siacutentese da ideia da publicidade das
accedilotildees que existe desde a poesia eacutepica e atinge seu aacutepice durante a democracia uma
publicidade direcionada aos interesses poliacuteades
27 Sobre detalhes desse julgamento ver o toacutepico Finances and Contests do capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 28 Para mais detalhes sobre os ritos que precediam as competiccedilotildees traacutegicas ver o toacutepico The Festivals no capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas)
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No entanto eacute inviaacutevel dimensionar a opiniatildeo dos sujeitos receptores natildeo podemos
especular sobre a recepccedilatildeo das peccedilas em relaccedilatildeo a todos os espectadores ainda mais quando
temos em mente que essas peccedilas podiam circular pelas outras poacuteleis e regiotildees de colonizaccedilatildeo
as quais possuiacuteam um puacuteblico bem mais heterogecircneo do que o ateniense (HALL 2006 p 29)
O mesmo acontece com as epopeias de Homero natildeo temos como precisar a recepccedilatildeo dos
poemas que tambeacutem tinham uma audiecircncia bem heterogecircnea Desse modo cabe a noacutes
historiadores observar qual o efeito pretendido sobre os sujeitos destinataacuterios ao se compor
esses textos
A Iliacuteada uacutenico poema homeacuterico que trata de Paacuteris nos conta a histoacuteria da ira de
Aquiles (ROMILLY sd p 18) Por causa dessa temaacutetica comum aos Cantos e da proto-pan-
helenicidade do poema (MITCHELL 2007 p 54) cremos que a Iliacuteada tem uma unidade
intriacutenseca Contudo essa opiniatildeo natildeo eacute uma unanimidade no tocante aos questionamentos
acerca da forma do poema havia duas escolas filoloacutegicas a de Alexandria e a de Peacutergamo
(surgidas por volta do seacuteculo IV aC) as quais possuiacuteam posturas divergentes acerca das
epopeias de Homero A primeira praticava a atetese tudo o que se cria natildeo pertencer agrave Iliacuteada
original se suprimia Jaacute a segunda preferia a exegese ou seja a criacutetica do texto sem omitir
versos
Em 1795 F A Wolf publicou seu Prolegomena ad Homerum o qual deu iniacutecio agrave
ldquoquestatildeo homeacutericardquo e a uma seacuterie de trabalhos denominados analistas neles procura-se
analisar as epopeias de Homero visando criticar filologicamente esses textos apontando para
as contradiccedilotildees as dissonacircncias entre Iliacuteada e Odisseia e os elementos de pouca
verossimilhanccedila na obra Em contraponto a essas teses haacute os unitaristas que defendem a
unidade dos poemas Ainda existem os neo-analistas eles natildeo desconsideram todo o debate
acerca de algumas incongruecircncias das epopeias mas creem que haja uma certa
homogeneidade das obras oriundas de uma tradiccedilatildeo anterior ao poeta o qual com sua
genialidade teria reunido e composto um texto uacutenico
Para Robert Aubreton e Gregory Nagy os poemas homeacutericos possuem uma unidade
intriacutenseca porque derivam dessa tradiccedilatildeo eacutepica precedente A proacutepria Telemaacutequia (Cantos I-
IV da Odisseia) as narrativas de retorno dos noacutestoi os relatos de batalhas singulares entre
heroacuteis satildeo temas anteriores agrave composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Homero ou quem quer que
tenha composto essas duas epopeias conhecia tais histoacuterias e se baseou nelas para compor as
suas proacuteprias
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O que chama atenccedilatildeo eacute o que configura o sentido do discurso do aedo as noccedilotildees de
alḗtheia e lḗthē (ldquoesquecimentordquo) A funccedilatildeo do poeta eacute rememorar os feitos de deuses e
homens natildeo deixando que se esqueccedila deles Para a sociedade isso eacute fulcral o homem morre
fisicamente mas sua memoacuteria eacute imortal se ele assim merecer Para ganhar essa gloacuteria
imorredoura ele precisa ser reconhecido pela sua proacutepria sociedade e assim ser cantado por
geraccedilotildees Ele precisa agir em conformidade com o que aquela sociedade espera de um heroacutei
Dentre alguns valores ressaltamos alguns com os quais vamos trabalhar mais adiante a aretḗ
(excelecircncia) a timḗ (honra) kleacuteoskŷdos (gloacuteria) kalograves thaacutenatos (bela morte) e alkḗandreiacutea
(coragem)
Euriacutepides eacute influenciado por essa tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica e esses valores tambeacutem
perpassam as suas obras o heroacutei homeacuterico natildeo se diferencia tanto do heroacutei traacutegico pois haacute
muita tenuidade entre eles como veremos Contudo na trageacutedia a ideia da falha do erro
hamartiacutea eacute muito mais forte embora na epopeia exista uma ideia semelhante a qual traz agrave
tona um questionamento sobre a infalibilidade do heroacutei a aacutetē (perdiccedilatildeo) que tem estreita
ligaccedilatildeo com desiacutegnios divinos A trageacutedia traz o heroacutei falho e as situaccedilotildees que o envolvem
servem de catarse para o puacuteblico eacute assistindo agravequeles personagens que o cidadatildeo poliacuteade
toma consciecircncia dos problemas da sociedade e de si mesmo Ao mesmo tempo a trageacutedia
implica em permanecircncia e mudanccedila ela legitima os valores (pan-)helecircnicos e os critica a fim
de estimular essa mudanccedila e desse modo manter viva a sociedade
Aleacutem da forma29 um dos pontos que tornam a trageacutedia um gecircnero discursivo (visto
que haacute semelhanccedilas entre uma trageacutedia e outra) eacute a utilizaccedilatildeo do material miacutetico cultural
Essas histoacuterias se passavam em ldquoum passado que jaacute era remoto para a audiecircncia da Atenas
antigardquo (SCODEL 2011 p 3) Para os gregos os heroacuteis e deuses existiram de verdade eram
parte de sua histoacuteria Aquiles Paacuteris ou Heitor existiram para eles Como vimos o mesmo
mito eacute contado e recontado nos palcos mas o que vai diferenciar os tragedioacutegrafos de Homero
e por sua vez um tragedioacutegrafo do outro eacute 1) o modo como o mito eacute contado (figurino
maacutescaras diaacutelogos entre os personagens) 2) as modificaccedilotildees no mito que os autores fazem a
fim de servirem a seus propoacutesitos 3) as atualizaccedilotildees eacuteticas desses mitos e 4) as alusotildees aos
acontecimentos contemporacircneos 29 ldquoA trageacutedia era um tipo especiacutefico de drama Era encenada por atores (em Atenas natildeo mais que trecircs) e um coro de doze depois quinze que cantavam e danccedilavam auxiliados por um tocador de auloacutes um instrumento de sopro [reeded wind instrument] Na maioria das partes os atores usavam um verso falado principalmente o trimetro iacircmbico ou recitativo enquanto os coros cantavam entre cenas mas o liacuteder do coro poderia falar pelo grupo durante as cenas dos atores enquanto os atores poderiam cantar ambos em resposta ao coro e em monoacutedio [both in responsion with the chorus and in monody]rdquo (SCODEL 2011 p 3 ndash traduzido do original em inglecircs por Renata Cardoso de Sousa e Bruna Moraes da Silva)
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Esse passado miacutetico eacute um dos elementos que constituem a fronteira eacutetnica helecircnica O
antropoacutelogo Christian Karner chama atenccedilatildeo para o fato de que a etnicidade eacute ldquoamplamente
associada agrave cultura descendecircncia memoacuteriahistoacuteria coletivas e liacutenguardquo (KARNER 2007 p
17) Ele retoma a ideia de ethnie (etnia) proposta por John Hutchinson e Anthony Smith que
seria um grupo restrito a um determinado espaccedilo que se designa sob um etnocircmio com mitos e
elementos culturais em comum uma memoacuteria histoacuterica compartilhada e um senso de
solidariedade entre os seus membros (KARNER 2007 p 18) Essa ideia dialoga bastante
com a noccedilatildeo de grupo eacutetnico de Fredrik Barth a qual delineamos em nossa Introduccedilatildeo
Portanto os gregos se constituiacuteam num grupo eacutetnico que utilizava o discurso como
meio de (re)definir suas fronteiras eacutetnicas e desse modo garantir a sua existecircncia No acircmbito
textual Homero eacute o responsaacutevel por tentar fixar essas fronteiras ele traz agrave memoacuteria as
histoacuterias dos heroacuteis do passado e dos deuses do presente bem como ressalta a importacircncia dos
ancestrais visto que um indiviacuteduo eacute sempre reconhecido por sua filiaccedilatildeo Aquiles eacute o Peacutelida
(filho de Peleu) Diomedes eacute o Tidida (filho de Tideu) e mesmo Zeus um deus tem como um
dos epiacutetetos ldquoCrocircnidardquo (filho de Cronos)
Euriacutepides apresenta constantemente o tema da destruiccedilatildeo da linhagem familiar como
um grande problema natildeo somente para o indiviacuteduo mas para a comunidade em nosso corpus
documental Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes trazem
episoacutedios de desmantelamento da famiacutelia A primeira trageacutedia mostra o sofrimento de
Androcircmaca ao tentar proteger seu filho da fuacuteria de Hermiacuteone sendo que a personagem
mesma jaacute sofrera com a morte de Astyacuteanax seu primogecircnito que eacute abordada em As
Troianas A filha de Helena por sua vez amargura-se por natildeo conseguir ter um filho com
Neoptoacutelemo seu marido sem filhos natildeo haacute herdeiros de bens materiais e imateriais como a
memoacuteria da linhagem Eacute como se o nome da famiacutelia morresse na memoacuteria social pois os
filhos satildeo responsaacuteveis por mantecirc-la viva Na Iliacuteada um dos maiores medos expressos eacute o de
perder o filho na guerra e natildeo ter a quem deixar a heranccedila ou ter que reparti-la com parentes
distantes (V vv 152-158)
Em As Troianas aleacutem do sofrimento de Androcircmaca vemos o de Heacutecuba que se
desespera por Polixena ter sido dada em sacrifiacutecio A rainha de Troia sofre tambeacutem em
Heacutecuba a perda do filho Polidoro morto brutalmente pelo traacutecio sedento de riquezas a quem
ele estava confiado Ifigecircnia se daraacute ao sacrifiacutecio assim como Polixena em Ifigecircnia em
Aacuteulis levando ao desespero sua matildee Clitemnestra Embora a preferecircncia seja por filhos do
sexo masculino eram as filhas as responsaacuteveis pelos funerais dos mortos as mulheres
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exerciam um papel fundamental no enterro dos entes queridos (HALL 1997 p 106) As
trageacutedias mesmas nos mostram isso como eacute o caso de Antiacutegona de Soacutefocles o tema central
da peccedila eacute o esforccedilo da personagem homocircnima para conseguir dar um funeral adequado ao
irmatildeo que por ter assassinado o proacuteprio irmatildeo eacute condenado a ficar aos corvos sem enterro
Agamemnon pai de Ifigecircnia amaldiccediloa Paacuteris por ter causado toda a situaccedilatildeo de sua
famiacutelia natildeo fosse ele ter que partir para Troia para resgatar a cunhada a filha estaria a salvo
Contudo a sorte do rei de Micenas estaacute traccedilada de uma vez por todas pois sua mulher o
assassina no retorno da guerra Com a famiacutelia desmantelada Orestes filho do casal
desencadearaacute uma vinganccedila desmesurada mata a matildee e tenta matar Helena em Orestes
atraindo para si a fuacuteria das Eriacutenias divindades responsaacuteveis por atormentar aqueles que
cometiam atos indignos sobretudo o assassinato de familiares
Edith Hall mostra como ldquoa vida familiar de um cidadatildeo era um componente da sua
identidade poliacuteticardquo (HALL 1997 p 104) puacuteblico e privado se misturavam A experiecircncia
social eacute fundamental para que um indiviacuteduo se sinta pertencente a um grupo eacutetnico e ajude a
manter essas fronteiras Desse modo os espaccedilos puacuteblicos de convivecircncia (o banquete a
aacutegora o templo o ginaacutesio o teatro) satildeo loci importantes dentro do grupo eacutetnico helecircnico
bem como a publicidade das accedilotildees um grego eacute um homem essencialmente puacuteblico Ele estaacute
exposto aos olhares do seus iacutesoi (iguais) e estes lhe julgam conforme seus atos o homem
grego natildeo eacute somente o homem do ser mas tambeacutem eacute o homem do fazer
Para ser social o homem grego deveria se instruir a educaccedilatildeo tinha um papel muito
importante dentro da Heacutelade Devia-se conhecer os coacutedigos de conduta e principalmente
praticaacute-los Segundo a filoacuteloga Carmem Soares ldquoa trageacutedia eacute um gecircnero literaacuterio regido por
uma poeacutetica didaacutetico-hedonistardquo (SOARES 1999 p 16) ou seja ao mesmo tempo em que
gera prazer e entretenimento educa Essa natildeo eacute uma caracteriacutestica exclusiva dela a poeacutetica
didaacutetico-hedonista adveacutem da poesia eacutepica que contava com deleite as faccedilanhas dos heroacuteis e
dos deuses Sua funccedilatildeo eacute imortalizar esses seres extraordinaacuterios conservando suas memoacuterias
para as geraccedilotildees vindouras tomarem-nos de exemplo
Os mitos as histoacuterias desses heroacuteis do passado servem de advertecircncia aos vivos
agravequeles que as ouvem A epopeia e a trageacutedia compilam toda uma tradiccedilatildeo miacutetica e o mito
por excelecircncia tem justamente a funccedilatildeo de ldquorevelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 1972 p 13 ndash grifos nossos) Ele ldquopossui o
espantoso poder de engendrar as noccedilotildees fundamentais da ciecircncia e as principais formas da
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culturardquo (DETIENNE 2008 p 34) sua difusatildeo constitui uma praacutetica de paideiacutea Assim os
poemas homeacutericos possuem uma funccedilatildeo paidecircutica (VIEIRA 2002 p 14) bem como as
trageacutedias de Euriacutepides
Paideiacutea eacute um termo que aparece pela primeira vez na documentaccedilatildeo no seacuteculo V
aC30 em uma trageacutedia de Eacutesquilo (JAEGER 2010 p 335) Traduzir esse termo eacute muito
difiacutecil literalmente significa criaccedilatildeo de meninos (paicircs significa ldquocrianccedilardquo) comumente
traduz-se como educaccedilatildeo mas esse termo natildeo contempla todo o significado da paideiacutea
(MOSSEacute 2004 p 107-108) ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas
Ela ldquoacaba por englobar o conjunto de todas as exigecircncias ideais fiacutesicas e espirituais que
formam a kalokagathia no sentido de uma formaccedilatildeo espiritual conscienterdquo (JAEGER 2010
p 335) A paideiacutea se configura num aspecto ideoloacutegico da sociedade como nos explica o
historiador Faacutebio de Souza Lessa
Por ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacutetica (LESSA 2010 p 22)
Assim preferimos explicar aqui o sentido de paideiacutea e deixar a palavra sem traduccedilatildeo
para o portuguecircs ela se constitui da transmissatildeo de saberes e praacuteticas culturais Os poemas
satildeo loci de paideiacutea porque contam mitos eles trazem uma seacuterie de modos de conduta caros agrave
sociedade helecircnica que vatildeo servir para formar o kalograves kagathoacutes e no seacuteculo V aC o politḗs
(cidadatildeo) Esses homens vatildeo se inspirar nos heroacuteis e nas suas faccedilanhas nos seus atos que satildeo
passados agraves geraccedilotildees futuras por intermeacutedio da poesia seja ela eacutepica liacuterica ou traacutegica
[] para que a honra heroica permaneccedila viva no seio de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores permaneccedila marcado pelo seu selo [o do heroacutei] eacute preciso que a funccedilatildeo poeacutetica mais do que objeto de divertimento tenha conservado um papel de educaccedilatildeo e formaccedilatildeo que por ela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um este conjunto de saberes crenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura () a epopeia desempenha o papel de paideiacutea exaltando os heroacuteis exemplares assim como os gecircneros literaacuterios lsquopurosrsquo como o romance a autobiografia o diaacuterio iacutentimo o fazem hoje (VERNANT 1978 p 42 ndash grifos nossos)
30 Jaeger ainda sublinha que os ideais educativos da paideiacutea que vatildeo ser desenvolvidos no seacuteculo V aC se baseiam em praacuteticas educativas muito anteriores (JAEGER 2010 p 1)
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Esses heroacuteis seguem esse modo de conduta social que eacute expresso pelas suas accedilotildees
Quando eles se desviam desse coacutedigo satildeo submetidos a uma vergonha social ou
(principalmente na trageacutedia) satildeo viacutetimas de reviravoltas agraves vezes incontornaacuteveis em suas
vidas Paacuteris como veremos erra ao fugir da batalha mas quando acusado pelo seu irmatildeo de
ser covarde retorna para recuperar sua honra Jaacute Eacutedipo heroacutei da trilogia tebana de Soacutefocles
mancha a honra da sua famiacutelia ao casar-se com sua proacutepria matildee e dessa hamartiacutea
desencadeiam-se uma seacuterie de episoacutedios fatiacutedicos que culminam na desgraccedila de sua linhagem
Seu destino mesmo jaacute estava (mal) traccedilado quando seu pai se apaixonou por um homem a
pederastia era uma praacutetica educacional comum na Greacutecia na qual um erasteacutes (mais velho)
ficava responsaacutevel por iniciar um eroacutemenos (mais novo) na vida adulta Contudo relacionar-
se sexualmente com um homem era vetado
Essas normas ajudam a reforccedilar essas fronteiras eacutetnicas helecircnicas que satildeo
constantemente abaladas pelo contato com os Outros Enquanto em Homero essas fronteiras
estatildeo sendo formadas em Euriacutepides elas estatildeo turvas Em Androcircmaca As Troianas
Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes vemos que o grego eacute passiacutevel de se barbarizar
sobretudo quando esse grego eacute um espartano Na primeira trageacutedia Hermiacuteone (uma
espartana) tem atitudes controversas e eacute mostrada usando muito ouro (v 147) mas natildeo chega
a ser comparada a uma baacuterbara Ela ainda eacute porta-voz de valores helecircnicos reforccedilando a ideia
de que Androcircmaca eacute a baacuterbara (v 261) Ela afirma que ldquoNatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade gregardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) Ela ainda afirma que ldquoEsse eacute o
modo como os baacuterbaros satildeo pai dorme com filha filho com matildee e irmatilde com irmatildeo gente
proacutexima assassina gente proacutexima e natildeo tem lei para prevenir issordquo [τοιοῦτον πᾶν τὸ
βάρβαρον γένος πατήρ τε θυγατρὶ παῖς τε microητρὶ microείγνυται κόρη τ᾽ ἀδελφῷ διὰ
φόνου δ᾽ οἱ φίλτατοι χωροῦσι καὶ τῶνδ᾽ οὐδὲν ἐξείργει νόmicroος] (vv 173-176)
Percebamos a caracterizaccedilatildeo do baacuterbaro por ela nessa passagem ela critica aqueles
que mantecircm relaccedilotildees sexuais dentro do nuacutecleo familiar (pai filho filha matildee irmatildeos) e o
assassinato entre phiacuteltatoi31 O tema da trilogia tebana de Soacutefocles gira em torno disso
Eacutedipo se casa com a matildee e seus netos se matam entre si Eacute interessante o resgate desse tema
31 Essa palavra eacute de difiacutecil traduccedilatildeo Em sua raiz estaacute phiacutelos (amigo) e o Le Grand Bailly indica esse vocaacutebulo para que possamos ter uma traduccedilatildeo de phiacuteltatos Contudo essas palavras natildeo tecircm o mesmo significado haacute uma razatildeo para Euriacutepides escolher phiacuteltatos em vez de phiacutelos Contudo quando traduz Phiacuteltatos (nome proacuteprio) coloca que eacute literalmente ldquobem-amadordquo [bien-aimeacute] (BAILLY 2000 p 2083) Cremos que ldquogente proacuteximardquo eacute o que mais se aproxima do sentido dessa palavra visto que phiacutelos designa essa ideia satildeo pessoas que se conhecem que satildeo proacuteximas que se assassinam
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pois Tebas era inimiga de Atenas sendo a poacutelis que teria comeccedilado a Guerra do Peloponeso
ao invadir Plateia regiatildeo de domiacutenio ateniense Natildeo podemos afirmar que Euriacutepides tinha isso
em mente quando compocircs Androcircmaca pois natildeo podemos ir aleacutem do que a documentaccedilatildeo
nos mostra mas mostrar como sendo algo baacuterbaro hamartiacuteai de heroacuteis tebanos eacute no miacutenimo
curioso
Menelau nessa peccedila eacute quem recebe as criacuteticas mais duras vindas de Peleu durante
um agoacuten entre os dois personagens o anciatildeo o critica por ter deixado um friacutegio levar sua
esposa de sua proacutepria casa (vv 590-609) e afirma que os espartanos satildeo soacute bons de guerra
mesmo que em outras mateacuterias satildeo inferiores (vv 724-726) O homem espartano eacute
inferiorizado Em Orestes Menelau jaacute eacute comparado a um baacuterbaro Tiacutendaro o acusa de ter se
tornado um baacuterbaro por ter estado entre baacuterbaros (v 485) Em Androcircmaca os espartanos
ainda natildeo satildeo diretamente ldquobarbarizadosrdquo como acontece em Orestes aquela trageacutedia foi
encenada praticamente no iniacutecio da Guerra do Peloponeso enquanto esta foi no final quando
as inimizades se acirraram de tal maneira que os espartanos foram paulatinamente sendo
deixados de fora da fronteira eacutetnica helecircnica tornando-se Outros
Ainda em Orestes Piacutelades Electra e seu irmatildeo satildeo capazes de accedilotildees condenaacuteveis em
nome da vinganccedila Em Ifigecircnia em Aacuteulis vemos Agamemnon um grego levar sua filha ao
sacrifiacutecio e em As Troianas e Heacutecuba os gregos se comportam de maneira condenaacutevel em
relaccedilatildeo agraves cativas troianas piorando a situaccedilatildeo deploraacutevel em que jaacute se encontram com o fim
de Troia As rivalidades da Guerra do Peloponeso e a temaacutetica vencedorperdedor satildeo
expressas na produccedilatildeo textual da eacutepoca assim como hoje em dia eacute impossiacutevel ficar
indiferente aos acontecimentos que nos cercam Euriacutepides tambeacutem natildeo conseguiu fazecirc-lo em
sua eacutepoca A obras literaacuteria em si eacute um ldquoartefato fonomorfossintaacutetico eacute universo semacircntico eacute
campo sintomatoloacutegico da histoacuteria do social e da consciecircncia numa palavra eacute
presentificaccedilatildeo imageacutetica do homem em accedilatildeordquo (ANDRADE 1998 p 15)
Embora ambientadas em Troia essas trageacutedias traziam temas caros agrave realidade
ateniense Satildeo comuns peccedilas que se desenrolam em lugares estrangeiros (as quais Edith Hall
chama de ldquoroteiros de deslocamentordquo [displacement plots]) onde a etnicidade e os direitos de
cidadania satildeo contestados (HALL 1997 p 98) Os troianos como vimos eram um exemplo
de barbaacuterie mas frequentemente eram representados como viacutetimas dos gregos ganhando
uma certa ldquosimpatiardquo de Euriacutepides Hall acredita que ldquose a representaccedilatildeo traacutegica da Guerra de
Troia era para tornar os espartanos lsquobaacuterbarosrsquo e assimilaacute-los ao arqueacutetipo do persa arrogante
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entatildeo os lsquoateniensesrsquo desse mundo miacutetico contudo paradoxalmente pode ser a viacutetima troiana
da agressatildeo espartanardquo (HALL 1989 p 214)
A helenista Casey Dueacute coloca que a representaccedilatildeo dos troianos dessa maneira
ldquoconvida a audiecircncia a transcender as fronteiras eacutetnicas e poliacuteticas que dividem as naccedilotildees na
guerra Desse modo os atenienses podem explorar suas proacuteprias tristezas testemunhando o
sofrimento dos outros inclusive de suas proacuteprias viacutetimasrdquo (DUEacute 2006 p 116) Natildeo podemos
negar que a exposiccedilatildeo do sofrimento alheio eacute um apelativo para chamar a atenccedilatildeo acerca do
proacuteprio sofrimento ateniense a viuacuteva os oacuterfatildeos os prisioneiros de guerra satildeo categorias que
podem ser compartilhadas a qualquer momento pelos atenienses visto que se estaacute em uma
eacutepoca de guerra Do momento que ele mostra os malefiacutecios da guerra atraveacutes desses
personagens ele estaacute colocando sua visatildeo acerca dos prejuiacutezos desencadeados por ela bem
como questionando a legitimidade dela Embora natildeo participasse efusivamente da poliacutetica
como Eacutesquilo e Soacutefocles ele era uma pessoa de opiniatildeo na eacutepoca Se ele pudesse mostra-la
nos palcos um dos lugares para onde os olhares da poacutelis se voltavam ele poderia convidar as
pessoas que o assistiam a questionar tambeacutem essa guerra
Contudo acreditamos que a intenccedilatildeo natildeo era ldquouniversalizarrdquo o sofrimento nem colocar
o troiano como o ateniense em si mas mostrar que o espartano eacute tatildeo condenaacutevel que ateacute o
baacuterbaro era melhor Afirmamos isso porque o troiano embora visto dessa maneira piedosa
natildeo deixava de ser baacuterbaro devido agrave sua caracterizaccedilatildeo As fronteiras eacutetnicas como vimos
satildeo borradas em Euriacutepides mas natildeo eacute por caracterizar ldquomelhorrdquo o troiano mas por assimilar o
espartano (grego) a ele o exemplo de baacuterbaro Aleacutem disso como defendemos aqui essa
caracterizaccedilatildeo do troiano (que eacute compartilhada com o persa o egiacutepcio etc) jaacute vem dos
poemas homeacutericos
Geralmente quando falamos de identidadealteridade em Homero pensamos
primeiramente na Odisseia Esse poema eacute marcado pelo embate com Outros visto que
Odisseu viaja por terras longiacutenquas e agraves vezes hostis Eacute emblemaacutetico o encontro desse heroacutei
com o Ciacuteclope personagem-siacutentese daquilo que eacute natildeo ser grego Odisseu enquanto ldquoaedo de
si mesmordquo conta o que viu quando chegou agrave terra dos Ciacuteclopes
ἔθνα δανὴρ ἐνιαυε πελώριος ὅς ῥα τὰ microῆλα οἶος ποιmicroαίνεσκεν ἀπόπροθεν οὐδὲ microετ ἄλλους πωλεῖτ ἀλλ ἀπάνευθεν ἐὼν ἀθεmicroίστια ᾔδη καὶ γᾶρ θαῦmicro ἐτἐτυκτο πελώριον οὐδὲ ἐῴκει ἀνδρί γε σιτοφάγῳ ἀλλὰ ῥίῳ ὑλήεντι ὑψηλῶν ὀρέων ὅ τε φαίνεται οἶον ἀπἄλλων
44
dormia um ente gigantesco que pascia a recircs sozinho nos confins O ser longiacutenquo natildeo convivia com ningueacutem sem lei um iacutempio Dissiacutemile de um homem comedor de patildeo o monstro colossal mais parecia o pico da cordilheira infinda sem vizinho agrave vista (HOMERO Odisseia IX vv 187-192)
Polifemo eacute descrito como um monstro eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o
ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute
ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) Os gregos se
definem pela publicidade de seus atos o homem grego eacute idealmente um homem puacuteblico
Todos veem o que todos fazem e todos vivem pela manutenccedilatildeo de sua comunidade Do
mesmo modo a lei noacutemos eacute o que diferencia o homem do animal que vive no acircmbito da
phyacutesis natureza e do aacutegrios selvagem
Odisseu adentra a caverna de Polifemo com seus companheiros e eles comeccedilam a
comer seu queijo (demonstrando ateacute pouca educaccedilatildeo visto que os hoacutespedes devem esperar
que o anfitriatildeo lhes ofereccedila algo para comer) Quando o Ciacuteclope chega Odisseu lhe faz uma
suacuteplica a qual eacute respondida com aspereza
νήπιός εἰς ὦ ξεῖν ἢ τηλόθεν εἰλήλουθας ὅς microε θεοὺς κέλεαι ἢ δειδίmicroεν ἢ αλέασθαι οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν οὐδὲ θεῶν microακάπων ἐπεὶ ἦ πολὺ φέρτεροί εἰmicroεν οὐδ ἂν ἐγὼ Διὸς ἔχθος ἀλεθάmicroενος πεφιδοίmicroην οὔτε σεῦ οὔθ ἑταρων εἰ microὴ θυmicroός microε κελεύοι
Ou eacutes um imbecil ou vens de longe estranho rogando que eu me dobre aos deuses ou que evite-os pois Zeus porta-broquel natildeo chega a preocupar Ciacuteclopes nem um outro oliacutempico somos bem mais fortes Natildeo te acolheria nem teus soacutecios para poupar-me da ira do Cronida O cor eacute meu tutor (HOMERO Odisseia IX vv 273-278)
O Ciacuteclope aqui desliza duas vezes primeiramente nega uma suacuteplica Isso gera um
estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) sendo que
ldquoa oposiccedilatildeo plural-singular litaiacute-aacutete lsquosuacuteplicas-perdiccedilatildeorsquo que parece indicar uma significativa
oposiccedilatildeo entre coletividade entendimento e reconhecimento de um lado e isolamento
45
teimosia e cegueira de outro [devemos destacar]rdquo (MALTA 2006 p 58-9) Essa suacuteplica eacute a
do xeacutenos aquele que se hospeda em um lugar
Assim em segundo lugar ele nega um costume que factualmente natildeo eacute somente
grego (embora no plano do discurso ele tenha sido ldquoexclusivizadordquo pelos helenos ao longo do
tempo) mas eacute difundido por todo o Mediterracircneo a hospitalidade (xeacutenia) que eacute
[] um coacutedigo de conduta uma convenccedilatildeo natildeo escrita que atravessava as fronteiras do Mediterracircneo oriental Demonstrava-se por meio de uma etiqueta reconhecida em que havia troca de presentes e festivais e sua origem estava na xenuia da Idade do Bronze tardia [] que surge nas taacutebuas de Linear B [] A xenuia governaria na verdade o ingresso e a partida de visitantes estrangeiros aos palaacutecios do Peloponeso no seacuteculo XIII aC [suposto seacuteculo da ocorrecircncia da guerra de Troia] (HUGHES 2009 p 188)
Paacuteris tambeacutem transgride a xeacutenia configurando-se num Outro Tem-se admitido que os
troianos satildeo o Outro estrangeiro conjectura-se que Troia na verdade nunca fez parte da
Heacutelade e muitos autores se referem aos troianos como estrangeiros como se fosse algo oacutebvio
e natural Claude Mosseacute mostra que a Iliacuteada ldquoconserva a memoacuteria de uma grande expediccedilatildeo
dos Helenos da Europa [των Ελλήνων της Ευρώπης] contra Troiardquo (MOSSEacute 2000 p 10)
embora ldquohelenosrdquo designe apenas uma parte da Greacutecia em Homero (HALL 2002 p 129) e o
termo ldquoEuropardquo tivesse sido cunhado a posteriori (MITCHELL 2007 p 20) Hillary Mackie
crecirc que essa diferenciaccedilatildeo nesses termos se daacute porque eles representam duas culturas
diferentes no plano linguiacutestico (uma de elogio e outra de acusaccedilatildeo)
Kostas Vlassopoulos ao analisar a glocalizaccedilatildeo do natildeo-grego na Greacutecia ou seja os
modos pelos quais os gregos ldquoadotam e adaptamrdquo32 repertoacuterios estrangeiros ele fala que em
Homero jaacute acontecia isso visto que os heroacuteis troianos eram estrangeiros [foreigns]
(VLASSOPOULOS 2013 p 167) Para justificar essa ideia o historiador afirma que
[] no lado aqueu do Cataacutelogo das Naus enumera um sem-nuacutemero de comunidades de todo o mundo grego que manda contingentes a Troia sob a lideranccedila de Agamemnon enquanto o cataacutelogo dos aliados troianos enumera vaacuterias pessoas falando outras linguagens (allothrooi) [sic] que mandam suas tropas para ajudar os troianos incluindo os liacutecios os caacuterios os traacutecios os paflagocircnios os friacutegios os miacutesios e os peocircnios (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
32 Essa eacute uma expressatildeo muito utilizada por Kostas Vlassopoulos ao longo de seu livro
46
Os caacuterios satildeo denominados barbaroacutephōnos33 (Iliacuteada II v 867) natildeo os troianos ldquoMas
outras satildeo as liacutenguas dos outros homens que se espalham ao longerdquo [ἄλλη δrsquo ἄλλων
γλῶσσα πολυσπερέων ἀνθρώπων] (II v 804) no exeacutercito troiano mas isso natildeo significa
que o troiano esteja falando outra liacutengua seus aliados eram de regiotildees natildeo-gregas
Discordamos dessas posiccedilotildees natildeo haacute na Iliacuteada nenhuma referecircncia ao caraacuteter
estrangeiro de Troia Contudo tambeacutem natildeo eacute adequado falarmos que os troianos eram iguais
aos gregos como ressalta Jacqueline de Romilly em seu Pourquoi la Gregravece ldquoentre os dois
[troianos e aqueus] como Zeus mesmo Homero tem a balanccedila igual [] Homero ignora tal
oposiccedilatildeo [Europa vesus Aacutesia]rdquo (ROMILLY 2013 p 38 e 39) Ela afirma que Homero natildeo os
diferencia porque se tratam de humanos guerreando e os valores da humanidade se
sobrepotildeem aos do grupo eacutetnico ldquoele natildeo marca as diferenccedilas entre indiviacuteduos e tampouco
entre os povos Do lado troiano como do lado aqueu satildeo lsquomortaisrsquo que se afrontamrdquo
(ROMILLY 2013 p 37)
Antonio Mario Battegazzore mostra que ldquoentre gregos e troianos estatildeo faltando
elementos mesmo que miacutenimos de distinccedilatildeo a alimentaccedilatildeo e o vestiaacuterio bem como os
princiacutepios morais satildeo idecircnticos para todos os cultos as habitaccedilotildees o modo de combater
valem para um como para outrordquo (1996 p 17) Ele concorda com Edith Hall ao dizer que natildeo
existe uma distinccedilatildeo entre Europa e Aacutesia na Iliacuteada (HALL 1989 p 39 BATTEGAZZORE
1996 p 17) De fato Homero natildeo traz esses termos geograacuteficos mas natildeo podemos dizer que
natildeo exista diferenciaccedilatildeo alguma como John Heath corrobora
Os troianos de Homero satildeo notoriamente difiacuteceis de ser distinguidos dos gregos eles cultuam os mesmos deuses lutam com taacuteticas idecircnticas e compartilham formas equivalentes de habitaccedilatildeo comida vestimenta funerais e parentesco Mesmo as diferenccedilas ndash poligamia oriental por exemplo ndash satildeo minimizadas Os principais protagonistas da guerra um da Europa e outro da Aacutesia ateacute falam a mesma liacutengua Os troianos natildeo aparentam ao menos para muitos leitores modernos mostrar os principais defeitos da psicologia do baacuterbaro que veio a caracterizaacute-los no quinto seacuteculo tirania luxuacuteria imoderada emocionalismo irrestrito afeminaccedilatildeo crueldade e servilidade De fato Homero eacute frequentemente admirado hoje em dia por sua descriccedilatildeo equacircnime de gregos e natildeo-gregos especialmente quando os eacutepicos satildeo comparados com a literatura ateniense da eacutepoca poacutes-Guerras Greco-Peacutersicas Essa interpretaccedilatildeo positiva dos troianos era uma exceccedilatildeo na antiguidade contudo e ainda haacute criacuteticos que veem um retrato negativo dos troianos como uma raccedila na Iliacuteada
33 Ele eacute composto de duas palavras o substantivo phōnḗ ldquovozrdquo e a onomatopeia bar bar analoacutegico ao nosso ldquoblaacute blaacuterdquo que designa uma linguagem incompreensiacutevel Assim o barbaroacutephōnos eacute aquele de quem natildeo se compreende a fala Desse modo se dos caacuterios soacute se ouve ldquobar barrdquo isso significa que eles natildeo falam o grego ou o falam mal (JANSE 2002 p 334-5) Como a liacutengua eacute um dos traccedilos marcantes de uma cultura (AUGEacute 1998 p 24-5) desconhecer o grego significa desconhecer a cultura grega o termo barbarophoacutenos acaba designando um povo estrangeiro No sumeacuterio e no babilocircnio jaacute existia uma palavra que utiliza esse recurso onomatopaico para definir o estrangeiro barbaru J Porkony coloca que algo semelhante ocorre no latim com o termo balbutio e no inglecircs com o termo baby satildeo palavras compostas de sons repetitivos (HALL 1989 p 4 n 5)
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Essa leitura estaacute errada eu acredito e entende mal tanto as convenccedilotildees eacutepicas e as maiores preocupaccedilotildees poeacuteticas de Homero (HEATH 2005 p 531)
Os troianos satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo de conduta dos gregos contudo eles
fazem um uso diferente de alguns aspectos desde Se um aspecto existe em Homero (como a
poligamia de Priacuteamo a maioria dos arqueiros no exeacutercito troiano etc) ele natildeo deve ser jamais
minimizado tem um porquecirc de o poeta colocar aquilo ali e simples explicaccedilotildees como ldquoeacute para
preencher a meacutetricardquo ou ldquoeacute uma interpolaccedilatildeo posteriorrdquo natildeo nos eacute suficiente para
compreender uma produccedilatildeo tatildeo complexa
De fato Homero natildeo distingue os troianos de modo a caracterizaacute-los como baacuterbaros
essa eacute uma denominaccedilatildeo inexistente nos poemas embora exista a palavra que lhe tenha dado
origem (barbaroacutephōnos) Contudo aqueus e troianos natildeo satildeo iguais se dentro de um mesmo
exeacutercito temos heroacuteis diferentes por que de um exeacutercito para outro natildeo haveria mudanccedilas
Os habitantes de Troia satildeo caracterizados de modo a serem diferenciados dos aqueus
Defendemos que os troianos satildeo um outro grupo eacutetnico eles satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo
de conduta grego mas o uso que eles fazem desses costumes eacute diferente E como veremos no
capiacutetulo seguinte muitos dos elementos de caracterizaccedilatildeo dos troianos sobretudo a de Paacuteris
seratildeo utilizados pela trageacutedia para caracterizar os baacuterbaros Um grupo eacutetnico eacute definido natildeo na
total mas na sutil diferenccedila
A fronteira eacutetnica depende da cultura utiliza a cultura mas natildeo eacute idecircntica a esta uacuteltima tomada em seu conjunto Dois grupos sociais vizinhos muito parecidos culturalmente podem chegar a considerar-se completamente diferentes e excludentes do ponto de vista eacutetnico opondo-se com base em um uacutenico elemento cultural isolado tomado como criteacuterio (CARDOSO 2005 p 11-2)
Jonathan Hall natildeo crecirc contudo que possa haver etnicidade na Iliacuteada
[hellip] a evidecircncia de uma diferenciaccedilatildeo eacutetnica de fato entre gregos e troianos na Iliacuteada natildeo eacute totalmente convincente Os troianos usam a onomaacutestica grega cultuam os mesmos deuses que os gregos possuem a mesma organizaccedilatildeo ciacutevica dos gregose satildeo retratados pelo poeta de forma natildeo menos (e talvez ateacute mais) simpaacutetica que os gregos Eacute admitivelmente verdade que Troia eacute retratada como extraordinariamente abastada e que alguns de seus ocupantes ndash notavelmente Paacuteris ndash adota uma vida de luxuacuteria doentia Tambeacutem haacute indiacutecios de que os troianos satildeo retratados como um tanto excitaacuteveis e um pouco desordenadamente em comparaccedilatildeo com o campo grego (HALL 2002 p 118 ndash grifos do autor)
O discurso eacute o mesmo os troianos satildeo quase iguais aos aqueus e esse ldquoquaserdquo natildeo eacute
suficiente para haver uma diferenciaccedilatildeo de fato entre os dois exeacutercitos Lynette Mitchell
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escreve o mesmo ldquoos aqueus natildeo satildeo qualitativamente diferenciados dos troianosrdquo
(MITCHELL 2007 p 44) mas afirma que os gregos jaacute tinham uma noccedilatildeo do que natildeo era
grego e do que era colocando mais uma vez na Odisseia sua anaacutelise acerca disso
(MITCHELL 2007 p 49-50)
Kostas Vlassopoulos afirma que existe uma diferenciaccedilatildeo EuOutro em Homero ldquoos
temas e motivos que mais tarde se tornaratildeo o instrumental [stock-in-trade] das descriccedilotildees
gregas do Outro estavam claramente presente na eacutepoca de Homero e tambeacutem estatildeo presentes
no poema [Iliacuteada]rdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 171) Contudo retorna agrave questatildeo dos
costumes iguais ldquoaqueus e troianos satildeo retratados cultuando os mesmos deuses falando a
mesma liacutengua aceitando o mesmo coacutedigo moral e valores sociaisrdquo (VLASSOPOULOS 2013
p 171)
No tocante aos costumes poderiacuteamos argumentar com base na proacutepria obra de
Vlassopoulos que os valores difundidos na Iliacuteada e na Odisseia natildeo eram exclusivos dos
gregos mas eram universais Esse autor afirma que ldquoMas como a Iliacuteada o poeta da Odisseia
natildeo estaacute geralmente interessado em explorar as diferenccedilas culturais e eacutetnicas em vez disso o
poema opta por salientar instituiccedilotildees como a troca de presentes e hospitalidade [guest-
friendship] que juntam pessoas de diferentes lugaresrdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 172)
Concordamos em parte tanto eram valores universais que ateacute hoje a Iliacuteada e a
Odisseia satildeo atuais sendo adaptadas sobretudo para o puacuteblico infanto-juvenil nossos paicircdes
contemporacircneos Na Iliacuteada os costumes satildeo os mesmos mas o uso que os troianos fazem de
alguns deles eacute diferenciada Algo parecido acontece na Canccedilatildeo de Rolando (XI dC) por
exemplo o costume de nomear as espadas eacute inerente ao francos As espadas quase que tecircm
uma anima proacutepria Rolando conversa com sua Durindana e quando estaacute a ponto de morrer
tenta quebra-la para que ningueacutem mais a possua mas natildeo obteacutem ecircxito visto que ela natildeo quer
se quebrar (vv 2338-2354) Marcuacutelio emir muccedilulmano (inimigo eacutepico dos francos) nomeia
natildeo soacute sua espada (Preciosa) mas tambeacutem sua lanccedila (Maltet) O exagero (nomear espada e
lanccedila animando em demasia os objetos) eacute o que diferencia o muccedilulmano (o Outro) do franco
Assim o casamento eacute comum a gregos e troianos mas Priacuteamo (rei troiano) eacute poliacutegamo
A assembleia eacute comum a gregos e troianos mas o modo de convoca-la e conduzi-la eacute
diferenciado sendo simplificado do lado troiano (MACKIE 1996 p 22) O cataacutelogo das
naus (Canto II) nomeia tanto gregos quanto troianos que foram para a guerra mas haacute mais
nomes especificados do lado grego do que no troiano o cataacutelogo troiano eacute bem mais
simplificado Aleacutem disso alguns costumes (como a xeacutenia) no plano do discurso foram
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colocados como quase exclusivamente gregos ao longo do tempo sobretudo apoacutes as Guerras
Greco-Peacutersicas E eacute tambeacutem no plano do discurso que vemos algumas diferenccedilas entre os
troianos e os aqueus aqueles tecircm um modo de falar diferente como enfatiza Hilary Mackie
bem como os siacutemiles utilizados por Homero na composiccedilatildeo dos troianos revelam que em
batalha eles satildeo os animais caccedilados natildeo os caccediladores eles estatildeo em desvantagem na Iliacuteada
Os troianos portanto satildeo um Outro mas natildeo quer dizer que eles satildeo o Outro
estrangeiro que natildeo eacute grego Eles compartilham de um mesmo coacutedigo de conduta mas o
reapropriam constituindo-se de um outro grupo eacutetnico A ideia de que os troianos satildeo
estrangeiros surge a posteriori como vamos observar nos proacuteximos capiacutetulos sobretudo a
partir da caracterizaccedilatildeo de Paacuteris
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CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES
ldquoPaacuteris na Iliacuteada tanto heroacutei quanto arqueiro natildeo eacute nem um homem completo nem um guerreiro completordquo
(LISSARAGUE 2002 p 115)
Assim Paacuteris eacute visto pelo historiador francecircs Franccedilois Lissarague nem um homem
nem um guerreiro completo Eacute comum encontrarmos designaccedilotildees natildeo tatildeo heroicas a Paacuteris
vindo de helenistas contemporacircneos Ele eacute geralmente visto pelos autores que escrevem sobre
a Guerra de Troia como ldquovaidosordquo ldquofriacutevolordquo ldquococircmicordquo ldquoluxurianterdquo ldquogeralmente uma figura
natildeo heroicardquo (RUTHERFORD 1996 p 33 e 83) ldquoafeminadordquo ldquofrouxordquo (LORAUX 1989 p
93) ldquoplayboyrdquo ldquopateacuteticordquo (HUGHES 2009 219) ldquoegoiacutestardquo ldquosuperficialmente atrativordquo
(SCHEIN 2010 p 22 e 24) ldquotolordquo (CARLIER 2008 p 100) ldquonatildeo heroicordquo ldquoo mais
desmerecido dos filhos de Priacuteamordquo (REDFIELD 1994 p 113 e 114) ldquoalmofadinhardquo [fop]
(GRIFFIN 1983 p 8) ldquoantagonista [] de Aquilesrdquo (NAGY 1999 p 61)
ldquofujatildeordquoldquodesertorrdquo ldquocovarderdquo (AUBRETON 19561968 p 168202) ou ldquoidiotardquo (CLARKE
apud SUTER 1984 p 7)
No entanto isso natildeo acontece apenas com os autores contemporacircneos tanto Homero
como Euriacutepides trazem um Paacuteris constantemente sendo rechaccedilado O motivo principal eacute o fato
de ele ter causado a Guerra de Troia mas Homero traz aleacutem disso a ideia dele natildeo ser um
guerreiro tatildeo bom assim o que gera reprimendas tambeacutem Nesse capiacutetulo vamos ver como
nosso heroacutei eacute visto como um causador de males dentro desse espaccedilo discursivo e como os
outros personagens reagem a essa sua faceta Tanto a eacutepica quanto a trageacutedia trazem essa
ideia acerca desse personagem e haacute uma relaccedilatildeo entre ela e nossa comparaacutevel pois eacute
importante para definir alguns criteacuterios de etnicidade Entretanto em Homero ainda natildeo haacute a
ideia de Paacuteris como um baacuterbaros como jaacute haacute em Euriacutepides ele eacute algueacutem a quem se pode
causar vergonha34 (no bojo da ideia defendida por Ann Suter de que o discurso que cerca
Paacuteris tem a ver com o discurso iacircmbico)
34 Segundo E R Dodds a Greacutecia possui uma cultura de vergonha [shame-culture] natildeo uma cultura de culpa [guilt-culture] esta tem mais a ver com o que o indiviacuteduo pensa de si mesmo natildeo do que os outros pensam dele Assim dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode causar vergonha eacute mais apropriado do que dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode culpar Nesse ponto discordamos da terminologia utilizada por Ann Suter para tratar do personagem ldquoblamerdquo (culpa) natildeo eacute cabiacutevel para designar o discurso iacircmbico sendo preferiacutevel pois ldquoacusatoacuteriordquo
51
Na Iliacuteada quando Paacuteris recua ante a fuacuteria de Menelau Heitor o repreende (III vv 39-
45) Quatro qualificaccedilotildees satildeo utilizadas pelo poeta atraveacutes das palavras do seu irmatildeo para
nosso heroacutei dyacutesparis (literalmente ldquodis-Paacuterisrdquo) eicircdos aacuteriste (ldquomelhor formardquo) gynaimaneacutes
(enlouquecedor de mulheres) e ēperopeutaacute (enganador) Dyacutesparis eacute uma qualificaccedilatildeo
interessante ela eacute composta de um prefixo e um substantivo dyacutes- eacute um prefixo de negaccedilatildeo e
Paacuteris o proacuteprio nome do heroacutei aqui tratado Pode ter dado origem ao termo latino dispare
que por sua vez originou nosso ldquodiacutesparrdquo (diferente dessemelhante) ldquoPaacuteris funestordquo eacute a
traduccedilatildeo que Carlos Alberto Nunes daacute a esse termo a qual eacute adequada ao seu significado
visto que essa expressatildeo denota as contrariedades do personagem e os maus pressaacutegios que
ocorreram antes de seu nascimento Embora menos proacutexima ao sentido original a traduccedilatildeo de
Haroldo de Campos manteacutem a alusatildeo jogando com o ritmo das palavras ldquoPaacuteris mal-paridordquo
Eicircdos (forma) aacuteriste (de aacuteristos ldquomelhorrdquo) denota a beleza fiacutesica de Paacuteris a qual
deveria ser pressuposto segundo Heitor para seu bom desempenho no campo de batalha por
ser o mais belo troiano deveria ser tambeacutem o melhor guerreiro Contudo essa denominaccedilatildeo
tem uma peculiaridade esse epiacuteteto soacute eacute utilizado para mulheres (SUTER 1984 p 72) De
homens apenas Heitor e Paacuteris satildeo denominados dessa maneira e essa foacutermula soacute aparece
quando um dos dois faz algo indigno de sua estirpe no acircmbito militar Por estar no vocativo (o
nominativo eacute eidos aacuteristos) eacute designativo de um insulto
Em Euriacutepides haacute algumas alusotildees agrave beleza fiacutesica de Paacuteris Entretanto as palavras
usadas satildeo diferentes em Alexandre (fr 61d v 8) o coro diz que Paacuteris possui ldquoformas que
se diferem dos outrosrdquo (morphecirc diapher[ ) Eacute uma designaccedilatildeo menos especiacutefica do que ldquoeicircdos
aacuteristerdquo utilizada por Homero Aleacutem disso sua beleza aparece intrinsecamente ligada ao
excesso de ouro agraves roupas que ele usa Eacute uma beleza acessoacuteria externa (literalmente)
baacuterbara que causou a desgraccedila de muitos Em Euriacutepides e em Homero sua beleza se liga a)
ao fato de ele pertencer a uma elite (Paacuteris eacute diferente das pessoas comuns por isso o coro de
Alexandre frisa essa ideia da beleza como distinccedilatildeo social e eacute a partir dela e de suas faccedilanhas
incompatiacuteveis com um douacutelos ndash escravo ndash que se desconfiaraacute da origem do pastor que ganhou
os jogos) e b) agrave ruiacutena que ela causou (Heacutecuba na peccedila homocircnima de Euriacutepides deixa claro
que Helena se deslumbrou com a riqueza e a beleza de Paacuteris)
Nosso heroacutei eacute um gynaimaneacutes na Iliacuteada Essa eacute uma qualificaccedilatildeo formada por dois
substantivos gynḗ (mulher) e maacutenē (loucura) palavra que deriva do verbo maiacutenomai (desejar
ardorosamente loucamente ndash ISIDRO PEREIRA 1951 p 113 ldquoser louco porrdquo [esser pazzo]
ndash NAZARI 1999 p 223 ficardeixar [rendre] louco ndash BAILLY 2000 p 1217 ndash ver microαίνω)
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Anatoille Bailly traduz essa palavra por ldquofou des femmesrdquo (louco por mulheres) (2000 p 422
ndash ver γυναικοmicroανής) Carlos Alberto Nunes como vimos acima traduz como ldquosedutor de
mulheresrdquo Haroldo de Campos por ldquomulherengordquo
Ann Suter nota que esse mesmo epiacuteteto eacute utilizado para designar Dionisos no Hino a
essa divindade (1984 p 74) traduzindo-o como ldquohe who drives women madrdquo (ldquoaquele que
deixa as mulheres loucasrdquo) e criticando aqueles que traduzem a palavra por ldquowomen crazyrdquo
(ldquolouco por mulheresrdquo) Assim enquanto Carlos Alberto Nunes e Ann Suter partem para uma
traduccedilatildeo que denota o aspecto ativo do adjetivo (Paacuteris como agente da
seduccedilatildeoenlouquecimento) Anatoille Bailly e Haroldo de Campos optam por um aspecto
passivo (Paacuteris como viacutetima dessa loucura) ldquoDeixar louco as mulheresrdquo ou ldquoser louco por
mulheresrdquo natildeo altera enfim a ideia de que Paacuteris eacute um homem relacionado a essa esfera da
seduccedilatildeo do amor da paixatildeo
Ēperopeutaacute natildeo eacute traduzido por Carlos Alberto Nunes ele une esse vocaacutebulo a
gynaimaneacutes sob a denominaccedilatildeo de ldquosedutor de mulheresrdquo Haroldo de Campos traduz como
ldquoimpostorrdquo denotando sua acepccedilatildeo ligada agrave enganaccedilatildeo O Le grand Bailly mostra duas
traduccedilotildees ligadas ao verbo ēperopeuacuteō ldquoenganadorrdquo e ldquosedutorrdquo (BAILLY 2000 906) Ann
Suter evidencia que esse epiacuteteto eacute utilizado tambeacutem na tradiccedilatildeo poeacutetica para Hermes e
Prometeu dois dos maiores enganadores da mitologia (1984 p 75-76) sendo ldquoenganadorrdquo
sua melhor traduccedilatildeo Esse epiacuteteto dialoga entatildeo diretamente com theoeidḗs epiacuteteto utilizado
para Paacuteris em vaacuterios cantos no que toca a esfera da dissimulaccedilatildeo
Theoeidḗs ndash que significa literalmente ldquode forma divinardquo (theoiacute ndash deuses eicircdos ndash
forma exterior aspecto ndash BAILLY 2000 p 584 NAZARI 1999 p 146) ndash denota a escassa
relaccedilatildeo de Paacuteris com o ambiente beacutelico Theoeidḗs acompanha mais Paacuteris que outros
personagens Eacute como o ldquode peacutes velozesrdquo de Aquiles ou o ldquode muitos ardisrdquo de Odisseu
acaba se transformando em um epiacuteteto quase que exclusivo para o heroacutei Esse eacute um adjetivo
que denota a beleza fiacutesica de um personagem (FONTES 2001 p 95) Ann Suter chama a
atenccedilatildeo para a proacutepria etimologia da palavra da sua formaccedilatildeo ter a ldquoforma de um deusrdquo eacute
problemaacutetico visto que os deuses sempre se disfarccedilam Assim ser theoeidḗs eacute ser de certo
modo falso vocecirc aparenta ser uma coisa que natildeo eacute (SUTER 1984 p 63)
Aleacutem disso segundo ainda Ann Suter theoeidḗs eacute um epiacuteteto natildeo-beacutelico
Aqueles aos quais esse epiacuteteto eacute aplicado com alguma frequecircncia pois satildeo notaacuteveis por serem todos homens mas nenhum guerreiro Teocliacutemeno o vidente Telecircmaco muito jovem para lutar Priacuteamo muito velho para lutar De fato os quarto
53
pretendentes e Alciacutenoo compartilham tambeacutem essa caracteriacutestica comum a esse grupo (SUTER 1983 p 60-1)
Natildeo soacute esse epiacuteteto se repete frequentemente mas tambeacutem as quatro palavras que
analisamos elas fazem parte de uma foacutermula que aparece novamente no Canto XIII
(Δύσπαρι εἶδος ἄριστε γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ) e esta tem um tom acusador Satildeo palavras
que Heitor dirige a Paacuteris a fim de censuraacute-lo de constrangecirc-lo e de atraveacutes da neacutemesis35
fazer com que ele sinta vergonha de seu comportamento Os heroacuteis vivem sob a sombra do
aidṓs comumente traduzido como ldquovergonhardquo ou ldquorespeitordquo mas que de fato ldquoeacute o medo da
desaprovaccedilatildeo ou da condenaccedilatildeo pelos outros que faz um homem ficar e lutar bravamenterdquo
(SCHEIN 2010 p 177) Essa noccedilatildeo de aidṓs corrobora o caraacuteter agoniacutestico da sociedade
helecircnica se configura numa ldquovulnerabilidade agrave norma ideal expressa pela sociedaderdquo
(REDFIELD 1994 p 116) e faz parte do desenvolvimento da poesia iacircmbica (acusatoacuteria)
Heitor fala em sua reprimenda a Paacuteris no Canto III que o exeacutercito inimigo ri da
atitude de Paacuteris (v 43) haacute poucos risos na Iliacuteada como observou James M Redfield e
segundo esse autor em todas as situaccedilotildees ele ldquoeacute a marca da liberaccedilatildeo da tensatildeo socialrdquo
(REDFIELD 1994 p 286) A seguir Heitor continua sua reprimenda lembrando a Paacuteris que
foi ele quem causou a guerra devendo pois ele retornar ao campo de batalha para enfrentar
Menelau
O heroacutei ainda lembra o irmatildeo de que ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a
beleza natildeo te valeram de nada ao te vires lanccedilado na poeirardquo [οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃ κίθαρις
τά τε δῶρ᾽ Ἀφροδίτης ἥ τε κόmicroη τό τε εἶδος ὅτ᾽ ἐν κονίῃσι microιγείης] (III vv 46-55) Os
cabelos de Paacuteris (koacutemē) a ciacutetara (kiacutetharis) ndash instrumento musical ndash os dons de Afrodite (dōra
Aphrodiacutetēs) ndash relacionados ao amor e agrave beleza ndash e a sua forma fiacutesica (eicircdos) natildeo lhe servem
para o campo de batalha ali eacute o domiacutenio da forccedila (biacuteē) da coragem (alkḗ) natildeo da muacutesica da
beleza e do amor Aqui tambeacutem Paacuteris serve de khaacuterma um motivo de divertimento para os
outros Eacute algueacutem acusaacutevel vergonhoso que necessita ser repreendido com palavras
Mesmo Helena natildeo fica satisfeita com as atitudes de Paacuteris primeiramente recusa-se a
ir encontraacute-lo dizendo agrave Afrodite (que estava disfarccedilada) ldquoNatildeo voltarei para o taacutelamo pois
vergonhoso seria participar-lhe do leito as Troianas sem duacutevida haviam de murmurar jaacute
sobejam as dores que na alma suportordquo [κεῖσε δ᾽ ἐγὼν οὐκ εἶmicroι νεmicroεσσητὸν δέ κεν εἴη 35 Neacutemesis ldquoeacute uma ira mediada pelo sentido social um homem natildeo somente sente isso mas se sente correto em sentir issordquo (REDFIELD 1994 p 117) Ainda segundo esse autor neacutemesis se contrapotildee ao aidṓs os dois se relacionam agrave censura mas este seria uma censura interna (vocecirc vecirc que estaacute errado sente vergonha de si mesmo e faz o certo) e aquele uma externa (algueacutem vecirc que vocecirc estaacute fazendo algo errado censura vocecirc sente vergonha e faz o certo)
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κείνου πορσανέουσα λέχος Τρῳαὶ δέ micro᾽ ὀπίσσω πᾶσαι microωmicroήσονται ἔχω δ᾽ ἄχε᾽
ἄκριτα θυmicroῷ] (III vv 410-412 ndash grifos nossos) Helena teme a neacutemesis das troianas mas o
medo de desagradar aos deuses eacute maior Afrodite lhe ameaccedila e ela acaba indo encontrando-se
com Paacuteris (III vv 413-420)
Ao se defrontar com nosso heroacutei Helena assim como Heitor o reprova por ter
voltado para o palaacutecio e o instiga a retornar para combater Menelau
ἀλλ᾽ ἴθι νῦν προκάλεσσαι ἀρηΐφιλον Μενέλαον ἐξαῦτις microαχέσασθαι ἐναντίον ἀλλά σ᾽ ἔγωγε παύεσθαι κέλοmicroαι microηδὲ ξανθῷ Μενελάῳ ἀντίβιον πόλεmicroον πολεmicroίζειν ἠδὲ microάχεσθαι ἀφραδέως microή πως τάχ᾽ ὑπ᾽ αὐτοῦ δουρὶ δαmicroήῃς Vai provocar entatildeo logo o disciacutepulo de Ares potente para outra vez vos medirdes em duelo Aliaacutes aconselho-te a que natildeo faccedilas tamanha tolice pensando que podes com o louro heroacutei Menelau contender numa luta corpoacuterea que em pouco tempo sua lanccedila potente haacute de ao solo postrar-te (III vv 428-436)
Na Iliacuteada Helena eacute a uacutenica mulher mortal que repreende um homem um anḗr sendo
o homem repreendido justamente Paacuteris Isso seria um absurdo temos a ideia por causa de
uma construccedilatildeo historiograacutefica simplista e de uma documentaccedilatildeo oriunda em sua maioria do
Periacuteodo Claacutessico Ateniense de que a mulher natildeo possuiacutea voz na Greacutecia Antiga (LESSA
2010 p 15-6) Contudo a proacutepria documentaccedilatildeo do Periacuteodo Claacutessico nos mostra ldquobrechasrdquo
nesse ideal de comportamento as mulheres natildeo eram completamente passivas
A trageacutedia nesse sentido exerce um papel importante para que possamos estudar esse
aspecto Em Euriacutepides Helena Androcircmaca e Ifigecircnia culpam Paacuteris pela situaccedilatildeo em que se
encontram a elas eacute dada voz para expressar essa ideia Segundo o historiador Faacutebio de Souza
Lessa
as trageacutedias [] satildeo suportes de informaccedilatildeo importantes para a compreensatildeo da dinacircmica poliacuteade e em especial do comportamento feminino isto porque em cena a poacutelis refletia sobre si mesma havendo uma abordagem de problemaacuteticas totalmente atuais na Atenas do seacuteculo V aleacutem de permitirem ascender as contradiccedilotildees inerentes agrave consolidaccedilatildeo da mulher na poacutelis democraacutetica [] Para Richard Buxton a trageacutedia eacute o lugar do conflito das tensotildees e rupturas sendo as mulhetes neste espaccedilo agressivas dominadoras ativas e seres visiacuteveis (LESSA 2004 p 80)
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As trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides natildeo tratam da Guerra de Troia em si36 ou
elas se passam antes (como Alexandre) ou depois dela (como o resto de nossa
documentaccedilatildeo) Eacute nas trageacutedias que se passam depois da guerra que as mulheres em questatildeo
enunciam essa responsabilidade do Paacuteris pelos seus destinos e a voz feminina aqui eacute
imprescindiacutevel satildeo as mulheres e as crianccedilas que mais sofrem com a guerra Elas ficam sem
seus esposos e pais tornam-se cativas do inimigo veem suas vidas ruiacuterem Antes da
encenaccedilatildeo das trageacutedias algumas cerimocircnias se desenrolavam como a apresentaccedilatildeo dos
tesouros da cidade e dos oacuterfatildeos de guerra as crianccedilas cujos pais deram a vida por Atenas
eram sustentadas pela poacutelis e eles deveriam continuar ndash pelos seus pais pelo seu nome e pela
sua cidade ndash a lutar
Sendo a Iliacuteada um texto que circulava bastante no Periacuteodo Claacutessico (e congelado na
escrita durante ele) por ser utilizado para a paideiacutea o fato de Helena reprimir Paacuteris eacute
significativo Tanto esse poema quanto a Odisseia tambeacutem trazem um modelo feminino a
priori muito bem delimitado e fechado que muito influenciou na proacutepria construccedilatildeo do
modelo claacutessico Peneacutelope eacute o grande exemplo a mulher tecelatilde fiel ao marido submissa ao
filho homem que utiliza a meacutetis para urdir literalmente a trama que lhe garante os vinte anos
de espera por Odisseu
Em Homero a representaccedilatildeo de Helena denota algo que acontece tambeacutem no Periacuteodo
Claacutessico ldquoa sociedade poliacuteade buscou manter as mulheres distanciadas da esfera da accedilatildeo
masculina mas ao memso tempo concedeu-as a funccedilatildeo de policiar as accedilotildees dos cidadatildeos isto
eacute de vigiar o comportamento masculinordquo (LESSA 2004 p 77 ndash grifos do autor) Helena
nesse excerto do poema homeacuterico eacute a responsaacutevel por vigiar o comportamento de Paacuteris
reprimindo-o O helenista australiano Christopher Ransom crecirc que Paacuteris natildeo se deixa afetar
pela neacutemesis nem pelo aidṓs (RANSOM 2011 p 55) mas eacute atraveacutes da neacutemesis de Helena e
de Heitor que o heroacutei sentiria aidṓs pelos seus atos e voltaria para a guerra o que invalida sua
afirmaccedilatildeo Entretanto essa reprimenda natildeo surte efeito de pronto somente no Canto VI o
heroacutei retornaraacute para a guerra (e dela natildeo se ausentaraacute mais)
Paacuteris eacute mostrado frequentemente tambeacutem como causador de grande desgraccedila para os
combatentes tanto em Euriacutepides quanto em Homero No Canto XXII da Iliacuteada quando
Heitor diz que natildeo vai recuar da luta singular com Aquiles dando Helena e os bens do palaacutecio
ldquoque o divo Paacuteris nas cocircncavas naus para Troacuteia nos trouxe ndash causa que foi inicial desta
36 Agrave exceccedilatildeo de Rhesos a qual tem a autoria de Euriacutepides questionada e natildeo incluiacutemos em nosso corpus documental
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guerra funestardquo [microάλ᾽ ὅσσά τ᾽ Ἀλέξανδρος κοίλῃς ἐνὶ νηυσὶν ἠγάγετο Τροίηνδ᾽ ἥ τ᾽
ἔπλετο νείκεος ἀρχή] (vv 115-116 ndash grifos nossos) A ideia de que Paacuteris foi o princiacutepio de
tudo tambeacutem se encontra presente no Canto V quando eacute mencionado relata-se que Feacutereclo
artiacutefice foi quem fabricou os navios nos quais Paacuteris foi atraacutes de Helena ldquoque tinham sido o
princiacutepio da grande desgraccedila dos Teucros e dele proacuteprio por ter desprezado os oraacutecrsquolos
divinosrdquo [ἀρχεκάκους37 αἳ πᾶσι κακὸν Τρώεσσι γένοντο οἷ τ᾽ αὐτῷ ἐπεὶ οὔ τι θεῶν ἐκ
θέσφατα ᾔδη] (V vv 63-64 ndash grifos nossos) Aqui a arkhekaacutekos dos troianos foi a proacutepria
partida de Paacuteris que eacute denominado como causador de uma meacutega pecircma aos seus conterracircneos
A expressatildeo se repete no Canto VI quando Heitor diz ldquoUm fautor de desgraccedilas fez
nascer o Olimpo para o magnacircnimo Priacuteamo os filhos e o povo Troiano Se concedido me
fosse assistir-lhe agrave descida para o Hades esquecer-se-ia minha alma por certo dos males
presentesrdquo [microέγα γάρ microιν Ὀλύmicroπιος ἔτρεφε πῆmicroα Τρωσί τε καὶ Πριάmicroῳ microεγαλήτορι
τοῖό τε παισίν εἰ κεῖνόν γε ἴδοιmicroι κατελθόντ᾽ Ἄϊδος εἴσω φαίην κε φρέν᾽ ἀτέρπου
ὀϊζύος ἐκλελαθέσθαι] (VI vv 280-285 ndash grifos nossos) Aqui a alusatildeo a Paacuteris como
causador da guerra de grandes desgraccedilas (meacutega pecircma) aparece novamente Ainda nesse
Canto quando Heitor repreende Paacuteris essa ideia tambeacutem se repete e o heroacutei acrescenta que
ldquoTu proacuteprio quiccedilaacute te indignaras caso encontrasse algueacutem que fugisse agrave defesa da paacutetria [σὺ
δ᾽ ἂν microαχέσαιο καὶ ἄλλῳ ὅν τινά που microεθιέντα ἴδοις στυγεροῦ πολέmicroοιο] (VI vv 329-
330)
Durante essa reprimenda (VI vv 326-342) Paacuteris eacute interpelado por Heitor como
daimoacutenirsquo (vocativo masculino singular de daiacutemōn) palavra que designa uma relaccedilatildeo iacutentima
entre os interlocutores bem como ldquoeacute costumeiramente usada quando o falante quer persuadir
o endereccedilado a mudar aquele comportamento ou atituderdquo (SUTER 1984 p 59) Comumente
traduzido por ldquodemocircniordquo muitas vezes confunde o leitor desavisado das obras de Homero
Essa traduccedilatildeo implica numa concepccedilatildeo cristatilde (ou seja posterior ao tempo ao qual nos
referimos) aleacutem de ser pela conotaccedilatildeo da palavra uma soluccedilatildeo pouco cabiacutevel pois o daiacutemōn
natildeo eacute ruim O termo designa uma divindade qualquer e nesse caso eacute uma interpelaccedilatildeo o
vocativo corrobora essa ideia
Heitor assim exorta Paacuteris agrave batalha chamando a atenccedilatildeo para o fato de ele ter
causado a guerra Ele por sua vez acalma Heitor dizendo que ele estaacute se preparando para a
batalha visto que ele jaacute havia sido exortado pela proacutepria Helena a qual lamenta natildeo lhe ter
sido destinado um homem melhor que sentisse vergonha pelos seus atos A reprimenda de
37 Archeacute eacute o princiacutepio kakoacutes eacute tanto o mau quanto o feio
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Helena enfim surtiu efeito e Paacuteris de fato vai ao encontro de Heitor que ocorre ainda no
Canto VI (vv 503-525)
No entanto ele natildeo retorna sem escutar mais uma vez algo de Helena ela volta a
criticar o heroacutei afirmando que ele ldquonunca teve firmeza nem nunca haacute de tecirc-lardquo [δ᾽ οὔτ᾽ ἂρ
νῦν φρένες ἔmicroπεδοι38 οὔτ᾽ ἄρ᾽ ὀπίσσω ἔσσονται] (VI vv 352-353) Fica claro nessa
passagem que a aacutetē de Paacuteris foi o motor da guerra Ao retirar Helena de Menelau quando
estava alojado em seu palaacutecio ele cometeu uma infraccedilatildeo desrespeitou a hospitalidade
(xeacutenia) praacutetica cara aos helenos Essa transgressatildeo foi uma das engrenagens da aacutetē (cegueira)
de Paacuteris visto que a aacutetē se daacute de trecircs momentos (princiacutepio estadoato e consequecircncia) o
ldquoraptordquo de Helena eacute o ldquoestadoatordquo que teve como princiacutepio a escolha de Afrodite e a guerra
como consequecircncia (MALTA 2006 p 78)
Em Euriacutepides a maioria esmagadora das menccedilotildees a Paacuteris dizem respeito ao fato de ele
ter causado a guerra Alguns personagens como Agamemnon e Ifigecircnia em Ifigecircnia em Aacuteulis
(vv 467-468 vv 1283-1311) ou Androcircmaca e Helena em As Troianas (vv 919-934 vv
940-943 vv 597-600) culpam-no diretamente pelas suas ruiacutenas mas geralmente eacute o coro
quem o faz (As Troianas vv 780-781 Heacutecuba vv 629-656 vv 905-951 Helena vv
1110-1120 Androcircmaca vv 274-300 Ifigecircnia em Aacuteulis vv 573-589) Eacute importante
frisarmos a importacircncia do coro pois ele eacute uma espeacutecie de arauto da poacutelis
O coro era elemento fundamental No desempenho cumprido por ele vertia-se uma grande quantidade de comentaacuterio social instrutivo e cheio de ponderaccedilatildeo que continuamente reiterava e sumarizava os valores da comunidade as atitudes e atributos aceitos e estimados Os diaacutelogos tomaram da retoacuterica homeacuterica o seu estilo exortativo aconselham comentam orientam exortam denunciam mostram arrependimentos expotildeem de forma mordaz o que devia de ser aceito ou evitado dando expressotildees a reaccedilotildees extremas dramatizando seus castigos e suas recompensas (CODECcedilO 2010 p 72)
Aleacutem disso o coro estaacute aqui exercendo um papel que sua natureza intralinguiacutestica
desempenha ele canta em versos iacircmbicos (ROMILLY 2013 p 227) de natureza
acusatoacuteria Eacute de comum conhecimento que Paacuteris causou a guerra e o coro faz questatildeo de
lembrar disso Em Helena a personagem homocircnima se acusa dizendo que seu deacutemas (beleza
do corpo) causou a ruiacutena de Troia (vv 384-385) mas o coro na mesma trageacutedia vem
lembrar ldquosobre o mar cinza com remo baacuterbaro o homem que veio que veio trazendo aos
filhos de Priacuteamo vocecirc Helena como sua esposa da Lacedemocircnia Paacuteris o fatalmente
38 Phreacuten como jaacute vimos eacute o muacutesculo diafragma eacutempedos significa firme Robert P Keep traduzindo do alematildeo o dicionaacuterio homeacuterico de Georg Autenrieth denomina essa expressatildeo (phreacutenes eacutempedoi) por ldquounimpairedrdquo que por sua vez significa algo que natildeo tem sua forccedila reduzida
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casadordquo [ὅτ᾽ ἔδραmicroε ῥόθια πεδία βαρβάρῳ πλάτᾳ ὅτ᾽ ἔmicroολεν ἔmicroολε microέλεα Πριαmicroίδαις
ἄγων Λακεδαίmicroονος ἄπο λέχεα σέθεν ὦ Ἑλένα Πάρις αἰνόγαmicroος] (vv 1117-1120)
Aqui Paacuteris eacute denominado ainoacutegamos adjetivo composto da palavra ainoacutes (terriacutevel) e gaacutemos
(casamento) o que ratifica a causa da guerra e relembra a sua aacutetē homeacuterica O mesmo
acontece em As Troianas Menelau culpa Helena (As Troianas vv 1037-1038) mas o coro
vem lembrar de quem eacute a culpa (vv 780-781)
Mesmo em Alexandre Paacuteris aparece como algueacutem que tem uma responsabilidade em
relaccedilatildeo agraves origens da guerra Isso contudo fica impliacutecito Luciacutea Romero Mariscal defende
que a representaccedilatildeo de Paacuteris nesse fragmento eacute feita de modo a identifica-lo com dois grupos
sociais a) a populaccedilatildeo rural de Atenas que durante a Guerra do Peloponeso eacute
responsabilizada por ter levado a peste agrave cidade (MARISCAL 2003 p 169) e b) com os
tyacuterannoi cujas presenccedilas assolavam Atenas e criavam um clima de incerteza no tocante agrave
manutenccedilatildeo da democracia (MARISCAL 2005 p 14)
Alexandre foi interpretada justamente depois dessa grande peste ter assolado a poacutelis e
ter matado inclusive um de seus principais membros Peacutericles Luciacutea Mariscal coloca que
Ao apresentar as origens da guerra de Troia em termos de oposiccedilatildeo entre o espaccedilo poliacutetico da cidade e o espaccedilo apoliacutetico da montanha [o Ida onde Paacuteris foi criado] entre os sujeitos que habitam ditos espaccedilos contrapostos e entre as convenccedilotildees que assim o delimitam Euriacutepides aborda um dos temas que o pensamento poliacutetico tradicional havia jaacute explorado ao longo de sua histoacuteria e que durante a guerra do Peloponeso se converteu em uma experiecircncia traacutegica similar a que se representa em Alexandre sob a faacutebula miacutetica que deu peacute agrave guerra troiana Como assinala Ph Borgeaud ldquoConveacutem recordar com a tradiccedilatildeo grega que eacute uma guerra que haacute na origem da tomada de consciecircncia da oposiccedilatildeo entre o ruacutestico e o cidadatildeordquo [] eacute sobretudo ao princiacutepio da guerra do Peloponeso quando a tensatildeo entre os habitantes da cidade e os do campo se faz mais traumaacutetica ao abrir a cidade de Atenas as suas portas a uma ingente massa de populaccedilatildeo rural e agreste que a duras penas se integra na cidade e a contamina com os terriacuteveis resultados da virulenta propagaccedilatildeo da peste que descreve Tuciacutedides no segundo livro de sua Histoacuteria da Guerra do Peloponeso (MARISCAL 2003 p 168-169 ndash grifos nossos)
Segundo a autora eacute Paacuteris que traz consigo a crise para a cidade pois insiste em
participar dos jogos sabendo que natildeo eacute um nobre (MARISCAL 2003 p 165) O tema de
Alexandre gira em torno do agocircn (disputa) esportivo ganhado por Paacuteris na eacutepoca um pastor
ainda cuja descendecircncia nobre era desconhecida Era inconcebiacutevel que um doucirclos (escravo)
ou laacutetris (servo) ganhasse as provas esportivas nas quais os aristoiacute deveriam sobressair-se
Aliaacutes jaacute era inconcebiacutevel a concessatildeo dessa participaccedilatildeo de grupos menos privilegiados da
sociedade nesse tipo de evento Priacuteamo jaacute cometera um erro aiacute ao deixar que um simples
pastor se juntasse aos aristocratas nos jogos A sua participaccedilatildeo ldquoquebraraacute a ordem da cidade
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e provocaraacute uma cadeia de transgressotildees que teriam lugar em todos os acircmbitos da mesma Sua
pretensatildeo de tomar parte nos funerais equivale a formar parte da cidade a ocupar um lugar
que natildeo lhe pertencerdquo (MARISCAL 2003 p 165)
Desse modo Deiacutefobo irmatildeo de Paacuteris eacute quem vai pedir providecircncias acerca disso
exige que o pastor seja morto pela sua audaacutecia e vendo que o pai natildeo lhe daria suporte pede a
Heacutecuba que o faccedila Na iminecircncia da morte dele o pastor que acolheu o heroacutei chega para
impedir que isso aconteccedila mostrando as roupas que vestiam Paacuteris quando ele foi exposto e
uma cena de anagnoacuterisis (reconhecimento) se desenrola o laacutetris eacute reconhecido como aristoacutes e
reintegrado agrave famiacutelia troiana
Frequentemente em Euriacutepides Paacuteris estaacute relacionado a um ambiente aacutegrios
(selvagem) ele eacute denominado algumas vezes bouacutekolos (pastor) em Helena a personagem
homocircnima fala do passado de Paacuteris quando ele se sentava junto com seu gado (vv 358-359)
em Androcircmaca (v 706) Peleu se refere a Paacuteris natildeo como ldquoPaacuteris de Troiardquo mas como ldquoPaacuteris
do [Monte] Idardquo Marcar sua pertenccedila a um ambiente selvagem eacute revelador no que toca a
construccedilatildeo de sua representaccedilatildeo na trageacutedia gecircnero no qual eacute recorrente sua denominaccedilatildeo
como baacuterbaros O proacuteprio mito que envolve Paacuteris (sua exposiccedilatildeo no Monte Ida seu
acolhimento pela ursa e depois pelo pastor pessoa em contato constante com o aacutegrios)
denota que em Paacuteris coabitam duas instacircncias o nobre ligado ao ambiente do humano e o
camponecircs ligado ao ambiente do selvagem
Esse nobre contudo eacute um tirano Na Atenas Claacutessica esses tiranos eram vigiados de
perto e o recurso do ostracismo visava embarreirar a quebra da democracia os nomes
daqueles que poderiam oferecer riscos ao poder democraacutetico eram marcados em ostraacutekai
(pedaccedilos de ceracircmica) e aquele que obtivesse mais votos poderia ser exilado de Atenas Luciacutea
Mariscal relembra Jean-Pierre Vernant que ao analisar a representaccedilatildeo de Eacutedipo chama
atenccedilatildeo para a ideia de que a crianccedila exposta ao nascer e que retorna agrave sua regiatildeo natal para
reivindicar seus direitos eacute geralmente ligada agrave figura do tyacuterannos (MARISCAL 2005 p 14
n 9)
Luciacutea Mariscal tambeacutem nos lembra que em 417 aC Alcibiacuteades ldquoum homem como
Alexandre extraordinariamente bonito popular e que por essas datas vai ganhando um
discutido poderrdquo (MARISCAL 2005 p 17) vence competiccedilotildees atleacuteticas assim como Paacuteris
Esse mesmo Alcibiacuteades vai liderar os atenienses em uma invasatildeo a Siracusa e causar uma
derrota dura a essa poacutelis Ele tambeacutem passa um tempo em Esparta auxiliando o inimigo para
depois retornar a Atenas Assim ldquoO certo eacute que Alexandre compartilha com Alcibiacuteades o
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traccedilo mais singular [sentildeero] de ambos personagens a beleza Uma beleza extraordinaacuteria que
se entende como um sinal de excelecircncia mas que pode contudo malograr-serdquo (MARISCAL
2005 p 19)
Mesmo no campo de batalha quando luta Paacuteris eacute repreendido No Canto XI da Iliacuteada
como vimos Diomedes o reprime por tecirc-lo atingido
lsquoτοξότα λωβητὴρ κέρᾳ ἀγλαὲ παρθενοπῖπα εἰ microὲν δὴ ἀντίβιον σὺν τεύχεσι πειρηθείης οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃσι βιὸς καὶ ταρφέες ἰοί νῦν δέ micro᾽ ἐπιγράψας ταρσὸν ποδὸς εὔχεαι αὔτως οὐκ ἀλέγω ὡς εἴ microε γυνὴ βάλοι ἢ πάϊς ἄφρων κωφὸν γὰρ βέλος ἀνδρὸς ἀνάλκιδος οὐτιδανοῖο ἦ τ᾽ ἄλλως ὑπ᾽ ἐmicroεῖο καὶ εἴ κ᾽ ὀλίγον περ ἐπαύρῃ ὀξὺ βέλος πέλεται καὶ ἀκήριον αἶψα τίθησι τοῦ δὲ γυναικὸς microέν τ᾽ ἀmicroφίδρυφοί εἰσι παρειαί παῖδες δ᾽ ὀρφανικοί ὃ δέ θ᾽ αἵmicroατι γαῖαν ἐρεύθων πύθεται οἰωνοὶ δὲ περὶ πλέες ἠὲ γυναῖκεςrsquo
Fuacutetil frecheiro de cachos frisados espiatildeo de mulheres se te atrevesses armado a lutar frente a frente comigo nenhum amparo acharias nesse arco e nas setas inuacutemeras Soacute por me haveres riscado no peacute fazes tanto barulho ao que dou tanto valor como a tiro de crianccedila ou de moccedila Vatilde sempre eacute a flecha que um ser despreziacutevel e imbele dispara Bem diferente se daacute com meus tiros que embora de leve o dardo atinja o inimigo sem mais da existecircncia o despoja as roacuteseas faces natildeo cessa na dor de arranhar a consorte oacuterfatildeos os filhos lhe ficam e o solo tingido de sangue a apodrecer tatildeo-soacute abutres atrai natildeo mais belas mulheres (XI vv 385-395)
Isso se daacute porque Paacuteris eacute um arqueiro (que como veremos no capiacutetulo seguinte eacute
desvalorizado) e porque natildeo haacute paridade na luta ele na escala hieraacuterquica do campo de
batalha eacute inferior a Diomedes Aleacutem de ldquoarqueirordquo (toxoacuteta) Paacuteris eacute tambeacutem designado como
um patife malfeitor (lōbētḗr) e um espiatildeo de mulheres (virgens) (parthenopicircpa) Lōbētḗr
designa um ldquocomportamento ultrajante [] ofensivo agraves regras da sociedade heroicardquo (SUTER
1984 p 79) Natildeo eacute um epiacuteteto exclusivo de Paacuteris Tersites por exemplo eacute denominado desse
modo tambeacutem (Iliacuteada II v 275) por Odisseu
Suter argumenta que foi uma denominaccedilatildeo desnecessaacuteria por parte de Diomedes (e aiacute
eacute Diomedes quem eacute chamado de ldquofriacutevolordquo) visto que ambos estatildeo equiparados socialmente
natildeo seria o mesmo caso entre Odisseu e Tersites no qual este seria um membro inferior da
sociedade Socialmente natildeo ambos satildeo da elite um do lado troiano outro do lado aqueu
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contudo no campo de batalha sim eles estariam desequiparados como vimos Paacuteris eacute das
tropas ligeiras Diomedes seria membro das tropas pesadas ele usa os armamentos comuns
aos guerreiros homeacutericos Paacuteris deveria procurar algueacutem do seu estatuto beacutelico para lutar natildeo
com algueacutem que estaacute hierarquicamente acima de sua posiccedilatildeo no campo de batalha
Parthenopicircpa (paacuterthenos ndash virgem mulher que ainda natildeo eacute casada ndash acrescida do
verbo opipeuacuteō ndash ldquoolhar com inquietuderdquo (BAILLY 2000 p 1389) observar curiosamente
segundo Ann Suter eacute um epiacuteteto que demonstra covardice na batalha (1984 p 84) Associado
com a totalidade das outras denominaccedilotildees do verso eacute de fato desmerecedor em uma batalha
o que menos importa eacute desejar mulheres
Keacutera aglaegrave eacute uma denominaccedilatildeo bastante ambiacutegua Literalmente significa ldquocornos
brilhantesrdquo (keacuteras ldquocornosrdquo aglaoacutes brilhante) Pode referir-se tanto ao seu arco pois essa
arma podia ser feita de chifres de animais quanto a um penteado a um modo de arrumar o
cabelo (SUTER 1984 p 82) Carlos Alberto Nunes prefere essa uacuteltima acepccedilatildeo traduzindo
essa expressatildeo como ldquode cachos frisadosrdquo bem como Haroldo de Campos que traduz apenas
como ldquode cachosrdquo (ldquosoacuterdido sagitaacuterio de cachosrdquo) Referindo-se ou agrave beleza ou ao arco a
acepccedilatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave batalha eacute a mesma
Ainda nesse excerto Diomedes compara o disparo de arco e flecha de Paacuteris com o de
uma crianccedila (paacuteiumls) ou mulher (gynḗ) Eacute a segunda vez que Paacuteris eacute infantilizado na Iliacuteada a
primeira que se daacute indiretamente (visto que ele natildeo eacute mencionado mas por ser filho do rei de
Troia a denuacutencia vale para ele tambeacutem) eacute quando Menelau afirma que ldquoos seus filhos [de
Priacuteamo] soberbos natildeo satildeo de confianccedila [ἐπεί οἱ παῖδες ὑπερφίαλοι καὶ ἄπιστοι]rdquo (III v
105) e que o anciatildeo deve presenciar o acordo
Anatoille Bailly ao traduzir hyperphiacutealos em seu dicionaacuterio coloca que ldquoen parl des
Troyensrdquo (falando de troianos) significa ldquoorgulhoso arroganterdquo denotando uma distinccedilatildeo de
vocabulaacuterio ao se referir aos gregos Contudo o classicista John Heath coloca que essa
palavra natildeo denigre todos os troianos mas certos indiviacuteduos como Paacuteris que causou a
guerra defendendo que ldquonatildeo haacute nada no poema que sugere que Homero considera todos os
troianos moralmente lsquocontaminadosrsquo [lsquotaintedrsquo]rdquo (HEATH 2005 p 534) Cremos que haacute a
possibilidade de distinccedilatildeo no uso do vocaacutebulo pois os troianos afinal satildeo os inimigos na
guerra
A terceira vez tambeacutem indiretamente eacute quando Priacuteamo denomina os filhos restantes
de ldquocrianccedilas maacutes que causam afliccedilatildeordquo (kakagrave teacutekna katēphoacutenes) (XXIV v 253) Isso eacute uma
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desvalorizaccedilatildeo deles uma diminuiccedilatildeo de valor dessa pessoa que eacute comparada a uma crianccedila
pois a sociedade homeacuterica eacute patriarcal onde o anḗr eacute quem deteacutem o poder familiar poliacutetico
Aleacutem disso ele eacute comparado a uma mulher Christopher Ransom analisa a efeminaccedilatildeo
de Paacuteris mostrando que ldquoisso eacute uacutetil e informativo para analisar o lsquooutrorsquo o homem que
quebra as regras da masculinidade e cujas transgressotildees e excessos ajudam a definir o ideal de
masculinidade promovendo um contraste contra o qual a identidade do homem lsquorealrsquo pode ser
estabelecidardquo (RANSOM 2011 p 35) Ademais a crianccedila e a mulher satildeo um Outro tambeacutem
o Outro social (RANSOM 2011 p 36) Cremos que Paacuteris natildeo deixa de ser um personagem
paidecircutico natildeo por mostrar como natildeo agir mas justamente por mostrar como agir
Mesmo quando Paacuteris parece engrenar na luta Heitor jaacute desconfiado acaba o
insultando quando o encontra aparentemente parado ldquoPaacuteris funesto de belas feiccedilotildees sedutor
de mulheres onde se encontra Deiacutefobo e Heleno senhor poderoso Onde Aacutesio de Hiacutertaco
o filho Adamante gerado por Aacutesio Que eacute de Otrioneu Do fastiacutegio a altanada cidade dos
Teucros hoje desaba envolvendo-te alfim a preciacutepite Morterdquo [lsquoΔύσπαρι εἶδος ἄριστε
γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ ποῦ τοι Δηΐφοβός τε βίη θ᾽ Ἑλένοιο ἄνακτος Ἀσιάδης τ᾽
Ἀδάmicroας ἠδ᾽ Ἄσιος Ὑρτάκου υἱός ποῦ δέ τοι Ὀθρυονεύς νῦν ὤλετο πᾶσα κατ᾽ ἄκρης
Ἴλιος αἰπεινή νῦν τοι σῶς αἰπὺς ὄλεθροςrsquo] (XIII vv 769-773)
No Canto XXIV (vv 247-262) quando Priacuteamo censura seus filhos indiretamente
Paacuteris eacute insultado tambeacutem O anciatildeo fala que soacute restaram os filhos dignos de censura
(eleacutenkhea) os mentirosos (pseucircstai) os danccedilarinos (orkheacutestai) e os que cantam e danccedilam
(khoroitypiacuteēsin aacuteristoi) ou seja filhos que natildeo estatildeo aptos para entrar na guerra No campo de
batalha valoriza-se a intrepidez no combate e a habilidade guerreira em detrimento da danccedila
e do canto Mas isso natildeo quer dizer que essas praacuteticas natildeo satildeo valorizadas na sociedade grega
estes satildeo valorizados fora de um contexto beacutelico Pelo contraacuterio faz parte da paideiacutea
Entretanto ligar o Outro ao domiacutenio das artes musicais natildeo eacute incomum nas trageacutedias
Edith Hall nos mostra que em As Suplicantes de Eacutesquilo somente os baacuterbaros cantam
(HALL 1989 p 130) Em Euriacutepides natildeo eacute diferente em Ifigecircnia em Aacuteulis Paacuteris eacute mostrado
ldquotocando melodias asiaacuteticas [baacuterbaras] na syacuterinx imitando na sua flauta o auloacutes friacutegio do
Olimpordquo (vv 576-578) Assim nos parece que natildeo eacute todo instrumento musical que serve agrave
paideiacutea
Eacute interessante perceber que syacuterinx e o auloacutes satildeo tipos de flautas instrumentos que
deformam a face quando tocados pois temos que inchar as bochechas Essa deformaccedilatildeo eacute
uma metaacutefora para a proacutepria deformaccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo do personagem No periacuteodo
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claacutessico Platatildeo Alcibiacuteades e Aristoacuteteles viam no auloacutes um instrumento com ldquoefeitos maleacutefi-
cos agrave formaccedilatildeo do caraacuteter do cidadatildeordquo (CERQUEIRA 2013 p 62) A lira a ciacutetara pelo
contraacuterio satildeo instrumentos bem vistos para a educaccedilatildeo do cidadatildeo por isso que o Paacuteris de
Homero toca-a Ele estaacute desempenhando ainda um exemplo a ser seguido algo que natildeo
acontece na trageacutedia como vimos Paacuteris ou eacute o pastor (ligado ao domiacutenio o aacutegrios do
selvagem) ou o escravo (o Outro social por excelecircncia do kaloacutes kagathoacutes) ou o baacuterbaro No
entanto ser um muacutesico profissional natildeo era bem visto na Atenas Claacutessica
um muacutesico de ofiacutecio portanto era visto como algueacutem inepto agrave vida ciacutevica e relapso na conduccedilatildeo de assuntos particulares Ele compartilhava da covardia feminina Esses foram os argumentos utilizados pelo Zeus de Euriacutepides na trageacutedia Antiacuteope para desqualificar o lirista Anfiatildeo ndash suspeita de feminilidade incompetecircncia militar e deacuteficit de coragem e virilidade (CERQUEIRA 1997 p 126)
A muacutesica fazia parte da paideiacutea mas ser um muacutesico profissional esbarrava num
estereoacutetipo semelhante ao do baacuterbaro implicando em uma alteridade social o muacutesico eacute
covarde eacute efeminado natildeo serve para a guerra Tendo em mente que Paacuteris tem em sua
caracterizaccedilatildeo esse elemento jaacute na Iliacuteada isso denota o quanto ela serviu para moldar uma
fronteira eacutetnica um Outro
Como pudemos perceber duas coisas desencadeiam reprimendas a Paacuteris na Iliacuteada a)
o fato de ele ter fugido da batalha com Menelau e de natildeo a ter terminado (mesmo que por um
desiacutegnio divino) e b) seu jactar-se desencadeado pelo ferimento de Diomedes Natildeo somente
Heitor seu irmatildeo o repreende mas outros heroacuteis Priacuteamo e mesmo Helena a mulher por
quem ele luta Na trageacutedia ele eacute lembrado majoritariamente como aquele que causou a
guerra Por ser o causador da desgraccedila de muitos o seu caraacuteter Outro precisa ser bem
delineado
Essas reprimendas que Paacuteris sofrem contudo natildeo passam em branco para ele ele
sempre as responde Quando Paacuteris foge do embate com Menelau recuando para dentro do
exeacutercito troiano Heitor lhe cobre de reprimendas No entanto elas natildeo ficam sem resposta
Ἕκτορ ἐπεί microε κατ᾽ αἶσαν ἐνείκεσας οὐδ᾽ ὑπὲρ αἶσαν αἰεί τοι κραδίη πέλεκυς ὥς ἐστιν ἀτειρὴς ὅς τ᾽ εἶσιν διὰ δουρὸς ὑπ᾽ ἀνέρος ὅς ῥά τε τέχνῃ νήϊον ἐκτάmicroνῃσιν ὀφέλλει δ᾽ ἀνδρὸς ἐρωήν ὣς σοὶ ἐνὶ στήθεσσιν ἀτάρβητος νόος ἐστί microή microοι δῶρ᾽ ἐρατὰ πρόφερε χρυσέης Ἀφροδίτης οὔ τοι ἀπόβλητ᾽ ἐστὶ θεῶν ἐρικυδέα δῶρα ὅσσά κεν αὐτοὶ δῶσιν ἑκὼν δ᾽ οὐκ ἄν τις ἕλοιτο
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Eacute justo Heitor o que dizes contraacuterio agrave razatildeo natildeo discorres Teu coraccedilatildeo eacute tatildeo duro quanto o accedilo semelha ao machado que manejado pelo homem lhe aumenta o poder e no tronco mui facilmente penetra talhando-o para o uso das naves Resoluccedilatildeo tatildeo intreacutepida encerras assim no imo peito Natildeo me censures por causa dos mimos da loura Afrodite pois despreziacuteveis natildeo satildeo os presentes valiosos que os deuses de seu bom grado concedem que agrave forccedila ningueacutem os alcanccedila (III vv 59-66)
Paacuteris divide a responsabilidade pela guerra natildeo fora somente ele quem a causou mas
Afrodite tambeacutem ao lhe prometer a mulher mais bela do mundo em troca do pomo dourado
Essa afirmaccedilatildeo entretanto natildeo parece diminuir a parte que cabe ao heroacutei Heitor mais a
frente se refere a ele como sendo o ldquofautor desta guerra [τοῦ εἴνεκα νεῖκος ὄρωρεν]rdquo
foacutermula que se repetiraacute vaacuterias vezes para Paacuteris ao longo da Iliacuteada
Esses versos tambeacutem mostram uma outra qualidade de Paacuteris a habilidade com as
palavras A importacircncia dessa habilidade retorna em Alexandre de Euriacutepides quando Paacuteris
deixa claro que ldquoFrequentemente um homem em desvantagem pela ineloquecircncia perde para
um eloquente mesmo que seu caso seja justordquo [ἀγλωσσίᾳ δὲ πολλάκις ληφθεὶς ἀνήρ
δίκαια λέξας ἧσσον εὐγλώσσου φέρει] (fr 56) O agloacutessos (literalmente ldquosem liacutenguardquo) natildeo
tem chance contra o eugloacutessos (literalmente ldquode boa liacutenguardquo) e Paacuteris tanto na Iliacuteada quanto
em Alexandre (textos em que ele eacute personagem) demonstra ser oacutetimo com as palavras
Sempre que ele eacute censurado por Heitor ou por Helena faz um discurso que acaba
acalmando o seu interlocutor ora atribuindo a responsabilidade da guerra natildeo apenas a ele
ora se propondo a entrar na batalha ora defendendo-se quando acusado de desserviccedilo por
Heitor num momento em que ele estaacute de fato lutando nas batalhas Essa eacute uma habilidade
que natildeo tem tanto valor na guerra quanto a forccedila fiacutesica e a estrateacutegia militar a Iliacuteada por ser
um poema beacutelico tem mais cenas de batalhas longas do que de diaacutelogos longos Contudo ter
uma boa retoacuterica clareza na fala enfim ser um haacutebil orador eacute uma virtude do anḗr
Os troianos satildeo oacutetimos falantes Hillary Mackie explora bastante essa ideia em seu
livro Talking Trojan speech and community in the Iliad Ela defende que o falar troiano
denota uma praise culture (cultura de elogio) enquanto o aqueu uma blame culture (cultura
de culpabilizaccedilatildeo) Ela mostra como os troianos muitas vezes conseguem dissuadir seus
inimigos da luta como acontece com Glauco e Diomedes (Iliacuteada VI vv 120-238) aquele
conta a este sua genealogia lembrando-o de que seus pais foram xeacutenoi hoacutespedes um do outro
Eles entatildeo decidem natildeo lutar e trocar presentes transportando a xeacutenia para o campo de
batalha
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A autora tambeacutem sustenta que os troianos evitam embates em que tenham que desferir
insultos a outros guerreiros Quando haacute a interpelaccedilatildeo eles utilizam epiacutetetos de elogio natildeo de
reprimenda (MACKIE 1996 p 83) Heitor natildeo daacute treacuteplicas (como acontece nessa repreensatildeo
seguinda da defesa do Paacuteris ndash ele natildeo replica) e seu discurso eacute introspectivo e reflexivo
bastante poeacutetico e construiacutedo esteticamente para ser assim pelo poeta (MACKIE 1996 p
115) Aleacutem disso os troianos satildeo os uacutenicos heroacuteis que suplicam pela vida em batalha
Destarte podemos perceber que Paacuteris eacute um tiacutepico troiano nesse aspecto ele eacute haacutebil com as
palavras E se as palavras satildeo como flechas (MACKIE 1996 p 56) esse elemento combina
ainda com o fato de ele ser um arqueiro (sendo que como vimos a maioria do contingente de
arquearia da Guerra de Troia eacute oriunda dos troianos)
Ainda ligado agrave questatildeo do discurso de Paacuteris no Canto III (v 60) haacute um siacutemile
interessante e incomum na epopeia a comparaccedilatildeo de um humano (Heitor) com um objeto
(machado ndash peacutelekys) Seth Benardete afirma que
O siacutemile que Paacuteris usa eacute uacutenico em muitas coisas Em nenhum outro lugar um heroacutei eacute comparado a algo feito pelo homem nem a palavra technecirc eacute recorrente na Iliacuteada (bastante comum contudo se estivesse na Odisseia) nem erocircecirc eacute usada comumente para um homem mas para o arremesso de uma lanccedila Heitor natildeo eacute o madeireiro mas o machado ou ainda madeireiro e machado seu coraccedilatildeo multiplica sua forccedila ele eacute autossuficiente Ele carrega dentro de si os meios para um grande poder Ele eacute todo arma (BENARDETE 2005 p 51)
Isso torna seu discurso diferenciado Homero e seus personagens utilizam siacutemiles que
comparam o homem aos animais que satildeo seres animados Paacuteris compara um humano a um
ser inanimado Essa eacute mais uma particularidade desse personagem que esse excerto eacute
mostrado pela primeira vez falando dialogando na epopeia
Essa natildeo eacute a uacutenica vez que Paacuteris responderaacute Heitor no Canto VI Paacuteris responde agraves
acusaccedilotildees do heroacutei e lhe acalma afirmando que Heacutecuba natildeo trouxe ao mundo um anaacutelkydos
(sem-gloacuteria) (vv 332-341) Tambeacutem quando Heitor lhe acusa injustamente de estar parado na
guerra Paacuteris responde (XIII vv 774-788) Do mesmo modo natildeo seraacute soacute seu irmatildeo que
ouviraacute resposta de Paacuteris Helena tambeacutem ouve (III vv 438-446) Assim como se sucedeu
com Heitor Paacuteris acalma o seu interlocutor atraveacutes das palavras do myacutethos ndash amenizando a
situaccedilatildeo ndash e atribui o acontecido a um deus ele natildeo eacute o responsaacutevel sozinho pelo
malsucedido Afrodite eacute quem lhe daacute Helena de presente natildeo podendo ele negar Athenaacute
ajudou Menelau por isso que ele venceu natildeo foi por causa de sua inabilidade guerreira
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Soacute haacute uma pessoa que Paacuteris natildeo responde depois que eacute interpelado de modo agressivo
Diomedes Sendo assim nosso heroacutei soacute retruca troianos e a ldquoHelenardquo que estaacute em Troia Esses
jogos interessantes de palavras e comparaccedilotildees satildeo comuns em Homero Por isso que eacute
interessante nos debruccedilarmos sobre esses siacutemiles de animais que envolvem Paacuteris Eles satildeo
muito frequentes na Iliacuteada Annie Schnapp-Gourbeillon ressalta que eles tecircm uma funccedilatildeo
especiacutefica no eacutepico
Explicar [rendre compte] valorar dar a medida aqui estaacute umas funccedilotildees fundamentais Na aproximaccedilatildeo analoacutegica o animal daacute a ver as virtudes dos heroacuteis aos quais ele se refere ele sugere ele enfatiza [met un valeur] ele retorna uma imagem amplificada e seletiva como um espelho sutilmente deformado [] ele eacute signo mensagem pressaacutegio [] Portador do sofrimento humano [] ator de uma reversatildeo indiziacutevel [] elemento fundamental de uma definiccedilatildeo social do indiviacuteduo [] (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 11)
Os siacutemiles de caccedila satildeo bastante elucidativos na hora de representar o lado mais fraco e
o mais forte Segundo Michael Clarke ldquoo contraste entre predador e caccedila eacute um padratildeo nas
falas [dos heroacuteis que comparam homens a animais] onde um guerreiro compara aqueles com
quem ele luta ou aqueles que ele vecirc a bravos ou covardes animaisrdquo (CLARKE 1995 p 9) O
narrador da Iliacuteada tambeacutem utiliza bastante esses siacutemiles tendo como o leatildeo o animal caccedilador
por excelecircncia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 39-40) encarnaccedilatildeo dos valores
heroicos em sua simbologia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 50) Quando Menelau
resolve enfrentar Paacuteris no iniacutecio do Canto III o leatildeo eacute o siacutemile que corresponde a Menelau
τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν ἀρηΐφιλος Μενέλαος ἐρχόmicroενον προπάροιθεν ὁmicroίλου microακρὰ βιβάντα ὥς τε λέων ἐχάρη microεγάλῳ ἐπὶ σώmicroατι κύρσας εὑρὼν ἢ ἔλαφον κεραὸν ἢ ἄγριον αἶγα πεινάων microάλα γάρ τε κατεσθίει εἴ περ ἂν αὐτὸν σεύωνται ταχέες τε κύνες θαλεροί τ᾽ αἰζηοί ὣς ἐχάρη Μενέλαος Ἀλέξανδρον θεοειδέα ὀφθαλmicroοῖσιν ἰδών φάτο γὰρ τίσεσθαι ἀλείτην αὐτίκα δ᾽ ἐξ ὀχέων σὺν τεύχεσιν ἆλτο χαmicroᾶζε τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν Ἀλέξανδρος θεοειδὴς ἐν προmicroάχοισι φανέντα κατεπλήγη φίλον ἦτορ ἂψ δ᾽ ἑτάρων εἰς ἔθνος ἐχάζετο κῆρ᾽ ἀλεείνων ὡς δ᾽ ὅτε τίς τε δράκοντα ἰδὼν παλίνορσος ἀπέστη οὔρεος ἐν βήσσῃς ὑπό τε τρόmicroος ἔλλαβε γυῖα ἂψ δ᾽ ἀνεχώρησεν ὦχρός τέ microιν εἷλε παρειάς ὣς αὖτις καθ᾽ ὅmicroιλον ἔδυ Τρώων ἀγερώχων δείσας Ἀτρέος υἱὸν Ἀλέξανδρος θεοειδής Logo que o viu Menelau o guerreiro disciacutepulo de Ares como avanccedilava com passo arrogante na frente do exeacutercito muito exultante ficou como leatildeo esfaimado que encontra um cervo morto de pontas em galho ou uma cabra selvagem
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avidamente o devora ainda mesmo que catildees mui ligeiros lhe venham vindo no encalccedilo e pastores de aspecto robusto dessa maneira exultou Menelau quando Paacuteris o belo teve ante os olhos pensando que iria por fim castigaacute-lo Rapidamente do carro pulou sem que as armas soltasse Quando o formoso Alexandre que um deus imortal parecia o viu agrave frente dos outros sentiu conturbar-se-lhe o peito e para o meio dos seus recuou escapando da Morte Como se daacute quando algueacutem nos convales dos montes estaca em frente de uma serpente a tremerem-lhe as pernas e os joelhos e retrocede de um salto com o rosto sem cor todo medo por esse modo afundou para o meio dos Teucros valentes Paacuteris o divo Alexandre do filho de Atreu temeroso (III vv 21-37)
Chama-nos atenccedilatildeo os siacutemiles utilizados Primeiramente um que remete agrave caccedila (leatildeo
versus cervo ou cabra) depois um que mostra o enfrentamento homem versus animal
(homem versus serpente humano versus selvagem) Paacuteris eacute assemelhado agrave cabra e ao veado
Ambos satildeo animais que possuem relaccedilatildeo com o deus Dioniso (SUTER 1984 p 111) Aleacutem
disso satildeo a caccedila do leatildeo Este sobrepuja em forccedila o veado e a cabra bem como estaacute no topo
da cadeia alimentar desse ambiente selvagem O siacutemile no Canto XIII (vv489-495) tambeacutem eacute
revelador o exeacutercito troiano eacute composto de carneiros animal que serve de caccedila
Outro siacutemile relacionado ao nosso heroacutei nessa passagem eacute o do pastor que teme a
serpente Este eacute peculiarmente interessante a serpente eacute o siacutembolo de Zeus que sob o epiacuteteto
Xeacutenios garante o cumprimento das regras da hospitalidade (xeacutenia) Levando em consideraccedilatildeo
que Paacuteris desrespeitou a xeacutenia ao retirar Helena de Menelau durante sua estadia em Esparta
haacute bastante razatildeo para ele temer a ldquoserpenterdquo a ira de Zeus recai sobre Paacuteris mesmo que no
momento Zeus esteja do lado dos troianos A transgressatildeo do nosso heroacutei se sobressai
Quando Paacuteris entra em batalha ele estaacute vestindo uma pele de leopardo comum nas
representaccedilotildees dos arqueiros citas na imageacutetica (LISSARAGUE 2002 p 104 e 105)
Segundo Aristoacuteteles esse animal eacute comum na Aacutesia Menor (lugar onde fica Troia) sendo um
animal muito selvagem (ARISTOacuteTELES Histoacuteria dos Animais VIII 27 9) O leopardo eacute
um animal associado a Dioniso e estaacute presente frequentemente em suas representaccedilotildees
(COHEN 2012 p 462) A associaccedilatildeo de Paacuteris com esse deus eacute trabalhada por Ann Suter em
sua tese visto que ela mostra como a poesia iacircmbica39 (uma blame poetry ldquopoesia
acusatoacuteriardquo) estaacute ligada agrave construccedilatildeo da representaccedilatildeo de Paacuteris por Homero A Iliacuteada natildeo eacute o
iniacutecio de um processo discursivo mas parte dele outros gecircneros poeacuteticos que tramitavam pela
sociedade influenciaram na composiccedilatildeo da eacutepica homeacuterica Ann Suter ressalta que nos versos
39 A partiacutecula ldquo-amb-rdquo (-αmicroβ-) estaacute ligada aos cultos dionisiacuteacos e ldquodesigna canccedilotildees e danccedilas em sua honrardquo (SUTER 1984 p 105) como o dithyacuterambos o thriacuteambos e o iacutethymbos
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em que Priacuteamo insulta seus filhos ldquoo vocabulaacuterio necessaacuterio para elogio e acusaccedilatildeo eacute usado
aqui νεικέω [injuriar] e αἰνέω [elogiar]rdquo (SUTER 1984 p 96) Esses verbos aparecem no
aoristo (neiacutekesse ḗnēsrsquo) Paacuteris causa neiacutekos pelo seu ainoacutes a Afrodite Desse modo tanto a
ideia de que os troianos fazem parte de uma cultura de elogio (praise culture) quanto a de
que Paacuteris eacute um personagem acusaacutevel (blame figure) podem ser corroboradas a partir dessa
utilizaccedilatildeo de ambos vocabulaacuterios pelo poeta
Outro siacutemile nos chama atenccedilatildeo quando Paacuteris volta ao campo de batalha
οὐδὲ Πάρις δήθυνεν ἐν ὑψηλοῖσι δόmicroοισιν ἀλλ᾽ ὅ γ᾽ ἐπεὶ κατέδυ κλυτὰ τεύχεα ποικίλα χαλκῷ σεύατ᾽ ἔπειτ᾽ ἀνὰ ἄστυ ποσὶ κραιπνοῖσι πεποιθώς ὡς δ᾽ ὅτε τις στατὸς ἵππος ἀκοστήσας ἐπὶ φάτνῃ δεσmicroὸν ἀπορρήξας θείῃ πεδίοιο κροαίνων εἰωθὼς λούεσθαι ἐϋρρεῖος ποταmicroοῖο κυδιόων ὑψοῦ δὲ κάρη ἔχει ἀmicroφὶ δὲ χαῖται ὤmicroοις ἀΐσσονται ὃ δ᾽ ἀγλαΐηφι πεποιθὼς ῥίmicroφά ἑ γοῦνα φέρει microετά τ ἤθεα καὶ νοmicroὸν ἵππων ὣς υἱὸς Πριάmicroοιο Πάρις κατὰ Περγάmicroου ἄκρης40 τεύχεσι παmicroφαίνων ὥς τ᾽ ἠλέκτωρ ἐβεβήκει καγχαλόων ταχέες δὲ πόδες φέρον αἶψα δ᾽ ἔπειτα Ἕκτορα δῖον ἔτετmicroεν ἀδελφεὸν εὖτ᾽ ἄρ᾽ ἔmicroελλε στρέψεσθ᾽ ἐκ χώρης ὅθι ᾗ ὀάριζε γυναικί
Paacuteris tambeacutem natildeo ficou muito tempo na estacircncia elevada mas tendo as armas de bronze vestido de fino trabalho corta apressado a cidade nos raacutepidos peacutes confiado Como galopa um cavalo habituado no estaacutebulo quando pode do laccedilo escapar e fogoso a planiacutecie atravessa para ir banhar-se impaciente na bela corrente do rio cheio de orgulho soleva a cabeccedila por sobre as espaacuteduas bate-lhe a crina agitada consciente da proacutepria beleza levam-no os peacutes para o prado onde os outros cavalos se reuacutenem Paacuteris o filho de Priacuteamo assim desde do alto da Acroacutepole da sacra Peacutergamo envolto em couraccedila que a vista ofuscava Vem exultante seus raacutepidos peacutes o conduzem em pouco tempo aonde Heitor se encontrava o divino guerreiro que tinha precisamente deixado o local em que agrave esposa falara (VI vv 503-517)
Paacuteris eacute mostrado como um cavalo dentre cavalos assim ele se encaminha para a
batalha O cavalo eacute um siacutembolo de destaque social (eacute um animal muito caro difiacutecil de se
manter demanda bastante recursos) e de auxiacutelio (ele desloca o guerreiro na guerra bem como
serve agrave competiccedilatildeo esportiva ndash SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 169) Aleacutem disso eacute
um animal que representa o troiano como eacute frequentemente perceptiacutevel em Homero
Euriacutepides tambeacutem destaca essa caracteriacutestica deles denominando-os phiacutelippoi (literalmente
40 O termo ldquoacroacutepolerdquo (akroacutepolis) natildeo aparece no original trata-se do alto mesmo de Troia Contudo a raiz dos dois termos eacute a mesma
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ldquoamigos dos cavalosrdquo Alexandre fr 62f) Esse siacutemile aparece justamente quando Paacuteris
retorna para o campo de batalha ele estaacute disposto a auxiliar seus iacutesoi O cavalo tambeacutem eacute um
animal que oscila entre o mundo dos homens e dos deuses (SCHNAPP-GOURBEILLON
1981 p 162) corroborando o caraacuteter theoeidḗs de Paacuteris e a ideia defendida por Ann Suter de
que Paacuteris eacute um nome que tem relaccedilatildeo com o divino Homero o usa nesses versos ao se referir
a ele antes de comparaacute-lo a um cavalo
Alguns personagens (como Astyacuteanax que tambeacutem eacute chamado de Skamaacutendrios) teriam
nomes duplos um para ser usado costumeiramente e outro em casos especiais dentro de
grupos especiais este uacuteltimo relacionando-se agrave esfera do divino Ann Suter utiliza-se do
pensamento de R Lazzaroni que mostra que existe na epopeia uma ldquolinguagem dos deusesrdquo
e uma ldquolinguagem dos homensrdquo (SUTER 1984 p 28) O nome Paacuteris que eacute menos comum
na Iliacuteada do que Aleacutexandros eacute utilizado apenas pela famiacutelia e ldquoem contextos em que o poeta
deseja enfatizar sua divindade nesse caso como uma fonte de inspiraccedilatildeo para um guerreiro
em combaterdquo (SUTER 1984 p 31) Paacuteris tambeacutem teria conexatildeo com a ilha de Paros um dos
lugares de culto a Dioniso
Quando Heitor jaacute estaacute morrendo diz a Aquiles que ldquoO coraccedilatildeo tens de ferro
impossiacutevel me fora dobraacute-lo Que isso poreacutem contra ti natildeo provoque a vinganccedila dos deuses
quando tiveres de a vida perder muito embora esforccedilado das Portas Ceacuteias em frente aos
ataques de Paacuteris e Apolordquo [ἦ γὰρ σοί γε σιδήρεος ἐν φρεσὶ θυmicroός φράζεο νῦν microή τοί τι
θεῶν microήνιmicroα41 γένωmicroαι ἤmicroατι τῷ ὅτε κέν σε Πάρις καὶ Φοῖβος Ἀπόλλων ἐσθλὸν
ἐόντ᾽ ὀλέσωσιν ἐνὶ Σκαιῇσι πύλῃσιν] (XXII vv 357-360) Aqui novamente Paacuteris eacute usado
num sentido divino pois remete agrave sua ligaccedilatildeo com o deus Apolo arqueiro como ele e que
lhe auxilia a atingir sua gloacuteria maacutexima ao matar o melhor dos aqueus Aquiles
Em Alexandre (fr 42d) Euriacutepides coloca que ldquoQuando ele (Paacuteris) se tornou um
homem jovem e excedeu muitos em beleza e forccedila a ele foi dado um segundo nome
Alexandre porque ele espantou bandidos e protegeu o rebanhordquo [γενόmicroενος δὲ νεανίσκος
καὶ πολλῶν διαφέρων κάλλει τε καὶ ῥώmicroῃ αὖθις Ἀλέχανδρος προσωνοmicroάσθη λῃστὰς
ἀmicroυνόmicroενος καὶ τοῖς ποιmicroνίοις ἀλεξήσας] Assim aqui ldquoAleacutexandrosrdquo eacute um distintivo um
41 Mecircnin (de mecircnis) eacute a primeira palavra da Iliacuteada significa ldquoirardquo O ultraje feito agrave timḗ de Aquiles por Agamemnon (a partir do momento que este lhe toma um geacuteras privileacutegio que lhe foi destinado Briseida) gera nele uma mecircnis a qual causa pecircma a todos ao longo da guerra A Iliacuteada eacute a histoacuteria da ira de Aquiles e suas consequecircncias como pontuou Jaqueline de Romilly (ROMILLY sd p 18) A palavra mecircnis ao longo do poema eacute utilizada para designar o que tem a ver com essa ira de Aquiles segundo Gregory Nagy (NAGY 1999 p 73 e 74) e isso nesta passagem se verifica
70
segundo nome dado a uma pessoa que se destaca das outras Em As Troianas Helena usa
Paacuteris e Alexandre sem distinccedilatildeo
πρῶτον microὲν ἀρχὰς ἔτεκεν ἥδε τῶν κακῶν Πάριν τεκοῦσα δεύτερον δ᾽ ἀπώλεσε Τροίαν τε κἄmicro᾽ ὁ πρέσβυς οὐ κτανὼν βρέφος δαλοῦ πικρὸν microίmicroηmicro᾽ Ἀλέξανδρόν ποτε ἐνθένδε τἀπίλοιπ᾽ ἄκουσον ὡς ἔχει ἔκρινε τρισσὸν ζεῦγος ὅδε τριῶν θεῶν καὶ Παλλάδος microὲν ἦν Ἀλεξάνδρῳ δόσις Φρυξὶ στρατηγοῦνθ᾽ Ἑλλάδ᾽ ἐξανιστάναι Ἥρα δ᾽ ὑπέσχετ᾽ Ἀσιάδ᾽ Εὐρώπης θ᾽ ὅρους τυραννίδ᾽ ἕξειν εἴ σφε κρίνειεν Πάρις Κύπρις δὲ τοὐmicroὸν εἶδος ἐκπαγλουmicroένη δώσειν ὑπέσχετ᾽ εἰ θεὰς ὑπερδράmicroοι κάλλει [] ἦλθ᾽ οὐχὶ microικρὰν θεὸν ἔχων αὑτοῦ microέτα ὁ τῆσδ᾽ ἀλάστωρ εἴτ᾽ Ἀλέξανδρον θέλεις ὀνόmicroατι προσφωνεῖν νιν εἴτε καὶ Πάριν ὅν ὦ κάκιστε σοῖσιν ἐν δόmicroοις λιπὼν Σπάρτης ἀπῆρας νηὶ Κρησίαν χθόνα Primeiro essa aiacute gerou as origens dos males Paacuteris tendo gerado depois o velho destruiu Troacuteia e a mim ao natildeo matar o bebecirc acre imitaccedilatildeo de um ticcedilatildeo ndash Alexandre entatildeo A partir daiacute o restante escuta como eacute Aquele julgou um triplo jugo de trecircs deusas bem o dom de Palas para Alexandre era despovoar a Heacutelade comandando friacutegios Hera jurou que sobre a Aacutesia e os limites da Europa Paacuteris se a escolhesse teria a soberania Ciacutepris com minha aparecircncia se estonteando prometeu daacute-la se ultrapassasse as deusas em beleza [] [Paacuteris] Veio trazendo uma deusa natildeo miuacuteda consigo O nume vingador42 dessa aiacute se queres Chamar-lhe de Alexandre ou se de Paacuteris Deixando-o em tua casa oacute maldito43 De navio partiste de Esparta rumo a Creta (As Troianas vv 919-931 940-943 ndash grifos nossos)
O helenista Michael Lloyd chama a atenccedilatildeo para esse uso indistinto de Paacuteris e
Alexandre em Euriacutepides (LLOYD 1989 p 77) mas ele tambeacutem crecirc que esse uso eacute indistinto
em Homero o que discordamos mostramos com a anaacutelise de Ann Suter que eacute possiacutevel que
Paacuteris seja um nome divino e Alexandre um nome comum Cremos que essa indiferenccedila se daacute
em Euriacutepides porque nosso heroacutei em suas obras natildeo representa tanto um exemplo a ser
seguido mas porque ele eacute um baacuterbaros Paacuteris perde o caraacuteter helecircnico e helenizante que ele 42 Alaacutestōr eacute um gecircnio mau (ldquomauvais geacutenierdquo BAILLY 2000 p 73) o que reforccedila a ideia de Paacuteris como um causador de males 43 Kaacutekiste (vocativo de kaacutekistos) seria ldquoo pior de todosrdquo Aqui a palavra kakoacutes (que indica tanto o feio quanto o mau) aparece com o sufixo ndashistos que indica superlativo
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apresenta na Iliacuteada sendo aqui a suacutemula da alteridade completa ele tanto eacute o estrangeiro
como aquela pessoa indesejada na cidade
Quando comeccedilamos nossa pesquisa de graduaccedilatildeo natildeo tiacutenhamos conhecimento de
nenhum autor que tratasse de Paacuteris especificamente Conforme fomos pesquisando referecircncias
bibliograacuteficas descobrimos uma pequena discussatildeo filoloacutegica sobre essa dupla denominaccedilatildeo
de Paacuteris a qual eacute interessante recuperarmos Aliaacutes sobre Paacuteris especificamente apenas a
filologia debruccedilou-se
John A Scott (1913) crecirc que Aleacutexandros eacute uma traduccedilatildeo para o grego de Paacuteris De
etimologia imprecisa este seria um nome estrangeiro jaacute aquele formado pela composiccedilatildeo do
verbo aleacutexō (proteger defender) e do substantivo androacutes (homem varatildeo) seria grego porque
ambas as palavras que o formam satildeo gregas Aleacutem disso esse autor crecirc que Paacuteris eacute o grande
heroacutei da tradiccedilatildeo miacutetica em detrimento de Heitor seu irmatildeo Ele defende que Homero criou
Heitor para encarnar todos os valores heroicos que pertenciam a Paacuteris personagem o qual por
motivos morais natildeo poderia ser representado de maneira tatildeo heroica O nome Heacutektōr jaacute
existia nas tabuinhas de Linear B (e-ko-to) escrita da eacutepoca dos palaacutecios (XVII-XI aC)
(CHADWICK 1970 p 98) mas natildeo sabemos se Homero o pega emprestado para nomear
seu personagem ou se Heitor mesmo jaacute era um parte da tradiccedilatildeo miacutetica sendo recuperado por
Homero
Samuel E Bassett (1920) natildeo concorda nem discorda de John Scott mas mostra que haacute
pesquisas as quais apontam que Aleacutexandros poderia ser derivado do nome Alaksandu um
priacutencipe de Wilǔsa regiatildeo que seria a proacutepria Troia incluindo assim os avanccedilos da
Arqueologia Hititologistas defendem que Troia natildeo eacute nada mais que a regiatildeo denominada
Trūiša44
Na contracorrente dessa hipoacutetese de Scott veio Ann Suter (1984) com sua tese de
doutorado ParisAlexandros a study in Homeric technique of characterization com a
qual noacutes concordamos em muitos pontos Ela afirma que Paacuteris eacute mais utilizado num contexto
iacutentimo (pela famiacutelia ou seja troianos) sim mas que Aleacutexandros tambeacutem eacute usado pela sua
famiacutelia sendo o nome mais recorrente para denomina-lo Ela atribui esse fato agrave ideia de que
Paacuteris seria um nome divino utilizando a ideia de R Lazzaroni sobre a linguagem dos homens
6 A partiacutecula -iša eacute um sufixo dividindo a palavra (Trū-iša) temos como raiz o elemento trū- Em grego Troia eacute Troiacuteē (Τροίη) e provavelmete deriva de um vocaacutebulo mais antigo Trṓē (Τρώη) Trṓ-ē Como os hititas natildeo conheciam o som de ldquoōrdquo (ω) o -ū- poderia fazer esse papel (KLOEKHORST 2013 p 46) Assim a Troiacutee de Homero era a Trūiša hitita assim como o Aleacutexandros de Homero era o Alaksandu hitita Para mais informaccedilotildees ver sessatildeo V ndash Hipoacuteteses
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e a linguagem dos deuses em Homero Assim como inuacutemeros outros personagens da tradiccedilatildeo
miacutetica e das obras homeacutericas o segundo nome (mais incomum) do nosso heroacutei seria aquele
que o eleva agrave condiccedilatildeo de um ser divinizado visto que estaacute em constante relaccedilatildeo com
Afrodite e com Helena (que na tradiccedilatildeo miacutetica transforma-se em uma divindade apoacutes a
morte)
A autora tambeacutem defende que Paacuteris natildeo eacute um nome desprovido de etimologia (o que
caracterizaria sua origem estrangeira) poderia ser derivado de Paros uma ilha grega que tem
estreita relaccedilatildeo com o culto a Dioniso e com os festivais que lhe homenageiam atraveacutes da
reacutecita de versos iacircmbicos A poesia derivada do iacircmbico eacute de caraacuteter ldquoculpabilizanterdquo (blame
poetry) na qual se culpa algueacutem por algo disforizando essa pessoa Arquiacuteloco expoente
desse tipo de poesia era ele mesmo conhecido como Arquiacuteloco de Paros
Aleacutem disso ao observar que Paacuteris tem menos epiacutetetos que Aleacutexandros e que o
desenvolvimento formulaico daquela denominaccedilatildeo eacute precaacuterio em detrimento desta (o que natildeo
deveria acontecer pois Paacuteris eacute um nome que melhor se encaixa no hexacircmetro dactiacutelico) ela
chega agrave conclusatildeo de que aquela denominaccedilatildeo eacute mais recente do que Aleacutexandros sendo
impossiacutevel esta denominaccedilatildeo ser uma traduccedilatildeo daquela
Irene J F de Jong (1987) vai de encontro agrave tese de Scott argumentando que Paacuteris eacute um
nome utilizado no contexto troiano e Aleacutexandros em um contexto grego para ressaltar o
caraacuteter ldquoestrangeirordquo (DE JONG 1987 p 127) do personagem Segundo de Jong ldquoO poeta da
Iliacuteada ao manter o nome lsquotroianorsquo lsquoPaacuterisrsquo pode ter intencionado introduzir um elemento
lsquorealistarsquo na representaccedilatildeo dos troianos como falantes de uma liacutengua estrangeirardquo (DE JONG
1987 p 127) Assim ela concorda com John Scott pois Aleacutexandros continua sendo uma
traduccedilatildeo de Paacuteris Contudo ela confessa em uma nota de rodapeacute natildeo ter lido a tese de Ann
Suter embora a conheccedila (1987 p 127 n 4)
Discordando de todos os autores acima elencados Michael Lloyd (1989) argumenta que
natildeo haacute uma utilizaccedilatildeo consciente de Homero de Paacuteris e Aleacutexandros afirmando que natildeo haacute
distinccedilatildeo no emprego desses dois nomes em Homero e estendendo a anaacutelise a Euriacutepides Na
trageacutedia Paacuteris eacute utilizado mais vezes ainda do que Alexandre e Helena mesmo em As
Troianas utiliza os dois nomes para se referir a ele (LLOYD 1989 p 78) Ele conclui
assim que ldquoA nacionalidade do falante natildeo tem nada que ver com qual nome eacute usadordquo
(LLOYD 1989 p 77)
Essa discussatildeo eacute importante porque conforme o que os autores defendem pode-se
estabelecer uma relaccedilatildeo entre a denominaccedilatildeo dupla e o caraacuteter diferenciado de Paacuteris na Iliacuteada
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como representante de uma alteridade Entretanto acreditamos que essa dupla denominaccedilatildeo
tem a ver mais com um problema intratextual do que com um problema de definiccedilatildeo eacutetnica
pois concordamos com a anaacutelise de Ann Suter A definiccedilatildeo do caraacuteter diacutespar de Paacuteris como
um representante da alteridade e como um personagem-siacutentese das fronteiras eacutetnicas que
separas aqueus e troianos estaacute mais ligada ao discurso do poeta imbricado de uma ideologia
acerca dele e de seu grupo eacutetnico do que a escolha de um nome Esta estaacute mais ligada agrave
percepccedilatildeo de Paacuteris como um representante da aristocracia heroica
No seacuteculo V aC natildeo haacute duacutevidas de que os troianos pertencem a uma cultura Outra
de que eles satildeo baacuterbaroi Contudo natildeo podemos afirmar o mesmo para Homero Como
vimos muitos autores colocam os troianos como o Outro estrangeiro jaacute nas epopeias Eles
satildeo um Outro mas ainda natildeo deixam de partilhar um coacutedigo de conduta mesmo que com
suas reapropriaccedilotildees grego Satildeo essas reaprorpiaccedilotildees que configuram os troianos num grupo
eacutetnico distinto dos aqueus A ideia de que os troianos satildeo estrangeiros surge a posteriori
quando satildeo ldquofrigianizadosrdquo (HALL 1989 p 39) Um exemplo claro dessa ldquofrigianizaccedilatildeordquo
estaacute no diaacutelogo entre Orestes e o friacutegio em Orestes (vv 1506-1519 ndash grifos nossos)
ΟΡΕΣΤΗΣ ποῦ στιν οὗτος ὃς πέφευγεν ἐκ δόmicroων τοὐmicroὸν ξίφος ΦΡΥΞ προσκυνῶ σ᾽ ἄναξ νόmicroοισι βαρβάροισι προσπίτνων ΟΡΕΣΤΗΣ οὐκ ἐν Ἰλίῳ τάδ᾽ ἐστίν ἀλλ᾽ ἐν Ἀργείᾳ χθονί ΦΡΥΞ πανταχοῦ ζῆν ἡδὺ microᾶλλον ἢ θανεῖν τοῖς σώφροσιν ΟΡΕΣΤΗΣ οὔτι που κραυγὴν ἔθηκας Μενέλεῳ βοηδροmicroεῖν ΦΡΥΞ σοὶ microὲν οὖν ἔγωγ᾽ ἀmicroύνειν ἀξιώτερος γὰρ εἶ ΟΡΕΣΤΗΣ ἐνδίκως ἡ Τυνδάρειος ἆρα παῖς διώλετο ΦΡΥΞ ἐνδικώτατ᾽ εἴ γε λαιmicroοὺς εἶχε τριπτύχους θανεῖν ΟΡΕΣΤΗΣ δειλίᾳ γλώσσῃ χαρίζῃ τἄνδον οὐχ οὕτω φρονῶν ΦΡΥΞ οὐ γάρ ἥτις Ἑλλάδ᾽ αὐτοῖς Φρυξὶ διελυmicroήνατο ΟΡΕΣΤΗΣ ὄmicroοσον mdash εἰ δὲ microή κτενῶ σε mdash microὴ λέγειν ἐmicroὴν χάριν
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ΦΡΥΞ τὴν ἐmicroὴν ψυχὴν κατώmicroοσ᾽ ἣν ἂν εὐορκοῖmicro᾽ ἐγώ ΟΡΕΣΤΗΣ ὧδε κἀν Τροίᾳ σίδηρος πᾶσι Φρυξὶν ἦν φόβος ΦΡΥΞ ἄπεχε φάσγανον πέλας γὰρ δεινὸν ἀνταυγεῖ φόνον ORESTES Onde estaacute aquele que fugiu do palaacutecio agrave minha espada FRIacuteGIO (prosternando-se diante de Orestes) Eu te sauacutedo senhor prostrando-me segundo os modos baacuterbaros ORESTES Aqui natildeo estamos em Iacutelion mas em terra argiva FRIacuteGIO Em toda parte eacute mais doce viver do que morrer para os homens sensatos ORESTES Natildeo gritaste por acaso para que socorressem Menelau FRIacuteGIO Eu Pelo contraacuterio para que defendessem a ti Eacute que tu mereces mais ORESTES Foi entatildeo com justiccedila que a filha de Tindaacutereo morreu FRIacuteGIO Com toda a justiccedila Tivesse ela ao menos trecircs gargantas para morrer
ORESTES Por covardia procuras agradar com a liacutengua mas natildeo pensas assim no teu iacutentimo FRIacuteGIO Pois natildeo foi essa mulher a que arruinou a Heacutelade e com a Heacutelade os proacuteprios friacutegios ORESTES Jura ndash se natildeo mato-te ndash que natildeo falas para me agradar FRIacuteGIO Pela minha vida juro que eacute coisa por que farei jura sincera ORESTES Tambeacutem em Troia tinham assim medo do ferro os friacutegios todos FRIacuteGIO Afasta o glaacutedio Porque estando perto reflete uma morte terriacutevel
Aqui o friacutegio demostra ser um completo covarde prosterna-se grita Ele se mostra
extremamente temeroso pela sua vida e o seu discurso tenta dissuadir Orestes de assassinaacute-lo
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parece com o que se sucede no episoacutedio de Glauco e Diomedes no qual o embate fatal eacute
adiado E assim como Glauco o troiano de Orestes consegue que o priacutencipe o deixe vivo A
covardia a prosternaccedilatildeo e o grito satildeo traccedilos comuns de diferenciaccedilatildeo eacutetnica nas trageacutedias e
aqui aparece mais um elemento que jaacute se encontra na Iliacuteada a dissuasatildeo pela fala
Paacuteris aleacutem de ser um troiano eacute o causador da Guerra de Troia que fez perecer toda
uma linhagem de heroacuteis Em uma eacutepoca de guerra ele eacute a metaacutefora preferida tanto para os
espartanos (os inimigos na guerra) quanto para os atenienses perniciosos Nas trageacutedias de
Euriacutepides mesmo os espartanos satildeo representados de maneira pouco louvaacutevel a fronteira
entre o que eacute grego e o que natildeo eacute tambeacutem se encontra em crise e os espartanos (gregos) satildeo
comparados a baacuterbaros em suas trageacutedias O referencial de comparaccedilatildeo muitas vezes eacute o
troiano como acontece em Orestes Tiacutendaro pai de Helena ao reprimir Menelau por ouvir
Orestes matricida fala ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres estado muito tempo entre os baacuterbaros
[os troianos]rdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (EURIacutePIDES Orestes v 485)
Em Euriacutepides as questotildees acerca da alteridade entre aqueus e troianos e da etnicidade
do povo grego ficam mais claras em detrimento da Iliacuteada esse tragedioacutegrafo jaacute denomina os
troianos de baacuterbaroi termo que inexiste em Homero como vimos Euriacutepides encena suas
peccedilas no seacuteculo V aC num contexto no qual a poacutelis dos atenienses se encontra consolidada
mas jaacute entrava em crise em virtude da Guerra do Peloponeso Segundo Karl Reinhardt o
teatro euridipiano eacute exatamente o termocircmetro da crise A geraccedilatildeo jovem se coloca contra a
antiga mas ambas tecircm a chance de falar quase simultaneamente atraveacutes de seus poetas ndash
Euriacutepides e Soacutefocles ndash pois eles vivem num mesmo contexto (REINHARDT 2011 p 20)
O interessante eacute perceber que algumas caracteriacutesticas troianas vatildeo se perpetuar na
configuraccedilatildeo dos personagens sendo utilizadas para designar os baacuterbaros em geral o Outro
homogecircneo grego sobretudo os persas outro por excelecircncia O desrespeito agrave hospitalidade
comum ao Ciclope da Odisseia e a Paacuteris na Iliacuteada retornaraacute na trageacutedia como sinal de
barbaacuterie Quando Menelau chega ao Egito diz ldquoNenhum homem tem um coraccedilatildeo tatildeo
incivilizado a ponto de natildeo me dar comida ao ouvir meu nomerdquo [ἀνὴρ γὰρ οὐδεὶς ὧδε
βάρβαρος φρένας ὃς ὄνοmicro᾽ ἀκούσας τοὐmicroὸν οὐ δώσει βοράν] (EURIacutePIDES Helena vv
501-502) Seraacute comum por exemplo atribuir aos persas o domiacutenio do arco e contrastaacute-lo com
o modo grego de fazer guerra o tradicional face a face (HALL 1989 p 85) Eacute sobre esse
aspecto o modo de fazer guerra que nos debruccedilaremos em nosso proacuteximo capiacutetulo
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CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI
ldquoEu estarei com vocecirc
Todas as vezes que contar a minha histoacuteria Por ser tudo o que eu fizrdquo
(Remember Me ndash James Horner)
Vamos analisar nesse capiacutetulo como Paacuteris eacute representado como heroacutei e guerreiro e
como essa representaccedilatildeo se liga agrave nossa comparaacutevel Defendemos que Paacuteris eacute um exemplo de
como se agir na Iliacuteada visto que essa eacute a caracteriacutestica primordial do heroacutei homeacuterico e em
Euriacutepides o seu estatuto heroico eacute afetado pois ele eacute visto mais um ldquopastorrdquo (boukoacutelos v
Ifigecircnia em Aacuteulis v 574) ldquoescravordquo (douacutelos v Alexandre fr 48) ldquomuacutesicordquo (Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 576-577) e principalmente ldquobaacuterbarordquo designaccedilotildees comuns a ele na poesia traacutegica
que destoam da construccedilatildeo da personalidade heroica ideal Isso natildeo significa contudo que a
caracterizaccedilatildeo feita por Homero natildeo influencie na construccedilatildeo de Paacuteris em Euriacutepides visto que
defendemos que jaacute em Homero existe uma alteridade entre aqueus e troianos
Se o filme Troia (dir Wolfgang Petersen EUA 2004) natildeo ganhou muita
popularidade pelo excesso de liberdade poeacutetica em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da Iliacuteada essa epiacutegrafe
da muacutesica-tema do filme Remember Me escrita por James Horner e interpretada por Josh
Groban e Tanja Tzarovska pelo contraacuterio traz algo intriacutenseco agrave caracterizaccedilatildeo do heroacutei ele eacute
tudo o que ele faz em batalha Satildeo as faccedilanhas heroicas que datildeo dinamicidade agrave epopeia que
satildeo de fato o material sobre o qual elas se debruccedilam Na trageacutedia essas faccedilanhas e os dramas
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dos heroacuteis miacuteticos satildeo o material cataacutertico o qual o tragedioacutegrafo utiliza para compor suas
tramas Os atos dos heroacuteis satildeo exemplares para aqueles que os ouvem natildeo os heroacuteis per se
Essa ideia jaacute se encontra na Iliacuteada e para tratarmos de Paacuteris essa noccedilatildeo nos eacute
fundamental pois ele eacute um heroacutei agrave medida que demonstra atraveacutes dos seus atos como um
homem deve agir O locus privilegiado de atuaccedilatildeo de um heroacutei nesse poema eacute a batalha o
tema mesmo da Iliacuteada eacute a Guerra de Troia em si com os heroacuteis aqueus e troianos se
enfrentando fisicamente Esse cenaacuterio beacutelico encontramos somente na Iliacuteada pois em
Euriacutepides natildeo existe a possibilidade de analisarmos o comportamento de Paacuteris como um
combatente ele natildeo eacute mostrado como um nas suas trageacutedias Aliaacutes todas as trageacutedias do ciclo
troiano que analisamos natildeo se desenrolam na guerra Alexandre se passa antes da guerra
enquanto todas as outras se passam depois
Isso denota uma preferecircncia de Euriacutepides por mostrar um ambiente poacutes-beacutelico ele
trabalha com as consequecircncias de uma guerra para um povo Assim satildeo comuns temaacuteticas
que dizem respeito ao dilaceramento do nuacutecleo familiar da escravizaccedilatildeo daquele que era
livre privilegiando agraves vezes certos tipos de personagens que agrave primeira vista natildeo mereceriam
um destaque em uma obra traacutegica como por exemplo as escravas troianas Eacute por esse motivo
que muitos autores afirmam que Euriacutepides daacute voz a esses personagens ldquomarginaisrdquo (SAIumlD
2002 p 62) pois a degradaccedilatildeo que separa os extremos sociais (gregobaacuterbaro livreescravo)
eacute bem mais temiacutevel em uma sociedade em guerra a esposa do cidadatildeo pode virar a concubina
do inimigo Eacute soacute Atenas perder a guerra
A definiccedilatildeo do caraacuteter heroico muda ao longo dos seacuteculos sendo o heroacutei traacutegico
semelhante mas natildeo igual ao homeacuterico Gyumlorgy Lukaacutecs filoacutesofo alematildeo crecirc que o heroacutei
traacutegico traz um ldquobrilho renovadordquo sobre o homeacuterico explicando-o e transfigurando-o
(LUKAacuteCS 2000 p 33) Jacqueline de Romilly mostra como o sofrimento eacute intriacutenseco ao
heroacutei traacutegico ldquoPara ser traacutegico o heroacutei deve sofrer [] no espiacuterito mesmo do gecircnero traacutegico
a necessidade de pintar heroacuteis imperfeitos e atormentados em uma palavra de toma-los ndash
eles as exceccedilotildees ndash como paradigma da condiccedilatildeo humana e de seus malesrdquo (2013 p 210)
Na trageacutedia a noccedilatildeo de hamartiacutea (falha) se torna mais latente e o heroacutei eacute justamente
aquele a quem seus erros implicam em uma trama por exemplo Paacuteris em Alexandre eacute o
camponecircs eacute o habitante do ambiente selvagem (a montanha ndash PELOSO 2002 p 37) que
penetra na cidade reivindicando um reconhecimento o qual a priori natildeo lhe seria adequado
(os precircmios oriundos da vitoacuteria nos jogos troianos) Graccedilas aos erros de Clitemnestra e
Orestes os Aacutetridas sofrem uma desestruturaccedilatildeo familiar que vai se desenrolar em Orestes
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O heroacutei homeacuterico tambeacutem eacute falho mas essa falha estaacute ligada agrave aacutetē (perdiccedilatildeo) se
ocasiona uma situaccedilatildeo de desequiliacutebrio e o heroacutei tem que fazer por onde revertecirc-la Paacuteris e
Aquiles se assemelham nesse ponto ambos incorrem em aacutetē A causa da perdiccedilatildeo de Paacuteris eacute o
desrespeito da eacutetica hospitaleira retirando Helena do palaacutecio de seu esposo e a consequecircncia
direta eacute a proacutepria Guerra de Troia Jaacute a causa da perdiccedilatildeo de Aquiles eacute a recusa da suacuteplica
Agamecircmnon reconhece seu estado de aacutetē causado pela privaccedilatildeo do geacuteras (privileacutegio) de
Aquiles (a escrava troiana Briseida) e suplica a Aquiles seu retorno agrave guerra atraveacutes de uma
litḗ (suacuteplica) mas este a ignora Impedir que a aacutetē de outrem seja eliminada com a recusa de
uma suacuteplica acaba gerando um estado de aacutetē no proacuteprio Aquiles
O historiador Christopher Jones mostra como o termo hḗrōs (heroacutei) muda de acepccedilatildeo
ao longo tempo primeiramente essa palavra foi utilizada para denominar aqueles seres
puacuteblicos extraordinaacuterios executores de faccedilanhas mais extraordinaacuterias ainda os quais se
configuravam nos personagens principais das histoacuterias contadas pelas epopeias Com o passar
dos seacuteculos essa designaccedilatildeo foi ganhando uma nova roupagem e se infiltrando cada vez mais
nos interstiacutecios da sociedade e da vida privada Segundo Jones isso natildeo eacute uma decadecircncia
tampouco uma ressignificaccedilatildeo do termo visto que ele continua a ser usado para denominar
aqueles que tecircm poder no poacutes-morte mesmo numa acepccedilatildeo cristatilde O que acontece eacute a difusatildeo
e a continuidade da utilizaccedilatildeo de hḗrōs possibilitada pelo processo de expansatildeo da cultura
helecircnica o qual culmina no helenismo (c IV-I aC)
O termo passa a designar natildeo somente os heroacuteis da mitologia mas tambeacutem as pessoas
que se destacam na vida puacuteblica sobretudo ldquoaqueles que caiacuteram na guerra ou deram suas
vidas a serviccedilo de suas comunidades de outras maneirasrdquo (JONES 2010 p 1) Para Jones os
heroacuteis homeacutericos satildeo todos aqueles que lutaram em Troia seja grego ou troiano e tecircm mais a
ver com uma acepccedilatildeo ligada a senhor (lord) do que a guerreiro (warrior) No entanto como
vimos eacute na guerra que esse senhor pode demonstrar seu valor um senhor eacute necessariamente
um guerreiro no mundo homeacuterico Jones entretanto mostra uma resistecircncia da Atenas
Claacutessica em designar um morto comum de hḗrōs o que significa que eles mantecircm um certo
tradicionalismo em considerar apenas os heroacuteis mitoloacutegicos como hḗrōes (JONES 2010 p 3
4 e 21)
Em nossa pesquisa esbarramos sempre com a ideia de que Paacuteris na verdade seria um
anti-heroacutei pois ele apresenta uma seacuterie de atitudes que o caracterizariam como sendo uma
pessoa covarde medrosa etc Em primeiro lugar eacute necessaacuterio termos em mente que os heroacuteis
natildeo satildeo uma massa indistinta eles constituem um grupo social fechado com um coacutedigo de
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conduta modelar mas natildeo podemos nos esquecer de que uma sociedade eacute composta de
indiviacuteduos cada um com sua personalidade especiacutefica O eu natildeo se anula por causa do noacutes
ele se agrega ao noacutes contribuindo com sua singularidade ao todo
Vaacuterios autores se debruccedilaram de algum modo sobre os heroacuteis da Antiguidade de
maneira mais ou menos ampla tentando defini-los Joseph Campbell Robert Aubreton
Cedric Whitman Karl Kereacutenyi Gregory Nagy Seth L Schein Mariacutea Cecilia Colombani
Anastasia Serghidou David J Lunt e Christopher Jones Agrave exceccedilatildeo de Campbell Kereacutenyi
Serghidou e Lunt geralmente eles datildeo destaque aos heroacuteis homeacutericos Eacute interessante perceber
que natildeo haacute divergecircncia de opiniotildees mas complementaridade
Joseph Campbell foi pioneiro no tratamento dos heroacuteis seu estudo eacute de fins da deacutecada
de 1940 Muito influenciado pela Psicanaacutelise procura delinear o perfil do heroacutei em geral em
O heroacutei de mil faces Ele cria uma tipologia atraveacutes de um estudo comparado de vaacuterias
mitologias que abrange todos os heroacuteis de todas as eacutepocas e tradiccedilotildees epopeicas afirma que
esse personagem passa obrigatoriamente por doze estaacutegios em sua vida ela eacute permeada por
ritos de passagem Campbell natildeo fala de um heroacutei especiacutefico ou de uma determinada tradiccedilatildeo
heroica ele conceitua o heroacutei o vecirc como um homem que morreu como um ldquohomem
modernordquo mas que como um ldquohomem eternordquo ou seja ldquoaperfeiccediloado natildeo especiacutefico e
universalrdquo renasce para ldquoretornar ao nosso meio transfigurado e ensinar a liccedilatildeo de vida
renovada que aprendeurdquo (CAMPBELL 2007 p 28) Desse modo ele corrobora o valor
educacional que um heroacutei possui para aqueles que o rememoram aleacutem de pontuar o seu
caraacuteter mortal
Na deacutecada de 1950 Robert Aubreton escreveu um livro introdutoacuterio sobre Homero que
aborda de maneira diferente os heroacuteis Esse autor crecirc que haja uma psicologia em Homero
afirmando que a representaccedilatildeo deles eacute tatildeo humana que ldquoacabamos por consideraacute-lo natildeo mais
como heroacutei sobre-humano mas como homem igual a noacutes que por sua virtude e piedade
chega a se superarrdquo (AUBRETON 1968 p 188) Essa ldquopsicologia homeacutericardquo consiste
sobretudo na consideraccedilatildeo do heroacutei natildeo apenas em seu caraacuteter coletivo mas em sua
individualidade em sua especificidade Desse modo Aubreton divide esse capiacutetulo o qual ele
dedica aos heroacuteis de acordo com sua anaacutelise de cada um daqueles que ele crecirc serem
importantes nas epopeias Aquiles Paacutetroclo Agamecircmnon Heitor Paacuteris Menelau
Androcircmaca Helena Odisseu Peneacutelope Telecircmaco Nausiacutecaa e Eumeu Observemos que ele
inclui as mulheres (ldquoheroiacutenasrdquo segundo o autor) e o porqueiro Eumeu nessa seleccedilatildeo
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aumentando a gama de possibilidades de definiccedilatildeo do heroacutei ele eacute um(a) personagem miacutetico
corroborando a ideia de Christopher Jones acerca do que eacute o hḗrōs na eacutepica
Enquanto Aubreton publicava seu livro Cedric Whitman escrevia seu Homer and the
heroic tradition lanccedilado em 1958 e bem recebido quase todos os autores que trabalham com
heroacuteis mencionam seu trabalho em seus proacuteprios Ele tenta compreender a Iliacuteada agrave luz das
noccedilotildees que regem aquela sociedade representada por Homero (e a relaccedilatildeo existente entre os
heroacuteis e essa sociedade) Para esse autor a Iliacuteada jaacute apresenta um discurso bem proacuteximo do
traacutegico no qual a humanidade dos heroacuteis eacute representada de modo mais acentuado e a
demonstraccedilatildeo de sentimentos (como raiva amor compadecimento) eacute comum Whitman
tambeacutem trabalha com a noccedilatildeo do heroacutei como modelo como aquele que passa todas essas
noccedilotildees aos ouvintes da epopeia construindo um estudo de caso de Aquiles
No mesmo ano Karl Kereacutenyi publicou o seu Os Heroacuteis Gregos o livro eacute o segundo
volume da seacuterie Mitologia Grega cujo primeiro volume trata dos deuses gregos A proposta
do livro eacute apresentar os heroacuteis gregos a leitores acadecircmicos ou natildeo debruccedilando-se natildeo
somente sobre os relatos escritos sobre eles mas tambeacutem a cultura material tratando tambeacutem
da questatildeo do culto ao heroacutei e de sua historicidade Para Kereacutenyi os heroacuteis se mostram
ldquoentrelaccedilados com a histoacuteria com os acontecimentos natildeo de um tempo primevo que estaacute fora
do tempo mas do tempo histoacuterico [] Eles surgem diante de noacutes como se tivessem de fato
existidordquo (KEREacuteNYI 1998 p 17) Ao escrever sobre a guerra de Troia mais uma vez
Aquiles eacute o grande destaque da anaacutelise assim como faz nosso proacuteximo autor
Gregory Nagy em seu livro The best of the Achaeans concepts of the hero in
Archaic Greek poetry (1979) trata dessa tradiccedilatildeo anterior agrave composiccedilatildeo dos eacutepicos
defendendo que sua unidade se daacute justamente por essa origem em comum deles Nagy procura
delinear um perfil de Aquiles o qual ele considera o principal heroacutei da Iliacuteada comparando-o
com outros heroacuteis (Heitor e Neoptoacutelemo) e resgata do eacutepico uma seacuterie de noccedilotildees (como
kleacuteos aacutekhos peacutenthos timḗ) imprescindiacuteveis tanto para a compreensatildeo da funccedilatildeo das epopeias
quanto dos cultos heroicos Ele defende que esse culto surgiu simultaneamente agrave composiccedilatildeo
dos eacutepicos e que os jogos ldquode coroardquo (Oliacutempicos Iacutestmicos Deacutelficos e Nemeios) satildeo oriundos
da praacutetica de jogos fuacutenebres possuindo pois uma estrita relaccedilatildeo com o proacuteprio culto ao heroacutei
Nas epopeias no entanto natildeo haacute a menccedilatildeo ao culto dos heroacuteis pelo fato de esse culto ser
estritamente local ele defende que jaacute existe uma conotaccedilatildeo pan-helecircnica nelas e colocar uma
praacutetica religiosa que destoe da religiatildeo oliacutempica comprometeria esse caraacuteter
81
Seth L Schein em The mortal hero an introduction to Homerrsquos Iliad (1984)
aproxima-se muito da anaacutelise de Nagy com relaccedilatildeo ao culto heroico ele natildeo existe nas
epopeias de Homero porque iria de encontro a toda a pan-helenicidade dos poemas definida
pela representaccedilatildeo apenas do culto aos deuses olimpianos Ele natildeo faz um estudo de caso de
nenhum heroacutei tentando abordaacute-los de maneira a tentar defini-los dentro da Iliacuteada Schein se
aproxima de Whitman em sua abordagem ao definir o heroacutei sob a oacutetica acentuada do humano
comparando o discurso das epopeias ao discurso traacutegico ele enfatiza o fato da morte ser a
uacutenica certeza que se tem acerca do destino de um heroacutei A proacutepria etimologia da palavra
hḗrōs denotaria isso
Hērōs parece ser etimologicamente relacionado com a palavra hōrē ldquoestaccedilatildeordquo [] em Homero hōrē significa em particular a ldquoestaccedilatildeo da primaverardquo e um ldquoheroacuteirdquo eacute ldquosazonalrdquo quando ele chega ao seu esplendor como flores na primavera soacute para ser cortado uma vez e para sempre (SCHEIN 2010 p 69)
Mariacutea Cecilia Colombani dedica dois pequenos toacutepicos aos heroacuteis em seu livro
introdutoacuterio sobre Homero (2005) Eles tratam da loacutegica aristocraacutetica e da funccedilatildeo da
soberania Colombani aborda uma seacuterie de noccedilotildees caras agrave aristocracia guerreira e que
perpassam todo o coacutedigo de conduta dessa sociedade que Homero representa Ela faz das
palavras de Louis Gernet que na deacutecada de 1960 publicou seu Anthropologie de la Gregravece
Antique as suas ldquoOs heroacuteis formam uma espeacutecie aparte entre os deuses e os homens seus
representantes satildeo efetivamente homens mas homens que depois da morte adquiriram uma
condiccedilatildeo e estatuto sobre-humanosrdquo (GERNET apud COLOMBANI 2005 p 58) Esses
homens segundo Colombani satildeo representantes de valores sociais (COLOMBANI 2005 p
60) e satildeo rememorados pela sociedade poliacuteade como exemplos a serem seguidos
Anastasia Serghidou escreveu um artigo sobre o heroacutei traacutegico especificamente no livro
Heacuteros et heroiumlnes dans les mythes et les cultes grecs organizado por Vinciane Pirenne-
Delforge e Emilio Suaacuterez de la Torre Ela acredita que ele eacute ldquofundado sobre a ideia de uma
divinizaccedilatildeo impossiacutevelrdquo sendo a imagem do heroacutei na trageacutedia ldquosemelhante ao homem mortal
ao qual o modelo heroico se coloca como aquele do personagem livre e do bom cidadatildeordquo
(SERGHIDOU 2000 p 1) A autora trabalha com a imagem do heroacutei decaiacutedo (heacuteros deacutechu)
colocando em primeiro plano a anaacutelise da dicotomia livre versus escravos O heroacutei eacute o homem
livre construiacutedo em contraposiccedilatildeo ao escravo e estaacute mais perto dos humanos do que os heroacuteis
de outrora
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David J Lunt em sua tese Athletes heroes and the quest for imortality in Ancient
Greece (2010) tambeacutem retorna agrave questatildeo do culto aos heroacuteis aproximando-se tambeacutem da
abordagem de Nagy embora natildeo o mencione em sua discussatildeo bibliograacutefica Seu destaque
estaacute em mostrar como o heroacutei homeacuterico serviu de exemplo para os homens da poacutelis sobretudo
para os atletas Para isso ele delineia com mais precisatildeo o que seria um heroacutei para os gregos e
os modos pelos quais eles foram rememorados comeccedilando pelos heroacuteis homeacutericos passando
por Teseu os Dioacutescuros (Castor e Poacutelux) e Heacuteracles ateacute chegar nos heroacuteis de ldquocarne e ossordquo
que foram rememorados nas competiccedilotildees atleacuteticas atraveacutes das reacutecitas em sua homenagem
No mesmo ano Christopher Jones lanccedila New heroes in Antiquity from Achilles to
Antinoos livro cujo objetivo como vimos eacute mostrar como o termo hḗrōs (heroacutei) foi utilizado
ao longo do tempo para denominar natildeo mais aqueles grandes heroacuteis do passado mas tambeacutem
pessoas comuns que se destacavam de algum modo na sociedade ressaltando como a difusatildeo
dessas histoacuterias miacuteticas foram imprescindiacuteveis para que essa definiccedilatildeo penetrasse nos
interstiacutecios das sociedades do periacuteodo claacutessico Assim sua anaacutelise perpassa desde o heroacutei
homeacuterico (miacutetico) ateacute o heroacutei ldquoheroicizadordquo no caso o romano Antiacutenoo que morreu em 130
dC
Em virtude dessa revisatildeo bibliograacutefica de tratamento do heroacutei podemos concluir que a)
a mortalidade do heroacutei eacute constantemente reforccedilada b) eles natildeo estatildeo ligados apenas a um
plano mortal mas a um divino tambeacutem seja por terem parentescos com deuses seja por
serem protegidos de um seja por serem cultuados como divindades apoacutes suas mortes c) o
heroacutei eacute exemplar pois eacute portador de um coacutedigo de conduta no qual as suas aretaiacute estatildeo
sempre postas agrave prova sobretudo na batalha e assim os mortais comuns querem chegar o
mais proacuteximo possiacutevel dessa gloacuteria heroica seja associando um heroacutei agrave sua famiacutelia seja sendo
vitorioso em suas atividades d) eles tecircm uma materialidade histoacuterica pois os gregos criam na
veracidade dos mitos em que eles acreditavam e) o heroacutei traacutegico eacute mais falho do que o
homeacuterico o qual sempre procura restabelecer sua posiccedilatildeo de destaque com suas accedilotildees
Nenhum desses autores que trabalham diretamente com os heroacuteis fazem um estudo
especiacutefico de comparaccedilatildeo entre os heroacuteis homeacutericos e traacutegicos ou sobre Paacuteris seja na poesia
eacutepica seja na poesia traacutegica Contudo essas obras aqui mencionadas seratildeo fulcrais para a
anaacutelise de Paacuteris pois ele pertence agrave categoria dos heroacuteis
Na Iliacuteada Paacuteris eacute o heroacutei da paixatildeo seus epiacutetetos natildeo satildeo beacutelicos como os de outros
personagens e ele natildeo eacute o melhor guerreiro troiano como veremos Tambeacutem natildeo eacute um
personagem belicoso Como lembra Aubreton ldquoHomero faz de Paacuteris o homem amoroso por
83
excelecircncia e que natildeo pode resistir agrave paixatildeo que os deuses lhe inculcaramrdquo (AUBRETON
1968 p 202)
Enquanto o nosso heroacutei se arma para a guerra eacute designado por dicircos (divino
semelhante aos ceacuteus ndash ldquosky-likerdquo (SUTER 1984 p 59) epiacuteteto comum a outros personagens
como seu proacuteprio irmatildeo Tambeacutem aparece outro epiacuteteto recorrente de Paacuteris ldquomarido de
Helena cacheadardquo (Eleacutenēs poacutesis ēykoacutemoio) reforccedilando sua relaccedilatildeo com Helena Ann Suter
chama a atenccedilatildeo que essa construccedilatildeo formulaica aparece somente em relaccedilatildeo a Zeus e Hera
(1984 p 68) e que das cinco vezes que aparece quatro satildeo dentro do campo de batalha
(1984 p 70) Isso significa para a autora que ldquoa sua imagem como Ἑλένης πόσις ἠϋκόmicroοιο
eacute aquela de um guerreiro bem-sucedido e conselheiro [] Talvez Paacuteris natildeo se sinta em casa
no campo de batalha por natureza mas quando ele de fato luta eacute por causa de sua relaccedilatildeo
com Helenardquo (1984 p 70-1) Eacute o que Robert Aubreton afirma
Tendo conquistado a sua ldquodeusardquo [Helena] nada mais interessa a Paacuteris senatildeo conservaacute-la Para tanto satildeo-lhes necessaacuterias a vida e a salvaguarda de Troacuteia Ele soacute luta em caso extremo quando Troia corre perigo quando por conseguinte seu amor estaacute ameaccedilado Eacute hostil a qualquer compromisso que possa resultar em devolver a Menelau aquela que lhe arrebatou (AUBRETON 1956 p 169)
Essa relaccedilatildeo intriacutenseca de Paacuteris com a paixatildeo (seja pelos seus epiacutetetos seja pela
relaccedilatildeo protecional que Afrodite estabelece com ele) tem uma relaccedilatildeo latente com a sua
proacutepria atuaccedilatildeo na batalha como excelente heroacutei do amor ele deixa a desejar como heroacutei
beacutelico Amor e guerra natildeo combinam Paacuteris treme e muda de cor ao se defrontar com Menelau
(III v 35) ele fica ocirckhroacutes paacutelido
Ainda na Iliacuteada a makhlosyacutenē a luxuacuteria de Paacuteris aparece como a engrenagem-
princiacutepio dessa aacutetē cuja consequecircncia eacute a proacutepria guerra (visto que se remete agrave escolha de
Afrodite) (XXIV vv 25-30) Em Euriacutepides essa ideia de que o enlace amoroso entre Paacuteris e
Helena eacute o causador da guerra retorna (As Troianas vv 398-399 vv 780-781 Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 467-468 Helena vv 25-30 vv 223-224 vv666-668) embora o tragedioacutegrafo
oscile dependendo da obra e de quem eacute o enunciador (se grego ou troiano) em atribuir a
Helena um papel ativo ou passivo em sua retirada do palaacutecio
No Canto VII da Iliacuteada (vv 354-365) os troianos se reuacutenem em assembleia Antenor
um conselheiro afirma que o que se deve fazer eacute devolver Helena e os tesouros aos gregos
Paacuteris no entanto descarta essa possibilidade natildeo se opondo no entanto a entregar os bens
materiais O problema eacute Helena ele jamais a devolveraacute Paacuteris natildeo faz questatildeo das riquezas as
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quais parece natildeo lhe faltam no Canto XI ele inclusive utiliza-se delas para ldquoincentivarrdquo
Antiacutemaco a fazer oposiccedilatildeo contra a devoluccedilatildeo da esposa ldquo[Teucro] Prostra a Pisandro
depois e o nas pugnas intreacutepido Hipoacuteloco filhos de Antiacutemaco o saacutebio que mais do que
todos fazia oposiccedilatildeo para Helena natildeo ser restituiacuteda ao marido ndash fruto de belos presentes por
parte de Paacuteris muito ourordquo [αὐτὰρ ὃ Πείσανδρόν τε καὶ Ἱππόλοχον microενεχάρmicroην υἱέας
Ἀντιmicroάχοιο δαΐφρονος ὅς ῥα microάλιστα χρυσὸν Ἀλεξάνδροιο δεδεγmicroένος ἀγλαὰ δῶρα
οὐκ εἴασχ᾽ Ἑλένην δόmicroεναι ξανθῷ Μενελάῳ] (XI vv 122-125 ndash grifos nossos) Fica claro
que Paacuteris ldquocomprardquo a opiniatildeo de Antiacutemaco com ldquoaglaaacute docircrardquo e ldquomaacutelista khrysogravenrdquo
Essa ideia de que os troianos possuem ouro em demasia eacute recorrente em Euriacutepides Em
Heacutecuba (vv 10-12) Polidoro relata que Priacuteamo ldquocomigo muito ouro enviourdquo [πολὺν δὲ σὺν
ἐmicroοὶ χρυσὸν ἐκπέmicroπει ndash grifos nossos] para o traacutecio que o hospedou (e acabou o matando
para ficar com todo esse ouro) Novamente (vv 492-493) os troianos satildeo mostrados
possuindo muito ouro quando Taltiacutebio pergunta se a mulher que ele vecirc eacute Heacutecuba a ldquorainha
dos friacutegios de muito ourordquo [ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν] Em As Troianas no
agṓn entre Heacutecuba e Helena a primeira ressalta que a segunda ldquoVislumbrando-o [Paacuteris] com
trajes baacuterbaros e com ouro luzindo teu espiacuterito desvairou-serdquo [ὃν εἰσιδοῦσα βαρβάροις
ἐσθήmicroασι χρυσῷ τε λαmicroπρὸν ἐξεmicroαργώθης φρένας ndash grifos nossos] (vv 991-992)
Em Helena o adjetivo polykhryacutesos (no acusativo plural polykhryacutesous) eacute usado para
designar os doacutemoi (construccedilotildees) troianos Em Ifigecircnia em Aacuteulis Agamemnon comenta o
princiacutepio da guerra quando ldquoO homem que julgou as deusas (assim eacute a histoacuteria que os
homens contam) veio da Friacutegia para a Lacedemocircnia vestido roupas de cores vibrantes e
brilhando com joias de ouro a luxuacuteria dos baacuterbarosrdquo [ἐλθὼν δ᾽ ἐκ Φρυγῶν ὁ τὰς θεὰς
κρίνων ὅδ᾽ ὡς ὁ microῦθος Ἀργείων ἔχει Λακεδαίmicroον᾽ ἀνθηρὸς microὲν εἱmicroάτων στολῇ
χρυσῷ δὲ λαmicroπρός βαρβάρῳ χλιδήmicroατι] (vv 71-74) Esse excerto revela que o ouro eacute a
ldquoluxuacuteria dos baacuterbarosrdquo a predileccedilatildeo pelo ouro eacute um costume do Outro e o distingue dos
gregos A helenista Helen Bacon afirma que Euriacutepides eacute menos detalhista que Soacutefocles e
Eacutesquilo ao descrever as vestimentas baacuterbaras embora o embate com o baacuterbaro esteja mais
presente em suas obras mas que o ouro em excesso a riqueza das roupas eacute um elemento
distintivo do baacuterbaro (BACON 1955 p 87 123 e 124) servindo assim como um marcador
eacutetnico Muito ouro eacute sinal de excesso por isso eacute que os baacuterbaros satildeo caracterizados com o
adorno de muitas joias (HALL 1989 p 80)
Em Androcircmaca esse adjetivo (no dativo polychryacutesō) eacute novamente utilizado para
designar os troianos (v 2) Contudo a proacutepria Hermiacuteone (v 147-154) uma grega usa muito
85
ouro e a proacutepria Helena se deixa seduzir pelo ouro de Paacuteris como vimos no excerto de As
Troianas Natildeo podemos deixar de observar que Hermione eacute uma espartana
Os espartanos nas obras de Euriacutepides satildeo representados como pessoas que se
assemelham aos baacuterbaros como fica claro por exemplo na passagem em que Tiacutendaro
recrimina Menelau dizendo-lhe ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres vivido tanto tempo entre os
baacuterbarosrdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (Orestes v 485) Euriacutepides os
representa dessa maneira porque eles satildeo os inimigos dos atenienses na Guerra do
Peloponeso o grego pode voltar a um estado de barbaacuterie como acontece com os espartanos
Assim representar Hermiacuteone usando muito ouro ou depreciar Menelau (como acontece em
Orestes ou Ifigecircnia em Aacuteulis que inclusive ganha o primeiro precircmio na competiccedilatildeo traacutegica
em que foi encenada) eacute representar o espartano como semelhante ao baacuterbaro porque eacute digno
de cometer atos baacuterbaros sobretudo durante a guerra
Entretanto por mais que Euriacutepides faccedila essas correlaccedilotildees dada a natureza ldquotemaacutetica e
simboacutelicardquo de suas obras (BACON 1955 p 124) o troiano ainda eacute o referencial de barbaacuterie
em Androcircmaca Hermione afirma agrave personagem-tiacutetulo que ldquonatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade helecircnicardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) pedindo para que ela natildeo
introduza costumes do seu ldquobaacuterbaron geacutenosrdquo laacute Em Orestes a caracterizaccedilatildeo do friacutegio como
um homem medroso covarde que se prosterna e elabora um discurso defensivo para manter a
sua vida corrobora seu pertencimento ao domiacutenio dos baacuterbaros
Na Iliacuteada o excesso de ouro de Troia natildeo designa barbaacuterie mas definitivamente
designa uma alteridade Somente os troianos satildeo relacionados agrave posse do ouro (II vv 229-
231) e eles satildeo justamente o inimigo na guerra Embora os heroacuteis homeacutericos sejam regidos
por um ideal de conduta comum os troianos satildeo diferentes dos aqueus o uso que eles fazem
desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes
Paacuteris se utiliza de todos os meios para manter a posse de sua amada Helena desde
suas riquezas ateacute mesmo sua vida ele soacute entra em batalha quando se vecirc a ponto de perde-la
Por isso ele natildeo possui tantos epiacutetetos ligados agrave guerra Heroacuteis como Aquiles Agamecircmnon
Menelau Odisseu e o proacuteprio Heitor satildeo qualificados com adjetivos relacionados ao ambiente
beacutelico No Canto III da Iliacuteada no qual Helena mostra alguns heroacuteis a Priacuteamo fica evidente
isso Vejamos os epiacutetetos desses guerreiros em comparaccedilatildeo aos de Paacuteris no supracitado
Canto
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Agamemnon ldquohomem de aspecto imponenterdquo (v 166) ldquorei poderosordquo (v 178) ldquotatildeo belo e
de tal corpulecircnciardquo (v 167) ldquotatildeo belo conspectordquo (v 169) ldquomajestade tatildeo
granderdquo (v 170) ldquode Atreu descendenterdquo (v 178) ldquotatildeo grande rei chefe de
homens quatildeo forte e notaacutevel guerreirordquo (v 179) ldquoventurosordquo (v 182) ldquofilho
dileto dos deusesrdquo (v182)
Odisseu ldquode espaldas mais largas de ver e de peito mais amplordquo (v 194) ldquoguieiro
velosordquo (v 197) ldquoastucioso guerreirordquo (v 200) ldquoem toda sorte de ardis
entendido e varatildeo prudentiacutessimordquo (v 203) ldquoo astuciosordquo (v 216) ldquoindiviacuteduo
bisonho que o cetro na matildeo mantivesse () imaginara talvez ser pessoa
inexperta ou insensatardquo (vv 218-220)
Menelau ldquode Ares forte disciacutepulordquo [areḯphilos] (v 206)
Aacutejax
Telamocircnio
ldquotatildeo belo e de tal corpulecircnciardquo (v 226) ldquode bem maior estatura e de espaldas
mais largas que os outrosrdquo (v 227) ldquobaluarte dos homens Aquivosrdquo (v 229)
ldquogiganterdquo (v 229)
Heitor ldquode penacho ondulanterdquo (v 83)
Paacuteris ldquodivordquo [theoeidḗs dicircos] (vv 16 37 100 328 437) ldquobelordquo (v 27) ldquode
formas divinasrdquo (v 58) ldquode belas feiccedilotildeesrdquo (v 39) ldquosedutor de mulheresrdquo (v
39) ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a belezardquo (v 54) ldquomarido
de Helena de belos cabelosrdquo (v 328)
Agamemnon eacute o aacutenax ele eacute o chefe da expediccedilatildeo rei de todos os reis eacute o chefe de
homens o notaacutevel guerreiro aqui estaacute denotado seu aspecto beacutelico sobretudo pela sua
habilidade de comando Odisseu com a sua astuacutecia tambeacutem possui um aspecto beacutelico isso se
daacute porque essa meacutetis natildeo estaacute ligada apenas agrave dissimulaccedilatildeo agrave mentira mas ao planejamento
mesmo necessaacuterio a uma guerra Eacute ele que tem a ideia do cavalo de Troia que garante a
vitoacuteria dos gregos essa guerra foi ganha pela meacutetis Menelau eacute amigo de Ares (areḯphilos)
deus da guerra e Aacutejax eacute o gigante corpulento personagem cuja forccedila fiacutesica sobrepuja por
exemplo a forccedila da meacutetis ligada agrave inteligecircncia Do mesmo modo o penacho de Heitor se
refere a uma parte do seu elmo que por sua vez eacute parte da armadura de um guerreiro e ainda
pode se referir agrave sua habilidade com os cavalos (ressaltada em outros Cantos) pois o penacho
lembra a crina desse animal Como vimos o cavalo eacute necessaacuterio agrave guerra deslocando os
guerreiros no campo de batalha e agraves vezes auxiliando-os nas lutas Paacuteris natildeo possui epiacutetetos
87
beacutelicos e o uacutenico elemento relacionado agrave guerra que ele possui eacute o arco o qual eacute
desvalorizado
Na trageacutedia o arco eacute a arma do baacuterbaro por excelecircncia que por sua vez se
materializa na figura do persa Paacuteris eacute mostrado como um arqueiro duas vezes (Heacutecuba vv
387-388 Orestes v 1409) nas trageacutedias que analisamos assim como Teucro (Helena vv
75-77) A diferenccedila eacute que tanto em Heacutecuba quanto em Orestes o arco de Paacuteris eacute mencionado
em contexto beacutelico e em Helena Teucro usa seu arco fora da guerra e o iria utilizaacute-lo para
matar uma mulher natildeo um homem Homero tambeacutem traz essa ideia de diferenciaccedilatildeo de uso
do arco
Paacuteris entra na guerra com ldquoarco e espadardquo (toacutexa kai xiacutephos) e ldquoduas lanccedilas na matildeordquo
(dyacuteo kekorythmeacutena khalkocirc) Paacuteris eacute um arqueiro e isso fica bastante claro ao longo da Iliacuteada
Se teve uma arma que natildeo mudou muito ao longo do tempo foi o arco (KEEGAN 1995 p
179) embora variantes tenham surgido (como a besta ndash crossbow) ele eacute oriundo do Oriente
tendo entrado de uma vez por todas nas fileiras da infantaria grega atraveacutes do contato dos
cretenses com a Siacuteria e o Egito (SUTHERLAND 2001 p 113)
Na Guerra do Peloponeso (431-404 aC) os arqueiros ganharam um destaque muito
grande Marcos Alvito afirma inclusive que as forccedilas secundaacuterias (peltastas arqueiros
fundibulaacuterios e demais tropas ligeiras) tiveram um papel decisivo (SOUZA 1988 p 64)
embora a falange hopliacutetica sempre fora preferida a esse modo de luta (LISSARAGUE 2002
p 117) Essa preferecircncia se daacute em virtude de uma tradiccedilatildeo de se preterir as tropas ligeiras em
detrimento de uma forma de luta aristocraacutetica que implica na valorizaccedilatildeo do combate corpo a
corpo
Essa valorizaccedilatildeo jaacute comeccedila na Iliacuteada haacute pouquiacutessimos arqueiros e talvez se todos
eles morressem em batalha a Guerra de Troia natildeo seria encerrada por causa disso afinal
ldquoAqueus e Troianos se batem corpo-a-corpo e natildeo ficam agrave espera de apoio de flechas ou
de lanccedilas de longe atiradas lutando de bem pertordquo (Ἀχαιοί τε Τρῶές τε δῄουν
ἀλλήλους αὐτοσχεδόν οὐδ᾽ ἄρα τοί γε τόξων ἀϊκὰς ἀmicroφὶς microένον οὐδ᾽ ἔτ᾽ ἀκόντων
ἀλλ᾽ οἵ γ᾽ ἐγγύθεν ἱστάmicroενοι) (XV vv 707-712 ndash grifos nossos)
Mencionados haacute seis arqueiros na Iliacuteada Filoctetes e Teucro do lado aqueu Paacuteris
Pacircndaro Heleno e Doacutelon do lado troiano Tanto Paacuteris quanto Pacircndaro e Heleno usam o arco
em batalha Doacutelon aparece em apenas um Canto da Iliacuteada para morrer nas matildeos de Odisseu e
Diomedes e sua funccedilatildeo eacute a de espiar os aqueus natildeo de lutar contra eles natildeo chegando a
entrar em batalhas Filoctetes vem acompanhado de um grupo de arqueiros que natildeo chegam a
88
entrar em accedilatildeo Tampouco o proacuteprio heroacutei o faz ele foi abandonado em uma ilha por seus
companheiros no caminho para Troia em decorrecircncia de um ferimento que exalava um odor
terriacutevel
Haacute ainda o povo da Loacutecrida um povo arqueiro o qual foi auxiliar os aqueus Eacute
mencionado uma vez no poema mas ele natildeo entra em batalha os loacutecrios satildeo medrosos
demais para isso (XII vv 712-718) Do lado aqueu Teucro eacute o uacutenico que luta em batalha
com o arco e ele aparece em Helena de Euriacutepides portando-o ele quase atira na esposa de
Menelau durante a peccedila Ele vai parar no Egito onde estaacute tambeacutem Helena O motivo Ele foi
expulso de sua terra pelo pai Ser exilado era algo vexatoacuterio o economista Eacutemile Mireaux
mostra que os exilados comeccedilam a surgir por volta do seacuteculo VII aC mas que a praacutetica de
um membro de uma comunidade se exilar natildeo era tatildeo incomum antes dessa data
A estes contingentes de desenraizados deve-se finalmente acrescentar todos aqueles que uma vinganccedila um crime um homiciacutedio agraves vezes acidental obrigaram a deixar a famiacutelia e a cidade e a procurar o refuacutegio da hospitalidade agraves vezes para sempre Pois quando o fugitivo culpado eacute apenas um bastardo ou mesmo um simples filho segundo raras satildeo as famiacutelias dispostas a assumir o encargo do pagamento de uma composiccedilatildeo para recuperar um membro que em regra geral natildeo eacute senatildeo um encargo suplementar para o patrimocircnio familiar (MIREAUX sd p 255)
Na Atenas Claacutessica a praacutetica do ostracismo vem reforccedilar a ideia de que ser privado de
viver em sua terra era um dos piores castigos os cidadatildeos atenienses escreviam em um
pedaccedilo de ceracircmica oacutestrakon o nome de quem deveria ser exilado por ser perigoso agrave ordem
democraacutetica Teucro em Helena representa algueacutem indesejado o que corrobora a ideia de
que o arco era uma arma que denotava vileza Ser privado de sua poacutelis era o equivalente a
estar morto (HALL 1997 p 97)
Mas falta algum arqueiro nesse time aqueu natildeo Ou foi esquecido o famoso arco de
Odisseu objeto que definiraacute o destino de Peneacutelope no palaacutecio de Iacutetaca Justamente seu arco
estaacute em casa Odisseu natildeo o utiliza na guerra Aqui o arco tem uma funccedilatildeo outra a qual natildeo
se perdera atraveacutes do tempo caccedila e esporte passatempos comuns da aristocracia Desse
modo a maioria do contingente de arquearia eacute oriundo do lado troiano da guerra
Os arqueiros natildeo lutam face a face atiram de longe suas setas O seu comportamento
na Iliacuteada eacute bastante peculiar eles compartilham de uma comunicaccedilatildeo natildeo-verbal e verbal
bastante parecida escondem-se e jactam-se quando ferem o inimigo (por exemplo V vv
100-106 XIII vv 593-597 vv 712-718) Aleacutem disso fugir e sentir medo eacute bem mais comum
entre eles do que entre os outros guerreiros (por exemplo III vv 33-37 XII vv 712-718)
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Esse comportamento natildeo eacute adequado dentro do coacutedigo de conduta guerreira o que torna o
grupo dos arqueiros de certa forma marginalizado no campo de batalha pertencendo a uma
categoria hieraacuterquica inferior agrave daqueles que usam a lanccedila ou a espada na luta
Paacuteris aparece na Iliacuteada pela primeira vez no Canto III os dois exeacutercitos se aproximam
e ele chama os aqueus para lutar em um embate singular (III vv 15-20) quando um guerreiro
luta sozinho com outro corpo-a-corpo Esse tipo de combate eacute o que mais acontece nessa
epopeia Mesmo numa batalha coletiva em que todo o exeacutercito estaacute lutando satildeo batalhas
singulares que ocorrem sabemos o nome de quem mata e de quem morre
Por isso que natildeo podemos dizer que haacute a valorizaccedilatildeo somente de um em detrimento do
outro ambos ndash morto e assassino ndash satildeo relembrados Jean-Pierre Vernant e Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo se debruccedilaram de maneiras diferentes sobre esse tema da bela morte utilizando as
mesmas passagens da Iliacuteada As suas noccedilotildees resumem-se nos diagramas abaixo
No primeiro diagrama vemos a visatildeo de Vernant agravequeles que morrem em batalha eacute
implicada uma seacuterie de caracteriacutesticas que os tornam aacuteristoi (os melhores) Eacute o fato de morrer
em batalha que lhe daacute esse estatuto Para Rennoacute (segundo diagrama) natildeo eacute a sua morte que
lhe implica a qualidade de aacuteristos mas a morte dos outros matando em batalha que se
consegue angariar para si essas seacuteries de caracteriacutesticas configurando-se pois em aacuteristoi
Quando esses guerreiros implacaacuteveis esses aacuteristoi morrem eacute que se daacute a bela morte pois foi
a morte de pessoas honoraacuteveis Cremos que tanto Vernant quanto Rennoacute natildeo satildeo visotildees
diacutespares mas complementares acerca da bela morte Tanto uma concepccedilatildeo quanto outra estaacute
presente na Iliacuteada Homero ldquoequilibra igualmente a grandeza dos assassinos e o paacutethos
(sofrimento) dos assassinadosrdquo (SCHEIN 2010 p 72)
Nesse embate singular contra Menelau ele se veste antes (vv 328-339) A descriccedilatildeo eacute
longa porque no proacuteprio vestir-se haacute um processo e uma estrutura formulaica 1) cnecircmides
(ldquocaneleirasrdquo) 2) couraccedila 3) espada 4) escudo 5) elmo e 6) lanccedila Aqui estaacute basicamente
90
todos os apetrechos necessaacuterios a um guerreiro e os quais estaratildeo presentes na armadura do
hoacuteplita Isso eacute interessante para que possamos comparar com o que a Arqueologia tem
trazido para noacutes Natildeo haacute por exemplo registros arqueoloacutegicos de cnecircmides no periacuteodo de
desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) como haacute no Poliacuteade Arcaico mas isso natildeo impede
que elas natildeo fossem feitas naquele periacuteodo em um material pereciacutevel (ZANON 2004 p
136) O mesmo acontece com as couraccedilas mas nada tambeacutem impede que elas fossem
derretidas para a reutilizaccedilatildeo do metal (ZANON 2004 p 137)
A espada (xiacutephos) que Paacuteris traz com cravos de prata tem correspondente
arqueoloacutegico de origem minoica esse tipo de espada natildeo era muito forte e quebrava saindo a
lacircmina do cabo Assim o guerreiro ficava desarmado (ZANON 2004 p 139) Embora natildeo
saibamos como eacute a espada de Menelau (soacute nos eacute dito que esse heroacutei se armou do mesmo
modo que Paacuteris) ela se quebra no decorrer da luta singular Isso mostra que o poeta da Iliacuteada
possuiacutea um conhecimento da cultura material palaciana Contudo esse tipo de espada natildeo
servia para corte (como acontece na epopeia) apenas para perfuraccedilatildeo Espadas que cortam e
perfuram soacute apareceriam por volta de 1200 aC (ZANON 2004 p 140)
Esse eacute mais um exemplo de mistura perioacutedica a espada corta e perfura como eacute de
conhecimento da audiecircncia homeacuterica mas o aspecto dela eacute o de uma espada palaciana
ldquoHomerordquo segundo a arqueoacuteloga brasileira Camila Aline Zanon ldquojuntou esses retalhos e os
costurou com tal primazia que somente com o surgimento da Arqueologia eacute que pudemos
diferenciar um pouco dos seus elementos constitutivos no tocante a essas eacutepocasrdquo (2004 p
146) Isso denota tambeacutem que ele natildeo ignorava as praacuteticas beacutelicas o que nos ajuda a
compreender mais a representaccedilatildeo de Paacuteris Outro ponto interessante reside no fato de que a
couraccedila que Paacuteris veste natildeo eacute sua eacute de Licaacuteone seu irmatildeo Nosso heroacutei natildeo possui sua
armadura completa corroborando a sua habilidade como arqueiro esse guerreiro fazia parte
das tropas ligeiras natildeo das pesadas Os membros daquela precisavam se despir da armadura
completa pesada para poder exercer sua funccedilatildeo na guerra perseguir o inimigo Eles
geralmente eram pessoas de menor condiccedilatildeo financeira que natildeo podiam arcar com um
armamento completo ou ateacute mesmo mercenaacuterios estrangeiros Eram fundibulaacuterios peltastas
arqueiros essas armas satildeo muito mais baratas
As batalhas singulares seguem uma ordem tambeacutem primeiro haacute o tiro de lanccedilas soacute a
partir daiacute que o embate corpo a corpo com espadas se desenrola (III vv 346-360) Aqui o
tiro de Paacuteris natildeo fere nem mesmo a armadura de Menelau enquanto o tiro deste atravessa o
escudo e seu khitṓn sua tuacutenica por baixo da armadura Paacuteris se encurva impedindo que algo
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pior lhe aconteccedila A luta continua e Menelau passa a atacar Paacuteris com a espada que se
quebra Issonatildeo eacute atribuiacuteda agrave sua fragilidade mas a um desiacutegnio dos deuses Contudo como
vimos era passiacutevel de isso acontecer
Afrodite vendo a desvantagem desse heroacutei o retira do campo de batalha colocando-o
no taacutelamo agrave espera de Helena Natildeo fosse a intervenccedilatildeo da deusa Menelau teria alcanccedilado
alto kŷdos ele eacute o valor que os deuses atribuem ao homem Nas palavras da filoacutesofa argentina
Mariacutea Cecilia Colombani ldquose kucircdos [sic] descende dos deuses kleacuteos ascende ateacute elesrdquo
(DETIENNECOLOMBANI 2005 p 52) Leslie Kurk acrescenta que aquele que possui
kŷdos tem um ldquopoder especial conferido por um deus que faz um heroacutei invenciacutevelrdquo (KURK
apud LUNT 2010 p 64) Se um homem natildeo demonstra ser digno desse valor ele morre
aacutephantos (invisiacutevel) e nṓnymnos (sem nome sem gloacuteria)
No Canto VI (vv 521-525) Heitor ao ver nosso heroacutei afirma que nenhum anḗr
poderia deixar de valorizar (atimaacuteō) seus ldquotrabalhos na guerrardquo (eacutergon maacutekhēs) mas que natildeo
quer os exercer gerando aiacuteskhos (vergonha) Esse verbo (atimaacuteō) eacute composto de duas partes
o prefixo de negaccedilatildeo a- e o verbo timaacuteō (valorizar) que daacute origem agrave palavra timḗ uma das
noccedilotildees mais caras ao guerreiro ela eacute o valor de uma pessoa Para um guerreiro o campo de
batalha eacute o locus privilegiado de demonstraccedilatildeo desse valor de sua honra Desse modo como
vimos eacute na Iliacuteada mais do que na Odisseia que os heroacuteis tecircm a sua timḗ posta a prova
Richard B Rutherford sintetiza bem o que significa essa honra na Greacutecia antiga
No coraccedilatildeo do sistema de valores dos heroacuteis de Homero estaacute a honra τιmicroή expressa pelo respeito de seus pares e personificada em formas tangiacuteveis ndash tesouros presentes mulheres um lugar honoraacutevel no banquete Em tempo de guerra eacute inevitaacutevel que a honra seja ganha sobretudo pelas proezas em batalha habilidade como um liacuteder e um lutador Outras qualidades satildeo tambeacutem admiradas ndash habilidade como orador piedade bom senso e conselho lealdade hospitalidade gentileza mas essas satildeo secundaacuterias e a uacuteltima poderia de fato estar sem lugar no combate (RUTHERFORD 1996 p 40)
Segundo Redfield a timḗ eacute a medida de um homem em relaccedilatildeo ao outro implicando
numa comparaccedilatildeo de um indiviacuteduo com outro Isso soacute eacute possiacutevel se esses homens estatildeo
inseridos em uma sociedade na qual existe uma publicidade das accedilotildees45 ou seja na qual se
verifique uma uniatildeo do que entendemos hoje como vida privada e vida puacuteblica O valor de um
45 A sociedade grega eacute uma sociedade agoniacutestica Esse termo natildeo existe na liacutengua portuguesa eacute um adjetivo derivado de um processo de aportuguesamento cuja base etimoloacutegica eacute a palavra aacutegon (competiccedilatildeo) Foi utilizado para caracterizar a sociedade helecircnica no que diz respeito agrave noccedilatildeo de competiccedilatildeo o indiviacuteduo estaacute sempre sob o olhar do puacuteblico sendo sinalizado por ele quando comete atos dignos (honrados) e indignos (vergonhosos)
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homem se lhe era atribuiacutedo natildeo por ele mesmo mas por outros homens Esse reconhecimento
eacute o que configura a kleacuteos a gloacuteria (ou reputaccedilatildeo)46 Esta eacute a gloacuteria dada pelos homens agravequeles
que se destacam Enquanto a vida tem um fim a kleacuteos eacute imortal pois ela se daacute atraveacutes da
rememoraccedilatildeo desses mortos grandiosos seja atraveacutes da oralidade ndash o canto do aedo ou a
narraccedilatildeo de mitos47 ndash seja atraveacutes da construccedilatildeo de tuacutemulos Na Iliacuteada uma passagem chama
atenccedilatildeo para isso trata-se de uma fala de Heitor (VII vv 81-91) Eacute no Canto VII tambeacutem (v 516) que Paacuteris recebe uma designaccedilatildeo interessante hyiograves
Priaacutemoio Ann Suter chama atenccedilatildeo para ela pois estaacute numa passagem que ldquoimplica numa
total reversatildeo da caracterizaccedilatildeo de covarde para heroacutei de mulherengo [womanizer] para
guerreirordquo (1984 p 71) Paacuteris como veremos depois de desafiar os guerreiros aqueus acaba
sendo enfrentado por Menelau e foge retornando depois para um combate singular Afrodite
ainda o retira da guerra e ele soacute volta a ela no Canto VII Justamente aqui no Canto que
intermedia sua fuga e seu retorno tanto no plano semacircntico quanto no linguiacutestico ocorre o
turning point de Paacuteris
No Canto VII tambeacutem Paacuteris mata seu primeiro adversaacuterio na Iliacuteada (vv 8-10) Ele eacute
Meneacutestio um korynḗtēs guerreiro que porta maccedila uma espeacutecie de porrete ou seja natildeo
utiliza as armas convencionais de guerra homeacuterica (espada ou lanccedila) Ele tambeacutem faz parte
das tropas ligeiras do exeacutercito aqueu assim como Paacuteris que eacute arqueiro do lado troiano Haacute
portanto uma equiparidade na luta o toxoacutetēs lutando contra o korynḗtēs No Canto seguinte
No Canto VIII Paacuteris continua demonstrar sua qualidade de arqueiro ele fere um dos cavalos
de Nestor com seu arco (VIII vv 80-84)
Paacuteris tambeacutem retorna agrave accedilatildeo no Canto XI Eacute nesse conjunto de Cantos (XI ao XIII)
que Paacuteris mais se mostra um guerreiro ativo utilizando sua arma principal o arco e flecha
Ele fere Macaacuteone afastando-o da luta e depois Euriacutepilo que estava retirando a armadura de
Apisaacuteone morto em batalha (XI vv504-509 vv 581-584) Outro alvo seu eacute Diomedes (XI
vv 369-395) Nosso heroacutei sai de um esconderijo (loacutekhos) e jacta-se A foacutermula utilizada eacute
ldquoeukhoacutemenos eacutepos ēuacutedardquo tiacutepica dessas situaccedilotildees de vangloacuteria (MARTIN 1989 p 29) Esse eacute
46 ldquoPara os gregos antigosrdquo segundo David Lunt ldquoa imortalidade heroica consistia em dois componentes gloacuteria e fama (kleacuteos) e honras cultuais (timḗ)rdquo (LUNT 2010 p 83) O culto ao heroacutei natildeo eacute mostrado na Iliacuteada a arqueologia jaacute mostrou que ele jaacute existia na eacutepoca de Homero (JONES 2010 p 14) A explicaccedilatildeo de Seth L Schein para o aedo da Iliacuteada e da Odisseia exclui-lo estaria no caraacuteter pan-helecircnico das obras ldquo[] a religiatildeo olimpiana de Homero eacute pan-helecircnica [] Homero transcende os limites do culto regional e local para criar na poesia uma unidade religiosa que natildeo existia historicamenterdquo (SCHEIN 2010 p 49) Christopher P Jones jaacute afirma o contraacuterio Homero influenciou o culto aos heroacuteis (JONES 2010 p 14) 47 David Lunt ao mostrar a etimologia da palavra kleacuteos mostra tambeacutem que ela tem uma estreita ligaccedilatildeo com essa cultura oral klyacuteein eacute ouvir Assim a ldquokleacuteos soacute pode ser possuiacuteda se algueacutem a proclama e algueacutem a escutardquo (LUNT 2010 p 88)
93
o comportamento tiacutepico de um arqueiro e por isso que Diomedes lhe adereccedila muitos insultos
A qualidade de Paacuteris como arqueiro (toxoacutetēs) eacute desprezada ldquoarco e flecha embora praticado
por certos indiviacuteduos como Paacuteris e Teucro eacute o mais longe possiacutevel marginalizada e o termo
lsquoarqueirorsquo pode ser ateacute mesmo usado como um insultordquo (RUTHERFORD 1996 p 38)
Paacuteris segue sua participaccedilatildeo em batalha liderando uma das colunas troianas contra os
acaios (XII v 93) Eneias heroacutei troiano de quem jaacute falamos em nossa introduccedilatildeo chama ao
seu auxiacutelio Paacuteris e outros guerreiros (XIII vv 489-495) Ainda nesse Canto Paacuteris mata outro
grego o coriacutentio Euqueacutenor estimulado pela perda de um amigo Harpaliatildeo (XIII vv 660-
663 671-672) Esta eacute a uacutenica vez em que um arco mata um aqueu Em todas as outras
passagens envolvendo tiros de arco apenas Teucro arqueiro aqueu mata com o arco Eacute
interessante perceber que o uacutenico arqueiro em atividade do lado aqueu se chama ldquoTroianordquo
ldquoTeucrordquo eacute outra denominaccedilatildeo para o troiano Isso corrobora a ideia do arco ser uma arma
tiacutepica desse exeacutercito Geralmente o arco apenas fere causando na maioria das vezes uma
reprimenda daquele que eacute atingido agravequele que atinge como eacute o caso de Diomedes e Paacuteris (e
ainda de Diomedes e Pacircndaro)
No Canto XV Paacuteris atinge por traacutes [oacutepisthe] Deiacuteoco quando este se retirava da luta
(XV vv 341-342) Esta eacute sua uacuteltima accedilatildeo em batalha a partir daiacute ele soacute eacute mencionado Aqui
em seu uacuteltimo ato beacutelico nosso heroacutei faz algo que natildeo eacute bem visto Afinal o combate deve
ser feito face-a-face e o ataque pela frente do guerreiro Matar ou ferir pelas costas eacute
desonroso vocecirc natildeo deu oportunidade da pessoa se defender nem dela ver quem a matou
Aqui aparece uma outra faceta da caracterizaccedilatildeo do guerreiro Paacuteris a qual parece ser
exclusiva a ele mas que eacute mais comum em batalha do que poderiacuteamos imaginar Em vaacuterias
passagens Paacuteris eacute mostrado sentindo medo Ele foge do embate singular quando vecirc que
Menelau de fato lutaria com ele (III vv 21-37) Sua fuga eacute inadmissiacutevel ele causou a guerra
O fato de ele ter desencadeado todo o conflito e ao se deparar com Menelau recuar de medo
mexe mais com os nervos de Heitor do que o proacuteprio fato de ele simplesmente fugir O
aristocrata que eacute um guerreiro deve enfrentar as batalhas e qualquer fuga eacute condenaacutevel
Ainda no Canto III (vv 39-45) Heitor ressalta que Paacuteris tem todas as qualidades
fenotiacutepicas necessaacuterias aos kaloigrave kagathoiacute mas que seu comportamento natildeo estava
condizendo com o de um Carece-lhe forccedila (biacuteē phresigraven) e coragem (alkḗ) A alkḗ eacute o traccedilo
distintivo do guerreiro junto com a andreiacutea a coragem varonil cara ao gecircnero masculino
Cremos que ela eacute o impulso positivo e a qualidade daquele que supera o medo para enfrentar
situaccedilotildees-problema eacute a justa medida entre inseguranccedila e convicccedilatildeo exacerbada Ela eacute uma
94
caracteriacutestica intriacutenseca do ser humano mas se manifesta com mais ou menos intensidade em
um indiviacuteduo consoante trecircs aspectos a) predisposiccedilatildeo no caraacuteter na iacutendole do mesmo b)
incitaccedilatildeo por parte de outra pessoa ou c) motivaccedilatildeo por parte de um outro sentimento
No caso de Paacuteris a coragem se manifesta pela incitaccedilatildeo de outrem bem como pelo
medo de perder Helena veremos mais adiante que ele aceita devolver os tesouros que ele
trouxe de Esparta mas se nega a devolver a consorte Quando passamos por essas situaccedilotildees-
problema podemos encaraacute-las imediatamente ou podemos recuar diante delas a menos que
outra pessoa nos encoraje ou que tenhamos vergonha de recuar como eacute o caso de Paacuteris
tambeacutem
O ato corajoso desse heroacutei eacute mensurado a partir da sua intrepidez diante do confronto
com o perigo em um campo de batalha O valor de um kalograves kagathoacutes consiste na sua
coragem O valente eacute sempre o nobre o homem de estatuto social elevado A vitoacuteria eacute para
ele a distinccedilatildeo mais alta e o conteuacutedo proacuteprio da vida Do mesmo modo se daacute com os atletas
a vitoacuteria eacute essencial para que este possa reclamar para si um estatuto honoriacutefico semelhante ao
de um heroacutei que ao ficar cara a cara com um igual o enfrenta agrave medida que eacute conduzido
ldquopelo medo da vergonhardquo (BALOT 2004 p 416)48 Ele quer ser reconhecido pela sua
bravura natildeo pela sua fraqueza
Contudo por mais que o heroacutei deva ser intreacutepido isso natildeo implica necessariamente
que o ele seja proibido de sentir medo ele eacute intriacutenseco e natildeo eacute incomum um guerreiro
amedrontar-se na Iliacuteada Ateacute mesmo Aquiles o melhor dos aqueus sente medo Nicole
Loraux mostra que ldquona epopeia natildeo haacute guerreiro que natildeo tenha tremido alguma vez [] Natildeo
existe o grande guerreiro que natildeo tenha sentido um dia em todo o seu ser o tremor do terror
Como se o medo fosse a prova que qualifica o heroacuteirdquo (LORAUX 2003 p 97) Isso se daacute
porque eles satildeo humanos o homem eacute passiacutevel de sentir medo mas isso natildeo o qualifica como
um completo covarde Pelo contraacuterio ldquoO medo do bravo combatente revela a verdadeira
dimensatildeo do perigo que ele enfrente e que o engrandecerdquo (FONTES 2001 p 103)
Tanto a coragem quanto o medo coabitam o mesmo indiviacuteduo Este eacute corajoso agrave
medida que a coragem sobrepuja o medo eacute covarde quando o medo sobrepuja a coragem Nas
palavras de Simon Blackburn ldquoa coragem natildeo eacute a ausecircncia de medo () mas a capacidade de
sentir o grau adequado de medordquo (BLACKBURN 1997 p 80) Assim eacute incorreto afirmar
que o medo eacute diametralmente oposto agrave coragem bem como que um heroacutei eacute totalmente
48 Ryan Balot ainda afirma que a coragem eacute ldquoa qualidade ou disposiccedilatildeo do personagem que faz um indiviacuteduo superar o medo a fim de atingir um objetivo preacute-concebidordquo (BALOT 2004 p 407)
95
destemido Ser covarde natildeo eacute sinocircnimo de sentir medo a covardia implica tambeacutem na recusa
total agrave batalha e o natildeo retorno numa situaccedilatildeo de fuga
Contudo eacute fato que o medo pesa sobre os troianos e os arqueiros como um elemento
desqualificativo porque ele estaacute associado a outras caracteriacutesticas devalorativas Por isso que
Paacuteris seraacute sempre reprimido como veremos mas sem deixar contudo de ser um exemplo
aleacutem das qualidades aristocraacuteticas que ele porta quando ele recua em batalha ele retorna
matando guerreiros inimigos liderando colunas incitando os companheiros agrave luta Destarte
isso natildeo significa uma contradiccedilatildeo da Iliacuteada como afirmou Moses Finley (FINLEY 1982 p
43)49 mas um aspecto paidecircutico como ser humano tem-se o direito de sentir medo de
recuar Ter medo tambeacutem eacute comum como vimos recuar entretanto eacute uma atitude desonrosa
Por isso que Paacuteris retorna agrave batalha Contudo ele o faz depois de a) ser motivo de graccedila
[khaacuterma] para os inimigos que riem dele e b) ser censurado por Heitor e Helena ele sente
vergonha de seus atos depois que sua atitude eacute internalizada como sendo algo indigno de um
anecircr Aqui a neacutemesis de Heitor desencadeou aidṓs em Paacuteris Nessa censura Heitor afirma
que este carece de biacuteē (forccedila) e alkḗ (coragem) Contudo no Canto VI o mesmo Heitor
afirma que todos sabem que Paacuteris eacute corajoso (aacutelkimos) e tem valor (timḗ)
O coacutedigo de conduta do guerreiro seja ele de qual lado da batalha for eacute o mesmo
bem como a representaccedilatildeo dele Tanto aqueus quanto troianos estatildeo sob esse mesmo coacutedigo e
satildeo representados da mesma maneira com as mesmas vestimentas em batalha armam-se do
mesmo jeito como jaacute pudemos ver com os mesmos tipos de metal com as mesmas armas
Isso acontece tambeacutem na imageacutetica como nos mostra Franccedilois Lissarague grego e baacuterbaro eacute
representado da mesma maneira (LISSARAGUE 2002 p 113-114) O que vai diferenciar o
contingente troiano do aqueu eacute justamente o tipo de arma valorizada natildeo o valor do guerreiro
bem como se enfatizaraacute que mesmo o melhor guerreiro troiano natildeo eacute paacutereo para o melhor
guerreiro aqueu (Iliacuteada XXII v 158)
O problema de Paacuteris eacute a demora em entrar no campo de batalha esquivando-se o
quanto for possiacutevel (ldquoMas voluntaacuterio te escusas natildeo queres lutarrdquo) Mas nunca ele a
abandona completamente Essa liccedilatildeo eacute de extrema importacircncia para os futuros politḗs
guerreiros da poacutelis que aprendem a Iliacuteada e a Odisseia e fazem desse ideal de conduta
heroica seu proacuteprio ideal e tecircm como maacutexima a sentenccedila ldquohamarteicircn eikograves anthrṓpousrdquo errar
eacute humano (EURIacutePIDES Hipoacutelito v 615)
49 ldquoMuitas vezes o proacuteprio material apresentava contradiccedilotildees internas () [Paacuteris] () aparece simultaneamente como um despreziacutevel covarde e como um verdadeiro heroacuteirdquo (FINLEY 1982 p 43)
96
Destarte a Iliacuteada assim como a Odisseia configura-se num discurso de legitimaccedilatildeo
da etnicidade helecircnica aleacutem de um discurso paidecircutico Aliaacutes eacute atraveacutes da paideiacutea que essa
ideologia seraacute passada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ateacute chegar ao ponto de formar os kaloigrave
kagathoiacute aqueles bem-nascidos que viratildeo a governar a poacutelis e a vencer os jogos helecircnicos
como atletas Ateacute mesmo durante a Idade Meacutedia essas epopeias foram revisitadas e passaram
muito tempo sem serem estudadas e questionadas segundo Carlier pelo seu caraacuteter de texto
religioso Esse autor afirma que esse movimento de estudo das obras homeacutericas poderia ser
um convite ao questionamento da Biacuteblia que tambeacutem eacute um texto religioso e de funccedilatildeo
modelar (no entanto inserido em uma outra eacutetica diferente da sociedade de Homero)
(CARLIER 2008 p 13)
Alguns autores como Robert Aubreton e Richard B Rutherford defendem que a
Iliacuteada demonstra preferecircncia pelos troianos Os argumentos giram em torno de trecircs questotildees
praticamente a) a representaccedilatildeo familiar do lado troiano e de toda a ldquosensibilidaderdquo daiacute
oriunda (como a cena entre Heitor e Androcircmaca ou de Heacutecuba e Heitor) b) o fato dos
troianos ganharem a maioria das batalhas e c) a Iliacuteada terminar com os funerais de Heitor
configurando-o pois como o grande heroacutei dessa epopeia
Haacute problemas nesses argumentos a ldquocidaderdquo grega eacute improvisada enquanto a troiana
eacute a ldquocidaderdquo de fato (MACKIE 1996 p 1) Isso se daacute porque os gregos satildeo os invasores e os
troianos satildeo os invadidos As esposas pais filhos pequenos dos gregos ficaram em seus
palaacutecios quem vai agrave guerra eacute o anḗr Assim eacute inviaacutevel entre os gregos cenas relativas ao
oicirckos ao domiciacutelio
Os troianos ganham a maioria das batalhas porque assim quis um grego Aquiles pede
para sua matildee a deusa Teacutetis que interceda junto a Zeus para fazer com que os troianos
ganhassem todas as batalhas a fim de mostrar a Agamemnon o quanto ele fazia falta
Lembremo-nos de que o primeiro Canto da Iliacuteada trata justamente da rixa que apartou
Aquiles da guerra e que a proacutepria narrativa dessa epopeia diz respeito agrave ira desse heroacutei e das
suas consequecircncias
O funeral de Heitor encerra a Iliacuteada o de Aquiles contudo nem aparece nela Seria
um indicativo de que aquele heroacutei eacute mais importante do que este e que sua morte seria o
grande final do poema O problema eacute que a Iliacuteada natildeo era cantada num dia inteiro para o
puacuteblico primeiro porque sua reacutecita natildeo demoraria soacute um dia visto que ela tem 15693 versos
segundo porque esse poema era cantado em episoacutedios nas competiccedilotildees e nos banquetes
Assim podia se cantar soacute o episoacutedio da luta entre Menelau e Paacuteris ou soacute o episoacutedio em que
97
Helena descreve os guerreiros aqueus ou soacute o episoacutedio em que Paacuteris atira em Diomedes e ele
o rechaccedila e assim por diante Nem mesmo a divisatildeo em Cantos como conhecemos havia
sido feita somente os saacutebios alexandrinos fariam isso muitos seacuteculos depois da cristalizaccedilatildeo
do poema na escrita Desse modo natildeo podemos pensar os funerais de Heitor como o grande
fim da reacutecita era o grande fim desse episoacutedio Natildeo haacute o famigerado the end cinematograacutefico
na Iliacuteada
Tambeacutem existem as consideraccedilotildees acerca da bela morte por Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo que exploramos em nosso trabalho O que importa eacute o que o heroacutei faz em vida sua
morte eacute o fim de suas faccedilanhas incluindo o matar Por isso que Aquiles natildeo precisa morrer no
poema para ter seu valor corroborado O que corrobora o valor de Aquiles na Iliacuteada pode ser
justamente o funeral de Heitor assim como este seria honrado e rememorado pela morte do
guerreiro homenageado (VII vv 81-91) Aquiles o seraacute pela morte de Heitor Comparando
hipoteticamente se Aquiles viesse a morrer na Iliacuteada o valor de Paacuteris seu assassino seria
corroborado E Homero natildeo queria mostrar isso Paacuteris embora exemplo ainda eacute um
transgressor das leis da xeacutenia valor caro aos helenos e a todos os habitantes do Mediterracircneo
(VLASSOPOULOS 2013 p 90) e causador de uma guerra que fez perecer uma geraccedilatildeo de
hemiacutetheoi semideuses (os heroacuteis)
Em virtude do apresentado nesse capiacutetulo pudemos ver que os heroacuteis embora
partilhem aspectos em comum de sua categoria natildeo se constituem de uma massa indistinta
homogeneamente constituiacuteda cada heroacutei tem a sua peculiaridade A de Agamecircmnon eacute a sua
lideranccedila a de Odisseu sua meacutetis a de Aacutejax sua forccedila fiacutesica e a de Paacuteris sua beleza Homero
consegue construir personagens diferentes que natildeo agem da mesma maneira embora sejam
arautos de um mesmo coacutedigo de conduta
Entretanto embora sejam regidos por esse ideal de conduta os troianos satildeo diferentes
dos aqueus o uso que eles fazem desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes Paacuteris mesmo eacute
um transgressor e embora tente consertar seus erros continua sendo o causador da guerra que
tanto gera sofrimento a ambos os lados Ele ainda estaacute em estado de aacutetē Por isso seu valor
beacutelico eacute diminuiacutedo como destacar algueacutem que causou uma guerra John A Scott vecirc isso
como uma inovaccedilatildeo de Homero Paacuteris seria o principal guerreiro troiano mas como
desrespeitou a xeacutenia causando a Guerra de Troia perdeu seu posto para Heitor que seria um
personagem inventado para receber todas as caracteriacutesticas as quais teriam pertencido ao
proacuteprio Paacuteris na tradiccedilatildeo miacutetica (SCOTT 1913)
98
Essa ideia contudo natildeo possui argumentaccedilatildeo suficiente para comprovaccedilatildeo ateacute
mesmo porque o nome de Heitor jaacute constava nas tabuinhas de Linear B (CHADWICK 1970
p 98) Natildeo podemos ir aleacutem da documentaccedilatildeo e afirmar que esse ou aquele personagem eacute
uma criaccedilatildeo exclusiva de Homero visto que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o resultado de inuacutemeras
tradiccedilotildees orais posteriores agrave composiccedilatildeo das obras Assim como Euriacutepides reelabora os mitos
da tradiccedilatildeo eacutepica em suas trageacutedias Homero tambeacutem o faz em suas epopeias ldquoos materiais
que o poeta utiliza para recordar satildeo versaacuteteis moacuteveis feitos de foacutermulas de episoacutedios e de
um repertoacuterio de informaccedilotildees variado que pode se empregado com certa liberdade e adequado
agraves conveniecircncias poemaacuteticas e meloacutedicasrdquo (NUNtildeEZ 2011 p 239)
Eacute por essa razatildeo que os poemas homeacutericos natildeo foram os primeiros do processo
discursivo sobre o qual nos debruccedilamos sendo ldquoobras musicais [] [que] formam um todo
orgacircnico no qual poesia e muacutesica se interpenetram e intercambiam significadosrdquo (NUNtildeEZ
2011 p 239-240 ndash grifos nossos) Do mesmo modo Euriacutepides ainda estaacute longe de ser a
uacuteltima etapa desse processo a poesia eacutepica e traacutegica influencia nosso proacuteprio modo de
escrever permanecendo ainda viva na nossa memoacuteria social E assim como a poesia o heroacutei
eacute ele mesmo um todo orgacircnico (LUKAacuteCS 2000 p 66) no que diz respeito ao seu coacutedigo de
conduta mas particularizado como indiviacuteduo pois um heroacutei nunca eacute igual a outro heroacutei
Desse modo a representaccedilatildeo de Paacuteris natildeo eacute em hipoacutetese alguma a representaccedilatildeo de
um anti-heroacutei Primeiramente porque eacute anacrocircnico denomina-lo desse modo Massaud
Moiseacutes nos mostra em seu Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios que a ideia de anti-heroacutei eacute
intriacutenseca ao romance do seacuteculo XVIII Para ele ldquoo anti-heroacutei natildeo se define como a
personagem que carrega defeitos ou taras ou comete delitos e crimes mas a que possui
debilidade ou indiferenciaccedilatildeo de caraacuteter a ponto de assemelhar-se a toda genterdquo (MOISEacuteS
1999 p 29) Aleacutem disso ldquoo heroacutei eleva e amplifica as accedilotildees que pratica o anti-heroacutei as
minimiza ou rebaixardquo (MOISEacuteS 1999 p 29)
Os heroacuteis de Homero e de Euriacutepides natildeo satildeo comuns a todas as pessoas eles
representam um passado miacutetico anterior agravequeles que ouvem as epopeias e assistem agraves
representaccedilotildees teatrais Satildeo ldquoimagens limitesrdquo (ROMILLY 2013 p 31) que representam o
extremo das accedilotildees e emoccedilotildees visto que satildeo paidecircuticos O heroacutei como vimos eacute um
hemitheoacutes algueacutem acima do homem comum e inferior aos deuses pois eacute mortal como noacutes
como o puacuteblico dos poetas possuindo atitudes semelhantes (visto que satildeo humanos tambeacutem)
mas definitivamente com um estatuto diferenciado dos brotoiacute comuns Paacuteris na trageacutedia
quando personagem ainda exerce esse papel ele natildeo se torna ldquomenos heroacuteirdquo por ser um
99
douacutelos um boukoacutelos visto que essas histoacuterias acerca de Troia pertencem tambeacutem agrave mitologia
grega e a ambientaccedilatildeo em Troia tambeacutem eacute uma estrateacutegia para provocar catarse as viacutetimas da
Guerra de Troia estatildeo sendo sempre comparadas agraves viacutetimas da proacutepria Guerra do Peloponeso
Edith Hall mostra como mesmo esses displacement plots (roteiros de deslocamento)
servem para legitimar a identidade helecircnica definindo suas fronteiras eacutetnicas
Mesmo com a pluralidade eacutetnica da trageacutedia e o seu interesse em heroacuteis e comunidades espalhadas por distacircncias vastas pelo mundo conhecido o foco ateniense o ldquoatenocentrismordquo da trageacutedia eacute manifestado de muitos jeitos [] mesmo peccedilas com nenhum foco oacutebvio em Atenas incluem frequentemente um aition [sic] uma explicaccedilatildeo pelo mito das origens dos costumes atenienses [] os tragedioacutegrafos usavam comunidades outras sem ser Atenas como lugares para autodefiniccedilatildeo eacutetnica o mundo baacuterbaro frequentemente funciona na imaginaccedilatildeo traacutegica como o lar dos viacutecios (por exemplo o despotismo persa a falta de lei dos traacutecios a efeminaccedilatildeo e a covardice orientais) concebidas como correlativos agraves virtudes democraacuteticas atenienses idealizadas liberdade de fala equanimidade diante da lei e coragem masculina (HALL 1997 p 100)
O baacuterbaro eacute a mateacuteria-prima sobre a qual os gregos definem suas fronteiras eacutetnicas eacute
observando-o que eles constroem a si mesmos Claude Mosseacute corrobora esse aspecto ao
afirmar que ldquoessa alteridade do baacuterbaro entretanto natildeo eacute necessariamente negativa eacute apenas
o avesso da civilizaccedilatildeo encarnada pelo gregordquo (MOSSEacute 2004 p 55) Entretanto esse
processo de classificaccedilatildeo natildeo eacute exclusivo ao seacuteculo V aC jaacute em Homero podemos ver um
esforccedilo de definiccedilatildeo dessas fronteiras quando o poeta caracteriza os troianos (sobretudo
Paacuteris) para desenvolver uma caracterizaccedilatildeo que implica numa diferenciaccedilatildeo pautada ao
mesmo tempo na valorizaccedilatildeo do inimigo o qual natildeo pode ser inferior a fim de enaltecer a
vitoacuteria e na marcaccedilatildeo de alteridades em relaccedilatildeo a ele
100
CONCLUSAtildeO
ldquoSe partires um dia rumo a Iacutetaca faz votos de que o caminho seja longo repleto de aventuras repleto de saberrdquo
(Iacutetaca ndash Konstantinos Kavaacutefis)50
Em virtude do apresentado pudemos compreender que a anaacutelise da Iliacuteada da
Odisseia e das trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides vai aleacutem da simples tentativa de
comprovaccedilatildeo de feitos heroicos da existecircncia de uma guerra da existecircncia do proacuteprio aedo e
da correlaccedilatildeo simplista com eventos da ldquorealidade histoacutericardquo Eacute mais profiacutecuo buscar a
compreensatildeo das estruturas poliacuteticas econocircmicas sociais culturais religiosas e institucionais
da eacutepoca em que os poemas foram compostos traccedilando como os gregos conseguiram
construir e consolidar suas fronteiras eacutetnicas de forma dinacircmica
Aleacutem disso a rememoraccedilatildeo dos heroacuteis e de suas faccedilanhas eacute importante para a
configuraccedilatildeo de todo um coacutedigo de conduta helecircnico corroborando a ideia de uma funccedilatildeo
paidecircutica das obras homeacutericas e traacutegicas No tocante agrave historicidade desses heroacuteis ela estaacute
ligada por um lado ao papel que suas personalidades desempenham na vida do puacuteblico 50 Traduccedilatildeo de Joseacute Paulo Paes Disponiacutevel em httpwwworg2combrkavafishtm
101
helecircnico ndash que os rememoram e os cultuam ndash e por outro agrave ligaccedilatildeo inextricaacutevel entre o autor
que compocircs os textos e o seu contexto histoacuterico fazendo com que a trama e os heroacuteis sejam
constituiacutedos com base na proacutepria sociedade na qual eles vivem e conhecem
Lembremo-nos de que a Iliacuteada por ter sido composta posteriormente diz respeito
mais as caracteriacutesticas deste periacuteodo do que do periacuteodo no qual se travou a guerra de Troia a
eacutepoca palaciana No contexto da poacutelis as caracteriacutesticas caras agrave personalidade de Paacuteris natildeo
seratildeo preteridas na paideiacutea Pelo contraacuterio Aristoacuteteles no seacuteculo IV dedica um espaccedilo em
sua Poliacutetica a consideraccedilotildees sobre o ensino da muacutesica e da ginaacutestica a qual objetiva dentre
outras coisas a manter o equiliacutebrio fiacutesico do cidadatildeo
No tocante ao nosso objeto principal Paacuteris concluiacutemos que ele como personagem da
Iliacuteada desempenha um modelo de como agir para os ouvintes da epopeia Isso se daacute porque
ele demonstra atitudes condizentes com a de um heroacutei ou seja o protagonista desses poemas
de exaltaccedilatildeo das faccedilanhas desses seres extraordinaacuterios que viveram numa eacutepoca precedente agrave
eacutepoca dos simples humanos que vivem agrave sombra desse passado glorioso
Devemos ter em mente que Paacuteris mesmo natildeo demonstrando muita destreza na guerra
natildeo deixa de ser um heroacutei ele possui essas caracteriacutesticas intriacutensecas a eles Heitor ao mesmo
tempo que o chama de covarde no Canto III iraacute reconhecer que ele possui coragem no Canto
VI como jaacute vimos em uma citaccedilatildeo anterior Quando Paacuteris comete um ato indecoroso procura
corrigi-lo a fim de reaver a sua honra assim acontece quando ele retorna para combater com
Menelau e retorna agrave guerra no Canto VI Paacuteris tambeacutem tem a sua bela morte seja falecendo
no campo de batalha seja matando
A Iliacuteada como influenciadora do discurso traacutegico mostra um heroacutei humano e
portanto em sua singularidade e em sua relaccedilatildeo com a sociedade na qual ele estaacute inserido
Essa sociedade o reconhece como um aacuteristos um melhor aquele que deve liderar contudo
para isso ele deve demonstrar pelas suas atitudes que eacute digno de seu posto deve zelar para
que sua timḗ sua honra natildeo seja manchada atraveacutes de accedilotildees que ponham em xeque sua aretḗ
sua virtude causando a neacutemesis da sociedade e seu proacuteprio aidṓs
Um heroacutei pode fraquejar tremer sentir medo mas este natildeo deve sobrepujar o iacutempeto
de ficar e lutar Quando ocorre a fuga o retrocesso este deve ser corrigido a fim de que se
restaure a timḗ e de que aquele que fugiu natildeo seja alvo da neacutemesis dos seus iacutesoi Eacute isso o que
acontece com Paacuteris que eacute muito mais do que uma simples ldquocontradiccedilatildeo da epopeiardquo ora ele
se mostra corajoso ora ele se mostra temente pois eacute a representaccedilatildeo de um ser humano Ele
102
recua e retorna agrave batalha configurando-se num exemplo de como se agir mas de fato ele eacute
representado de uma maneira diferente e singular pelo poeta
Isso se daacute devido agrave problemaacutetica da alteridade da qual tratamos no capiacutetulo sobre
Homero Paacuteris seraacute representado como um modelo de conduta mas tambeacutem como um
estereoacutetipo do Outro Inuacutemeros heroacuteis aqueus poderiam servir para expressar esse movimento
de fugaretorno mas um heroacutei troiano eacute escolhido Aliaacutes a maioria dos heroacuteis que fogem na
Iliacuteada eacute troiana O caso de Paacuteris se configura num problema de alteridade interna tanto por
ele ser o inimigo na guerra (o troiano) quanto por ser o transgressor de normas inclusive
universais (no caso a xeacutenia ou seja a hospitalidade)
Este modo de caracterizar Paacuteris ao longo do tempo vai cada vez mais sobrepujar-se agrave
sua representaccedilatildeo como um kalograves kagathoacutes helecircnico e gradativamente esse personagem
deixaraacute de ser o theoeidḗs para ser o baacuterbaros sobretudo na trageacutedia Mas essa questatildeo natildeo
diz mais respeito ao nosso trabalho aqui desenvolvido em torno da Iliacuteada um poema
composto cerca de trecircs seacuteculos antes desse gecircnero teatral ser cristalizado culturalmente nas
poacuteleis Em Euriacutepides o heroacutei natildeo perde uma dimensatildeo paidecircutica mas estaacute mais ligado agrave
ideia do erro o heroacutei erra e aprendemos com esses erros Paacuteris natildeo deixa de ser um heroacutei pois
pertence agrave tradiccedilatildeo miacutetica mas se torna na trageacutedia de uma vez por todas o baacuterbaro
Tivemos por objetivo com essa dissertaccedilatildeo analisar a representaccedilatildeo de Paacuteris na eacutepica
homeacuterica e nas trageacutedias de Euriacutepides perscrutando as mudanccedilas sociais e culturais que estatildeo
presentes nos textos literaacuterios Defendemos que a Iliacuteada jaacute traz a ideia de
identidadealteridade helecircnica mostrando um discurso eacutetnico que legitima a centralidade
aqueia em detrimento da troiana e como essa diferenciaccedilatildeo influencia na construccedilatildeo do
baacuterbaro na poesia traacutegica Tambeacutem mostramos como a epopeia e a trageacutedia pertencem a um
mesmo espaccedilo discursivo tornando profiacutecua a nossa anaacutelise e utilizando a Anaacutelise de
Discurso francesa para tal
Acreditamos que essa diferenciaccedilatildeo entre gregos e troianos em Homero natildeo diz
respeito a uma diferenciaccedilatildeo entre o grego e o baacuterbaro ou entre o grego e o estrangeiro mas
entre dois grupos eacutetnicos um que estaacute no Peloponeso e outro que se encontra na Aacutesia Menor
reapropriando o coacutedigo de conduta grego e estabelecendo contatos com culturas natildeo-
helecircnicas Mas historicamente satildeo os troianos gregos
Natildeo podemos afirmar com certeza absoluta Primeiramente porque as datas satildeo
fluidas convenciona-se atraveacutes de estudos arqueoloacutegicos e filoloacutegicos que Homero compotildee
no seacuteculo VIII aC Convenciona-se que a Guerra de Troia aconteceu no seacuteculo XIII aC
103
Aleacutem disso lidamos com um problema caro agrave Histoacuteria Antiga documentaccedilatildeo Ela eacute escassa e
nas escavaccedilotildees poucos materiais escritos foram encontrados Achou-se um selo com
hieroacuteglifos luvitas no siacutetio arqueoloacutegico de Hissarlik (antiga Troia hoje na Turquia) o qual
data provavelmente do segundo milecircnio antes de Cristo entretanto como podemos ter certeza
de que ele foi produzido laacute Sendo um noacute comercial importante vizinha do Helesponto o que
garante que aquele selo natildeo foi parar em Troia atraveacutes de comerciantes
Segundo o hititologista holandecircs Alwin Kloekhorst a hipoacutetese luvita (que se destacou
em 1995) vem sendo bastante questionada e ele defende que eacute mais provaacutevel que a liacutengua
falada em Troia nessa eacutepoca fosse o lecircmnio oriundo da regiatildeo de Lemnos e que deu origem
ao etrusco Ele tambeacutem mostra que Troia na eacutepoca da guerra provavelmente natildeo era grega
Trūiša (uma regiatildeo de Wilǔsa que seria Troia) estava sob domiacutenio hitita embora haja
evidecircncias de embates entre os ahhiyawa (aqueus) e esse povo pelo domiacutenio da regiatildeo na
eacutepoca Contudo a partir do seacuteculo VIII aC (quando Homero compotildee seus poemas e os
gregos entram em processo de ldquocolonizaccedilatildeordquo) provavelmente havia ldquoGreek-speakersrdquo na
regiatildeo onde fora Troia (KLOEKHORST 2013 p 48) Ela era parte das apoikiacuteai (ldquocolocircniasrdquo
gregas)51 O historiador americano Barry Strauss corrobora a ideia de Kloekhorst afirmando
que Troia era uma cidade grega desde 750 aC quando foi povoada por colonos gregos e
assim se manteve durante toda a Antiguidade (STRAUSS 2008 p 28)
Desse modo o mundo das apoikiacuteai seria diretamente influenciado pela cultura e liacutengua
gregas Vlassopoulos coloca que essas ldquocolocircniasrdquo eram loci privilegiados tanto de trocas
culturais entre gregos e outros povos bem como paradoxalmente ajudaram a consolidar um
modelo forte do que eacute ser grego
o processo de criar apoikiacuteai fizeram o modelo de uma comunidade grega se tornar abstrato e canocircnico uma comunidade com um corpo de cidadatildeos divididos entre tribos governado por magistrados conselhos e assembleia equipado com um tipo particular de espaccedilo puacuteblico (agoraacute) e adornado com um tipo particular de templo e edifiacutecio puacuteblico (teatro casa concelhia ginaacutesio) (VLASSOPOULOS 2013 p 277)
Os troianos satildeo um grupo eacutetnico dentro da comunidade helecircnica no discurso de Homero
tendo em Paacuteris a siacutentese de alteridade visto que ele desrespeita coacutedigos helecircnicos Muitas das
caracteriacutesticas desse personagem satildeo reapropriados por Euriacutepides para caracterizar o baacuterbaro
(inclusive ele mesmo que jaacute seraacute denominado baacuterbaros em suas trageacutedias) Dentre esses
51 Kostas Vlassopoulos explica que natildeo eacute apropriado atribuir o conceito de ldquocolocircniardquo aos movimentos expansionistas gregos do seacuteculo VIII pois a ldquocolonizaccedilatildeordquo grega eacute completamente diferente da colonizaccedilatildeo moderna (2013 p 103)
104
pontos de diferenciaccedilatildeo estatildeo a predominacircncia do arco como arma de guerra a capacidade de
se submeter o exeacutercito inimigo (como pudemos ver com a anaacutelise dos siacutemiles de animais mas
sem deixar de valorizar esse inimigo para a vitoacuteria ser gloriosa) o excesso de ouro a
expressatildeo verbo-corporal (discurso defensivo e dissuasivo o esconder-se o jactar-se) as
vestimentas o excesso de medo a lida com as artes musicais a luxuacuteria a efeminaccedilatildeo (do
aliado caacuterio) a suacuteplica pela vida e a procrastinaccedilatildeo para entrar em batalha
Euriacutepides por sua vez explora ao maacuteximo esses elementos e os troianos jaacute se encontram
completamente frigianizados ligados agrave Aacutesia e sendo mostrado como baacuterbaros Os gregos que
agem como baacuterbaros satildeo comparados aos troianos bem como eles estatildeo sempre sendo
designados desse modo Assim tambeacutem a proacutepria fronteira do que eacute baacuterbaro e do que eacute grego
encontra-se cada vez mais turva haacute uma crise nessa definiccedilatildeo e o grego em Euriacutepides pode
barbarizar-se facilmente visto que estaacute em meio a uma guerra
A produccedilatildeo historiograacutefica acerca da etnicidade helecircnica tem sido cada vez mais
comum e esperamos que nossa pesquisa contribua para essa discussatildeo Esperamos ademais
que ela contribua para as anaacutelises acerca dos poemas homeacutericos e das trageacutedias de Euriacutepides
que tecircm sido cada vez menos comuns Com essa dissertaccedilatildeo objetivamos tambeacutem fomentar
o interesse pelo tema e novas pesquisas acerca dessa temaacutetica Cremos ser muito importante o
estudo da literatura grega porque ela foi o norte da sociedade helecircnica e reverbera ateacute os dias
de hoje seja em produccedilotildees fiacutelmicas ou na literatura
A funcionalidade paidecircutica dos textos que estudamos contribui para tal movimento
bem como a proacutepria importacircncia desse legado cultural oriundo dos gregos o qual tambeacutem se
faz sentir ateacute hoje no modo de pensar de construir de escrever Pudemos ver com a anaacutelise
de Paacuteris como o autor da Iliacuteada trabalha com a ideia do heroacutei e como atraveacutes de sua
representaccedilatildeo ele define as fronteiras eacutetnicas que perpassam essa paideiacutea a qual estaacute presente
tambeacutem nas trageacutedias de Euriacutepides que corroboram e reapropriam esses elementos de
diferenciaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo dos personagens sobretudo de Paacuteris o baacuterbaro
Outrora a Greacutecia possuiacutea uma grande extensatildeo territorial e sua importacircncia poliacutetica
econocircmica e cultural era grosso modo e com fins assimilativos tatildeo grande quanto a da
Inglaterra a partir da Primeira Revoluccedilatildeo Industrial e a dos Estados Unidos depois da Segunda
Guerra Mundial Hoje o pequeno paiacutes europeu que aparece nos jornais diariamente devido a
um periacuteodo de crise e necessidade ainda exerce uma influecircncia muito grande no que diz
respeito a esse legado que permanece de peacute A cultura helecircnica e o estudo acerca desta ainda
natildeo estatildeo em vistas de entrar em crise
105
Anexo | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO
LETRA GREGA TRANSLITERACcedilAtildeO
αααα a
ᾳᾳᾳᾳ a
ββββ b
γγγγ g
δδδδ d
εεεε e
ζζζζ z
ηηηη ē
ῆῆῆῆ ecirc
ῃῃῃῃ ē
θθθθ th
106
ιιιι i
κκκκ k
λλλλ l
micromicromicromicro m
νννν n
ξξξξ x
οοοο o
ππππ p
ρρρρ r
ῥῥῥῥ rh
σ ςσ ςσ ςσ ς s
ττττ t
υυυυ y (entre consoantes) u (em ditongos)
φφφφ ph
χχχχ kh
ψψψψ ps
ωωωω ō
ῶῶῶῶ ocirc
ῳῳῳῳ ō
Observaccedilatildeo sobre os espiacuteritos o grego antigo possui uma marcaccedilatildeo especiacutefica denominada espiacuterito Ele vem sobre todas as vogais o rocirc (ρ) inicial e as semivogais dos ditongos que iniciarem a palavra O espiacuterito pode ser fraco ou forte quando ele eacute fraco (rsquo) a vogal se pronuncia normalmente e quando ele eacute forte (lsquo) a vogal eacute pronunciada de modo aspirado como se estivesse sendo acompanhada por um erre (r) O rocirc do iniacutecio das palavras sempre teraacute espiacuterito forte visto que ele jaacute eacute aspirado conforme estaacute na tabela Quando transliteradas as palavras com espiacuterito forte possuem um agaacute (h) na frente Assim por exemplo a palavra
107
οὐρανός (ceacuteu) eacute transliterada como ouranoacutes ἁmicroαρτία (falha) como hamartiacutea ῥῶ (a letra grega ρ) como rhocirc com o agaacute entre o erre e a proacutexima letra
Observaccedilatildeo sobre os conjuntos γγ γκ e γχ quando aparecem essas consoantes juntas o primeiro gama eacute transliterado como ene (n) pois ele se nasaliza Assim por exemplo ἀγγελος (mensageiro) eacute transliterada como aacutengelos ἀναγκαία (necessidade) como anankaiacutea ἐγχανδής (amplo) como enkhandḗs
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5
de aula de Histoacuteria da antiga 5ordf seacuterie quando ela pediu que escrevecircssemos na primeira paacutegina
do caderno ldquoHISTOacuteRIA Eacute VIDArdquo
Agrave todos os meus familiares que estiveram colados comigo nessa empreitada sobretudo
minha matildee (Eliane) irmatilde (Roberta) avoacute (Carmelita) e prima (Sylvia) por sempre me
incentivarem a continuar nessa carreira
E por uacuteltimo mas natildeo menos importante aos ldquoHomerosrdquo que compuseram a Iliacuteada e
a Odisseia e a Euriacutepides sem eles que aiacute mesmo natildeo haveria dissertaccedilatildeo alguma
6
Resumo
Pretendemos analisar de forma comparada a representaccedilatildeo de Paacuteris heroacutei cujo ato e
aacutetē (perdiccedilatildeo) causaram a Guerra de Troia (c 1250-1240 aC) na Iliacuteada de Homero e nas
trageacutedias Alexandre (fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia
em Aacuteulis e Orestes de Euriacutepides de modo a compreender quais satildeo e como se
desenvolveram as fronteiras eacutetnicas helecircnicas Utilizaremos para a anaacutelise desse processo
histoacuterico-discursivo a metodologia comparada de Marcel Detienne expressa em sua obra
Comparar o Incomparaacutevel e para a anaacutelise do nosso corpus documental a Anaacutelise de
Discurso Francesa presente nas obras teoacutericas de Eni P Orlandi Dominique Maingueneau e
Pierre Charaudeau
Palavras-chave Histoacuteria Comparada Anaacutelise de Discurso Homero Euriacutepides etnicidade
7
Abstract
We aim to analyze on a comparative basis the representation of Paris hero whose act
and aacutetē (perdition) caused the Trojan War (c 1250-1240 bC) in Homerrsquos Iliad and in
Euripidesrsquo tragedies Alexander (fragmentary) Andromache Trojan Women Hecuba
Helen Iphigenia in Aulis and Orestes in order to understand which are the hellenic ethnic
boundaries and how it has been developed We will use to analyze this historic-discursive
process the comparitive methodology of Marcel Detienne expressed in his Comparing the
incomparable and to analyze our corpus the French Discourse Analysis present in Eni P
Orlandi Dominique Maingueneau and Pierre Charaudeaursquos theoretical works
Keywords Comparative History Dicourse Analysis Homer Euripides ethnicity
8
Sumaacuterio
INTRODUCcedilAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 09
CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE COMPOSICcedilAtildeO -------------p 24
CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES ----------------------------------------------------p 50
CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI ----------------------------------------------------------------------p 76
CONCLUSAtildeO -----------------------------------------------------------------------------------------p 100
ANEXO | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO --------------------------------------------------------p 105
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS ------------------------------------------------------------------p 107
DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL --------------------------------------------------------------p 107
DICIONAacuteRIOS E GRAMAacuteTICAS ------------------------------------------------------------p 108
BIBLIOGRAFIA ------------------------------------------------------------------------------p 109
9
INTRODUCcedilAtildeO | TEMA PROBLEMAS METODOLOGIAS
ldquoO conhecimento revisitado das tradiccedilotildees da histoacuteria e literatura da Guineacute-Bissau poderaacute funcionar dessa forma como um
Outro que nos complementa ajudando-nos a revisitar ateacute mesmo a imagem que fazemos de noacutes proacutepriosrdquo
(SECCO 2007 p 16-17)
Vivemos em um mundo plural e por isso nos embatemos frequentemente com Outros
que natildeo necessariamente habitam um paiacutes distante o diferente mora ao nosso lado convive
conosco porque dentro de uma mesma sociedade eacute possiacutevel estabelecer uma relaccedilatildeo de
alteridade A cada dia que esbarramos com algueacutem que partilha de costumes e ideias
diferentes das nossas nos modificamos tambeacutem eacute como na metaacutefora de bolas de bilhar de
Norbert Elias (1994 p 29) pois quando nos relacionamos com as pessoas conversamos com
elas nunca permanecemos iguais fazendo com que sempre estejamos modificando nossos
limites de aceitaccedilatildeorejeiccedilatildeo nossas fronteiras de convivecircncia
Natildeo era diferente na Antiguidade e em nossa epiacutegrafe poderiacuteamos muito bem
substituir ldquoGuineacute-Bissaurdquo por ldquoGreacutecia Antigardquo afinal estamos lidando com pessoas Eacute o
homem que constroacutei suas proacuteprias leis bem como eacute ele quem faz a histoacuteria vivendo-a Agrave
medida que o homem vive ele deixa indiacutecios de sua vivecircncia Satildeo dessas ldquopistasrdquo desses
ldquorastrosrdquo que noacutes historiadores podemos estudar as sociedades do passado No presente
estudo se debruccedila sobre um indiacutecio que ateacute pouco tempo era desconsiderado pela Histoacuteria
como documentaccedilatildeo a literatura
Objetivamos natildeo somente analisar os textos que compotildeem nosso corpus mas coloca-
los em comparaccedilatildeo Cremos que a Iliacuteada de Homero (VIII aC) e as trageacutedias Alexandre
(fragmentaacuteria) Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Helena Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes
(seacuteculo V aC) natildeo satildeo apenas produto de uma sociedade mas que as epopeias influenciaram
na construccedilatildeo da sociedade na qual eram encenadas as trageacutedias bem como as trageacutedias e as
proacuteprias epopeias influenciaram na construccedilatildeo de suas proacuteprias sociedades
Para estabelecer essa comparaccedilatildeo escolhemos como norte o antropoacutelogo Marcel
Detienne que em seu livro Comparar o incomparaacutevel lanccedilou uma seacuterie de conceitos-chave
e procedimentos para trabalhar com as comparaccedilotildees temporais eou espaciais A comparaccedilatildeo
eacute algo intriacutenseco ao ser humano Contudo fazer uma comparaccedilatildeo e fazer Histoacuteria Comparada
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eacute bem diferente eacute a partir dos anos 1920 com as obras de Marc Bloch que a Histoacuteria
Comparada vai tomando forma O objetivo dela para Bloch eacute ressaltar diferenccedilas e
semelhanccedilas em processos histoacutericos distintos tomando como base preferencialmente duas
sociedades contiacuteguas (BLOCH 1998 p 122-123) No Brasil eacute em fins da deacutecada de 1970
que esse meacutetodo comparativo eacute evidenciado Ciro Flamarion Cardoso e Heacutector Peacuterez Brignoli
chamam a atenccedilatildeo para a sua importacircncia nos estudos historiograacuteficos ressaltando ainda que
natildeo se trata de uma mera catalogaccedilatildeo de diferenccedilas e semelhanccedilas mas de busca de
peculiaridades (CARDOSO PEacuteREZ BRIGNOLI 1983 p 418)
Entretanto no iniacutecio do seacuteculo a Histoacuteria Comparada sofre uma crise com o crescente
destaque dado agrave Histoacuteria Cruzada o historiador Juumlrgen Kocka coloca que ambas devem se
relacionar que meacutetodo comparativo deve ser associado agrave histoire croisseacutee (KOCKA 2003 p
44) mas Michael Werner e Beacuteneacutedicte Zimmerman jaacute veem a Histoacuteria Comparada como algo
problemaacutetico em seu artigo Beyond comparison histoire croiseacutee and the chalenge of
reflexivity eles definem um meacutetodo de Histoacuteria Cruzada e mostram razotildees pelas quais a
Histoacuteria Comparada natildeo seria uma metodologia tatildeo adequada pois seu uso eacute binaacuterio
(semelhanccedilasdiferenccedilas) (WERNER ZIMMERMANN 2006 p 33)
Eacute no bojo dessas discussotildees que surge a proposta de Marcel Detienne ele critica a
ideia de que soacute se pode comparar sociedades contiacuteguas ressaltando a ideia de que se pode
ldquocomparar o incomparaacutevelrdquo pois as sociedades espalhadas pelo mundo embora plurais
compartilham algumas instituiccedilotildees (DETIENNE 2004 p 10 e 47) o casamento a fundaccedilatildeo
a morte etc Embora Detienne seja aacutecido em suas criacuteticas visto que Marc Bloch natildeo excluiacutea a
possibilidade de comparar sociedades distantes no tempo e no espaccedilo (BLOCH 1998 p
121) eacute ele que melhor define um meacutetodo comparativo fechado e por isso escolhemo-lo como
norte teoacuterico
Assim partindo de uma categoria1 (etnicidade) definimos como comparaacutevel2 a
representaccedilatildeo de Paacuteris tanto na epopeia homeacuterica quanto nas trageacutedias de Euriacutepides Essas
representaccedilotildees seratildeo devidamente analisadas em sua intrinsecidade atraveacutes da Anaacutelise de
Discursos cabendo a noacutes pesquisadores de Histoacuteria Comparada colocar essas experiecircncias
variadas lado a lado para contrastaacute-las eou aproximaacute-las Temos em mente que o meacutetodo eacute
um caminho e o objeto o qual pretendemos construir eacute que orienta a escolha dele
1 A categoria eacute um ldquotraccedilo significativo uma atitude mentalrdquo que faz parte de ldquoum conjunto uma configuraccedilatildeordquo (DETIENNE 2004 p 57) 2 Os comparaacuteveis satildeo ldquomecanismos de pensamento observaacuteveis nas articulaccedilotildees entre os elementos arranjados conforme a entrada lsquofigura inaugural que vem de forarsquo lsquonatildeo-iniacuteciorsquo ou outras [] satildeo orientaccedilotildees essas relaccedilotildees em cadeia essas escolhasrdquo (DETIENNE 2004 p 57-58)
11
(ANDRADE 1998 p 38) e visto que queremos estudar um processo ideoloacutegico de definiccedilatildeo
de fronteiras eacutetnicas que tem como recorte temporalidades distintas a metodologia
comparativa de Detienne encaixou-se adequadamente
Para ler nosso corpus documental adotamos como metodologia de leitura analiacutetica a
proposta por Eni Puccinelli Orlandi em seu livro Anaacutelise de Discurso Princiacutepios amp
Procedimentos Identificamo-nos com a Anaacutelise de Discurso francesa3 por dois motivos pela
natureza do nosso corpus e pela proposta soacutecio-histoacuterica desse meacutetodo Nossa documentaccedilatildeo
eacute formada por textos cada um deles eacute a unidade analiacutetica do discurso entendido como um
processo em curso (ORLANDI 2012 p 39) Assim tomamos o discurso de Homero e o
discurso de Euriacutepides como partes de um processo discursivo mais amplo
A Anaacutelise de Discurso trata de um sistema que envolve natildeo apenas o discurso em si
mas a relaccedilatildeo entre liacutengua ideologia e histoacuteria tendo em vista a produccedilatildeo de sentidos O
processo discursivo implica no perpasso da ideologia4 pelo discurso eacute ela que produz sentido
pois ldquose materializa na linguagemrdquo (ORLANDI 2012 p 96) A linguagem por sua vez ldquoeacute
linguagem porque faz sentido E [] soacute faz sentido porque se inscreve na histoacuteriardquo
(ORLANDI 2012 p 25 ndash grifos nossos) A histoacuteria eacute o sentido visto que o sujeito do
discurso ldquose faz (se significa) napela histoacuteriardquo (ORLANDI 2012 p 95)
A fim de chegarmos agrave compreensatildeo desse processo discursivo eacute necessaacuterio cumprir trecircs
etapas a partir da dessuperficializaccedilatildeo5 da superfiacutecie linguiacutestica (corpus documental)
selecionado (a) obtemos o objeto discursivo (b) que se transforma em processo discursivo
(c) ao chegarmos na formaccedilatildeo ideoloacutegica daquele objeto
(a) (b) (c)
3 A AD francesa eacute diferente da AD anglo-saxatilde enquanto aquela eacute oriunda da linguiacutestica e privilegia discursos escritos esta vem da antropologia e trabalha mais com discursos orais Aleacutem disso a francesa destaca os mais propoacutesitos textuais e a inglesa os comunicacionais (MAINGUENEAU 1997 p 16) 4 Defendemos que a ideologia em Homero eacute a proacutepria paideiacutea ldquoPor ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacuteticardquo (LESSA 2010 p 22) 5 O processo de dessuperficializaccedilatildeo consiste na ldquoanaacutelise do que chamamos materialidade linguiacutestica o como se diz o quem diz em que circunstacircncias etcrdquo (ORLANDI 2012 p 65)
dessuperficializaccedilatildeo
CORPUS
DOCUMENTAL
OBJETO
DISCURSIVO
PROCESSO
DISCURSIVO ideologia
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A Guerra de Troia (1250-1240 aC) eacute um dos eventos da Antiguidade Grega mais
relembrados por noacutes hoje em dia Enquanto para noacutes essas histoacuterias satildeo mitos natildeo existiram
de verdade para os gregos ela existiram de fato O passado que se reapropriava era um
passado veriacutedico de um tempo preteacuterito e a sua funccedilatildeo era extremamente didaacutetica com os
heroacuteis de outrora se aprendia a ser um verdadeiro homem Homero ou Euriacutepides ao
comporem seus textos natildeo questionavam a materialidade histoacuterica desses personagens e
mesmo Tuciacutedides um historiador utilizava a memoacuteria desses heroacuteis do passado em sua
Histoacuteria da Guerra do Peloponeso como se eles tivessem existido
Paacuteris Helena Heitor Menelau podem natildeo ter sido de ldquocarne e ossordquo mas
permanecem no nosso imaginaacuterio muitos filmes seacuteries de televisatildeo e mesmo livros de ficccedilatildeo
satildeo escritos tendo os mitos gregos como pano de fundo Essa reapropriaccedilatildeo do material miacutetico
natildeo eacute contudo exclusividade do mundo contemporacircneo tragedioacutegrafos e poetas dos periacuteodos
arcaico claacutessico e heleniacutestico tambeacutem manejavam esses mitos para compor suas proacuteprias
histoacuterias Do mesmo modo que podiam modificar as histoacuterias modificavam tambeacutem o caraacuteter
dos personagens
A imagem de Paacuteris como um completo covarde estaacute arraigada em nosso imaginaacuterio
Se tivermos em mente o desempenho de Paacuteris no Canto III da Iliacuteada essa ideia parece ser
bem apropriada (HOMERO Iliacuteada III vv 21-37) Tal episoacutedio nos chamou a atenccedilatildeo o
heroacutei foge (algo que ele natildeo deveria fazer pois eacute um heroacutei) Contudo Paacuteris decide retornar
para a luta (III vv 68-70) Em Euriacutepides natildeo temos cenas assim Paacuteris eacute apenas mencionado
No nosso corpus documental apenas em Aleacutexandros ele eacute de fato personagem (com falas
etc)
Assim como pretendemos analisar a sua representaccedilatildeo Atraveacutes da anaacutelise dos
adjetivosepiacutetetos que adornam sua caracterizaccedilatildeo e dos comentaacuterios dos outros personagens
acerca dele Catalogaremos esses elementos e inserindo-os no acircmbito do discurso iremos
delinear o personagem e qual o seu papel dentro da narrativa A helenista Irene de Jong
mostra que os personagens off-stage (que estatildeo fora do palco) tambeacutem desempenham papeacuteis
importantes denotando a ideia de que ldquolsquocontarrsquo natildeo precisa ser menos impressionante do que
lsquomostrarrsquordquo (DE JONG 2011 p 389)
A Iliacuteada e as trageacutedias euripidianas mostram momentos distintos da Greacutecia Antiga o
Periacuteodo Arcaico (VIII-VII aC) no qual a poesia grega floresceu com Homero e Hesiacuteodo
dois aedos que lanccedilaram as bases temaacuteticas para o gecircnero traacutegico o qual nasceu e entrou em
crise no Periacuteodo Claacutessico (V aC) e foi imortalizado por trecircs grandes tragedioacutegrafos Eacutesquilo
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Soacutefocles e Euriacutepides Ao recortarmos nossa pesquisa neste uacuteltimo traacutegico referimo-nos a
Atenas visto que seu cenaacuterio de composiccedilatildeo era nesta poacutelis
Em relaccedilatildeo a Euriacutepides natildeo temos problemas de dataccedilatildeo sabemos que ele eacute de fato
do seacuteculo V aC Entretanto com relaccedilatildeo a Homero esbarramos com esse problema Natildeo
sabemos quando ele foi composto ou quando ele foi colocado na escrita mas podemos chegar
a um consenso A maioria dos helenistas coloca a eacutepica homeacuterica no seacuteculo VIII aC poreacutem
haacute discordacircncias O historiador Gustavo Oliveira diferencia quatro abordagens acerca desses
embates acadecircmicos a) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram compostosrdquo
b) ldquoos poemas dizem respeito ao momento em que foram fixadosrdquo c) ldquoos poemas dizem
respeito ao periacuteodo que tentaram retratarrdquo d) ldquoos poemas dizem respeito ao passado recente
alcanccedilado na tentativa de atingir um passado ainda mais distanterdquo (OLIVEIRA 2012)6
Os defensores de (a) creem que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o reflexo da sociedade do
periacuteodo em que eles foram compostos e o historiador vecirc nisso um problema pois eacute necessaacuterio
fixar essa marca para se ter certeza de qual sociedade se analisa e ainda natildeo temos
comprovaccedilatildeo exata do periacuteodo em que a eacutepica homeacuterica foi composta Geralmente os
defensores dessa ideia colocam Homero no seacuteculo VIII aC
Recentemente ateacute mesmo a geneacutetica se debruccedilou sobre esse tema esses pesquisadores
acreditam que a liacutengua eacute como um DNA e as palavras genes Esses ldquogenesrdquo vatildeo passando de
uma liacutengua para outra criando raiacutezes etimoloacutegicas semelhantes como acontece na palavra
aacutegua (do proto-germacircnico watōr derivaram-se wato ndash goacutetico ndash water ndash inglecircs ndash wasser ndash
alematildeo ndash vatten ndash sueco ndash etc) (ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p
417) Eles isolam essas palavras em comum entre o hitita o grego moderno (essas duas as
quais se conhece a eacutepoca em que se desenvolveram) e o grego homeacuterico e atraveacutes de uma
frequecircncia de cadeia de Markov7 chegam agrave conclusatildeo que a antiguidade do grego da Iliacuteada eacute
de cerca de 2720 anos ou seja que seria mais ou menos de 707 aC Com a margem que eles
potildeem nesse meacutetodo os textos homeacutericos satildeo datados de entre 760 a 710 aC
O objetivo desses pesquisadores eacute mostrar que a ldquolinguagem pode ser usada como os
genes para ajudar na investigaccedilatildeo das questotildees histoacutericas arqueoloacutegicas e antropoloacutegicasrdquo
(ALTSCHULER CALUDE MEADE PAGEL 2013 p 419) e eles afirmam que como 6 Para conhecer quais helenistas partilham de quais opiniotildees consultar o artigo de Gustavo Oliveira intitulado Histoacuterias de Homero um balanccedilo das propostas de dataccedilatildeo dos poemas homeacutericos (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 7 Essa cadeia funciona do seguinte modo temos um objeto x do qual natildeo conhecemos nada mas tambeacutem temos dois objetos y e z que se relacionam com esse x e do qual conhecemos algo em comum Assim atraveacutes de uma foacutermula fixa conseguimos chegar ao resultado do nosso x Aqui no caso o x seria o grego homeacuterico o y e o z o hitita e o grego moderno
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esses textos satildeo oriundos de uma tradiccedilatildeo oral fica difiacutecil de dizer se essa data diz respeito a
quando eles foram produzidos ou cristalizados na escrita A importacircncia desse estudo eacute
tambeacutem mostrar como esse eacute um problema que natildeo intriga somente a noacutes cientistas humanos
mas aos cientistas das aacutereas de Exatas e Bioloacutegicas tambeacutem aumentando o leque de diaacutelogo
transdisciplinar Desse modo cremos que sua menccedilatildeo eacute essencial para chamar a atenccedilatildeo para
outras perspectivas de trabalho
Os defensores de (b) creem que os poemas dizem respeito agrave sociedade que os fixou na
escrita fazendo com que a dataccedilatildeo fique mais imprecisa ainda Natildeo haacute como chegar num
consenso como chegamos em (a) acerca de qual data seria mais apropriada Jaacute os que
defendem (c) acreditam que os poemas dizem respeito ao Periacuteodo Palaciano (XVII-1100
aC) pois fazem referecircncia a esse passado quando teria se desenrolado a Guerra de Troia
Essa proposta natildeo eacute tatildeo bem aceita embora alguns estudiosos admitam que haacute muacuteltiplas
temporalidades em Homero (OLIVEIRA 2012 p 133)
Os pesquisadores que adotam (d) como proposta de dataccedilatildeo acreditam que os eacutepicos
referem-se ao periacuteodo da desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) Um dos principais
defensores dessa ideia eacute o historiador Moses Finley ele afirma que ldquo[O mundo de Ulisses]
Era muito mais lsquosimplesrsquo na sua organizaccedilatildeo social e poliacutetica era iletrada [sic] e a sua
arquitetura natildeo era verdadeiramente monumental quer se destinasse aos vivos quer aos
mortosrdquo (FINLEY 1982 p 45) Eacute juntamente com (a) uma das principais perspectivas
Claude Mosseacute a inclui no seu verbete sobre Homero no Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega
(2004 p 171-172) mas admite que mesmo assim a dataccedilatildeo permanece um enigma para noacutes
Gustavo Oliveira afirma que ldquoo maior problema com essa tendecircncia de associar os poemas
homeacutericos com o periacuteodo da Idade das Trevas estaacute justamente na falta de documentaccedilatildeo que
comprove ou ao menos sugira sua probabilidaderdquo (OLIVEIRA 2012 p 135)
Do mesmo modo o historiador Alexandre Santos de Moraes aborda essa discussatildeo em
sua tese de doutorado afirmando ser o periacuteodo entre os seacuteculos X a IX aC o ideal para se
colocar o que a Iliacuteada e a Odisseia mostram a sociedade homeacuterica seria a sociedade da eacutepoca
de desestruturaccedilatildeo palaciana O autor revisita as teses de Anthony Snodgrass e Oswyn Murray
e toma Ian Morris como principal representante da dataccedilatildeo de Homero no seacuteculo VIII aC
desconstruindo muitos de seus argumentos A eacutepica homeacuterica natildeo deve ser considerada
oriunda de um periacuteodo no qual surge a escrita pois pertence agrave tradiccedilatildeo oral bem como natildeo
podemos atribuir a Homero a criaccedilatildeo de um sistema poliacuteade muitos autores afirmam que
podemos encontrar sinais da poacutelis em Homero
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Essa uacuteltima ideia eacute problemaacutetica a eacutepica jaacute traz o termo poacutelis mas ele natildeo diz respeito
agrave organizaccedilatildeo poliacutetica social econocircmica e administrativa que encontramos no Periacuteodo
Claacutessico O centro do poder em Homero eacute ainda o palaacutecio embora possamos encontrar
estruturas que estaratildeo presentes na poacutelis como a assembleia Nesses poemas haacute uma
miscelacircnea temporal muito grande natildeo podendo noacutes delimitarmos um uacutenico periacuteodo sem
sermos arbitraacuterios O proacuteprio Finley afirma que ldquoeacute com alguma liberdade que o historiador
fixa nos seacuteculos X e IX aC o mundo de Ulissesrdquo (FINLEY 1982 p 46)
Devido a essa polecircmica eacute muito difiacutecil para o historiador tomar uma posiccedilatildeo acerca da
data da composiccedilatildeo das epopeias Escolhemos o seacuteculo VIII aC agrave medida em que
defendemos que esses poemas dizem respeito jaacute a um movimento de conquista de apoikiacuteai
como defende o historiador Irad Malkin Mas eacute fato que a ancoragem histoacuterico-temporal
desses poemas pode retroceder mais no tempo visto que ele pertence a uma tradiccedilatildeo oral O
que vai mais nos interessar em nossa pesquisa eacute que a epopeia pertence a um tempo anterior
agraves trageacutedias
Sendo periacuteodos e gecircneros distintos cada um tende a representar Paacuteris de uma maneira
Nosso problema diz respeito a um processo que comeccedila com as epopeias de Homero e
continua a se desenvolver em outros gecircneros literaacuterios trata-se de um processo de elaboraccedilatildeo
de um coacutedigo de conduta social atraveacutes da praacutetica da paideiacutea8 o qual iraacute definir tambeacutem as
bases do que eacute grego e do que natildeo eacute Desde Homero haacute um discurso de alteridade Assim
indagamo-nos o que eacute grego9 O que natildeo eacute Era mais faacutecil para os gregos responderem agrave
uacuteltima pergunta definia-se o natildeo-grego para se definir o grego
Ao longo de toda a Odisseia o heroacutei Odisseu toma contato com Outros todavia eacute no
episoacutedio dos ciclopes em que se teraacute o contato com o grande representante da alteridade
helecircnica o qual seraacute recuperado por exemplo no drama satiacuterico Os Ciclopes de Euriacutepides
Odisseu os descreve assim ldquodestituiacutedos de leis que confiados nos deuses eternos natildeo soacute natildeo
cuidam de os campos lavrar como natildeo plantam nadardquo [ἀθεmicroίστων ἱκόmicroεθ᾽ οἵ ῥα θεοῖσι
πεποιθότες ἀθανάτοισιν οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ᾽ ἀρόωσιν] (HOMERO
Odisseia IX vv 107-108 ndash grifos nossos)
O que importa nessas sequecircncias natildeo eacute a caracterizaccedilatildeo dos ciclopes mas a definiccedilatildeo
daquilo que definitivamente natildeo eacute helecircnico Pela descriccedilatildeo de Odisseu podemos caracterizar 8 Literalmente paideiacutea significa ldquocriaccedilatildeo de meninosrdquo Ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas Para melhor definiccedilatildeo ver o capiacutetulo 1 de nossa dissertaccedilatildeo (Entre Homero e Euriacutepides dois estilos de composiccedilatildeo) 9 Vale ressaltar que ldquogregordquo aqui eacute uma conveniecircncia Haacute um intenso debate em torno do termo ldquohelenordquo ele eacute usado em Homero para designar determinado povo natildeo todos os povos gregos como seraacute no Periacuteodo Claacutessico
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os gregos eles vivem sob um coacutedigo de leis sua principal fonte de subsistecircncia eacute a
agricultura eles vivem em comunidade cultuam os deuses o patildeo eacute o seu principal alimento e
possuem caracteriacutesticas humanas sendo inclusive belos10
Por isso preferimos utilizar o conceito de alteridade tal qual Marc Augeacute propotildee Para ele
a identidade eacute produzida pelo reconhecimento de alteridades colocando em cena um Outro
(AUGEacute 1998 p 19 e 20) que pode ser a) o Outro exoacutetico que eacute definido a partir de um noacutes
homogecircneo b) o Outro eacutetnico homogecircneo ndash como eacute o caso dos gregos em relaccedilatildeo com os
baacuterbaros c) o Outro social (a mulher a crianccedila o transgressor) e o Outro iacutentimo pois temos
vaacuterias identidades (AUGEacute 2008 p 22-3)
Segundo esse antropoacutelogo ldquonatildeo existe afirmaccedilatildeo identitaacuteria sem redefiniccedilatildeo das relaccedilotildees
de alteridade como natildeo haacute cultura viva sem criaccedilatildeo culturalrdquo (AUGEacute 1998 p 28)
Identidade e alteridade natildeo se opotildeem natildeo se excluem formam um par complementando-se
visto que satildeo ldquocategorias [] que a constituem [a sociedade] e definemrdquo (AUGEacute 1998 p
10) Ele trabalha especificamente com a questatildeo da alteridade nos mitos na miacutedia e no
contato entre os colonizadores e os nativos
O conceito de alteridade tem uma origem marcadamente antropoloacutegica o contato com
outras culturas eacute imbuiacutedo de choques Contudo Charles Mugler aponta que a noccedilatildeo de outro
retrocede mais no tempo do que sua etimologia alteridade deriva do latim alter outro Mas
em Homero mesmo jaacute podemos ver o papel que o vocaacutebulo aacutellos ldquooutrordquo desempenha para
definir o dessemelhante (MUGLER 1969 p 1) E se pararmos para pensar o conectivo
adversativo ldquoallaacuterdquo que ateacute hoje significa ldquomasrdquo para os gregos tem uma origem nesse
vocaacutebulo (BAILLY 2000 p 82 CHANTRAINE 1968 p 63-4) o ldquooutrordquo assemelha-se ao
ldquomasrdquo ao adverso
Assim como o conceito de alteridade o de etnicidade tem um apelo marcadamente
antropoloacutegico Escolhemos trabalhar com o modo como Fredrik Barth entende a etnicidade e
mais ainda o que eacute uma fronteira eacutetnica e um grupo eacutetnico conceitos-chave para
entendermos sua abordagem Embora seja um texto claacutessico Barth conseguiu abarcar o que
compreendemos sobre etnicidade ou seja um discurso criado por um grupo para legitimar
seu lugar social sendo que esse discurso natildeo vem do nada mas sim da relaccedilatildeo com outros
grupos
10 O termo utilizado pelos helenos para designar o belo eacute kaloacutes que tem tanto uma conotaccedilatildeo de beleza externa quanto interna (virtude) podendo inclusive dependendo do contexto ser traduzido como ldquobomrdquo bem como o seu antocircnimo kakoacutes pode ser traduzido por ldquofeiordquo ou ldquomaurdquo
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O termo etnia vem de um outro eacutethnos que eacute ldquotoda classe de seres de origem ou de
condiccedilatildeo comumrdquo (BAILLY 2000 p 581) Ele pode designar tanto um bando de animais
(eacutethnea ndash nominativo eacutepico jocircnico plural ndash HOMERO Iliacuteada II 459 para gansos II 469
para moscas Odisseia XIV v 73 para porcos) quanto um conjunto de pessoas O termo
eacutethnos aparece geralmente ligado a uma estrutura formulaica como ldquoἂψ δ ἑτάρων εἰς
ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἐχάζετο κῆρ ἀλεείνωνrdquo (ldquomas de volta ao grupo ndash eacutethnos ndash dos companheiros retorna
evitando a morte em batalha - kḗrrdquo) ou ldquoἐπεὶ ἵκετο ἔἔἔἔθνοςθνοςθνοςθνος ἑταίρωνrdquo (ldquodepois voltou ao grupo
ndash eacutethnos ndash de companheirosrdquo11) visto que se repetem algumas vezes ao longo da Iliacuteada (a
primeira estrutura mais do a segunda)
O conceito de etnicidade comeccedilou a ser debatido recentemente desde a deacutecada de 1970
que esse debate se destaca
O debate sobre a etnicidade foi alimentado desde a deacutecada de 1970 por uma abundante bibliografia que se enriqueceu de modo consideraacutevel o conhecimento empiacuterico das situaccedilotildees intereacutetnicas atuais em todas as partes do mundo natildeo chegou verdadeiramente ateacute hoje a permitir que se destaque uma teoria geral da etnicidade (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 120)
Contudo a heterogeneidade do debate natildeo permitia que se chegasse a uma definiccedilatildeo
mais concreta de etnicidade e uma proposta de conceituaccedilatildeo ainda natildeo havia sido elaborada
Confundia-se (e ainda se confunde) muito os termos ldquoraccedilardquo e ldquoetniardquo que se configuram em
instacircncias diferentes a etnia diz respeito agraves relaccedilotildees sociais entre o ldquonoacutesrdquo e o ldquoelesrdquo e a raccedila
diz mais respeito agraves configuraccedilotildees bioloacutegico-fenotiacutepicas que diferenciam um grupo do outro
Obviamente o argumento racial seraacute utilizado algumas vezes para essa diferenciaccedilatildeo
dicotocircmica mas isso quer dizer que ele tem relaccedilatildeo com o conceito de etnicidade natildeo que
seja sinocircnimo deste
Assim Glazer amp Moynihan defendem que ldquoa etnicidade refere-se a um conjunto de
atributos ou de traccedilos tais como a liacutengua a religiatildeo os costumes o que a aproxima da noccedilatildeo
de cultura ou agrave ascendecircncia comum presumida dos membros o que a torna proacutexima da noccedilatildeo
de raccedilardquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86) Outros autores relacionam a
etnicidade com o que impulsiona a formaccedilatildeo de um povo com a adequaccedilatildeo comportamental
das pessoas agraves normas sociais de um grupo ou agraves representaccedilotildees que condensam a pertenccedila a
um grupo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 86)
11 Esses versos satildeo de traduccedilatildeo proacutepria
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Como pudemos ver as definiccedilotildees satildeo diversas Houve uma tentativa de juntar todas
essas definiccedilotildees para compor o conceito de etnicidade em fins da deacutecada de 1978 (Burgess)
mas que acabou por generalizaacute-lo No acircmbito da Histoacuteria Antiga o historiador americano
Jonathan M Hall procurou sumarizar em oito pontos o que ele entende por etnicidade a partir
de leituras diversas
(1) A etnicidade eacute um fenocircmeno mais social do que bioloacutegico Eacute definida mais por criteacuterios social e discursivamente construiacutedos do que por indiacutecios sociais
(2) Traccedilos culturais geneacuteticos linguiacutesticos religiosos ou comuns natildeo definem essencialmente o grupo eacutetnico Esses satildeo siacutembolos que satildeo manipulados de acordo com fronteiras atribuiacutedas construiacutedas subjetivamente
(3) O grupo eacutetnico eacute distinto de outros grupos sociais e associativos em virtude da associaccedilatildeo com um territoacuterio especiacutefico e um mito de origem compartilhado Essa noccedilatildeo de descendecircncia eacute mais putativa do que atual e julgada por consenso
(4) Os grupos eacutetnicos satildeo frequentemente formados pela apropriaccedilatildeo de recursos por uma seccedilatildeo da populaccedilatildeo ao custo de outra como resultado de uma conquista ou migraccedilatildeo de longa data ou pela reaccedilatildeo contra tais apropriaccedilotildees
(5) Os grupos eacutetnicos natildeo satildeo estaacuteticos ou monoliacuteticos mas dinacircmicos e fluidos Suas fronteiras satildeo permeaacuteveis ateacute certo grau e elas podem ser produto de um professo de assimilaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo
(6) Os indiviacuteduos natildeo precisam sempre agir em termos de sua pertenccedila a um grupo eacutetnico Quando contudo a identidade do grupo eacutetnico eacute ameaccedilada sua internalizaccedilatildeo como identidade social de cada um de seus membros implica numa convergecircncia de normas e comportamentos de grupo e a supressatildeo temporaacuteria da variabilidade individual no esforccedilo por uma identidade social positiva
(7) Tal convergecircncia comportamental e saliecircncia eacutetnica eacute mais comum entre (ainda que natildeo exclusiva a) grupos dominados e excluiacutedos
(8) A identidade eacutetnica soacute pode ser constituiacuteda em oposiccedilatildeo a outras identidades eacutetnicas (HALL 1997 p 33)
A definiccedilatildeo de Hall se aproxima bastante da defendida por Fredrik Barth e Abner
Cohen autores que nos chamaram a atenccedilatildeo Desse modo propomos nos debruccedilar sobre as
ideias deles dois visto que ambos nos chamaram a atenccedilatildeo ao tratar da etnicidade No
entanto escolhemos apenas um como norte teoacuterico o antropoacutelogo norueguecircs Fredrik Barth
Para esse autor o grupo eacutetnico natildeo eacute sinocircnimo de sociedade ou cultura Essa eacute uma premissa
fundamental visto que trabalhamos com dois grupos que compartilham de um mesmo coacutedigo
de conduta social Barth afirma que ldquoa identidade eacutetnica eacute associada a um conjunto cultural
especiacutefico de padrotildees valorativosrdquo (BARTH 2011 p 209) esse ldquoconjunto culturalrdquo seria
justamente a paideiacutea com o coacutedigo de conduta que ela transmite
Aleacutem disso ele enfoca justamente nos limites desse grupo eacutetnico a partir da definiccedilatildeo
de fronteira eacutetnica esse grupo natildeo eacute estaacutetico mas muda conforme entra em contato com
outros grupos justamente a fim de manter a sua proacutepria etnicidade Assim ldquoos traccedilos
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culturais que demarcam os limites do grupo podem mudar e a cultura pode ser objeto de
transformaccedilotildees sem que isso implique o esvaziamento da solidariedade eacutetnicardquo
(LUVIZOTTO 2009 p 31) Segundo Barth ldquose um grupo conserva sua identidade quando
os membros interagem com outros isso implica criteacuterios para determinar a pertenccedila e meios
para tornar manifesta a pertenccedila e a exclusatildeordquo (BARTH 2011 p 195)
A etnicidade eacute desse modo relacional eacute a partir do contato com os Outros que ela se
define e eacute a partir desse contato que ela tambeacutem se manteacutem ldquoO campo de pesquisa designado
pelo conceito de etnicidaderdquo afirmam Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart eacute aquele
que estuda ldquoos processos variaacuteveis e nunca terminados pelos quais os atores identificam-se e
satildeo identificados pelos outros na base de dicotomizaccedilotildees NoacutesEles estabelecidas a partir de
traccedilos culturais que se supotildee derivados de uma origem comum e realccedilados nas interaccedilotildees
raciaisrdquo (POUTIGNAT STREIFF-FENART 2011 p 141)
A etnicidade tambeacutem implica na construccedilatildeo de representaccedilotildees sociais pois ldquoa
identificaccedilatildeo de outra pessoa como pertencente a um grupo eacutetnico implica compartilhamento
de criteacuterios de avaliaccedilatildeo e julgamentordquo (BARTH 2011 p 196) pois assim se tem a ideia de
que se ldquojoga o mesmo jogordquo nas palavras mesmo de Barth Essas representaccedilotildees satildeo
fundamentais para manter as caracteriacutesticas do grupo visto que a comunicaccedilatildeo eacute o locus
privilegiado de inculcaccedilatildeo delas
Ao pesquisarmos sobre o conceito de etnicidade encontramos outro autor que nos
chamou bastante atenccedilatildeo o antropoacutelogo iraquiano Abner Cohen Esse autor estuda as
sociedades africanas contemporacircneas mostrando como os costumes influenciam a poliacutetica e
como o discurso eacutetnico define relaccedilotildees de poder entre grupos eacutetnicos Assim como Barth
Cohen tambeacutem crecirc que o grupo se define e se redefine pelo contato com outros grupos
eacutetnicos ldquoum grupo eacutetnico se ajusta a novas realidades sociais adotando costumes de outros
grupos ou desenvolvendo novos costumes que satildeo compartilhados com outros gruposrdquo
(COHEN 1969 p 1)
Aleacutem disso o antropoacutelogo afirma que
Os diferentes grupos eacutetnicos organizam essas funccedilotildees [normas culturais valores mitos e siacutembolos] de modos diferentes de acordo com as suas tradiccedilotildees culturais e circunstacircncias estruturais Alguns grupos eacutetnicos fazem uso extensivo dos idiomas religiosos organizando essas funccedilotildees Outros grupos usam a descendecircncia [kinship] ou outras formas de relaccedilotildees morais em vez disso No curso do tempo o mesmo grupo pode mudar de um princiacutepio articulador para outro como resultado de mudanccedilas dentro do sistema poliacutetico encapsulado de ou outros desenvolvimentos ambos dentro ou fora do grupo (COHEN 1969 p 5-6)
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Contudo esbarramos no pensamento desse antropoacutelogo quando este afirma que ldquode
acordo com o meu uso um grupo eacutetnico eacute um grupo de interesse informal cujos membros satildeo
distintos dos membros de outros grupos dentro da mesma sociedaderdquo (COHEN 1969 p 4)
Isso seria aplicaacutevel somente agrave Iliacuteada visto que aqueus e troianos seriam membros de uma
mesma comunidade (que estaacute sob um mesmo coacutedigo de conduta) embora sejam membros de
diferentes grupos eacutetnicos Entretanto na realidade de Euriacutepides em que a dicotomia grego
baacuterbaro estaacute bem mais definida (e em crise) essa observaccedilatildeo natildeo se aplica a sociedade grega
eacute diferente da sociedade baacuterbara
Especificamente tratando da Antiguidade Grega alguns autores se debruccedilaram sobre a
questatildeo da etnicidade e da alteridade O mais antigo registro bibliograacutefico que trazemos em
nossa discussatildeo eacute o da helenista Helen Bacon Barbarians in Greek tragedy (1955) Em seu
doutorado ela faz uma anaacutelise dos elementos que caracterizam o baacuterbaro nas trageacutedias de
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepides Tanto o vestuaacuterio como o modo de falar ou as accedilotildees definem
um personagem baacuterbaro mas dependendo do autor um ou outro elemento eacute enfatizado
Em 1989 Edith Hall publicou a sua tese doutoral Inventing the barbarian Greek
self-definition through tragedy que teve grande repercussatildeo no meio acadecircmico
Praticamente todos os livros que trazem a questatildeo da alteridadeetnicidade mencionam o
trabalho de Hall que se destina agrave anaacutelise da poesia traacutegica tambeacutem Sua hipoacutetese principal eacute a
de que quando os gregos escrevem sobre os baacuterbaros eles estatildeo fazendo um ldquoexerciacutecio de
auto-definiccedilatildeordquo pois eles satildeo opostos e que essa ldquoinvenccedilatildeordquo teria comeccedilado a partir das
Guerras Greco-Peacutersicas (490-479 aC) Aleacutem disso ela defende que a ideia de pan-helenismo
tem mais a ver com um ideal atenocecircntrico do que helenocecircntrico Com relaccedilatildeo a Homero ela
afirma que natildeo existe uma polarizaccedilatildeo entre gregos e baacuterbaros no poema embora essa
diferenciaccedilatildeo existisse nessa eacutepoca admitindo que a Guerra de Troia originalmente seria
entre duas comunidades (HALL 1989 p 23) Contudo ela critica os autores que veem em
Homero uma diferenciaccedilatildeo clara entre gregos e troianos
Em 1993 a helenista francesa Jacqueline de Romilly escreve um artigo comentando o
livro de Edith Hall Les barbares dans la penseacutee de la Gregravece classique Ela chama a atenccedilatildeo
para o fato de que mais do que inventar o baacuterbaro os gregos inventaram o helenismo
(ROMILLY 1993 p 3) A autora reforccedila a ideia de que essa dicotomia eacute mais poliacutetica do que
racial embora admita que os gregos se liguem tambeacutem pelo criteacuterio da raccedila
No mesmo ano Barbara Cassin Nicole Loraux e Catherine Peschanski organizaram
Gregos baacuterbaros estrangeiros a cidade e seus outros com cinco ensaios das autoras
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sobre a questatildeo da alteridade na Greacutecia Claacutessica especificamente apresentados no Rio de
Janeiro a convite do Coleacutegio Internacional de Estudos Filosoacuteficos Transdisciplinares Elas
analisam sobretudo como a poacutelis lidava com os seus Outros categorizando e caracterizando
o estrangeiro A documentaccedilatildeo principal reside na historiografia helecircnica sendo Heroacutedoto
Tuciacutedides e Xenofonte os mais trabalhados Elas mostram como os gregos satildeo gregos por
cultura natildeo por natureza e como eles podem voltar a ser baacuterbaros atraveacutes do desrespeito dos
coacutedigos de valores helecircnicos (CASSIN LORAUX 1993 p 10)
Um ano depois Pericles Georges escreveu um livro que aborda natildeo soacute o Periacuteodo
Claacutessico mas tambeacutem o Arcaico Barbarian Asia and the Greek experience from the
Archaic Period to the age of Xenophon Sua proposta no livro eacute mostrar como os gregos
estereotiparam o baacuterbaro e qual a origem disso evidenciando como essa definiccedilatildeo ajudou a
construir a identidade grega No tocante a Homero ele tambeacutem natildeo crecirc haver diferenciaccedilatildeo
entre gregos e troianos mas admite que a Iliacuteada jaacute traz uma diferenciaccedilatildeo entre o noacutes e o eles
sobretudo ao se referir aos caacuterios e liacutedios
Antonio Mario Battegazzore escreveu em 1996 um artigo interessante sobre essa
polarizaccedilatildeo grego versus baacuterbaro La dicotomia greci-barbari nella Grecia Classica
riflessioni su cause ed effetti di una visione etnocecircntrica Seu trabalho eacute interessante pois
corrobora a ideia de que os gregos tecircm dois tipos de leitura sobre os baacuterbaros uma horizontal
(na qual os gregos reivindicam uma centralidade geograacutefico-cultural em relaccedilatildeo aos outros
povos) e uma vertical (os gregos satildeo evoluiacutedos pois o passado baacuterbaro ficou para traacutes os
baacuterbaroi de hoje satildeo atrasados visto que pararam no tempo) (BATTEGAZZORE 1996 p
23) Ele natildeo admite a possibilidade de diferenciaccedilatildeo entre troianos e gregos na Iliacuteada
analisando essa dicotomia no Periacuteodo Claacutessico
O historiador Irad Malkin em 1998 escreve um livro inovador no que diz repeito ao
uso conceitual da etnicidade para o mundo Antigo The returns of Odysseus colonization
and ethnicity Ele analisa os nostoiacute heroacuteis que cruzam regiotildees tentando voltar para casa na
mitologia grega e os relaciona agrave definiccedilatildeo da identidade helecircnica a partir do contato com
Outros O autor defende por exemplo a ideia de que Odisseu na verdade seria uma metaacutefora
para a colonizaccedilatildeo helecircnica que acontecia sobretudo no seacuteculo VIII aC sendo assim um
ldquoheroacutei proto-colonialrdquo (MALKIN 1998 p 3) Em 2001 Malkin organizou um livro com
ensaios especificamente sobre a etnicidade no mundo grego Ancient Perceptions of Greek
Ethnicity aquecendo os debates sobre o tema
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Em 2002 dois trabalhos se destacaram no tocante agrave questatildeo da etnicidade helecircnica o
de Jonathan M Hall (Hellenicity between ethnicity and culture) e a coletacircnea de Thomas
Harrison (Greeks and barbarians) Hall jaacute havia escrito um livro em 1997 sobre a questatildeo
eacutetnica no mundo grego (Ethnic identity in Greek Antiquity) e o seu novo livro na verdade
eacute um aprofundamento do tema e um alargamento da gama de documentos utilizados Ele
defende que existem determinados elementos que definem as fronteiras eacutetnicas helecircnicas os
quais jaacute apontamos aqui em nossa introduccedilatildeo O livro de Harrison traz vaacuterios ensaios
transdisciplinares sobre essas diferenciaccedilotildees entre gregos e baacuterbaros vistos de uma
multiplicidade de naturezas documentais que vatildeo desde a literatura ateacute a cultura material
helecircnica
A helenista Lynette Mitchell em 2007 publicou seu Panhellenism and the
barbarian in Archaic and Classical Greece Ela tenta definir o que eacute esse pan-helenismo
estendendo a anaacutelise para o Periacuteodo Arcaico e defendendo que essa ideia natildeo eacute apenas cultural
ou poliacutetica mas necessariamente possui ambas as conotaccedilotildees Dois anos depois o classicista
P M Fraser escreveu seu Greek ethnic terminology no qual analisa o vocabulaacuterio eacutetnico
desde Homero ateacute Bizacircncio Ele mostra como o termo eacutethnos mudou ao longo do tempo indo
da simples designaccedilatildeo de uma coletividade ateacute uma demarcaccedilatildeo bem niacutetida do noacuteseles bem
como relaciona a ele outros termos (como geacutenos e poacutelis) que desempenham essa marcaccedilatildeo
eacutetnica
Efi Papadodimas escreveu em 2010 um artigo digno de nota pois se debruccedila
especificamente sobre Euriacutepides The GreekBarbarian interaction in Euripides Andromache
Orestes Heracleidae a reassessment of Greek attitudes to foreigners Ele mostra como nas
trageacutedias euripidianas a dicotomia grego versus baacuterbaro estaacute cada vez mais fluida visto que o
tragedioacutegrafo testemunha a ldquobarbarizaccedilatildeordquo dos proacuteprios gregos Para o autor essa ideia de
que o baacuterbaro eacute um oposto entra em crise natildeo sendo difiacutecil encontrar em suas trageacutedias
gregos agindo como baacuterbaros
O historiador grego Kostas Vlassopoulos em seu Greeks and barbarians (2013)
tentou desconstruir a ideia de que o grego eacute diametralmente oposto ao baacuterbaro analisando
como gregos e baacuterbaros conviviam no espaccedilo mediterracircnico Esse eacute o principal argumento do
seu livro Os gregos num plano discursivo procuraram diferenciar o baacuterbaro de si a fim de
fundar sua proacutepria identidade mas na praacutetica os gregos dialogaram bastante com os natildeo-
gregos atraveacutes de trocas culturais as quais natildeo diziam respeito somente agrave imposiccedilatildeo mas agrave
circulaccedilatildeo mesmo de ideias e tecnologias pelo Mediterracircneo Essas trocas tiveram como
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principal palco o mundo das apoikiacuteai as ldquocolocircniasrdquo gregas as quais frequentemente ou
adotavam os costumes gregos (sobretudo o modo de organizaccedilatildeo poliacuteade) ou recebiam-nos e
modificavam-nos adaptando-os aos seus contextos
Nosso trabalho propotildee analisar comparativamente os elementos que definiam as
fronteiras eacutetnicas em Homero e em Euriacutepides sobretudo a partir da anaacutelise do heroacutei Paacuteris
visto por noacutes como o Outro por excelecircncia na Iliacuteada e nas trageacutedias do ciclo troiano
Dividimos nosso trabalho em trecircs capiacutetulos o primeiro trata da etnicidade de uma forma geral
dentro das poesias eacutepica e traacutegica dessuperficializando os textos que analisaremos em nosso
trabalho Jaacute o segundo trata de um aspecto recorrente na representaccedilatildeo de Paacuteris nossa
comparaacutevel ele como sendo um causador de males Vamos ver como Homero e Euriacutepides
tratam disso destacando como essa caracteriacutestica engloba uma seacuterie de elementos que
definem fronteiras eacutetnicas tanto na epopeia quanto na trageacutedia No terceiro capiacutetulo nos
debruccedilamos sobre um Paacuteris guerreiro e como a sua representaccedilatildeo como tal corrobora a
definiccedilatildeo desse personagem como sendo um Outro bem como Homero e Euriacutepides lidam
com essa alteridade dos troianos
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CAPIacuteTULO 1 | ENTRE HOMERO E EURIacutePIDES DOIS ESTILOS DE
COMPOSICcedilAtildeO
ldquo[] a epopeia [de Homero] eacute aqui construiacuteda como uma trageacutediardquo
(ROMILLY 2013 p 47)
Nesse capiacutetulo vamos trabalhar a literariedade da epopeia homeacuterica e a trageacutedia
euripidiana ou seja o que faz dessas obras textos literaacuterios (ANDRADE 1998 p 27) que
satildeo ldquoobjeto[s] de conhecimento que representa[m] alegoricamente o ponto de vista do escritor
a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31) Faremos isso de modo a mostrar
como elas pertencem a um mesmo espaccedilo discursivo bem como a construccedilatildeo delas implica
em um discurso que molda uma etnicidade helecircnica Por isso a epiacutegrafe de Jacqueline de
Romilly se faz de extrema importacircncia para abrirmos nossa discussatildeo ela acredita que a
epopeia homeacuterica se constroacutei agrave maneira de uma trageacutedia Obviamente Homero natildeo previu a
existecircncia dos traacutegicos fazendo um poema que parecesse com uma trageacutedia futura Contudo
a afirmaccedilatildeo da helenista francesa implica na ideia de que as trageacutedias foram influenciadas
pelas epopeias
Os textos homeacutericos satildeo arquitextos12 natildeo somente para Euriacutepides mas para toda a
tradiccedilatildeo literaacuteria grega posterior sendo que tanto Homero quanto Euriacutepides satildeo hoje ambos
arquitextos eles influenciam no modo como produzimos textos (sejam eles escritos visuais
orais etc) Tanto a epopeia quanto a trageacutedia fazem parte do mesmo espaccedilo discursivo13 o
material miacutetico homeacuterico serviu aos tragedioacutegrafos a utilizaccedilatildeo de epiacutetetos e comentaacuterios
para caracterizar um personagem eacute tomada emprestada dessa tradiccedilatildeo eacutepica bem como a
utilizaccedilatildeo de algumas foacutermulas conhecidas do puacuteblico
Desse modo podemos dizer que poesia eacutepica e traacutegica fazem parte de uma mesma
tradiccedilatildeo mito-poeacutetica No entanto natildeo podemos afirmar que o mito se desenrola na trageacutedia
da mesma maneira que em Homero Se fosse assim dificilmente as peccedilas de teatro atrairiam a
atenccedilatildeo do puacuteblico ateniense do seacuteculo V aC afinal ningueacutem quer ver a mesma histoacuteria
contada do mesmo modo diversas vezes Nenhum texto embora influenciado por outros eacute
12 O arquitexto designa ldquoas obras que possuem um estatuto exemplar que pertencem ao corpus de referecircncia de um ou de vaacuterios posicionamentos de um discurso constituinterdquo (MAINGUENEAU 2008 p 64) 13 ldquoO lsquoespaccedilo discursivorsquo enfim delimita um subconjunto do campo discursivo ligando pelo menos duas formaccedilotildees discursivas que supotildee-se mantecircm relaccedilotildees privilegiadas cruciais para a compreensatildeo dos discursos consideradosrdquo (MAINGUENEAU 1997 p 117)
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igual a esses predecessores eles possuem um interdiscurso que eacute esse diaacutelogo com tradiccedilotildees
literaacuterias posteriores mas nunca satildeo coacutepias puras e simples
Homero mesmo embora seja um arquitexto natildeo pode ser considerado o iniacutecio de um
processo discursivo ele faz parte desse processo visto que nos seus textos jaacute existe um
interdiscurso Homero eacute um dos aedos que circulavam pela Greacutecia naquela eacutepoca e ainda
havia outros como ele antes dele Aleacutem disso ele eacute influenciado por vaacuterias tradiccedilotildees literaacuterias
que jaacute existiam Um exemplo disso eacute a utilizaccedilatildeo do contexto intralinguiacutestico da poesia
iacircmbica para compor alguns personagens como o proacuteprio Paacuteris (SUTER 1984) esse tipo de
verso era utilizado para acusar algueacutem de algo Assim a composiccedilatildeo de algumas sentenccedilas
relativas agrave Paacuteris sobretudo quando o sujeito enunciador eacute um personagem da Iliacuteada (como
Priacuteamo ou Heitor) conservam esse ato de linguagem14 iacircmbico
Escolhemos dois gecircneros15 discursivos para trabalhar com Paacuteris a epopeia de
Homero e as trageacutedias de Euriacutepides Antes de apresentarmos as anaacutelises comparadas do
nosso heroacutei em cada um deles eacute mister discorrermos sobre a natureza da composiccedilatildeo desses
dois textos pois trabalhamos com a Anaacutelise de Discurso como meacutetodo de leitura deles Para o
analista eacute importante dessuperficializar o corpus documental para criar um objeto discursivo
sobre o qual enfim nos debruccedilamos com fins analiacuteticos
Essa dessuperficializaccedilatildeo consiste em dirigir aos textos perguntas que vatildeo ancorar
nossa leitura em um determinado tempo espaccedilo e sociedade ldquoQuem escreveurdquo ldquoQuando
escreveurdquo ldquoOnde escreveurdquo ldquoDe onde essa pessoa veiordquo ldquoPara quem ela escreverdquo ldquoO
que ela defenderdquo ldquoQual o gecircnero do textordquo satildeo perguntas que devemos fazer antes de
comeccedilar a analisar qualquer documentaccedilatildeo
Esse processo tem a ver com a proacutepria classificaccedilatildeo do gecircnero discursivo ao qual
pertence um determinado discurso ldquoO fato de que um texto seja destinado a ser cantado lido
em voz alta acompanhado por instrumentos musicais de determinado tipo que circule de
determinada maneira e em certos espaccedilos tudo isto [sic] incide radicalmente sobre seu
modo de existecircncia semioacuteticardquo (MAINGUENEAU 1997 p 36) O gecircnero eacute tatildeo importante na
construccedilatildeo do discurso que na Greacutecia Antiga ele influenciava diretamente na escolha do
dialeto da composiccedilatildeo dos textos como a linguista britacircnica Anna Morpurgo Davies nos
explica
14 O ato de linguagem eacute uma sequecircncia linguiacutestica com um valor ilocutoacuterio ou seja dotado de uma determinada forccedila (no caso da poesia iacircmbica de acusaccedilatildeo) que pretende operar sobre o sujeito receptor uma transformaccedilatildeo 15 Podemos classificar os gecircneros de diferentes maneiras de acordo com suas condiccedilotildees comunicacionais (como fala onde fala etc) e estatutaacuterias (quem fala para quem fala qual o lugar social de cada sujeito do discurso etc)
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O verso eacutepico eacute escrito em alguma forma de jocircnico A trageacutedia aacutetica eacute escrita em aacutetico exceto pelos coros os quais estatildeo em uma forma doacuterica modificada A poesia liacuterica pode estar em eoacutelico a prosa literaacuteria natildeo Em um nuacutemero de instacircncias a escolha do dialeto eacute independente da origem do autor Piacutendaro era de Tebas mas natildeo escreve em beoacutecio Hesiacuteodo era tambeacutem da Beoacutecia mas compocircs em uma linguagem eacutepica ie em uma forma compoacutesita de jocircnico (DAVIES 2002 p 157)
A Iliacuteada natildeo era encenada do mesmo modo que as trageacutedias natildeo se restringiam a uma
reacutecita as performances eacutepica e traacutegica eram diferentes Para o melhor aproveitamento do
estudo do nosso corpus e corroboraccedilatildeo de nossas hipoacuteteses devemos observar natildeo somente as
semelhanccedilas e diferenccedilas mas tambeacutem quais as peculiaridades que cada gecircnero discursivo
nos traz Diferentemente da Iliacuteada as trageacutedias natildeo satildeo tatildeo extensas para termos uma noccedilatildeo
a maior das trageacutedias que vamos estudar (Orestes com 1693 versos) corresponde a somente
1078 da Iliacuteada (que possui 15693 versos) As reacutecitas aeacutedicas e rapsoacutedicas eram
episoacutedicas a Iliacuteada e a Odisseia natildeo eram cantadas de uma vez soacute selecionando-se apenas
episoacutedios Essa praacutetica estaacute presente na documentaccedilatildeo mesma no Canto VIII da Odisseia (vv
266-369) Demoacutedoco conta o episoacutedio da traiccedilatildeo de Afrodite e Ares
Outra diferenccedila a se sublinhar eacute o proacuteprio modo de compor o aedo natildeo escrevia seus
poemas ao contraacuterio do traacutegico O aedo memorizava o poema ou compunha-o na hora para o
seu puacuteblico utilizando uma mnemoteacutecnica16 Desse modo vemos se repetirem foacutermulas como
ldquoAssim que a Aurora de dedos de rosa surgiu matutinardquo [ἦmicroος δ᾽ ἠριγένεια φάνη
ῥοδοδάκτυλος Ἠώς] e epiacutetetos (como theoeidḗs relativo a Paacuteris) que equivaliam a uma
pausa necessaacuteria para o cantor se lembrar do que falaraacute a seguir e para ele poder compor
atraveacutes do manejo do hexacircmetro dactiacutelico os seus versos
Euriacutepides escreveu as suas trageacutedias e cada ator (em sua eacutepoca trecircs17) decorava suas
falas e as interpretava em cima do palco Surge aqui entatildeo mais um elemento que distingue o
gecircnero eacutepico do traacutegico a forma do texto Em Homero haacute diaacutelogos entre personagens espaccedilo
para eles falarem contudo isso se daacute atraveacutes do discurso indireto livre de um narrador
onisciente18 Nas trageacutedias esse narrador desaparece o discurso eacute direto mesmo quando se
trata do coro e os narradores satildeo sempre personagens Os diaacutelogos exerciam um papel muito 16 A mnemoteacutecnica seria a arte no caso do aedo de lembrar e improvisar se preciso os versos a serem recitados A tiacutetulo de aprofundamento do tema ver o capiacutetulo II de Mestres da Verdade na Greacutecia Arcaica de Marcel Detienne (consultar Referecircncias bibliograacuteficas) 17 Eacute atribuiacutedo a Soacutefocles a introduccedilatildeo do terceiro ator Ateacute entatildeo as trageacutedias eram interpretadas por apenas dois atores Cada vez mais o ator vai ganhando destaque nas produccedilotildees traacutegicas e a partir de 449 aC havia natildeo soacute competiccedilotildees de trageacutedias em si mas de atores tambeacutem (SCODEL 2011 p 53-54) 18 O narrador onisciente eacute aquele que conhece passado presente e futuro da histoacuteria e o iacutentimo de cada personagem mas que natildeo participa da trama
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importante em determinadas trageacutedias mesmo o falar da personagem jaacute mostrava a que
acircmbito social ela pertencia como acontece com o friacutegio de Orestes (que eacute marcadamente um
baacuterbaro) ou com Paacuteris em Alexandre cuja desenvoltura no falar denuncia que ele natildeo eacute um
pastor comum e excede aos outros
Aleacutem disso natildeo eacute o autor que interpreta suas peccedilas19 ele delega essa funccedilatildeo aos
atores A encenaccedilatildeo traacutegica natildeo corresponde somente agrave trageacutedia em si havia esses atores (no
caso de Euriacutepides trecircs20) que representavam os personagens O figurino as maacutescaras
deveriam trazer consigo as particularidades de cada personagem e torna-lo reconheciacutevel ao
puacuteblico eles deveriam saber quem era o mensageiro o deus o anciatildeo o heroacutei a mulher e
assim por diante Diferentemente o aedo eacute ele mesmo narrador de sua histoacuteria
Outro elemento eacute o espaccedilo da performance a reacutecita aeacutedica ocorre geralmente em
banquetes enquanto as encenaccedilotildees traacutegicas tecircm o espaccedilo do odeacuteon (teatro) para se desenrolar
Isso natildeo significa contudo que o puacuteblico do aedo seja mais restrito do que o do traacutegico
Podemos pensar que enquanto a epopeia geralmente era cantada no espaccedilo do banquete
aristocraacutetico21 a trageacutedia se encenava no espaccedilo da poacutelis custeada pelos cidadatildeos ricos e
aberta a toda a populaccedilatildeo (ROMILLY 1997 p 16) e por isso o alcance dela era maior22
Contudo natildeo podemos nos esquecer de que o poeta era itinerante fazendo suas epopeias
chegarem a vaacuterios lugares da Greacutecia Essa eacute uma ideia bastante explorada pelo historiador
Alexandre Santos de Moraes que ressalta
A certa estabilidade de que alguns aedos gozavam nos palaacutecios e ambientes aristocraacuteticos homeacutericos natildeo deve enublar nossas leituras [] quando encontramos o aedo iliaacutedico Tamiacuteris que viajava para competir com outros aedos ou mesmo o identificado no Hino Homeacuterico a Apolo que solicitara agraves donzelas deacutelias que perpetuassem sua fama par os outros aedos que por ali passassem chegamos agrave conclusatildeo de que esse sedentarismo nada mais era do que uma condiccedilatildeo momentacircnea [] A erracircncia portanto natildeo eacute apenas adequada a esses aedos eacute provaacutevel que tenha sido um meio indispensaacutevel para a ampliaccedilatildeo de seu repertoacuterio e a aquisiccedilatildeo de novos materiais e canccedilotildees (MORAES 2012 p 73 ndash grifos nossos)
Quando vamos estudar os mitos gregos ldquoconveacutem ter em conta essa fragmentariedade
das reliacutequias e a facilidade de variaccedilatildeo que oferecem os relatos dos poetasrdquo (GUAL 1996 p
19 Segundo Ruth Scodel no iniacutecio os tragedioacutegrafos poderiam ter sido eles mesmos atores em suas trageacutedias (SCODEL 2011 p 45) 20 Atribui-se a Soacutefocles o meacuterito de ter elevado de dois para trecircs o nuacutemero de atores Na eacutepoca de Eacutesquilo existiam somente dois (ROMILLY 1999 p 33) 21 Tambeacutem havia reacutecitas em concursos mas essas eram feitas por rapsodos que reproduziam versos de aedos 22 Embora os cidadatildeos mais pobres pudessem assistir agraves trageacutedias atraveacutes de um financiamento governamental (theōrikaacute) a maioria do puacuteblico no teatro advinha da elite (SCODEL 2011 p 53)
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24) Os mitos em si satildeo bastante variaacuteveis existem mitos que natildeo tecircm uma uacutenica versatildeo
Afrodite por exemplo eacute filha de Zeus em Homero (Iliacuteada V v 131) e filha de Uranos em
Hesiacuteodo (Teogonia vv 180-200) Os mitos eram passados de geraccedilatildeo para geraccedilatildeo pela via
oral tanto pelos poetas quanto pelos proacuteprios ouvintes que passavam as histoacuterias adiante
Aleacutem disso como vimos esses mitos circulavam mesmo na eacutepoca traacutegica as peccedilas poderiam
ser apresentadas em localidades outras aleacutem de Atenas Por isso que os mitos possuiacuteam uma
variaccedilatildeo muito grande de regiatildeo para regiatildeo sobretudo antes de terem sido escritos como na
eacutepoca arcaica O poema ldquooriginalrdquo (se assim considerarmos que existia um) sempre chega
com modificaccedilotildees conforme passa de uma pessoa para outra
Esses textos foram copiados e recopiados ao longo dos seacuteculos durante a denominada
Idade Meacutedia os manuscritos eacutepicos traacutegicos e historiograacuteficos serviam para o ensino do
grego Os copistas reproduziam determinados textos gregos conforme o gosto de quem os
encomendava Devido a isso muito se pensou que durante a Idade Meacutedia as obras da Greacutecia
Antiga se perderam entretanto isso eacute inverificaacutevel visto que foi a partir dos manuscritos
conservados em bibliotecas que foram possiacuteveis as ediccedilotildees impressas que temos hoje
Por causa dessa circulaccedilatildeo intensa dos eacutepicos e das trageacutedias existem as
interpolaccedilotildees versos inseridos a posteriori Em relaccedilatildeo a Homero desde a Antiguidade23
seus poemas satildeo como o pomo da discoacuterdia pois muita tinta foi derramada e muitos autores
jaacute debateram tanto sobre sua verossimilhanccedila quanto pela sua autoria conteuacutedo ou forma
Esses estudos se baseiam nos poemas em texto jaacute cristalizados pela escrita24 O trabalho com
as obras de Homero assim esbarra com a Questatildeo Homeacuterica Ela se constitui de uma seacuterie de
debates acerca da autoria da veracidade e da unidade dos poemas e muito jaacute se escreveu sobre
ela desde o seacuteculo XVIII De fato um Homero parece natildeo ter existido mas cremos que o fio
condutor dos dois poemas que lhes datildeo unidade eacute a proacutepria ideologia que os perpassa Natildeo
se comprovou ainda a existecircncia da Guerra de Troia conjectura-se que se ela ocorreu
provavelmente foi entre 1250-1240 aC quando a regiatildeo de Wilǔsa estava em disputa No
entanto eacute fato que a sociedade representada por Homero tem uma materialidade histoacuterica
23 Robert Aubreton elenca os criacuteticos de Homero que satildeo conhecidos Demoacutecrito de Abdera Hiacutepias de Eacutelis Estesiacutembroto de Tasos Hiacutepias de Tasos Aristoacuteteles Cameleatildeo Heraacuteclides Pocircntico Filotas de Coacutes Zenoacutedoto de Eacutefeso Neoptoacutelemo de Paacuterio Aristoacutefanes de Bizacircncio e Aristarco 24 Eacute comum a ideia de que Pistiacutestrato tirano grego no seacuteculo VI mandou que se colocassem por escritos os poemas homeacutericos graccedilas aos escritos de Wolf que a partir de documentaccedilatildeo oriunda da Antiguidade concluiu isso (WHITMAN 1965 p 66) Contudo o helenista norte-americano Cedric Whitman afirma que essa ideia eacute impossiacutevel pois ldquoos dois grandes eacutepicos nacionais dos gregos ndash se lsquonacionalrsquo eacute colocado para significar pan-helecircnico ou pan-ateniense e de certo modo satildeo os dois ndash nunca poderia ter nascido de um programa cultural engendrado por um tirano [despot]rdquo (WHITMAN 1965 p 74) Ele mostra uma seacuterie de outras origens para o eacutepico mostrando que eacute mais plausiacutevel diversas versotildees tivessem existido
29
Como mostramos em nossa introduccedilatildeo os poemas homeacutericos foram compostos no
seacuteculo VIII aC mas referem-se ao seacuteculo XIII aC Desse modo elas imiscuem dois
periacuteodos o Palaciano (XVII-XII aC) e o Poliacuteade Arcaico (VIII-VII aC) A arqueologia
tem nos revelado muito acerca dessa constataccedilatildeo e esbarraremos com algumas delas ao longo
do nosso estudo de caso Por exemplo em Homero haacute a presenccedila de duas praacuteticas funeraacuterias
a inumaccedilatildeo e a incineraccedilatildeo Aquela era mais comum na eacutepoca dos palaacutecios as escavaccedilotildees em
Cnossos e Micenas revelaram vaacuterios tuacutemulos escavados ou com cuacutepula (thoacuteloi) A praacutetica de
incinerar os mortos comeccedila a surgir na eacutepoca micecircnica mas se difunde ao longo do periacuteodo
poliacuteade A metalurgia do ferro natildeo era comum na Greacutecia na eacutepoca dos palaacutecios o bronze era
o metal predominante Jaacute na eacutepoca de composiccedilatildeo dos poemas ela era largamente praticada
O poeta mistura elementos de um tempo preteacuterito e de um presente a fim tanto de ambientar
sua obra quanto tornar a sociedade que ele representa familiar agrave sua audiecircncia
Estrabatildeo (c 6463 aC ndash 24 aC) geoacutegrafo grego resgata o debate entre Poliacutebio (203-
120 aC) e Eratoacutestenes (c 276273 aC ndash 194 aC) acerca dos poemas homeacutericos Este
uacuteltimo acredita que o intuito do poeta foi apenas entreter seu puacuteblico com uma histoacuteria
fantasiosa desprovendo seus poemas de quaisquer informaccedilotildees veriacutedicas Poliacutebio reconhece
que o relato homeacuterico eacute imerso em fantasia mas evidencia ldquoa existecircncia de dados histoacutericos e
geograacuteficos corretosrdquo (GABBA 1986 p 38) Estrabatildeo se inclina para essa uacuteltima opiniatildeo
reconhecendo que tanto a Iliacuteada quanto a Odisseia contam eventos que realmente ocorreram
como a guerra de Troia e as viagens de Odisseu do mesmo modo que afirma serem os dados
geograacuteficos e topograacuteficos de uma grande precisatildeo (GABBA 1986 p 39)
Hoje nos debruccedilamos sobre as epopeias de Homero cientes de que veraz eacute um termo
extremo para designar as narrativas homeacutericas Verossiacutemil talvez agrave medida que a arqueologia
nos forneceu muitos dados os quais mostram que Iliacuteada e a Odisseia natildeo estatildeo
completamente fora nem do tempo em que foram compostas nem do tempo a que se referem
Natildeo podemos contudo negar essa materialidade dos poemas porque ele possui uma
ancoragem social espacial e temporal
O texto literaacuterio eacute o ldquoobjeto de conhecimento que representa alegoricamente o ponto
de vista do escritor [autor] a respeito da realidade humanardquo (ANDRADE 1998 p 31 ndash grifos
nossos) e eacute essa ldquorealidade humanardquo que vai nos interessar tanto no estudo da poesia eacutepica
quanto da traacutegica sendo esses dois gecircneros discursivos profiacutecuos para o estudo da eacutepoca que
esses textos foram compostos As epopeias e as trageacutedias natildeo representam a sociedade
30
palaciana (do periacuteodo da Guerra de Troia) mas a sociedade poliacuteade arcaica e a claacutessica em
que o aedo e o tragedioacutegrafo compuseram respectivamente
No caso da trageacutedia essas interpolaccedilotildees tambeacutem existem a classicista Ruth Scodel
traz a ideia de que Ifigecircnia em Aacuteulis por exemplo tem partes que natildeo foram escritas por
Euriacutepides e que muitos especialistas concordam que a fala final do mensageiro natildeo estava na
trageacutedia original (SCODEL 2011 p 6) A exclusatildeo do nosso corpus da trageacutedia Rhesus
deveu-se dentre outros motivos ao fato de natildeo sabermos se ela realmente foi escrita por esse
tragedioacutegrafo A Antiguidade eacute um periacuteodo da Histoacuteria que possui escassez de documentaccedilatildeo
escrita e isso dificulta o trabalho do historiador da literatura grega Aleacutem disso esbarramos
frequentemente com esses problemas documentais os quais apresentamos acima Nesse
sentido a Arqueologia nos ajuda bastante ao trazer agrave luz a cultura material da eacutepoca bem
como o faz a Filologia ao tentar recuperar fragmentos perdidos de textos antigos
O papel desse uacuteltimo ramo das Ciecircncias Humanas eacute particularmente importante no
caso de um de nossos textos o fragmento traacutegico Alexandre de Euriacutepides Essa trageacutedia eacute
peculiar nesse estudo pois apenas fragmentos dela chegaram ateacute noacutes Sabemos como esses
materiais (em especial o papiro) satildeo pereciacuteveis e no caso de Alexandre aleacutem da maior parte
da trageacutedia ter se perdido no tempo muitas palavras e ateacute mesmo a indicaccedilatildeo de sujeitos
enunciadores desconhecemos no fragmento 54 por exemplo o personagem que fala pode ser
tanto Paacuteris quanto um mensageiro No fragmento 62a haacute vaacuterias lacunas no iniacutecio de alguns
versos (vv 4 6 11-14 16 e 17) devido ao desgaste do tempo nas bordas do papiro que levou
para sempre o que estava escrito ali
No entanto algumas sentenccedilas satildeo passiacuteveis de serem reconstituiacutedas e especialistas em
liacutengua grega constantemente se debruccedilam sobre esse tipo de documentaccedilatildeo para tentar
preencher esses vazios causados pela deterioraccedilatildeo do material Como satildeo vaacuterias as pessoas
que se dedicam a isso vaacuterios podem ser os resultados finais desses preenchimentos Abaixo
um exemplo de como trecircs estudiosos podem fazer essa reconstituiccedilatildeo de maneira diferente
Reconstituiccedilatildeo do Reconstituiccedilatildeo do argumento Reconstituiccedilatildeo do
31
argumento (test iii l 17-
18) de R A Coles (1974)
(test iii l 17-18) de W
Luppe (1977)
argumento (test iii l 17-
18) de Christopher
Collard e Martin Cropp
(2008)
ἐπερωτηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω [] π[1-2]ρειτο καὶ
[]
ἀπ[ολο]γηθεὶς [δ]ὲ επὶ τοῦ δυνά-
στο[υ] τ[ι]microωρ[ίαν] π[α]ρεῖτο καὶ
[]
ηθεὶς [δ]ὲ ἐπὶ τοῦ δυνά-
στου ω[][()]ρειτο καὶ
[]
Luppe e Coles completam algumas lacunas que Collard e Cropp preferem deixar
apenas com a indicaccedilatildeo de que havia algo ali que foi perdido Assim como Collard e Cropp agraves
vezes datildeo certeza de algo que em Coles e Luppe estava indicado como uma suposiccedilatildeo (como
no caso da palavra dynaacutestou)
Desse modo esse tipo de documentaccedilatildeo estaacute sempre em modificaccedilatildeo embora como
David Kovacs reconhece (KOVACS 2002 p 48) o assunto do texto em si natildeo se modifique
(aqui no caso do argumento a ideia da existecircncia de um agoacuten que eacute o proacuteprio tema da peccedila
em si uma vez que ela trata da disputa entre Paacuteris e Diomedes pela vitoacuteria nos jogos
realizados por Troia) No caso de Alexandre o argumento25 encontrado apenas
posteriormente agrave descoberta dos restos da trageacutedia em si foi essencial para saber do que de
fato ela se tratava e para ajudar os pesquisadores a tentar chegar a um consenso sobre essas
perdas leacutexicas e de indicaccedilotildees dos sujeitos enunciadores
Essa trageacutedia provavelmente era a primeira de uma tetralogia (trageacutedia 1 + trageacutedia 2
+ trageacutedia 3 + drama satiacuterico) que se constituiacutea dela mesma de Palamedes (tambeacutem
fragmentaacuteria) de As Troianas e de Siacutesifo (desaparecida) Haacute questionamentos acerca dessa
ideia mas eacute inegaacutevel que as trecircs trageacutedias tecircm muito em comum a accedilatildeo de Alexandre
comeccedila na montanha (monte Ida) Palamedes se desenrola nas planiacutecies (a cidade em si) e As
Troianas eacute ambientada na praia (acampamento grego) o que denota uma organicidade na
composiccedilatildeo da trilogia e um movimento progressivo sobretudo porque a proacutepria Atenas era
assim constituiacuteda espacialmente (MARISCAL 2003 p 214 e p 444)
A helenista Luciacutea Romero Mariscal trabalha especificamente com Alexandre e suas
propostas chamaram nossa atenccedilatildeo pelo fato de ela mostrar como o tema da peccedila eacute
extremamente influenciado pelos acontecimentos da eacutepoca bem como ela conseguir
relacionar o personagem principal (Paacuteris) a Alcibiacuteades cidadatildeo ateniense que ajudou os
25 O argumento eacute uma anotaccedilatildeo feita por estudiosos copistas que antecede a trageacutedia Ele a resume e pode dar algumas informaccedilotildees importantes no tocante agrave sua apresentaccedilatildeo
32
espartanos durante a Guerra do Peloponeso (431-404 aC) e que possuiacutea ambiccedilotildees tiracircnicas26
Ruth Scodel chama atenccedilatildeo ao fato de que essas correlaccedilotildees satildeo comuns mas que sempre
encontram questionamentos
Edith Hall critica muito os autores que procuram relacionar a qualquer custo as
trageacutedias a um acontecimento da eacutepoca geralmente relativo agrave Guerra do Peloponeso
afirmando que elas natildeo representam a vida cotidiana de Atenas mas um ideal do que ela
deveria ser (HALL 2010 p 168 1997 p 94) Concordamos em parte com essa afirmaccedilatildeo
estamos lidando com um discurso no qual a ideologia dominante estaacute presente visto que se
trata aqui de uma legitimaccedilatildeo dos valores ideais que um cidadatildeo deve possuir No entanto
Euriacutepides quando escreve suas peccedilas natildeo eacute completamente indiferente aos acontecimentos da
sua eacutepoca pois como vimos todo texto literaacuterio representa o ponto de vista do autor sua
visatildeo de mundo De fato seria uma imprudecircncia acadecircmica querer encaixar cada trageacutedia
num acontecimento especiacutefico forccedilando uma correspondecircncia falaciosa mas eacute possiacutevel
reconhecer dilemas intriacutensecos agraves discussotildees acerca da guerra em algumas trageacutedias
Alexandre veremos parece ter conexatildeo latente com o episoacutedio da peste em Atenas bem
como Euriacutepides parece mostrar com As Troianas sua opiniatildeo acerca da invasatildeo de Melos ou
Siracusa
O contexto histoacuterico ateniense de Androcircmaca (c 426 aC) natildeo eacute o mesmo que o de
Orestes (c 408 aC) pois esta eacute encenada no fim da Guerra do Peloponeso e aquela no
iniacutecio Atenas muda muito nesses 27 anos de guerra e graccedilas sobretudo ao relato de
Tuciacutedides conhecemos mais pormenorizadamente os acontecimentos da eacutepoca Do mesmo
modo algumas trageacutedias trazem releituras do mito a fim de demonstrar algo especiacutefico
Helena traz uma Helena que nunca foi para Troia Ele toma emprestado de Estesiacutecoro e
Heroacutedoto a ideia de Helena ter ficado no Egito durante a Guerra de Troia em vez de ter
estado laacute o tempo todo (como acontece em Homero) (SCODEL 2011 p 162 HALL 2010
p 279) Um eiacutedolon teria sido colocado em Troia e na verdade a rainha estaria esperando por
seu esposo Menelau no Egito A Guerra de Troia afinal teria sido causada por uma ilusatildeo
por nada Isso reforccedila o discurso ldquopacifistardquo euripidiano em suas trageacutedias troianas
geralmente ambientadas num cenaacuterio poacutes-guerra a ideia de que a guerra traz mais prejuiacutezos e
sofrimentos do que benefiacutecios estaacute sempre presente (JOUAN 2000 p 5)
Esse episoacutedio nos mostra tambeacutem como o mito pode ter uma atualizaccedilatildeo eacutetica Helena
deixa de ser a maacute esposa e passa a ser um modelo para as esposas atenienses da eacutepoca pois
26 Vamos aprofundar essas ideias no capiacutetulo seguinte (Paacuteris o causador de males)
33
traz a ideia da fidelidade ao marido O proacuteprio Paacuteris deixa de ser um exemplo exclusivamente
heroico e se transforma no modelo do que eacute baacuterbaro como defendemos Isso tem a ver
diretamente com a proacutepria eacutepoca em que se compotildee a dicotomia ldquogrego versus baacuterbarordquo no
seacuteculo V aC se consolida ao mesmo tempo em que em Euriacutepides entra em crise sendo
necessaacuterio reiterar aos cidadatildeos atenienses a ideia do que eacute o baacuterbaro
Natildeo eacute correto afirmar que as Guerras Greco-Peacutersicas foram o marco inicial para se
pensar a etnicidade helecircnica (HALL 1989 p VLASSOPOULOS 2013 p 163) pois desde
Homero como estamos vendo isso eacute verificaacutevel O historiador Kostas Vlassopoulos chama a
atenccedilatildeo para esse debate
Acadecircmicos modernos tecircm frequentemente interpretado esse fenocircmeno [dos troianos serem mostrados praticamente iguais aos gregos] argumentando que no tempo de Homero (o seacuteculo oitavo) a identidade grega estava ainda incipiente [inchoate] e a justaposiccedilatildeo de todos os natildeo-gregos como baacuterbaros natildeo tomou lugar Essa eacute uma interpretaccedilatildeo histoacuterica que induz ao erro [misleading] [] mas tambeacutem eacute uma interpretaccedilatildeo literaacuteria dos eacutepicos homeacutericos que induz ao erro Natildeo devemos subestimar a sofisticaccedilatildeo poeacutetica desses eacutepicos [] Quando ele descreve como o liacuteder dos caacuterios barbarophonoi [sic] ldquoveio para a guerra todo decorado com oureo como uma garota bobo que ele erardquo o tema da luxuacuteria efeminada baacuterbara e a desaprovaccedilatildeo grega disso estaacute claramente presente (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
Do mesmo modo natildeo eacute correto dizer que os gregos soacute comeccedilaram a lutar entre si a
partir da Guerra do Peloponeso muitos gregos lutaram contra gregos jaacute nas Guerras Greco-
Peacutersicas (VLASSOPOULOS 2013 p 55) As poacuteleis natildeo eram tatildeo unidas quanto geralmente
se pensa que elas satildeo ldquoos gregos natildeo tinham nenhum centro ou instituiccedilatildeo em torno da qual
se poderia organizar sua histoacuteria as comunidades falantes de grego estavam dispersas por
todo o Mediterracircneo e elas nunca alcanccedilaram uma unidade poliacutetica econocircmica ou socialrdquo
(VLASSOPOULOS 2007 p 91) Ainda segundo Kostas Vlassopoulos o que dava unidade a
essas comunidades eram as networks existentes marinheiros comerciantes soldados
intelectuais todos criavam uma rede de circulaccedilatildeo de pessoas produtos e ideias que unia
essas poacuteleis assemelhando-se agrave nossa globalizaccedilatildeo moderna (termo inclusive que o
historiador usa para se referir a esse fenocircmeno na Antiguidade grega)
Segundo o historiador britacircnico Frank William Walbank o que unia os gregos era
justamente a religiatildeo e a cultura em comum (2002 p 245) Essa ideologia era compartilhada
por todas as poacuteleis mas elas particularizavam-na Satildeo conhecidas as peculiaridades de
Esparta Atenas Corinto e principalmente das poacuteleis que ficavam em regiotildees de apoikiacuteai
(colocircnias) essas regiotildees eram loci privilegiados de trocas culturais entre a cultura grega e as
34
culturas Outras que rodeavam esses locais (VLASSOPOULOS 2013 p 277) O historiador
iraniano Irad Malkin mostra como Odisseu pode ser visto como um heroacutei protocolonial visto
que por todos os lugares que ele passa ele vai deixando sua ldquomarcardquo embatendo-se
constantemente com Outros no seu caminho de volta para casa (MALKIN 1998 p 2) O
proacuteprio mar era um ambiente propiacutecio ao encontro com alteridades muitas vezes hostis
(LESSA SOUSA 2014 p )
Debruccedilar-nos sobre as obras literaacuterias a fim de comprovar as descobertas
arqueoloacutegicas ou o que aconteceu de fato durante a guerra (seja a de Troia seja a do
Peloponeso) ou se os heroacuteis de miacuteticos existiram de verdade eacute uma veleidade Contudo natildeo eacute
impossiacutevel relacionaacute-las com o momento de sua composiccedilatildeo Portanto eacute mais profiacutecuo 1)
tentarmos compreender as representaccedilotildees de Paacuteris levando em conta os elementos de
ancoragem histoacuterica e social da obra relacionando texto com seus contextos intra e
extralinguiacutesticos e 2) buscarmos os modos pelos quais aquela sociedade funcionava e as
representaccedilotildees sociais que a legitimavam e mantinham as suas fronteiras eacutetnicas atraveacutes da
anaacutelise das praacuteticas discursivas O historiador italiano Emilio Gabba nos mostra
elucidativamente isso em relaccedilatildeo a Homero
Em qualquer caso e contemplando separadamente a investigaccedilatildeo sobre os poemas e a anaacutelise da realidade histoacuterica dos feitos descritos o aproveitamento histoacuterico da obra homeacuterica seraacute seguro e maior sempre que apontar para o estudo de aspectos como famiacutelia vida social e poliacutetica instituiccedilotildees e normas princiacutepios eacuteticos comportamento religioso cultura material ou fatores econocircmicos Os siacutemiles entre os poemas satildeo em suma particularmente reveladores (GABBA 1986 p 45 ndash grifos nossos)
Os costumes apresentados na Iliacuteada na Odisseia e nas trageacutedias satildeo modelares para
aqueles que ouvem os poemas ou assistem agraves encenaccedilotildees todo o modo de conduta social dos
heroacuteis eacute trabalhado de modo a servir como exemplo para os kaloigrave kaigrave agathoiacute ou seja os
ldquobelos e bonsrdquo os aristocratas Esses homens eram o puacuteblico do aedo (CARLIER 2008 p
15 AUBRETON 1968 p 138) e mais tarde seratildeo os dos traacutegicos O aedo cantava aquilo
que o puacuteblico queria ouvir Temos exemplo disso ateacute mesmo na proacutepria Odisseia pois
quando a canccedilatildeo de Demoacutedoco aedo da Feaacutecia natildeo agrada mais mandam-lhe parar de tocar
[] Δηmicroόδοκος δ᾽ ἤδη σχεθέτω φόρmicroιγγα λίγειαν οὐ γάρ πως πάντεσσι χαριζόmicroενος τάδ᾽ ἀείδει ἐξ οὗ δορπέοmicroέν τε καὶ ὤρορε θεῖος ἀοιδός ἐκ τοῦ δ᾽ οὔ πω παύσατ᾽ ὀιζυροῖο γόοιο ὁ ξεῖνος microάλα πού microιν ἄχος φρένας ἀmicroφιβέβηκεν
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ἀλλ᾽ ἄγ᾽ ὁ microὲν σχεθέτω ἵν᾽ ὁmicroῶς τερπώmicroεθα πάντες ξεινοδόκοι καὶ ξεῖνος ἐπεὶ πολὺ κάλλιον οὕτως [] natildeo mais ressoe a ciacutetara o cantor Demoacutedoco pois sua poesia natildeo agrada a todo ouvinte Assim que nos pusemos a cear e o aedo comeccedilou o hoacutespede natildeo mais reteve o pranto a anguacutestia circum-envolveu seu pericaacuterdio Demoacutedoco jaacute basta Que anfitriotildees e o hoacutespede possam unir-se na alegria (Odisseia VIII vv 537-543)
Os traacutegicos natildeo tinham uma liberdade total para encenar o que quisessem eles
escreviam as suas trageacutedias as quais passavam por um crivo antes de serem encenadas
(SCODEL 2011 p 43) Aleacutem disso havia os juiacutezes responsaacuteveis por decidir qual peccedila
merecia o primeiro precircmio Aquela que ficava em segundo ou que nem ganhava era uma peccedila
que natildeo foi do gosto dos jurados27 Quando vamos estudar as trageacutedias eacute importante termos
em mente quais peccedilas ganharam pois isso significa que elas serviram mais ao modelo
ideoloacutegico poliacuteade No caso de Euriacutepides apenas duas trageacutedias suas ganharam o primeiro
precircmio (Ifigecircnia em Aacuteulis e Hipoacutelito) Orestes ganhou o segundo Na realidade sua fama foi
poacutestuma pois seu estilo de composiccedilatildeo influenciou bastante as geraccedilotildees posteriores de
tragedioacutegrafos Secircneca por exemplo para compor sua As Troianas inspirou-se nrsquoAs
Troianas e na Heacutecuba de Euriacutepides Aleacutem disso suas trageacutedias foram bastante reencenadas
em periacuteodos posteriores nos quais Atenas jaacute tinha perdido toda a sua gloacuteria e esplendor
(SCODEL 2011 p 43)
No teatro era a poacutelis que estava sendo representada desde os ritos que precediam a
encenaccedilatildeo traacutegica28 (inscrita num espaccedilo religioso pois eram realizadas dentro das Grandes
Dionisiacuteacas e das Leneias) ateacute todo o espaccedilo do odeacuteon (incluindo o palco atraveacutes das
encenaccedilotildees que colocavam em destaque as instituiccedilotildees e valores poliacuteades e os assentos do
puacuteblico (theaacutetron) que eram organizados de modo tal que os cidadatildeos podiam natildeo soacute
enxergar uns aos outros como tambeacutem podiam reconhecer atraveacutes do lugar que se ocupava
aqueles mais proeminentes dentro da poacutelis ateniense) Eacute a siacutentese da ideia da publicidade das
accedilotildees que existe desde a poesia eacutepica e atinge seu aacutepice durante a democracia uma
publicidade direcionada aos interesses poliacuteades
27 Sobre detalhes desse julgamento ver o toacutepico Finances and Contests do capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas) 28 Para mais detalhes sobre os ritos que precediam as competiccedilotildees traacutegicas ver o toacutepico The Festivals no capiacutetulo 3 do livro An Introduction to Greek Tragedy de Ruth Scodel (consultar Referecircncias Bibliograacuteficas)
36
No entanto eacute inviaacutevel dimensionar a opiniatildeo dos sujeitos receptores natildeo podemos
especular sobre a recepccedilatildeo das peccedilas em relaccedilatildeo a todos os espectadores ainda mais quando
temos em mente que essas peccedilas podiam circular pelas outras poacuteleis e regiotildees de colonizaccedilatildeo
as quais possuiacuteam um puacuteblico bem mais heterogecircneo do que o ateniense (HALL 2006 p 29)
O mesmo acontece com as epopeias de Homero natildeo temos como precisar a recepccedilatildeo dos
poemas que tambeacutem tinham uma audiecircncia bem heterogecircnea Desse modo cabe a noacutes
historiadores observar qual o efeito pretendido sobre os sujeitos destinataacuterios ao se compor
esses textos
A Iliacuteada uacutenico poema homeacuterico que trata de Paacuteris nos conta a histoacuteria da ira de
Aquiles (ROMILLY sd p 18) Por causa dessa temaacutetica comum aos Cantos e da proto-pan-
helenicidade do poema (MITCHELL 2007 p 54) cremos que a Iliacuteada tem uma unidade
intriacutenseca Contudo essa opiniatildeo natildeo eacute uma unanimidade no tocante aos questionamentos
acerca da forma do poema havia duas escolas filoloacutegicas a de Alexandria e a de Peacutergamo
(surgidas por volta do seacuteculo IV aC) as quais possuiacuteam posturas divergentes acerca das
epopeias de Homero A primeira praticava a atetese tudo o que se cria natildeo pertencer agrave Iliacuteada
original se suprimia Jaacute a segunda preferia a exegese ou seja a criacutetica do texto sem omitir
versos
Em 1795 F A Wolf publicou seu Prolegomena ad Homerum o qual deu iniacutecio agrave
ldquoquestatildeo homeacutericardquo e a uma seacuterie de trabalhos denominados analistas neles procura-se
analisar as epopeias de Homero visando criticar filologicamente esses textos apontando para
as contradiccedilotildees as dissonacircncias entre Iliacuteada e Odisseia e os elementos de pouca
verossimilhanccedila na obra Em contraponto a essas teses haacute os unitaristas que defendem a
unidade dos poemas Ainda existem os neo-analistas eles natildeo desconsideram todo o debate
acerca de algumas incongruecircncias das epopeias mas creem que haja uma certa
homogeneidade das obras oriundas de uma tradiccedilatildeo anterior ao poeta o qual com sua
genialidade teria reunido e composto um texto uacutenico
Para Robert Aubreton e Gregory Nagy os poemas homeacutericos possuem uma unidade
intriacutenseca porque derivam dessa tradiccedilatildeo eacutepica precedente A proacutepria Telemaacutequia (Cantos I-
IV da Odisseia) as narrativas de retorno dos noacutestoi os relatos de batalhas singulares entre
heroacuteis satildeo temas anteriores agrave composiccedilatildeo da Iliacuteada e da Odisseia Homero ou quem quer que
tenha composto essas duas epopeias conhecia tais histoacuterias e se baseou nelas para compor as
suas proacuteprias
37
O que chama atenccedilatildeo eacute o que configura o sentido do discurso do aedo as noccedilotildees de
alḗtheia e lḗthē (ldquoesquecimentordquo) A funccedilatildeo do poeta eacute rememorar os feitos de deuses e
homens natildeo deixando que se esqueccedila deles Para a sociedade isso eacute fulcral o homem morre
fisicamente mas sua memoacuteria eacute imortal se ele assim merecer Para ganhar essa gloacuteria
imorredoura ele precisa ser reconhecido pela sua proacutepria sociedade e assim ser cantado por
geraccedilotildees Ele precisa agir em conformidade com o que aquela sociedade espera de um heroacutei
Dentre alguns valores ressaltamos alguns com os quais vamos trabalhar mais adiante a aretḗ
(excelecircncia) a timḗ (honra) kleacuteoskŷdos (gloacuteria) kalograves thaacutenatos (bela morte) e alkḗandreiacutea
(coragem)
Euriacutepides eacute influenciado por essa tradiccedilatildeo poeacutetica homeacuterica e esses valores tambeacutem
perpassam as suas obras o heroacutei homeacuterico natildeo se diferencia tanto do heroacutei traacutegico pois haacute
muita tenuidade entre eles como veremos Contudo na trageacutedia a ideia da falha do erro
hamartiacutea eacute muito mais forte embora na epopeia exista uma ideia semelhante a qual traz agrave
tona um questionamento sobre a infalibilidade do heroacutei a aacutetē (perdiccedilatildeo) que tem estreita
ligaccedilatildeo com desiacutegnios divinos A trageacutedia traz o heroacutei falho e as situaccedilotildees que o envolvem
servem de catarse para o puacuteblico eacute assistindo agravequeles personagens que o cidadatildeo poliacuteade
toma consciecircncia dos problemas da sociedade e de si mesmo Ao mesmo tempo a trageacutedia
implica em permanecircncia e mudanccedila ela legitima os valores (pan-)helecircnicos e os critica a fim
de estimular essa mudanccedila e desse modo manter viva a sociedade
Aleacutem da forma29 um dos pontos que tornam a trageacutedia um gecircnero discursivo (visto
que haacute semelhanccedilas entre uma trageacutedia e outra) eacute a utilizaccedilatildeo do material miacutetico cultural
Essas histoacuterias se passavam em ldquoum passado que jaacute era remoto para a audiecircncia da Atenas
antigardquo (SCODEL 2011 p 3) Para os gregos os heroacuteis e deuses existiram de verdade eram
parte de sua histoacuteria Aquiles Paacuteris ou Heitor existiram para eles Como vimos o mesmo
mito eacute contado e recontado nos palcos mas o que vai diferenciar os tragedioacutegrafos de Homero
e por sua vez um tragedioacutegrafo do outro eacute 1) o modo como o mito eacute contado (figurino
maacutescaras diaacutelogos entre os personagens) 2) as modificaccedilotildees no mito que os autores fazem a
fim de servirem a seus propoacutesitos 3) as atualizaccedilotildees eacuteticas desses mitos e 4) as alusotildees aos
acontecimentos contemporacircneos 29 ldquoA trageacutedia era um tipo especiacutefico de drama Era encenada por atores (em Atenas natildeo mais que trecircs) e um coro de doze depois quinze que cantavam e danccedilavam auxiliados por um tocador de auloacutes um instrumento de sopro [reeded wind instrument] Na maioria das partes os atores usavam um verso falado principalmente o trimetro iacircmbico ou recitativo enquanto os coros cantavam entre cenas mas o liacuteder do coro poderia falar pelo grupo durante as cenas dos atores enquanto os atores poderiam cantar ambos em resposta ao coro e em monoacutedio [both in responsion with the chorus and in monody]rdquo (SCODEL 2011 p 3 ndash traduzido do original em inglecircs por Renata Cardoso de Sousa e Bruna Moraes da Silva)
38
Esse passado miacutetico eacute um dos elementos que constituem a fronteira eacutetnica helecircnica O
antropoacutelogo Christian Karner chama atenccedilatildeo para o fato de que a etnicidade eacute ldquoamplamente
associada agrave cultura descendecircncia memoacuteriahistoacuteria coletivas e liacutenguardquo (KARNER 2007 p
17) Ele retoma a ideia de ethnie (etnia) proposta por John Hutchinson e Anthony Smith que
seria um grupo restrito a um determinado espaccedilo que se designa sob um etnocircmio com mitos e
elementos culturais em comum uma memoacuteria histoacuterica compartilhada e um senso de
solidariedade entre os seus membros (KARNER 2007 p 18) Essa ideia dialoga bastante
com a noccedilatildeo de grupo eacutetnico de Fredrik Barth a qual delineamos em nossa Introduccedilatildeo
Portanto os gregos se constituiacuteam num grupo eacutetnico que utilizava o discurso como
meio de (re)definir suas fronteiras eacutetnicas e desse modo garantir a sua existecircncia No acircmbito
textual Homero eacute o responsaacutevel por tentar fixar essas fronteiras ele traz agrave memoacuteria as
histoacuterias dos heroacuteis do passado e dos deuses do presente bem como ressalta a importacircncia dos
ancestrais visto que um indiviacuteduo eacute sempre reconhecido por sua filiaccedilatildeo Aquiles eacute o Peacutelida
(filho de Peleu) Diomedes eacute o Tidida (filho de Tideu) e mesmo Zeus um deus tem como um
dos epiacutetetos ldquoCrocircnidardquo (filho de Cronos)
Euriacutepides apresenta constantemente o tema da destruiccedilatildeo da linhagem familiar como
um grande problema natildeo somente para o indiviacuteduo mas para a comunidade em nosso corpus
documental Androcircmaca As Troianas Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes trazem
episoacutedios de desmantelamento da famiacutelia A primeira trageacutedia mostra o sofrimento de
Androcircmaca ao tentar proteger seu filho da fuacuteria de Hermiacuteone sendo que a personagem
mesma jaacute sofrera com a morte de Astyacuteanax seu primogecircnito que eacute abordada em As
Troianas A filha de Helena por sua vez amargura-se por natildeo conseguir ter um filho com
Neoptoacutelemo seu marido sem filhos natildeo haacute herdeiros de bens materiais e imateriais como a
memoacuteria da linhagem Eacute como se o nome da famiacutelia morresse na memoacuteria social pois os
filhos satildeo responsaacuteveis por mantecirc-la viva Na Iliacuteada um dos maiores medos expressos eacute o de
perder o filho na guerra e natildeo ter a quem deixar a heranccedila ou ter que reparti-la com parentes
distantes (V vv 152-158)
Em As Troianas aleacutem do sofrimento de Androcircmaca vemos o de Heacutecuba que se
desespera por Polixena ter sido dada em sacrifiacutecio A rainha de Troia sofre tambeacutem em
Heacutecuba a perda do filho Polidoro morto brutalmente pelo traacutecio sedento de riquezas a quem
ele estava confiado Ifigecircnia se daraacute ao sacrifiacutecio assim como Polixena em Ifigecircnia em
Aacuteulis levando ao desespero sua matildee Clitemnestra Embora a preferecircncia seja por filhos do
sexo masculino eram as filhas as responsaacuteveis pelos funerais dos mortos as mulheres
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exerciam um papel fundamental no enterro dos entes queridos (HALL 1997 p 106) As
trageacutedias mesmas nos mostram isso como eacute o caso de Antiacutegona de Soacutefocles o tema central
da peccedila eacute o esforccedilo da personagem homocircnima para conseguir dar um funeral adequado ao
irmatildeo que por ter assassinado o proacuteprio irmatildeo eacute condenado a ficar aos corvos sem enterro
Agamemnon pai de Ifigecircnia amaldiccediloa Paacuteris por ter causado toda a situaccedilatildeo de sua
famiacutelia natildeo fosse ele ter que partir para Troia para resgatar a cunhada a filha estaria a salvo
Contudo a sorte do rei de Micenas estaacute traccedilada de uma vez por todas pois sua mulher o
assassina no retorno da guerra Com a famiacutelia desmantelada Orestes filho do casal
desencadearaacute uma vinganccedila desmesurada mata a matildee e tenta matar Helena em Orestes
atraindo para si a fuacuteria das Eriacutenias divindades responsaacuteveis por atormentar aqueles que
cometiam atos indignos sobretudo o assassinato de familiares
Edith Hall mostra como ldquoa vida familiar de um cidadatildeo era um componente da sua
identidade poliacuteticardquo (HALL 1997 p 104) puacuteblico e privado se misturavam A experiecircncia
social eacute fundamental para que um indiviacuteduo se sinta pertencente a um grupo eacutetnico e ajude a
manter essas fronteiras Desse modo os espaccedilos puacuteblicos de convivecircncia (o banquete a
aacutegora o templo o ginaacutesio o teatro) satildeo loci importantes dentro do grupo eacutetnico helecircnico
bem como a publicidade das accedilotildees um grego eacute um homem essencialmente puacuteblico Ele estaacute
exposto aos olhares do seus iacutesoi (iguais) e estes lhe julgam conforme seus atos o homem
grego natildeo eacute somente o homem do ser mas tambeacutem eacute o homem do fazer
Para ser social o homem grego deveria se instruir a educaccedilatildeo tinha um papel muito
importante dentro da Heacutelade Devia-se conhecer os coacutedigos de conduta e principalmente
praticaacute-los Segundo a filoacuteloga Carmem Soares ldquoa trageacutedia eacute um gecircnero literaacuterio regido por
uma poeacutetica didaacutetico-hedonistardquo (SOARES 1999 p 16) ou seja ao mesmo tempo em que
gera prazer e entretenimento educa Essa natildeo eacute uma caracteriacutestica exclusiva dela a poeacutetica
didaacutetico-hedonista adveacutem da poesia eacutepica que contava com deleite as faccedilanhas dos heroacuteis e
dos deuses Sua funccedilatildeo eacute imortalizar esses seres extraordinaacuterios conservando suas memoacuterias
para as geraccedilotildees vindouras tomarem-nos de exemplo
Os mitos as histoacuterias desses heroacuteis do passado servem de advertecircncia aos vivos
agravequeles que as ouvem A epopeia e a trageacutedia compilam toda uma tradiccedilatildeo miacutetica e o mito
por excelecircncia tem justamente a funccedilatildeo de ldquorevelar os modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas significativas tanto a alimentaccedilatildeo ou o casamento quanto o trabalho a
educaccedilatildeo a arte ou a sabedoriardquo (ELIADE 1972 p 13 ndash grifos nossos) Ele ldquopossui o
espantoso poder de engendrar as noccedilotildees fundamentais da ciecircncia e as principais formas da
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culturardquo (DETIENNE 2008 p 34) sua difusatildeo constitui uma praacutetica de paideiacutea Assim os
poemas homeacutericos possuem uma funccedilatildeo paidecircutica (VIEIRA 2002 p 14) bem como as
trageacutedias de Euriacutepides
Paideiacutea eacute um termo que aparece pela primeira vez na documentaccedilatildeo no seacuteculo V
aC30 em uma trageacutedia de Eacutesquilo (JAEGER 2010 p 335) Traduzir esse termo eacute muito
difiacutecil literalmente significa criaccedilatildeo de meninos (paicircs significa ldquocrianccedilardquo) comumente
traduz-se como educaccedilatildeo mas esse termo natildeo contempla todo o significado da paideiacutea
(MOSSEacute 2004 p 107-108) ela se constitui na transmissatildeo de saberes e praacuteticas helecircnicas
Ela ldquoacaba por englobar o conjunto de todas as exigecircncias ideais fiacutesicas e espirituais que
formam a kalokagathia no sentido de uma formaccedilatildeo espiritual conscienterdquo (JAEGER 2010
p 335) A paideiacutea se configura num aspecto ideoloacutegico da sociedade como nos explica o
historiador Faacutebio de Souza Lessa
Por ideologia entendemos um conjunto de representaccedilotildees dos valores eacuteticos e esteacuteticos que norteiam o comportamento social No caso da sociedade ateniense os valores esteacuteticos estatildeo representados pela proporccedilatildeo justa medida equiliacutebrio enquanto os valores eacuteticos pela paideiacutea (educaccedilatildeo cultura) ndash falar a liacutengua grega comer o patildeo beber vinho misturado com aacutegua cultuar os deuses lutar na primeira fila de combate obediecircncia agraves leis cuidar dos pais e fazer os seus funerais manter o fogo sagrado ter filhos do sexo masculino e participar ativamente da vida poliacutetica (LESSA 2010 p 22)
Assim preferimos explicar aqui o sentido de paideiacutea e deixar a palavra sem traduccedilatildeo
para o portuguecircs ela se constitui da transmissatildeo de saberes e praacuteticas culturais Os poemas
satildeo loci de paideiacutea porque contam mitos eles trazem uma seacuterie de modos de conduta caros agrave
sociedade helecircnica que vatildeo servir para formar o kalograves kagathoacutes e no seacuteculo V aC o politḗs
(cidadatildeo) Esses homens vatildeo se inspirar nos heroacuteis e nas suas faccedilanhas nos seus atos que satildeo
passados agraves geraccedilotildees futuras por intermeacutedio da poesia seja ela eacutepica liacuterica ou traacutegica
[] para que a honra heroica permaneccedila viva no seio de uma civilizaccedilatildeo para que todo o sistema de valores permaneccedila marcado pelo seu selo [o do heroacutei] eacute preciso que a funccedilatildeo poeacutetica mais do que objeto de divertimento tenha conservado um papel de educaccedilatildeo e formaccedilatildeo que por ela e nela se transmita se ensine se atualize na alma de cada um este conjunto de saberes crenccedilas atitudes valores de que eacute feita uma cultura () a epopeia desempenha o papel de paideiacutea exaltando os heroacuteis exemplares assim como os gecircneros literaacuterios lsquopurosrsquo como o romance a autobiografia o diaacuterio iacutentimo o fazem hoje (VERNANT 1978 p 42 ndash grifos nossos)
30 Jaeger ainda sublinha que os ideais educativos da paideiacutea que vatildeo ser desenvolvidos no seacuteculo V aC se baseiam em praacuteticas educativas muito anteriores (JAEGER 2010 p 1)
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Esses heroacuteis seguem esse modo de conduta social que eacute expresso pelas suas accedilotildees
Quando eles se desviam desse coacutedigo satildeo submetidos a uma vergonha social ou
(principalmente na trageacutedia) satildeo viacutetimas de reviravoltas agraves vezes incontornaacuteveis em suas
vidas Paacuteris como veremos erra ao fugir da batalha mas quando acusado pelo seu irmatildeo de
ser covarde retorna para recuperar sua honra Jaacute Eacutedipo heroacutei da trilogia tebana de Soacutefocles
mancha a honra da sua famiacutelia ao casar-se com sua proacutepria matildee e dessa hamartiacutea
desencadeiam-se uma seacuterie de episoacutedios fatiacutedicos que culminam na desgraccedila de sua linhagem
Seu destino mesmo jaacute estava (mal) traccedilado quando seu pai se apaixonou por um homem a
pederastia era uma praacutetica educacional comum na Greacutecia na qual um erasteacutes (mais velho)
ficava responsaacutevel por iniciar um eroacutemenos (mais novo) na vida adulta Contudo relacionar-
se sexualmente com um homem era vetado
Essas normas ajudam a reforccedilar essas fronteiras eacutetnicas helecircnicas que satildeo
constantemente abaladas pelo contato com os Outros Enquanto em Homero essas fronteiras
estatildeo sendo formadas em Euriacutepides elas estatildeo turvas Em Androcircmaca As Troianas
Heacutecuba Ifigecircnia em Aacuteulis e Orestes vemos que o grego eacute passiacutevel de se barbarizar
sobretudo quando esse grego eacute um espartano Na primeira trageacutedia Hermiacuteone (uma
espartana) tem atitudes controversas e eacute mostrada usando muito ouro (v 147) mas natildeo chega
a ser comparada a uma baacuterbara Ela ainda eacute porta-voz de valores helecircnicos reforccedilando a ideia
de que Androcircmaca eacute a baacuterbara (v 261) Ela afirma que ldquoNatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade gregardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) Ela ainda afirma que ldquoEsse eacute o
modo como os baacuterbaros satildeo pai dorme com filha filho com matildee e irmatilde com irmatildeo gente
proacutexima assassina gente proacutexima e natildeo tem lei para prevenir issordquo [τοιοῦτον πᾶν τὸ
βάρβαρον γένος πατήρ τε θυγατρὶ παῖς τε microητρὶ microείγνυται κόρη τ᾽ ἀδελφῷ διὰ
φόνου δ᾽ οἱ φίλτατοι χωροῦσι καὶ τῶνδ᾽ οὐδὲν ἐξείργει νόmicroος] (vv 173-176)
Percebamos a caracterizaccedilatildeo do baacuterbaro por ela nessa passagem ela critica aqueles
que mantecircm relaccedilotildees sexuais dentro do nuacutecleo familiar (pai filho filha matildee irmatildeos) e o
assassinato entre phiacuteltatoi31 O tema da trilogia tebana de Soacutefocles gira em torno disso
Eacutedipo se casa com a matildee e seus netos se matam entre si Eacute interessante o resgate desse tema
31 Essa palavra eacute de difiacutecil traduccedilatildeo Em sua raiz estaacute phiacutelos (amigo) e o Le Grand Bailly indica esse vocaacutebulo para que possamos ter uma traduccedilatildeo de phiacuteltatos Contudo essas palavras natildeo tecircm o mesmo significado haacute uma razatildeo para Euriacutepides escolher phiacuteltatos em vez de phiacutelos Contudo quando traduz Phiacuteltatos (nome proacuteprio) coloca que eacute literalmente ldquobem-amadordquo [bien-aimeacute] (BAILLY 2000 p 2083) Cremos que ldquogente proacuteximardquo eacute o que mais se aproxima do sentido dessa palavra visto que phiacutelos designa essa ideia satildeo pessoas que se conhecem que satildeo proacuteximas que se assassinam
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pois Tebas era inimiga de Atenas sendo a poacutelis que teria comeccedilado a Guerra do Peloponeso
ao invadir Plateia regiatildeo de domiacutenio ateniense Natildeo podemos afirmar que Euriacutepides tinha isso
em mente quando compocircs Androcircmaca pois natildeo podemos ir aleacutem do que a documentaccedilatildeo
nos mostra mas mostrar como sendo algo baacuterbaro hamartiacuteai de heroacuteis tebanos eacute no miacutenimo
curioso
Menelau nessa peccedila eacute quem recebe as criacuteticas mais duras vindas de Peleu durante
um agoacuten entre os dois personagens o anciatildeo o critica por ter deixado um friacutegio levar sua
esposa de sua proacutepria casa (vv 590-609) e afirma que os espartanos satildeo soacute bons de guerra
mesmo que em outras mateacuterias satildeo inferiores (vv 724-726) O homem espartano eacute
inferiorizado Em Orestes Menelau jaacute eacute comparado a um baacuterbaro Tiacutendaro o acusa de ter se
tornado um baacuterbaro por ter estado entre baacuterbaros (v 485) Em Androcircmaca os espartanos
ainda natildeo satildeo diretamente ldquobarbarizadosrdquo como acontece em Orestes aquela trageacutedia foi
encenada praticamente no iniacutecio da Guerra do Peloponeso enquanto esta foi no final quando
as inimizades se acirraram de tal maneira que os espartanos foram paulatinamente sendo
deixados de fora da fronteira eacutetnica helecircnica tornando-se Outros
Ainda em Orestes Piacutelades Electra e seu irmatildeo satildeo capazes de accedilotildees condenaacuteveis em
nome da vinganccedila Em Ifigecircnia em Aacuteulis vemos Agamemnon um grego levar sua filha ao
sacrifiacutecio e em As Troianas e Heacutecuba os gregos se comportam de maneira condenaacutevel em
relaccedilatildeo agraves cativas troianas piorando a situaccedilatildeo deploraacutevel em que jaacute se encontram com o fim
de Troia As rivalidades da Guerra do Peloponeso e a temaacutetica vencedorperdedor satildeo
expressas na produccedilatildeo textual da eacutepoca assim como hoje em dia eacute impossiacutevel ficar
indiferente aos acontecimentos que nos cercam Euriacutepides tambeacutem natildeo conseguiu fazecirc-lo em
sua eacutepoca A obras literaacuteria em si eacute um ldquoartefato fonomorfossintaacutetico eacute universo semacircntico eacute
campo sintomatoloacutegico da histoacuteria do social e da consciecircncia numa palavra eacute
presentificaccedilatildeo imageacutetica do homem em accedilatildeordquo (ANDRADE 1998 p 15)
Embora ambientadas em Troia essas trageacutedias traziam temas caros agrave realidade
ateniense Satildeo comuns peccedilas que se desenrolam em lugares estrangeiros (as quais Edith Hall
chama de ldquoroteiros de deslocamentordquo [displacement plots]) onde a etnicidade e os direitos de
cidadania satildeo contestados (HALL 1997 p 98) Os troianos como vimos eram um exemplo
de barbaacuterie mas frequentemente eram representados como viacutetimas dos gregos ganhando
uma certa ldquosimpatiardquo de Euriacutepides Hall acredita que ldquose a representaccedilatildeo traacutegica da Guerra de
Troia era para tornar os espartanos lsquobaacuterbarosrsquo e assimilaacute-los ao arqueacutetipo do persa arrogante
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entatildeo os lsquoateniensesrsquo desse mundo miacutetico contudo paradoxalmente pode ser a viacutetima troiana
da agressatildeo espartanardquo (HALL 1989 p 214)
A helenista Casey Dueacute coloca que a representaccedilatildeo dos troianos dessa maneira
ldquoconvida a audiecircncia a transcender as fronteiras eacutetnicas e poliacuteticas que dividem as naccedilotildees na
guerra Desse modo os atenienses podem explorar suas proacuteprias tristezas testemunhando o
sofrimento dos outros inclusive de suas proacuteprias viacutetimasrdquo (DUEacute 2006 p 116) Natildeo podemos
negar que a exposiccedilatildeo do sofrimento alheio eacute um apelativo para chamar a atenccedilatildeo acerca do
proacuteprio sofrimento ateniense a viuacuteva os oacuterfatildeos os prisioneiros de guerra satildeo categorias que
podem ser compartilhadas a qualquer momento pelos atenienses visto que se estaacute em uma
eacutepoca de guerra Do momento que ele mostra os malefiacutecios da guerra atraveacutes desses
personagens ele estaacute colocando sua visatildeo acerca dos prejuiacutezos desencadeados por ela bem
como questionando a legitimidade dela Embora natildeo participasse efusivamente da poliacutetica
como Eacutesquilo e Soacutefocles ele era uma pessoa de opiniatildeo na eacutepoca Se ele pudesse mostra-la
nos palcos um dos lugares para onde os olhares da poacutelis se voltavam ele poderia convidar as
pessoas que o assistiam a questionar tambeacutem essa guerra
Contudo acreditamos que a intenccedilatildeo natildeo era ldquouniversalizarrdquo o sofrimento nem colocar
o troiano como o ateniense em si mas mostrar que o espartano eacute tatildeo condenaacutevel que ateacute o
baacuterbaro era melhor Afirmamos isso porque o troiano embora visto dessa maneira piedosa
natildeo deixava de ser baacuterbaro devido agrave sua caracterizaccedilatildeo As fronteiras eacutetnicas como vimos
satildeo borradas em Euriacutepides mas natildeo eacute por caracterizar ldquomelhorrdquo o troiano mas por assimilar o
espartano (grego) a ele o exemplo de baacuterbaro Aleacutem disso como defendemos aqui essa
caracterizaccedilatildeo do troiano (que eacute compartilhada com o persa o egiacutepcio etc) jaacute vem dos
poemas homeacutericos
Geralmente quando falamos de identidadealteridade em Homero pensamos
primeiramente na Odisseia Esse poema eacute marcado pelo embate com Outros visto que
Odisseu viaja por terras longiacutenquas e agraves vezes hostis Eacute emblemaacutetico o encontro desse heroacutei
com o Ciacuteclope personagem-siacutentese daquilo que eacute natildeo ser grego Odisseu enquanto ldquoaedo de
si mesmordquo conta o que viu quando chegou agrave terra dos Ciacuteclopes
ἔθνα δανὴρ ἐνιαυε πελώριος ὅς ῥα τὰ microῆλα οἶος ποιmicroαίνεσκεν ἀπόπροθεν οὐδὲ microετ ἄλλους πωλεῖτ ἀλλ ἀπάνευθεν ἐὼν ἀθεmicroίστια ᾔδη καὶ γᾶρ θαῦmicro ἐτἐτυκτο πελώριον οὐδὲ ἐῴκει ἀνδρί γε σιτοφάγῳ ἀλλὰ ῥίῳ ὑλήεντι ὑψηλῶν ὀρέων ὅ τε φαίνεται οἶον ἀπἄλλων
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dormia um ente gigantesco que pascia a recircs sozinho nos confins O ser longiacutenquo natildeo convivia com ningueacutem sem lei um iacutempio Dissiacutemile de um homem comedor de patildeo o monstro colossal mais parecia o pico da cordilheira infinda sem vizinho agrave vista (HOMERO Odisseia IX vv 187-192)
Polifemo eacute descrito como um monstro eacute ldquogigantescordquo ldquocolossalrdquo (pelṓrios) parece o
ldquopico da cordilheirardquo (hypsēlocircn oreacuteōn) Ele natildeo parece um ldquohomem comedor de patildeordquo (andriacute
ge sitophaacutego) vive sozinho e em estado de athemistiacutea sem (a-) leis (theacutemistes) Os gregos se
definem pela publicidade de seus atos o homem grego eacute idealmente um homem puacuteblico
Todos veem o que todos fazem e todos vivem pela manutenccedilatildeo de sua comunidade Do
mesmo modo a lei noacutemos eacute o que diferencia o homem do animal que vive no acircmbito da
phyacutesis natureza e do aacutegrios selvagem
Odisseu adentra a caverna de Polifemo com seus companheiros e eles comeccedilam a
comer seu queijo (demonstrando ateacute pouca educaccedilatildeo visto que os hoacutespedes devem esperar
que o anfitriatildeo lhes ofereccedila algo para comer) Quando o Ciacuteclope chega Odisseu lhe faz uma
suacuteplica a qual eacute respondida com aspereza
νήπιός εἰς ὦ ξεῖν ἢ τηλόθεν εἰλήλουθας ὅς microε θεοὺς κέλεαι ἢ δειδίmicroεν ἢ αλέασθαι οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν οὐδὲ θεῶν microακάπων ἐπεὶ ἦ πολὺ φέρτεροί εἰmicroεν οὐδ ἂν ἐγὼ Διὸς ἔχθος ἀλεθάmicroενος πεφιδοίmicroην οὔτε σεῦ οὔθ ἑταρων εἰ microὴ θυmicroός microε κελεύοι
Ou eacutes um imbecil ou vens de longe estranho rogando que eu me dobre aos deuses ou que evite-os pois Zeus porta-broquel natildeo chega a preocupar Ciacuteclopes nem um outro oliacutempico somos bem mais fortes Natildeo te acolheria nem teus soacutecios para poupar-me da ira do Cronida O cor eacute meu tutor (HOMERO Odisseia IX vv 273-278)
O Ciacuteclope aqui desliza duas vezes primeiramente nega uma suacuteplica Isso gera um
estado de aacutetē ldquoa recusa [da suacuteplica] resulta em perdiccedilatildeordquo (MALTA 2006 p 61) sendo que
ldquoa oposiccedilatildeo plural-singular litaiacute-aacutete lsquosuacuteplicas-perdiccedilatildeorsquo que parece indicar uma significativa
oposiccedilatildeo entre coletividade entendimento e reconhecimento de um lado e isolamento
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teimosia e cegueira de outro [devemos destacar]rdquo (MALTA 2006 p 58-9) Essa suacuteplica eacute a
do xeacutenos aquele que se hospeda em um lugar
Assim em segundo lugar ele nega um costume que factualmente natildeo eacute somente
grego (embora no plano do discurso ele tenha sido ldquoexclusivizadordquo pelos helenos ao longo do
tempo) mas eacute difundido por todo o Mediterracircneo a hospitalidade (xeacutenia) que eacute
[] um coacutedigo de conduta uma convenccedilatildeo natildeo escrita que atravessava as fronteiras do Mediterracircneo oriental Demonstrava-se por meio de uma etiqueta reconhecida em que havia troca de presentes e festivais e sua origem estava na xenuia da Idade do Bronze tardia [] que surge nas taacutebuas de Linear B [] A xenuia governaria na verdade o ingresso e a partida de visitantes estrangeiros aos palaacutecios do Peloponeso no seacuteculo XIII aC [suposto seacuteculo da ocorrecircncia da guerra de Troia] (HUGHES 2009 p 188)
Paacuteris tambeacutem transgride a xeacutenia configurando-se num Outro Tem-se admitido que os
troianos satildeo o Outro estrangeiro conjectura-se que Troia na verdade nunca fez parte da
Heacutelade e muitos autores se referem aos troianos como estrangeiros como se fosse algo oacutebvio
e natural Claude Mosseacute mostra que a Iliacuteada ldquoconserva a memoacuteria de uma grande expediccedilatildeo
dos Helenos da Europa [των Ελλήνων της Ευρώπης] contra Troiardquo (MOSSEacute 2000 p 10)
embora ldquohelenosrdquo designe apenas uma parte da Greacutecia em Homero (HALL 2002 p 129) e o
termo ldquoEuropardquo tivesse sido cunhado a posteriori (MITCHELL 2007 p 20) Hillary Mackie
crecirc que essa diferenciaccedilatildeo nesses termos se daacute porque eles representam duas culturas
diferentes no plano linguiacutestico (uma de elogio e outra de acusaccedilatildeo)
Kostas Vlassopoulos ao analisar a glocalizaccedilatildeo do natildeo-grego na Greacutecia ou seja os
modos pelos quais os gregos ldquoadotam e adaptamrdquo32 repertoacuterios estrangeiros ele fala que em
Homero jaacute acontecia isso visto que os heroacuteis troianos eram estrangeiros [foreigns]
(VLASSOPOULOS 2013 p 167) Para justificar essa ideia o historiador afirma que
[] no lado aqueu do Cataacutelogo das Naus enumera um sem-nuacutemero de comunidades de todo o mundo grego que manda contingentes a Troia sob a lideranccedila de Agamemnon enquanto o cataacutelogo dos aliados troianos enumera vaacuterias pessoas falando outras linguagens (allothrooi) [sic] que mandam suas tropas para ajudar os troianos incluindo os liacutecios os caacuterios os traacutecios os paflagocircnios os friacutegios os miacutesios e os peocircnios (VLASSOPOULOS 2013 p 171)
32 Essa eacute uma expressatildeo muito utilizada por Kostas Vlassopoulos ao longo de seu livro
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Os caacuterios satildeo denominados barbaroacutephōnos33 (Iliacuteada II v 867) natildeo os troianos ldquoMas
outras satildeo as liacutenguas dos outros homens que se espalham ao longerdquo [ἄλλη δrsquo ἄλλων
γλῶσσα πολυσπερέων ἀνθρώπων] (II v 804) no exeacutercito troiano mas isso natildeo significa
que o troiano esteja falando outra liacutengua seus aliados eram de regiotildees natildeo-gregas
Discordamos dessas posiccedilotildees natildeo haacute na Iliacuteada nenhuma referecircncia ao caraacuteter
estrangeiro de Troia Contudo tambeacutem natildeo eacute adequado falarmos que os troianos eram iguais
aos gregos como ressalta Jacqueline de Romilly em seu Pourquoi la Gregravece ldquoentre os dois
[troianos e aqueus] como Zeus mesmo Homero tem a balanccedila igual [] Homero ignora tal
oposiccedilatildeo [Europa vesus Aacutesia]rdquo (ROMILLY 2013 p 38 e 39) Ela afirma que Homero natildeo os
diferencia porque se tratam de humanos guerreando e os valores da humanidade se
sobrepotildeem aos do grupo eacutetnico ldquoele natildeo marca as diferenccedilas entre indiviacuteduos e tampouco
entre os povos Do lado troiano como do lado aqueu satildeo lsquomortaisrsquo que se afrontamrdquo
(ROMILLY 2013 p 37)
Antonio Mario Battegazzore mostra que ldquoentre gregos e troianos estatildeo faltando
elementos mesmo que miacutenimos de distinccedilatildeo a alimentaccedilatildeo e o vestiaacuterio bem como os
princiacutepios morais satildeo idecircnticos para todos os cultos as habitaccedilotildees o modo de combater
valem para um como para outrordquo (1996 p 17) Ele concorda com Edith Hall ao dizer que natildeo
existe uma distinccedilatildeo entre Europa e Aacutesia na Iliacuteada (HALL 1989 p 39 BATTEGAZZORE
1996 p 17) De fato Homero natildeo traz esses termos geograacuteficos mas natildeo podemos dizer que
natildeo exista diferenciaccedilatildeo alguma como John Heath corrobora
Os troianos de Homero satildeo notoriamente difiacuteceis de ser distinguidos dos gregos eles cultuam os mesmos deuses lutam com taacuteticas idecircnticas e compartilham formas equivalentes de habitaccedilatildeo comida vestimenta funerais e parentesco Mesmo as diferenccedilas ndash poligamia oriental por exemplo ndash satildeo minimizadas Os principais protagonistas da guerra um da Europa e outro da Aacutesia ateacute falam a mesma liacutengua Os troianos natildeo aparentam ao menos para muitos leitores modernos mostrar os principais defeitos da psicologia do baacuterbaro que veio a caracterizaacute-los no quinto seacuteculo tirania luxuacuteria imoderada emocionalismo irrestrito afeminaccedilatildeo crueldade e servilidade De fato Homero eacute frequentemente admirado hoje em dia por sua descriccedilatildeo equacircnime de gregos e natildeo-gregos especialmente quando os eacutepicos satildeo comparados com a literatura ateniense da eacutepoca poacutes-Guerras Greco-Peacutersicas Essa interpretaccedilatildeo positiva dos troianos era uma exceccedilatildeo na antiguidade contudo e ainda haacute criacuteticos que veem um retrato negativo dos troianos como uma raccedila na Iliacuteada
33 Ele eacute composto de duas palavras o substantivo phōnḗ ldquovozrdquo e a onomatopeia bar bar analoacutegico ao nosso ldquoblaacute blaacuterdquo que designa uma linguagem incompreensiacutevel Assim o barbaroacutephōnos eacute aquele de quem natildeo se compreende a fala Desse modo se dos caacuterios soacute se ouve ldquobar barrdquo isso significa que eles natildeo falam o grego ou o falam mal (JANSE 2002 p 334-5) Como a liacutengua eacute um dos traccedilos marcantes de uma cultura (AUGEacute 1998 p 24-5) desconhecer o grego significa desconhecer a cultura grega o termo barbarophoacutenos acaba designando um povo estrangeiro No sumeacuterio e no babilocircnio jaacute existia uma palavra que utiliza esse recurso onomatopaico para definir o estrangeiro barbaru J Porkony coloca que algo semelhante ocorre no latim com o termo balbutio e no inglecircs com o termo baby satildeo palavras compostas de sons repetitivos (HALL 1989 p 4 n 5)
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Essa leitura estaacute errada eu acredito e entende mal tanto as convenccedilotildees eacutepicas e as maiores preocupaccedilotildees poeacuteticas de Homero (HEATH 2005 p 531)
Os troianos satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo de conduta dos gregos contudo eles
fazem um uso diferente de alguns aspectos desde Se um aspecto existe em Homero (como a
poligamia de Priacuteamo a maioria dos arqueiros no exeacutercito troiano etc) ele natildeo deve ser jamais
minimizado tem um porquecirc de o poeta colocar aquilo ali e simples explicaccedilotildees como ldquoeacute para
preencher a meacutetricardquo ou ldquoeacute uma interpolaccedilatildeo posteriorrdquo natildeo nos eacute suficiente para
compreender uma produccedilatildeo tatildeo complexa
De fato Homero natildeo distingue os troianos de modo a caracterizaacute-los como baacuterbaros
essa eacute uma denominaccedilatildeo inexistente nos poemas embora exista a palavra que lhe tenha dado
origem (barbaroacutephōnos) Contudo aqueus e troianos natildeo satildeo iguais se dentro de um mesmo
exeacutercito temos heroacuteis diferentes por que de um exeacutercito para outro natildeo haveria mudanccedilas
Os habitantes de Troia satildeo caracterizados de modo a serem diferenciados dos aqueus
Defendemos que os troianos satildeo um outro grupo eacutetnico eles satildeo regidos pelo mesmo coacutedigo
de conduta grego mas o uso que eles fazem desses costumes eacute diferente E como veremos no
capiacutetulo seguinte muitos dos elementos de caracterizaccedilatildeo dos troianos sobretudo a de Paacuteris
seratildeo utilizados pela trageacutedia para caracterizar os baacuterbaros Um grupo eacutetnico eacute definido natildeo na
total mas na sutil diferenccedila
A fronteira eacutetnica depende da cultura utiliza a cultura mas natildeo eacute idecircntica a esta uacuteltima tomada em seu conjunto Dois grupos sociais vizinhos muito parecidos culturalmente podem chegar a considerar-se completamente diferentes e excludentes do ponto de vista eacutetnico opondo-se com base em um uacutenico elemento cultural isolado tomado como criteacuterio (CARDOSO 2005 p 11-2)
Jonathan Hall natildeo crecirc contudo que possa haver etnicidade na Iliacuteada
[hellip] a evidecircncia de uma diferenciaccedilatildeo eacutetnica de fato entre gregos e troianos na Iliacuteada natildeo eacute totalmente convincente Os troianos usam a onomaacutestica grega cultuam os mesmos deuses que os gregos possuem a mesma organizaccedilatildeo ciacutevica dos gregose satildeo retratados pelo poeta de forma natildeo menos (e talvez ateacute mais) simpaacutetica que os gregos Eacute admitivelmente verdade que Troia eacute retratada como extraordinariamente abastada e que alguns de seus ocupantes ndash notavelmente Paacuteris ndash adota uma vida de luxuacuteria doentia Tambeacutem haacute indiacutecios de que os troianos satildeo retratados como um tanto excitaacuteveis e um pouco desordenadamente em comparaccedilatildeo com o campo grego (HALL 2002 p 118 ndash grifos do autor)
O discurso eacute o mesmo os troianos satildeo quase iguais aos aqueus e esse ldquoquaserdquo natildeo eacute
suficiente para haver uma diferenciaccedilatildeo de fato entre os dois exeacutercitos Lynette Mitchell
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escreve o mesmo ldquoos aqueus natildeo satildeo qualitativamente diferenciados dos troianosrdquo
(MITCHELL 2007 p 44) mas afirma que os gregos jaacute tinham uma noccedilatildeo do que natildeo era
grego e do que era colocando mais uma vez na Odisseia sua anaacutelise acerca disso
(MITCHELL 2007 p 49-50)
Kostas Vlassopoulos afirma que existe uma diferenciaccedilatildeo EuOutro em Homero ldquoos
temas e motivos que mais tarde se tornaratildeo o instrumental [stock-in-trade] das descriccedilotildees
gregas do Outro estavam claramente presente na eacutepoca de Homero e tambeacutem estatildeo presentes
no poema [Iliacuteada]rdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 171) Contudo retorna agrave questatildeo dos
costumes iguais ldquoaqueus e troianos satildeo retratados cultuando os mesmos deuses falando a
mesma liacutengua aceitando o mesmo coacutedigo moral e valores sociaisrdquo (VLASSOPOULOS 2013
p 171)
No tocante aos costumes poderiacuteamos argumentar com base na proacutepria obra de
Vlassopoulos que os valores difundidos na Iliacuteada e na Odisseia natildeo eram exclusivos dos
gregos mas eram universais Esse autor afirma que ldquoMas como a Iliacuteada o poeta da Odisseia
natildeo estaacute geralmente interessado em explorar as diferenccedilas culturais e eacutetnicas em vez disso o
poema opta por salientar instituiccedilotildees como a troca de presentes e hospitalidade [guest-
friendship] que juntam pessoas de diferentes lugaresrdquo (VLASSOPOULOS 2013 p 172)
Concordamos em parte tanto eram valores universais que ateacute hoje a Iliacuteada e a
Odisseia satildeo atuais sendo adaptadas sobretudo para o puacuteblico infanto-juvenil nossos paicircdes
contemporacircneos Na Iliacuteada os costumes satildeo os mesmos mas o uso que os troianos fazem de
alguns deles eacute diferenciada Algo parecido acontece na Canccedilatildeo de Rolando (XI dC) por
exemplo o costume de nomear as espadas eacute inerente ao francos As espadas quase que tecircm
uma anima proacutepria Rolando conversa com sua Durindana e quando estaacute a ponto de morrer
tenta quebra-la para que ningueacutem mais a possua mas natildeo obteacutem ecircxito visto que ela natildeo quer
se quebrar (vv 2338-2354) Marcuacutelio emir muccedilulmano (inimigo eacutepico dos francos) nomeia
natildeo soacute sua espada (Preciosa) mas tambeacutem sua lanccedila (Maltet) O exagero (nomear espada e
lanccedila animando em demasia os objetos) eacute o que diferencia o muccedilulmano (o Outro) do franco
Assim o casamento eacute comum a gregos e troianos mas Priacuteamo (rei troiano) eacute poliacutegamo
A assembleia eacute comum a gregos e troianos mas o modo de convoca-la e conduzi-la eacute
diferenciado sendo simplificado do lado troiano (MACKIE 1996 p 22) O cataacutelogo das
naus (Canto II) nomeia tanto gregos quanto troianos que foram para a guerra mas haacute mais
nomes especificados do lado grego do que no troiano o cataacutelogo troiano eacute bem mais
simplificado Aleacutem disso alguns costumes (como a xeacutenia) no plano do discurso foram
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colocados como quase exclusivamente gregos ao longo do tempo sobretudo apoacutes as Guerras
Greco-Peacutersicas E eacute tambeacutem no plano do discurso que vemos algumas diferenccedilas entre os
troianos e os aqueus aqueles tecircm um modo de falar diferente como enfatiza Hilary Mackie
bem como os siacutemiles utilizados por Homero na composiccedilatildeo dos troianos revelam que em
batalha eles satildeo os animais caccedilados natildeo os caccediladores eles estatildeo em desvantagem na Iliacuteada
Os troianos portanto satildeo um Outro mas natildeo quer dizer que eles satildeo o Outro
estrangeiro que natildeo eacute grego Eles compartilham de um mesmo coacutedigo de conduta mas o
reapropriam constituindo-se de um outro grupo eacutetnico A ideia de que os troianos satildeo
estrangeiros surge a posteriori como vamos observar nos proacuteximos capiacutetulos sobretudo a
partir da caracterizaccedilatildeo de Paacuteris
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CAPIacuteTULO 2 | PAacuteRIS O CAUSADOR DE MALES
ldquoPaacuteris na Iliacuteada tanto heroacutei quanto arqueiro natildeo eacute nem um homem completo nem um guerreiro completordquo
(LISSARAGUE 2002 p 115)
Assim Paacuteris eacute visto pelo historiador francecircs Franccedilois Lissarague nem um homem
nem um guerreiro completo Eacute comum encontrarmos designaccedilotildees natildeo tatildeo heroicas a Paacuteris
vindo de helenistas contemporacircneos Ele eacute geralmente visto pelos autores que escrevem sobre
a Guerra de Troia como ldquovaidosordquo ldquofriacutevolordquo ldquococircmicordquo ldquoluxurianterdquo ldquogeralmente uma figura
natildeo heroicardquo (RUTHERFORD 1996 p 33 e 83) ldquoafeminadordquo ldquofrouxordquo (LORAUX 1989 p
93) ldquoplayboyrdquo ldquopateacuteticordquo (HUGHES 2009 219) ldquoegoiacutestardquo ldquosuperficialmente atrativordquo
(SCHEIN 2010 p 22 e 24) ldquotolordquo (CARLIER 2008 p 100) ldquonatildeo heroicordquo ldquoo mais
desmerecido dos filhos de Priacuteamordquo (REDFIELD 1994 p 113 e 114) ldquoalmofadinhardquo [fop]
(GRIFFIN 1983 p 8) ldquoantagonista [] de Aquilesrdquo (NAGY 1999 p 61)
ldquofujatildeordquoldquodesertorrdquo ldquocovarderdquo (AUBRETON 19561968 p 168202) ou ldquoidiotardquo (CLARKE
apud SUTER 1984 p 7)
No entanto isso natildeo acontece apenas com os autores contemporacircneos tanto Homero
como Euriacutepides trazem um Paacuteris constantemente sendo rechaccedilado O motivo principal eacute o fato
de ele ter causado a Guerra de Troia mas Homero traz aleacutem disso a ideia dele natildeo ser um
guerreiro tatildeo bom assim o que gera reprimendas tambeacutem Nesse capiacutetulo vamos ver como
nosso heroacutei eacute visto como um causador de males dentro desse espaccedilo discursivo e como os
outros personagens reagem a essa sua faceta Tanto a eacutepica quanto a trageacutedia trazem essa
ideia acerca desse personagem e haacute uma relaccedilatildeo entre ela e nossa comparaacutevel pois eacute
importante para definir alguns criteacuterios de etnicidade Entretanto em Homero ainda natildeo haacute a
ideia de Paacuteris como um baacuterbaros como jaacute haacute em Euriacutepides ele eacute algueacutem a quem se pode
causar vergonha34 (no bojo da ideia defendida por Ann Suter de que o discurso que cerca
Paacuteris tem a ver com o discurso iacircmbico)
34 Segundo E R Dodds a Greacutecia possui uma cultura de vergonha [shame-culture] natildeo uma cultura de culpa [guilt-culture] esta tem mais a ver com o que o indiviacuteduo pensa de si mesmo natildeo do que os outros pensam dele Assim dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode causar vergonha eacute mais apropriado do que dizer que Paacuteris eacute algueacutem a quem se pode culpar Nesse ponto discordamos da terminologia utilizada por Ann Suter para tratar do personagem ldquoblamerdquo (culpa) natildeo eacute cabiacutevel para designar o discurso iacircmbico sendo preferiacutevel pois ldquoacusatoacuteriordquo
51
Na Iliacuteada quando Paacuteris recua ante a fuacuteria de Menelau Heitor o repreende (III vv 39-
45) Quatro qualificaccedilotildees satildeo utilizadas pelo poeta atraveacutes das palavras do seu irmatildeo para
nosso heroacutei dyacutesparis (literalmente ldquodis-Paacuterisrdquo) eicircdos aacuteriste (ldquomelhor formardquo) gynaimaneacutes
(enlouquecedor de mulheres) e ēperopeutaacute (enganador) Dyacutesparis eacute uma qualificaccedilatildeo
interessante ela eacute composta de um prefixo e um substantivo dyacutes- eacute um prefixo de negaccedilatildeo e
Paacuteris o proacuteprio nome do heroacutei aqui tratado Pode ter dado origem ao termo latino dispare
que por sua vez originou nosso ldquodiacutesparrdquo (diferente dessemelhante) ldquoPaacuteris funestordquo eacute a
traduccedilatildeo que Carlos Alberto Nunes daacute a esse termo a qual eacute adequada ao seu significado
visto que essa expressatildeo denota as contrariedades do personagem e os maus pressaacutegios que
ocorreram antes de seu nascimento Embora menos proacutexima ao sentido original a traduccedilatildeo de
Haroldo de Campos manteacutem a alusatildeo jogando com o ritmo das palavras ldquoPaacuteris mal-paridordquo
Eicircdos (forma) aacuteriste (de aacuteristos ldquomelhorrdquo) denota a beleza fiacutesica de Paacuteris a qual
deveria ser pressuposto segundo Heitor para seu bom desempenho no campo de batalha por
ser o mais belo troiano deveria ser tambeacutem o melhor guerreiro Contudo essa denominaccedilatildeo
tem uma peculiaridade esse epiacuteteto soacute eacute utilizado para mulheres (SUTER 1984 p 72) De
homens apenas Heitor e Paacuteris satildeo denominados dessa maneira e essa foacutermula soacute aparece
quando um dos dois faz algo indigno de sua estirpe no acircmbito militar Por estar no vocativo (o
nominativo eacute eidos aacuteristos) eacute designativo de um insulto
Em Euriacutepides haacute algumas alusotildees agrave beleza fiacutesica de Paacuteris Entretanto as palavras
usadas satildeo diferentes em Alexandre (fr 61d v 8) o coro diz que Paacuteris possui ldquoformas que
se diferem dos outrosrdquo (morphecirc diapher[ ) Eacute uma designaccedilatildeo menos especiacutefica do que ldquoeicircdos
aacuteristerdquo utilizada por Homero Aleacutem disso sua beleza aparece intrinsecamente ligada ao
excesso de ouro agraves roupas que ele usa Eacute uma beleza acessoacuteria externa (literalmente)
baacuterbara que causou a desgraccedila de muitos Em Euriacutepides e em Homero sua beleza se liga a)
ao fato de ele pertencer a uma elite (Paacuteris eacute diferente das pessoas comuns por isso o coro de
Alexandre frisa essa ideia da beleza como distinccedilatildeo social e eacute a partir dela e de suas faccedilanhas
incompatiacuteveis com um douacutelos ndash escravo ndash que se desconfiaraacute da origem do pastor que ganhou
os jogos) e b) agrave ruiacutena que ela causou (Heacutecuba na peccedila homocircnima de Euriacutepides deixa claro
que Helena se deslumbrou com a riqueza e a beleza de Paacuteris)
Nosso heroacutei eacute um gynaimaneacutes na Iliacuteada Essa eacute uma qualificaccedilatildeo formada por dois
substantivos gynḗ (mulher) e maacutenē (loucura) palavra que deriva do verbo maiacutenomai (desejar
ardorosamente loucamente ndash ISIDRO PEREIRA 1951 p 113 ldquoser louco porrdquo [esser pazzo]
ndash NAZARI 1999 p 223 ficardeixar [rendre] louco ndash BAILLY 2000 p 1217 ndash ver microαίνω)
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Anatoille Bailly traduz essa palavra por ldquofou des femmesrdquo (louco por mulheres) (2000 p 422
ndash ver γυναικοmicroανής) Carlos Alberto Nunes como vimos acima traduz como ldquosedutor de
mulheresrdquo Haroldo de Campos por ldquomulherengordquo
Ann Suter nota que esse mesmo epiacuteteto eacute utilizado para designar Dionisos no Hino a
essa divindade (1984 p 74) traduzindo-o como ldquohe who drives women madrdquo (ldquoaquele que
deixa as mulheres loucasrdquo) e criticando aqueles que traduzem a palavra por ldquowomen crazyrdquo
(ldquolouco por mulheresrdquo) Assim enquanto Carlos Alberto Nunes e Ann Suter partem para uma
traduccedilatildeo que denota o aspecto ativo do adjetivo (Paacuteris como agente da
seduccedilatildeoenlouquecimento) Anatoille Bailly e Haroldo de Campos optam por um aspecto
passivo (Paacuteris como viacutetima dessa loucura) ldquoDeixar louco as mulheresrdquo ou ldquoser louco por
mulheresrdquo natildeo altera enfim a ideia de que Paacuteris eacute um homem relacionado a essa esfera da
seduccedilatildeo do amor da paixatildeo
Ēperopeutaacute natildeo eacute traduzido por Carlos Alberto Nunes ele une esse vocaacutebulo a
gynaimaneacutes sob a denominaccedilatildeo de ldquosedutor de mulheresrdquo Haroldo de Campos traduz como
ldquoimpostorrdquo denotando sua acepccedilatildeo ligada agrave enganaccedilatildeo O Le grand Bailly mostra duas
traduccedilotildees ligadas ao verbo ēperopeuacuteō ldquoenganadorrdquo e ldquosedutorrdquo (BAILLY 2000 906) Ann
Suter evidencia que esse epiacuteteto eacute utilizado tambeacutem na tradiccedilatildeo poeacutetica para Hermes e
Prometeu dois dos maiores enganadores da mitologia (1984 p 75-76) sendo ldquoenganadorrdquo
sua melhor traduccedilatildeo Esse epiacuteteto dialoga entatildeo diretamente com theoeidḗs epiacuteteto utilizado
para Paacuteris em vaacuterios cantos no que toca a esfera da dissimulaccedilatildeo
Theoeidḗs ndash que significa literalmente ldquode forma divinardquo (theoiacute ndash deuses eicircdos ndash
forma exterior aspecto ndash BAILLY 2000 p 584 NAZARI 1999 p 146) ndash denota a escassa
relaccedilatildeo de Paacuteris com o ambiente beacutelico Theoeidḗs acompanha mais Paacuteris que outros
personagens Eacute como o ldquode peacutes velozesrdquo de Aquiles ou o ldquode muitos ardisrdquo de Odisseu
acaba se transformando em um epiacuteteto quase que exclusivo para o heroacutei Esse eacute um adjetivo
que denota a beleza fiacutesica de um personagem (FONTES 2001 p 95) Ann Suter chama a
atenccedilatildeo para a proacutepria etimologia da palavra da sua formaccedilatildeo ter a ldquoforma de um deusrdquo eacute
problemaacutetico visto que os deuses sempre se disfarccedilam Assim ser theoeidḗs eacute ser de certo
modo falso vocecirc aparenta ser uma coisa que natildeo eacute (SUTER 1984 p 63)
Aleacutem disso segundo ainda Ann Suter theoeidḗs eacute um epiacuteteto natildeo-beacutelico
Aqueles aos quais esse epiacuteteto eacute aplicado com alguma frequecircncia pois satildeo notaacuteveis por serem todos homens mas nenhum guerreiro Teocliacutemeno o vidente Telecircmaco muito jovem para lutar Priacuteamo muito velho para lutar De fato os quarto
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pretendentes e Alciacutenoo compartilham tambeacutem essa caracteriacutestica comum a esse grupo (SUTER 1983 p 60-1)
Natildeo soacute esse epiacuteteto se repete frequentemente mas tambeacutem as quatro palavras que
analisamos elas fazem parte de uma foacutermula que aparece novamente no Canto XIII
(Δύσπαρι εἶδος ἄριστε γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ) e esta tem um tom acusador Satildeo palavras
que Heitor dirige a Paacuteris a fim de censuraacute-lo de constrangecirc-lo e de atraveacutes da neacutemesis35
fazer com que ele sinta vergonha de seu comportamento Os heroacuteis vivem sob a sombra do
aidṓs comumente traduzido como ldquovergonhardquo ou ldquorespeitordquo mas que de fato ldquoeacute o medo da
desaprovaccedilatildeo ou da condenaccedilatildeo pelos outros que faz um homem ficar e lutar bravamenterdquo
(SCHEIN 2010 p 177) Essa noccedilatildeo de aidṓs corrobora o caraacuteter agoniacutestico da sociedade
helecircnica se configura numa ldquovulnerabilidade agrave norma ideal expressa pela sociedaderdquo
(REDFIELD 1994 p 116) e faz parte do desenvolvimento da poesia iacircmbica (acusatoacuteria)
Heitor fala em sua reprimenda a Paacuteris no Canto III que o exeacutercito inimigo ri da
atitude de Paacuteris (v 43) haacute poucos risos na Iliacuteada como observou James M Redfield e
segundo esse autor em todas as situaccedilotildees ele ldquoeacute a marca da liberaccedilatildeo da tensatildeo socialrdquo
(REDFIELD 1994 p 286) A seguir Heitor continua sua reprimenda lembrando a Paacuteris que
foi ele quem causou a guerra devendo pois ele retornar ao campo de batalha para enfrentar
Menelau
O heroacutei ainda lembra o irmatildeo de que ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a
beleza natildeo te valeram de nada ao te vires lanccedilado na poeirardquo [οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃ κίθαρις
τά τε δῶρ᾽ Ἀφροδίτης ἥ τε κόmicroη τό τε εἶδος ὅτ᾽ ἐν κονίῃσι microιγείης] (III vv 46-55) Os
cabelos de Paacuteris (koacutemē) a ciacutetara (kiacutetharis) ndash instrumento musical ndash os dons de Afrodite (dōra
Aphrodiacutetēs) ndash relacionados ao amor e agrave beleza ndash e a sua forma fiacutesica (eicircdos) natildeo lhe servem
para o campo de batalha ali eacute o domiacutenio da forccedila (biacuteē) da coragem (alkḗ) natildeo da muacutesica da
beleza e do amor Aqui tambeacutem Paacuteris serve de khaacuterma um motivo de divertimento para os
outros Eacute algueacutem acusaacutevel vergonhoso que necessita ser repreendido com palavras
Mesmo Helena natildeo fica satisfeita com as atitudes de Paacuteris primeiramente recusa-se a
ir encontraacute-lo dizendo agrave Afrodite (que estava disfarccedilada) ldquoNatildeo voltarei para o taacutelamo pois
vergonhoso seria participar-lhe do leito as Troianas sem duacutevida haviam de murmurar jaacute
sobejam as dores que na alma suportordquo [κεῖσε δ᾽ ἐγὼν οὐκ εἶmicroι νεmicroεσσητὸν δέ κεν εἴη 35 Neacutemesis ldquoeacute uma ira mediada pelo sentido social um homem natildeo somente sente isso mas se sente correto em sentir issordquo (REDFIELD 1994 p 117) Ainda segundo esse autor neacutemesis se contrapotildee ao aidṓs os dois se relacionam agrave censura mas este seria uma censura interna (vocecirc vecirc que estaacute errado sente vergonha de si mesmo e faz o certo) e aquele uma externa (algueacutem vecirc que vocecirc estaacute fazendo algo errado censura vocecirc sente vergonha e faz o certo)
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κείνου πορσανέουσα λέχος Τρῳαὶ δέ micro᾽ ὀπίσσω πᾶσαι microωmicroήσονται ἔχω δ᾽ ἄχε᾽
ἄκριτα θυmicroῷ] (III vv 410-412 ndash grifos nossos) Helena teme a neacutemesis das troianas mas o
medo de desagradar aos deuses eacute maior Afrodite lhe ameaccedila e ela acaba indo encontrando-se
com Paacuteris (III vv 413-420)
Ao se defrontar com nosso heroacutei Helena assim como Heitor o reprova por ter
voltado para o palaacutecio e o instiga a retornar para combater Menelau
ἀλλ᾽ ἴθι νῦν προκάλεσσαι ἀρηΐφιλον Μενέλαον ἐξαῦτις microαχέσασθαι ἐναντίον ἀλλά σ᾽ ἔγωγε παύεσθαι κέλοmicroαι microηδὲ ξανθῷ Μενελάῳ ἀντίβιον πόλεmicroον πολεmicroίζειν ἠδὲ microάχεσθαι ἀφραδέως microή πως τάχ᾽ ὑπ᾽ αὐτοῦ δουρὶ δαmicroήῃς Vai provocar entatildeo logo o disciacutepulo de Ares potente para outra vez vos medirdes em duelo Aliaacutes aconselho-te a que natildeo faccedilas tamanha tolice pensando que podes com o louro heroacutei Menelau contender numa luta corpoacuterea que em pouco tempo sua lanccedila potente haacute de ao solo postrar-te (III vv 428-436)
Na Iliacuteada Helena eacute a uacutenica mulher mortal que repreende um homem um anḗr sendo
o homem repreendido justamente Paacuteris Isso seria um absurdo temos a ideia por causa de
uma construccedilatildeo historiograacutefica simplista e de uma documentaccedilatildeo oriunda em sua maioria do
Periacuteodo Claacutessico Ateniense de que a mulher natildeo possuiacutea voz na Greacutecia Antiga (LESSA
2010 p 15-6) Contudo a proacutepria documentaccedilatildeo do Periacuteodo Claacutessico nos mostra ldquobrechasrdquo
nesse ideal de comportamento as mulheres natildeo eram completamente passivas
A trageacutedia nesse sentido exerce um papel importante para que possamos estudar esse
aspecto Em Euriacutepides Helena Androcircmaca e Ifigecircnia culpam Paacuteris pela situaccedilatildeo em que se
encontram a elas eacute dada voz para expressar essa ideia Segundo o historiador Faacutebio de Souza
Lessa
as trageacutedias [] satildeo suportes de informaccedilatildeo importantes para a compreensatildeo da dinacircmica poliacuteade e em especial do comportamento feminino isto porque em cena a poacutelis refletia sobre si mesma havendo uma abordagem de problemaacuteticas totalmente atuais na Atenas do seacuteculo V aleacutem de permitirem ascender as contradiccedilotildees inerentes agrave consolidaccedilatildeo da mulher na poacutelis democraacutetica [] Para Richard Buxton a trageacutedia eacute o lugar do conflito das tensotildees e rupturas sendo as mulhetes neste espaccedilo agressivas dominadoras ativas e seres visiacuteveis (LESSA 2004 p 80)
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As trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides natildeo tratam da Guerra de Troia em si36 ou
elas se passam antes (como Alexandre) ou depois dela (como o resto de nossa
documentaccedilatildeo) Eacute nas trageacutedias que se passam depois da guerra que as mulheres em questatildeo
enunciam essa responsabilidade do Paacuteris pelos seus destinos e a voz feminina aqui eacute
imprescindiacutevel satildeo as mulheres e as crianccedilas que mais sofrem com a guerra Elas ficam sem
seus esposos e pais tornam-se cativas do inimigo veem suas vidas ruiacuterem Antes da
encenaccedilatildeo das trageacutedias algumas cerimocircnias se desenrolavam como a apresentaccedilatildeo dos
tesouros da cidade e dos oacuterfatildeos de guerra as crianccedilas cujos pais deram a vida por Atenas
eram sustentadas pela poacutelis e eles deveriam continuar ndash pelos seus pais pelo seu nome e pela
sua cidade ndash a lutar
Sendo a Iliacuteada um texto que circulava bastante no Periacuteodo Claacutessico (e congelado na
escrita durante ele) por ser utilizado para a paideiacutea o fato de Helena reprimir Paacuteris eacute
significativo Tanto esse poema quanto a Odisseia tambeacutem trazem um modelo feminino a
priori muito bem delimitado e fechado que muito influenciou na proacutepria construccedilatildeo do
modelo claacutessico Peneacutelope eacute o grande exemplo a mulher tecelatilde fiel ao marido submissa ao
filho homem que utiliza a meacutetis para urdir literalmente a trama que lhe garante os vinte anos
de espera por Odisseu
Em Homero a representaccedilatildeo de Helena denota algo que acontece tambeacutem no Periacuteodo
Claacutessico ldquoa sociedade poliacuteade buscou manter as mulheres distanciadas da esfera da accedilatildeo
masculina mas ao memso tempo concedeu-as a funccedilatildeo de policiar as accedilotildees dos cidadatildeos isto
eacute de vigiar o comportamento masculinordquo (LESSA 2004 p 77 ndash grifos do autor) Helena
nesse excerto do poema homeacuterico eacute a responsaacutevel por vigiar o comportamento de Paacuteris
reprimindo-o O helenista australiano Christopher Ransom crecirc que Paacuteris natildeo se deixa afetar
pela neacutemesis nem pelo aidṓs (RANSOM 2011 p 55) mas eacute atraveacutes da neacutemesis de Helena e
de Heitor que o heroacutei sentiria aidṓs pelos seus atos e voltaria para a guerra o que invalida sua
afirmaccedilatildeo Entretanto essa reprimenda natildeo surte efeito de pronto somente no Canto VI o
heroacutei retornaraacute para a guerra (e dela natildeo se ausentaraacute mais)
Paacuteris eacute mostrado frequentemente tambeacutem como causador de grande desgraccedila para os
combatentes tanto em Euriacutepides quanto em Homero No Canto XXII da Iliacuteada quando
Heitor diz que natildeo vai recuar da luta singular com Aquiles dando Helena e os bens do palaacutecio
ldquoque o divo Paacuteris nas cocircncavas naus para Troacuteia nos trouxe ndash causa que foi inicial desta
36 Agrave exceccedilatildeo de Rhesos a qual tem a autoria de Euriacutepides questionada e natildeo incluiacutemos em nosso corpus documental
56
guerra funestardquo [microάλ᾽ ὅσσά τ᾽ Ἀλέξανδρος κοίλῃς ἐνὶ νηυσὶν ἠγάγετο Τροίηνδ᾽ ἥ τ᾽
ἔπλετο νείκεος ἀρχή] (vv 115-116 ndash grifos nossos) A ideia de que Paacuteris foi o princiacutepio de
tudo tambeacutem se encontra presente no Canto V quando eacute mencionado relata-se que Feacutereclo
artiacutefice foi quem fabricou os navios nos quais Paacuteris foi atraacutes de Helena ldquoque tinham sido o
princiacutepio da grande desgraccedila dos Teucros e dele proacuteprio por ter desprezado os oraacutecrsquolos
divinosrdquo [ἀρχεκάκους37 αἳ πᾶσι κακὸν Τρώεσσι γένοντο οἷ τ᾽ αὐτῷ ἐπεὶ οὔ τι θεῶν ἐκ
θέσφατα ᾔδη] (V vv 63-64 ndash grifos nossos) Aqui a arkhekaacutekos dos troianos foi a proacutepria
partida de Paacuteris que eacute denominado como causador de uma meacutega pecircma aos seus conterracircneos
A expressatildeo se repete no Canto VI quando Heitor diz ldquoUm fautor de desgraccedilas fez
nascer o Olimpo para o magnacircnimo Priacuteamo os filhos e o povo Troiano Se concedido me
fosse assistir-lhe agrave descida para o Hades esquecer-se-ia minha alma por certo dos males
presentesrdquo [microέγα γάρ microιν Ὀλύmicroπιος ἔτρεφε πῆmicroα Τρωσί τε καὶ Πριάmicroῳ microεγαλήτορι
τοῖό τε παισίν εἰ κεῖνόν γε ἴδοιmicroι κατελθόντ᾽ Ἄϊδος εἴσω φαίην κε φρέν᾽ ἀτέρπου
ὀϊζύος ἐκλελαθέσθαι] (VI vv 280-285 ndash grifos nossos) Aqui a alusatildeo a Paacuteris como
causador da guerra de grandes desgraccedilas (meacutega pecircma) aparece novamente Ainda nesse
Canto quando Heitor repreende Paacuteris essa ideia tambeacutem se repete e o heroacutei acrescenta que
ldquoTu proacuteprio quiccedilaacute te indignaras caso encontrasse algueacutem que fugisse agrave defesa da paacutetria [σὺ
δ᾽ ἂν microαχέσαιο καὶ ἄλλῳ ὅν τινά που microεθιέντα ἴδοις στυγεροῦ πολέmicroοιο] (VI vv 329-
330)
Durante essa reprimenda (VI vv 326-342) Paacuteris eacute interpelado por Heitor como
daimoacutenirsquo (vocativo masculino singular de daiacutemōn) palavra que designa uma relaccedilatildeo iacutentima
entre os interlocutores bem como ldquoeacute costumeiramente usada quando o falante quer persuadir
o endereccedilado a mudar aquele comportamento ou atituderdquo (SUTER 1984 p 59) Comumente
traduzido por ldquodemocircniordquo muitas vezes confunde o leitor desavisado das obras de Homero
Essa traduccedilatildeo implica numa concepccedilatildeo cristatilde (ou seja posterior ao tempo ao qual nos
referimos) aleacutem de ser pela conotaccedilatildeo da palavra uma soluccedilatildeo pouco cabiacutevel pois o daiacutemōn
natildeo eacute ruim O termo designa uma divindade qualquer e nesse caso eacute uma interpelaccedilatildeo o
vocativo corrobora essa ideia
Heitor assim exorta Paacuteris agrave batalha chamando a atenccedilatildeo para o fato de ele ter
causado a guerra Ele por sua vez acalma Heitor dizendo que ele estaacute se preparando para a
batalha visto que ele jaacute havia sido exortado pela proacutepria Helena a qual lamenta natildeo lhe ter
sido destinado um homem melhor que sentisse vergonha pelos seus atos A reprimenda de
37 Archeacute eacute o princiacutepio kakoacutes eacute tanto o mau quanto o feio
57
Helena enfim surtiu efeito e Paacuteris de fato vai ao encontro de Heitor que ocorre ainda no
Canto VI (vv 503-525)
No entanto ele natildeo retorna sem escutar mais uma vez algo de Helena ela volta a
criticar o heroacutei afirmando que ele ldquonunca teve firmeza nem nunca haacute de tecirc-lardquo [δ᾽ οὔτ᾽ ἂρ
νῦν φρένες ἔmicroπεδοι38 οὔτ᾽ ἄρ᾽ ὀπίσσω ἔσσονται] (VI vv 352-353) Fica claro nessa
passagem que a aacutetē de Paacuteris foi o motor da guerra Ao retirar Helena de Menelau quando
estava alojado em seu palaacutecio ele cometeu uma infraccedilatildeo desrespeitou a hospitalidade
(xeacutenia) praacutetica cara aos helenos Essa transgressatildeo foi uma das engrenagens da aacutetē (cegueira)
de Paacuteris visto que a aacutetē se daacute de trecircs momentos (princiacutepio estadoato e consequecircncia) o
ldquoraptordquo de Helena eacute o ldquoestadoatordquo que teve como princiacutepio a escolha de Afrodite e a guerra
como consequecircncia (MALTA 2006 p 78)
Em Euriacutepides a maioria esmagadora das menccedilotildees a Paacuteris dizem respeito ao fato de ele
ter causado a guerra Alguns personagens como Agamemnon e Ifigecircnia em Ifigecircnia em Aacuteulis
(vv 467-468 vv 1283-1311) ou Androcircmaca e Helena em As Troianas (vv 919-934 vv
940-943 vv 597-600) culpam-no diretamente pelas suas ruiacutenas mas geralmente eacute o coro
quem o faz (As Troianas vv 780-781 Heacutecuba vv 629-656 vv 905-951 Helena vv
1110-1120 Androcircmaca vv 274-300 Ifigecircnia em Aacuteulis vv 573-589) Eacute importante
frisarmos a importacircncia do coro pois ele eacute uma espeacutecie de arauto da poacutelis
O coro era elemento fundamental No desempenho cumprido por ele vertia-se uma grande quantidade de comentaacuterio social instrutivo e cheio de ponderaccedilatildeo que continuamente reiterava e sumarizava os valores da comunidade as atitudes e atributos aceitos e estimados Os diaacutelogos tomaram da retoacuterica homeacuterica o seu estilo exortativo aconselham comentam orientam exortam denunciam mostram arrependimentos expotildeem de forma mordaz o que devia de ser aceito ou evitado dando expressotildees a reaccedilotildees extremas dramatizando seus castigos e suas recompensas (CODECcedilO 2010 p 72)
Aleacutem disso o coro estaacute aqui exercendo um papel que sua natureza intralinguiacutestica
desempenha ele canta em versos iacircmbicos (ROMILLY 2013 p 227) de natureza
acusatoacuteria Eacute de comum conhecimento que Paacuteris causou a guerra e o coro faz questatildeo de
lembrar disso Em Helena a personagem homocircnima se acusa dizendo que seu deacutemas (beleza
do corpo) causou a ruiacutena de Troia (vv 384-385) mas o coro na mesma trageacutedia vem
lembrar ldquosobre o mar cinza com remo baacuterbaro o homem que veio que veio trazendo aos
filhos de Priacuteamo vocecirc Helena como sua esposa da Lacedemocircnia Paacuteris o fatalmente
38 Phreacuten como jaacute vimos eacute o muacutesculo diafragma eacutempedos significa firme Robert P Keep traduzindo do alematildeo o dicionaacuterio homeacuterico de Georg Autenrieth denomina essa expressatildeo (phreacutenes eacutempedoi) por ldquounimpairedrdquo que por sua vez significa algo que natildeo tem sua forccedila reduzida
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casadordquo [ὅτ᾽ ἔδραmicroε ῥόθια πεδία βαρβάρῳ πλάτᾳ ὅτ᾽ ἔmicroολεν ἔmicroολε microέλεα Πριαmicroίδαις
ἄγων Λακεδαίmicroονος ἄπο λέχεα σέθεν ὦ Ἑλένα Πάρις αἰνόγαmicroος] (vv 1117-1120)
Aqui Paacuteris eacute denominado ainoacutegamos adjetivo composto da palavra ainoacutes (terriacutevel) e gaacutemos
(casamento) o que ratifica a causa da guerra e relembra a sua aacutetē homeacuterica O mesmo
acontece em As Troianas Menelau culpa Helena (As Troianas vv 1037-1038) mas o coro
vem lembrar de quem eacute a culpa (vv 780-781)
Mesmo em Alexandre Paacuteris aparece como algueacutem que tem uma responsabilidade em
relaccedilatildeo agraves origens da guerra Isso contudo fica impliacutecito Luciacutea Romero Mariscal defende
que a representaccedilatildeo de Paacuteris nesse fragmento eacute feita de modo a identifica-lo com dois grupos
sociais a) a populaccedilatildeo rural de Atenas que durante a Guerra do Peloponeso eacute
responsabilizada por ter levado a peste agrave cidade (MARISCAL 2003 p 169) e b) com os
tyacuterannoi cujas presenccedilas assolavam Atenas e criavam um clima de incerteza no tocante agrave
manutenccedilatildeo da democracia (MARISCAL 2005 p 14)
Alexandre foi interpretada justamente depois dessa grande peste ter assolado a poacutelis e
ter matado inclusive um de seus principais membros Peacutericles Luciacutea Mariscal coloca que
Ao apresentar as origens da guerra de Troia em termos de oposiccedilatildeo entre o espaccedilo poliacutetico da cidade e o espaccedilo apoliacutetico da montanha [o Ida onde Paacuteris foi criado] entre os sujeitos que habitam ditos espaccedilos contrapostos e entre as convenccedilotildees que assim o delimitam Euriacutepides aborda um dos temas que o pensamento poliacutetico tradicional havia jaacute explorado ao longo de sua histoacuteria e que durante a guerra do Peloponeso se converteu em uma experiecircncia traacutegica similar a que se representa em Alexandre sob a faacutebula miacutetica que deu peacute agrave guerra troiana Como assinala Ph Borgeaud ldquoConveacutem recordar com a tradiccedilatildeo grega que eacute uma guerra que haacute na origem da tomada de consciecircncia da oposiccedilatildeo entre o ruacutestico e o cidadatildeordquo [] eacute sobretudo ao princiacutepio da guerra do Peloponeso quando a tensatildeo entre os habitantes da cidade e os do campo se faz mais traumaacutetica ao abrir a cidade de Atenas as suas portas a uma ingente massa de populaccedilatildeo rural e agreste que a duras penas se integra na cidade e a contamina com os terriacuteveis resultados da virulenta propagaccedilatildeo da peste que descreve Tuciacutedides no segundo livro de sua Histoacuteria da Guerra do Peloponeso (MARISCAL 2003 p 168-169 ndash grifos nossos)
Segundo a autora eacute Paacuteris que traz consigo a crise para a cidade pois insiste em
participar dos jogos sabendo que natildeo eacute um nobre (MARISCAL 2003 p 165) O tema de
Alexandre gira em torno do agocircn (disputa) esportivo ganhado por Paacuteris na eacutepoca um pastor
ainda cuja descendecircncia nobre era desconhecida Era inconcebiacutevel que um doucirclos (escravo)
ou laacutetris (servo) ganhasse as provas esportivas nas quais os aristoiacute deveriam sobressair-se
Aliaacutes jaacute era inconcebiacutevel a concessatildeo dessa participaccedilatildeo de grupos menos privilegiados da
sociedade nesse tipo de evento Priacuteamo jaacute cometera um erro aiacute ao deixar que um simples
pastor se juntasse aos aristocratas nos jogos A sua participaccedilatildeo ldquoquebraraacute a ordem da cidade
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e provocaraacute uma cadeia de transgressotildees que teriam lugar em todos os acircmbitos da mesma Sua
pretensatildeo de tomar parte nos funerais equivale a formar parte da cidade a ocupar um lugar
que natildeo lhe pertencerdquo (MARISCAL 2003 p 165)
Desse modo Deiacutefobo irmatildeo de Paacuteris eacute quem vai pedir providecircncias acerca disso
exige que o pastor seja morto pela sua audaacutecia e vendo que o pai natildeo lhe daria suporte pede a
Heacutecuba que o faccedila Na iminecircncia da morte dele o pastor que acolheu o heroacutei chega para
impedir que isso aconteccedila mostrando as roupas que vestiam Paacuteris quando ele foi exposto e
uma cena de anagnoacuterisis (reconhecimento) se desenrola o laacutetris eacute reconhecido como aristoacutes e
reintegrado agrave famiacutelia troiana
Frequentemente em Euriacutepides Paacuteris estaacute relacionado a um ambiente aacutegrios
(selvagem) ele eacute denominado algumas vezes bouacutekolos (pastor) em Helena a personagem
homocircnima fala do passado de Paacuteris quando ele se sentava junto com seu gado (vv 358-359)
em Androcircmaca (v 706) Peleu se refere a Paacuteris natildeo como ldquoPaacuteris de Troiardquo mas como ldquoPaacuteris
do [Monte] Idardquo Marcar sua pertenccedila a um ambiente selvagem eacute revelador no que toca a
construccedilatildeo de sua representaccedilatildeo na trageacutedia gecircnero no qual eacute recorrente sua denominaccedilatildeo
como baacuterbaros O proacuteprio mito que envolve Paacuteris (sua exposiccedilatildeo no Monte Ida seu
acolhimento pela ursa e depois pelo pastor pessoa em contato constante com o aacutegrios)
denota que em Paacuteris coabitam duas instacircncias o nobre ligado ao ambiente do humano e o
camponecircs ligado ao ambiente do selvagem
Esse nobre contudo eacute um tirano Na Atenas Claacutessica esses tiranos eram vigiados de
perto e o recurso do ostracismo visava embarreirar a quebra da democracia os nomes
daqueles que poderiam oferecer riscos ao poder democraacutetico eram marcados em ostraacutekai
(pedaccedilos de ceracircmica) e aquele que obtivesse mais votos poderia ser exilado de Atenas Luciacutea
Mariscal relembra Jean-Pierre Vernant que ao analisar a representaccedilatildeo de Eacutedipo chama
atenccedilatildeo para a ideia de que a crianccedila exposta ao nascer e que retorna agrave sua regiatildeo natal para
reivindicar seus direitos eacute geralmente ligada agrave figura do tyacuterannos (MARISCAL 2005 p 14
n 9)
Luciacutea Mariscal tambeacutem nos lembra que em 417 aC Alcibiacuteades ldquoum homem como
Alexandre extraordinariamente bonito popular e que por essas datas vai ganhando um
discutido poderrdquo (MARISCAL 2005 p 17) vence competiccedilotildees atleacuteticas assim como Paacuteris
Esse mesmo Alcibiacuteades vai liderar os atenienses em uma invasatildeo a Siracusa e causar uma
derrota dura a essa poacutelis Ele tambeacutem passa um tempo em Esparta auxiliando o inimigo para
depois retornar a Atenas Assim ldquoO certo eacute que Alexandre compartilha com Alcibiacuteades o
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traccedilo mais singular [sentildeero] de ambos personagens a beleza Uma beleza extraordinaacuteria que
se entende como um sinal de excelecircncia mas que pode contudo malograr-serdquo (MARISCAL
2005 p 19)
Mesmo no campo de batalha quando luta Paacuteris eacute repreendido No Canto XI da Iliacuteada
como vimos Diomedes o reprime por tecirc-lo atingido
lsquoτοξότα λωβητὴρ κέρᾳ ἀγλαὲ παρθενοπῖπα εἰ microὲν δὴ ἀντίβιον σὺν τεύχεσι πειρηθείης οὐκ ἄν τοι χραίσmicroῃσι βιὸς καὶ ταρφέες ἰοί νῦν δέ micro᾽ ἐπιγράψας ταρσὸν ποδὸς εὔχεαι αὔτως οὐκ ἀλέγω ὡς εἴ microε γυνὴ βάλοι ἢ πάϊς ἄφρων κωφὸν γὰρ βέλος ἀνδρὸς ἀνάλκιδος οὐτιδανοῖο ἦ τ᾽ ἄλλως ὑπ᾽ ἐmicroεῖο καὶ εἴ κ᾽ ὀλίγον περ ἐπαύρῃ ὀξὺ βέλος πέλεται καὶ ἀκήριον αἶψα τίθησι τοῦ δὲ γυναικὸς microέν τ᾽ ἀmicroφίδρυφοί εἰσι παρειαί παῖδες δ᾽ ὀρφανικοί ὃ δέ θ᾽ αἵmicroατι γαῖαν ἐρεύθων πύθεται οἰωνοὶ δὲ περὶ πλέες ἠὲ γυναῖκεςrsquo
Fuacutetil frecheiro de cachos frisados espiatildeo de mulheres se te atrevesses armado a lutar frente a frente comigo nenhum amparo acharias nesse arco e nas setas inuacutemeras Soacute por me haveres riscado no peacute fazes tanto barulho ao que dou tanto valor como a tiro de crianccedila ou de moccedila Vatilde sempre eacute a flecha que um ser despreziacutevel e imbele dispara Bem diferente se daacute com meus tiros que embora de leve o dardo atinja o inimigo sem mais da existecircncia o despoja as roacuteseas faces natildeo cessa na dor de arranhar a consorte oacuterfatildeos os filhos lhe ficam e o solo tingido de sangue a apodrecer tatildeo-soacute abutres atrai natildeo mais belas mulheres (XI vv 385-395)
Isso se daacute porque Paacuteris eacute um arqueiro (que como veremos no capiacutetulo seguinte eacute
desvalorizado) e porque natildeo haacute paridade na luta ele na escala hieraacuterquica do campo de
batalha eacute inferior a Diomedes Aleacutem de ldquoarqueirordquo (toxoacuteta) Paacuteris eacute tambeacutem designado como
um patife malfeitor (lōbētḗr) e um espiatildeo de mulheres (virgens) (parthenopicircpa) Lōbētḗr
designa um ldquocomportamento ultrajante [] ofensivo agraves regras da sociedade heroicardquo (SUTER
1984 p 79) Natildeo eacute um epiacuteteto exclusivo de Paacuteris Tersites por exemplo eacute denominado desse
modo tambeacutem (Iliacuteada II v 275) por Odisseu
Suter argumenta que foi uma denominaccedilatildeo desnecessaacuteria por parte de Diomedes (e aiacute
eacute Diomedes quem eacute chamado de ldquofriacutevolordquo) visto que ambos estatildeo equiparados socialmente
natildeo seria o mesmo caso entre Odisseu e Tersites no qual este seria um membro inferior da
sociedade Socialmente natildeo ambos satildeo da elite um do lado troiano outro do lado aqueu
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contudo no campo de batalha sim eles estariam desequiparados como vimos Paacuteris eacute das
tropas ligeiras Diomedes seria membro das tropas pesadas ele usa os armamentos comuns
aos guerreiros homeacutericos Paacuteris deveria procurar algueacutem do seu estatuto beacutelico para lutar natildeo
com algueacutem que estaacute hierarquicamente acima de sua posiccedilatildeo no campo de batalha
Parthenopicircpa (paacuterthenos ndash virgem mulher que ainda natildeo eacute casada ndash acrescida do
verbo opipeuacuteō ndash ldquoolhar com inquietuderdquo (BAILLY 2000 p 1389) observar curiosamente
segundo Ann Suter eacute um epiacuteteto que demonstra covardice na batalha (1984 p 84) Associado
com a totalidade das outras denominaccedilotildees do verso eacute de fato desmerecedor em uma batalha
o que menos importa eacute desejar mulheres
Keacutera aglaegrave eacute uma denominaccedilatildeo bastante ambiacutegua Literalmente significa ldquocornos
brilhantesrdquo (keacuteras ldquocornosrdquo aglaoacutes brilhante) Pode referir-se tanto ao seu arco pois essa
arma podia ser feita de chifres de animais quanto a um penteado a um modo de arrumar o
cabelo (SUTER 1984 p 82) Carlos Alberto Nunes prefere essa uacuteltima acepccedilatildeo traduzindo
essa expressatildeo como ldquode cachos frisadosrdquo bem como Haroldo de Campos que traduz apenas
como ldquode cachosrdquo (ldquosoacuterdido sagitaacuterio de cachosrdquo) Referindo-se ou agrave beleza ou ao arco a
acepccedilatildeo negativa em relaccedilatildeo agrave batalha eacute a mesma
Ainda nesse excerto Diomedes compara o disparo de arco e flecha de Paacuteris com o de
uma crianccedila (paacuteiumls) ou mulher (gynḗ) Eacute a segunda vez que Paacuteris eacute infantilizado na Iliacuteada a
primeira que se daacute indiretamente (visto que ele natildeo eacute mencionado mas por ser filho do rei de
Troia a denuacutencia vale para ele tambeacutem) eacute quando Menelau afirma que ldquoos seus filhos [de
Priacuteamo] soberbos natildeo satildeo de confianccedila [ἐπεί οἱ παῖδες ὑπερφίαλοι καὶ ἄπιστοι]rdquo (III v
105) e que o anciatildeo deve presenciar o acordo
Anatoille Bailly ao traduzir hyperphiacutealos em seu dicionaacuterio coloca que ldquoen parl des
Troyensrdquo (falando de troianos) significa ldquoorgulhoso arroganterdquo denotando uma distinccedilatildeo de
vocabulaacuterio ao se referir aos gregos Contudo o classicista John Heath coloca que essa
palavra natildeo denigre todos os troianos mas certos indiviacuteduos como Paacuteris que causou a
guerra defendendo que ldquonatildeo haacute nada no poema que sugere que Homero considera todos os
troianos moralmente lsquocontaminadosrsquo [lsquotaintedrsquo]rdquo (HEATH 2005 p 534) Cremos que haacute a
possibilidade de distinccedilatildeo no uso do vocaacutebulo pois os troianos afinal satildeo os inimigos na
guerra
A terceira vez tambeacutem indiretamente eacute quando Priacuteamo denomina os filhos restantes
de ldquocrianccedilas maacutes que causam afliccedilatildeordquo (kakagrave teacutekna katēphoacutenes) (XXIV v 253) Isso eacute uma
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desvalorizaccedilatildeo deles uma diminuiccedilatildeo de valor dessa pessoa que eacute comparada a uma crianccedila
pois a sociedade homeacuterica eacute patriarcal onde o anḗr eacute quem deteacutem o poder familiar poliacutetico
Aleacutem disso ele eacute comparado a uma mulher Christopher Ransom analisa a efeminaccedilatildeo
de Paacuteris mostrando que ldquoisso eacute uacutetil e informativo para analisar o lsquooutrorsquo o homem que
quebra as regras da masculinidade e cujas transgressotildees e excessos ajudam a definir o ideal de
masculinidade promovendo um contraste contra o qual a identidade do homem lsquorealrsquo pode ser
estabelecidardquo (RANSOM 2011 p 35) Ademais a crianccedila e a mulher satildeo um Outro tambeacutem
o Outro social (RANSOM 2011 p 36) Cremos que Paacuteris natildeo deixa de ser um personagem
paidecircutico natildeo por mostrar como natildeo agir mas justamente por mostrar como agir
Mesmo quando Paacuteris parece engrenar na luta Heitor jaacute desconfiado acaba o
insultando quando o encontra aparentemente parado ldquoPaacuteris funesto de belas feiccedilotildees sedutor
de mulheres onde se encontra Deiacutefobo e Heleno senhor poderoso Onde Aacutesio de Hiacutertaco
o filho Adamante gerado por Aacutesio Que eacute de Otrioneu Do fastiacutegio a altanada cidade dos
Teucros hoje desaba envolvendo-te alfim a preciacutepite Morterdquo [lsquoΔύσπαρι εἶδος ἄριστε
γυναιmicroανὲς ἠπεροπευτὰ ποῦ τοι Δηΐφοβός τε βίη θ᾽ Ἑλένοιο ἄνακτος Ἀσιάδης τ᾽
Ἀδάmicroας ἠδ᾽ Ἄσιος Ὑρτάκου υἱός ποῦ δέ τοι Ὀθρυονεύς νῦν ὤλετο πᾶσα κατ᾽ ἄκρης
Ἴλιος αἰπεινή νῦν τοι σῶς αἰπὺς ὄλεθροςrsquo] (XIII vv 769-773)
No Canto XXIV (vv 247-262) quando Priacuteamo censura seus filhos indiretamente
Paacuteris eacute insultado tambeacutem O anciatildeo fala que soacute restaram os filhos dignos de censura
(eleacutenkhea) os mentirosos (pseucircstai) os danccedilarinos (orkheacutestai) e os que cantam e danccedilam
(khoroitypiacuteēsin aacuteristoi) ou seja filhos que natildeo estatildeo aptos para entrar na guerra No campo de
batalha valoriza-se a intrepidez no combate e a habilidade guerreira em detrimento da danccedila
e do canto Mas isso natildeo quer dizer que essas praacuteticas natildeo satildeo valorizadas na sociedade grega
estes satildeo valorizados fora de um contexto beacutelico Pelo contraacuterio faz parte da paideiacutea
Entretanto ligar o Outro ao domiacutenio das artes musicais natildeo eacute incomum nas trageacutedias
Edith Hall nos mostra que em As Suplicantes de Eacutesquilo somente os baacuterbaros cantam
(HALL 1989 p 130) Em Euriacutepides natildeo eacute diferente em Ifigecircnia em Aacuteulis Paacuteris eacute mostrado
ldquotocando melodias asiaacuteticas [baacuterbaras] na syacuterinx imitando na sua flauta o auloacutes friacutegio do
Olimpordquo (vv 576-578) Assim nos parece que natildeo eacute todo instrumento musical que serve agrave
paideiacutea
Eacute interessante perceber que syacuterinx e o auloacutes satildeo tipos de flautas instrumentos que
deformam a face quando tocados pois temos que inchar as bochechas Essa deformaccedilatildeo eacute
uma metaacutefora para a proacutepria deformaccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo do personagem No periacuteodo
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claacutessico Platatildeo Alcibiacuteades e Aristoacuteteles viam no auloacutes um instrumento com ldquoefeitos maleacutefi-
cos agrave formaccedilatildeo do caraacuteter do cidadatildeordquo (CERQUEIRA 2013 p 62) A lira a ciacutetara pelo
contraacuterio satildeo instrumentos bem vistos para a educaccedilatildeo do cidadatildeo por isso que o Paacuteris de
Homero toca-a Ele estaacute desempenhando ainda um exemplo a ser seguido algo que natildeo
acontece na trageacutedia como vimos Paacuteris ou eacute o pastor (ligado ao domiacutenio o aacutegrios do
selvagem) ou o escravo (o Outro social por excelecircncia do kaloacutes kagathoacutes) ou o baacuterbaro No
entanto ser um muacutesico profissional natildeo era bem visto na Atenas Claacutessica
um muacutesico de ofiacutecio portanto era visto como algueacutem inepto agrave vida ciacutevica e relapso na conduccedilatildeo de assuntos particulares Ele compartilhava da covardia feminina Esses foram os argumentos utilizados pelo Zeus de Euriacutepides na trageacutedia Antiacuteope para desqualificar o lirista Anfiatildeo ndash suspeita de feminilidade incompetecircncia militar e deacuteficit de coragem e virilidade (CERQUEIRA 1997 p 126)
A muacutesica fazia parte da paideiacutea mas ser um muacutesico profissional esbarrava num
estereoacutetipo semelhante ao do baacuterbaro implicando em uma alteridade social o muacutesico eacute
covarde eacute efeminado natildeo serve para a guerra Tendo em mente que Paacuteris tem em sua
caracterizaccedilatildeo esse elemento jaacute na Iliacuteada isso denota o quanto ela serviu para moldar uma
fronteira eacutetnica um Outro
Como pudemos perceber duas coisas desencadeiam reprimendas a Paacuteris na Iliacuteada a)
o fato de ele ter fugido da batalha com Menelau e de natildeo a ter terminado (mesmo que por um
desiacutegnio divino) e b) seu jactar-se desencadeado pelo ferimento de Diomedes Natildeo somente
Heitor seu irmatildeo o repreende mas outros heroacuteis Priacuteamo e mesmo Helena a mulher por
quem ele luta Na trageacutedia ele eacute lembrado majoritariamente como aquele que causou a
guerra Por ser o causador da desgraccedila de muitos o seu caraacuteter Outro precisa ser bem
delineado
Essas reprimendas que Paacuteris sofrem contudo natildeo passam em branco para ele ele
sempre as responde Quando Paacuteris foge do embate com Menelau recuando para dentro do
exeacutercito troiano Heitor lhe cobre de reprimendas No entanto elas natildeo ficam sem resposta
Ἕκτορ ἐπεί microε κατ᾽ αἶσαν ἐνείκεσας οὐδ᾽ ὑπὲρ αἶσαν αἰεί τοι κραδίη πέλεκυς ὥς ἐστιν ἀτειρὴς ὅς τ᾽ εἶσιν διὰ δουρὸς ὑπ᾽ ἀνέρος ὅς ῥά τε τέχνῃ νήϊον ἐκτάmicroνῃσιν ὀφέλλει δ᾽ ἀνδρὸς ἐρωήν ὣς σοὶ ἐνὶ στήθεσσιν ἀτάρβητος νόος ἐστί microή microοι δῶρ᾽ ἐρατὰ πρόφερε χρυσέης Ἀφροδίτης οὔ τοι ἀπόβλητ᾽ ἐστὶ θεῶν ἐρικυδέα δῶρα ὅσσά κεν αὐτοὶ δῶσιν ἑκὼν δ᾽ οὐκ ἄν τις ἕλοιτο
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Eacute justo Heitor o que dizes contraacuterio agrave razatildeo natildeo discorres Teu coraccedilatildeo eacute tatildeo duro quanto o accedilo semelha ao machado que manejado pelo homem lhe aumenta o poder e no tronco mui facilmente penetra talhando-o para o uso das naves Resoluccedilatildeo tatildeo intreacutepida encerras assim no imo peito Natildeo me censures por causa dos mimos da loura Afrodite pois despreziacuteveis natildeo satildeo os presentes valiosos que os deuses de seu bom grado concedem que agrave forccedila ningueacutem os alcanccedila (III vv 59-66)
Paacuteris divide a responsabilidade pela guerra natildeo fora somente ele quem a causou mas
Afrodite tambeacutem ao lhe prometer a mulher mais bela do mundo em troca do pomo dourado
Essa afirmaccedilatildeo entretanto natildeo parece diminuir a parte que cabe ao heroacutei Heitor mais a
frente se refere a ele como sendo o ldquofautor desta guerra [τοῦ εἴνεκα νεῖκος ὄρωρεν]rdquo
foacutermula que se repetiraacute vaacuterias vezes para Paacuteris ao longo da Iliacuteada
Esses versos tambeacutem mostram uma outra qualidade de Paacuteris a habilidade com as
palavras A importacircncia dessa habilidade retorna em Alexandre de Euriacutepides quando Paacuteris
deixa claro que ldquoFrequentemente um homem em desvantagem pela ineloquecircncia perde para
um eloquente mesmo que seu caso seja justordquo [ἀγλωσσίᾳ δὲ πολλάκις ληφθεὶς ἀνήρ
δίκαια λέξας ἧσσον εὐγλώσσου φέρει] (fr 56) O agloacutessos (literalmente ldquosem liacutenguardquo) natildeo
tem chance contra o eugloacutessos (literalmente ldquode boa liacutenguardquo) e Paacuteris tanto na Iliacuteada quanto
em Alexandre (textos em que ele eacute personagem) demonstra ser oacutetimo com as palavras
Sempre que ele eacute censurado por Heitor ou por Helena faz um discurso que acaba
acalmando o seu interlocutor ora atribuindo a responsabilidade da guerra natildeo apenas a ele
ora se propondo a entrar na batalha ora defendendo-se quando acusado de desserviccedilo por
Heitor num momento em que ele estaacute de fato lutando nas batalhas Essa eacute uma habilidade
que natildeo tem tanto valor na guerra quanto a forccedila fiacutesica e a estrateacutegia militar a Iliacuteada por ser
um poema beacutelico tem mais cenas de batalhas longas do que de diaacutelogos longos Contudo ter
uma boa retoacuterica clareza na fala enfim ser um haacutebil orador eacute uma virtude do anḗr
Os troianos satildeo oacutetimos falantes Hillary Mackie explora bastante essa ideia em seu
livro Talking Trojan speech and community in the Iliad Ela defende que o falar troiano
denota uma praise culture (cultura de elogio) enquanto o aqueu uma blame culture (cultura
de culpabilizaccedilatildeo) Ela mostra como os troianos muitas vezes conseguem dissuadir seus
inimigos da luta como acontece com Glauco e Diomedes (Iliacuteada VI vv 120-238) aquele
conta a este sua genealogia lembrando-o de que seus pais foram xeacutenoi hoacutespedes um do outro
Eles entatildeo decidem natildeo lutar e trocar presentes transportando a xeacutenia para o campo de
batalha
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A autora tambeacutem sustenta que os troianos evitam embates em que tenham que desferir
insultos a outros guerreiros Quando haacute a interpelaccedilatildeo eles utilizam epiacutetetos de elogio natildeo de
reprimenda (MACKIE 1996 p 83) Heitor natildeo daacute treacuteplicas (como acontece nessa repreensatildeo
seguinda da defesa do Paacuteris ndash ele natildeo replica) e seu discurso eacute introspectivo e reflexivo
bastante poeacutetico e construiacutedo esteticamente para ser assim pelo poeta (MACKIE 1996 p
115) Aleacutem disso os troianos satildeo os uacutenicos heroacuteis que suplicam pela vida em batalha
Destarte podemos perceber que Paacuteris eacute um tiacutepico troiano nesse aspecto ele eacute haacutebil com as
palavras E se as palavras satildeo como flechas (MACKIE 1996 p 56) esse elemento combina
ainda com o fato de ele ser um arqueiro (sendo que como vimos a maioria do contingente de
arquearia da Guerra de Troia eacute oriunda dos troianos)
Ainda ligado agrave questatildeo do discurso de Paacuteris no Canto III (v 60) haacute um siacutemile
interessante e incomum na epopeia a comparaccedilatildeo de um humano (Heitor) com um objeto
(machado ndash peacutelekys) Seth Benardete afirma que
O siacutemile que Paacuteris usa eacute uacutenico em muitas coisas Em nenhum outro lugar um heroacutei eacute comparado a algo feito pelo homem nem a palavra technecirc eacute recorrente na Iliacuteada (bastante comum contudo se estivesse na Odisseia) nem erocircecirc eacute usada comumente para um homem mas para o arremesso de uma lanccedila Heitor natildeo eacute o madeireiro mas o machado ou ainda madeireiro e machado seu coraccedilatildeo multiplica sua forccedila ele eacute autossuficiente Ele carrega dentro de si os meios para um grande poder Ele eacute todo arma (BENARDETE 2005 p 51)
Isso torna seu discurso diferenciado Homero e seus personagens utilizam siacutemiles que
comparam o homem aos animais que satildeo seres animados Paacuteris compara um humano a um
ser inanimado Essa eacute mais uma particularidade desse personagem que esse excerto eacute
mostrado pela primeira vez falando dialogando na epopeia
Essa natildeo eacute a uacutenica vez que Paacuteris responderaacute Heitor no Canto VI Paacuteris responde agraves
acusaccedilotildees do heroacutei e lhe acalma afirmando que Heacutecuba natildeo trouxe ao mundo um anaacutelkydos
(sem-gloacuteria) (vv 332-341) Tambeacutem quando Heitor lhe acusa injustamente de estar parado na
guerra Paacuteris responde (XIII vv 774-788) Do mesmo modo natildeo seraacute soacute seu irmatildeo que
ouviraacute resposta de Paacuteris Helena tambeacutem ouve (III vv 438-446) Assim como se sucedeu
com Heitor Paacuteris acalma o seu interlocutor atraveacutes das palavras do myacutethos ndash amenizando a
situaccedilatildeo ndash e atribui o acontecido a um deus ele natildeo eacute o responsaacutevel sozinho pelo
malsucedido Afrodite eacute quem lhe daacute Helena de presente natildeo podendo ele negar Athenaacute
ajudou Menelau por isso que ele venceu natildeo foi por causa de sua inabilidade guerreira
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Soacute haacute uma pessoa que Paacuteris natildeo responde depois que eacute interpelado de modo agressivo
Diomedes Sendo assim nosso heroacutei soacute retruca troianos e a ldquoHelenardquo que estaacute em Troia Esses
jogos interessantes de palavras e comparaccedilotildees satildeo comuns em Homero Por isso que eacute
interessante nos debruccedilarmos sobre esses siacutemiles de animais que envolvem Paacuteris Eles satildeo
muito frequentes na Iliacuteada Annie Schnapp-Gourbeillon ressalta que eles tecircm uma funccedilatildeo
especiacutefica no eacutepico
Explicar [rendre compte] valorar dar a medida aqui estaacute umas funccedilotildees fundamentais Na aproximaccedilatildeo analoacutegica o animal daacute a ver as virtudes dos heroacuteis aos quais ele se refere ele sugere ele enfatiza [met un valeur] ele retorna uma imagem amplificada e seletiva como um espelho sutilmente deformado [] ele eacute signo mensagem pressaacutegio [] Portador do sofrimento humano [] ator de uma reversatildeo indiziacutevel [] elemento fundamental de uma definiccedilatildeo social do indiviacuteduo [] (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 11)
Os siacutemiles de caccedila satildeo bastante elucidativos na hora de representar o lado mais fraco e
o mais forte Segundo Michael Clarke ldquoo contraste entre predador e caccedila eacute um padratildeo nas
falas [dos heroacuteis que comparam homens a animais] onde um guerreiro compara aqueles com
quem ele luta ou aqueles que ele vecirc a bravos ou covardes animaisrdquo (CLARKE 1995 p 9) O
narrador da Iliacuteada tambeacutem utiliza bastante esses siacutemiles tendo como o leatildeo o animal caccedilador
por excelecircncia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 39-40) encarnaccedilatildeo dos valores
heroicos em sua simbologia (SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 50) Quando Menelau
resolve enfrentar Paacuteris no iniacutecio do Canto III o leatildeo eacute o siacutemile que corresponde a Menelau
τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν ἀρηΐφιλος Μενέλαος ἐρχόmicroενον προπάροιθεν ὁmicroίλου microακρὰ βιβάντα ὥς τε λέων ἐχάρη microεγάλῳ ἐπὶ σώmicroατι κύρσας εὑρὼν ἢ ἔλαφον κεραὸν ἢ ἄγριον αἶγα πεινάων microάλα γάρ τε κατεσθίει εἴ περ ἂν αὐτὸν σεύωνται ταχέες τε κύνες θαλεροί τ᾽ αἰζηοί ὣς ἐχάρη Μενέλαος Ἀλέξανδρον θεοειδέα ὀφθαλmicroοῖσιν ἰδών φάτο γὰρ τίσεσθαι ἀλείτην αὐτίκα δ᾽ ἐξ ὀχέων σὺν τεύχεσιν ἆλτο χαmicroᾶζε τὸν δ᾽ ὡς οὖν ἐνόησεν Ἀλέξανδρος θεοειδὴς ἐν προmicroάχοισι φανέντα κατεπλήγη φίλον ἦτορ ἂψ δ᾽ ἑτάρων εἰς ἔθνος ἐχάζετο κῆρ᾽ ἀλεείνων ὡς δ᾽ ὅτε τίς τε δράκοντα ἰδὼν παλίνορσος ἀπέστη οὔρεος ἐν βήσσῃς ὑπό τε τρόmicroος ἔλλαβε γυῖα ἂψ δ᾽ ἀνεχώρησεν ὦχρός τέ microιν εἷλε παρειάς ὣς αὖτις καθ᾽ ὅmicroιλον ἔδυ Τρώων ἀγερώχων δείσας Ἀτρέος υἱὸν Ἀλέξανδρος θεοειδής Logo que o viu Menelau o guerreiro disciacutepulo de Ares como avanccedilava com passo arrogante na frente do exeacutercito muito exultante ficou como leatildeo esfaimado que encontra um cervo morto de pontas em galho ou uma cabra selvagem
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avidamente o devora ainda mesmo que catildees mui ligeiros lhe venham vindo no encalccedilo e pastores de aspecto robusto dessa maneira exultou Menelau quando Paacuteris o belo teve ante os olhos pensando que iria por fim castigaacute-lo Rapidamente do carro pulou sem que as armas soltasse Quando o formoso Alexandre que um deus imortal parecia o viu agrave frente dos outros sentiu conturbar-se-lhe o peito e para o meio dos seus recuou escapando da Morte Como se daacute quando algueacutem nos convales dos montes estaca em frente de uma serpente a tremerem-lhe as pernas e os joelhos e retrocede de um salto com o rosto sem cor todo medo por esse modo afundou para o meio dos Teucros valentes Paacuteris o divo Alexandre do filho de Atreu temeroso (III vv 21-37)
Chama-nos atenccedilatildeo os siacutemiles utilizados Primeiramente um que remete agrave caccedila (leatildeo
versus cervo ou cabra) depois um que mostra o enfrentamento homem versus animal
(homem versus serpente humano versus selvagem) Paacuteris eacute assemelhado agrave cabra e ao veado
Ambos satildeo animais que possuem relaccedilatildeo com o deus Dioniso (SUTER 1984 p 111) Aleacutem
disso satildeo a caccedila do leatildeo Este sobrepuja em forccedila o veado e a cabra bem como estaacute no topo
da cadeia alimentar desse ambiente selvagem O siacutemile no Canto XIII (vv489-495) tambeacutem eacute
revelador o exeacutercito troiano eacute composto de carneiros animal que serve de caccedila
Outro siacutemile relacionado ao nosso heroacutei nessa passagem eacute o do pastor que teme a
serpente Este eacute peculiarmente interessante a serpente eacute o siacutembolo de Zeus que sob o epiacuteteto
Xeacutenios garante o cumprimento das regras da hospitalidade (xeacutenia) Levando em consideraccedilatildeo
que Paacuteris desrespeitou a xeacutenia ao retirar Helena de Menelau durante sua estadia em Esparta
haacute bastante razatildeo para ele temer a ldquoserpenterdquo a ira de Zeus recai sobre Paacuteris mesmo que no
momento Zeus esteja do lado dos troianos A transgressatildeo do nosso heroacutei se sobressai
Quando Paacuteris entra em batalha ele estaacute vestindo uma pele de leopardo comum nas
representaccedilotildees dos arqueiros citas na imageacutetica (LISSARAGUE 2002 p 104 e 105)
Segundo Aristoacuteteles esse animal eacute comum na Aacutesia Menor (lugar onde fica Troia) sendo um
animal muito selvagem (ARISTOacuteTELES Histoacuteria dos Animais VIII 27 9) O leopardo eacute
um animal associado a Dioniso e estaacute presente frequentemente em suas representaccedilotildees
(COHEN 2012 p 462) A associaccedilatildeo de Paacuteris com esse deus eacute trabalhada por Ann Suter em
sua tese visto que ela mostra como a poesia iacircmbica39 (uma blame poetry ldquopoesia
acusatoacuteriardquo) estaacute ligada agrave construccedilatildeo da representaccedilatildeo de Paacuteris por Homero A Iliacuteada natildeo eacute o
iniacutecio de um processo discursivo mas parte dele outros gecircneros poeacuteticos que tramitavam pela
sociedade influenciaram na composiccedilatildeo da eacutepica homeacuterica Ann Suter ressalta que nos versos
39 A partiacutecula ldquo-amb-rdquo (-αmicroβ-) estaacute ligada aos cultos dionisiacuteacos e ldquodesigna canccedilotildees e danccedilas em sua honrardquo (SUTER 1984 p 105) como o dithyacuterambos o thriacuteambos e o iacutethymbos
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em que Priacuteamo insulta seus filhos ldquoo vocabulaacuterio necessaacuterio para elogio e acusaccedilatildeo eacute usado
aqui νεικέω [injuriar] e αἰνέω [elogiar]rdquo (SUTER 1984 p 96) Esses verbos aparecem no
aoristo (neiacutekesse ḗnēsrsquo) Paacuteris causa neiacutekos pelo seu ainoacutes a Afrodite Desse modo tanto a
ideia de que os troianos fazem parte de uma cultura de elogio (praise culture) quanto a de
que Paacuteris eacute um personagem acusaacutevel (blame figure) podem ser corroboradas a partir dessa
utilizaccedilatildeo de ambos vocabulaacuterios pelo poeta
Outro siacutemile nos chama atenccedilatildeo quando Paacuteris volta ao campo de batalha
οὐδὲ Πάρις δήθυνεν ἐν ὑψηλοῖσι δόmicroοισιν ἀλλ᾽ ὅ γ᾽ ἐπεὶ κατέδυ κλυτὰ τεύχεα ποικίλα χαλκῷ σεύατ᾽ ἔπειτ᾽ ἀνὰ ἄστυ ποσὶ κραιπνοῖσι πεποιθώς ὡς δ᾽ ὅτε τις στατὸς ἵππος ἀκοστήσας ἐπὶ φάτνῃ δεσmicroὸν ἀπορρήξας θείῃ πεδίοιο κροαίνων εἰωθὼς λούεσθαι ἐϋρρεῖος ποταmicroοῖο κυδιόων ὑψοῦ δὲ κάρη ἔχει ἀmicroφὶ δὲ χαῖται ὤmicroοις ἀΐσσονται ὃ δ᾽ ἀγλαΐηφι πεποιθὼς ῥίmicroφά ἑ γοῦνα φέρει microετά τ ἤθεα καὶ νοmicroὸν ἵππων ὣς υἱὸς Πριάmicroοιο Πάρις κατὰ Περγάmicroου ἄκρης40 τεύχεσι παmicroφαίνων ὥς τ᾽ ἠλέκτωρ ἐβεβήκει καγχαλόων ταχέες δὲ πόδες φέρον αἶψα δ᾽ ἔπειτα Ἕκτορα δῖον ἔτετmicroεν ἀδελφεὸν εὖτ᾽ ἄρ᾽ ἔmicroελλε στρέψεσθ᾽ ἐκ χώρης ὅθι ᾗ ὀάριζε γυναικί
Paacuteris tambeacutem natildeo ficou muito tempo na estacircncia elevada mas tendo as armas de bronze vestido de fino trabalho corta apressado a cidade nos raacutepidos peacutes confiado Como galopa um cavalo habituado no estaacutebulo quando pode do laccedilo escapar e fogoso a planiacutecie atravessa para ir banhar-se impaciente na bela corrente do rio cheio de orgulho soleva a cabeccedila por sobre as espaacuteduas bate-lhe a crina agitada consciente da proacutepria beleza levam-no os peacutes para o prado onde os outros cavalos se reuacutenem Paacuteris o filho de Priacuteamo assim desde do alto da Acroacutepole da sacra Peacutergamo envolto em couraccedila que a vista ofuscava Vem exultante seus raacutepidos peacutes o conduzem em pouco tempo aonde Heitor se encontrava o divino guerreiro que tinha precisamente deixado o local em que agrave esposa falara (VI vv 503-517)
Paacuteris eacute mostrado como um cavalo dentre cavalos assim ele se encaminha para a
batalha O cavalo eacute um siacutembolo de destaque social (eacute um animal muito caro difiacutecil de se
manter demanda bastante recursos) e de auxiacutelio (ele desloca o guerreiro na guerra bem como
serve agrave competiccedilatildeo esportiva ndash SCHNAPP-GOURBEILLON 1981 p 169) Aleacutem disso eacute
um animal que representa o troiano como eacute frequentemente perceptiacutevel em Homero
Euriacutepides tambeacutem destaca essa caracteriacutestica deles denominando-os phiacutelippoi (literalmente
40 O termo ldquoacroacutepolerdquo (akroacutepolis) natildeo aparece no original trata-se do alto mesmo de Troia Contudo a raiz dos dois termos eacute a mesma
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ldquoamigos dos cavalosrdquo Alexandre fr 62f) Esse siacutemile aparece justamente quando Paacuteris
retorna para o campo de batalha ele estaacute disposto a auxiliar seus iacutesoi O cavalo tambeacutem eacute um
animal que oscila entre o mundo dos homens e dos deuses (SCHNAPP-GOURBEILLON
1981 p 162) corroborando o caraacuteter theoeidḗs de Paacuteris e a ideia defendida por Ann Suter de
que Paacuteris eacute um nome que tem relaccedilatildeo com o divino Homero o usa nesses versos ao se referir
a ele antes de comparaacute-lo a um cavalo
Alguns personagens (como Astyacuteanax que tambeacutem eacute chamado de Skamaacutendrios) teriam
nomes duplos um para ser usado costumeiramente e outro em casos especiais dentro de
grupos especiais este uacuteltimo relacionando-se agrave esfera do divino Ann Suter utiliza-se do
pensamento de R Lazzaroni que mostra que existe na epopeia uma ldquolinguagem dos deusesrdquo
e uma ldquolinguagem dos homensrdquo (SUTER 1984 p 28) O nome Paacuteris que eacute menos comum
na Iliacuteada do que Aleacutexandros eacute utilizado apenas pela famiacutelia e ldquoem contextos em que o poeta
deseja enfatizar sua divindade nesse caso como uma fonte de inspiraccedilatildeo para um guerreiro
em combaterdquo (SUTER 1984 p 31) Paacuteris tambeacutem teria conexatildeo com a ilha de Paros um dos
lugares de culto a Dioniso
Quando Heitor jaacute estaacute morrendo diz a Aquiles que ldquoO coraccedilatildeo tens de ferro
impossiacutevel me fora dobraacute-lo Que isso poreacutem contra ti natildeo provoque a vinganccedila dos deuses
quando tiveres de a vida perder muito embora esforccedilado das Portas Ceacuteias em frente aos
ataques de Paacuteris e Apolordquo [ἦ γὰρ σοί γε σιδήρεος ἐν φρεσὶ θυmicroός φράζεο νῦν microή τοί τι
θεῶν microήνιmicroα41 γένωmicroαι ἤmicroατι τῷ ὅτε κέν σε Πάρις καὶ Φοῖβος Ἀπόλλων ἐσθλὸν
ἐόντ᾽ ὀλέσωσιν ἐνὶ Σκαιῇσι πύλῃσιν] (XXII vv 357-360) Aqui novamente Paacuteris eacute usado
num sentido divino pois remete agrave sua ligaccedilatildeo com o deus Apolo arqueiro como ele e que
lhe auxilia a atingir sua gloacuteria maacutexima ao matar o melhor dos aqueus Aquiles
Em Alexandre (fr 42d) Euriacutepides coloca que ldquoQuando ele (Paacuteris) se tornou um
homem jovem e excedeu muitos em beleza e forccedila a ele foi dado um segundo nome
Alexandre porque ele espantou bandidos e protegeu o rebanhordquo [γενόmicroενος δὲ νεανίσκος
καὶ πολλῶν διαφέρων κάλλει τε καὶ ῥώmicroῃ αὖθις Ἀλέχανδρος προσωνοmicroάσθη λῃστὰς
ἀmicroυνόmicroενος καὶ τοῖς ποιmicroνίοις ἀλεξήσας] Assim aqui ldquoAleacutexandrosrdquo eacute um distintivo um
41 Mecircnin (de mecircnis) eacute a primeira palavra da Iliacuteada significa ldquoirardquo O ultraje feito agrave timḗ de Aquiles por Agamemnon (a partir do momento que este lhe toma um geacuteras privileacutegio que lhe foi destinado Briseida) gera nele uma mecircnis a qual causa pecircma a todos ao longo da guerra A Iliacuteada eacute a histoacuteria da ira de Aquiles e suas consequecircncias como pontuou Jaqueline de Romilly (ROMILLY sd p 18) A palavra mecircnis ao longo do poema eacute utilizada para designar o que tem a ver com essa ira de Aquiles segundo Gregory Nagy (NAGY 1999 p 73 e 74) e isso nesta passagem se verifica
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segundo nome dado a uma pessoa que se destaca das outras Em As Troianas Helena usa
Paacuteris e Alexandre sem distinccedilatildeo
πρῶτον microὲν ἀρχὰς ἔτεκεν ἥδε τῶν κακῶν Πάριν τεκοῦσα δεύτερον δ᾽ ἀπώλεσε Τροίαν τε κἄmicro᾽ ὁ πρέσβυς οὐ κτανὼν βρέφος δαλοῦ πικρὸν microίmicroηmicro᾽ Ἀλέξανδρόν ποτε ἐνθένδε τἀπίλοιπ᾽ ἄκουσον ὡς ἔχει ἔκρινε τρισσὸν ζεῦγος ὅδε τριῶν θεῶν καὶ Παλλάδος microὲν ἦν Ἀλεξάνδρῳ δόσις Φρυξὶ στρατηγοῦνθ᾽ Ἑλλάδ᾽ ἐξανιστάναι Ἥρα δ᾽ ὑπέσχετ᾽ Ἀσιάδ᾽ Εὐρώπης θ᾽ ὅρους τυραννίδ᾽ ἕξειν εἴ σφε κρίνειεν Πάρις Κύπρις δὲ τοὐmicroὸν εἶδος ἐκπαγλουmicroένη δώσειν ὑπέσχετ᾽ εἰ θεὰς ὑπερδράmicroοι κάλλει [] ἦλθ᾽ οὐχὶ microικρὰν θεὸν ἔχων αὑτοῦ microέτα ὁ τῆσδ᾽ ἀλάστωρ εἴτ᾽ Ἀλέξανδρον θέλεις ὀνόmicroατι προσφωνεῖν νιν εἴτε καὶ Πάριν ὅν ὦ κάκιστε σοῖσιν ἐν δόmicroοις λιπὼν Σπάρτης ἀπῆρας νηὶ Κρησίαν χθόνα Primeiro essa aiacute gerou as origens dos males Paacuteris tendo gerado depois o velho destruiu Troacuteia e a mim ao natildeo matar o bebecirc acre imitaccedilatildeo de um ticcedilatildeo ndash Alexandre entatildeo A partir daiacute o restante escuta como eacute Aquele julgou um triplo jugo de trecircs deusas bem o dom de Palas para Alexandre era despovoar a Heacutelade comandando friacutegios Hera jurou que sobre a Aacutesia e os limites da Europa Paacuteris se a escolhesse teria a soberania Ciacutepris com minha aparecircncia se estonteando prometeu daacute-la se ultrapassasse as deusas em beleza [] [Paacuteris] Veio trazendo uma deusa natildeo miuacuteda consigo O nume vingador42 dessa aiacute se queres Chamar-lhe de Alexandre ou se de Paacuteris Deixando-o em tua casa oacute maldito43 De navio partiste de Esparta rumo a Creta (As Troianas vv 919-931 940-943 ndash grifos nossos)
O helenista Michael Lloyd chama a atenccedilatildeo para esse uso indistinto de Paacuteris e
Alexandre em Euriacutepides (LLOYD 1989 p 77) mas ele tambeacutem crecirc que esse uso eacute indistinto
em Homero o que discordamos mostramos com a anaacutelise de Ann Suter que eacute possiacutevel que
Paacuteris seja um nome divino e Alexandre um nome comum Cremos que essa indiferenccedila se daacute
em Euriacutepides porque nosso heroacutei em suas obras natildeo representa tanto um exemplo a ser
seguido mas porque ele eacute um baacuterbaros Paacuteris perde o caraacuteter helecircnico e helenizante que ele 42 Alaacutestōr eacute um gecircnio mau (ldquomauvais geacutenierdquo BAILLY 2000 p 73) o que reforccedila a ideia de Paacuteris como um causador de males 43 Kaacutekiste (vocativo de kaacutekistos) seria ldquoo pior de todosrdquo Aqui a palavra kakoacutes (que indica tanto o feio quanto o mau) aparece com o sufixo ndashistos que indica superlativo
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apresenta na Iliacuteada sendo aqui a suacutemula da alteridade completa ele tanto eacute o estrangeiro
como aquela pessoa indesejada na cidade
Quando comeccedilamos nossa pesquisa de graduaccedilatildeo natildeo tiacutenhamos conhecimento de
nenhum autor que tratasse de Paacuteris especificamente Conforme fomos pesquisando referecircncias
bibliograacuteficas descobrimos uma pequena discussatildeo filoloacutegica sobre essa dupla denominaccedilatildeo
de Paacuteris a qual eacute interessante recuperarmos Aliaacutes sobre Paacuteris especificamente apenas a
filologia debruccedilou-se
John A Scott (1913) crecirc que Aleacutexandros eacute uma traduccedilatildeo para o grego de Paacuteris De
etimologia imprecisa este seria um nome estrangeiro jaacute aquele formado pela composiccedilatildeo do
verbo aleacutexō (proteger defender) e do substantivo androacutes (homem varatildeo) seria grego porque
ambas as palavras que o formam satildeo gregas Aleacutem disso esse autor crecirc que Paacuteris eacute o grande
heroacutei da tradiccedilatildeo miacutetica em detrimento de Heitor seu irmatildeo Ele defende que Homero criou
Heitor para encarnar todos os valores heroicos que pertenciam a Paacuteris personagem o qual por
motivos morais natildeo poderia ser representado de maneira tatildeo heroica O nome Heacutektōr jaacute
existia nas tabuinhas de Linear B (e-ko-to) escrita da eacutepoca dos palaacutecios (XVII-XI aC)
(CHADWICK 1970 p 98) mas natildeo sabemos se Homero o pega emprestado para nomear
seu personagem ou se Heitor mesmo jaacute era um parte da tradiccedilatildeo miacutetica sendo recuperado por
Homero
Samuel E Bassett (1920) natildeo concorda nem discorda de John Scott mas mostra que haacute
pesquisas as quais apontam que Aleacutexandros poderia ser derivado do nome Alaksandu um
priacutencipe de Wilǔsa regiatildeo que seria a proacutepria Troia incluindo assim os avanccedilos da
Arqueologia Hititologistas defendem que Troia natildeo eacute nada mais que a regiatildeo denominada
Trūiša44
Na contracorrente dessa hipoacutetese de Scott veio Ann Suter (1984) com sua tese de
doutorado ParisAlexandros a study in Homeric technique of characterization com a
qual noacutes concordamos em muitos pontos Ela afirma que Paacuteris eacute mais utilizado num contexto
iacutentimo (pela famiacutelia ou seja troianos) sim mas que Aleacutexandros tambeacutem eacute usado pela sua
famiacutelia sendo o nome mais recorrente para denomina-lo Ela atribui esse fato agrave ideia de que
Paacuteris seria um nome divino utilizando a ideia de R Lazzaroni sobre a linguagem dos homens
6 A partiacutecula -iša eacute um sufixo dividindo a palavra (Trū-iša) temos como raiz o elemento trū- Em grego Troia eacute Troiacuteē (Τροίη) e provavelmete deriva de um vocaacutebulo mais antigo Trṓē (Τρώη) Trṓ-ē Como os hititas natildeo conheciam o som de ldquoōrdquo (ω) o -ū- poderia fazer esse papel (KLOEKHORST 2013 p 46) Assim a Troiacutee de Homero era a Trūiša hitita assim como o Aleacutexandros de Homero era o Alaksandu hitita Para mais informaccedilotildees ver sessatildeo V ndash Hipoacuteteses
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e a linguagem dos deuses em Homero Assim como inuacutemeros outros personagens da tradiccedilatildeo
miacutetica e das obras homeacutericas o segundo nome (mais incomum) do nosso heroacutei seria aquele
que o eleva agrave condiccedilatildeo de um ser divinizado visto que estaacute em constante relaccedilatildeo com
Afrodite e com Helena (que na tradiccedilatildeo miacutetica transforma-se em uma divindade apoacutes a
morte)
A autora tambeacutem defende que Paacuteris natildeo eacute um nome desprovido de etimologia (o que
caracterizaria sua origem estrangeira) poderia ser derivado de Paros uma ilha grega que tem
estreita relaccedilatildeo com o culto a Dioniso e com os festivais que lhe homenageiam atraveacutes da
reacutecita de versos iacircmbicos A poesia derivada do iacircmbico eacute de caraacuteter ldquoculpabilizanterdquo (blame
poetry) na qual se culpa algueacutem por algo disforizando essa pessoa Arquiacuteloco expoente
desse tipo de poesia era ele mesmo conhecido como Arquiacuteloco de Paros
Aleacutem disso ao observar que Paacuteris tem menos epiacutetetos que Aleacutexandros e que o
desenvolvimento formulaico daquela denominaccedilatildeo eacute precaacuterio em detrimento desta (o que natildeo
deveria acontecer pois Paacuteris eacute um nome que melhor se encaixa no hexacircmetro dactiacutelico) ela
chega agrave conclusatildeo de que aquela denominaccedilatildeo eacute mais recente do que Aleacutexandros sendo
impossiacutevel esta denominaccedilatildeo ser uma traduccedilatildeo daquela
Irene J F de Jong (1987) vai de encontro agrave tese de Scott argumentando que Paacuteris eacute um
nome utilizado no contexto troiano e Aleacutexandros em um contexto grego para ressaltar o
caraacuteter ldquoestrangeirordquo (DE JONG 1987 p 127) do personagem Segundo de Jong ldquoO poeta da
Iliacuteada ao manter o nome lsquotroianorsquo lsquoPaacuterisrsquo pode ter intencionado introduzir um elemento
lsquorealistarsquo na representaccedilatildeo dos troianos como falantes de uma liacutengua estrangeirardquo (DE JONG
1987 p 127) Assim ela concorda com John Scott pois Aleacutexandros continua sendo uma
traduccedilatildeo de Paacuteris Contudo ela confessa em uma nota de rodapeacute natildeo ter lido a tese de Ann
Suter embora a conheccedila (1987 p 127 n 4)
Discordando de todos os autores acima elencados Michael Lloyd (1989) argumenta que
natildeo haacute uma utilizaccedilatildeo consciente de Homero de Paacuteris e Aleacutexandros afirmando que natildeo haacute
distinccedilatildeo no emprego desses dois nomes em Homero e estendendo a anaacutelise a Euriacutepides Na
trageacutedia Paacuteris eacute utilizado mais vezes ainda do que Alexandre e Helena mesmo em As
Troianas utiliza os dois nomes para se referir a ele (LLOYD 1989 p 78) Ele conclui
assim que ldquoA nacionalidade do falante natildeo tem nada que ver com qual nome eacute usadordquo
(LLOYD 1989 p 77)
Essa discussatildeo eacute importante porque conforme o que os autores defendem pode-se
estabelecer uma relaccedilatildeo entre a denominaccedilatildeo dupla e o caraacuteter diferenciado de Paacuteris na Iliacuteada
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como representante de uma alteridade Entretanto acreditamos que essa dupla denominaccedilatildeo
tem a ver mais com um problema intratextual do que com um problema de definiccedilatildeo eacutetnica
pois concordamos com a anaacutelise de Ann Suter A definiccedilatildeo do caraacuteter diacutespar de Paacuteris como
um representante da alteridade e como um personagem-siacutentese das fronteiras eacutetnicas que
separas aqueus e troianos estaacute mais ligada ao discurso do poeta imbricado de uma ideologia
acerca dele e de seu grupo eacutetnico do que a escolha de um nome Esta estaacute mais ligada agrave
percepccedilatildeo de Paacuteris como um representante da aristocracia heroica
No seacuteculo V aC natildeo haacute duacutevidas de que os troianos pertencem a uma cultura Outra
de que eles satildeo baacuterbaroi Contudo natildeo podemos afirmar o mesmo para Homero Como
vimos muitos autores colocam os troianos como o Outro estrangeiro jaacute nas epopeias Eles
satildeo um Outro mas ainda natildeo deixam de partilhar um coacutedigo de conduta mesmo que com
suas reapropriaccedilotildees grego Satildeo essas reaprorpiaccedilotildees que configuram os troianos num grupo
eacutetnico distinto dos aqueus A ideia de que os troianos satildeo estrangeiros surge a posteriori
quando satildeo ldquofrigianizadosrdquo (HALL 1989 p 39) Um exemplo claro dessa ldquofrigianizaccedilatildeordquo
estaacute no diaacutelogo entre Orestes e o friacutegio em Orestes (vv 1506-1519 ndash grifos nossos)
ΟΡΕΣΤΗΣ ποῦ στιν οὗτος ὃς πέφευγεν ἐκ δόmicroων τοὐmicroὸν ξίφος ΦΡΥΞ προσκυνῶ σ᾽ ἄναξ νόmicroοισι βαρβάροισι προσπίτνων ΟΡΕΣΤΗΣ οὐκ ἐν Ἰλίῳ τάδ᾽ ἐστίν ἀλλ᾽ ἐν Ἀργείᾳ χθονί ΦΡΥΞ πανταχοῦ ζῆν ἡδὺ microᾶλλον ἢ θανεῖν τοῖς σώφροσιν ΟΡΕΣΤΗΣ οὔτι που κραυγὴν ἔθηκας Μενέλεῳ βοηδροmicroεῖν ΦΡΥΞ σοὶ microὲν οὖν ἔγωγ᾽ ἀmicroύνειν ἀξιώτερος γὰρ εἶ ΟΡΕΣΤΗΣ ἐνδίκως ἡ Τυνδάρειος ἆρα παῖς διώλετο ΦΡΥΞ ἐνδικώτατ᾽ εἴ γε λαιmicroοὺς εἶχε τριπτύχους θανεῖν ΟΡΕΣΤΗΣ δειλίᾳ γλώσσῃ χαρίζῃ τἄνδον οὐχ οὕτω φρονῶν ΦΡΥΞ οὐ γάρ ἥτις Ἑλλάδ᾽ αὐτοῖς Φρυξὶ διελυmicroήνατο ΟΡΕΣΤΗΣ ὄmicroοσον mdash εἰ δὲ microή κτενῶ σε mdash microὴ λέγειν ἐmicroὴν χάριν
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ΦΡΥΞ τὴν ἐmicroὴν ψυχὴν κατώmicroοσ᾽ ἣν ἂν εὐορκοῖmicro᾽ ἐγώ ΟΡΕΣΤΗΣ ὧδε κἀν Τροίᾳ σίδηρος πᾶσι Φρυξὶν ἦν φόβος ΦΡΥΞ ἄπεχε φάσγανον πέλας γὰρ δεινὸν ἀνταυγεῖ φόνον ORESTES Onde estaacute aquele que fugiu do palaacutecio agrave minha espada FRIacuteGIO (prosternando-se diante de Orestes) Eu te sauacutedo senhor prostrando-me segundo os modos baacuterbaros ORESTES Aqui natildeo estamos em Iacutelion mas em terra argiva FRIacuteGIO Em toda parte eacute mais doce viver do que morrer para os homens sensatos ORESTES Natildeo gritaste por acaso para que socorressem Menelau FRIacuteGIO Eu Pelo contraacuterio para que defendessem a ti Eacute que tu mereces mais ORESTES Foi entatildeo com justiccedila que a filha de Tindaacutereo morreu FRIacuteGIO Com toda a justiccedila Tivesse ela ao menos trecircs gargantas para morrer
ORESTES Por covardia procuras agradar com a liacutengua mas natildeo pensas assim no teu iacutentimo FRIacuteGIO Pois natildeo foi essa mulher a que arruinou a Heacutelade e com a Heacutelade os proacuteprios friacutegios ORESTES Jura ndash se natildeo mato-te ndash que natildeo falas para me agradar FRIacuteGIO Pela minha vida juro que eacute coisa por que farei jura sincera ORESTES Tambeacutem em Troia tinham assim medo do ferro os friacutegios todos FRIacuteGIO Afasta o glaacutedio Porque estando perto reflete uma morte terriacutevel
Aqui o friacutegio demostra ser um completo covarde prosterna-se grita Ele se mostra
extremamente temeroso pela sua vida e o seu discurso tenta dissuadir Orestes de assassinaacute-lo
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parece com o que se sucede no episoacutedio de Glauco e Diomedes no qual o embate fatal eacute
adiado E assim como Glauco o troiano de Orestes consegue que o priacutencipe o deixe vivo A
covardia a prosternaccedilatildeo e o grito satildeo traccedilos comuns de diferenciaccedilatildeo eacutetnica nas trageacutedias e
aqui aparece mais um elemento que jaacute se encontra na Iliacuteada a dissuasatildeo pela fala
Paacuteris aleacutem de ser um troiano eacute o causador da Guerra de Troia que fez perecer toda
uma linhagem de heroacuteis Em uma eacutepoca de guerra ele eacute a metaacutefora preferida tanto para os
espartanos (os inimigos na guerra) quanto para os atenienses perniciosos Nas trageacutedias de
Euriacutepides mesmo os espartanos satildeo representados de maneira pouco louvaacutevel a fronteira
entre o que eacute grego e o que natildeo eacute tambeacutem se encontra em crise e os espartanos (gregos) satildeo
comparados a baacuterbaros em suas trageacutedias O referencial de comparaccedilatildeo muitas vezes eacute o
troiano como acontece em Orestes Tiacutendaro pai de Helena ao reprimir Menelau por ouvir
Orestes matricida fala ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres estado muito tempo entre os baacuterbaros
[os troianos]rdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (EURIacutePIDES Orestes v 485)
Em Euriacutepides as questotildees acerca da alteridade entre aqueus e troianos e da etnicidade
do povo grego ficam mais claras em detrimento da Iliacuteada esse tragedioacutegrafo jaacute denomina os
troianos de baacuterbaroi termo que inexiste em Homero como vimos Euriacutepides encena suas
peccedilas no seacuteculo V aC num contexto no qual a poacutelis dos atenienses se encontra consolidada
mas jaacute entrava em crise em virtude da Guerra do Peloponeso Segundo Karl Reinhardt o
teatro euridipiano eacute exatamente o termocircmetro da crise A geraccedilatildeo jovem se coloca contra a
antiga mas ambas tecircm a chance de falar quase simultaneamente atraveacutes de seus poetas ndash
Euriacutepides e Soacutefocles ndash pois eles vivem num mesmo contexto (REINHARDT 2011 p 20)
O interessante eacute perceber que algumas caracteriacutesticas troianas vatildeo se perpetuar na
configuraccedilatildeo dos personagens sendo utilizadas para designar os baacuterbaros em geral o Outro
homogecircneo grego sobretudo os persas outro por excelecircncia O desrespeito agrave hospitalidade
comum ao Ciclope da Odisseia e a Paacuteris na Iliacuteada retornaraacute na trageacutedia como sinal de
barbaacuterie Quando Menelau chega ao Egito diz ldquoNenhum homem tem um coraccedilatildeo tatildeo
incivilizado a ponto de natildeo me dar comida ao ouvir meu nomerdquo [ἀνὴρ γὰρ οὐδεὶς ὧδε
βάρβαρος φρένας ὃς ὄνοmicro᾽ ἀκούσας τοὐmicroὸν οὐ δώσει βοράν] (EURIacutePIDES Helena vv
501-502) Seraacute comum por exemplo atribuir aos persas o domiacutenio do arco e contrastaacute-lo com
o modo grego de fazer guerra o tradicional face a face (HALL 1989 p 85) Eacute sobre esse
aspecto o modo de fazer guerra que nos debruccedilaremos em nosso proacuteximo capiacutetulo
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CAPIacuteTULO 3 | PAacuteRIS O HEROacuteI
ldquoEu estarei com vocecirc
Todas as vezes que contar a minha histoacuteria Por ser tudo o que eu fizrdquo
(Remember Me ndash James Horner)
Vamos analisar nesse capiacutetulo como Paacuteris eacute representado como heroacutei e guerreiro e
como essa representaccedilatildeo se liga agrave nossa comparaacutevel Defendemos que Paacuteris eacute um exemplo de
como se agir na Iliacuteada visto que essa eacute a caracteriacutestica primordial do heroacutei homeacuterico e em
Euriacutepides o seu estatuto heroico eacute afetado pois ele eacute visto mais um ldquopastorrdquo (boukoacutelos v
Ifigecircnia em Aacuteulis v 574) ldquoescravordquo (douacutelos v Alexandre fr 48) ldquomuacutesicordquo (Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 576-577) e principalmente ldquobaacuterbarordquo designaccedilotildees comuns a ele na poesia traacutegica
que destoam da construccedilatildeo da personalidade heroica ideal Isso natildeo significa contudo que a
caracterizaccedilatildeo feita por Homero natildeo influencie na construccedilatildeo de Paacuteris em Euriacutepides visto que
defendemos que jaacute em Homero existe uma alteridade entre aqueus e troianos
Se o filme Troia (dir Wolfgang Petersen EUA 2004) natildeo ganhou muita
popularidade pelo excesso de liberdade poeacutetica em relaccedilatildeo agrave histoacuteria da Iliacuteada essa epiacutegrafe
da muacutesica-tema do filme Remember Me escrita por James Horner e interpretada por Josh
Groban e Tanja Tzarovska pelo contraacuterio traz algo intriacutenseco agrave caracterizaccedilatildeo do heroacutei ele eacute
tudo o que ele faz em batalha Satildeo as faccedilanhas heroicas que datildeo dinamicidade agrave epopeia que
satildeo de fato o material sobre o qual elas se debruccedilam Na trageacutedia essas faccedilanhas e os dramas
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dos heroacuteis miacuteticos satildeo o material cataacutertico o qual o tragedioacutegrafo utiliza para compor suas
tramas Os atos dos heroacuteis satildeo exemplares para aqueles que os ouvem natildeo os heroacuteis per se
Essa ideia jaacute se encontra na Iliacuteada e para tratarmos de Paacuteris essa noccedilatildeo nos eacute
fundamental pois ele eacute um heroacutei agrave medida que demonstra atraveacutes dos seus atos como um
homem deve agir O locus privilegiado de atuaccedilatildeo de um heroacutei nesse poema eacute a batalha o
tema mesmo da Iliacuteada eacute a Guerra de Troia em si com os heroacuteis aqueus e troianos se
enfrentando fisicamente Esse cenaacuterio beacutelico encontramos somente na Iliacuteada pois em
Euriacutepides natildeo existe a possibilidade de analisarmos o comportamento de Paacuteris como um
combatente ele natildeo eacute mostrado como um nas suas trageacutedias Aliaacutes todas as trageacutedias do ciclo
troiano que analisamos natildeo se desenrolam na guerra Alexandre se passa antes da guerra
enquanto todas as outras se passam depois
Isso denota uma preferecircncia de Euriacutepides por mostrar um ambiente poacutes-beacutelico ele
trabalha com as consequecircncias de uma guerra para um povo Assim satildeo comuns temaacuteticas
que dizem respeito ao dilaceramento do nuacutecleo familiar da escravizaccedilatildeo daquele que era
livre privilegiando agraves vezes certos tipos de personagens que agrave primeira vista natildeo mereceriam
um destaque em uma obra traacutegica como por exemplo as escravas troianas Eacute por esse motivo
que muitos autores afirmam que Euriacutepides daacute voz a esses personagens ldquomarginaisrdquo (SAIumlD
2002 p 62) pois a degradaccedilatildeo que separa os extremos sociais (gregobaacuterbaro livreescravo)
eacute bem mais temiacutevel em uma sociedade em guerra a esposa do cidadatildeo pode virar a concubina
do inimigo Eacute soacute Atenas perder a guerra
A definiccedilatildeo do caraacuteter heroico muda ao longo dos seacuteculos sendo o heroacutei traacutegico
semelhante mas natildeo igual ao homeacuterico Gyumlorgy Lukaacutecs filoacutesofo alematildeo crecirc que o heroacutei
traacutegico traz um ldquobrilho renovadordquo sobre o homeacuterico explicando-o e transfigurando-o
(LUKAacuteCS 2000 p 33) Jacqueline de Romilly mostra como o sofrimento eacute intriacutenseco ao
heroacutei traacutegico ldquoPara ser traacutegico o heroacutei deve sofrer [] no espiacuterito mesmo do gecircnero traacutegico
a necessidade de pintar heroacuteis imperfeitos e atormentados em uma palavra de toma-los ndash
eles as exceccedilotildees ndash como paradigma da condiccedilatildeo humana e de seus malesrdquo (2013 p 210)
Na trageacutedia a noccedilatildeo de hamartiacutea (falha) se torna mais latente e o heroacutei eacute justamente
aquele a quem seus erros implicam em uma trama por exemplo Paacuteris em Alexandre eacute o
camponecircs eacute o habitante do ambiente selvagem (a montanha ndash PELOSO 2002 p 37) que
penetra na cidade reivindicando um reconhecimento o qual a priori natildeo lhe seria adequado
(os precircmios oriundos da vitoacuteria nos jogos troianos) Graccedilas aos erros de Clitemnestra e
Orestes os Aacutetridas sofrem uma desestruturaccedilatildeo familiar que vai se desenrolar em Orestes
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O heroacutei homeacuterico tambeacutem eacute falho mas essa falha estaacute ligada agrave aacutetē (perdiccedilatildeo) se
ocasiona uma situaccedilatildeo de desequiliacutebrio e o heroacutei tem que fazer por onde revertecirc-la Paacuteris e
Aquiles se assemelham nesse ponto ambos incorrem em aacutetē A causa da perdiccedilatildeo de Paacuteris eacute o
desrespeito da eacutetica hospitaleira retirando Helena do palaacutecio de seu esposo e a consequecircncia
direta eacute a proacutepria Guerra de Troia Jaacute a causa da perdiccedilatildeo de Aquiles eacute a recusa da suacuteplica
Agamecircmnon reconhece seu estado de aacutetē causado pela privaccedilatildeo do geacuteras (privileacutegio) de
Aquiles (a escrava troiana Briseida) e suplica a Aquiles seu retorno agrave guerra atraveacutes de uma
litḗ (suacuteplica) mas este a ignora Impedir que a aacutetē de outrem seja eliminada com a recusa de
uma suacuteplica acaba gerando um estado de aacutetē no proacuteprio Aquiles
O historiador Christopher Jones mostra como o termo hḗrōs (heroacutei) muda de acepccedilatildeo
ao longo tempo primeiramente essa palavra foi utilizada para denominar aqueles seres
puacuteblicos extraordinaacuterios executores de faccedilanhas mais extraordinaacuterias ainda os quais se
configuravam nos personagens principais das histoacuterias contadas pelas epopeias Com o passar
dos seacuteculos essa designaccedilatildeo foi ganhando uma nova roupagem e se infiltrando cada vez mais
nos interstiacutecios da sociedade e da vida privada Segundo Jones isso natildeo eacute uma decadecircncia
tampouco uma ressignificaccedilatildeo do termo visto que ele continua a ser usado para denominar
aqueles que tecircm poder no poacutes-morte mesmo numa acepccedilatildeo cristatilde O que acontece eacute a difusatildeo
e a continuidade da utilizaccedilatildeo de hḗrōs possibilitada pelo processo de expansatildeo da cultura
helecircnica o qual culmina no helenismo (c IV-I aC)
O termo passa a designar natildeo somente os heroacuteis da mitologia mas tambeacutem as pessoas
que se destacam na vida puacuteblica sobretudo ldquoaqueles que caiacuteram na guerra ou deram suas
vidas a serviccedilo de suas comunidades de outras maneirasrdquo (JONES 2010 p 1) Para Jones os
heroacuteis homeacutericos satildeo todos aqueles que lutaram em Troia seja grego ou troiano e tecircm mais a
ver com uma acepccedilatildeo ligada a senhor (lord) do que a guerreiro (warrior) No entanto como
vimos eacute na guerra que esse senhor pode demonstrar seu valor um senhor eacute necessariamente
um guerreiro no mundo homeacuterico Jones entretanto mostra uma resistecircncia da Atenas
Claacutessica em designar um morto comum de hḗrōs o que significa que eles mantecircm um certo
tradicionalismo em considerar apenas os heroacuteis mitoloacutegicos como hḗrōes (JONES 2010 p 3
4 e 21)
Em nossa pesquisa esbarramos sempre com a ideia de que Paacuteris na verdade seria um
anti-heroacutei pois ele apresenta uma seacuterie de atitudes que o caracterizariam como sendo uma
pessoa covarde medrosa etc Em primeiro lugar eacute necessaacuterio termos em mente que os heroacuteis
natildeo satildeo uma massa indistinta eles constituem um grupo social fechado com um coacutedigo de
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conduta modelar mas natildeo podemos nos esquecer de que uma sociedade eacute composta de
indiviacuteduos cada um com sua personalidade especiacutefica O eu natildeo se anula por causa do noacutes
ele se agrega ao noacutes contribuindo com sua singularidade ao todo
Vaacuterios autores se debruccedilaram de algum modo sobre os heroacuteis da Antiguidade de
maneira mais ou menos ampla tentando defini-los Joseph Campbell Robert Aubreton
Cedric Whitman Karl Kereacutenyi Gregory Nagy Seth L Schein Mariacutea Cecilia Colombani
Anastasia Serghidou David J Lunt e Christopher Jones Agrave exceccedilatildeo de Campbell Kereacutenyi
Serghidou e Lunt geralmente eles datildeo destaque aos heroacuteis homeacutericos Eacute interessante perceber
que natildeo haacute divergecircncia de opiniotildees mas complementaridade
Joseph Campbell foi pioneiro no tratamento dos heroacuteis seu estudo eacute de fins da deacutecada
de 1940 Muito influenciado pela Psicanaacutelise procura delinear o perfil do heroacutei em geral em
O heroacutei de mil faces Ele cria uma tipologia atraveacutes de um estudo comparado de vaacuterias
mitologias que abrange todos os heroacuteis de todas as eacutepocas e tradiccedilotildees epopeicas afirma que
esse personagem passa obrigatoriamente por doze estaacutegios em sua vida ela eacute permeada por
ritos de passagem Campbell natildeo fala de um heroacutei especiacutefico ou de uma determinada tradiccedilatildeo
heroica ele conceitua o heroacutei o vecirc como um homem que morreu como um ldquohomem
modernordquo mas que como um ldquohomem eternordquo ou seja ldquoaperfeiccediloado natildeo especiacutefico e
universalrdquo renasce para ldquoretornar ao nosso meio transfigurado e ensinar a liccedilatildeo de vida
renovada que aprendeurdquo (CAMPBELL 2007 p 28) Desse modo ele corrobora o valor
educacional que um heroacutei possui para aqueles que o rememoram aleacutem de pontuar o seu
caraacuteter mortal
Na deacutecada de 1950 Robert Aubreton escreveu um livro introdutoacuterio sobre Homero que
aborda de maneira diferente os heroacuteis Esse autor crecirc que haja uma psicologia em Homero
afirmando que a representaccedilatildeo deles eacute tatildeo humana que ldquoacabamos por consideraacute-lo natildeo mais
como heroacutei sobre-humano mas como homem igual a noacutes que por sua virtude e piedade
chega a se superarrdquo (AUBRETON 1968 p 188) Essa ldquopsicologia homeacutericardquo consiste
sobretudo na consideraccedilatildeo do heroacutei natildeo apenas em seu caraacuteter coletivo mas em sua
individualidade em sua especificidade Desse modo Aubreton divide esse capiacutetulo o qual ele
dedica aos heroacuteis de acordo com sua anaacutelise de cada um daqueles que ele crecirc serem
importantes nas epopeias Aquiles Paacutetroclo Agamecircmnon Heitor Paacuteris Menelau
Androcircmaca Helena Odisseu Peneacutelope Telecircmaco Nausiacutecaa e Eumeu Observemos que ele
inclui as mulheres (ldquoheroiacutenasrdquo segundo o autor) e o porqueiro Eumeu nessa seleccedilatildeo
80
aumentando a gama de possibilidades de definiccedilatildeo do heroacutei ele eacute um(a) personagem miacutetico
corroborando a ideia de Christopher Jones acerca do que eacute o hḗrōs na eacutepica
Enquanto Aubreton publicava seu livro Cedric Whitman escrevia seu Homer and the
heroic tradition lanccedilado em 1958 e bem recebido quase todos os autores que trabalham com
heroacuteis mencionam seu trabalho em seus proacuteprios Ele tenta compreender a Iliacuteada agrave luz das
noccedilotildees que regem aquela sociedade representada por Homero (e a relaccedilatildeo existente entre os
heroacuteis e essa sociedade) Para esse autor a Iliacuteada jaacute apresenta um discurso bem proacuteximo do
traacutegico no qual a humanidade dos heroacuteis eacute representada de modo mais acentuado e a
demonstraccedilatildeo de sentimentos (como raiva amor compadecimento) eacute comum Whitman
tambeacutem trabalha com a noccedilatildeo do heroacutei como modelo como aquele que passa todas essas
noccedilotildees aos ouvintes da epopeia construindo um estudo de caso de Aquiles
No mesmo ano Karl Kereacutenyi publicou o seu Os Heroacuteis Gregos o livro eacute o segundo
volume da seacuterie Mitologia Grega cujo primeiro volume trata dos deuses gregos A proposta
do livro eacute apresentar os heroacuteis gregos a leitores acadecircmicos ou natildeo debruccedilando-se natildeo
somente sobre os relatos escritos sobre eles mas tambeacutem a cultura material tratando tambeacutem
da questatildeo do culto ao heroacutei e de sua historicidade Para Kereacutenyi os heroacuteis se mostram
ldquoentrelaccedilados com a histoacuteria com os acontecimentos natildeo de um tempo primevo que estaacute fora
do tempo mas do tempo histoacuterico [] Eles surgem diante de noacutes como se tivessem de fato
existidordquo (KEREacuteNYI 1998 p 17) Ao escrever sobre a guerra de Troia mais uma vez
Aquiles eacute o grande destaque da anaacutelise assim como faz nosso proacuteximo autor
Gregory Nagy em seu livro The best of the Achaeans concepts of the hero in
Archaic Greek poetry (1979) trata dessa tradiccedilatildeo anterior agrave composiccedilatildeo dos eacutepicos
defendendo que sua unidade se daacute justamente por essa origem em comum deles Nagy procura
delinear um perfil de Aquiles o qual ele considera o principal heroacutei da Iliacuteada comparando-o
com outros heroacuteis (Heitor e Neoptoacutelemo) e resgata do eacutepico uma seacuterie de noccedilotildees (como
kleacuteos aacutekhos peacutenthos timḗ) imprescindiacuteveis tanto para a compreensatildeo da funccedilatildeo das epopeias
quanto dos cultos heroicos Ele defende que esse culto surgiu simultaneamente agrave composiccedilatildeo
dos eacutepicos e que os jogos ldquode coroardquo (Oliacutempicos Iacutestmicos Deacutelficos e Nemeios) satildeo oriundos
da praacutetica de jogos fuacutenebres possuindo pois uma estrita relaccedilatildeo com o proacuteprio culto ao heroacutei
Nas epopeias no entanto natildeo haacute a menccedilatildeo ao culto dos heroacuteis pelo fato de esse culto ser
estritamente local ele defende que jaacute existe uma conotaccedilatildeo pan-helecircnica nelas e colocar uma
praacutetica religiosa que destoe da religiatildeo oliacutempica comprometeria esse caraacuteter
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Seth L Schein em The mortal hero an introduction to Homerrsquos Iliad (1984)
aproxima-se muito da anaacutelise de Nagy com relaccedilatildeo ao culto heroico ele natildeo existe nas
epopeias de Homero porque iria de encontro a toda a pan-helenicidade dos poemas definida
pela representaccedilatildeo apenas do culto aos deuses olimpianos Ele natildeo faz um estudo de caso de
nenhum heroacutei tentando abordaacute-los de maneira a tentar defini-los dentro da Iliacuteada Schein se
aproxima de Whitman em sua abordagem ao definir o heroacutei sob a oacutetica acentuada do humano
comparando o discurso das epopeias ao discurso traacutegico ele enfatiza o fato da morte ser a
uacutenica certeza que se tem acerca do destino de um heroacutei A proacutepria etimologia da palavra
hḗrōs denotaria isso
Hērōs parece ser etimologicamente relacionado com a palavra hōrē ldquoestaccedilatildeordquo [] em Homero hōrē significa em particular a ldquoestaccedilatildeo da primaverardquo e um ldquoheroacuteirdquo eacute ldquosazonalrdquo quando ele chega ao seu esplendor como flores na primavera soacute para ser cortado uma vez e para sempre (SCHEIN 2010 p 69)
Mariacutea Cecilia Colombani dedica dois pequenos toacutepicos aos heroacuteis em seu livro
introdutoacuterio sobre Homero (2005) Eles tratam da loacutegica aristocraacutetica e da funccedilatildeo da
soberania Colombani aborda uma seacuterie de noccedilotildees caras agrave aristocracia guerreira e que
perpassam todo o coacutedigo de conduta dessa sociedade que Homero representa Ela faz das
palavras de Louis Gernet que na deacutecada de 1960 publicou seu Anthropologie de la Gregravece
Antique as suas ldquoOs heroacuteis formam uma espeacutecie aparte entre os deuses e os homens seus
representantes satildeo efetivamente homens mas homens que depois da morte adquiriram uma
condiccedilatildeo e estatuto sobre-humanosrdquo (GERNET apud COLOMBANI 2005 p 58) Esses
homens segundo Colombani satildeo representantes de valores sociais (COLOMBANI 2005 p
60) e satildeo rememorados pela sociedade poliacuteade como exemplos a serem seguidos
Anastasia Serghidou escreveu um artigo sobre o heroacutei traacutegico especificamente no livro
Heacuteros et heroiumlnes dans les mythes et les cultes grecs organizado por Vinciane Pirenne-
Delforge e Emilio Suaacuterez de la Torre Ela acredita que ele eacute ldquofundado sobre a ideia de uma
divinizaccedilatildeo impossiacutevelrdquo sendo a imagem do heroacutei na trageacutedia ldquosemelhante ao homem mortal
ao qual o modelo heroico se coloca como aquele do personagem livre e do bom cidadatildeordquo
(SERGHIDOU 2000 p 1) A autora trabalha com a imagem do heroacutei decaiacutedo (heacuteros deacutechu)
colocando em primeiro plano a anaacutelise da dicotomia livre versus escravos O heroacutei eacute o homem
livre construiacutedo em contraposiccedilatildeo ao escravo e estaacute mais perto dos humanos do que os heroacuteis
de outrora
82
David J Lunt em sua tese Athletes heroes and the quest for imortality in Ancient
Greece (2010) tambeacutem retorna agrave questatildeo do culto aos heroacuteis aproximando-se tambeacutem da
abordagem de Nagy embora natildeo o mencione em sua discussatildeo bibliograacutefica Seu destaque
estaacute em mostrar como o heroacutei homeacuterico serviu de exemplo para os homens da poacutelis sobretudo
para os atletas Para isso ele delineia com mais precisatildeo o que seria um heroacutei para os gregos e
os modos pelos quais eles foram rememorados comeccedilando pelos heroacuteis homeacutericos passando
por Teseu os Dioacutescuros (Castor e Poacutelux) e Heacuteracles ateacute chegar nos heroacuteis de ldquocarne e ossordquo
que foram rememorados nas competiccedilotildees atleacuteticas atraveacutes das reacutecitas em sua homenagem
No mesmo ano Christopher Jones lanccedila New heroes in Antiquity from Achilles to
Antinoos livro cujo objetivo como vimos eacute mostrar como o termo hḗrōs (heroacutei) foi utilizado
ao longo do tempo para denominar natildeo mais aqueles grandes heroacuteis do passado mas tambeacutem
pessoas comuns que se destacavam de algum modo na sociedade ressaltando como a difusatildeo
dessas histoacuterias miacuteticas foram imprescindiacuteveis para que essa definiccedilatildeo penetrasse nos
interstiacutecios das sociedades do periacuteodo claacutessico Assim sua anaacutelise perpassa desde o heroacutei
homeacuterico (miacutetico) ateacute o heroacutei ldquoheroicizadordquo no caso o romano Antiacutenoo que morreu em 130
dC
Em virtude dessa revisatildeo bibliograacutefica de tratamento do heroacutei podemos concluir que a)
a mortalidade do heroacutei eacute constantemente reforccedilada b) eles natildeo estatildeo ligados apenas a um
plano mortal mas a um divino tambeacutem seja por terem parentescos com deuses seja por
serem protegidos de um seja por serem cultuados como divindades apoacutes suas mortes c) o
heroacutei eacute exemplar pois eacute portador de um coacutedigo de conduta no qual as suas aretaiacute estatildeo
sempre postas agrave prova sobretudo na batalha e assim os mortais comuns querem chegar o
mais proacuteximo possiacutevel dessa gloacuteria heroica seja associando um heroacutei agrave sua famiacutelia seja sendo
vitorioso em suas atividades d) eles tecircm uma materialidade histoacuterica pois os gregos criam na
veracidade dos mitos em que eles acreditavam e) o heroacutei traacutegico eacute mais falho do que o
homeacuterico o qual sempre procura restabelecer sua posiccedilatildeo de destaque com suas accedilotildees
Nenhum desses autores que trabalham diretamente com os heroacuteis fazem um estudo
especiacutefico de comparaccedilatildeo entre os heroacuteis homeacutericos e traacutegicos ou sobre Paacuteris seja na poesia
eacutepica seja na poesia traacutegica Contudo essas obras aqui mencionadas seratildeo fulcrais para a
anaacutelise de Paacuteris pois ele pertence agrave categoria dos heroacuteis
Na Iliacuteada Paacuteris eacute o heroacutei da paixatildeo seus epiacutetetos natildeo satildeo beacutelicos como os de outros
personagens e ele natildeo eacute o melhor guerreiro troiano como veremos Tambeacutem natildeo eacute um
personagem belicoso Como lembra Aubreton ldquoHomero faz de Paacuteris o homem amoroso por
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excelecircncia e que natildeo pode resistir agrave paixatildeo que os deuses lhe inculcaramrdquo (AUBRETON
1968 p 202)
Enquanto o nosso heroacutei se arma para a guerra eacute designado por dicircos (divino
semelhante aos ceacuteus ndash ldquosky-likerdquo (SUTER 1984 p 59) epiacuteteto comum a outros personagens
como seu proacuteprio irmatildeo Tambeacutem aparece outro epiacuteteto recorrente de Paacuteris ldquomarido de
Helena cacheadardquo (Eleacutenēs poacutesis ēykoacutemoio) reforccedilando sua relaccedilatildeo com Helena Ann Suter
chama a atenccedilatildeo que essa construccedilatildeo formulaica aparece somente em relaccedilatildeo a Zeus e Hera
(1984 p 68) e que das cinco vezes que aparece quatro satildeo dentro do campo de batalha
(1984 p 70) Isso significa para a autora que ldquoa sua imagem como Ἑλένης πόσις ἠϋκόmicroοιο
eacute aquela de um guerreiro bem-sucedido e conselheiro [] Talvez Paacuteris natildeo se sinta em casa
no campo de batalha por natureza mas quando ele de fato luta eacute por causa de sua relaccedilatildeo
com Helenardquo (1984 p 70-1) Eacute o que Robert Aubreton afirma
Tendo conquistado a sua ldquodeusardquo [Helena] nada mais interessa a Paacuteris senatildeo conservaacute-la Para tanto satildeo-lhes necessaacuterias a vida e a salvaguarda de Troacuteia Ele soacute luta em caso extremo quando Troia corre perigo quando por conseguinte seu amor estaacute ameaccedilado Eacute hostil a qualquer compromisso que possa resultar em devolver a Menelau aquela que lhe arrebatou (AUBRETON 1956 p 169)
Essa relaccedilatildeo intriacutenseca de Paacuteris com a paixatildeo (seja pelos seus epiacutetetos seja pela
relaccedilatildeo protecional que Afrodite estabelece com ele) tem uma relaccedilatildeo latente com a sua
proacutepria atuaccedilatildeo na batalha como excelente heroacutei do amor ele deixa a desejar como heroacutei
beacutelico Amor e guerra natildeo combinam Paacuteris treme e muda de cor ao se defrontar com Menelau
(III v 35) ele fica ocirckhroacutes paacutelido
Ainda na Iliacuteada a makhlosyacutenē a luxuacuteria de Paacuteris aparece como a engrenagem-
princiacutepio dessa aacutetē cuja consequecircncia eacute a proacutepria guerra (visto que se remete agrave escolha de
Afrodite) (XXIV vv 25-30) Em Euriacutepides essa ideia de que o enlace amoroso entre Paacuteris e
Helena eacute o causador da guerra retorna (As Troianas vv 398-399 vv 780-781 Ifigecircnia em
Aacuteulis vv 467-468 Helena vv 25-30 vv 223-224 vv666-668) embora o tragedioacutegrafo
oscile dependendo da obra e de quem eacute o enunciador (se grego ou troiano) em atribuir a
Helena um papel ativo ou passivo em sua retirada do palaacutecio
No Canto VII da Iliacuteada (vv 354-365) os troianos se reuacutenem em assembleia Antenor
um conselheiro afirma que o que se deve fazer eacute devolver Helena e os tesouros aos gregos
Paacuteris no entanto descarta essa possibilidade natildeo se opondo no entanto a entregar os bens
materiais O problema eacute Helena ele jamais a devolveraacute Paacuteris natildeo faz questatildeo das riquezas as
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quais parece natildeo lhe faltam no Canto XI ele inclusive utiliza-se delas para ldquoincentivarrdquo
Antiacutemaco a fazer oposiccedilatildeo contra a devoluccedilatildeo da esposa ldquo[Teucro] Prostra a Pisandro
depois e o nas pugnas intreacutepido Hipoacuteloco filhos de Antiacutemaco o saacutebio que mais do que
todos fazia oposiccedilatildeo para Helena natildeo ser restituiacuteda ao marido ndash fruto de belos presentes por
parte de Paacuteris muito ourordquo [αὐτὰρ ὃ Πείσανδρόν τε καὶ Ἱππόλοχον microενεχάρmicroην υἱέας
Ἀντιmicroάχοιο δαΐφρονος ὅς ῥα microάλιστα χρυσὸν Ἀλεξάνδροιο δεδεγmicroένος ἀγλαὰ δῶρα
οὐκ εἴασχ᾽ Ἑλένην δόmicroεναι ξανθῷ Μενελάῳ] (XI vv 122-125 ndash grifos nossos) Fica claro
que Paacuteris ldquocomprardquo a opiniatildeo de Antiacutemaco com ldquoaglaaacute docircrardquo e ldquomaacutelista khrysogravenrdquo
Essa ideia de que os troianos possuem ouro em demasia eacute recorrente em Euriacutepides Em
Heacutecuba (vv 10-12) Polidoro relata que Priacuteamo ldquocomigo muito ouro enviourdquo [πολὺν δὲ σὺν
ἐmicroοὶ χρυσὸν ἐκπέmicroπει ndash grifos nossos] para o traacutecio que o hospedou (e acabou o matando
para ficar com todo esse ouro) Novamente (vv 492-493) os troianos satildeo mostrados
possuindo muito ouro quando Taltiacutebio pergunta se a mulher que ele vecirc eacute Heacutecuba a ldquorainha
dos friacutegios de muito ourordquo [ἄνασσα τῶν πολυχρύσων Φρυγῶν] Em As Troianas no
agṓn entre Heacutecuba e Helena a primeira ressalta que a segunda ldquoVislumbrando-o [Paacuteris] com
trajes baacuterbaros e com ouro luzindo teu espiacuterito desvairou-serdquo [ὃν εἰσιδοῦσα βαρβάροις
ἐσθήmicroασι χρυσῷ τε λαmicroπρὸν ἐξεmicroαργώθης φρένας ndash grifos nossos] (vv 991-992)
Em Helena o adjetivo polykhryacutesos (no acusativo plural polykhryacutesous) eacute usado para
designar os doacutemoi (construccedilotildees) troianos Em Ifigecircnia em Aacuteulis Agamemnon comenta o
princiacutepio da guerra quando ldquoO homem que julgou as deusas (assim eacute a histoacuteria que os
homens contam) veio da Friacutegia para a Lacedemocircnia vestido roupas de cores vibrantes e
brilhando com joias de ouro a luxuacuteria dos baacuterbarosrdquo [ἐλθὼν δ᾽ ἐκ Φρυγῶν ὁ τὰς θεὰς
κρίνων ὅδ᾽ ὡς ὁ microῦθος Ἀργείων ἔχει Λακεδαίmicroον᾽ ἀνθηρὸς microὲν εἱmicroάτων στολῇ
χρυσῷ δὲ λαmicroπρός βαρβάρῳ χλιδήmicroατι] (vv 71-74) Esse excerto revela que o ouro eacute a
ldquoluxuacuteria dos baacuterbarosrdquo a predileccedilatildeo pelo ouro eacute um costume do Outro e o distingue dos
gregos A helenista Helen Bacon afirma que Euriacutepides eacute menos detalhista que Soacutefocles e
Eacutesquilo ao descrever as vestimentas baacuterbaras embora o embate com o baacuterbaro esteja mais
presente em suas obras mas que o ouro em excesso a riqueza das roupas eacute um elemento
distintivo do baacuterbaro (BACON 1955 p 87 123 e 124) servindo assim como um marcador
eacutetnico Muito ouro eacute sinal de excesso por isso eacute que os baacuterbaros satildeo caracterizados com o
adorno de muitas joias (HALL 1989 p 80)
Em Androcircmaca esse adjetivo (no dativo polychryacutesō) eacute novamente utilizado para
designar os troianos (v 2) Contudo a proacutepria Hermiacuteone (v 147-154) uma grega usa muito
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ouro e a proacutepria Helena se deixa seduzir pelo ouro de Paacuteris como vimos no excerto de As
Troianas Natildeo podemos deixar de observar que Hermione eacute uma espartana
Os espartanos nas obras de Euriacutepides satildeo representados como pessoas que se
assemelham aos baacuterbaros como fica claro por exemplo na passagem em que Tiacutendaro
recrimina Menelau dizendo-lhe ldquoTornaste-te baacuterbaro por teres vivido tanto tempo entre os
baacuterbarosrdquo [βεβαρβάρωσαι χρόνιος ὢν ἐν βαρβάροις] (Orestes v 485) Euriacutepides os
representa dessa maneira porque eles satildeo os inimigos dos atenienses na Guerra do
Peloponeso o grego pode voltar a um estado de barbaacuterie como acontece com os espartanos
Assim representar Hermiacuteone usando muito ouro ou depreciar Menelau (como acontece em
Orestes ou Ifigecircnia em Aacuteulis que inclusive ganha o primeiro precircmio na competiccedilatildeo traacutegica
em que foi encenada) eacute representar o espartano como semelhante ao baacuterbaro porque eacute digno
de cometer atos baacuterbaros sobretudo durante a guerra
Entretanto por mais que Euriacutepides faccedila essas correlaccedilotildees dada a natureza ldquotemaacutetica e
simboacutelicardquo de suas obras (BACON 1955 p 124) o troiano ainda eacute o referencial de barbaacuterie
em Androcircmaca Hermione afirma agrave personagem-tiacutetulo que ldquonatildeo haacute nenhum Heitor aqui
nenhum Priacuteamo ou seu ouro essa eacute uma cidade helecircnicardquo [οὐ γάρ ἐσθ᾽ Ἕκτωρ τάδε οὐ
Πρίαmicroος οὐδὲ χρυσός ἀλλ᾽ Ἑλλὰς πόλις] (vv 168-169) pedindo para que ela natildeo
introduza costumes do seu ldquobaacuterbaron geacutenosrdquo laacute Em Orestes a caracterizaccedilatildeo do friacutegio como
um homem medroso covarde que se prosterna e elabora um discurso defensivo para manter a
sua vida corrobora seu pertencimento ao domiacutenio dos baacuterbaros
Na Iliacuteada o excesso de ouro de Troia natildeo designa barbaacuterie mas definitivamente
designa uma alteridade Somente os troianos satildeo relacionados agrave posse do ouro (II vv 229-
231) e eles satildeo justamente o inimigo na guerra Embora os heroacuteis homeacutericos sejam regidos
por um ideal de conduta comum os troianos satildeo diferentes dos aqueus o uso que eles fazem
desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes
Paacuteris se utiliza de todos os meios para manter a posse de sua amada Helena desde
suas riquezas ateacute mesmo sua vida ele soacute entra em batalha quando se vecirc a ponto de perde-la
Por isso ele natildeo possui tantos epiacutetetos ligados agrave guerra Heroacuteis como Aquiles Agamecircmnon
Menelau Odisseu e o proacuteprio Heitor satildeo qualificados com adjetivos relacionados ao ambiente
beacutelico No Canto III da Iliacuteada no qual Helena mostra alguns heroacuteis a Priacuteamo fica evidente
isso Vejamos os epiacutetetos desses guerreiros em comparaccedilatildeo aos de Paacuteris no supracitado
Canto
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Agamemnon ldquohomem de aspecto imponenterdquo (v 166) ldquorei poderosordquo (v 178) ldquotatildeo belo e
de tal corpulecircnciardquo (v 167) ldquotatildeo belo conspectordquo (v 169) ldquomajestade tatildeo
granderdquo (v 170) ldquode Atreu descendenterdquo (v 178) ldquotatildeo grande rei chefe de
homens quatildeo forte e notaacutevel guerreirordquo (v 179) ldquoventurosordquo (v 182) ldquofilho
dileto dos deusesrdquo (v182)
Odisseu ldquode espaldas mais largas de ver e de peito mais amplordquo (v 194) ldquoguieiro
velosordquo (v 197) ldquoastucioso guerreirordquo (v 200) ldquoem toda sorte de ardis
entendido e varatildeo prudentiacutessimordquo (v 203) ldquoo astuciosordquo (v 216) ldquoindiviacuteduo
bisonho que o cetro na matildeo mantivesse () imaginara talvez ser pessoa
inexperta ou insensatardquo (vv 218-220)
Menelau ldquode Ares forte disciacutepulordquo [areḯphilos] (v 206)
Aacutejax
Telamocircnio
ldquotatildeo belo e de tal corpulecircnciardquo (v 226) ldquode bem maior estatura e de espaldas
mais largas que os outrosrdquo (v 227) ldquobaluarte dos homens Aquivosrdquo (v 229)
ldquogiganterdquo (v 229)
Heitor ldquode penacho ondulanterdquo (v 83)
Paacuteris ldquodivordquo [theoeidḗs dicircos] (vv 16 37 100 328 437) ldquobelordquo (v 27) ldquode
formas divinasrdquo (v 58) ldquode belas feiccedilotildeesrdquo (v 39) ldquosedutor de mulheresrdquo (v
39) ldquoEsses cabelos a ciacutetara os dons de Afrodite a belezardquo (v 54) ldquomarido
de Helena de belos cabelosrdquo (v 328)
Agamemnon eacute o aacutenax ele eacute o chefe da expediccedilatildeo rei de todos os reis eacute o chefe de
homens o notaacutevel guerreiro aqui estaacute denotado seu aspecto beacutelico sobretudo pela sua
habilidade de comando Odisseu com a sua astuacutecia tambeacutem possui um aspecto beacutelico isso se
daacute porque essa meacutetis natildeo estaacute ligada apenas agrave dissimulaccedilatildeo agrave mentira mas ao planejamento
mesmo necessaacuterio a uma guerra Eacute ele que tem a ideia do cavalo de Troia que garante a
vitoacuteria dos gregos essa guerra foi ganha pela meacutetis Menelau eacute amigo de Ares (areḯphilos)
deus da guerra e Aacutejax eacute o gigante corpulento personagem cuja forccedila fiacutesica sobrepuja por
exemplo a forccedila da meacutetis ligada agrave inteligecircncia Do mesmo modo o penacho de Heitor se
refere a uma parte do seu elmo que por sua vez eacute parte da armadura de um guerreiro e ainda
pode se referir agrave sua habilidade com os cavalos (ressaltada em outros Cantos) pois o penacho
lembra a crina desse animal Como vimos o cavalo eacute necessaacuterio agrave guerra deslocando os
guerreiros no campo de batalha e agraves vezes auxiliando-os nas lutas Paacuteris natildeo possui epiacutetetos
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beacutelicos e o uacutenico elemento relacionado agrave guerra que ele possui eacute o arco o qual eacute
desvalorizado
Na trageacutedia o arco eacute a arma do baacuterbaro por excelecircncia que por sua vez se
materializa na figura do persa Paacuteris eacute mostrado como um arqueiro duas vezes (Heacutecuba vv
387-388 Orestes v 1409) nas trageacutedias que analisamos assim como Teucro (Helena vv
75-77) A diferenccedila eacute que tanto em Heacutecuba quanto em Orestes o arco de Paacuteris eacute mencionado
em contexto beacutelico e em Helena Teucro usa seu arco fora da guerra e o iria utilizaacute-lo para
matar uma mulher natildeo um homem Homero tambeacutem traz essa ideia de diferenciaccedilatildeo de uso
do arco
Paacuteris entra na guerra com ldquoarco e espadardquo (toacutexa kai xiacutephos) e ldquoduas lanccedilas na matildeordquo
(dyacuteo kekorythmeacutena khalkocirc) Paacuteris eacute um arqueiro e isso fica bastante claro ao longo da Iliacuteada
Se teve uma arma que natildeo mudou muito ao longo do tempo foi o arco (KEEGAN 1995 p
179) embora variantes tenham surgido (como a besta ndash crossbow) ele eacute oriundo do Oriente
tendo entrado de uma vez por todas nas fileiras da infantaria grega atraveacutes do contato dos
cretenses com a Siacuteria e o Egito (SUTHERLAND 2001 p 113)
Na Guerra do Peloponeso (431-404 aC) os arqueiros ganharam um destaque muito
grande Marcos Alvito afirma inclusive que as forccedilas secundaacuterias (peltastas arqueiros
fundibulaacuterios e demais tropas ligeiras) tiveram um papel decisivo (SOUZA 1988 p 64)
embora a falange hopliacutetica sempre fora preferida a esse modo de luta (LISSARAGUE 2002
p 117) Essa preferecircncia se daacute em virtude de uma tradiccedilatildeo de se preterir as tropas ligeiras em
detrimento de uma forma de luta aristocraacutetica que implica na valorizaccedilatildeo do combate corpo a
corpo
Essa valorizaccedilatildeo jaacute comeccedila na Iliacuteada haacute pouquiacutessimos arqueiros e talvez se todos
eles morressem em batalha a Guerra de Troia natildeo seria encerrada por causa disso afinal
ldquoAqueus e Troianos se batem corpo-a-corpo e natildeo ficam agrave espera de apoio de flechas ou
de lanccedilas de longe atiradas lutando de bem pertordquo (Ἀχαιοί τε Τρῶές τε δῄουν
ἀλλήλους αὐτοσχεδόν οὐδ᾽ ἄρα τοί γε τόξων ἀϊκὰς ἀmicroφὶς microένον οὐδ᾽ ἔτ᾽ ἀκόντων
ἀλλ᾽ οἵ γ᾽ ἐγγύθεν ἱστάmicroενοι) (XV vv 707-712 ndash grifos nossos)
Mencionados haacute seis arqueiros na Iliacuteada Filoctetes e Teucro do lado aqueu Paacuteris
Pacircndaro Heleno e Doacutelon do lado troiano Tanto Paacuteris quanto Pacircndaro e Heleno usam o arco
em batalha Doacutelon aparece em apenas um Canto da Iliacuteada para morrer nas matildeos de Odisseu e
Diomedes e sua funccedilatildeo eacute a de espiar os aqueus natildeo de lutar contra eles natildeo chegando a
entrar em batalhas Filoctetes vem acompanhado de um grupo de arqueiros que natildeo chegam a
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entrar em accedilatildeo Tampouco o proacuteprio heroacutei o faz ele foi abandonado em uma ilha por seus
companheiros no caminho para Troia em decorrecircncia de um ferimento que exalava um odor
terriacutevel
Haacute ainda o povo da Loacutecrida um povo arqueiro o qual foi auxiliar os aqueus Eacute
mencionado uma vez no poema mas ele natildeo entra em batalha os loacutecrios satildeo medrosos
demais para isso (XII vv 712-718) Do lado aqueu Teucro eacute o uacutenico que luta em batalha
com o arco e ele aparece em Helena de Euriacutepides portando-o ele quase atira na esposa de
Menelau durante a peccedila Ele vai parar no Egito onde estaacute tambeacutem Helena O motivo Ele foi
expulso de sua terra pelo pai Ser exilado era algo vexatoacuterio o economista Eacutemile Mireaux
mostra que os exilados comeccedilam a surgir por volta do seacuteculo VII aC mas que a praacutetica de
um membro de uma comunidade se exilar natildeo era tatildeo incomum antes dessa data
A estes contingentes de desenraizados deve-se finalmente acrescentar todos aqueles que uma vinganccedila um crime um homiciacutedio agraves vezes acidental obrigaram a deixar a famiacutelia e a cidade e a procurar o refuacutegio da hospitalidade agraves vezes para sempre Pois quando o fugitivo culpado eacute apenas um bastardo ou mesmo um simples filho segundo raras satildeo as famiacutelias dispostas a assumir o encargo do pagamento de uma composiccedilatildeo para recuperar um membro que em regra geral natildeo eacute senatildeo um encargo suplementar para o patrimocircnio familiar (MIREAUX sd p 255)
Na Atenas Claacutessica a praacutetica do ostracismo vem reforccedilar a ideia de que ser privado de
viver em sua terra era um dos piores castigos os cidadatildeos atenienses escreviam em um
pedaccedilo de ceracircmica oacutestrakon o nome de quem deveria ser exilado por ser perigoso agrave ordem
democraacutetica Teucro em Helena representa algueacutem indesejado o que corrobora a ideia de
que o arco era uma arma que denotava vileza Ser privado de sua poacutelis era o equivalente a
estar morto (HALL 1997 p 97)
Mas falta algum arqueiro nesse time aqueu natildeo Ou foi esquecido o famoso arco de
Odisseu objeto que definiraacute o destino de Peneacutelope no palaacutecio de Iacutetaca Justamente seu arco
estaacute em casa Odisseu natildeo o utiliza na guerra Aqui o arco tem uma funccedilatildeo outra a qual natildeo
se perdera atraveacutes do tempo caccedila e esporte passatempos comuns da aristocracia Desse
modo a maioria do contingente de arquearia eacute oriundo do lado troiano da guerra
Os arqueiros natildeo lutam face a face atiram de longe suas setas O seu comportamento
na Iliacuteada eacute bastante peculiar eles compartilham de uma comunicaccedilatildeo natildeo-verbal e verbal
bastante parecida escondem-se e jactam-se quando ferem o inimigo (por exemplo V vv
100-106 XIII vv 593-597 vv 712-718) Aleacutem disso fugir e sentir medo eacute bem mais comum
entre eles do que entre os outros guerreiros (por exemplo III vv 33-37 XII vv 712-718)
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Esse comportamento natildeo eacute adequado dentro do coacutedigo de conduta guerreira o que torna o
grupo dos arqueiros de certa forma marginalizado no campo de batalha pertencendo a uma
categoria hieraacuterquica inferior agrave daqueles que usam a lanccedila ou a espada na luta
Paacuteris aparece na Iliacuteada pela primeira vez no Canto III os dois exeacutercitos se aproximam
e ele chama os aqueus para lutar em um embate singular (III vv 15-20) quando um guerreiro
luta sozinho com outro corpo-a-corpo Esse tipo de combate eacute o que mais acontece nessa
epopeia Mesmo numa batalha coletiva em que todo o exeacutercito estaacute lutando satildeo batalhas
singulares que ocorrem sabemos o nome de quem mata e de quem morre
Por isso que natildeo podemos dizer que haacute a valorizaccedilatildeo somente de um em detrimento do
outro ambos ndash morto e assassino ndash satildeo relembrados Jean-Pierre Vernant e Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo se debruccedilaram de maneiras diferentes sobre esse tema da bela morte utilizando as
mesmas passagens da Iliacuteada As suas noccedilotildees resumem-se nos diagramas abaixo
No primeiro diagrama vemos a visatildeo de Vernant agravequeles que morrem em batalha eacute
implicada uma seacuterie de caracteriacutesticas que os tornam aacuteristoi (os melhores) Eacute o fato de morrer
em batalha que lhe daacute esse estatuto Para Rennoacute (segundo diagrama) natildeo eacute a sua morte que
lhe implica a qualidade de aacuteristos mas a morte dos outros matando em batalha que se
consegue angariar para si essas seacuteries de caracteriacutesticas configurando-se pois em aacuteristoi
Quando esses guerreiros implacaacuteveis esses aacuteristoi morrem eacute que se daacute a bela morte pois foi
a morte de pessoas honoraacuteveis Cremos que tanto Vernant quanto Rennoacute natildeo satildeo visotildees
diacutespares mas complementares acerca da bela morte Tanto uma concepccedilatildeo quanto outra estaacute
presente na Iliacuteada Homero ldquoequilibra igualmente a grandeza dos assassinos e o paacutethos
(sofrimento) dos assassinadosrdquo (SCHEIN 2010 p 72)
Nesse embate singular contra Menelau ele se veste antes (vv 328-339) A descriccedilatildeo eacute
longa porque no proacuteprio vestir-se haacute um processo e uma estrutura formulaica 1) cnecircmides
(ldquocaneleirasrdquo) 2) couraccedila 3) espada 4) escudo 5) elmo e 6) lanccedila Aqui estaacute basicamente
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todos os apetrechos necessaacuterios a um guerreiro e os quais estaratildeo presentes na armadura do
hoacuteplita Isso eacute interessante para que possamos comparar com o que a Arqueologia tem
trazido para noacutes Natildeo haacute por exemplo registros arqueoloacutegicos de cnecircmides no periacuteodo de
desestruturaccedilatildeo palaciana (1100-IX aC) como haacute no Poliacuteade Arcaico mas isso natildeo impede
que elas natildeo fossem feitas naquele periacuteodo em um material pereciacutevel (ZANON 2004 p
136) O mesmo acontece com as couraccedilas mas nada tambeacutem impede que elas fossem
derretidas para a reutilizaccedilatildeo do metal (ZANON 2004 p 137)
A espada (xiacutephos) que Paacuteris traz com cravos de prata tem correspondente
arqueoloacutegico de origem minoica esse tipo de espada natildeo era muito forte e quebrava saindo a
lacircmina do cabo Assim o guerreiro ficava desarmado (ZANON 2004 p 139) Embora natildeo
saibamos como eacute a espada de Menelau (soacute nos eacute dito que esse heroacutei se armou do mesmo
modo que Paacuteris) ela se quebra no decorrer da luta singular Isso mostra que o poeta da Iliacuteada
possuiacutea um conhecimento da cultura material palaciana Contudo esse tipo de espada natildeo
servia para corte (como acontece na epopeia) apenas para perfuraccedilatildeo Espadas que cortam e
perfuram soacute apareceriam por volta de 1200 aC (ZANON 2004 p 140)
Esse eacute mais um exemplo de mistura perioacutedica a espada corta e perfura como eacute de
conhecimento da audiecircncia homeacuterica mas o aspecto dela eacute o de uma espada palaciana
ldquoHomerordquo segundo a arqueoacuteloga brasileira Camila Aline Zanon ldquojuntou esses retalhos e os
costurou com tal primazia que somente com o surgimento da Arqueologia eacute que pudemos
diferenciar um pouco dos seus elementos constitutivos no tocante a essas eacutepocasrdquo (2004 p
146) Isso denota tambeacutem que ele natildeo ignorava as praacuteticas beacutelicas o que nos ajuda a
compreender mais a representaccedilatildeo de Paacuteris Outro ponto interessante reside no fato de que a
couraccedila que Paacuteris veste natildeo eacute sua eacute de Licaacuteone seu irmatildeo Nosso heroacutei natildeo possui sua
armadura completa corroborando a sua habilidade como arqueiro esse guerreiro fazia parte
das tropas ligeiras natildeo das pesadas Os membros daquela precisavam se despir da armadura
completa pesada para poder exercer sua funccedilatildeo na guerra perseguir o inimigo Eles
geralmente eram pessoas de menor condiccedilatildeo financeira que natildeo podiam arcar com um
armamento completo ou ateacute mesmo mercenaacuterios estrangeiros Eram fundibulaacuterios peltastas
arqueiros essas armas satildeo muito mais baratas
As batalhas singulares seguem uma ordem tambeacutem primeiro haacute o tiro de lanccedilas soacute a
partir daiacute que o embate corpo a corpo com espadas se desenrola (III vv 346-360) Aqui o
tiro de Paacuteris natildeo fere nem mesmo a armadura de Menelau enquanto o tiro deste atravessa o
escudo e seu khitṓn sua tuacutenica por baixo da armadura Paacuteris se encurva impedindo que algo
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pior lhe aconteccedila A luta continua e Menelau passa a atacar Paacuteris com a espada que se
quebra Issonatildeo eacute atribuiacuteda agrave sua fragilidade mas a um desiacutegnio dos deuses Contudo como
vimos era passiacutevel de isso acontecer
Afrodite vendo a desvantagem desse heroacutei o retira do campo de batalha colocando-o
no taacutelamo agrave espera de Helena Natildeo fosse a intervenccedilatildeo da deusa Menelau teria alcanccedilado
alto kŷdos ele eacute o valor que os deuses atribuem ao homem Nas palavras da filoacutesofa argentina
Mariacutea Cecilia Colombani ldquose kucircdos [sic] descende dos deuses kleacuteos ascende ateacute elesrdquo
(DETIENNECOLOMBANI 2005 p 52) Leslie Kurk acrescenta que aquele que possui
kŷdos tem um ldquopoder especial conferido por um deus que faz um heroacutei invenciacutevelrdquo (KURK
apud LUNT 2010 p 64) Se um homem natildeo demonstra ser digno desse valor ele morre
aacutephantos (invisiacutevel) e nṓnymnos (sem nome sem gloacuteria)
No Canto VI (vv 521-525) Heitor ao ver nosso heroacutei afirma que nenhum anḗr
poderia deixar de valorizar (atimaacuteō) seus ldquotrabalhos na guerrardquo (eacutergon maacutekhēs) mas que natildeo
quer os exercer gerando aiacuteskhos (vergonha) Esse verbo (atimaacuteō) eacute composto de duas partes
o prefixo de negaccedilatildeo a- e o verbo timaacuteō (valorizar) que daacute origem agrave palavra timḗ uma das
noccedilotildees mais caras ao guerreiro ela eacute o valor de uma pessoa Para um guerreiro o campo de
batalha eacute o locus privilegiado de demonstraccedilatildeo desse valor de sua honra Desse modo como
vimos eacute na Iliacuteada mais do que na Odisseia que os heroacuteis tecircm a sua timḗ posta a prova
Richard B Rutherford sintetiza bem o que significa essa honra na Greacutecia antiga
No coraccedilatildeo do sistema de valores dos heroacuteis de Homero estaacute a honra τιmicroή expressa pelo respeito de seus pares e personificada em formas tangiacuteveis ndash tesouros presentes mulheres um lugar honoraacutevel no banquete Em tempo de guerra eacute inevitaacutevel que a honra seja ganha sobretudo pelas proezas em batalha habilidade como um liacuteder e um lutador Outras qualidades satildeo tambeacutem admiradas ndash habilidade como orador piedade bom senso e conselho lealdade hospitalidade gentileza mas essas satildeo secundaacuterias e a uacuteltima poderia de fato estar sem lugar no combate (RUTHERFORD 1996 p 40)
Segundo Redfield a timḗ eacute a medida de um homem em relaccedilatildeo ao outro implicando
numa comparaccedilatildeo de um indiviacuteduo com outro Isso soacute eacute possiacutevel se esses homens estatildeo
inseridos em uma sociedade na qual existe uma publicidade das accedilotildees45 ou seja na qual se
verifique uma uniatildeo do que entendemos hoje como vida privada e vida puacuteblica O valor de um
45 A sociedade grega eacute uma sociedade agoniacutestica Esse termo natildeo existe na liacutengua portuguesa eacute um adjetivo derivado de um processo de aportuguesamento cuja base etimoloacutegica eacute a palavra aacutegon (competiccedilatildeo) Foi utilizado para caracterizar a sociedade helecircnica no que diz respeito agrave noccedilatildeo de competiccedilatildeo o indiviacuteduo estaacute sempre sob o olhar do puacuteblico sendo sinalizado por ele quando comete atos dignos (honrados) e indignos (vergonhosos)
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homem se lhe era atribuiacutedo natildeo por ele mesmo mas por outros homens Esse reconhecimento
eacute o que configura a kleacuteos a gloacuteria (ou reputaccedilatildeo)46 Esta eacute a gloacuteria dada pelos homens agravequeles
que se destacam Enquanto a vida tem um fim a kleacuteos eacute imortal pois ela se daacute atraveacutes da
rememoraccedilatildeo desses mortos grandiosos seja atraveacutes da oralidade ndash o canto do aedo ou a
narraccedilatildeo de mitos47 ndash seja atraveacutes da construccedilatildeo de tuacutemulos Na Iliacuteada uma passagem chama
atenccedilatildeo para isso trata-se de uma fala de Heitor (VII vv 81-91) Eacute no Canto VII tambeacutem (v 516) que Paacuteris recebe uma designaccedilatildeo interessante hyiograves
Priaacutemoio Ann Suter chama atenccedilatildeo para ela pois estaacute numa passagem que ldquoimplica numa
total reversatildeo da caracterizaccedilatildeo de covarde para heroacutei de mulherengo [womanizer] para
guerreirordquo (1984 p 71) Paacuteris como veremos depois de desafiar os guerreiros aqueus acaba
sendo enfrentado por Menelau e foge retornando depois para um combate singular Afrodite
ainda o retira da guerra e ele soacute volta a ela no Canto VII Justamente aqui no Canto que
intermedia sua fuga e seu retorno tanto no plano semacircntico quanto no linguiacutestico ocorre o
turning point de Paacuteris
No Canto VII tambeacutem Paacuteris mata seu primeiro adversaacuterio na Iliacuteada (vv 8-10) Ele eacute
Meneacutestio um korynḗtēs guerreiro que porta maccedila uma espeacutecie de porrete ou seja natildeo
utiliza as armas convencionais de guerra homeacuterica (espada ou lanccedila) Ele tambeacutem faz parte
das tropas ligeiras do exeacutercito aqueu assim como Paacuteris que eacute arqueiro do lado troiano Haacute
portanto uma equiparidade na luta o toxoacutetēs lutando contra o korynḗtēs No Canto seguinte
No Canto VIII Paacuteris continua demonstrar sua qualidade de arqueiro ele fere um dos cavalos
de Nestor com seu arco (VIII vv 80-84)
Paacuteris tambeacutem retorna agrave accedilatildeo no Canto XI Eacute nesse conjunto de Cantos (XI ao XIII)
que Paacuteris mais se mostra um guerreiro ativo utilizando sua arma principal o arco e flecha
Ele fere Macaacuteone afastando-o da luta e depois Euriacutepilo que estava retirando a armadura de
Apisaacuteone morto em batalha (XI vv504-509 vv 581-584) Outro alvo seu eacute Diomedes (XI
vv 369-395) Nosso heroacutei sai de um esconderijo (loacutekhos) e jacta-se A foacutermula utilizada eacute
ldquoeukhoacutemenos eacutepos ēuacutedardquo tiacutepica dessas situaccedilotildees de vangloacuteria (MARTIN 1989 p 29) Esse eacute
46 ldquoPara os gregos antigosrdquo segundo David Lunt ldquoa imortalidade heroica consistia em dois componentes gloacuteria e fama (kleacuteos) e honras cultuais (timḗ)rdquo (LUNT 2010 p 83) O culto ao heroacutei natildeo eacute mostrado na Iliacuteada a arqueologia jaacute mostrou que ele jaacute existia na eacutepoca de Homero (JONES 2010 p 14) A explicaccedilatildeo de Seth L Schein para o aedo da Iliacuteada e da Odisseia exclui-lo estaria no caraacuteter pan-helecircnico das obras ldquo[] a religiatildeo olimpiana de Homero eacute pan-helecircnica [] Homero transcende os limites do culto regional e local para criar na poesia uma unidade religiosa que natildeo existia historicamenterdquo (SCHEIN 2010 p 49) Christopher P Jones jaacute afirma o contraacuterio Homero influenciou o culto aos heroacuteis (JONES 2010 p 14) 47 David Lunt ao mostrar a etimologia da palavra kleacuteos mostra tambeacutem que ela tem uma estreita ligaccedilatildeo com essa cultura oral klyacuteein eacute ouvir Assim a ldquokleacuteos soacute pode ser possuiacuteda se algueacutem a proclama e algueacutem a escutardquo (LUNT 2010 p 88)
93
o comportamento tiacutepico de um arqueiro e por isso que Diomedes lhe adereccedila muitos insultos
A qualidade de Paacuteris como arqueiro (toxoacutetēs) eacute desprezada ldquoarco e flecha embora praticado
por certos indiviacuteduos como Paacuteris e Teucro eacute o mais longe possiacutevel marginalizada e o termo
lsquoarqueirorsquo pode ser ateacute mesmo usado como um insultordquo (RUTHERFORD 1996 p 38)
Paacuteris segue sua participaccedilatildeo em batalha liderando uma das colunas troianas contra os
acaios (XII v 93) Eneias heroacutei troiano de quem jaacute falamos em nossa introduccedilatildeo chama ao
seu auxiacutelio Paacuteris e outros guerreiros (XIII vv 489-495) Ainda nesse Canto Paacuteris mata outro
grego o coriacutentio Euqueacutenor estimulado pela perda de um amigo Harpaliatildeo (XIII vv 660-
663 671-672) Esta eacute a uacutenica vez em que um arco mata um aqueu Em todas as outras
passagens envolvendo tiros de arco apenas Teucro arqueiro aqueu mata com o arco Eacute
interessante perceber que o uacutenico arqueiro em atividade do lado aqueu se chama ldquoTroianordquo
ldquoTeucrordquo eacute outra denominaccedilatildeo para o troiano Isso corrobora a ideia do arco ser uma arma
tiacutepica desse exeacutercito Geralmente o arco apenas fere causando na maioria das vezes uma
reprimenda daquele que eacute atingido agravequele que atinge como eacute o caso de Diomedes e Paacuteris (e
ainda de Diomedes e Pacircndaro)
No Canto XV Paacuteris atinge por traacutes [oacutepisthe] Deiacuteoco quando este se retirava da luta
(XV vv 341-342) Esta eacute sua uacuteltima accedilatildeo em batalha a partir daiacute ele soacute eacute mencionado Aqui
em seu uacuteltimo ato beacutelico nosso heroacutei faz algo que natildeo eacute bem visto Afinal o combate deve
ser feito face-a-face e o ataque pela frente do guerreiro Matar ou ferir pelas costas eacute
desonroso vocecirc natildeo deu oportunidade da pessoa se defender nem dela ver quem a matou
Aqui aparece uma outra faceta da caracterizaccedilatildeo do guerreiro Paacuteris a qual parece ser
exclusiva a ele mas que eacute mais comum em batalha do que poderiacuteamos imaginar Em vaacuterias
passagens Paacuteris eacute mostrado sentindo medo Ele foge do embate singular quando vecirc que
Menelau de fato lutaria com ele (III vv 21-37) Sua fuga eacute inadmissiacutevel ele causou a guerra
O fato de ele ter desencadeado todo o conflito e ao se deparar com Menelau recuar de medo
mexe mais com os nervos de Heitor do que o proacuteprio fato de ele simplesmente fugir O
aristocrata que eacute um guerreiro deve enfrentar as batalhas e qualquer fuga eacute condenaacutevel
Ainda no Canto III (vv 39-45) Heitor ressalta que Paacuteris tem todas as qualidades
fenotiacutepicas necessaacuterias aos kaloigrave kagathoiacute mas que seu comportamento natildeo estava
condizendo com o de um Carece-lhe forccedila (biacuteē phresigraven) e coragem (alkḗ) A alkḗ eacute o traccedilo
distintivo do guerreiro junto com a andreiacutea a coragem varonil cara ao gecircnero masculino
Cremos que ela eacute o impulso positivo e a qualidade daquele que supera o medo para enfrentar
situaccedilotildees-problema eacute a justa medida entre inseguranccedila e convicccedilatildeo exacerbada Ela eacute uma
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caracteriacutestica intriacutenseca do ser humano mas se manifesta com mais ou menos intensidade em
um indiviacuteduo consoante trecircs aspectos a) predisposiccedilatildeo no caraacuteter na iacutendole do mesmo b)
incitaccedilatildeo por parte de outra pessoa ou c) motivaccedilatildeo por parte de um outro sentimento
No caso de Paacuteris a coragem se manifesta pela incitaccedilatildeo de outrem bem como pelo
medo de perder Helena veremos mais adiante que ele aceita devolver os tesouros que ele
trouxe de Esparta mas se nega a devolver a consorte Quando passamos por essas situaccedilotildees-
problema podemos encaraacute-las imediatamente ou podemos recuar diante delas a menos que
outra pessoa nos encoraje ou que tenhamos vergonha de recuar como eacute o caso de Paacuteris
tambeacutem
O ato corajoso desse heroacutei eacute mensurado a partir da sua intrepidez diante do confronto
com o perigo em um campo de batalha O valor de um kalograves kagathoacutes consiste na sua
coragem O valente eacute sempre o nobre o homem de estatuto social elevado A vitoacuteria eacute para
ele a distinccedilatildeo mais alta e o conteuacutedo proacuteprio da vida Do mesmo modo se daacute com os atletas
a vitoacuteria eacute essencial para que este possa reclamar para si um estatuto honoriacutefico semelhante ao
de um heroacutei que ao ficar cara a cara com um igual o enfrenta agrave medida que eacute conduzido
ldquopelo medo da vergonhardquo (BALOT 2004 p 416)48 Ele quer ser reconhecido pela sua
bravura natildeo pela sua fraqueza
Contudo por mais que o heroacutei deva ser intreacutepido isso natildeo implica necessariamente
que o ele seja proibido de sentir medo ele eacute intriacutenseco e natildeo eacute incomum um guerreiro
amedrontar-se na Iliacuteada Ateacute mesmo Aquiles o melhor dos aqueus sente medo Nicole
Loraux mostra que ldquona epopeia natildeo haacute guerreiro que natildeo tenha tremido alguma vez [] Natildeo
existe o grande guerreiro que natildeo tenha sentido um dia em todo o seu ser o tremor do terror
Como se o medo fosse a prova que qualifica o heroacuteirdquo (LORAUX 2003 p 97) Isso se daacute
porque eles satildeo humanos o homem eacute passiacutevel de sentir medo mas isso natildeo o qualifica como
um completo covarde Pelo contraacuterio ldquoO medo do bravo combatente revela a verdadeira
dimensatildeo do perigo que ele enfrente e que o engrandecerdquo (FONTES 2001 p 103)
Tanto a coragem quanto o medo coabitam o mesmo indiviacuteduo Este eacute corajoso agrave
medida que a coragem sobrepuja o medo eacute covarde quando o medo sobrepuja a coragem Nas
palavras de Simon Blackburn ldquoa coragem natildeo eacute a ausecircncia de medo () mas a capacidade de
sentir o grau adequado de medordquo (BLACKBURN 1997 p 80) Assim eacute incorreto afirmar
que o medo eacute diametralmente oposto agrave coragem bem como que um heroacutei eacute totalmente
48 Ryan Balot ainda afirma que a coragem eacute ldquoa qualidade ou disposiccedilatildeo do personagem que faz um indiviacuteduo superar o medo a fim de atingir um objetivo preacute-concebidordquo (BALOT 2004 p 407)
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destemido Ser covarde natildeo eacute sinocircnimo de sentir medo a covardia implica tambeacutem na recusa
total agrave batalha e o natildeo retorno numa situaccedilatildeo de fuga
Contudo eacute fato que o medo pesa sobre os troianos e os arqueiros como um elemento
desqualificativo porque ele estaacute associado a outras caracteriacutesticas devalorativas Por isso que
Paacuteris seraacute sempre reprimido como veremos mas sem deixar contudo de ser um exemplo
aleacutem das qualidades aristocraacuteticas que ele porta quando ele recua em batalha ele retorna
matando guerreiros inimigos liderando colunas incitando os companheiros agrave luta Destarte
isso natildeo significa uma contradiccedilatildeo da Iliacuteada como afirmou Moses Finley (FINLEY 1982 p
43)49 mas um aspecto paidecircutico como ser humano tem-se o direito de sentir medo de
recuar Ter medo tambeacutem eacute comum como vimos recuar entretanto eacute uma atitude desonrosa
Por isso que Paacuteris retorna agrave batalha Contudo ele o faz depois de a) ser motivo de graccedila
[khaacuterma] para os inimigos que riem dele e b) ser censurado por Heitor e Helena ele sente
vergonha de seus atos depois que sua atitude eacute internalizada como sendo algo indigno de um
anecircr Aqui a neacutemesis de Heitor desencadeou aidṓs em Paacuteris Nessa censura Heitor afirma
que este carece de biacuteē (forccedila) e alkḗ (coragem) Contudo no Canto VI o mesmo Heitor
afirma que todos sabem que Paacuteris eacute corajoso (aacutelkimos) e tem valor (timḗ)
O coacutedigo de conduta do guerreiro seja ele de qual lado da batalha for eacute o mesmo
bem como a representaccedilatildeo dele Tanto aqueus quanto troianos estatildeo sob esse mesmo coacutedigo e
satildeo representados da mesma maneira com as mesmas vestimentas em batalha armam-se do
mesmo jeito como jaacute pudemos ver com os mesmos tipos de metal com as mesmas armas
Isso acontece tambeacutem na imageacutetica como nos mostra Franccedilois Lissarague grego e baacuterbaro eacute
representado da mesma maneira (LISSARAGUE 2002 p 113-114) O que vai diferenciar o
contingente troiano do aqueu eacute justamente o tipo de arma valorizada natildeo o valor do guerreiro
bem como se enfatizaraacute que mesmo o melhor guerreiro troiano natildeo eacute paacutereo para o melhor
guerreiro aqueu (Iliacuteada XXII v 158)
O problema de Paacuteris eacute a demora em entrar no campo de batalha esquivando-se o
quanto for possiacutevel (ldquoMas voluntaacuterio te escusas natildeo queres lutarrdquo) Mas nunca ele a
abandona completamente Essa liccedilatildeo eacute de extrema importacircncia para os futuros politḗs
guerreiros da poacutelis que aprendem a Iliacuteada e a Odisseia e fazem desse ideal de conduta
heroica seu proacuteprio ideal e tecircm como maacutexima a sentenccedila ldquohamarteicircn eikograves anthrṓpousrdquo errar
eacute humano (EURIacutePIDES Hipoacutelito v 615)
49 ldquoMuitas vezes o proacuteprio material apresentava contradiccedilotildees internas () [Paacuteris] () aparece simultaneamente como um despreziacutevel covarde e como um verdadeiro heroacuteirdquo (FINLEY 1982 p 43)
96
Destarte a Iliacuteada assim como a Odisseia configura-se num discurso de legitimaccedilatildeo
da etnicidade helecircnica aleacutem de um discurso paidecircutico Aliaacutes eacute atraveacutes da paideiacutea que essa
ideologia seraacute passada de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo ateacute chegar ao ponto de formar os kaloigrave
kagathoiacute aqueles bem-nascidos que viratildeo a governar a poacutelis e a vencer os jogos helecircnicos
como atletas Ateacute mesmo durante a Idade Meacutedia essas epopeias foram revisitadas e passaram
muito tempo sem serem estudadas e questionadas segundo Carlier pelo seu caraacuteter de texto
religioso Esse autor afirma que esse movimento de estudo das obras homeacutericas poderia ser
um convite ao questionamento da Biacuteblia que tambeacutem eacute um texto religioso e de funccedilatildeo
modelar (no entanto inserido em uma outra eacutetica diferente da sociedade de Homero)
(CARLIER 2008 p 13)
Alguns autores como Robert Aubreton e Richard B Rutherford defendem que a
Iliacuteada demonstra preferecircncia pelos troianos Os argumentos giram em torno de trecircs questotildees
praticamente a) a representaccedilatildeo familiar do lado troiano e de toda a ldquosensibilidaderdquo daiacute
oriunda (como a cena entre Heitor e Androcircmaca ou de Heacutecuba e Heitor) b) o fato dos
troianos ganharem a maioria das batalhas e c) a Iliacuteada terminar com os funerais de Heitor
configurando-o pois como o grande heroacutei dessa epopeia
Haacute problemas nesses argumentos a ldquocidaderdquo grega eacute improvisada enquanto a troiana
eacute a ldquocidaderdquo de fato (MACKIE 1996 p 1) Isso se daacute porque os gregos satildeo os invasores e os
troianos satildeo os invadidos As esposas pais filhos pequenos dos gregos ficaram em seus
palaacutecios quem vai agrave guerra eacute o anḗr Assim eacute inviaacutevel entre os gregos cenas relativas ao
oicirckos ao domiciacutelio
Os troianos ganham a maioria das batalhas porque assim quis um grego Aquiles pede
para sua matildee a deusa Teacutetis que interceda junto a Zeus para fazer com que os troianos
ganhassem todas as batalhas a fim de mostrar a Agamemnon o quanto ele fazia falta
Lembremo-nos de que o primeiro Canto da Iliacuteada trata justamente da rixa que apartou
Aquiles da guerra e que a proacutepria narrativa dessa epopeia diz respeito agrave ira desse heroacutei e das
suas consequecircncias
O funeral de Heitor encerra a Iliacuteada o de Aquiles contudo nem aparece nela Seria
um indicativo de que aquele heroacutei eacute mais importante do que este e que sua morte seria o
grande final do poema O problema eacute que a Iliacuteada natildeo era cantada num dia inteiro para o
puacuteblico primeiro porque sua reacutecita natildeo demoraria soacute um dia visto que ela tem 15693 versos
segundo porque esse poema era cantado em episoacutedios nas competiccedilotildees e nos banquetes
Assim podia se cantar soacute o episoacutedio da luta entre Menelau e Paacuteris ou soacute o episoacutedio em que
97
Helena descreve os guerreiros aqueus ou soacute o episoacutedio em que Paacuteris atira em Diomedes e ele
o rechaccedila e assim por diante Nem mesmo a divisatildeo em Cantos como conhecemos havia
sido feita somente os saacutebios alexandrinos fariam isso muitos seacuteculos depois da cristalizaccedilatildeo
do poema na escrita Desse modo natildeo podemos pensar os funerais de Heitor como o grande
fim da reacutecita era o grande fim desse episoacutedio Natildeo haacute o famigerado the end cinematograacutefico
na Iliacuteada
Tambeacutem existem as consideraccedilotildees acerca da bela morte por Teodoro Rennoacute
Assunccedilatildeo que exploramos em nosso trabalho O que importa eacute o que o heroacutei faz em vida sua
morte eacute o fim de suas faccedilanhas incluindo o matar Por isso que Aquiles natildeo precisa morrer no
poema para ter seu valor corroborado O que corrobora o valor de Aquiles na Iliacuteada pode ser
justamente o funeral de Heitor assim como este seria honrado e rememorado pela morte do
guerreiro homenageado (VII vv 81-91) Aquiles o seraacute pela morte de Heitor Comparando
hipoteticamente se Aquiles viesse a morrer na Iliacuteada o valor de Paacuteris seu assassino seria
corroborado E Homero natildeo queria mostrar isso Paacuteris embora exemplo ainda eacute um
transgressor das leis da xeacutenia valor caro aos helenos e a todos os habitantes do Mediterracircneo
(VLASSOPOULOS 2013 p 90) e causador de uma guerra que fez perecer uma geraccedilatildeo de
hemiacutetheoi semideuses (os heroacuteis)
Em virtude do apresentado nesse capiacutetulo pudemos ver que os heroacuteis embora
partilhem aspectos em comum de sua categoria natildeo se constituem de uma massa indistinta
homogeneamente constituiacuteda cada heroacutei tem a sua peculiaridade A de Agamecircmnon eacute a sua
lideranccedila a de Odisseu sua meacutetis a de Aacutejax sua forccedila fiacutesica e a de Paacuteris sua beleza Homero
consegue construir personagens diferentes que natildeo agem da mesma maneira embora sejam
arautos de um mesmo coacutedigo de conduta
Entretanto embora sejam regidos por esse ideal de conduta os troianos satildeo diferentes
dos aqueus o uso que eles fazem desse coacutedigo eacutetico eacute diferenciado agraves vezes Paacuteris mesmo eacute
um transgressor e embora tente consertar seus erros continua sendo o causador da guerra que
tanto gera sofrimento a ambos os lados Ele ainda estaacute em estado de aacutetē Por isso seu valor
beacutelico eacute diminuiacutedo como destacar algueacutem que causou uma guerra John A Scott vecirc isso
como uma inovaccedilatildeo de Homero Paacuteris seria o principal guerreiro troiano mas como
desrespeitou a xeacutenia causando a Guerra de Troia perdeu seu posto para Heitor que seria um
personagem inventado para receber todas as caracteriacutesticas as quais teriam pertencido ao
proacuteprio Paacuteris na tradiccedilatildeo miacutetica (SCOTT 1913)
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Essa ideia contudo natildeo possui argumentaccedilatildeo suficiente para comprovaccedilatildeo ateacute
mesmo porque o nome de Heitor jaacute constava nas tabuinhas de Linear B (CHADWICK 1970
p 98) Natildeo podemos ir aleacutem da documentaccedilatildeo e afirmar que esse ou aquele personagem eacute
uma criaccedilatildeo exclusiva de Homero visto que a Iliacuteada e a Odisseia satildeo o resultado de inuacutemeras
tradiccedilotildees orais posteriores agrave composiccedilatildeo das obras Assim como Euriacutepides reelabora os mitos
da tradiccedilatildeo eacutepica em suas trageacutedias Homero tambeacutem o faz em suas epopeias ldquoos materiais
que o poeta utiliza para recordar satildeo versaacuteteis moacuteveis feitos de foacutermulas de episoacutedios e de
um repertoacuterio de informaccedilotildees variado que pode se empregado com certa liberdade e adequado
agraves conveniecircncias poemaacuteticas e meloacutedicasrdquo (NUNtildeEZ 2011 p 239)
Eacute por essa razatildeo que os poemas homeacutericos natildeo foram os primeiros do processo
discursivo sobre o qual nos debruccedilamos sendo ldquoobras musicais [] [que] formam um todo
orgacircnico no qual poesia e muacutesica se interpenetram e intercambiam significadosrdquo (NUNtildeEZ
2011 p 239-240 ndash grifos nossos) Do mesmo modo Euriacutepides ainda estaacute longe de ser a
uacuteltima etapa desse processo a poesia eacutepica e traacutegica influencia nosso proacuteprio modo de
escrever permanecendo ainda viva na nossa memoacuteria social E assim como a poesia o heroacutei
eacute ele mesmo um todo orgacircnico (LUKAacuteCS 2000 p 66) no que diz respeito ao seu coacutedigo de
conduta mas particularizado como indiviacuteduo pois um heroacutei nunca eacute igual a outro heroacutei
Desse modo a representaccedilatildeo de Paacuteris natildeo eacute em hipoacutetese alguma a representaccedilatildeo de
um anti-heroacutei Primeiramente porque eacute anacrocircnico denomina-lo desse modo Massaud
Moiseacutes nos mostra em seu Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios que a ideia de anti-heroacutei eacute
intriacutenseca ao romance do seacuteculo XVIII Para ele ldquoo anti-heroacutei natildeo se define como a
personagem que carrega defeitos ou taras ou comete delitos e crimes mas a que possui
debilidade ou indiferenciaccedilatildeo de caraacuteter a ponto de assemelhar-se a toda genterdquo (MOISEacuteS
1999 p 29) Aleacutem disso ldquoo heroacutei eleva e amplifica as accedilotildees que pratica o anti-heroacutei as
minimiza ou rebaixardquo (MOISEacuteS 1999 p 29)
Os heroacuteis de Homero e de Euriacutepides natildeo satildeo comuns a todas as pessoas eles
representam um passado miacutetico anterior agravequeles que ouvem as epopeias e assistem agraves
representaccedilotildees teatrais Satildeo ldquoimagens limitesrdquo (ROMILLY 2013 p 31) que representam o
extremo das accedilotildees e emoccedilotildees visto que satildeo paidecircuticos O heroacutei como vimos eacute um
hemitheoacutes algueacutem acima do homem comum e inferior aos deuses pois eacute mortal como noacutes
como o puacuteblico dos poetas possuindo atitudes semelhantes (visto que satildeo humanos tambeacutem)
mas definitivamente com um estatuto diferenciado dos brotoiacute comuns Paacuteris na trageacutedia
quando personagem ainda exerce esse papel ele natildeo se torna ldquomenos heroacuteirdquo por ser um
99
douacutelos um boukoacutelos visto que essas histoacuterias acerca de Troia pertencem tambeacutem agrave mitologia
grega e a ambientaccedilatildeo em Troia tambeacutem eacute uma estrateacutegia para provocar catarse as viacutetimas da
Guerra de Troia estatildeo sendo sempre comparadas agraves viacutetimas da proacutepria Guerra do Peloponeso
Edith Hall mostra como mesmo esses displacement plots (roteiros de deslocamento)
servem para legitimar a identidade helecircnica definindo suas fronteiras eacutetnicas
Mesmo com a pluralidade eacutetnica da trageacutedia e o seu interesse em heroacuteis e comunidades espalhadas por distacircncias vastas pelo mundo conhecido o foco ateniense o ldquoatenocentrismordquo da trageacutedia eacute manifestado de muitos jeitos [] mesmo peccedilas com nenhum foco oacutebvio em Atenas incluem frequentemente um aition [sic] uma explicaccedilatildeo pelo mito das origens dos costumes atenienses [] os tragedioacutegrafos usavam comunidades outras sem ser Atenas como lugares para autodefiniccedilatildeo eacutetnica o mundo baacuterbaro frequentemente funciona na imaginaccedilatildeo traacutegica como o lar dos viacutecios (por exemplo o despotismo persa a falta de lei dos traacutecios a efeminaccedilatildeo e a covardice orientais) concebidas como correlativos agraves virtudes democraacuteticas atenienses idealizadas liberdade de fala equanimidade diante da lei e coragem masculina (HALL 1997 p 100)
O baacuterbaro eacute a mateacuteria-prima sobre a qual os gregos definem suas fronteiras eacutetnicas eacute
observando-o que eles constroem a si mesmos Claude Mosseacute corrobora esse aspecto ao
afirmar que ldquoessa alteridade do baacuterbaro entretanto natildeo eacute necessariamente negativa eacute apenas
o avesso da civilizaccedilatildeo encarnada pelo gregordquo (MOSSEacute 2004 p 55) Entretanto esse
processo de classificaccedilatildeo natildeo eacute exclusivo ao seacuteculo V aC jaacute em Homero podemos ver um
esforccedilo de definiccedilatildeo dessas fronteiras quando o poeta caracteriza os troianos (sobretudo
Paacuteris) para desenvolver uma caracterizaccedilatildeo que implica numa diferenciaccedilatildeo pautada ao
mesmo tempo na valorizaccedilatildeo do inimigo o qual natildeo pode ser inferior a fim de enaltecer a
vitoacuteria e na marcaccedilatildeo de alteridades em relaccedilatildeo a ele
100
CONCLUSAtildeO
ldquoSe partires um dia rumo a Iacutetaca faz votos de que o caminho seja longo repleto de aventuras repleto de saberrdquo
(Iacutetaca ndash Konstantinos Kavaacutefis)50
Em virtude do apresentado pudemos compreender que a anaacutelise da Iliacuteada da
Odisseia e das trageacutedias do ciclo troiano de Euriacutepides vai aleacutem da simples tentativa de
comprovaccedilatildeo de feitos heroicos da existecircncia de uma guerra da existecircncia do proacuteprio aedo e
da correlaccedilatildeo simplista com eventos da ldquorealidade histoacutericardquo Eacute mais profiacutecuo buscar a
compreensatildeo das estruturas poliacuteticas econocircmicas sociais culturais religiosas e institucionais
da eacutepoca em que os poemas foram compostos traccedilando como os gregos conseguiram
construir e consolidar suas fronteiras eacutetnicas de forma dinacircmica
Aleacutem disso a rememoraccedilatildeo dos heroacuteis e de suas faccedilanhas eacute importante para a
configuraccedilatildeo de todo um coacutedigo de conduta helecircnico corroborando a ideia de uma funccedilatildeo
paidecircutica das obras homeacutericas e traacutegicas No tocante agrave historicidade desses heroacuteis ela estaacute
ligada por um lado ao papel que suas personalidades desempenham na vida do puacuteblico 50 Traduccedilatildeo de Joseacute Paulo Paes Disponiacutevel em httpwwworg2combrkavafishtm
101
helecircnico ndash que os rememoram e os cultuam ndash e por outro agrave ligaccedilatildeo inextricaacutevel entre o autor
que compocircs os textos e o seu contexto histoacuterico fazendo com que a trama e os heroacuteis sejam
constituiacutedos com base na proacutepria sociedade na qual eles vivem e conhecem
Lembremo-nos de que a Iliacuteada por ter sido composta posteriormente diz respeito
mais as caracteriacutesticas deste periacuteodo do que do periacuteodo no qual se travou a guerra de Troia a
eacutepoca palaciana No contexto da poacutelis as caracteriacutesticas caras agrave personalidade de Paacuteris natildeo
seratildeo preteridas na paideiacutea Pelo contraacuterio Aristoacuteteles no seacuteculo IV dedica um espaccedilo em
sua Poliacutetica a consideraccedilotildees sobre o ensino da muacutesica e da ginaacutestica a qual objetiva dentre
outras coisas a manter o equiliacutebrio fiacutesico do cidadatildeo
No tocante ao nosso objeto principal Paacuteris concluiacutemos que ele como personagem da
Iliacuteada desempenha um modelo de como agir para os ouvintes da epopeia Isso se daacute porque
ele demonstra atitudes condizentes com a de um heroacutei ou seja o protagonista desses poemas
de exaltaccedilatildeo das faccedilanhas desses seres extraordinaacuterios que viveram numa eacutepoca precedente agrave
eacutepoca dos simples humanos que vivem agrave sombra desse passado glorioso
Devemos ter em mente que Paacuteris mesmo natildeo demonstrando muita destreza na guerra
natildeo deixa de ser um heroacutei ele possui essas caracteriacutesticas intriacutensecas a eles Heitor ao mesmo
tempo que o chama de covarde no Canto III iraacute reconhecer que ele possui coragem no Canto
VI como jaacute vimos em uma citaccedilatildeo anterior Quando Paacuteris comete um ato indecoroso procura
corrigi-lo a fim de reaver a sua honra assim acontece quando ele retorna para combater com
Menelau e retorna agrave guerra no Canto VI Paacuteris tambeacutem tem a sua bela morte seja falecendo
no campo de batalha seja matando
A Iliacuteada como influenciadora do discurso traacutegico mostra um heroacutei humano e
portanto em sua singularidade e em sua relaccedilatildeo com a sociedade na qual ele estaacute inserido
Essa sociedade o reconhece como um aacuteristos um melhor aquele que deve liderar contudo
para isso ele deve demonstrar pelas suas atitudes que eacute digno de seu posto deve zelar para
que sua timḗ sua honra natildeo seja manchada atraveacutes de accedilotildees que ponham em xeque sua aretḗ
sua virtude causando a neacutemesis da sociedade e seu proacuteprio aidṓs
Um heroacutei pode fraquejar tremer sentir medo mas este natildeo deve sobrepujar o iacutempeto
de ficar e lutar Quando ocorre a fuga o retrocesso este deve ser corrigido a fim de que se
restaure a timḗ e de que aquele que fugiu natildeo seja alvo da neacutemesis dos seus iacutesoi Eacute isso o que
acontece com Paacuteris que eacute muito mais do que uma simples ldquocontradiccedilatildeo da epopeiardquo ora ele
se mostra corajoso ora ele se mostra temente pois eacute a representaccedilatildeo de um ser humano Ele
102
recua e retorna agrave batalha configurando-se num exemplo de como se agir mas de fato ele eacute
representado de uma maneira diferente e singular pelo poeta
Isso se daacute devido agrave problemaacutetica da alteridade da qual tratamos no capiacutetulo sobre
Homero Paacuteris seraacute representado como um modelo de conduta mas tambeacutem como um
estereoacutetipo do Outro Inuacutemeros heroacuteis aqueus poderiam servir para expressar esse movimento
de fugaretorno mas um heroacutei troiano eacute escolhido Aliaacutes a maioria dos heroacuteis que fogem na
Iliacuteada eacute troiana O caso de Paacuteris se configura num problema de alteridade interna tanto por
ele ser o inimigo na guerra (o troiano) quanto por ser o transgressor de normas inclusive
universais (no caso a xeacutenia ou seja a hospitalidade)
Este modo de caracterizar Paacuteris ao longo do tempo vai cada vez mais sobrepujar-se agrave
sua representaccedilatildeo como um kalograves kagathoacutes helecircnico e gradativamente esse personagem
deixaraacute de ser o theoeidḗs para ser o baacuterbaros sobretudo na trageacutedia Mas essa questatildeo natildeo
diz mais respeito ao nosso trabalho aqui desenvolvido em torno da Iliacuteada um poema
composto cerca de trecircs seacuteculos antes desse gecircnero teatral ser cristalizado culturalmente nas
poacuteleis Em Euriacutepides o heroacutei natildeo perde uma dimensatildeo paidecircutica mas estaacute mais ligado agrave
ideia do erro o heroacutei erra e aprendemos com esses erros Paacuteris natildeo deixa de ser um heroacutei pois
pertence agrave tradiccedilatildeo miacutetica mas se torna na trageacutedia de uma vez por todas o baacuterbaro
Tivemos por objetivo com essa dissertaccedilatildeo analisar a representaccedilatildeo de Paacuteris na eacutepica
homeacuterica e nas trageacutedias de Euriacutepides perscrutando as mudanccedilas sociais e culturais que estatildeo
presentes nos textos literaacuterios Defendemos que a Iliacuteada jaacute traz a ideia de
identidadealteridade helecircnica mostrando um discurso eacutetnico que legitima a centralidade
aqueia em detrimento da troiana e como essa diferenciaccedilatildeo influencia na construccedilatildeo do
baacuterbaro na poesia traacutegica Tambeacutem mostramos como a epopeia e a trageacutedia pertencem a um
mesmo espaccedilo discursivo tornando profiacutecua a nossa anaacutelise e utilizando a Anaacutelise de
Discurso francesa para tal
Acreditamos que essa diferenciaccedilatildeo entre gregos e troianos em Homero natildeo diz
respeito a uma diferenciaccedilatildeo entre o grego e o baacuterbaro ou entre o grego e o estrangeiro mas
entre dois grupos eacutetnicos um que estaacute no Peloponeso e outro que se encontra na Aacutesia Menor
reapropriando o coacutedigo de conduta grego e estabelecendo contatos com culturas natildeo-
helecircnicas Mas historicamente satildeo os troianos gregos
Natildeo podemos afirmar com certeza absoluta Primeiramente porque as datas satildeo
fluidas convenciona-se atraveacutes de estudos arqueoloacutegicos e filoloacutegicos que Homero compotildee
no seacuteculo VIII aC Convenciona-se que a Guerra de Troia aconteceu no seacuteculo XIII aC
103
Aleacutem disso lidamos com um problema caro agrave Histoacuteria Antiga documentaccedilatildeo Ela eacute escassa e
nas escavaccedilotildees poucos materiais escritos foram encontrados Achou-se um selo com
hieroacuteglifos luvitas no siacutetio arqueoloacutegico de Hissarlik (antiga Troia hoje na Turquia) o qual
data provavelmente do segundo milecircnio antes de Cristo entretanto como podemos ter certeza
de que ele foi produzido laacute Sendo um noacute comercial importante vizinha do Helesponto o que
garante que aquele selo natildeo foi parar em Troia atraveacutes de comerciantes
Segundo o hititologista holandecircs Alwin Kloekhorst a hipoacutetese luvita (que se destacou
em 1995) vem sendo bastante questionada e ele defende que eacute mais provaacutevel que a liacutengua
falada em Troia nessa eacutepoca fosse o lecircmnio oriundo da regiatildeo de Lemnos e que deu origem
ao etrusco Ele tambeacutem mostra que Troia na eacutepoca da guerra provavelmente natildeo era grega
Trūiša (uma regiatildeo de Wilǔsa que seria Troia) estava sob domiacutenio hitita embora haja
evidecircncias de embates entre os ahhiyawa (aqueus) e esse povo pelo domiacutenio da regiatildeo na
eacutepoca Contudo a partir do seacuteculo VIII aC (quando Homero compotildee seus poemas e os
gregos entram em processo de ldquocolonizaccedilatildeordquo) provavelmente havia ldquoGreek-speakersrdquo na
regiatildeo onde fora Troia (KLOEKHORST 2013 p 48) Ela era parte das apoikiacuteai (ldquocolocircniasrdquo
gregas)51 O historiador americano Barry Strauss corrobora a ideia de Kloekhorst afirmando
que Troia era uma cidade grega desde 750 aC quando foi povoada por colonos gregos e
assim se manteve durante toda a Antiguidade (STRAUSS 2008 p 28)
Desse modo o mundo das apoikiacuteai seria diretamente influenciado pela cultura e liacutengua
gregas Vlassopoulos coloca que essas ldquocolocircniasrdquo eram loci privilegiados tanto de trocas
culturais entre gregos e outros povos bem como paradoxalmente ajudaram a consolidar um
modelo forte do que eacute ser grego
o processo de criar apoikiacuteai fizeram o modelo de uma comunidade grega se tornar abstrato e canocircnico uma comunidade com um corpo de cidadatildeos divididos entre tribos governado por magistrados conselhos e assembleia equipado com um tipo particular de espaccedilo puacuteblico (agoraacute) e adornado com um tipo particular de templo e edifiacutecio puacuteblico (teatro casa concelhia ginaacutesio) (VLASSOPOULOS 2013 p 277)
Os troianos satildeo um grupo eacutetnico dentro da comunidade helecircnica no discurso de Homero
tendo em Paacuteris a siacutentese de alteridade visto que ele desrespeita coacutedigos helecircnicos Muitas das
caracteriacutesticas desse personagem satildeo reapropriados por Euriacutepides para caracterizar o baacuterbaro
(inclusive ele mesmo que jaacute seraacute denominado baacuterbaros em suas trageacutedias) Dentre esses
51 Kostas Vlassopoulos explica que natildeo eacute apropriado atribuir o conceito de ldquocolocircniardquo aos movimentos expansionistas gregos do seacuteculo VIII pois a ldquocolonizaccedilatildeordquo grega eacute completamente diferente da colonizaccedilatildeo moderna (2013 p 103)
104
pontos de diferenciaccedilatildeo estatildeo a predominacircncia do arco como arma de guerra a capacidade de
se submeter o exeacutercito inimigo (como pudemos ver com a anaacutelise dos siacutemiles de animais mas
sem deixar de valorizar esse inimigo para a vitoacuteria ser gloriosa) o excesso de ouro a
expressatildeo verbo-corporal (discurso defensivo e dissuasivo o esconder-se o jactar-se) as
vestimentas o excesso de medo a lida com as artes musicais a luxuacuteria a efeminaccedilatildeo (do
aliado caacuterio) a suacuteplica pela vida e a procrastinaccedilatildeo para entrar em batalha
Euriacutepides por sua vez explora ao maacuteximo esses elementos e os troianos jaacute se encontram
completamente frigianizados ligados agrave Aacutesia e sendo mostrado como baacuterbaros Os gregos que
agem como baacuterbaros satildeo comparados aos troianos bem como eles estatildeo sempre sendo
designados desse modo Assim tambeacutem a proacutepria fronteira do que eacute baacuterbaro e do que eacute grego
encontra-se cada vez mais turva haacute uma crise nessa definiccedilatildeo e o grego em Euriacutepides pode
barbarizar-se facilmente visto que estaacute em meio a uma guerra
A produccedilatildeo historiograacutefica acerca da etnicidade helecircnica tem sido cada vez mais
comum e esperamos que nossa pesquisa contribua para essa discussatildeo Esperamos ademais
que ela contribua para as anaacutelises acerca dos poemas homeacutericos e das trageacutedias de Euriacutepides
que tecircm sido cada vez menos comuns Com essa dissertaccedilatildeo objetivamos tambeacutem fomentar
o interesse pelo tema e novas pesquisas acerca dessa temaacutetica Cremos ser muito importante o
estudo da literatura grega porque ela foi o norte da sociedade helecircnica e reverbera ateacute os dias
de hoje seja em produccedilotildees fiacutelmicas ou na literatura
A funcionalidade paidecircutica dos textos que estudamos contribui para tal movimento
bem como a proacutepria importacircncia desse legado cultural oriundo dos gregos o qual tambeacutem se
faz sentir ateacute hoje no modo de pensar de construir de escrever Pudemos ver com a anaacutelise
de Paacuteris como o autor da Iliacuteada trabalha com a ideia do heroacutei e como atraveacutes de sua
representaccedilatildeo ele define as fronteiras eacutetnicas que perpassam essa paideiacutea a qual estaacute presente
tambeacutem nas trageacutedias de Euriacutepides que corroboram e reapropriam esses elementos de
diferenciaccedilatildeo atraveacutes da construccedilatildeo dos personagens sobretudo de Paacuteris o baacuterbaro
Outrora a Greacutecia possuiacutea uma grande extensatildeo territorial e sua importacircncia poliacutetica
econocircmica e cultural era grosso modo e com fins assimilativos tatildeo grande quanto a da
Inglaterra a partir da Primeira Revoluccedilatildeo Industrial e a dos Estados Unidos depois da Segunda
Guerra Mundial Hoje o pequeno paiacutes europeu que aparece nos jornais diariamente devido a
um periacuteodo de crise e necessidade ainda exerce uma influecircncia muito grande no que diz
respeito a esse legado que permanece de peacute A cultura helecircnica e o estudo acerca desta ainda
natildeo estatildeo em vistas de entrar em crise
105
Anexo | TABELA DE TRANSLITERACcedilAtildeO
LETRA GREGA TRANSLITERACcedilAtildeO
αααα a
ᾳᾳᾳᾳ a
ββββ b
γγγγ g
δδδδ d
εεεε e
ζζζζ z
ηηηη ē
ῆῆῆῆ ecirc
ῃῃῃῃ ē
θθθθ th
106
ιιιι i
κκκκ k
λλλλ l
micromicromicromicro m
νννν n
ξξξξ x
οοοο o
ππππ p
ρρρρ r
ῥῥῥῥ rh
σ ςσ ςσ ςσ ς s
ττττ t
υυυυ y (entre consoantes) u (em ditongos)
φφφφ ph
χχχχ kh
ψψψψ ps
ωωωω ō
ῶῶῶῶ ocirc
ῳῳῳῳ ō
Observaccedilatildeo sobre os espiacuteritos o grego antigo possui uma marcaccedilatildeo especiacutefica denominada espiacuterito Ele vem sobre todas as vogais o rocirc (ρ) inicial e as semivogais dos ditongos que iniciarem a palavra O espiacuterito pode ser fraco ou forte quando ele eacute fraco (rsquo) a vogal se pronuncia normalmente e quando ele eacute forte (lsquo) a vogal eacute pronunciada de modo aspirado como se estivesse sendo acompanhada por um erre (r) O rocirc do iniacutecio das palavras sempre teraacute espiacuterito forte visto que ele jaacute eacute aspirado conforme estaacute na tabela Quando transliteradas as palavras com espiacuterito forte possuem um agaacute (h) na frente Assim por exemplo a palavra
107
οὐρανός (ceacuteu) eacute transliterada como ouranoacutes ἁmicroαρτία (falha) como hamartiacutea ῥῶ (a letra grega ρ) como rhocirc com o agaacute entre o erre e a proacutexima letra
Observaccedilatildeo sobre os conjuntos γγ γκ e γχ quando aparecem essas consoantes juntas o primeiro gama eacute transliterado como ene (n) pois ele se nasaliza Assim por exemplo ἀγγελος (mensageiro) eacute transliterada como aacutengelos ἀναγκαία (necessidade) como anankaiacutea ἐγχανδής (amplo) como enkhandḗs
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