Priscille Sibley - Um Pedido às Estrelas

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Transcript of Priscille Sibley - Um Pedido às Estrelas

  • Para Tim, que me entregou seu coraoe me encorajou a escrever.

    Para Robert, Cole e Ethan, queme ensinaram a importncia de nunca desistir.

  • Meu destino e o significado de minha vida

    sero meu amor total por voc, a procura de suafelicidade, a satisfao de seus desejos.

    Napoleo Bonaparte

  • 1

    O chamado dasala de emergncia

    Bem tarde, naquela que seria nossa ltima noite, admirvamos, hipnotizados mais uma vez, achuva de meteoros Perseidas, que transformavam poeira csmica em luminosidade. Era umaespcie de aniversrio de casamento para ns, um evento de vero que Elle e eu amvamos.Adormecemos na varanda, minha bela esposa com a cabea apoiada em meu brao.

    Se ao menos houvesse ficado em casa pela manh... Se ao menos houvesse olhado paraElle com mais ateno e entendido que nada seria mais importante do que mant-la emsegurana. Se... Jesus...

    J escutara vrias vezes o mantra do se ao menos... vindo de familiares de meus pacientes.Nos onze anos de exerccio da medicina, acostumara-me com a recusa em aceitar umaevidncia, bem como com as tentativas de reverter a tragdia. Mas a realidade era fria, durae, no raro, irreversvel. No ficara em casa, tampouco Elle.

    Examinava uma imagem de ressonncia magntica no consultrio imaginando por quantotempo seria possvel prolongar a vida do paciente se fosse extrado o glioma, um tumor muitoagressivo. Nisso, a recepcionista chamou pelo interfone:

    Chamada do hospital na linha trs. urgente. Obrigado, Tanya. Peguei o telefone, sem desviar os olhos das imagens axiais e sagitais

    do lbulo temporal. Doutor Beaulieu respondi. Ol, Matt. Carl Archer. O mdico da sala de emergncia pigarreou. Voc tem de vir

    para c. Chame o Phil. Ele est de planto. Ele j veio. Preciso que voc venha. ... com sua esposa. A voz de Carl soava

    estridente, como pneus derrapando na estrada. Ela sofreu um acidente.O tom, mais que as palavras, denunciava a gravidade. E as perguntas ficaram entaladas em

    minha garganta. Se Phil fora at l, os ferimentos de Elle seriam de natureza neurolgica enecessitariam de cirurgia? Ou meu parceiro estaria apenas de passagem pela emergncia?Talvez estivesse contando fatos engraados para Elle no intuito de distra-la de algo semimportncia.

    Por favor, Deus, no permita que ela esteja morta, pensei. Elle est bem? foi s o que consegui perguntar.Carl pigarreou de novo. srio. Venha agora. Eu o verei em alguns minutos. Carl desligou.

  • Pulei da cadeira, irrompi pela sala de espera afora, passando por uma mulher em p ao ladodo filho cadeirante, e, sem olhar para ningum, avisei a recepcionista para onde eu iria.Percorri na velocidade mxima as quatro quadras at o hospital e entrei, suando frio, naemergncia. Empurrei as portas duplas e fui direto para o setor de trauma. Meu parceiro PhilGrey estava ao lado de um carrinho hospitalar vermelho equipado com aparelhos paraemergncias, com as gavetas abertas. Usava luvas esterilizadas, bata comprida e mscaracirrgica. Das extremidades da paciente saam fios de todo tipo. Ao soro intravenoso estavamligados vrios saquinhos e bombas. No, por favor. No pode ser Elle. O respiradorautomtico sibilava de modo cadenciado enquanto bombeava oxignio para dentro damangueira ligada ao corpo de minha esposa. A enfermeira afastou-se, e pude ver o rostoextremamente plido de Elle, alm do sangue coagulado nos cabelos loiros. O traado nomonitor cardaco era a nica indicao de que ela ainda estava viva.

    O corpo de Elle encontrava-se rgido e arqueado, os dedos dos ps estirados, e as mos,fechadas. Era o que se chamava de posio descerebrada, um indicativo de que houverasrios danos cerebrais. Ajoelhei-me, entendendo que o crebro fora muito afetado.

    No saberia dizer o que houve em seguida. Talvez algum tenha me ajudado a ficar em p,ou talvez eu tenha cambaleado e me apoiado em algo. Phil mencionou a queda de uma escadae uma convulso na ambulncia. Carl falou em parada respiratria e coma em grau cinco naescala Glasgow. Algo a respeito de ter ficado prostrada por quatro ou cinco minutos. Algosobre as pupilas estarem fixas e dilatadas. Algo sobre as imagens da tomografiacomputadorizada, que indicavam uma cirurgia.

    Toquei a mo retorcida de Elle. Pessoas me olhavam com piedade. Pessoas com quem eutrabalhava, mas que, no momento, no me importava. Tirei uma caneta luminosa do bolso eexaminei as pupilas dela.

    Vamos, Elle, pensei. Reaja. Prove que esse n no meu estmago no tem razo de ser.Prove para eles. Para todos. Prove que esto errados.

    Examinei os olhos verdes de minha esposa que agora encontravam-se escuros. As pupilas semostravam enormes e vtreas.

    Verifiquei os reflexos de Elle. Tudo que encontrei foram evidncias de que o crebro foracomprometido pelo acidente.

    Veja as imagens da tomografia. Os olhos de Phil estavam marejados de lgrimas. Acabei de pass-la para o monitor de PIC. A presso subiu muito. Aplicamos esteroides emanitol. Vou lev-la imediatamente l para baixo e farei todo o possvel para salv-la. DAmatome assistir. A sala de cirurgia est pronta.

    Por uma frao de segundo, pensei em ajud-los. Mas a minha razo falou mais alto. Noteria a menor condio de intervir, tampouco de testemunhar tal cirurgia.

    Phil ergueu a imagem da tomografia, que mostrava a compresso sangunea nos tecidoscerebrais. Apoiei-me na parede. Aquilo no poderia ser real.

    H menos de doze horas, Elle e eu havamos feito amor na varanda acima do telhado. Nacerta eu ainda dormia ali, lutando contra um pesadelo, preocupado que Elle estivesse pertodemais do parapeito. Era preciso acordar. Olhei ao redor e esquadrinhei a sala deemergncia. Vi os traos definidos das feies de Phil, que raciocinava sobre as providnciascirrgicas a serem adotadas. Fitei os eixos nas rodinhas da maca e ento renunciei realidade. Passei a crer em um pesadelo terrvel. Mas os golpes da impotncia que eupretendia negar rufavam como um tambor. Voltei a aterrissar na sala de trauma. Uma

  • enfermeira verificou os frascos que alimentavam o soro de Elle e em seguida levantou osolhos.

    No havia como negar os fatos. Minha esposa, a quem eu amava desde os dezessete anose de quem era amigo h muito mais tempo, cara e fraturara gravemente o crnio. Nemmesmo Phil, o melhor neurocirurgio que eu conhecia, meu amigo e parceiro, seria capaz dereverter o dano causado.

    Por um minuto, fiquei imvel, lembrando-me de como Elle era contra a ideia de sofrer emuma cama at morrer, como ocorrera com sua me. Phil estendeu diante de meu rosto umtermo de consentimento.

    Assine, para que possamos lev-la sala de cirurgia. No preciso explicar os trmites paravoc.

    Deveramos deix-la ir em paz. Virei-me, apressei-me para o banheiro e vomitei oalmoo. Sentia como se tudo o que houvesse comido precisasse se esvair no toalete dohospital. At as entranhas desejavam sair.

    Phil abriu a porta enquanto eu vomitava. Matt, preciso lev-la para baixo. Imediatamente. No temos tempo para besteira. Escute,

    por mais horrvel que possa ser, voc sabe to bem quanto eu que provavelmente ela nosobrevir. Mas voc vai se odiar se no tentarmos salv-la. Ergueu de novo, diante do meurosto, a folha pregada prancheta.

    O que eu prometera a Elle na noite de nosso casamento? Que eu a amaria, honraria erespeitaria. Era preciso respeitar a vontade dela. Com certeza, ela no iria querer isso.Conhecia as probabilidades e as consequncias.

    Agarrei a prancheta e assinei meu consentimento.Phil partiu depressa. Fiquei onde estava, lamentando a traio que porventura cometera. Em

    meu egosmo, eu a queria viva, mesmo sabendo o sofrimento que teria de suportar, pois seucrebro jamais se recuperaria por completo de um trauma to devastador. Esse era oproblema de ser um neurocirurgio. No havia como ter vs esperanas. Nada poderia salvarElle. Ningum poderia fazer milagres. Mas eu precisava de minha esposa. Phil teria deresgat-la da morte, mesmo que parecesse algo impossvel.

    Lavei o rosto e voltei sala de emergncia. A enfermeira levantava o ventilador pulmonarporttil para que pudessem levar Elle sala de cirurgia.

    Posso ficar um minuto a ss com ela? pedi.A moa rodeou o equipamento e tocou meu brao com suavidade. Precisamos lev-la para a cirurgia.Segurei a mo de Elle. O soro com os medicamentos seguia o caminho intravenoso. Curvei-

    me e lhe beijei a face. No pude beijar-lhe a boca, pois o tubo intratraqueal saa de seus lbioscomo uma tromba de elefante.

    Eu te amo, Pip. Sempre te amei. Entenda, no posso viver sem voc. Por favor, volte paramim.

    Uma tcnica em respirao e duas enfermeiras entraram na sala. Destravaram as rodinhasda maca e empurraram Elle com o equipamento, um verdadeiro trambolho, que a mantinhaviva.

    Eu as segui at o elevador e fiquei andando em crculos. Era preciso comunicar a famlia.No tinha ideia de como dar a notcia a meu sogro e minha me. Tirei o celular do bolso e vique havia uma mensagem de voz de Elle. Segurei o aparelho junto orelha.

  • Ol, sou eu sussurrou ela. O que acha de um programa para hoje noite? Talvezpossamos passear na praia. Embora a gente tenha feito as pazes depois, sinto muito portermos discutido ontem. Seria gostoso passar um tempo juntos, conversando de mos dadase... eu te amo muito. Houve uma pausa que me fez imaginar seu lindo sorriso. Ligue assimque receber esta mensagem, e faremos planos para mais tarde, certo? Mal posso esperarpara te ver. Beijos.

    No conseguia respirar. Elle... Jesus! Ela voltaria a ser o que era. Phil reverteria o quadro, eos danos no seriam to graves como mostravam as imagens da tomografia. Passei amurmurar sons incoerentes. Elle sempre fora surpreendente. Se algum tinha capacidade parase reabilitar de um trauma cerebral, esse algum era ela. Eu a ajudaria. Elle era resiliente.Continuei segurando o celular para ouvir mais uma vez a sua voz doce enquanto seguia aspessoas que retornavam sala de emergncia. Ao me aproximar, notei o olhar grave de Carl.Minha inteno era ver de novo as imagens da tomografia. Talvez a situao no fosse tosria.

    Por favor, diga-me que no to grave como imagino, implorei em silncio. No... no entendi bem o que voc disse antes. Creio que estava em estado de choque.

    Como foi que tudo aconteceu? perguntei.Carl esfregou a testa. Conforme relato da equipe de resgate, Elle estava na casa do irmo. Por falar nisso, ele

    est a na sala de espera. Elle deve ter batido a cabea em uma pedra depois de cair de umaescada de trs metros. Seu cunhado com certeza poder dar mais detalhes. No caminho,durante uns dez minutos, ela sofreu convulses e parada respiratria enquanto era trazida parao hospital. Eles a mantiveram aquecida. Tivemos dificuldade para entub-la. Ela teve umaparada cardaca que foi revertida com rapidez.

    H quanto tempo ela estava aqui quando voc me avisou? Uns vinte minutos. Estvamos muito ocupados tentando salv-la.Engoli em seco e procurei ordenar os pensamentos. As palavras de Carl no eram

    encorajadoras, e a minha miragem de esperana se evaporou. Onde est o resultado da tomografia? Phil levou para a sala de cirurgia.Claro. No conseguia mais raciocinar direito. Preciso falar com o irmo de Elle afirmei.Virei-me na direo da sala de espera. O chefe executivo do hospital aproximou-se e

    estendeu a mo. Doutor Beaulieu, soube que sua esposa est na sala de cirurgia e espero que d tudo

    certo. Ele hesitou um pouco. No sei se o doutor est em condies, mas a imprensa queruma declarao.

    Imprensa? O acidente est no rdio da polcia Carl interveio. uma notcia e tanto Elle McClure

    ter sido levada s pressas para o hospital. Ela uma celebridade por aqui. O Maine comouma cidade pequena. Eles a associam Nasa.

    Depois de alguns segundos, me dei conta de que Carl se referia ao projeto do nibusespacial. Elle era astrofsica e agora professora universitria. Mas h quatro anos estivera noespao em misso da Nasa, o que atrara sobre ela a ateno mundial.

    Carl tamborilou os dedos no estetoscpio e anuiu para o chefe executivo.

  • Escute, Matt, no podemos dar detalhes, por causa das leis de privacidade, mas, quandoestiver em condies de falar...

    Agora no posso. Perdo.Precisava encontrar o irmo de Elle. Fui at a sala de espera, um quadrado de seis metros

    de cada lado com bancos de plstico e um quadro de avisos na parede. Christopher estava decostas e parecia examinar os itens de uma mquina automtica de vendas. Toquei em seuombro e ele se virou.

    Matt, at que enfim! Christopher alternava o olhar entre mim e a porta dupla que davapara a sala de emergncia. Ningum me diz qual o estado de Elle...

    Como tudo aconteceu? respondi com uma pergunta. Ela est bem? No, para ser sincero. Mas que droga ela estava fazendo em uma escada?Christopher ficou em silncio, boquiaberto por alguns instantes. Elle chegou quando eu e Arianne lavvamos as janelas. O beb comeou a chorar de fome,

    e Arianne entrou para amament-lo. Elle se prontificou a ajudar e tomou o lugar de Ari naescada. Eu entrei para lavar o mesmo vidro por dentro, para no ficar manchado. Nisso, Elledesmaiou. Mas ela vai ficar boa, no vai?

    Desmaiou? A palavra encontrou registro no recndito de minha mente. No podia respondercom voz trmula, por isso fixei o olhar no letreiro Triagem pregado sobre a porta. No podiaencarar Christopher, tampouco olhar a tomografia de novo. Elle sofrera uma parada cardaca.Dada sua aparncia e postura, o crebro fora muito afetado. Tive de admitir o incomensurvelpara Chris e para mim mesmo:

    No creio que Elle v se recuperar totalmente. Era como se a temperatura da salahouvesse cado abaixo de zero. Onde est seu pai?

    O que quer dizer? indagou Christopher. Houve um ferimento grave na cabea. Muito grave. Onde est seu pai? repeti. Ele j

    sabe que Elle se machucou?Christopher sacudiu a cabea negativamente. Elle nem caiu to longe. Sei que houve um corte na cabea, mas voc neurocirurgio e

    tem condies de faz-la ficar boa, no tem? Voc a viu? Falou com ela? Elle no est consciente. Procurei no demonstrar meu desespero. Eu a vi e... Phil a

    levou para o centro cirrgico. Ligue para seu pai e pea que venha para c. Pisquei algumasvezes. Chris... provvel que ela no resista ao procedimento.

    O qu?! O caso serissimo. Virei-me e parti.Talvez no fosse justo deix-lo sozinho com o prognstico, mas eu tinha outra misso. Falar

    com minha me. Isso a mataria. Ou a mim.Minha me era enfermeira especializada em obstetrcia e exercia a profisso havia quase

    quarenta anos. No sabia se ela estava de planto naquele dia. Entrei no elevador rumo maternidade do hospital, acenei para o segurana e depois me dirigi ao posto de enfermagem.Duas moas me reconheceram, cumprimentaram-me sorrindo e uma delas falou:

    Ol, Matt. Linney est no intervalo. Deve estar na sala de descanso.Virei-me e passei com pressa por uma mulher em trabalho de parto que andava pelo

    corredor com um suporte para o soro. Ela se deteve, na certa por causa de uma contrao.Abri a porta da sala de descanso das enfermeiras, que riam alto. Minha me estava sentada

  • junto a uma mesa, segurando uma caneca de caf. O que houve? perguntou assim que me viu. Elle sofreu uma queda.Mal acabei de falar, j me achava soluando nos braos fortes de minha me. Com trinta e

    sete anos, mais parecia um recm-nascido soltando os primeiros berros de vida. A no serpelo fato de que, nesse caso, era mais um grito de morte.

  • 2

    A cirurgia

    Andei pelos corredores do hospital como o Pac-Man dos jogos eletrnicos. Vasculhava todosos caminhos como se fossem cibernticos, calculava ladrilhos, percorria cantos e ento,voltava quando dava com a cara na parede.

    Minha me, que me acompanhava, fazia perguntas sem sentido: Por que Elle desmaiou? Ela estava doente?Nada importava, a no ser o resultado da queda. Duvido que Elle tenha desmaiado. Christopher deveria ter segurado a escada. Em vez

    disso, foi dar uma descansadinha. Matt! Que absurdo! A senhora sabe como ele . Com vinte e oito anos, ainda pede a Elle que lave as janelas

    dele porque tem medo de subir naquela maldita escada. Alm disso, a senhora tambm noporia a mo no fogo por ele no quesito ajudar a irm, no ?

    Minha me agarrou meu brao. Voc est transtornado e precisa descontar em algum.Eu me desvencilhei dela e me dirigi para o corredor seguinte. A nica vez que Elle desmaiou foi quando nosso Dylan morreu, e ela teve hemorragia. At

    mesmo para um mdico como eu, fora estarrecedor comprovar que uma mulher pode perdertanto sangue em um parto quando as coisas do errado. E deram muito errado. Elle nodesmaiou.

    Minha me se deteve. H tempos ela tambm passou mal, na entrada da casa do pai.Detive-me de sbito e encarei minha me. Quando foi isso? Antes de um dos abortos. Elle estava grvida e me fez jurar que no diria nada. No queria

    preocupar voc. Ela no estava grvida, estava?Hesitei antes de responder. No. No estava.Considerei como faria para aceitar aquela situao, e por alguns instantes meu corao

    disparou de novo diante da ideia de ter um filho e constituir uma famlia. Ora, Elle no estavagrvida. Eu no permitiria que se arriscasse depois da ltima vez. E, justamente na vspera,havamos discutido sobre o caso.

    Afastei a ideia com uma nica slaba. No.Era brusco nas negativas. Lembrei-me de Elle em p no terrao superior de casa. Os raios

  • solares refletidos no rio iluminavam sua silhueta como um halo, deixando os cabelos loirosainda mais claros, fazendo-a parecer uma menina. Com o passar do tempo, os cabelosescureceram, ganhando um tom de mel, porm os olhos verdes continuavam com o mesmomatiz. Clidos e sensuais, ou paralisantes de raiva. E Elle estava com raiva.

    Encostado no batente da porta do sto, observava minha esposa, as curvas do peito do pe da panturrilha, a maneira como movimentava os quadris ao se aproximar de mim, a cinturafina. Elle no parecia muito diferente do que fora quando jovem, determinada e certa dasprprias convices.

    No devemos deixar as oportunidades passarem, seno acabaremos perdendo o nimopara sempre. Ela suspirou e tocou meu rosto com os dedos. Sinto muito. Sei que perder obeb foi um choque para voc, e nos deixou arrasados. Mas deveramos tentar mais uma vez.Matt, estou com trinta e quatro anos, no posso esperar para sempre. Quero fazer uma ltimatentativa.

    H menos de vinte e quatro horas, Elle pretendia tentar. E no haveria mais tempo para isso.Tudo estava perdido agora. Elle e eu tambm.

    Trouxeram Elle da sala de cirurgia e, pela expresso de Phil na antessala da UTI, imaginei oque me diria.

    Matt meu amigo conservava os dedos cruzados como se me pedisse perdo , no pudefazer muita coisa. Elle estava com sangramento subaracnideo e com a membranadestroada. Phil se deteve e inspirou fundo. Um caos. Por causa do edema, a base docrebro poderia ter formado uma hrnia. Por isso abri parte do crnio, estanquei a hemorragiae eliminei os hematomas visveis, mas toda regio entre os lbulos frontais e parietais foiatingida... Ele continuou com a descrio dos detalhes.

    No respondi. No consegui articular as palavras. Depois que o efeito da anestesia passar, deveremos investigar a mo... morte ce... cerebral

    ele gaguejou antes de continuar. Ne... nem posso acreditar no que vou lhe perguntar.Voc... bem, ela gostaria de doar os rgos?

    Concordei. Elle deixara a permisso escrita junto carteira de motorista; contudo, ocorreu-me que seus problemas autoimunes poderiam desqualific-la como doadora.

    Eu me adiantei e entrei em contato com o banco de rgos disse ele.Procurando manter as aparncias, abri a porta da antessala com um gesto decidido. Tinha

    de ver Elle. Apesar de compreender o estado crtico da situao, no se tratava de umapaciente qualquer. No era possvel enxergar os danos traumticos como mais um casoclnico. Phil descrevera os detalhes macabros, mas foram apenas palavras. E eu, que jdissera a mesma coisa aos familiares de inmeras vtimas mais vezes do que gostaria de melembrar...

    Sentia-me vazio, como um daqueles buracos negros que Elle passava tanto tempoestudando.

    Passara. De maneira pragmtica, sua existncia cessara. A prova: o relato de Phil sobre acirurgia, a tomografia e o corpo flcido de minha esposa estendido na cama da UTI diante demim. Da entrada, observei as enfermeiras, que ajustavam as telas dos monitores, arrumavamos soros intravenosos com a medicao e limpavam o antissptico da cabea raspada.

    Tomei flego e me preparei para o inevitvel. No h teste definitivo para a morte cerebral.

  • So usados a ultrassonografia com Doppler, reflexos crneos, testes de apneia, uma sriecriteriosa de respostas fsicas ou a ausncia delas. Fiquei ali, cambaleando um pouco, quasesem respirar. Precisava de tempo antes de aceitar a realidade. No havia outros traumassignificativos. Por que ela no quebrara um brao ou uma perna? A coluna ou o pescoo? Porque tivera de bater a cabea naquela pedra?

    Assustei-me com a mo de Phil em meu ombro. Quer que eu fale com sua famlia? No, obrigado. Falarei com todos em um minuto.Qual a diferena entre um minuto e um ano? Pelo menos por enquanto, a esperana deles

    continuava. E terminaria em definitivo assim que ouvissem o relatrio de Phil. Aproximei-me dacama e segurei a mo de Elle. Fria. No haviam tirado a aliana na sala de cirurgia. Pelomenos uma parte de mim a acompanhara enquanto Phil a operava.

    Com licena pediu uma das enfermeiras. Tenho de verificar as agulhas.Recuei para o canto onde havia uma pia. Tirei minha aliana e li a inscrio. Meu amor,

    minha vida, Pip. Recoloquei-a no anular e, a passos trpegos, segui pelo corredor rumo salade espera da UTI.

    Hesitei alguns instantes antes de entrar. Nossas famlias estavam l. Ou melhor, nossafamlia. O plural convertera-se em singular quando Elle e eu nos casamos. No havia muitadiferena entre os Beaulieu e os McClure. Elle e eu havamos sido vizinhos de infncia ecrescido em residncias de estilo vitoriano. As duas cozinhas serviam de passagem de umacasa para outra. Em qualquer uma, sentamo-nos no prprio lar.

    E naquele momento nossa famlia estava sentada na sala de espera da UTI. Hank, pai deElle. O irmo, Christopher, e a esposa dele, Arianne. E minha me. Teria de dizer a todos quea havamos perdido. Os rostos convergiram para mim, parado entrada. Hank levou o punho boca. Christopher deu um salto. Minha me no completou o suspiro hesitante; curvou-se paraa frente, abraou os joelhos e chorou em silncio. Ela sempre amara Elle. Sentei-me ao ladodela e lhe afaguei as costas. Emocionalmente, encontrava-me em uma cmara de perdasensorial ou em um tnel escuro, onde certamente no haveria mais luz.

    As palavras saram aos poucos, devagar a princpio, mecnicas, ensaiadas, como se Ellefosse uma estranha.

    Elle sofreu um trauma cerebral grave e irreparvel. O centro de conscincia foi afetado eElle no vai acordar. E... tempos atrs, ela autorizou a doao dos rgos. Observei asexpresses que lutavam contra a realidade da notcia. Depois que passar o efeito daanestesia, dois mdicos determinaro se Elle preenche os critrios de morte cerebral. Se osproblemas autoimunes no a desqualificarem como doadora, sua vontade poder ser feita. Aequipe de doao deve chegar nas prximas vinte e quatro horas.

    No pode ser. Tem de haver algum engano. Christopher sacudiu a cabea e soltou umgemido.

    Meu sogro me encarou com descrdito. Voc no vai fazer nada para salv-la? Ningum pode fazer nada. Estremeci em meu ntimo diante de minha prpria impotncia. Pessoas costumam sair do coma assegurou Hank, to enftico que a frase quase soou

    como verdadeira. O dela no exatamente um coma. Comas geralmente se originam de ferimentos mais

    localizados. No que os outros no sejam srios, mas Elle teve ferimentos cerebrais

  • generalizados. Tive de segurar a mo de minha me para continuar. H traumas profundosem quase toda a massa enceflica, e ela jamais aceitaria uma vida vegetativa.

    Est pensando em desistir? Hank socou o brao da poltrona. Essa boa! Eu nopermito!

    Fixei o olhar num dos cantos do teto. No se trata de desistir. E tambm no algo que possamos ou no permitir. Gostaria que

    pudssemos. Vou voltar para o lado dela. Se algum quiser vir... para se despedir... Bem,esperem meia hora para as enfermeiras terminarem de arrum-la.

    Oh, meu Deus... Christopher tremia como se estivesse a ponto de ter um colapso, e aesposa o abraou.

    Hank se levantou de supeto e bloqueou a sada por onde eu pretendia passar. Voc no vai deixar minha filha morrer! Vou conseguir uma ordem judicial para impedi-lo!Tentei passar, mas Hank me empurrou contra a parede. Seu hlito recendia a usque. Como

    ele conseguira bebida no hospital? E mais: quando voltara a beber? Pelo que me constava,Hank se mantivera sbrio durante os ltimos vinte anos. Ah, j no importava. No sabiaquando o vcio recomeara, e o fato no me interessava nem um pouco.

    Segurei-lhe os pulsos e os afastei dos meus ombros. No estou deixando nada. Se puder fazer qualquer coisa, eu farei. Eu a amo, mas, no

    segundo em que ela caiu, j era tarde. Elle no gostaria de morrer como a me dela, e osenhor sabe muito bem disso.

    Minha me interps-se entre ns como um juiz em uma luta de boxe. Sente-se, Hank. Matt est certo. Depois da morte de Alice, Elle, quando completou dezoito

    anos, deixou ordens expressas por escrito em testamento vital.Minha me tinha raciocnio rpido e aquilo soava lgico, mas ela mentia. Elle dizia para todos

    que o pai no se dedicara esposa durante a doena que a levou, mas teria me informado sehouvesse deixado por escrito um ltimo desejo. No entanto, no pude deixar de agradecer pronta interveno de minha me.

    Voc bebeu? Minha me franziu o nariz, sem esconder a frustrao.Hank sacudiu a cabea. S um pouco.Difcil dizer se a expresso de minha me era de pena ou dio. Ela se afastou. Pai! Christopher assustou-se. O que est fazendo? Telefone para o seu padrinho.

    Vamos marcar uma reunio com ele.Por um segundo, vi o olhar de Elle no rosto de Christopher, a maneira como ela sempre

    tentava manter o pai sob controle. A iluso se desfez logo. Hank pegou o palet com ummovimento brusco, passou pelo filho e foi embora. Christopher recuou e tornou-se de novo umhomem-criana sentado prximo esposa. Imaginei como ele sobreviveria sem a proteo deElle. Ou como eu faria para continuar vivendo sem ela.

    Mesmo sem estar ao lado de Elle, a equipe de enfermagem podia observ-la, pois a divisriaentre a paciente e o posto das enfermeiras era de vidro. Antes, sob a perspectiva imparcial deum mdico, pensava nos quartos de UTI como aqurios, mas no momento a metfora meparecia muito mais trgica do que a considerava. Tive a impresso de ver Elle flutuando at oalto, perdida, a barriga para cima. Ou talvez fosse eu, fora de meu corpo, deslocado. Nada

  • fazia sentido. Fui tomado por uma dissonncia cognitiva. Continuei sussurrando no ouvido deminha esposa, implorando para que acordasse. Embora ciente da irreversibilidade do estadodela, no aceitava o fato. Ao mesmo tempo que eu perscrutava o monitor de pressointracraniana, minha mente se perdia em fantasias... como a do aqurio.

    Alguns acreditam que, antes de morrer, vemos um desfile de fatos marcantes da nossa vida.Imaginei se Elle estaria pensando na melhor maneira de limpar os vidros para no deixarmanchas. Seria melhor borrifar limpa-vidros direto na janela ou no papel toalha? Vidro semmanchas seria o legado de Elle.

    Ou estaria pensando a nosso respeito?As pessoas passam por cinco estgios ao lidar com a perda, o luto e a tragdia, segundo a

    viso de Kbler-Ross: negao, negociao, depresso, raiva e aceitao. Para mim, asquatro primeiras estavam sobrepostas, mas eu no me encontrava prximo de aceitar nada.quela altura, a raiva j tomara conta de mim. Raiva contra Elle e o irmo. E no podia sequercomear a expressar o rancor que sentia por Hank. Era uma fria cega, capaz de me fazerarrebentar a parede de vidro, mas aos poucos dei ouvidos razo que ainda possua. Todostentariam me afastar da UTI... pediriam que deixasse minha esposa. E, para que eu fizesseisso, teriam de me matar, o que no deixava de ter seu lado positivo. Morreria com Elle.

    Na outra parede, a janela de vidro duplo da UTI dava para a parada da ambulncia deresgate e no se abria, o que era bom, pois estava considerando a melhor maneira de mesuicidar. Esquea, Matt. De qualquer modo, a janela no alta o suficiente para algummorrer.

    O Sol desaparecera e a Lua estava no alto. Concentre-se, Matt, e encontre uma sada. Umacirurgia milagrosa ou um tratamento que no ocorreu a ningum. Uma inovao estupendacapaz de salvar Elle. Eu encarara vinte anos de educao e mais sete de servido forada comunidade mdica. Por isso, precisava de uma restituio. Desesperava-me para encontraruma inspirao genial que trouxesse Elle de volta para mim.

    Um vazio profundo comeava a substituir a raiva, e, sem perspectivas, andei pela UTI,olhando de relance atravs dos vidros para o posto das enfermeiras. Sentia-me incerto quantoao que esperava ver. Talvez Elle. O corpo estendido na cama no era o de minha brilhanteesposa, com sua inteligncia e seu corao bondoso. Segurei-lhe a mo e sentei-me a seulado na cadeira de couro falso cor de laranja.

    Por favor, acorde.Depois de alguns momentos, liguei a pequena TV na CNN. Aps a notcia de tremores no

    Peru, mais uma informao a respeito do fiasco no Iraque. No instante em que me preparavapara desligar o aparelho, a imagem de Elle em uma celebrao da Nasa apareceu na tela. Emtraje de noite, usava um vestido listrado cor de pssego que lhe caa como uma luva. Naocasio, os cabelos eram mais compridos e chegavam ao meio das costas. Elle parecia maisuma estrela de Hollywood do que a cientista importante que fora.

    Fora?Aumentei o volume. A ex-astronauta Elle McClure deu entrada esta tarde em um hospital do Maine, aps sofrer

    um acidente. O porta-voz da famlia fez a seguinte declarao: Elle McClure Beaulieu est naterapia intensiva, espera de resultados dos testes. A famlia pede preces por suarecuperao.

    Eu no pedira nada. No fizera nenhuma declarao, nem autorizara ningum a faz-lo.

  • Apareceu um vdeo de sua atividade extraveicular ou, em termos leigos, seu passeio espacial. Os senhores devem se recordar de que a doutora McClure resgatou Andre Jabert, seu

    colega astronauta, na misso de 2004, que consistia em realizar uma atualizao no telescpioHubble. Um micrometeorito penetrou na roupa de Jabert, e McClure puxou-o para dentro donibus espacial antes que o traje fosse despressurizado. Os ferimentos dele foraram oAtlantis a fazer um pouso de emergncia, mas Jabert sobreviveu e tornou a ir para o espaoem outra misso da Nasa. McClure deixou a Nasa quatro meses depois, retornou cidadenatal e casou-se com o neurocirurgio Matthew Beaulieu. Atualmente leciona na FaculdadeBowdoin e presta consultoria ao MIT e tambm Nasa.

    A imprensa mantinha obiturios preparados para todas as pessoas importantes. Ela lecionou. Agora tudo no passado murmurei, e desliguei a TV.Notei a ginecologista e obstetra de Elle conversando com Phil ao lado do posto de

    enfermagem. Anu com um gesto de cabea em agradecimento.No podia me concentrar; comecei a devanear, pensando em overdose de Vicodin ou em

    estourar os miolos. Escolheria uma das opes aps enterrar Elle. Tambm considerei o fatode fazer meu suicdio parecer um acidente. Seria mais fcil para nossa famlia.

    Quase podia escutar Elle rir de mim. sempre consolador pensar em suicdio. Dessamaneira, possvel terminar pelo menos com uma noite repleta de pesadelos. Elle gostavade citar Nietzsche. Pelo menos citava as frases menos misginas do autor; as que escolhia.Curiosamente, Elle no aprovava o atesmo de Nietzsche. As citaes relativas a isso era euquem fazia, nas raras ocasies em que ela se levantava cedo nas manhs de domingo para ir igreja e eu preferia dormir.

    Onde estaria Deus naquele momento?Ouvi o som de mais equipamentos sendo trazidos para a UTI, mas no levantei o olhar at

    ouvir meu nome. Ol, Matt, posso entrar? Blythe Clarke, a obstetra de Elle, especializada em gestaes

    de alto risco, estava postada diante de mim, trmula sob o avental. Como de costume, tinha oscabelos brancos presos com uma fita rosa.

    Teria preferido enfrentar a tortura a conversar. Receava estar prestes a dar um soco norosto do prximo, ou prxima, que me dissesse eu sinto muito. Em vez disso, contudo,respondi:

    Claro.Para minha surpresa, Blythe empurrou um aparelho de ultrassom porttil para perto da cama

    de Elle.Estreitei os olhos, conjecturando o que a mdica faria. Elle no tivera mais nenhum ferimento

    grave. Phil parou entrada, e Blythe deixou o pronturio mdico de Elle sobre o equipamentoantes de puxar um banco prximo de minha cadeira.

    Voc sabe que fazemos testes de gravidez em mulheres que sofreram traumas, no sabe? Ela no est... Belisquei a ponta do nariz. Fora os poucos momentos com minha me,

    vinha me controlando satisfatoriamente. Era preciso no chorar naquelas ltimas horas ao ladode Elle. Haveria tempo para isso.

    Na verdade, o teste de gravidez na sala de emergncia deu positivo afirmou Blythe. Eos nveis de beta hCG indicam que ela est prxima de oito semanas de gestao.

    Phil pigarreou. No sei como isso aconteceu. No consideramos o fato antes de lev-la para o centro

  • cirrgico. No, ela no pode estar grvida. Lembrei-me do teste de gravidez sob a pia do banheiro

    que Elle comprara no ms anterior mas no usara porque a menstruao descera no trajeto dafarmcia para casa. Aquilo acontecera h cerca de duas semanas. Alm disso, sempretomvamos cuidado.

    Elle estava tomando aspirina infantil? perguntou Blythe. Sim. Depois do terceiro aborto, Blythe considerara a hiptese de Elle ter perdido os

    bebs por causa de algum transtorno autoimune. A aspirina na realidade era um medicamentomilagroso; servia at para tratar a sndrome antifosfolipdica autoimune, a APS, de Elle.

    Blythe me entregou o impresso do laboratrio.Agarrei o papel. Elle estava grvida. Impossvel. Elle menstruara havia duas semanas. No pode ter havido um engano? Talvez fosse um sangramento de outra natureza. Farei um ultrassom para ver se h

    batimentos cardacos fetais. Depois do que houve hoje, bem provvel que ela tenhaabortado.

    Passei a mos pelos cabelos, aturdido.Blythe chamou uma enfermeira, que fechou as cortinas, deixando o ambiente na penumbra.

    Ele pegou o transdutor, encapou-o com um protetor esterilizado e envolveu-o em um gelapropriado para ultrassom.

    Matt, tenho de fazer um exame interno. Quer sair? No. Phil, voc se importa de nos deixar a ss?Phil se afastou.A enfermeira recm-formada ergueu a coxa direita de Elle, dobrando-lhe o perneo. Blythe

    introduziu o transdutor na vagina de Elle.A ansiedade aumentou meu ritmo cardaco. Quantos raios-X tinham sido feitos naquele dia?

    Quantos medicamentos teratognicos haviam sido injetados em Elle? Quais as consequnciasdesses procedimentos em um feto? Nisso me recordei de um artigo publicado em uma revistacientfica a respeito de uma mulher com morte cerebral que dera luz uma criana normal, eimaginei se algo assim seria possvel no caso de Elle.

    Veja Blythe apontou o monitor , os batimentos cardacos.Estreitei os olhos e me aproximei do aparelho de ultrassom. A oscilao branda no monitor

    confirmava. Ela est mesmo grvida. Eu diria que de oito semanas mesmo. apontou Blythe, marcando e salvando os

    resultados no disco rgido. Inspirou fundo e voltou-se para mim. Preciso dar algunstelefonemas para me inteirar das orientaes para um caso como este. Nunca trateipessoalmente desse tipo de situao, mas j ouvi um relato cientfico em um congresso. Afamlia no sabia da gravidez at ocorrer um acidente de motocicleta. A mulher ficou emestado vegetativo durante o perodo de gestao e ainda assim deu luz um beb saudvel.

    Lembrei-me de respirar s depois de perceber estrelas girando no canto dos meus olhos. Acha que isso possvel, dado o histrico de Elle? Quem sabe? inquiriu Blythe. Phil disse que a glndula pituitria e o hipotlamo no

    foram afetados. Ento, se a primeira est intacta, o organismo ser capaz de regular os nveishormonais e manter a temperatura do corpo. Mas difcil afirmar qualquer coisa, Matt.

    Elle teve quatro gestaes, todas interrompidas.

  • A ltima esteve muito prxima do final. A causa da morte do beb no teve nada a ver como que espervamos.

    Ao me recordar do pequeno Dylan em meus braos, tive a impresso de que o sanguedesaparecia de meu crebro.

    Blythe ps uma das mos em meu ombro. No vou lhe dar conselhos sobre o que fazer, Matt. Mas acho que voc precisa ter todas

    as informaes em mos antes de decidir desligar os aparelhos que mantm Elle viva.

  • 3

    Aps a cirurgia

    Minha me trouxe para o quarto de Elle duas canecas de caf e um pacote com sanduchesde uma loja em frente ao hospital. Recusei. Por algum motivo desconhecido, as pessoasprocuram entupir de comida quem est imerso em sofrimento. No precisava de nutrio, masde uma razo para continuar vivendo.

    Matthew, voc precisa comer.Dei de ombros e continuei olhando pela janela, amargurado por no saber o que Elle

    desejaria que eu fizesse.Minha me depositou um sanduche no meu colo e fitou Elle. Acha que ela est sofrendo? No. Ela est... Ela estava morta, no sentia nada. Minha solido era to imensa que no

    havia coisa alguma capaz de preencher o vazio que ela deixara.Minha me se curvou para a frente e beijou o rosto da nora. Acha que ela ainda pode nos ouvir? No. Os lbulos temporais, as partes do crebro que escutam, estavam saturados de

    sangue. Pensei no Mar Vermelho. Ela no podia ouvir, nem ver, nem agir. Mesmo assim, eusussurrara durante uma hora em seus ouvidos, perguntando o que ela desejava que eu fizesse.

    Minha me tocou meu ombro com ternura. J tarde. Eu o levarei para casa. No posso.Ela puxou uma cadeira e sentou-se a meu lado no pequeno espao entre a cama e a parede. Quando seu pai faleceu, demorei muito tempo para ir embora. Elle no se encontra mais

    aqui, se estiver mesmo com morte cerebral. Voc no precisa ficar mais ao lado dela.No queria chorar. Nem por Elle nem por meu pai. No entanto, a simples meno a ele quase

    me fez perder o controle. Minha realidade futura era a longevidade de um sofrimentointerminvel. Alm do mais, esperava que o esprito de Elle estivesse por perto, mesmo semacreditar em nada disso.

    Pode ir, me. Estou bem. Procurei manter a voz firme.Ela suspirou fundo. Como qualquer me, queria me afastar de tanta tristeza. Eu me lembro de quando Alice e Hank trouxeram a recm-nascida Elle do hospital.Recordar tempos mais alegres era uma tentativa de me tirar daquele estado. Concordei com

    um gesto de cabea, sem prestar muita ateno. Provavelmente Elle abortaria, mas quasetudo o que sempre dissera sobre gravidez e bebs deixava transparecer um grande desejopara que eu tentasse mais uma vez.

    Quase tudo. Elle no gostaria de viver em um estado vegetativo, porm arriscava a vida emcoisas perigosssimas, como o nibus espacial.

  • Alice ps Elle em meus braos minha me continuou a recordar ; na verdade, nos seus,Matt, porque voc estava sentado no meu colo. No lembra, no ?

    Como poderia? Embora tivessem me contado inmeras vezes que eu segurara um bebde trs dias no colo. Tinha s dois anos e meio.

    Pensamos que voc fosse surdo, sabia? Ela falava mais para si mesma do que comigo.Tambm queria se distrair, afastar-se daquela tragdia.

    Vocs pensavam que eu fosse autista. O pediatra dissera que havia algo de muito erradocomigo, pois no havia dito uma s palavra at o dia em que os McClure trouxeram o bebpara casa. Meus pais tinham me levado a uma dezena de especialistas. Nenhum encontrounada de errado, exceto o fato de eu no falar.

    Minha me limpou uma lgrima que lhe escorria pela face. No acreditei em nada daquilo. Sabia que voc era perfeito, e, quando Elle comeou a

    balbuciar, voc disse Pip. Voc a chamou de Pip por muito tempo. At comearem a namorar.Acenei em concordncia. Algumas vezes eu ainda a chamava de Pip, um apelido carinhoso,

    mas nunca diante dos outros. Girei a aliana no dedo. Meu amor, minha vida, Pip. Seu pai dizia que voc no suportou a ideia de ser ofuscado por uma menina pequena. Talvez fosse porque eu estava espera de ela aparecer. No consigo imaginar este mundo

    sem ela. Estremeci, quase a ponto de chorar. Eu tambm afirmou minha me. Matt, parece impossvel, mas voc vai seguir com sua

    vida. Eu consegui, depois que seu pai morreu. Voc vai conseguir tambm. Elle est grvida.Minha me arregalou os olhos. Grvida?Assenti com a cabea. Parece que de oito semanas. No entendo. Ela no deixou de ficar menstruada. Oh, meu Deus. Ento foi por isso que Elle desmaiou. Pode ser. Meneei a cabea, considerando que era bem possvel ela ter sofrido o

    acidente por causa da gestao. E, por t-la deixado grvida de novo, eu era o culpado. Soube h algumas horas pela equipe mdica que a examinou.

    Sinto muito, querido. Minha me segurou minha mo. Muitas perdas de uma s vez. Blythe Clarke acha que possvel salvar o beb. Ela est em contato com os maiores

    especialistas em perinatalidade do pas. Algumas situaes semelhantes a esta tiveram umfinal feliz.

    Matt... Matt, no pode estar falando srio. Em hiptese nenhuma, Elle iria querer sermantida viva nessas condies.

    Ainda no decidi, mas acho que Elle gostaria que eu tentasse.Minha me piscou algumas vezes. Ela assinou um testamento vital.Inclinei-me para a frente. Pensei que tivesse inventado aquela histria. Nada disso. verdade. Por acaso no se lembra de como ela detestava o prolongamento

    intil da vida da me? Eu sei, mas Alice tinha cncer e estava sofrendo. Elle no sente nada. Voc no acha que

    ia querer que o filho sobrevivesse?Minha me fechou os olhos e levou as mos ao rosto.

  • Isso significa prolongar a vida artificialmente durante meses? No concordo. No possodeixar que se repita com Elle o que houve com Alice. Oh, Deus, no minimamente racionalpensar que essa gravidez possa ter um final feliz. Ela abortou vrias vezes, Matt.

    Mas foi por causa da APS, que tratvel.Minha me pressionou um lbio contra o outro e inspirou fundo. Querido, voc cuidou disso da ltima vez e mesmo assim Elle perdeu o beb. No por causa da APS. Ainda assim, o beb morreu. Ela segurou minha mo. Sinto muito, mas ele se foi, e

    isso quase acabou com Elle e... com voc. No quero que voc crie expectativas apenas parase decepcionar de novo. Deixe Elle descansar em paz.

    Elle iria querer que eu salvasse o beb.Minha me se levantou, o olhar perdido atravs da janela. Ainda muito cedo... Tem certeza de que no voc quem quer salvar um pedao de

    Elle? Claro que sim, mas tenho absoluta certeza de que ela gostaria que eu pensasse primeiro

    na criana.Minha me meneou a cabea. A essa altura, mal podemos consider-la como uma criana. Matt, pelo amor de Deus, no

    se pode nem chamar de feto com apenas oito semanas.Fixei um olhar severo para ela. No precisava de uma aula de embriologia. Meu corao est partido ela continuou. Faria qualquer coisa para trazer Elle de volta.

    Sei que est arrasado, mas tente raciocinar como mdico. Qual a possibilidade de Elle, emestado vegetativo, levar uma gravidez at o fim, sendo que antes foi impossvel? Uma chanceem cem, em mil? Eu a amo; voc sabe que Elle sempre foi uma filha para mim. Queria que elase levantasse e... A voz de minha me falhou. Mas isso no vai acontecer. Abrir mo difcil. Mas ela me fez prometer que eu jamais deixaria algum faz-la passar por isso.

    Elle minha esposa. Eu sei, mas voc est sofrendo e no est raciocinando direito. A expresso de minha

    me era de pesar, mas tambm de determinao.Entrei em pnico, no por temer minha me, mas porque ela a pessoa mais teimosa que

    eu j conheci. Quando Elle assinou esses papis? Onde est o documento? L diz alguma coisa sobre

    gravidez? Foi h muito tempo. No me lembro especificamente das palavras, mas vou l-lo de novo.Blythe Clarke voltou e se deteve ao ver a expresso grave de minha me. Ol, Linney. Matt, tenho informaes, quando quiser saber...Fiquei em p e me aproximei da cadeira de minha me. Pode falar, Blythe. J contei para minha me que Elle est grvida.Blythe tirou um smartphone do bolso do avental. Essa gravidez parece vivel. O desfecho vai depender da estabilidade em que conseguiro

    manter Elle com vida. Ela est apenas de oito semanas? perguntou minha me. Sim confirmou Blythe.Minha me estreitou os olhos. No posso permitir que faa isso com Elle por meses a fio. Pegou a bolsa. Volto logo.

  • E deixou a UTI com rapidez impressionante. O que ela quis dizer? perguntou Blythe, me olhando com espanto. Diga primeiro o que voc conseguiu.A mdica hesitou antes de responder. Consegui informaes de uma dezena de casos, alguns menos expressivos. No posso

    prometer nada. Estamos em agosto. Se conseguirmos mant-la viva at o Natal, o bebestar com vinte e seis semanas.

    Terrivelmente prematuro. Sei disso, e gostaria de v-la chegar at fevereiro. No Natal, o beb ainda estar pequeno,

    mas poder sobreviver. Teremos uma chance.Visualizei a Unidade de Terapia Intensiva Neonatal com aqueles seres minsculos, doentes e

    de pele fina esperneando. Minha me disse que Elle assinou um documento em que especifica o que fazer em caso

    de doena terminal. uma diretiva antecipada sobre a qual ela nunca me falou. Hum... Blythe franziu o cenho, intrigada. Estarei de planto noite. Pode me ligar a

    qualquer hora. S vou embora amanh cedo. Est bem respondi, e ela saiu do quarto.Perdido em pensamentos, no notei que Mike, meu irmo, se aproximava pelo corredor. Como Elle est? Vim assim que soube. Entre, se quiser.Ele olhou brevemente para as prprias roupas, sujas de graxa. to ruim assim?Estremeci, incapaz de responder. Mike me abraou como se eu fosse um beb e comeou a

    chorar. Vamos sair daqui. Eu o segurei pelo cotovelo. Mesmo que Elle no pudesse nos ouvir,

    no podia falar morte cerebral na frente dela. Enquanto andvamos pelo longo corredor dohospital, contei-lhe sobre a gravidez.

    Mike expeliu ar como se tivesse levado um soco no estmago. Durante meses? Tem certeza de que deseja fazer uma coisa dessas durante meses? Existe uma possibilidade; ento, creio que sim. Alis, tenho certeza de que deveramos

    tentar. Na verdade, no tinha certeza de nada, exceto de que estava devastado.

  • 4

    Dia 2

    Na manh seguinte, Phil veio direto para a UTI. Eu me espreguicei e esfreguei um pontodolorido na nuca devido tenso, enquanto meu colega fazia um exame neurolgico em Elle.Durante a noite, eu mesmo verificara periodicamente as pupilas e os reflexos. Elle nomelhorara e, como mdico, eu no esperava nenhum milagre. Como marido, a queria de voltae ficava atento ao menor vislumbre de esperana.

    Melanie est l fora explicou Phil. Ela gostaria de dar uma olhada em Elle.Concordei. Ainda que a UTI do Longfellow Memorial possusse um programa de visitas

    unicamente familiar, algo me dizia que as enfermeiras no se oporiam se a esposa doneurocirurgio quebrasse as regras.

    Diga a ela para entrar.Phil foi at a porta e acenou com a mo. Mel entrou, e pensei que ela fosse chorar. Em vez

    disso, engoliu em seco e estendeu os braos. Sinto muito. Ela me abraou com fora, procurando me consolar. Mel perguntou se eu

    estava com fome, se queria alguma coisa de minha casa e se ofereceu para trazer roupaslimpas. Depois, sentou-se ao lado de Elle e segurou a mo de Phil, como se precisasse daenergia dele.

    Phil disse que voc no me ouve, mas... Oh, Deus. O lbio inferior tremeu e ela fitou omarido. No h nada que voc possa fazer?

    Phil sacudiu a cabea em um gesto negativo.Por alguns instantes, Melaine pressionou a boca no dorso da mo. Elle, escute, ns a amamos. No queremos que se preocupe com Matt ou com qualquer

    um de ns. Cuidaremos dele. Prometo. Levantou-se de repente e abraou o marido.Uma hora mais tarde, Christopher entrou na UTI. Abalado, no quisera ver a irm na

    vspera. Ol disse em tom casual, antes de seu maxilar se enrijecer. Rasparam a cabea dela. Para fazer a cirurgia comentei. No justo. O olhar de Chris se perdeu no cho.Justo? A afirmao era tpica de Christopher, mas no estvamos em um parque infantil com

    monitores. Nunca imaginei que ela fosse desmaiar afirmou ele. Quer que o perdoe e diga: Christopher, essas coisas acontecem? Tudo bem. Acidentes

    acontecem. Mas esse no teria acontecido se voc tivesse subido naquela maldita escada.Ele se agarrou ao p da cama. Elle nunca se incomodou com altura. Nunca teve medo de nada.Meneei a cabea e o conduzi para fora do quarto. Elle no podia me ouvir, nem ao irmo

  • nem a ningum, mas eu estava prestes a explodir com Christopher por ter sido idiota a pontode pedir irm que subisse na escada, e no queria ofender seu precioso irmo na presenadela, mesmo estando inconsciente.

    Elle.Parei no corredor e olhei para trs, atravs da parede de vidro. Uma criatura imvel de olhos

    fechados, intumescidos pela queda e pela cirurgia. Mesmo que Elle pudesse abri-los, no meveria.

    No era de admirar que os familiares de meus pacientes sempre relutassem em aceitar averdade. Eu compreendia a fisiologia dos ferimentos de Elle e, mesmo assim, para mim nadafazia sentido. No conseguia mais achar o rumo da minha vida.

    Matt? Est me ouvindo?Virei-me para Christopher e balancei a cabea. O qu? Por que me trouxe para c?Durante um segundo meu sofrimento sobrepujou minha raiva, mas, em seguida e como um

    demnio, ela ressurgiu: No verdade que Elle no tinha medo de nada. Ela apenas escondia seus medos melhor

    que a maioria. Do que mais ela tinha medo, alm de terminar a vida como minha me?Encarei-o por um momento. Elle temia morrer lentamente. Como eu podia considerar mant-

    la viva por meios artificiais? Porque, respondia a mim mesmo, com certeza ela iria quererarriscar a vida para ter um beb.

    De no poder realizar os prprios sonhos. No a mesma coisa. Ele estreitou os lbios e evitou o meu olhar. A nica coisa que a

    deixava apavorada era sofrer como minha me sofreu. Quando vo desligar os aparelhos?Eu... eu tenho obrigao de testemunhar.

    Ningum vai desligar nada. Mudei de ideia. Por qu? Phil pensou em algo que pode salv-la? Christopher arregalou os olhos, e o

    brilho da esperana iluminou seu semblante sombrio.Ah, Deus, como eu desejava poder me apropriar de um punhado daquela abenoada

    ignorncia. Balancei a cabea, negando. No h mais nada a fazer.Christopher estreitou os lbios. Perscrutou o corredor; depois seu olhar foi para o meu rosto

    e a palma da prpria mo, que em seguida ele levou aos olhos. Ontem meu pai no sabia o que estava dizendo. uma situao comum quando ele bebe

    demais.Mexi os ps, inquieto, recordando da poca em que Hank se consumia em lcool.

    Christopher mal havia completado oito anos, a me deles estava morrendo, e Elle temia que aresponsabilidade da famlia recasse sobre seus jovens ombros.

    Fico surpreso de saber que voc ainda se lembra das bebedeiras do seu pai. Hank seconservara sbrio por muito tempo, pelo menos at a vspera.

    No era nenhum beb; voc ficaria ainda mais espantado se soubesse do quanto merecordo. No pode fazer Elle passar pelo mesmo que minha me.

    Espiei Elle mais uma vez atravs do vidro, aterrorizado perante a deciso de mant-la vivaartificialmente.

  • No a mesma coisa. Elle no sofre e... est grvida. Se conseguirmos mant-la estvel,poderemos salvar o beb.

    Christopher me fitou, chocado. O qu? De novo? No! Essa foi a quarta ou a quinta tentativa? Ele apertava as mos

    como se quisesse estrangular algum. Provavelmente a mim. Droga. Da ltima vez em queElle quase morreu, eu falei que era melhor no engravid-la novamente. Ele se virou para oquarto da irm, o corpo tremendo de dio, ou talvez pelo grande sofrimento.

    Eu no tinha nada a dizer, nem poderia ter. Afinal, se Elle desmaiara por estar grvida,sofrera morte cerebral por minha culpa.

    Era raro Christopher agir de maneira protetora em relao a Elle, por ser sete anos maisnovo. No entanto, depois da ltima gravidez, ele me repreendera com severidade. Naquelaocasio, eu havia concordado com Chris. Seria muito arriscado tentar uma nova gestao.

    Elle no me contou que estava grvida afirmou Chris. Ns no sabamos. Era uma situao recente demais. Est me dizendo que temos de mant-la viva durante nove meses por meio de aparelhos?

    No acho isso certo. Elle no desejaria algo assim. E eu tambm no. Vi minha me morrerdessa maneira.

    Ele partiu rumo ao hall, blasfemando contra as portas duplas da UTI, e eu o segui. A meiocaminho para o elevador, agarrei-o pelo brao.

    Chris, no se trata do que voc quer, mas sim da famlia que Elle desejava. Espere um pouco. Voc pretende me fazer sentir culpado pela queda de Elle, sendo que foi

    voc quem a engravidou novamente? Imbecil!As portas do elevador se abriram e minha me saiu, um tanto descomposta. Fios de cabelos

    brancos caam-lhe pelo rosto. Christopher, querido. Ela beijou o rosto dele e se voltou para mim. Encontrei o

    documento, Matt. Levei quase a noite inteira procurando, mas est aqui. Entregou-me umformulrio com perguntas, cada uma com duas alternativas: sim ou no. Era uma espcie dedeclarao prvia de vontade de Elle, embora sem o ttulo formal.

    Quer um respirador para ajud-lo a respirar, se for incapaz de faz-lo?

    SimNo x

    Quer que se use uma sonda, se no for capaz de se alimentar? SimNo x

    Nenhuma clusula a respeito de gravidez. Droga!A letra da jovem Elle respondia no a todas as perguntas, inclusive as mais simples, e ela

    acrescentara: No desejo ser mantida viva por mtodos artificiais, a menos que possa me

  • recuperar.Elle assinara embaixo, floreando os eles e os es. Para piorar, registrara o documento em

    cartrio.Esfreguei os olhos e procurei refrescar a memria. Depois da morte de Dylan, ainda na sala

    de emergncia, um funcionrio do hospital indagou se Elle possua alguma diretiva antecipada.Era uma norma do hospital fazer a pergunta. Por que no havia prestado ateno naresposta? Com certeza, estava atordoado pela morte de nosso filho. Teria de consultar osarquivos mdicos.

    No importa retruquei. Isto muito antigo. O status legal dela mudou quando noscasamos. Sou o marido dela, o parente mais prximo.

    Matthew, voc sabe muito bem que o testamento vital independe de parente mais prximoou estado civil. O importante quem ela designou para tomar decises no caso de estarincapacitada. E esse algum sou eu garantiu minha me.

    O que est tentando me dizer?Minha me virou o documento e, no verso, Elle dava a ela o direito de tomar qualquer

    deciso especfica em relao a uma doena, se ela mesma no pudesse opinar. Era umaautorizao de poder decisrio e duradouro para agir em casos extremos de sade.

    Ergui a mo em uma tentativa de convenc-la. Mas Elle est grvida! E voc sabe muito bem o quanto ela queria um filho. Estou com Linney nessa interveio Christopher. No estamos fazendo uma votao. Amassei a declarao. D-me o documento ordenou minha me.Eu o segurei com a mo fechada e imaginei onde aquela situao terminaria. Minha me

    discutindo comigo, como se eu tivesse dois anos? E eu batendo o p? Em algum momento,algum poderia pensar que ela me daria uma olhada e eu me dobraria vontade materna.

    No vamos mant-la viva artificialmente. J estou em contato com a supervisora daenfermagem minha me falou.

    E por que entrou em contato com a supervisora? Por Deus, o que eu menos desejava eraque o assunto se tornasse motivo de falatrios no hospital.

    Porque Elle me escolheu para fazer valer sua vontade, e voc est fazendo o oposto doque ela desejava. errado mant-la nesse estado, como se fosse uma incubadora, para gerarquem ainda nem um beb. Mulheres so mais que receptculos para a prole.

    Meu corao batia to forte que cheguei a enxergar manchas. Ela no uma incubadora. a me do beb. Querido, seja realista minha me disse em tom um pouco mais brando. O feto apenas

    comeou a se formar, e, mesmo que a gestao fosse levada adiante, s Deus sabe osmalefcios a que ele foi submetido ontem. A tomografia, os raios-X, os medicamentos. Vocest arrasado e no est raciocinando direito. Ela me estendeu a mo, a palma para cima,aguardando a devoluo do documento.

    Continuei a segur-lo. Estava convicto de que Elle jamais previra uma situao como aquela. Sei de tudo isso, e estou preocupado com os efeitos dos raios-X, dos medicamentos,

    mas... Mas nada interveio Christopher novamente. Pare com isso, Matt. Voc no vai mant-la

    viva. Ele se virou e saiu.Minha me tocou meu brao, mas eu me desvencilhei.

  • A enfermeira de Elle nos olhava com espanto, pois, sem perceber, havamos chegado aoposto de enfermagem.

    Chame a supervisora pedi. Quero falar com ela, com o diretor executivo e o advogadodo hospital. Preciso de uma reunio com o comit de tica. Quero falar com o chefe doDepartamento de Pronturios Mdicos. Agora!

    A enfermeira empalideceu. No se preocupe, eu mesmo telefonarei para todos eles.

    Em cinco minutos de reunio, o comit de tica, o diretor, o advogado e o conselheiro pastoralse envolveram em um debate acalorado. Minha me jogou o papel amassado em cima damesa.

    O propsito do testamento vital evitar que isso acontea. No Maine iniciou o advogado, corpulento e com orelhas de abano , o que um paciente

    determina quando capaz, em outras palavras, quando pode falar, sobrepe-se a qualqueroutra coisa.

    Peguei o pronturio mdico de Elle feito por ocasio do nascimento de nosso filho. Vejam aqui. Perguntaram a Elle se ela havia feito algum testamento vital, e ela negou. Ora, mas o documento est aqui! Minha me bateu no papel amassado. Elle assinou isso h meio sculo exagerei. Ela jamais teria considerado esta

    circunstncia em particular. Como que voc sabe? Ela nunca conversou com voc sobre isso afirmou minha me.Isso era verdade. Durante alguns anos, enquanto Elle e eu estvamos na universidade, quase

    no tivemos contato. Ela mudou de ideia sobre mim, e sobre vrias outras coisas. O documento foi feito h

    dezessete anos! gritei.O diretor executivo ficou em p. Parem. O hospital no vai assumir a responsabilidade por essa deciso, ainda mais sendo

    ela objeto de tanta controvrsia. Realmente no importa o que a famlia deseja ou no o advogado sentenciou , e sim o

    que a paciente desejava. Esse o ponto principal. O que me preocupa termos doisdocumentos conflitantes.

    O diretor soltou um longo suspiro. Um juiz dever decidir. Ser preciso uma ordem judicial.

  • 5

    Dia 2

    Reli o carto de visitas. Jake Sutter, advogado. No vero passado, Elle e eu o havamosencontrado na sala de espera de um cinema. Ele me dera o carto e disse para combinarmosde tomar um drinque. At a vspera, quando tive de procurar por informaes do seguro,esquecera que o havia guardado na carteira.

    Expliquei secretria dele que fora seu colega de quarto na universidade, o que resultou emuma hora marcada para dali a uma semana. Mas mencionar que era marido de Elle reverteu aespera para um minuto.

    Matt? Santo Deus! Ouvi as notcias. Como ela est? No muito bem. Falei sem parar por minutos, narrando-lhe a histria, e inspirei fundo.

    No sei direito como proceder para no transgredir a lei.Um momento de silncio precedeu as palavras de Jake: Posso ajud-lo, mas antes tenho de dizer que lastimo muitssimo o que aconteceu com

    Elle. Yvette queria que eu o procurasse ontem noite, quando soubemos da notcia, masimaginei que estivesse no hospital ao lado dela.

    Estive, exceto durante a reunio da comisso de tica. Matt, de certa maneira, o advogado do hospital tem razo. O juiz vai avaliar qual seria a

    vontade de Elle nessa circunstncia. O que pode resultar numa armadilha, mas sei exatamenteo que devemos fazer. Quando pode vir aqui no meu escritrio? Vou adiar meus compromissos. Como sempre, Jake imaginava ser o dono da verdade, e, daquela vez, eu esperava que eleestivesse certo.

    Jake, no queria sair de perto de Elle. Voc no poderia vir at aqui? Ah! Ele engoliu em seco. No creio que seja adequado tratarmos do assunto em um

    quarto de... UTI.Droga, tinha esquecido que ele odiava hospitais. Mas no havia tempo de lidar com as fobias

    do meu amigo.Jake e eu ocupvamos o mesmo quarto no alojamento da universidade, pois algum

    determinara naquele ano que os calouros ficassem juntos. E, exceto a proximidade geogrficae a grande dose de ambio, no tnhamos mais nada em comum. Jake era filho de um ex-governador do Maine, e eu, filho de um operrio de uma cidade prxima. Jake, ao contrrio demim, frequentava a alta-roda. No entanto, mesmo no sendo amigos, fomos bonscompanheiros de quarto. Ns nos vamos quase sempre, mas, quando avancei no curso demedicina, o contato foi se tornando espordico, pois ele no podia sequer ouvir falar emsangue que j ficava esverdeado de medo. Jake mantinha a premissa de que, se Deuspretendesse que vssemos sangue, no nos teria dotado de pele.

    Jake, isso envolve assuntos mdicos comentei. Se no puder assumir o caso, talvez

  • possa me indicar um colega seu. Ora, Matt, voc sabe que meu trabalho no se faz beira da cama de um cliente. Estarei

    no tribunal. Mas hospitais me deixam aterrorizado. Cheiros estranhos, pessoas se lastimandoe... Quando minha mulher estava em trabalho de parto da nossa Janey... no pude ficar aolado dela, vendo-a sofrer. Talvez eu seja muito sensvel. No gosto mesmo desses lugares;no sei como voc aguenta. Mas lido muito bem com a parte verbal e escrita.

    Em circunstncias diferentes, eu teria dado risada pela maneira como Jake se descreveu.Ele se achava um indivduo justo, mas, quando as pessoas me diziam que eram muitosensveis para cuidar de um enfermo ou algum ferido, a hipocrisia me deixava maluco. Eu erapragmtico em relao a tomar uma atitude e ajudar as pessoas em vez de virar o rosto. Noentanto, na presente situao, no me importava se Jake era sensvel ou no. Precisava dealgum com experincia para enfrentar minha me na corte.

    Jake... No diga mais nada, voc meu amigo. Imagino o que est passando. Vou ao seu

    encontro, sim? S peo que nos encontremos em um local onde possamos conversar vontade... talvez uma sala de espera. No, um escritrio seria melhor. Eu o informarei dosdetalhes necessrios para seguir adiante. Mas sinta-se vontade para consultar outroadvogado. Posso instru-lo quanto s perguntas que devem ser feitas. Mas, voc sabe,ningum mais em Portland tem a minha experincia.

    Embora a falsa modstia no fosse uma caracterstica de Jake, nisso ele estava certo. Euduvidava que outro advogado em Portland, no Maine, houvesse enfrentado a Suprema Cortedos Estados Unidos.

    Est bem respondi.Consegui uma sala de reunio fora da UTI. s sete horas e dez minutos, Jake apareceu sem

    o espalhafato costumeiro, vestido com um terno feito mo, sapatos italianos e gotas de suorno lbio superior.

    Sente-se. Pus diante dele uma cpia do documento preenchido por Elle e que foradeixado com minha me. E esta a cpia do pronturio mdico do inverno passado.

    Jake sentou-se cabeceira da mesa de madeira laminada e suspirou. Inverno passado? Perdemos um filho em fevereiro. Nasceu morto.Jake me encarou por alguns instantes, antes de fazer o que eu diria ser uma sutil tentativa de

    ser simptico. Matt, voc tem enfrentado...Eu o interrompi, sem levantar os olhos. Elle assinalou que no possua uma diretiva antecipada. Est vendo aqui? Apontei para

    as letras rabiscadas no formulrio do hospital. Pela primeira vez reparei na caligrafia. Apesarde no ser um entendido no assunto, pude avaliar a fraqueza de Elle pelos garranchos feitosna folha. Ela estava to debilitada que talvez nem soubesse o que respondia.

    Jake se ajeitou na cadeira e me avaliou. Voc est bem?Fitei-o de relance, anu e desviei o olhar. No suportaria a angstia de mais um desabafo de

    dor, mesmo que ele estivesse disposto a escutar.Respeitosamente, Jake consultou o outro documento. Embora esteja escrito no cabealho que se trata de um testamento vital, ou de uma

  • declarao prvia de vontade, no exatamente isso. Uma declarao prvia um conjuntoisolado de instrues que se encaixa na categoria de diretivas antecipadas, mas seu alcance restrito, ou seja, um conjunto de instrues que o paciente escreve sem margem paracircunstncias imprevisveis. Elle expressou a prpria vontade, mas tambm deu sua me opoder duradouro de representao para decidir sobre os cuidados com sua sade. Nessecaso, o chamado testamento vital faz parte de uma categoria mais ampla de diretivasantecipadas. Elle fez certas escolhas por si mesma, mas tambm designou algum para tomardecises que no fossem abrangidas pelo formulrio. Isso far a corte reconhecer quealgumas circunstncias no podem ser previstas, e que ela confiou em sua me para agir embenefcio dela. Agora vou dizer algumas coisas que voc no vai gostar de ouvir.

    Puxei uma cadeira e me sentei. Voc quer dizer que no tenho argumentos para uma causa. Pelo contrrio; voc tem, e muitos. O problema que no um homem pblico, e isso vai

    se tornar pblico. Os reprteres j esto do lado de fora do hospital, e seu caso ter aindamaior repercusso se trazer tona o controverso caso Roe vs. Wade.

    Como assim? No estamos tratando de um aborto. No para voc, que considera sua esposa e seu embrio em uma esfera altamente

    pessoal. Contudo, em termos legais, trata-se dos direitos de um nascituro contra os direitos dame, algo que ter inmeras implicaes. Direito vida. Direito morte. Direitos do feto. Roevs. Wade. Mas, por ora, deixemos as inferncias de lado.

    Jake recostou-se no assento da cadeira e mastigou a parte interna do lbio. Em nosso estado continuou o Tribunal de Sucesses se encarrega de tais assuntos.

    No h jri, somente um juiz. o que se chama de julgamento de bancada. Se no estivessegrvida, o que Elle expressou nestas diretivas antecipadas seria indiscutvel. Jake tamborilouno papel. No importa que o documento seja to antigo quanto uma fita cassete ou se Elleera solteira na ocasio. Ela deixou bem claro que no desejava viver se tivesse uma doenaterminal ou qualquer outra coisa que a deixasse em estado vegetativo. Ele avaliou osdocumentos frente e passou os dedos com unhas cuidadas no indcio de barba que japarecia ao final do dia. Voc afirma que no sabia dessas diretivas antecipadas?

    No at esta manh. Mas eu conhecia o ponto de vista de Elle. Antes de saber que elaestava grvida, tinha concordado em desligar os aparelhos... Minha voz falhou, e escondi orosto nas mos.

    Est bem. Jake apertou meu ombro, esperou que eu me recompusesse e perguntouento se podamos continuar.

    Isso, em muitos estados, no seria um problema, porque a gravidez automaticamenterevoga as diretivas antecipadas de uma mulher. Mas, no Maine, isso no assim. Havendouma diretiva antecipada, ela prevalece.

    Quis perguntar quais eram os tais estados, pensando talvez em remover Elle para outrohospital, mas no adiantaria. As condies dela eram muito frgeis, e minha me meconfrontaria em relao a essa deciso.

    O filho seu mesmo? indagou Jake. Quer dizer, se resolvessem fazer o teste de DNA? Claro que meu. Elle no... No foi a isso que me referi. Preciso saber se o filho seu geneticamente. No foi

    esperma doado ou algo do gnero? Por que diabos est me perguntando isso?

  • Responda pergunta, Matt. Geneticamente seu? Sim. Isso bom, caso um exame se torne necessrio. Terei de fazer alguns requerimentos

    corte para deferir a incompetncia de Elle. Aqui no Maine usamos incapacidade, termo menospesado. A conotao mais sutil, mas significa que Elle no tem competncia para agir porconta prpria. Vou precisar de declaraes voluntrias e juramentadas dos mdicos,explicando as condies dela.

    Concordei, e Jake esclareceu que pediria corte para me nomear guardio de Elle, emborano pudesse tomar decises mdicas a respeito de minha esposa. Ele apontou o documentoque minha me apresentara como declarao prvia de vontade de Elle.

    O juiz pode validar esse documento. Minha me teria o direito de desligar os aparelhos que mantm Elle viva?Jake balanou a cabea de um lado para o outro, como se avaliasse o assunto. Temos o formulrio de internao do hospital para confrontar a validade do documento

    mais antigo, mas existe a possibilidade de o juiz permitir que sua me tome decises mdicaspor Elle. Jake inspirou fundo. Por isso quero ter certeza de que o beb seu. Se forpreciso, podemos apelar de um ngulo completamente diferente. Se o juiz se decidir em favorde sua me, pedirei corte para dar a voc responsabilidade legal do filho que ainda nonasceu.

    Est bem. razovel. O que isso envolve? Endireitei-me na cadeira. complicado. Voc sabe que tenho trabalhado nos casos do Pro-Life, entidade contra o

    aborto e a favor da vida?Fiz um movimento positivo com a cabea. Minha me com certeza vai reivindicar o direito de Elle de morrer. Juro que a deixarei partir

    depois que a criana nascer... E eu prometo interrompeu-me Jake que usarei todas as estratgias legais para que

    seu filho tenha a oportunidade de viver. Deix-la descansar em paz depois outro assunto. Omais urgente agora mant-la viva at o nascimento do beb, certo?

    Certo respondi pergunta retrica. Deixe-me explicar. A corte no reconhece os direitos humanos de bebs antes de eles

    nascerem, ou, pelo menos, tem sido assim at agora. A corte d responsabilidade legalapenas a quem reconhea possuir direitos humanos. O feto no tem voz ativa. Temos esseproblema, mas tenho um plano. Vou convencer o juiz, que legislar a nosso favor. A lei vaiestabelecer um precedente...

    Pigarreei. Esquea os precedentes, Matt. Estamos falando de Elle e do beb.Seu beb. Jake enfatizou, quase como se questionasse a paternidade da criana novamente. Isso. Acredite, Matt, salvar essa criana importante para mim tambm. Abrir um precedente e

    conseguir que o juiz lhe d a responsabilidade legal ser valioso para o movimento Pro-Life.Agora voc pode entender por que esse caso muito maior que algo apenas pessoal. Seuinteresse recai sobre sua esposa e seu filho, mas o Pro-Life inteiro lhe dar apoio. Advogadossimpticos causa oferecero toda ajuda que puderem: escrevero um amicus curiae,pesquisaro, tudo que for preciso.

    Escrever o qu? Esquea, no importa. Por que o movimento Pro-Life iria se incomodar?

  • Elle no est em situao de aborto.Jake tocou o lbio superior com um dedo e esboou um daqueles sorrisos condescendentes

    que eu vira muitas vezes. Ele tentava exibir uma expresso de sinceridade, e teria meenganado se no o conhecesse h tanto tempo e no soubesse o tamanho de sua ambio.

    No, mas voc no enxerga o paralelo da situao. Ao retirar os aparelhos de Elle, voctambm interromperia a gravidez. Vamos ver se encontro uma explicao melhor. A 14Emenda da Constituio norte-americana garante o direito das pessoas. Todos os direitos. Sea corte lhe garantir a responsabilidade legal sobre a criana ainda em formao, ela passariaa ser considerada uma pessoa legalmente, portanto, algum com direitos. Esses direitosprevaleceriam sobre Roe vs. Wade e a privacidade. Se Roe vs. Wade for vencido de outramaneira, os estados voltaro a ter o direito de decidir isoladamente sobre o aborto.

    No estou nem a, Jake!Ele me fitou com olhar penetrante e prosseguiu: Muito bem. Mas, se a corte lhe der curatela, isso ter implicaes maiores. E, mesmo que

    o juiz decida contra ns, ainda poderemos apelar. O que levar tempo. Se a apelao falhar,ainda assim podemos recorrer todas as instncias superiores. Podemos pedir um writ ofcertiorari ou...

    Um o qu? Um recurso extraordinrio. Abreviando, uma petio cert. Significa entrar na Suprema Corte

    com uma petio e exigir reviso judicial do caso julgado em uma instncia inferior. Se a cortelhe der responsabilidade legal, o governo dos Estados Unidos poderia, em essncia, concederpersonalizao ao feto. Em consequncia, todos os fetos teriam o direito de uma pessoa. E,como efeito, qualquer ato que destrusse um feto seria considerado um assassinato. O abortoseria considerado ilegal em toda parte.

    Seria uma consequncia enorme. Mas tudo o que quero dar uma chance a esse serindefeso.

    Est lembrado do caso de Scott Peterson? O que ele tem a ver com Elle? Calma. Voc se lembra do caso?Reclinei-me na cadeira e encarei Jake. Esse era ele. Quando cismava com alguma coisa nos

    tempos em que ramos estudantes, eu simplesmente saa do dormitrio. Agora, porm, nopodia me dar esse luxo.

    Peterson? O bastardo que matou a esposa grvida? Claro que sim. Ele estava convicto de que deveria matar a esposa e o filho deles. Depois disso, o

    Congresso aprovou como crime a violncia contra fetos. A proteo dos inocentes ainda nonascidos foi um grande avano. Os autores do projeto de lei eram do Pro-Life. Informalmente,deram-lhe o nome de Lei Laci e Connor.

    Pelo amor de Deus, Jake! Deixe as mincias de lado e vamos ao que interessa. o que estou fazendo. A lei protege o nascituro e nos concede amparo legal.Grunhi um som ininteligvel. Estava muito irritado com a comparao feita por Jake do caso

    Scott Peterson com o que acontecera a Elle. Queria parar com esse circo antes que ele fossemontado.

    Se pedirmos a responsabilidade legal do beb, teremos o respaldo do Pro-Life... Se tentar fazer disso um problema como o aborto, vai conseguir apenas a oposio da

    Organizao Nacional de Mulheres, que provavelmente to radical quanto os que lutam pelo

  • direito vida. Vai transformar o caso em um circo.Minha me era membro da ONM e, como pessoa, algum bastante razovel. Sempre se

    interessava em promover pacificamente o direito das mulheres, mas havia as mais agressivasem seu grupo que poderiam, dada a oportunidade, jogar leo quente naqueles queprotestavam contra clnicas de aborto.

    Com arrogncia, Jake foi sarcstico ante meno da ONM: O movimento Pro-Life um esforo humanitrio afirmou. Mas deixemos essa discusso

    para depois. Mais uma coisa: pedir a responsabilidade legal um passo arriscado. Houveapenas dois casos que chegaram ao tribunal. O primeiro foi na Flrida e envolveu doisagravantes: uma mulher mentalmente frgil e um estupro. O estado tentou conseguir aresponsabilidade legal do beb que estava por nascer. O tribunal de apelao negou eapontou dois aspectos negativos. Primeiro, o estado no era um personagem que cuidaria dobeb pessoalmente. Segundo, o tribunal da Flrida no tinha estatutos nem leis para designarum responsvel legal para o nascituro.

    A mulher abortou? indaguei. No. O caso se prolongou por muito tempo e a criana nasceu. Pretendo usar a mesma

    ttica. Sou um homem de princpios, que vai igreja aos domingos, que tem a f comoprioridade, mas tambm sou realista. O estado no venceu a batalha, Matt, mas venceu aguerra. A criana no morreu... Jake ergueu o indicador. Um beb nasceu, e eu salvarei oseu tambm. Se lhe derem a responsabilidade legal, a maior conquista ser salvar um milhode crianas por ano. Sinto muito pelo acontecido com Elle, mas...

    Cerrei os punhos. No se atreva a fazer dela uma mrtir!Jake ficou em silncio por tempo suficiente para eu pensar que no argumentaria contra mim.

    Ou talvez ele soubesse que, se tentasse, eu o dispensaria. Certo respondeu, passando ento a divagar sobre um caso da Pensilvnia. O juiz

    decidiu a favor da responsabilidade legal, mas no acredito que o caso houvesse resistido aum apelo.

    Levantei-me e comecei a andar de um lado para outro na pequena sala de reunio. Ento a estratgia de pedir a responsabilidade legal e ser bem-sucedido de cinquenta

    por cento, na melhor das hipteses?Jake me lanou uma piscadela. Teremos mais chances porque, como voc mesmo disse, no se trata de um caso de

    aborto. Voc est tentando preservar a vida do seu filho, o que resta de sua famlia. Comopai, voc tem direitos, ou pelo menos ter depois que o beb nascer. Essa uma situaointeressante.

    Inclinei-me sobre a mesa, as palmas pressionando a superfcie. Mas meus direitos de nada valero at meu filho nascer, a menos que voc faa o mundo

    mudar e me delegar a responsabilidade legal. Exatamente confirmou Jake.Fitei brevemente a letra tremida de Elle na cpia do pronturio mdico por ocasio do

    nascimento de nosso menino sem vida. E quanto ao fato de ela ter dito que no tinha nenhuma diretiva antecipada? Usarei isso em primeiro lugar. Mas no podemos esquecer que o irmo de Elle

    provavelmente vai testemunhar, e o juiz pode ser influenciado pelo depoimento dele.

  • Christopher? Como sabe o que Christopher pensa a respeito disso? Ele apareceu no noticirio da noite. Ele o qu? Senti minhas tmporas tremerem com o susto. Sente-se.Obedeci, admirado com a audcia de Chris em falar imprensa. Os reprteres locais o procuraram, depois a entrevista passou na TV. Ele revelou que os

    traumas da irm so fatais, mas que voc a vem mantendo ligada a aparelhos por achar,equivocadamente, que pode salv-la. Tambm afirmou que Elle havia registrado em cartrio odesejo de morrer em casos extremos como este. Comentou ainda que ela era a pessoa maiscorajosa que conhecia, mas tinha receio de uma vida vegetativa, que lhe causasse sofrimento.

    Merda!Jake fez uma careta de desgosto. Faa um favor a si mesmo: vigie essa sua lngua... pelo menos em frente s cmeras. A

    imprensa vai estar por toda parte, e o seu comportamento ser decisivo. Acha que aquele paspalho vai tentar me convencer do contrrio?Jake negou com um gesto de cabea. Acredito quando me diz que, nessa situao, Elle aceitaria viver artificialmente. Usaremos

    todos os argumentos, inclusive que h estados que probem o desligamento dos aparelhosquando a mulher est grvida. Entenda uma coisa: tudo o que quero proteg-lo. Algumaspessoas o criticaro por no agir de acordo com os desejos de Elle. Pode parecer que vocno se importa com o sofrimento dela. O fato que est indo contra os desejos que Elleexpressou em sua diretiva antecipada.

    Engoli em seco; o significado daquelas palavras me queimavam por dentro. Vai precisar se mostrar um marido em genuno sofrimento. Jake ps uma pasta diante de

    mim. Est a o valor de meus honorrios e do adiantamento.Fiquei espantado com a abundncia de zeros e assoviei. Tinha feito um emprstimo para

    pagar os oito anos da prestigiosa universidade da Ivy League e ainda no conseguira juntardinheiro para liquidar aquela dvida, quanto mais para pagar uma quantia daquelas.

    Matt, posso ganhar a causa se o juiz nos der metade de uma oportunidade e no fizer valerde imediato a vontade de Elle. Pode ter certeza de que sou sua melhor aposta.

    Jake, no tenho tanto dinheiro e, ainda que tivesse, estou sem o talo de cheques. Eu abro mo do adiantamento. Afinal, somos amigos. Quero defender esse caso porque

    acredito nele. Podemos at conversar sobre uma taxa de honorrios mais reduzida,dependendo de quanto tempo o caso vai demorar. Apenas assine aqui. Ele folheou algumaspginas e apontou para a linha em branco.

    Respirei fundo e peguei a caneta. Antes que eu assine, h uma coisa que voc precisa entender, Jake. No estou

    interessado na sua agenda poltica nem quero que Elle seja garota-propaganda de ningum. Voc mudar de ideia antes de o caso terminar.Como sempre, Jake no entendeu. Pessoas no eram coisas a serem usadas em prol de um

    bem maior. No respondi. Se voc me representar, o caso ser sobre esta situao em particular,

    e no sobre sua causa do Pro-Life ou o desejo de entrar no palcio do governo, como seu pai. No estou mais interessado em ser governador. Yvette no quer ser esposa de poltico, e

    h anos desisti de tentar convenc-la. Meu nico interesse salvar seu filho. Jake bateu o

  • indicador ao lado da linha de assinatura em branco. Tenho talento para isso. Sou umespecialista em leis constitucionais. Pelo amor de Deus, dou aulas na Harvard sobre a PrimeiraEmenda, sou membro da Sociedade Legal Crist, sou chamado regularmente para assessoraro Pro-Life.

    Uma lembrana estranha me ocorreu, algo ligado entrevista dos calouros quandosubmetidos a trs perguntas clssicas. Qual o seu nome? De onde voc ? Qual o seucurso? Jake invariavelmente respondia de maneira esquisita. Jake Leahy Sutter, vim da aladireita e estou fazendo um curso que me levar Suprema Corte, de preferncia cadeira dopresidente do tribunal.

    Voc sempre quis ser juiz, Jake. Acredita que este caso o levar corte?Ele estreitou os olhos e se recostou na cadeira. Ora, no h outro objetivo a no ser perseguir a toga. Defendo o Pro-Life, e este um

    teste decisivo. Recuso-me a adotar uma postura de indiferena poltica. Tudo bem. Jake, voc me d sua palavra de que manter o foco em Elle e no beb? Sim

    ou no?Ele empurrou o interior da bochecha com a lngua e anuiu.

  • 6

    Dia 3

    Os advogados do Pro-Life estavam a postos no tribunal onde o juiz decidiria o destino deminha esposa. Nada disso. Eu tinha que parar com esse pensamento irracional. O destino deElle fora decidido na queda de uma escada. Eu lutava pela vida do beb nosso beb. Eraestranho que Elle sequer parecesse uma mulher grvida. Eu no havia sentido os chutes donosso filho. Ele era um apito em um ultrassom. Ainda assim, sabia que Elle, se pudesse, jestaria lendo uma histria infantil para a barriga.

    Endireitei a gravata e empurrei a multido de reprteres que encostavam os microfones nomeu rosto.

    Doutor Beaulieu, como est sua esposa? Christopher, irmo dela, disse que ela no vai sobreviver. Tem algum comentrio a

    respeito? Matt, apenas uma pergunta sobre Elle pediu um camarada que eu conhecera no

    secundrio. Nenhum comentrio sentenciei. J ouviram a verso de Christopher. Eu no colocaria

    mais lenha na fogueira de um assunto familiar.Os adeptos do movimento Pro-Life seguravam cartazes nos dois lados da porta: dar vida,

    no destru-la. Salvem Elle.Embora tecnicamente apoiado por eles, evitei encar-los. Aquelas pessoas no agiam a meu

    favor nem a favor de Elle. Estavam ali com interesses prprios, e nossa tragdia era apenasuma maneira de promov-los.

    Passei pelas portas do frum e nutri a esperana de que reprteres e ativistas fossemimpedidos de entrar. Ledo engano.

    A porta do tribunal federal da cidade vizinha tinha detectores de metais, mas a Corte Distritaldo Condado de Cumberland devia ser o nico frum do pas que no contava com eles. Osreprteres me seguiram pela rotunda, berrando perguntas, vidos por informaes.

    Jake me encontrou a caminho da sala de audincias e se voltou para os reprteres: Estou certo de que os senhores reconhecem ser este um momento difcil para o doutor

    Beaulieu e sua famlia. Por hora no temos comentrios a fazer, mas, no momento certo,convocarei a imprensa e todos podero fazer perguntas.

    Eles recuaram, para minha surpresa, embora continuassem me olhando como se euguardasse o segredo mais hediondo do mundo.

    No final do corredor, minha me, ao lado de Christopher, aparentava ter chorado. Caminheiao lado de Jake e quase me comovi. Quase. Ela sofria, mas travvamos uma guerra. O amorpode unir, mas tambm afastar.

    Os reprteres foram ao encontro de Chris, que se disps a conversar com eles.

  • Como foi que os ativistas do Pro-Life descobriram tudo isso? cochichei para Jake. Vamos respondeu. Voc os encorajou a virem para c? No precisei fazer isso. Desde que Christopher passou a dar entrevistas, os reprteres

    tm acompanhado o caso avidamente, e o pessoal do Pro-Life resolveu se manifestar porconta prpria.

    Mas como souberam que o caso viria para o tribunal? Tenho certeza de que eles pesquisam sem parar a lista de sentenas, assim como fazem

    os reprteres. Eu faria o mesmo. Esto tentando impedir mulheres de serem brutalizadas, ecrianas, de serem assassinadas alegou Jake.

    Jake... Rangi os dentes. J sei. Esta no minha causa. Ele alisou a lapela. Voc est com uma aparncia

    horrvel. Quando foi que dormiu pela ltima vez? Dormirei quando voc convencer o juiz a manter os aparelhos de Elle ligados. o que viemos fazer aqui. Jake se deteve diante da porta de entrada do recinto principal

    e sussurrou: Isso pode demorar, portanto melhor se acalmar. Ou seja: durma.Francamente, j ficarei feliz se a justia for to gil quanto minha av, que tem mal deParkinson. Quanto mais durar o processo, mais a gravidez de Elle se prolongar, e melhorser para ns. Reze para que o juiz tenha um corao e uma me catlica. Jake arqueou assobrancelhas. Havia me esquecido; voc catlico. Diga a seu padre que preciso dele comotestemunha.

    Meu padre? No h como fugir de suas crenas religiosas. Jake se aproximou de mim mais um

    pouco. Os catlicos tm a simpatia dos ativistas do Pro-Life. Quero que voc parea devoto,mesmo que seja ateu.

    Embora batizado e crismado na Igreja Catlica e de ter recebido os sacramentosmatrimoniais diante de um padre durante uma missa, eu no frequentava a igreja, tampoucoestava seguro de qual era minha crena. Elle parecia ter uma, e ocasionalmente ia missa. Euaceitava a tica da reciprocidade da doutrina crist e gostava de imaginar um Deusbenevolente. Em termos filosficos, comprara a ideia. Espiritualmente, no entanto, permaneciactico. Se Deus no existia, se o cu e o inferno eram mitos, eu havia perdido Elle parasempre. Diante das circunstncias, preferiria confiar em Deus da mesma maneira que umacriana acredita em Papai Noel.

    Jake olhou de relance para seu smartphone, que tocava, e o desligou. Fiz o mesmo com omeu, notando mais um correio de voz de Melanie.

    Nunca entendi comentou Jake por que os catlicos rezam para os santos e idolatramMaria, mas pelo menos sua igreja acredita que a vida comea na concepo. Ele fez umacareta. J estava na hora de voc extrair alguma coisa deles alm de comer peixe na Sexta-Feira Santa.

    No estava com pacincia nem com disposio suficientes para esclarecer a doutrinacatlica.

    Ento pretende usar a religio? Com certeza. Por acaso no ouviu falar que a liberdade religiosa est na Constituio?Christopher e minha me empurraram as portas da sala de audincias e sumiram. Minha me

    tambm era catlica, mas s de fachada, pois na verdade acreditava no direito de escolha da

  • mulher.Jake deu um tapinha em meu ombro e entramos tambm. Inspire fundo recomendou. Felizmente, o juiz no vai considerar vlido o documento

    assinado por Elle antes de nos dar a oportunidade de apresentar nosso caso.Perscrutei a galeria procura do pai de Elle. Ningum vira Hank nos ltimos dias. Em um

    desses desvios incongruentes pelos quais a mente envereda antes de aceitar a morte dealgum, pensei: Elle deve estar desesperada para localizar o pai.

    As paredes do tribunal eram revestidas com painis de carvalho do cho ao teto. Minha mesentou-se sozinha no local designado aos ru, por no ter contratado nenhum advogado. Atrsdela, Christopher murmurava instrues na certa em seu ouvido.

    Jake e eu nos acomodamos mesa com a placa requerente. Ele folheou o processo quehavia tirado da pasta, eu evitei o olhar de minha me. Ela, que no aparentava os seussessenta e trs anos, parecia bem mais velha sob a luz da manh que atravessava asvidraas. Seu aspecto era desolador, e duvidei que o meu estivesse melhor. Ocorreu-me quetudo aquilo poderia no dar certo caso o beb acompanhasse o destino de Elle , e que eumorreria de exausto, o que me salvaria da responsabilidade de me suicidar.

    Um oficial de justia entrou no recinto. Todos em p. Vossa Excelncia Martin Wheeler presidir a sesso.O juiz entrou e ocupou seu lugar. Como uma onda, ns, que havamos nos levantado,

    voltamos a nos sentar. A autoridade ps sobre a mesa uma pequena pilha de papis, tirou umpar de culos de dentro do estojo de couro e os limpou com um leno enquanto falava:

    O primeiro caso em questo a responsabilidade legal de Elle Lenore Beaulieu. O marido,doutor Matthew Beaulieu, entrou com uma petio para pedir a tutela, e Elinor Beaulieu, quetambm pretende a guarda, fez um requerimento contra as intenes do doutor Beaulieu. Otribunal deve saber que Elinor Beaulieu sogra de Elle Lenore Beaulieu. Os nomes so muitosemelhantes.

    Minha me ergueu a mo. Posso explicar. Alice, me de Elle, deu-lhe esse nome em minha homenagem. Todos me

    chamam de Linney e, se desejar, pode me chamar assim tambm.O juiz estreitou os lbios e esperei uma reprimenda sobre as regras que deveriam ser

    seguidas no tribunal. No entanto, ele pareceu to paciente quanto uma professora de jardim deinfncia.

    Sim. Repetiu pausadamente os nomes e decidiu que minha me seria a senhora LinneyBeaulieu. Senhora Linney, por acaso tem um representante legal?

    Minha me negou com um gesto de cabea. No, apenas preenchi os formulrios conforme instrues do tribunal. Elle deixou assinada

    uma declarao prvia