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ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DE ENVOLVIMENTO ENUNCIATIVO NA ESCRITA ACADÊMICA: ANÁLISE DE TRABALHOS DA PRÁTICA COMO COMPONENTE CURRICULAR Introdução Este trabalho é parte da pesquisa empreendida no curso de doutorado do Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem, da UFRN, sob a orientação da professora doutora Maria das Graças Rodrigues. Nosso objetivo geral é identificar como se dá o gerenciamento de vozes no interior de textos produzidos por alunos de graduação, delineando os aspectos do mediativo na escrita acadêmica, mais especificamente nos trabalhos da Prática como Componente Curricular de diversas disciplinas do curso de Licenciatura em Letras. Neste trabalho, em específico, procuro rastrear nos textos selecionados, apenas uma amostra do corpus, quais marcas linguísticas apontam para a assunção da responsabilidade enunciativa (RE) na escrita acadêmica, concluindo que algumas categorias de análise podem ser propostas como estratégias discursivas para o engajamento enunciativo, dentre elas a o julgamento (ou apreciação), o uso do imperativo (bem como outras formas deônticas), o uso do futuro do presente e locuções verbais com valor de futuro, o uso de dêiticos (como os pronomes de 1ª pessoa), e, por fim, a adjetivação, considerada neste trabalho como

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ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DE ENVOLVIMENTO ENUNCIATIVO NA

ESCRITA ACADÊMICA: ANÁLISE DE TRABALHOS DA PRÁTICA COMO

COMPONENTE CURRICULAR

Introdução

Este trabalho é parte da pesquisa empreendida no curso de doutorado do

Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem, da UFRN, sob a orientação da

professora doutora Maria das Graças Rodrigues. Nosso objetivo geral é identificar como

se dá o gerenciamento de vozes no interior de textos produzidos por alunos de

graduação, delineando os aspectos do mediativo na escrita acadêmica, mais

especificamente nos trabalhos da Prática como Componente Curricular de diversas

disciplinas do curso de Licenciatura em Letras.

Neste trabalho, em específico, procuro rastrear nos textos selecionados, apenas

uma amostra do corpus, quais marcas linguísticas apontam para a assunção da

responsabilidade enunciativa (RE) na escrita acadêmica, concluindo que algumas

categorias de análise podem ser propostas como estratégias discursivas para o

engajamento enunciativo, dentre elas a o julgamento (ou apreciação), o uso do

imperativo (bem como outras formas deônticas), o uso do futuro do presente e locuções

verbais com valor de futuro, o uso de dêiticos (como os pronomes de 1ª pessoa), e, por

fim, a adjetivação, considerada neste trabalho como o recurso mais produtivo para a

análise, sendo o mais representativo dentre as estratégias de engajamento.

A pesquisa se situa no campo da Linguística onde se imbricam pressupostos da

Linguística Textual (LT), da Análise Textual dos Discursos (ATD) e dos estudos sobre

gêneros. Na análise dos textos, o fio condutor a guiar as reflexões propostas são os

conceitos e categorias formuladas no quadro teórico da ATD, especialmente os

conceitos relativos à responsabilidade enunciativa (RE), dentre os quais se destacam as

noções de mediativo, enunciação mediatizada, e PdV. Iniciamos este trabalho, então,

tratando de discutir tais conceitos para no tópico seguinte apresentar as escolhas

metodológicas e a análise de uma pequena amostra dos dados coletados, apresentando

também as categorias de análise da RE.

1. A Análise Textual dos Discursos (ATD)

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Este tópico se ocupa da apresentação da Análise Textual dos Discursos (ATD),

proposta por Adam (2011) e situada num campo mais amplo da Linguística Textual. A

abordagem teórico-metodológica, proposta na ATD, se configura como uma resposta às

demandas impostas na análise de textos, alicerçada num conjunto de reflexões teóricas e

epistemológicas que permitem estabelecê-la no campo da Linguística de Texto, por sua

vez, inscrita, nas reflexões deste autor, no campo mais vasto das análises das práticas

discursivas (Adam, 2011, p.24).

Feitas essas poucas considerações iniciais, apresentaremos, na sequência,

algumas das principais noções da ATD, primeiramente seu modelo textual-discursivo,

compreendido em níveis, depois uma breve descrição dos níveis que compõem a

dimensão textual neste modelo, e por fim, uma descrição um pouco mais detalhada do

nível específico que nos importa neste trabalho: a Responsabilidade Enunciativa.

1.1 O modelo textual da ATD (os níveis dos discursos)

Uma das principais contribuições de Adam (2011) é, sem sombra de dúvida, a

proposta de articulação entre texto, discurso e gênero, base para a redefinição dos

campos de domínio da Linguistica Textual e da Análise do Discurso.

O autor concebe as três dimensões, a saber, texto, discurso e gênero,

interrelacionados em imbricados em níveis, como se pode visualizar no esquema

(Adam, 2011, p.61) transcrito abaixo:

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Nesta representação, o discurso é compreendido como uma instância mais

ampla onde se encerram gêneros e textos. Tal representação se configura,

evidentemente, como uma abstração, que deveria ser compreendida não num plano

bidimensional, mas num plano tridimensional; do modo possível de se representar,

parece que se trata de encaixamentos, quando, na verdade, não é desta maneira que o

autor concebe. Adam concebe essas dimensões numa relação dinâmica e articulada. No

nível do discurso compreendem-se a intencionalidade, objetivos de comunicação

linguisticamente expressos pelos atos ilocucionários, realiza-se numa determinada

formação sociodiscursiva, cujo socioleto é partilhado pelos membros da mesma

comunidade discursiva1, e mediada pelos gêneros, ou como sintetizado pelo autor:

“Toda a ação de linguagem inscreve-se, como se vê, em um dado setor social, que deve

ser pensado como uma formação sociodiscursiva, ou seja, como um lugar social

associado a uma língua (socioleto) e aos gêneros de discurso.” (Adam, 2011, p.63).

Nesta perspectiva o texto se constrói a partir de um conjunto de unidades

típicas básicas heterogeneamente agrupadas de modo a formar os gêneros, elemento

articulador das dimensões textuais e discursivas. A proposta da ATD concebe o texto

formado por proposições (unidade mínima de análise, produto de um ato de enunciação,

cf. Adam, 2011, p.108), que, no conjunto, se organizam a partir de um processo sócio-

histórico de fixação, e formadas por duas dimensões: i) uma dimensão diz respeito à

configuração, e ii) a outra dimensão se relaciona à noção de sequência. O aspecto

configuracional implica em alguns pressupostos semântico-pragmáticos que funcionam

no espaço de uma dada sequência textual, forçosamente configurando-a. Por outro lado,

a dimensão sequencial diz respeito ao modo pelo qual o texto se organiza em sequências

de proposições típicas.

Na dimensão sequencial, a sequência textual se configura como um grupo de

sequências textuais que assumem características típicas e de acordo com um esquema

específico de uma dada sequência. Tal configuração permite o reconhecimento dessas

sequencias em vários gêneros de discurso. Adam toma essa configuração como ponto de

1 Considero bastante conveniente, aqui, o conceito de comunidade discursiva postulado por Swales (1990, p.9) para quem a noção de comunidade discursiva diz respeito aos usos da língua e dos gêneros em contexto profissional, de modo que os membros de uma dada comunidade compartilham um maior conhecimento de suas convenções : [comunidades discursivas são]redes sócio-retóricas que se formam de modo a trabalhar por um conjunto de objetivos comuns. Uma das características que os membros estabelecidos dessas comunidades discursivas possuem é a familiaridade com os gêneros específicos que são usados na busca comunicativa destes conjuntos de objetivos (Swales, 1990, p.9).

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partida para a orientação de seu quadro conceitual, classificando as sequências em cinco

tipos: a narrativa, a descritiva, a argumentativa, a explicativa e a dialogal.

1.1.1 As sequências textuais

Adam (1987) compreende que os mecanismos de textualização são bem mais

complexos do que a mera identificação dos elementos textuais prototípicos, embora

estes sejam justamente o ponto de partida para sua discussão, conforme discutido

anteriormente. Trata-se de macroproposições dependentes de combinações pré-

formatadas de proposições, tais combinações são definidas como sequências

prototípicas a partir de propriedades inerentes à categoria do texto, conforme se observa

a seguir:

a) Sequências Narrativas: compostas por duas grandes características, que se

desdobram, a saber, os eventos e ações. Os eventos se desdobram nas

noções de causa (sob cujo efeito acontecem os eventos) e agente (cuja

intervenção não é intencional). As ações se caracterizam pela presença de

um agente, cuja ação é provocar ou evitar uma mudança. Tais elementos se

organizam numa estrutura hierárquica, conforme se verá no esquema

abaixo. Nessa esquematização, o autor apresenta, em pontilhado, as

macroproposições responsáveis pela inserção das sequencias num texto,

enquanto as outras cinco macroproposições narrativas (Pn) são enumeradas

de acordo com sua ordem linear e cronológica própria.

Neste esquema, Pn1 e Pn5 constituem o limite do processo, enquanto que

Pn2, Pn3 e Pn4 constituem o núcleo do processo.

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O autor argumenta ainda que tal linearidade é ilusória e dissimula uma

ordem hierárquica mais profunda e representada em níveis no esquema

seguinte:

b) Sequência Descritiva: Ao contrário da narração, não apresenta uma ordem

muito fixa, é a menos estruturada, não apresenta organização das

proposições enunciadas em macroproposições hierarquizadas, formando,

assim, mais ciclos de períodos de que de sequências, propriamente dita.

Adam (2011) apresenta um repertório de operações que geram as

sequências descritivas, agrupando-as em quatro macrooperações, que por

sua vez, englobam nove operações descritivas capazes de gerar de gerar

vários tipos de operações descritivas de base. As macrooperações são: i) a

tematização (que engloba a pré-tematização, a pós-tematização e a

retematização), ii) a aspectualização, que engloba a fragmentação e a

qualificação, iii) relação, que engloba as relações de contiguidade e de

analogia, e, por fim, a operação de expansão por subtematização, que

consiste numa “operação de expansão potencialmente ilimitada e regrada

por um pequeno número de operações identificáveis e repetíveis(...)” cf.

Adam, 2011, p.224.

c)

C. sequência argumentativaDe forma geral, as sequências argumentativas de Adam têm a funçãode direcionar as ações dos sujeitos para o convencimento de outros ou, maisespecificamente, trata-se da construção de representações da realidade quevisem modificar a visão de outros sobre determinado objeto. Inspirado por26Ducrot (1988, apud Adam, 1989), Adam afirma que o ato argumentativo é

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constituído com base em um já-dito, em um dizer temporalmente anterior que,na sua forma mais característica, pode aparecer de forma implícita, uma vezsubentendido que o já conhecido pelo interlocutor (que detém o já-dito) nãopreciso ser dito novamente.O esquema argumentativo consiste na apresentação de um dado ouelemento explícito de sustentação, ou seja, um argumento e uma conclusão.Esse esquema pode ser constituído de forma bastante variada, mas sempre selevando em conta que a conclusão seja propriamente a opinião do enunciador epode servir de tese para novas sequências.D. sequências explicativasAs sequências explicativas pressupõem e estabelecem contratosentre pares de interlocutores nas seguintes condições:a) o fenômeno a explicar é incontestável: é umaconstatação ou um fato;b) o que deve ser explicado é o que está incompleto;c) aquele que o explica está em condições de o fazer.O esquema típico da sequência explicativa apresenta três partes,havendo uma parte não computável no início, uma vez que se trata de umapreparação para a explicação. Nessas três fases da explicação, busca-selevantar um questionamento, responder ao questionamento ou resolverproblemas, detalhando-os ou avaliando-os. Neste caso, as sequênciasexplicativas não se assemelham às sequências argumentativas, basicamente,porque não têm como necessidade principal modificar opiniões ou julgamentose valores dos sujeitos envolvidos na explicação.27E. sequência dialogalAs sequências dialogais dizem respeito à conversação e suasvariantes, como entrevistas, palestras e debates. Trata-se de co-construçõesou realizações interativas que se apresentam não somente como umasucessão de trocas argumentativas, mas com uma estrutura hierarquizadadessas trocas.No entender de Adam, existem, basicamente, dois tipos desequências dialogais: as fáticas e as transacionais.As sequências fáticas são ritualísticas e têm a função de abrir efechar a interação. São, portanto, contratadas socialmente, facilmentereconhecíveis como cumprimentos e apresentações.As sequências transacionais são as que compõem o corpo dainteração, onde está realmente a razão do ato comunicativo. Sua forma maiscaracterística é o padrão de pergunta-resposta entre os interlocutores, comdireito a comentários, acordos e desacordos.A abordagem ou perspectiva pragmático-textual de caracterizaçãoe análise de textos é interessante à análise de resumos de comunicação a queeste trabalho se propõe a fazer, no sentido de que possibilita compreender osresumos, desde o início, como textos que narram, argumentam, descrevem,explicam, dialogam ou divulgam teses científicas, no caso, das ciências dalinguagem, algo que torna esses resumos específicos e produto de dinâmicassociais de comunicação próprias.Esse tipo de aspecto, ou seja, o caráter comunicativo dos resumoscientíficos, passa a ser potencializado quando começa a ser reforçada a idéiade que o texto não pode ser analisado com fim em si mesmo, porque pertencea situações especificas e historicamente importantes para a sua própriaexistência.

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Neste sentido, Bonini reconhece que a noção de ‘sequência’ deixaalgumas lacunas para a compreensão das teorias que definem os textos e suasfunções, teorias ora comprometidas com noções cognitivas como algumas jádescritas neste capítulo, ora comprometidas com noções de análise de práticas

2.1 Mediativo (Mediatif/ Mediativité)

Recusando o termo evidentialité, Guentcheva (1996) retoma o termo mediatif,

já introduzido nos estudos linguísticos franceses desde 1956, e explica sua preferência:

Le terme “evidentiel”, um faux ami de l’anglais eviential, evoque

l’evidence, c’est-à-dire la constatation directe. or ni l’oui-dire, ni le

non-vu, ni l’inferentiel ne peuvent être consideres comme dês

evidences. Il est d’ailleurs significant que le terme russe neocevidnost

adopté dans la description dês langues samoyedes, par exemple,

designe la non-evidence. D’autres termes tel data-source, adopté par

M.J. Hardman (1986) pour lês langues jaqi, revêtent uns sens plus

étendu et englobent la connaissance aussi bien personelle que médiate

dês faits de lapart de l’enonciateur. (GUENTCHEVA, 1996, p.13)

Também compreendemos que o termo mediatif responde melhor à questão

do envolvimento/distanciamento do enunciador com seu enunciado, em vez de

evidentialité, que seria um falso cognato, porque o termo mediativo, conforme adotado

por Guentcheva (1996), designa uma categoria gramatical que permite ao enunciador

referir-se a uma determinada situação enunciativa pela qual ele não assume a

responsabilidade, por não ter testemunhado o fato enunciado e dele ter tomado

conhecimento por vias indiretas, seja por ouvir dizer , seja por indícios que o levem a

deduzir ou inferir. Tais estratégias discursivas permitiriam ainda vislumbrar graus de

distanciamento em relação ao que é relatado:

Par médiatif (ou ce que l'on appelle le plus souvent non-testimonial

em français ou evidential en anglais), je désigne la catégorie

grammaticale qui permet à ľénonciateur de marquer formellement

divers degrés de distanciation à l'égard des faits qu'il énonce lui-même

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et de signifier par là que la connaissance de ces faits lui est parvenue à

travers une perception en quelque sorte médiate. (GUENTCHÉVA,

1993, p.57)

Para melhor compreendermos a noção de mediativo, faz-se necessário retomar

alguns conceitos, dos quais a autora parte. A noção de enunciador, no quadro do

mediativo é de fundamental importância, uma vez que é a instância que pode se

responsabilizar pelo fato enunciado. Partindo de Bally, Desclès e Guentcheva (1997,

p.1) admitem que qualquer enunciado pode ser analisado em um “modus”, subjacente a

um “dictum”. A distinção, embora antiga (remonta aos estoicos, com a noçao de lexis) é

retomada em Linguistica, a partir de Bally. Em sua Teoria geral da Enunciação, este

autor estabelece que todo enunciado combina a representação de um processo ou um

estado, que é o dictum, mas este dictum é afetado por uma modalidade, correspondente

à intervenção do sujeito falante, tal dimensão é o modus. A modalidade, se define, sob

esta perspectiva, como uma atitude responsiva do sujeito falante frente a um conteúdo

qualquer, é um posicionamento do locutor, assim, entendemos o que Bally declara:

“toda enunciação do pensamento pela língua é condicionada lógica, psicológica e

linguisticamente. Esses três aspectos somente se recobrem em parte; seu papel

respectivo é muito variável e muito diversamente consciente nas realizações da fala”

(Bally, 1965, p.35). Um enunciado (ou frase, termo equivalente na obra), então, é

constituído linguisticamente e tem em si um lado lógico e um psicológico.

A enunciação é o ato que um sujeito realiza ao comunicar os seus pensamentos.

Pensar é “reagir a uma representação constatando-a, apreciando-a ou desejando-a”

(Bally, 1965, p.35), e a representação consiste em uma noção da realidade que cada

sujeito tem em si mesmo. Bally adverte que “é preciso cuidar para não confundir

pensamento pessoal e pensamento comunicado” (Bally, 1965, p.37).

Assim, um sujeito tem uma noção de realidade, criando uma representação do

mundo, dos outros e de si mesmo. Para exprimir seus pensamentos pessoais, ele faz com

que conceitos virtuais, do sistema linguístico (equivalentes aos signos saussurianos),

sejam atualizados, tornando-se conceitos reais, isto é, ligados à sua representação da

realidade. Ou seja, o sujeito toma os conceitos da língua – que são criados na mente de

todos os sujeitos de uma comunidade linguística – e faz com que se identifiquem com a

sua representação de mundo, pois “para se tornar um termo da frase, um conceito deve

ser atualizado. Atualizar um conceito é identificá-lo a uma representação real do sujeito

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falante” (Bally, 1965, p.77). Ou seja, o sujeito, ao enunciar, faz um uso individual e

único do sistema linguístico.

Retomando o que foi dito mais acima, a frase – ou enunciado, a realização da

fala – é composta linguística, lógica e psicologicamente. Se a sua porção linguística é a

materialização da enunciação, onde estão as porções lógica e psicológica?

A forma lógica da frase é a noção direta e objetiva que o sujeito tem em

contato com os signos da língua antes que opere subjetivamente sobre elas. Bally chama

essa parte da frase de dictum. Já a porção psicológica é justamente aquela referente à

“operação psíquica que o sujeito opera sobre ela” (Bally, 1965, p.36), isto é, o ato de

atualização em si, que o autor denomina modus ou modalidade. Deste modo, o modus

pode ser entendido como a alma do enunciado. Não por acaso o autor (1965, p.35)

afirma que a modalidade, tanto quanto o pensamento, se constituem essencialmente pela

operação ativa do sujeito falante. O valor de uma frase está tão intrinsecamente

relacionado à enunciação quanto à modalidade, de tal forma que não se pode avaliar um

sem considerar o outro, embora Bally admita que seria didaticamente conveniente

estudar separadamente as três partes da enunciação, mas admite também que os fatores

psicológicos do pensamento são tão bem engrenados na estrutura lógica que não se pode

abstraí-los e, por conseguinte, a forma linguística não se separa das outras duas para fins

de análise. Assim, o autor considera que na análise lógica das formas de enunciação se

encontram igualmente considerações sobre as outras duas ordens.

Admitimos que toda frase contém, obrigatoriamente, uma modalidade que

permite ao locutor julgar o que uma coisa é ou não é, avaliar o desejável e o indesejável,

querer ou não querer. O modus e o dictum, são, aparentemente, duas noções que se

imbricam e são necessárias à realização de um enunciado.

Deve-se ainda acrescentar o fato de que o autor considera que a questão da

reação do sujeito enunciador é subordinada à definição da representação. É também

uma relação muito estreita que mantém os termos de uma frase, logicamente

constituídos (o sujeito modal, o verbo modal e o dictum). Para Bally (1965), um

enunciado como “Eu creio que este réu é inocente” apresenta um sujeito pensante (eu),

operando um ato de julgamento (creio) sobre uma representação (a inocência do réu).

Assim, para este autor, todo enunciado é constituído de um sujeito modal (x, o que

reage), e de um dictum (a representação, ou objeto da reação). Considerando-se tais

elementos, nos perguntamos se a modalidade se manifesta na forma de um verbo, pois

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se sabe que a modalidade pode ser expressa por um numero razoável de elementos

sintáticos e gramaticais.

Conforme atestado por Desclès e Alrahabi (s/d), a teoria da enunciação

pressupõe a constituição de um enunciado a partir de várias operações, das quais nos

interessa o desengajamento enunciativo. A operação de desengajamento realizada por

um enunciador consistiria em aplicar um operador complexo, designado como modus,

sobre um operante, designado como dictum (ou relação predicativa) com a finalidade de

se obter um determinado resultado. Tal distinção entre modus e dictum não se dá no

nível concreto, mas num nível mais abstrato onde o modus e o dictum são representados

por operações lógico-gramaticais. Também Guentcheva e Desclès (1997) definem o

meadiativo a partir das relações entre o modus e o dictum:

A la suite de E. Benveniste, nous appelons “sujet énonciateur” le

sujet modal qui est partie constitutive du modus. Ce sujet énonciatif

prend en charge ce qui est dit - le dictum -, c’est-à-dire ce qui est

exprimé par une relation prédicative. Chaque énoncé qui est la

manifestation linguistique d’un acte d’énonciation est donc le

résultat d’une opération complexe de “prise en charge”, soit

directement, soit médiatement, par un énonciateur d’une

représentation prédicative ou d’un dictum. L’opération de prise en

charge est décomposable en plusieurs opérations élémentaires. La

prise en charge fait nécessairement appel à l’opérateur d’énonciation

, noté par “JE...DIS”, où JE désigne le sujet énonciateur et DIS un

opérateur verbal d’énonciation. Cet opérateur reste souvent non

exprimé directement dans les énonciations directes mais il est

toujours sous-jacent aux énonciations. Le dictum tombe alors sous

l’opérateur d’énonciation “JE...DIS” ou en d’autres termes, il est

opérande de cet opérateur. (GUENTCHEVA e DESCLÉS, 1997,

P.1)

O mediativo se constrói a partir de uma ruptura que se estabelece na relação

predicativa. Em Culioli, observamos que numa enunciação qualquer, o enunciador

valida (ou não) as relações predicativas, seja por meio de recursos sintáticos, seja por

meio de marcadores não exclusivos deste valor. Guentcheva (1994,p.9) afirma que a

categoria do mediativo é organizada em torno de três valores: fatos relatados (quando se

trata de fatos dos quais se toma conhecimento a partir do discurso de outrem, incluindo-

se aqui os rumores e o diz-que, e os conhecimento advindos da tradição: lendas, mitos,

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narrativas históricas, etc..), fatos inferidos (aqueles inferidos pelo sujeito enunciador) e

fatos de surpresa (cuja constatação imprevista é motivo de surpresa para o sujeito

enunciador).

Em Guentcheva (1994, p.11) se admite que: “L’hypothèse que nous avançons

ici est la suivante: toute occurrence d’un énoncé mediatif introduit nécessairement une

situation d’enonciation médiatisée SitM qui est em rupture par rapport à la situation

d’enonciation Sit0.”. Assim, compreendemos que o valor mediativo é uma operação

sobre uma ruptura enunciativa e que SitM é referencialmente independente de Sit0. Essa

ruptura pode ser total ou afetar apenas um dos parâmetros, os enunciadores ou os

instantes. Importa-nos, então, compreender duas instâncias: um SM, um enunciador

mediatizado, fundamentalmente indeterminado, em ruptura com S0 e um TM, um

instante mediatizado, fictício, em ruptura com T0.

3. Metodologia

3.1. Estratégias de engajamento enuciativo: as categorias de análise empregada

na amostra dos dados.

Guentcheva (1994 e 1996) procura determinar categorias do mediativo

exclusivamente em tempos e modos verbais do francês e do búlgaro. Neste trabalho,

procuramos focar algumas estratégias discursivas de distanciamento,

independentemente do uso de tempos e modos verbais. Assim, tentamos delinear

algumas estratégias discursiva específicas visando ao engajamento/responsabilização

enunciativa. Dentre as estratégias elencamos aqui a o julgamento (ou apreciação), o uso

do imperativo (bem como outras formas deônticas), o uso do futuro do presente e

locuções verbais com valor de futuro, o uso de dêiticos (como os pronomes de 1ª

pessoa), e, por fim, a adjetivação, considerada neste trabalho como o recurso mais

produtivo para a análise, sendo o mais representativo dentre as estratégias de

engajamento.

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3.Conclusão

Numa conclusão provisória ( levando-se em conta que este trabalho representa um

levantamento preliminar dos dados coletados) os dados apontam para a existência de vários

recursos linguísticos que favorecem o distanciamento e/ou desresponsabilização por parte do

falante em relação ao conteúdo proposicional de um enunciado. Também se podem elencar

inúmeras hipóteses que expliquem tal distanciamento, muito útil para o discurso jornalístico,

mas um tanto indesejado no discurso acadêmico, sob pena de fazer parecer que o autor não se

envolveu com sua pesquisa o suficiente para que seus pares confiem em suas asserções.

Inicialmente, aventávamos a hipótese de que o sub-gênero em análise poderia estar

relacionado aos eventos de desresponsabilização enunciativa destacados, o que poderia ser

atribuído a uma maior dificuldade na produção de um determinado gênero, ou do

desconhecimento da estrutura do gênero em questão. No entanto, a distribuição quase uniforme

das ocorrências de desresponsabilização, categorizadas nos itens apresentação de inferências,

o uso de interrogações e de verbos de opinião, a disjunção enunciativa e o discurso

relatado, demonstra que o uso de tais estratégias não está exatamente relacionado à

dificuldade de produção de um determinado gênero, mas, sobretudo, ao modo como o

produtor de textos acadêmicos, em disciplinas de graduação, se relaciona com o

referencial teórico estudado e com seu objeto de estudo, quais relações ele consegue

produzir entre seus dados e as análises que consegue produzir à luz do referencial

teórico.

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