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Processo & Efetividade Série Direitos Humanos e Estado Democrático de Direito Volume 3

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Processo & Efetividade

Série Direitos Humanos e Estado Democrático de Direito

Volume 3

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FELIPE MARTINS PINTO GLÁUCIO FERREIRA MACIEL GONÇALVES

Coordenação

Processo & Efetividade

Série Direitos Humanos e Estado Democrático de Direito

Volume 3

Belo Horizonte

2012

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PROCESSO E EFETIVIDADE Felipe Martins Pinto

Gláucio Ferreira Maciel Gonçalves Coordenação

1ª Edição – 2012 – Initia Via

Copyright © desta edição [2012] Initia Via Editora Ltda. Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104 - Bairro Lourdes

Belo Horizonte, MG, Brasil, 30140-061 www.initiavia.com

Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro Editora Adjunta: Renata Esteves Furbino

Arte da capa: Eduardo Furbino Revisão: Coordenadores e autores

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Processo e efetividade / coordenadores: Gláucio Ferreira

P963 Maciel Gonçalves, Felipe Martins Pinto - Belo Horizonte : Initia Via, 2012. 118 p. – (Série Direitos Humanos e Estado Democrático de

Direito; v. 3) Outros autores: Jéssica Oníria Ferreira de Freitas, Silvia Saraiva Fonseca, Ana Paula Santos Diniz, Alex Lamy de Gouvêa, Ana Flávia Nogueira Silva, Ana Luiza Rocha de Melo Santos ISBN 978-85-64912-43-4 1.Direito processual. 2. Juizados especiais. 3. Ação civil Pública. I. Gonçalves, Gláucio Ferreira Maciel. II. Pinto, Felipe Martins. III. Série

CDU: 34(082)

Juliana Moreira Pinto – Bibliotecária – CRB/6-1178

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Sumário

Pls 156/09 e o acordo para aplicação da pena: avanço ou retrocesso? ...................................... 7  

Jéssica Oníria Ferreira de Freitas  

Filosofia do direito processual e o assédio processual no século XX ................................. 27  

Silvia Saraiva Fonseca  

A vulnerabilidade da população em situação de rua e a efetivação de seus direitos fundamentais ................................................. 57  

Ana Paula Santos Diniz  

“Deu com uma mão e tirou com a outra?” A criação dos juizados especiais federais ........ 67  

Gláucio Maciel Gonçalves  Alex Lamy de Gouvêa  

Os príncipios processuais na proposta da nova lei de ação civil pública .................................. 93  

Ana Flávia Nogueira Silva  Ana Luiza Rocha de Melo Santos  

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PLS 156/09 E O ACORDO PARA APLICAÇÃO DA PENA AVANÇO OU RETROCESSO?

Jéssica Oníria Ferreira de Freitas1

Resumo: No presente artigo empreende-se uma análise acerca do instituto do plea bargain, previsto no PLS 156/09 – projeto de reforma do código de processo penal – ava-liando sua compatibilidade com um modelo de processo penal democrático e acusatório, tal qual previsto na Cons-tituição de 1988. Inicialmente, abordam-se os modelos de justiça fundados no paradigma consensual, dentre os quais se situa a barganha. Passa-se, então, ao estudo espe-cífico do plea bargain, notadamente a regulamentação dada pelos projetos de código de processo penal e código penal. Defende-se, então, a incompatibilidade do instituto com os direitos e garantias previstos na Constituição de 1988, os quais visam a afastar, do processo penal, ele-mentos de natureza inquisitorial. Palavras-chave: processo penal democrático; sistema acu-satório; garantias constitucionais; plea bargain.

Introdução

O processo penal, no contexto de um Estado democrático, cumpre uma dupla função. De um lado, viabilizar a aplicação do direito material. Por outro – e mais relevante – servir de instrumento de garantia dos direitos fundamentais e da liberdade do indivíduo. Uma vez que toda intervenção penal traz consigo traços de

1 Mestranda em Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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autoritarismo e violência, busca-se, através do processo penal, limitar e racionalizar o poder punitivo estatal.

Com efeito, este “caminho” processual, que pode culminar ou não na pena, somente se justifica na medida em que garante que sejam respeitados os direitos funda-mentais do sujeito. Como bem ilustrado por Zaffaroni2, a dogmática jurídica não deve voltar-se à busca de legiti-mação do poder punitivo. Pelo contrário, deve ocupar-se da contenção deste poder, o fazendo através da conso-lidação das garantias inerentes ao Estado de Direito.

Como aponta J. GOLDSCMIDT, os princípios de política processual de uma nação não são outra coisa do que seg-mento da sua política estatal em geral; e o processo penal de uma nação não é senão um termômetro dos elementos autoritários ou democráticos de uma Constituição. A uma Constituição autoritária vai corresponder um processo penal autoritário, utilitarista (eficiência antigarantista). Contudo, a uma Constituição democrática, como a nossa, necessariamente deve corresponder um processo penal democrático, visto como instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema de garantias constitucionais do indi-víduo.3.

Assim é que a Constituição brasileira, ao propor a estruturação de um Estado Democrático de Direito, trouxe em seu bojo princípios e garantias que devem lastrear o processo penal pátrio. Referidas garantias cons-tituem limites da intervenção do Estado na vida do indi-víduo e devem, portanto, ser respeitadas desde a ela-boação da norma até o momento da execução da pena, primando, assim, pela legitimidade do aparato punitivo e seus instrumentos de atuação. Configuram-se, de um lado, a mais alta proteção do indivíduo face ao poder punitivo estatal e, de outro, uma blindagem contra a uti-lização ideológica do sistema penal. Legalidade, ampla defesa, contraditório, presunção de inocência – só para

2 Palestra ministrada pelo Professor Eugênio Raul Zaffaroni no 18ª Congresso Internacional de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM – em 28 de agosto de 2012. 3 LOPES JR., Aury. Direito Penal e sua Conformidade Constitucional. V. I. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. P.7

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mencionar alguns exemplos – são os alicerces de um pro-cesso penal democrático e devem, por conseguinte, mol-dar todos seus institutos.

Todavia, e como bem apontado por Geraldo Pra-do4, verifica-se um divórcio entre as previsões constitu-tucionais do processo penal e as práticas cotidianas. Ergue-se uma barreira simbólica, porém forte, contra a força normativa da constituição relativamente à presun-ção de inocência e demais garantias e, por conseguinte, contra o próprio sistema acusatório5. Assim, apesar da acusatoriedade delineada na Constituição, verifica-se a subsistência de práticas inquisitórias “travestidas em téc-nicas de controle social aparentemente conforme os novos tempos” 6.

Isso porque o direito tem se curvado ante a pressões políticas e midiáticas que cultivam a cultura do medo e a sensação de impunidade, reforçando, assim, a construção de um discurso penal autoritário. Poderosos setores da sociedade clamam pelo recrudescimento da legislação penal e processual, na expectativa de que um direito severo seja mais efetivo. Verifica-se, contudo, que referido recrudescimento, além de ser incapaz de conter os índices de criminalidade, vem sendo realizado à custa de princípios e garantias fundamentais, atentando, dessa forma, contra a própria estrutura do Estado de Direito.

Por outro lado, a evidente crise do sistema penal alardeia a necessidade de medidas aptas a solucionarem problemas inquietantes, como a superlotação e preca-

4 PRADO, Geraldo.Crônica da Reforma do Código de Processo Penal Brasileiro que se inscreve na disputa política pelo sentido e função da Justiça Criminal. In COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de (org). O Novo Processo Penal à Luz da Constituição (Análise Crítica do Projeto de Lei nº 156/0 9, do Senado Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.P. 9. 5 Idem 6 PRADO, Geraldo. Campo jurídico e capital científico: o acordo sobre a pena e o modelo acusatório no Brasil – A transformação de um con-ceito. In PRADO, Geraldo. MARTINS, Rui Cunha. CARVALHO, L.G. Grandinetti de. Decisão judicial – a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 7.

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riedade do sistema carcerário, a morosidade excessiva dos processos e a sensação de impunidade cultivada, sobretudo, por influência midiática. E, atento a tais questões – mas, desatento a outras de igual ou maior relevo – o projeto de reforma do código de processo penal (PL 156/2009) inova ao introduzir no ordenamento jurídico brasileiro um institito importado do direito norte-americano: o plea bargain.

No presente trabalho, empreende-se uma análise do instituto do plea bargain para, então, avaliar a compati-bilidade do mesmo com um modelo processual penal acusatório e democrático. Para tanto, é realizado um estudo do modelo de justiça negociada, notadamente a configuração dada pelo PLS 156/12 e pelo PLS 236/12 (projeto de reforma do código penal), constrastando-o com os preceitos caracterizadores do processo penal deli-neado na Constituição.

Pretende-se, assim, atentar para a urgente necessi-dade de discussão do tema, para evitar que o plea bargain seja acriticamente introduzido na legislação brasileira, fragilizando a estrutura de garantias previstas na Consti-tuição da República.

1 Modelos de justiça consensual

O processo penal, seja ele acusatório ou inqui-sitório, busca na “verdade” sua fonte de legitimação. Inclusive, as diferentes concepções de verdade são o traço distintivo essencial entre os dois sistemas processuais: enquanto no inquisitório persegue-se uma verdade real, consubstanciada na ilusória tentativa de se alcançar uma perfeita correspondência entre o fato e sua formulação posterior, no modelo acusatório a verdade é construída através de “um debate plural com a participação da sociedade, do acusado, e da vítima” 7.

7 PINTO, Felipe Martins. Introdução crítica ao processo penal. Belo Hori-zonte: Del Rey, 2012. P. 152/153.

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A impossibilidade de uma completa correspondência entre o fato (situado, pois, no passado, como o nome indica) e a imagem do fato na mente do juiz, a necessária imparcialidade do julgador, como garante da existência do próprio processo penal no Estado de Direito, e os blo-queios éticos à aquisição das informações (proibição das provas ilícitas) separam rigidamente as estruturas acusa-tórias das de índole inquisitorial8.

Casara9 atenta para a relevância do consenso no jogo democrático, sendo o mesmo imprescindível no pro-cesso de elaboração das leis. Contudo, destaca o jurista o relevante papel da verdade no âmbito do processo penal, sendo a mesma erigida “como um dos valores da jurisdição penal, condição de legitimidade à declaração do direito penal” 10.

Garcia- Pablos de Molina11, por sua vez, sustenta a existência de três modelos de resolução dos conflitos penais: o modelo dissuasório clássico, fundado em uma implacável resposta punitiva estatal, que seria suficiente para reprovação do delito cometido e, ao mesmo tempo, prevenção de futuros crimes. A pena, nesse caso, teria uma finalidade retributiva e punitiva; o modelo resso-cializador, que atribui à pena a finalidade de resso-cialização do infrator; e o modelo consensuado de justiça penal, que seria fundado no consenso, no acordo e nas diferentes modalidades previstas para a realização do consenso (transação, mediação, conciliação ou negocia-ção).

8 PRADO, Geraldo. Poder Negocial (sobre a pena), Common Law e processo penal brasileiro: Meta XXI, em busca de um milhão de presos!?. In BONATO, Gilson [org]. Processo Penal, Constituição e Crí-tica. Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Cou-tinho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. 0. 308. 9 CASARA, Rubens R.R. O Acordo para Aplicação da Pena: Novas Considerações Acerca da Verdade e do Consenso no Processo Penal Brasileiro. In COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de (org). Op. cit. 10 Idem. p. 148. 11GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antônio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 5ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.p.398.

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São tais modelos de justiça, fundados no “con-senso”, que têm ganhado cada vez mais espaço nas legis-lações processuais penais. Importado do direito norte-americano, cuja cultura jurídica fundada no common law diverge completamente da estrutura brasileira, o modelo consensual vem sendo paulatinamente incorporado pelo processo penal pátrio.

Dentro do conceito de justiça consensual, convém distinguir diferentes modelos de resolução de conflitos, sendo os principais a mediação, a negociação e a concilia-ção.

A mediação é o expoente da chamada Justiça Res-taurativa. Pode ocorrer dentro ou fora do sistema penal, sendo dirigida por terceiros imparciais (mediadores). Neste modelo, entende-se o crime como uma violação de pessoas e relacionamentos, devendo a ofensa ser “com-preendida em seu contexto total: ético, social, econômico e político”12. Segundo Molina, por meio da mediação

[...] objetiva-se a integração social de todos os envolvidos no problema, a preservação da liberdade, ampliação dos espaços democráticos dentro da filosofia do castigo a todo preço, restauração do valor da norma violada, da paz jurídica e social, etc.13

O modelo negocial, por sua vez, tem seu principal exemplo no plea bargaining norte-americano. Tal modelo tem por base a confissão do delito e assunção da culpa-bilidade, a partir das quais é realizado um acordo sobre a quantidade de pena, sua forma de execução, a reparação dos danos, dentre outros elementos que envolvam o deli-to. A negociação é realizada entre o acusado, seu advoga-do e o Ministério Público, sem interferência do juiz, sendo válido, a princípio, para todos os delitos, inclusive fatos

12ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a jus-tiça – Justiça Restaurativa. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008. P. 175. 13BIANCHINI, Aline; GOMES, Luiz Flávio; GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antônio. Direito Penal – Introdução e Princípios Fundamentais. Coleção Ciências Criminais, V.1. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-nais, 2009. p. 41.

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mais graves (ao contrário do modelo brasileiro, por exemplo, em que a conciliação é cabível somente diante de fatos que, em tese, configuram crimes de menor poten-cial ofensivo). Referido modelo, que tende a ser introdu-zido na legislação brasileira, será analisado em momento posterior.

1.1 A justiça consensual no Brasil

A conciliação é o modelo adotado no Brasil a par-tir da criação dos Juizados Especiais Criminais pela Lei 9.099/95. É dirigida por meio de um juiz ou conciliador, que objetiva alcançar a reparação dos danos ou composi-ção civil ou, ainda, se cabível, a transação penal. Trata-se de um “consenso judicializado”, uma vez que a solução do conflito não fica ao encargo e arbítrio exclusivo das partes, mas apresenta uma regulamentação legal, que prevê condições específicas – e também um procedimento judicial – para a realização da conciliação.

A Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, cumprindo comando do artigo 98, I, da Constituição da República de 1988, introduziu, no cenário brasileiro, a figura dos juiza-dos especiais, com competência para processar e julgar as infrações penais de menor potencial ofensivo, definidas no artigo 61 da mesma Lei. Na redação inicial deste disposi-tivo legal, considerava-se infração de menor potencial ofensivo toda aquela cuja pena privativa de liberdade máxima não ultrapassasse 1 (um) ano. Após as alterações introduzidas pela Lei 11.313/2006, o conceito foi estendi-do para alcançar infrações – contravenções penais ou cri-mes – a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos. No âmbito de tal legislação, convém destacar três institutos que consubstanciam modelos consensuais de resolução de conflitos: a composição civil dos danos; transação penal; e suspensão condicional do processo.

A composição civil, prevista no artigo 74 da Lei 9.099/95, preza, sobretudo, pela reparação dos danos causados pelo fato supostamente delituoso. Diante da realização do acordo, opera-se uma causa extintiva da

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punibilidade, sendo impeditivo, ainda, de nova demanda indenizatória no juízo cível.

A transação penal, por sua vez, independe, em regra, da manifestação da vítima14. Consiste em uma espécie de acordo proposto pelo Ministério Público em favor do acusado de crimes de menor potencial ofensivo (pena privativa de liberdade máxima não superior a dois anos), desde que preenchidos determinados requisitos legais. Cumprida as condições apresentadas na proposta de transação penal, opera-se a extinção da punibilidade do acusado, não podendo, por óbvio, ser ele processado pelos mesmos fatos. Diferencia-se do plea bargaining na medida em que a discricionariedade do Ministério Público é regrada, limitada pelos parâmetros estabe-lecidos na Lei. Constitui, ainda, conforme entendimento que vem sendo firmado na doutrina e jurisprudência, direito subjetivo do acusado. Outrossim, a aceitação da proposta de transação penal não implica em assunção de culpa, tampouco em condenação, não constando na ficha

14 Tem sido discutida a possibilidade de oferta de transação penal para os acusados em ação penal de iniciativa privada. Embora uma inter-pretação literal da lei indique que a transação penal é cabível apenas em ações penais públicas incondicionadas ou condicionadas à repre-sentação, o entendimento que tem prevalecido na doutrina e juris-prudência é no sentido de que, por tratar-se de benefício em favor do acusado, a transação penal constitui direito subjetivo do mesmo, desde que preenchidos os requisitos legais. Dessa forma, seria cabível tam-bém em ações penais de iniciativa privada, uma vez que não há justi-ficativa plausível para a diferença de tratamento. Nestes casos há, ainda, uma segunda discussão, sobre quem seria legitimado para a proposição da transação penal, se o querelante ou o Ministério Públi-co. O entendimento não é pacificado, sendo que se verificam casos em que a própria parte formula a proposta de transação penal (podendo o Ministério Público intervir quando a proposta distanciar-se dos parâ-metros legais e de razoabilidade) e, em outros, o Ministério Público assume a titularidade da proposta, assim como nas ações de iniciativa pública. Sobre o tema, HC 13337/RJ, julgado pelo STJ em 15/05/2001(Relator: Ministro Felix Fischer, Órgão Julgador: 5ª Câma-ra, DJ 13/08/2001, p.181): “PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. LEI Nº 9.099/95. AÇÃO PENAL PRIVADA. A Lei nº 9.099/95, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permite a transação e a suspensão condicional do processo, inclusive nas ações penais de iniciativa exclu-sivamente privada. (Precedentes). Habeas corpus concedido.”.

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de antecedentes criminais. Apenas limita o acusado no que tange à aceitação de uma nova proposta de transação penal no prazo de 5 (cinco) anos.

A suspensão condicional do processo não se res-tringe à hipótese de crimes de menor potencial ofensivo, sendo cabível, nos termos do artigo 89 da lei ora em aná-lise, nos casos em que a pena mínima cominada foi igual ou inferior a 1 (um) ano, desde que preenchidos os demais requisitos objetivos e subjetivos. Aceita a pro-posta, o processo fica suspenso por um período de prova compreendido entre 2 (dois) e 4 (quatro) anos, podendo ser retomado a qualquer tempo, se descumpridas as con-dições propostas e aceitas. Cumpridas as condições e expirado o período de prova, o juiz declara a extinção da punibilidade do acusado, sem que haja qualquer dis-cussão do mérito.

A realidade dos Juizados Especiais Criminais, todavia, acaba se afastando dos princípios que os norte-teiam, bem como dos direitos e garantias inerentes a todo processo de natureza criminal. Neste sentido, García-Pablos de Molina e Gomes15 atentam para algumas defi-ciências que têm sido observadas na realidade operacio-cional dos Juizados Especiais Criminais. Embora susten-tem que a Lei 9.099/95 criou um novo modelo de garan-tias atrelado, também, ao devido processo legal e que, em última instância, confere maior preservação da dignidade da pessoa humana, não fecham os olhos para as deficiên-cias do sistema, notadamente no que se refere ao respeito às garantias mínimas penais e processuais penais:

Ainda que sejam incontáveis as vantagens do sistema con-sensual, já se podem ser observadas umas claras ten-dências comprometedoras do sistema, destacando-se, den-tre tantas outras: (a) a aplicação contra legem da pena pri-vativa de liberdade (embora sem fundamento legal, há juízes que arbitrariamente estão aplicando a pena de pri-são quando há o descumprimento da transação); (b) a ine-xistência de uma solução racional quando acontece esse descumprimento da transação penal: iniciar o processo é

15GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. op. cit.

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impossível por falta de lei; mandar prender é arbitrário porque o sistema consensual não admite a prisão; conse-quentemente, com urgência necessitamos de uma reforma legal para corrigir essa anomalia autofágica do sistema; (c) a inobservância dos critérios interpretativos da insigni-ficância e adequação social, que levam à atipicidade; (d) a realização de transação penal em relação a fatos concretos penalmente atípicos; (e) a desconsideração das garantias inerentes à imputação objetiva e subjetiva; (f) o absurdo de se formular a proposta de transação penal sem a míni-ma descrição do fato típico cometido (para se condenar alguém já não é preciso o processo tradicional, mas já não se pode dispensar a existência de um fato típico, obvia-mente); (g) a não participação do juiz na discussão da transação penal; (h) a desconsideração do princípio da ofensividade, etc. Se em teoria a lei dos juizados foi con-cebida para despenalizar (mínima intervenção), na práxis, muitas vezes, está dando efeito contrário, porque as garantias mínimas penais e processuais não estão sendo observadas16.

Verifica-se, então, que mesmo o modelo consen-sual já introduzido pela Lei 9.099/95 suscita intensos debates, tanto no que se refere aos seus fundamentos teó-ricos quanto em relação à sua realidade operacional. A tendência antigarantista de tal modelo é sustentada por importantes estudiosos do tema, conforme será delineado adiante. Contudo, apesar das críticas levantadas, o mode-lo de justiça consensual tem ganhado maior espaço na legislação brasileira, sobretudo diante da previsão da jus-tiça negociada (plea bargain) nos projetos de reforma do código penal (PLS 236/12) e do código de processo penal (PLS 156/09).

2 Negociação sobre a pena: o plea bargain

Bettiol, atentando para a relação intríseca entre Constituição e Processo, descreveu que um Código Pro-cessual que não encontre seu fundamento racional, polí-tico e jurídico em uma Constituição que “reconheça e

16 GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. op. cit. p.617/618.

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garanta os direitos invioláveis do homem” se encontra exposto a todas as possibilidades de reformas vinculadas a maiorias político-parlamentares ocasionais, com grave prejuízo das liberdades públicas e privadas17.

Realmente, os apelos midiáticos e a grande influência do discurso sobre violência e segurança pública nos debates eleitorais, acaba por conduzir os políticos a um discurso de reformas da legislação processual ordiná-ria fundado em uma cultura autoritária, alinhada a movimentos de lei e ordem e de um Estado de defesa social, o que culmina em um recrudescimento da legisla-ção incompatível com a preservação dos direitos funda-mentais. Assim, um processo penal que não esteja inti-mamente atrelado à Constituição, é ainda mais suscetível a ideologias diversas, sobretudo de caráter repressivo, que apresentam maior respaldo popular.

Ocorre que, apesar do alicerce constitucional que embasa o processo penal brasileiro, vivencia-se, contem-poraneamente, a situação acima exposta. A legislação processual caminha em sentido contrário à Constituição, o que é claramente perceptível na análise do PLS 156/09 no que se refere à introdução, no processo brasileiro, do instituto do plea bargain.

Referido instituto é amplamente aceito no direito norte-americano, onde se estima que 90% dos casos sejam resolvidos por tal procedimento. Neste sistema, no qual vigora o princípio da disponibilidade, o Ministério Público negocia com o acusado a aplicação de pena sem juízo, mediante a declaração de culpa, oferecendo deter-minadas “vantagens” em contrapartida como, por exem-plo:

[...] a retirada de uma imputação conservando-se outra (charge bargaining); redução da pena e concessão de bene-fícios (sentence bargaining) retirada de uma acusação con-servando-se outra (charge bargaining); alteração da acusa-

17 BETTIOL, Giuseppe. Instituciones de Derecho Penal e Procesal, Bar-celona: Bosch, 1977, p.222. apud PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório – A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 42

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ção inicial para outra punida com crime menos grave (charge bargaining); concordância com pena reduzida (sen-tence bargaining); redução de pena e concessão de bene-fícios como a probation (sentence bargaining); e, por fim, pode ser acordado ainda, que o acusado testemunhe con-tra pessoa com atuação de maior relevância no grupo em que age18.

Já no direito brasileiro, o projeto de reforma do código de processo penal situa o plea bargain no procedi-mento sumário, fazendo expressão menção, no artigo 281, à possibilidade de aplicação imediata da pena em crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse oito anos. O requerimento, que pode ser feito pelo Ministério Público ou pelo acusado, através de seu defensor, deve ser formu-lado até o início da audiência de instrução e julgamento. Preveem-se três requisitos para o acordo: a confissão total ou parcial do acusado em relação aos fatos que lhe são imputados; o requerimento de que a pena seja aplicada no mínimo legal; e expressa manifestação das partes dis-pensando a produção das provas por ela produzidas.

Deve-se ressaltar que, ao contrário da transação penal e suspensão do processo, quando é realizado o acordo entre ministério público e acusado, nos moldes do artigo 281 do PLS 156/09, há verdadeira assunção de culpa, com aplicação de pena e todos os demais efeitos da condenação. O projeto de lei é expresso nesse sentido, ao dispor, no artigo 283, que “para todos os efeitos, a homo-logação do acordo é considerada sentença condenatória”. Veja-se:

CAPÍTULO III DO PROCEDIMENTO SUMÁRIO Art. 283. Até o início da instrução e da audiência a que se refere o art. 276, cumpridas as disposições do rito ordiná-rio, o Ministério Público e o acusado, por seu defensor, poderão requerer a aplicação imediata de pena nos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse 8 (oito) anos.

18DUARTE, Hugo Garcez; MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. Justiça Consensual e tutela dos direitos fundamentais. In PHRONESIS: Revista do Curso de Direito da FEAD. Nº 4, jan-dez 2008. P. 66.

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§1º. São requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo: I – a confissão, total ou parcial, em relação aos fatos impu-tados na peça acusatória; II – o requerimento de que a pena privativa de liberdade seja aplicada no mínimo previsto na cominação legal, independentemente da eventual incidência de circunstân-cias agravantes ou causas de aumento de pena, e sem pre-juízo do disposto nos §§ 2º e 3º deste artigo; III – a expressa manifestação das partes no sentido de dis-pensar a produção das provas por ela indicadas. § 2º. Aplicar-se-á, quando couber, a substituição da pena privativa de liberdade, nos termos do disposto no art. 44 do Código Penal, bem como a suspensão condicional do processo prevista no art. 77 do mesmo Código. § 3º Mediante requerimento das partes, a pena aplicada conforme o procedimento sumário poderá ser, ainda, diminuída em até 1/3 (um terço) do mínimo previsto na cominação legal, se as condições pessoais do agente e a menor gravidade das consequências do crime o indica-rem. § 4º. Não se aplica o disposto no § 3º deste artigo se incidir no caso concreto, ressalvada a hipótese de crime tentado, outra causa de diminuição de pena, que será expressa-mente indicada no acordo. § 5º. Se houver cominação cumulativa de pena de multa, esta também será aplicada no mínimo legal, devendo o valor constar do acordo. § 6º. O acusado ficará isendo das despesas e custas proces-suais. § 7º. Na homologação do acordo e para fins de aplicação da pena na forma do procedimento sumário, o juiz observará o cumprimento formal dos requisitos previstos neste artigo. § 8º. Para todos os efeitos, a homologação do acordo é considerada sentença condenatória. § 9º Se, por qualquer motivo, o acordo não for homo-logado, será ele desentranhado dos autos, ficando as par-tes proibidas de fazer quaisquer referências aos termos e condições então pactuados, tampouco o juiz em qualquer ato decisório. Art. 284. Não havendo acordo entre acusação e defesa, o processo prosseguirá na forma do rito ordinário.

As violações a garantias constitucionais evi-denciam-se da simples leitura do texto legal. Em um pri-meiro momento fala-se em confissão dos fatos: a simples confissão é suficiente para viabilizar a aplicação da pena,

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dispensando-se a atividade probatória. O dispositivo apresenta caráter nitidamente inquisitorial, uma vez que despreza a presunção de inocência e retoma a tarifação de provas que marca os processos inquisitivos. A confissão, como regina probatum, é capaz de atestar a culpabilidade e afastar garantias de ordem constitucional. Basta que o sujeito se declare culpado para que o Estado aceite e o penalize. Basta a renúncia à instrução probatória para que, em respeito à autonomia da vontade, mas em des-respeito a garantias fundamentais, se afaste a jurisdição e se desconsidere o moroso, custoso e desnecessário pro-cesso. Pois a antecipação do juízo penal, com imediata aplicação da pena representa um atentado contra o pro-cesso penal, contra sua imprescindibilidade para a solu-ção do conflito criminal, contra os institutos que custaram séculos de lutas para serem reconhecidos e consolidados. Como bem alertado por Geraldo Prado, a impossibilidade de vulneração da presunção de inocência, “obedece à lógica de impor limites ao encarceramento como estratégia histórica de controle social. É contra esta lógica que o devido processo legal se instituiu no Brasil, pós 1988” 19. Assiste-se, contudo, o retorno de tal estratégia, com a facilitação do encarceramento à revelia do devido processo legal.

Dessa forma, ante a necessidade de se resolver deficiências do sistema jurídico-penal, desconsidera-se sua estrutura basilar, contribuindo para o agravamento da situação de crise.

De fato, a abreviação do procedimento, com a eliminação da atividade probatória, acarreta a celeridade da prestação jurisdicional, transforma prisões provisórias em execuções definitivas da pena, torna desnecessária a investigação criminal de diversos delitos e diminui o trabalho das diversas agências estatais encarregadas da persecução penal. O legislador, contudo, ao apresentar o proce-dimento sumário como resposta procedimental a essas distorções acaba por naturalizá-las, aceitando-as como realidades dadas (e não como fruto de políticas criminais

19 PRADO, Geraldo. MARTINS, Rui Cunha. CARVALHO, L.G. Gran-dinetti de. op cit. p. 55

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equivocadas ou perversões inquisitoriais) que não podem ser transformadas20.

Assim, a fim de conter o assoberbamento da justi-ça criminal, a excessiva morosidade dos processos, a falta de eficácia punitiva alardeada pelos meios de comunica-ção, a fragilidade das investigações policiais, dentre outras situações que evidenciam a crise do sistema penal, constrói-se um modelo no qual se faculta a renúncia a direitos e garantias irrenunciáveis. Resolve-se o problema do excesso de presos provisórios, tornando as prisões definitivas; da morosidade do judiciário, afastando-o da solução do conflito criminal; da aclamada impunidade, por meio do incremento estatístico do número de conde-nações, uma vez que muitos dos acordos aceitos pode-riam resultar em absolvição, prescrição ou qualquer outra causa de extinção da punibilidade.

Forja-se, então, um processo sem contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, em suma, sem as bases elementares de um modelo processual acusatório e democrático, tal qual delineado na Constituição da República e expressamente mencionado no PLS 156/09.

Ressalta-se que as garantias que norteiam o pro-cesso penal têm por objetivo suprir o natural desequilí-brio existente no seio da instrução criminal. Com efeito, o prato da balança pende para o lado em que se situa o Estado-acusador e Estado-julgador, sendo evidente a posição de fragilidade do acusado perante todo o aparato punitivo estatal.

Diante desse contexto de desequilíbrio, um acordo pautado na autonomia da vontade e liberdade das partes é altamente ilusório. O acusado, quando não acom-panhado de uma defesa técnica de qualidade – situação corriqueira na justiça criminal, na qual o público majori-tário é a população de baixa renda – invariavelmente será pressionado à aceitação do acordo, ante a ameaça de um

20CASARA, Rubens R.R. O Acordo para Aplicação da Pena: Novas Considerações Acerca da Verdade e do Consenso no Processo Penal Brasileiro. In COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de (org). Op. cit. p. 150.

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processo demorado e uma pena mais grave. Tal situação, aliás, é verificável no atual contexto, quando da oferta da proposta de transação penal. A consequencia da bar-ganha, contudo, é mais grave: implica em assunção de culpa e condenação, com todos os efeitos deletérios decorrentes desta.

Tanto é o interesse político na inserão do instituto do plea bargain no direito brasileiro, que, a despeito de se tratar de norma processual, a previsão se repete no proje-to de reforma do código penal nº 236/12. Neste, é deno-minado barganha, conforme disposto no artigo 105:

Barganha Art. 105. Recebida definitivamente a denúncia ou a queixa, o advogado ou defensor público, de um lado, e o órgão do Ministério Público ou querelante responsável pela causa, de outro, no exercício da autonomia das suas vontades, poderão celebrar acordo para a aplicação ime-diata das penas, antes da audiência de instrução e julga-mento. § 1º. São requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo: A confissão, total ou parcial, em relação aos fatos imputa-dos na peça acusatória; O requerimento de que a pena de prisão seja aplicada no mínimo previsto na cominação legal, independentemente da eventual incidência de circunstâncias agravantes ou causas de aumento de pena, e sem prejuízo do disposto nos §§ 2º a 4º deste artigo; A expressa manifestação das partes no sentido de dispen-sar a produção das provas por ela indicadas. §2º Aplicar-se-á, quando couber, a substituição da pena de prisão, nos termos do disposto no art. 61 deste Código. § 3º Fica vedado o regime inicial fechado. § 4º Mediante requerimento das partes, a pena prevista no § 1º poderá ser diminuída em até um terço do mínimo previsto na cominação legal.

A regra do projeto de código penal assemelha-se à do projeto de código de processo penal, apresentando, contudo, uma diferença marcante: não há qualquer limi-tação aos crimes aos quais se pode aplicar a barganha. Assim, se aprovado somente o projeto de código penal, a negociação sobre a pena será cabível em qualquer delito,

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mesmo aqueles de alto grau de reprovabilidade (e, por-tanto, penas elevadas), sendo, em todos os casos, vedado o regime inicial fechado.

Verifica-se, assim, que não obstante as reformas legislativas tenham por escopo harmonizar a legislação penal e processual penal com a Constituição de 1988, há previsão de institutos que representam grave retrocesso. A afirmação de que o sistema processual brasileiro é acu-satório, tal qual expressamente realizada no projeto de código de processo penal, não basta para que ele o seja. Os institutos, as regras, devem traduzir os fundamentos de um sistema acusatorial, de um processo penal demo-crático, que cumpra sua finalidade de proteção do indiví-duo. Não se pode permitir que o Estado, no exercício do poder de penalizar aqueles que descumprem a lei, viole a Lei maior, qual seja, a Constituição. Não se pode permitir que a inquisitoriedade seja reforçada, aplaudida, imple-mentada pelo legislador com uma roupagem suposta-mente democrática. O plea bargain, então, ante sua mani-festa incompatibilidade com os preceitos constitucionais que regem o processo penal pátrio, deve ser rechaçado, antes que a nova lei seja aprovada e entre em vigor.

Conclusão

Conforme asseverado ao longo deste trabalho, o processo penal cumpre uma missão constitucional, de efetivação de direitos e garantias inerentes a todos os indivíduos e de especial relevo para aqueles acusados do cometimento de uma infração penal. Diante do patente desequilíbrio entre o poder de acusar, julgar e punir do Estado, de um lado, e o indivíduo, de outro, a este deve ser conferido certos direitos e garantias que constituem a finalidade e a condição de legitimidade do processo penal.

Assim, ao propor a estruturação de um processo marcado pela acusatoriedade, compatível com um modelo de Estado democrático, a Constituição de 1988 elencou, em cláusula pétrea, uma série de direitos irre-

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nunciáveis e que devem ser fazer presentes no âmbito da instrução criminal.

O código de processo penal, todavia, data de 1941, antes da atual Constituição, portanto, e deriva de um momento político marcado por grande autoritarismo. Assim, apesar das posteriores reformas, os traços de inquisitoriedade ainda são marcantes, e clamam pela ela-boração de uma nova legislação, compatível com o mode-lo de Estado construído pós-1988.

Diante da preemente necessidade, foi apresentado projeto de lei de reforma do código de processo penal, já aprovado na Câmara dos Deputados e atualmente em trâmite no Senado Federal – PLS156/09.

Todavia, não obstante a proposta legislativa expressamente eleja o modelo de processo penal acusató-rio – único compatível com o regime democrático –, o projeto inova ao inserir na legislação brasileira um insti-tuto marcantemente inquisitorial e contrário às garantias processuais e constitucionais: o plea bargain.

O instituto vem atender uma demanda popular, potencializada pelos meios de comunicação, em prol maior eficácia punitiva, celeridade processual e redução da criminalidade. Todavia, em vez de solucionar o problema, tão somente o mascara.

Conforme apontado anteriormente, o plea bargain funda-se em um paradigma de justiça consensual e negocial, e consiste em verdadeira barganha entre acusa-do e acusador, onde aquele, sob a promessa de uma pena reduzida, abre mão da instrução probatória e aceita a imediata aplicação da sanção penal.

Possibilita-se, assim, a renúncia a direitos e garantias irrenunciáveis: o contraditório, a ampla defesa, a inderrogabilidade do juízo e, sobretudo, a presunção de inocência. A bases de um processo penal acusatório e democrático são esfaceladas, restando fortalecido um poder punitivo estatal indiscriminado e sem controle.

Contudo, apesar das críticas formuladas pela doutrina especializada, apontando a manifesta incompa-tibilidade do plea bargain com o modelo de processo penal preconizado pela Constituição de 1988, sua inclusão no

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novo código de processo penal tende fortemente a ser aprovada. Isso porque, os interesses políticos, de atender os anseios punitivos da população em busca de aprova-ção eleitoral, falam mais alto do que a voz daqueles que defendem a prevalência da Constituição e dos direitos e garantias nela elencados.

Eis então, a atual realidade do processo penal bra-sileiro. Diante da possibilidade de mudanças e implemen-tação de um processo verdadeiramente acusatório e democrático, optou-se, mais uma vez, pela inquisitorie-dade, em prol da tradicional técnica utilizada pelo Estado para camuflar problemas de ordem social: o encarcera-mento.

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FILOSOFIA DO DIREITO PROCESSUAL E O ASSÉDIO PROCESSUAL NO SÉCULO XX

Silvia Saraiva Fonseca1

Resumo: O estudo presente objetiva a pesquisa jurídica nacional relacionada com a dimensão social dos proce-dimentos usados pela sociedade globalizada, sob o ponto de vista da ética e moral, bases para a nova comunidade jurídica do Século XXI. Esta pesquisa defende um novo conceito em termos de filosofia processual baseada nas garantias fundamentais, novas formas de participação e modos alternativos de proteção da justiça baseada na conciliação, papel e responsabilidades do magistrado. A visão social dos procedimentos altera a visão tradicional, permitindo um novo espaço aos processualistas desen-volverem a noção da lei como norma de efetivo papel no mundo concreto, focando o processo mediante a luz das necessidades de seus usuários.

Palavras-chave: filosofia, ética, moral, processo.

O litígio, sendo estrutural, traz a noção de que o outro não satisfaz, preenche ou apaga a insistente pre-sença da falta. O altar dessa discórdia é trazido, em muitos casos, para o tri-bunal, como uma tentativa de se bus-car a solução para a falta que o litígio provoca no sujeito da ação. 2

1 Graduada em Direito pelas Faculdades Milton Campos. Especialista em Direito Tributário, Direito Material e Processual do Trabalho e Direito Civil e Processual Civil. Doutoranda em Ciências Jurídico-Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino. 2 Fernanda Otoni de Barros. Cada cabeça uma sentença: o litígio con-jugal. Belo Horizonte: ed. Psique, 1996.

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Introdução

O presente estudo aborda, essencialmente, a evo-lução do direito processual no mundo contemporâneo, sob o ponto de vista da psicanálise, filosofia, ética e moral processuais. Preliminarmente, são traçadas linhas gerais sobre o estudo das bases éticas humanas no direito e seu desenvolvimento, sob o ponto de vista da psicanálise. Já em segunda acepção, é analisado o modelo brasileiro de direito processual e suas bases éticas e teóricas acerca do Estado Democrático de Direito. Lembrando-se que o direito material e o direito processual não devem ser ana-lisados de forma hierarquizada, o direito processual tem relevante e essencial função a de garantir os direitos fun-damentais.

Busca-se, dessa forma, por meio da cultura aca-dêmica e da vida prática dos tribunais um processo civil característico de uma sociedade participativa e infor-matizada, global e justa. Por isso defende-se a termi-nologia da ética processual, em detrimento de “abuso pro-cessual” ou “assédio processual”. Observa-se, ainda, que autores consagrados como Cappeletti e Willis Santiago Guerra Filho chegaram a propor a criação de uma “filo-sofia do direito processual” como instrumento ético.

1 A coibição dos excessos processuais no processual civil

No percurso acadêmico para a defesa da ética pro-cessual enquanto tema da filosofia do direito processual brasileiro, percebe-se no presente estudo que a imposição da obrigação de reparar o dano não depende de reque-rimento de partes, portanto. Há o interesse público em coibir os excessos verificados em condutas contrárias à moral e ética inerentes ao processo, garantindo-se credibi-lidade e eficiência do processo enquanto instrumento de

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jurisdição democrático e necessário ao exercício do poder jurisdicional pelo Estado-juiz.

Ficará demonstrado, por fim, que o assédio proces-sual não necessita de regulamentação específica para sua sanção, tal como ocorre com outros institutos como a “má-fé” processual, que com o primeiro não se confunde. O ato imoral endoprocessual merece o estudo pelo Poder Judiciário guardião efetivo da supremacia constitucional e da ordem democrática no contexto de uma nova hermenêu-tica lógico-jurídica sediada nos direitos fundamentais.

2 Dedução filosófica no conhecimento científico evolutivo do processo civil brasileiro de forma qualitativa

A metodologia utilizada no presente estudo com-preende o método dedutivo, uma vez que parte das pre-missas filosóficas acerca da evolução temporal do direito processual no mundo e no Brasil. As premissas de caráter científico consideradas adequadas ao nosso modelo pro-cessualista indicam as razões para o conhecimento cientí-fico evolutivo no sentido histórico e sociológico do pro-cessualismo brasileiro.

O instrumento dedutivo utilizado na presente pesquisa ainda aponta para uma conclusão acerca de criação de nomenclatura para o estudo da filosofia do direito processual, já que aborda de forma ampla algumas das principais argumentações jurídicas indispensáveis para a compreensão do modelo que pretendemos vivenciar, a partir da realidade jurídica contemporânea.

Nesse estudo em formato de monografia, foram utilizadas fontes bibliográficas em sua maior parte, espe-cialmente no que se refere às bases processuais em que o mundo foi constituído sob o ponto de vista jurídico até o século XX. Já a partir do novo século, novas fontes con-temporâneas foram mais utilizadas, como jurisprudência, sites e artigos jurídicos acerca do tema.

A pesquisa foi classificada como qualitativa, não pretendendo abordar quaisquer aspectos quantitativos de pesquisa documental, mas destacar pontualmente

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posições doutrinárias e de jurisprudência que seguem o caminho da pesquisa presente nesta monografia, o desenvolvimento de uma filosofia do direito processual capaz de coibir atos assediadores do processo como um todo, a partir do século XXI.

2.1 Do direito processual responsável de Mauro Cappelletti ao referencial psicanalítico de Fernanda Otoni De Barros: valores éticos eleitos pela sociedade contemporânea

O ponto de partida para a presente pesquisa apre-senta o levantamento do tema por meio de trabalhos aca-dêmicos, livros e publicações dos grandes filósofos e pen-sadores do direito, no que se refere ao direito processual.

Poucos autores reconhecidos internacionalmente se manifestaram sobre o tema em questão. O primeiro autor referenciado no presente estudo é Mauro Cappelletti, jurista italiano que influenciou o século XX por abordar questões como a oralidade processual, garantia dos direitos fundamentais e direito processual responsável. Já sob o ponto de vista da psicanálise no direito, outro nome de importante relevância é Fernanda Otoni de Barros, psi-canalista mineira e psicóloga judicial do Tribunal de Jus-tiça de Minas Gerais. Seus trabalhos possuem grande reconhecimento e são, inclusive, materiais de referência que constam nos editais para concursos públicos dos tri-bunais de justiça brasileiros.

O processo do conhecimento das bases filosóficas do século passado em comparação como o que pre-tendemos em termos de justiça processual para o novo século exige um referencial teórico diversificado para a compreensão da sociedade democrática em que vivemos. Os valores éticos eleitos por nossa comunidade jurídica como alicerces do futuro processual são as bases do pre-sente estudo científico, pautado na racionalidade cien-tífica e lógica instrumental processual.

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2.2 Atitudes processuais assediadoras do processo e as formas de coibí-las

A pesquisa apresentada no presente estudo monográfico apresenta um problema social de grande relevância para a sociedade jurídica contemporânea: a identificação de atitudes processuais assediadoras do processo como um todo, prejudiciais às partes e promovedoras da morosidade da justiça.

Este problema na identificação jurídica do ato assediador do processo implica, por via de consequência, no segundo problema abordado neste estudo: as formas legais de se coibir as práticas assediadoras do processo, as san-ções desenvolvidas sob a forma de indenização, que não se confundem com as sanções praticadas com base na má-fé.

O levantamento dos dois problemas acima descri-tos ainda sugere uma nova forma de estudo do direito processual sob o ponto de vista filosófico, mediante o desenvolvimento de uma filosofia do direito processual. Trata-se de uma forma encontrada de se começar a discutir academicamente as questões éticas e morais relevantes para a sociedade democrática e participativa do novo século.

3 O direito processual brasileiro contemporâneo: bases éticas e sociológicas do Estado Democrático de Direito

No atual contexto pela busca da ética nas relações humanas e nos meandros processuais dos litígios, torna-se indispensável cumprir e desenvolver a instrumentali-dade eficaz do processo como um todo, também e espe-cialmente, em tempos de análise extensiva das normas de processo civil que constituirão um novo diploma legal, pelas casas legislativas nacionais, a partir do ano de 2010.

Pretende o presente estudo colaborar, em termos gerais, para a coibição de atuação ineficaz e protelatória que caracteriza o abuso de direito praticado em todas as

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circunscrições e instâncias nacionais. O novo tema, que ainda não se transmutou em instituto jusprocessualista, prescinde de estudo científico acerca de aspectos funda-mentais como a definição clara, critérios de análise e apli-cabilidade de sanções coibentes da prática injusta marca-da pelo assédio processual. Defende-se, por fim, a conde-nação por assédio processual como uma das formas con-temporâneas de se buscar um processo ético no Estado Democrático de Direito e formar uma sociedade parti-cipativa eficiente na defesa não apenas da legalidade, mas da ética processual no século XXI. Isso porque a mera lega-lidade não se apresenta suficientemente eficaz na busca pela ética comportamental do ser humano – “em cada sujeito sempre é possível advir um duplo jogo de legali-dades. Uma legalidade própria da cultura, dos códigos escritos, do Direito e uma outra legalidade, própria do registro intrapsíquico da subjetividade3”.

O Poder Judiciário brasileiro, inspirado nas bases filosóficas do sistema jurídico europeu a partir do século XVIII, sustenta-se como alicerce normativo da coletivida-de participativa contemporânea, amparado pelos princí-pios da igualdade e liberdade, trata-se do formato jurídico contemporâneo. Mas o modelo de processualismo dos Estados Democráticos, a partir do século XX, cobre-se de peculiaridades entre fundamentos principiológicos, direi-to material e direito processual que necessitam do ade-quado sopesamento para a aplicação do direito contem-porâneo garantidor das liberdades individuais e coletivas. Os pressuspostos ético-jurídico basilares nunca foram tão determinantes do tipo de sociedade democrática e parti-cipativa a partir do final do século XX.

O movimento ético marcou a entrada no século XX, a partir do final da era militar brasileira, inaugurou-se o desenvolvimento jurídico no sentido de um modelo processual mais completo, tanto em termos normativos como em termos de eficácia prática – o direito processual autônomo ganharia novos contornos éticos. O desenvol-

3 SAUNIER, Roberto. III Congresso Ibero-Americano de Psicologia Jurídica. São Paulo, 1999.

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vimento científico de um direito processual autônomo abrangeria a desconstrução deontológica do direito pro-cessual então vigente em seus pontos deficientes, insufi-ciente sob o ponto de vista normativo e excessivamente agregado ao conteúdo de direito material.

A subsequente esperada queda do tecnicismo típico das primeiras gerações de processualistas no mundo, além de promover alterações no próprio direito processual brasileiro, marcou um novo tempo de integração entre povo e Poder Judiciário; o direito proces-sual finalmente passaria a ser encarado como “instrumen-to da realização de justiça”, alterando substancialmente o cenário acadêmico dos novos processualistas, que revolu-cionariam o estudo das normas instrumentais como um eficiente recurso para a eficaz realização de justiça.

A doutrina e jurisprudência brasileiras caminhavam mediante novos passos; a comunidade jurí-dica formada anteriormente aos ensinamentos de Jean-Jacques Rosseau, filósofo do século XVIII, compreendia que a relação entre os homens deveria ser “intermediada”, mas não de forma “imediata”. A sociedade da época aca-bou sendo nomeada pelos filósofos como “a sociedade polida”, até que Rosseau defendesse que determinadas questões sociais não deveriam ser alvo de normatização. O filósofo suíço apontou no desenvolvimento de sua obra Confissões que a violência humana se estabelecia no momento em que o homem passava a viver em socieda-de. Dessa forma, essa mesma sociedade necessitaria da criação de lobbies para a regulamentação dessa convivên-cia humana, como os conhecidos “acordos de paz”, por meio da regulamentação positivada, como se observa na criação do direito processual moderno e desenvolvimento do direito processual contemporâneo.

O nosso modelo político brasileiro do final do século XX abarcou claramente esse lobbie preliminarmente referenciado por Rosseau em prol de um “bem comum” que sociologicamente reflete um desejo social que merece ser observado também pelo direito brasileiro: a escolha democrática para a governança do país modelada num presidente que decide “além do saber”, uma vez que o

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mero conhecimento científico e filosófico das ciências humanas foi menos considerado, em prol de uma suposta ética política de justiça social, a honra do homem como aquilo que recobre a vergonha da imoralidade.

A lógica do pensamento humano social e sua pre-cipitação no tempo trouxeram paradigmas a serem modi-ficados no futuro, defendendo-se a inexistência do saber completo sobre uma ciência, toda conclusão é forço-samente precipitada. Desenvolveu-se o pensamento analí-tico e psicanalítico sobre o ser humano, e por essa razão pensadores modernos como Lacan defendiam ser a psica-nálise uma ética, a “base epistemológica da psicanálise é o conflito do homem com o mundo, e este mundo não se cura”. O direito, nesse novo contexto psicanalítico, seria apenas a forma de se transparecer e normatizar esse con-flito entre homem e mundo, e estaria sempre “atrasado” em relação aos novos momentos sociais vividos pelas sociedades diversas em todo o mundo, positivando com-portamentos considerados éticos, eivados de moralidade e responsabilidade. Trata-se da busca de uma justiça social realizada de forma eficaz no mundo contem-porâneo.

A busca pela realização eficaz de justiça pro-cessual remete-se à lição dos professores Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino4 acerca do conceito de Estado e seus objetivos precípuos: Estado é a organização de um povo sobre um território determinado, dotada de soberania, com vistas ao atingimento de um conjunto de finalidades. Dessa forma, a Constituição cria juridicamente o Estado, determinando-lhe a estrutura básica, instituindo poderes diversos (com-petências) e estabelecendo limites a eles, dentre tais direi-tos e garantias das pessoas. Assim, torna-se clara a inten-ção doutrinária atual no sentido de transformação do direito processual como uma das formas de se dar eficácia ao papel do Estado, enquanto garantidor de direitos e garantias individuais e coletivas.

4 PAULO, Vicente, ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. Niterói: ed. Impetus, 2006, p.1.

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No entanto, a doutrina constitucional e processual brasileira nem sempre seguiu o curso da busca ética pela justiça social, no Brasil e no mundo. A transição nacional entre o período ditatorial brasileiro para o período de liberdade de expressão foi marcado por duas escolas pro-cessualistas de destaque: uma “escola prea ditatorial tecni-cista” e “escola post ditatorial funcional”5. A técnica proces-sualista da primeira corrente doutrinária processualista deu lugar à funcionalidade processual da segunda corren-te, destacando o primeiro grande desenvolvimento pro-cessual – tecnicismo versus funcionalidade. Foi a primeira grande mudança no processualismo nacional, abarcando a doutrina e jurisprudências, abrindo portas para novos pensamentos científicos e a reconstrução do conceito de ética jurídica nesse processo.

A partir de então a jurisprudência, como técnica jurídica de presunção do “desejo normativo” ideal, con-tribuiu para o desenvolvimento científico de abertura dos caminhos jurídicos para novos conteúdos morais, como realização eficaz da democracia amparada pelo senso de justiça. Percebe-se, nessa mudança cultural e acadêmica que marca o novo século, a primeira grande colaboração acadêmica para a desenvolução processual brasileira: deixa-se de pensar em objetivo da norma (remotamente conhecida como “espírito da norma”) para se constituir a nova ciência processualista instrumental, publicamente sustentada pela eficácia e eficiência nos julgados de todas as instâncias nacionais e pelo interesse precípuo da dou-trina e jurisprudência na realização da “melhor justiça” nos casos concretos.

Este novo tempo de processualismo científico é intimamente relacionado à questão do processo analisado à luz da Constituição, formando-se o instrumento de justiça

5 Sugestão de nomenclatura apenas para fins didáticos de dife-renciação marcante entre correntes de direito processual, antes e depois do período militar brasileiro. Lembra-se que não se faz referência a nenhum processualista defensor dessa nomenclatura, sendo feita nesses termos para elucidação didática do período cronológico asso-ciado ao marco processualista típico de cada período histórico.

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em garantia das liberdades individuais e coletivas; trata-se do direito processual constitucional, um novo direito pro-cessual que tem por objetivo proteger a análise do estudo científico da praxis a partir de princípios e garantias que sobre ela se projeta a lei maior. Sendo assim, o processo contemporâneo traduz a ideal universalização da tutela jurisdicional e do modelo do Estado Constitucional Demo-crático no século XXI.

O estudo da ética contemporânea seguiu em busca de um novo modelo de Estado Constitucional Participa-tivo no novo século e, nessa concretização, tornou-se indispensável o estudo originário sobre a harmonia nas relações humanas. As relações humanas regulamentadas pelo direito foram descrita em três princípios filosóficos e sociais básicos: o princípio do bom senso, que difere inevita-velmente do “desejo” humano, mas de sua adequação ao atendimento e hierarquização sociais. Em segunda acep-ção, pelo princípio da irresponsabilidade, a atuação humana de forma imoral atingiria essencialmente questões pes-soais das quais a pessoa não teria responsabilidade, como ocorre com a depressão, considerada a doença do século e que, infelizmente, é tratada em consultórios psiquiátricos com medicação moderna, deixando de lado seu estudo de ordem do desejo, na psicanálise. Por fim, o princípio da eterna vigilância, que na defesa de Miguel Reale Júnior, tra-ta-se do preço da liberdade como sendo o eterno delito, uma vez que a eterna vigilância como sendo o fator coer-citivo da liberdade.

4 A etimologia de “abuso” e “assédio” no direito no modelo processual

A noção de “abuso” compreende o uso incorreto ou ilegítimo característico do uso excessivo ou imoderado dos poderes6. Já em termos leigos de compreensão popu-lar (integrados na língua portuguesa oficial pelo uso

6 Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: ed. Objetiva, 2001, 1 CD.

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popular), a noção de “abuso” abrange o ato de se opor aos usos e aos bons costumes. A terminologia também foi referenciada pela linguagem jurídica do Direito Romano como sendo o “uso intenso da coisa”, transmitindo-se a ideia de aproveitamento completo, in verbis: jus utendi et abutendi e summum jus summa injuria.

A noção de “assédio” compreende a insistência impertinente característica da perseguição7. A termi-nologia utilizada na língua portuguesa faz referência às operações militares de guerra nas quais se exige a neces-sidade do exercício de domínio das tropas militantes. Já em termos leigos de compreensão popular (integrados na língua portuguesa oficial pelo uso popular), a noção de “assédio” abrange o ato de molestar, agir de modo ino-portuno.

A adoção da terminologia adequada para o desenvolvimento das novas teorias processuais sobre “abuso” ou “assédio” depende, essencialmente, do desenvolvimento de um novo tratamento jurisdicional baseado na defesa da ética processual a partir do Século XXI. A defesa do processo ético, sopesando-se princípios em conflito de aplicação prática8 é merecedora de status de direito social fundamental. A criação da defesa de um processo ético, e sua elevação como direito social funda-mental, se mostra como um primeiro grande passo norma-tivo e doutrinário no sentido de se demonstrar a neces-sidade da proteção de um processo ético, no lugar de normas esparsas coibidoras das atitudes de má-fé. Isso porque, conforme demonstrado anteriormente, os con-ceitos de uso e assédio não se confundem com a simples má-fé diagnosticada no processo: trata-se do uso imode-rado de um direito legítimo, o abuso de um instrumento de realização de justiça, mas transvestida de boa-fé, den-

7 Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: ed. Objetiva, 2001, 1 CD. 8 Exemplo acadêmico: amplitude do exercício do direito de defesa de parte demandada que pode atingir direito fundamental da parte demandante em sinuosas implicações que, apesar de não serem macu-ladas pela ilicitude, transvestem-se do manto nefasto da falta de ética.

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tro dos direitos possíveis de alegação, apenas utilizados de modo abusivo. Tal como a alimentação do corpo é necessária e legítima, mas pode provocar abusos nefastos, o uso imoderado do processo também pode provocar tais consequências indesejadas pela sociedade participativa contemporânea.

Uma justiça social coibidora de “abusos” ou “assédios” processuais parece objetivar não simplesmente uma forma de sancionar participantes processuais por suas atuações abusivas ou assediadoras, conforme defendido anteriormente, mas começar a instigar o desenvolvimento de um novo modelo de processo ético em busca da justiça social, até mesmo com pretensões de direito social fundamental. Natural e notável, portanto, o surgimento de uma original plêiade de processualistas que despontam no novo século em busca de uma possível justiça social no sistema capitalista globalizado.

5 Filosofia do direito processual e bases éticas, psicanalíticas e sociológicas do comportamento processual

Uma nova gama de juristas do novo século deve se deparar com essa nova sociedade que desponta no século XXI, de ausência de limites (especialmente com o outro), de demandas baseadas em sentimentos violentos (e não apenas com o objetivo de sanar pretensões resistidas) e com o uso inadequado e exacerbado de “armadilhas” processuais como forma de se alongar um processo judicial de curso normal, evitando a sentença judicial a quase qualquer custo. Essa nova posição que surge na doutrina e jurisprudência é amparada por filóso-fos clássicos e pela contemporaneidade.

Lembra-se que Freud, em 1925, formula a posição do julgador sob o ponto de vista psicológico, pela pri-meira vez: “a função do juízo tem que tomar essen-cialmente duas decisões. Deve atribuir ou negar uma qua-lidade de uma coisa e deve conceder ou impugnar a exis-tência de uma representação na realidade”. Assim, sope-samos os valores com base na realidade existente, sem

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devaneios ou processualística técnica que nos impeça de buscar a verdadeira proteção judicial pretendida. Já neste século, de acordo com Fernanda Otoni de Barros9, “num espaço de leis, Direito e Psicanálise se tocam. A psica-nálise nos fala da Lei reguladora da diferenciação subje-tiva e o jurídico, expressão do Outro, aí deve estar, em sua dimensão simbólica, também falando da regulação da subjetividade”. Percebe-se clara a necessidade da com-preensão do que o processo é feito, sentimentos humanos em litígio a serem discutidos no palco do Poder Judi-ciário, único capaz de separar os sentimentos dos direitos, e os direitos dos abusos processuais, no objetivo de sanar a questão sob o ponto de vista estatal, mediante prin-cípios éticos básicos.

Dessa forma, infere-se, portanto, que a noção das duas expressões mais referenciadas no estudo processual vigente (uso e assédio) ainda se mostra deficiente quanto ao real objeto do novo direito processual contemporâneo. Este novo direito processual não se basta no sentido de pinçar e sancionar atos processuais pontuais eivados de “abuso” ou “assédio” em relação à legislação vigente, mas busca realizar a cultura acadêmica e na vida prática dos tribunais acerca do processo característico de uma sociedade participativa e informatizada, global e justa. Por isso defende-se a terminologia ampla da ética proces-sual, em detrimento de “abuso processual” ou “assédio processual”. A relevância do transporte dessa revolução processual para o processo trabalhista já foi referenciada por Cappeletti e Willis Santiago Guerra Filho, que chega a propor a criação de uma “filosofia do direito processual” como instrumento ético. Para isso, retomar o conceito de direito processual sob um novo prisma ético torna-se indispensável no momento.

Considerando-se o Direito Público como ramo do direito que regula a atividade desenvolvida pelo Estado no âmbito da administração da justiça, o Direito Processual encontra-se inserido nesse ramo e apresenta espécies dife-

9 SILVA, Cyro Marcos da. Entre Autos e Mundos. 1 ed. Vol. 4. Belo Horizonte: Ed. Del Rey, 1994.

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renciadas. O Direito Processual pode ser compreendido, para fins acadêmicos, como gênero de três espécies pro-cessuais autônomas: Direito Processual Penal, Direito Pro-cessual Civil e Direito Processual do Trabalho. A diferencia-ção acadêmica privilegia a necessidade social da aplicação eficiente e eficaz da legislação processual brasileira na persecução da justiça, por meio de implicações peculiares da legislação processual nas relações sociais contem-porâneas.

A garantia do acesso à justiça e tempo razoável do processo, valores processuais corroborados em princípios basilares na seara processual, são pautados no princípio da dignidade da pessoa humana, incluídos no texto constitucio-nal a partir da vigência da Emenda Constitucional Nº 45 de 2004 (artigo 5º, XXXV e LXXVIII da Constituição de 1988). Corrobora-se o interesse da efetivação deste princí-pio constitucional no âmbito processual civil pelo próprio arcabouço valorativo do princípio da celeridade processual, proeminente fundamento processual do mundo jurídico contemporâneo.

Expressiva gama da magistratura nacional demonstra tolerância frente a postulações desprovidas de boa-fé, alcançando a violação de normas reitoras do pro-cesso e atingindo os valores sociais constitucionais da justiça. A ausência de instrumentos refreadores das con-dutas jurisdicionais abusivas acaba por apontar o escasso aprimoramento jurisdicional acerca de assédio processual, tema de extrema relevância para a sociedade democrática e participativa surgida nos anos 1990 e que vem ganhando espaço no Poder Judiciário nacional a partir dos anos 2000, em função do desenvolvimento tecnológi-co que possibilita informação e atuação sociais. A insufi-ciente aplicação das cominações legais, reiteradamente, provoca o desuso do comportamento processual ético, interferindo negativamente na atuação do Poder Judiciá-rio nacional, uma vez que incentiva a sedimentação de um sistema jurídico pós-moderno autopoiético e até mesmo autodestrutivo, em determinadas atuações pro-cessuais anti-éticas pontuais.

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Nesse mesmo sentido, a boa-fé processual serviria quase como um álibi, na visão de Fernanda Otoni de Barros. Isso porque o Código de Processo Civil dedica raros dis-positivos legais aos homens de má-fé, mas traça muitos limites àqueles de boa-fé, demonstrando o direito que, se por um lado acolhe mais a boa do que a má-fé, não é ingênuo para deixar-se iludir. Trata-se de uma clara noção no sentido de que a codificação processual tem íntima ligação com o caráter do postulante e postulado, compreendido como a ética e moral aplicados no pro-cesso, nem sempre de clara distinção. Uma leitura crítica do sistema jurídico é suficiente para nos informar que o Direito não garante o justo, apenas trabalha sopesando valores e interesses buscando a forma mais justa de solu-ção de conflitos.

A ideal compreensão do assédio processual exige o desenvolvimento dos conceitos de ética aplicados ao processo brasileiro. Historicamente10, a ética foi primei-ramente referenciada na Grécia Antiga. O termo grego ethos traduz um conjunto de valores morais e princípios que norteiam a conduta humana em sociedade. A mesma sociedade grega também desenvolveu o conceito de morale, com o exato mesmo significado: conduta, relativo aos costumes. Nesse sentido, entende-se que para a comunidade da Grécia Antiga, ética e moral traziam na prática a mesma compreensão – etimologicamente, ética e moral foram considerados sinônimos.

Os grandes pensadores e cientistas humanos sempre abordaram a ética em seus estudos sobre o desenvolvimento humano e social: Aristóteles, Kant, Nietzsche, Paul Tillich e tantos outros que sempre estu-daram a ética como a compreensão humana que uma sociedade deve respeitar – “alguns dizem que tem, pou-cos aplicam na prática, ninguém cumpre à risca”.

10 ROSAS, Vanderlei de Barros. Afinal, o que é Ética? Rio de Janeiro: 2002. Disponível em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/vanderlei18.htm>. Acesso em: 20 dez 2011.

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Dessa forma, extrai-se o primeiro ponto acerca da ética aplicada ao mundo contemporâneo: a ética não nasce com o homem individualizado, mas desenvolve-se apenas nas relações humanas – embora criada e desen-volvida contra o instinto humano de autoproteção de sobrevivência. Notou-se, historicamente, que apenas quando um homem se relaciona com outro surgia a necessidade da educação humana baseada em princípios éticos, de respeito com relação aos direitos do outro, por meio de concessões particulares que nem sempre exis-tiram na história mundial do direito; foram desenvolvi-dos na medida em que o pensamento científico também foi se desenvolvendo, de forma humanizada.

Dessa forma, entende-se que a ética apresenta uma funcionalidade essencial na vida humana e no direito: promove equilíbrio e bom funcionamento sociais. Obviamente, não se confunde com “direito”, apesar da íntima ligação com os direitos humanos, uma vez que está relacionada com o sentimento de “justiça social” tão necessário para o direito contemporâneo. A ética existe em todas as culturas mundiais, mas se reflete de forma diferenciada em cada Estado contemporâneo: reflete os princípios e valores sociais de cada sociedade. A ética tem desdobramentos em todas as áreas humanas e cada uma delas apresenta claras barreiras ao comportamento ético adequado.

A medicina e a genética apresentam duas grandes questões éticas que permeiam o mundo globalizado: direitos dos animais versus “sacrifício” de animais para a indústria cosmética e de medicamentos; também a bioética traduzida no direito de uso de células embrionárias na pesquisa científica, bem como a possibi-lidade cirúrgica de alteração do sexo biológico e suas con-sequências jurídicas para nossa sociedade atual.

A ética religiosa pode ser compreendida como a maior força de controle das sociedades humanas ao longo do tempo. Superando a força coibidora das normas jurí-dicas, a religião é marcada por regras rígidas que devem ser obedecidas por todos os membros de uma sociedade, tratando-se de uma ética normativa muito típica também

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daquela aplicada ao direito positivado e que acaba por se confrontar, em muitos casos, com a ciência e a própria ética médica, trazendo reflexos para o mundo jurídico globalizado. O Brasil foi concebido mediante uma “reli-giosidade de superfície” de acordo com o psicanalista Jorge Forbes11. Uma vez que a religiosidade brasileira seja menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa do exterior, nota-se a ausência de uma moral social poderosa contra na qual ocorria na Europa, por exemplo, trata-se da ética da emoção, dife-rentemente absorvida por culturas diversas. Seria por essa razão que, segundo Buarque de Holanda, o fato de a República brasileira ter sido obra de positivistas, ou agnósticos, e a Independência realizada pela ética da maçonaria.

Existe, ainda, uma conhecida ética situacional, que sequer pode ser considerada como ética em sentido estrito, uma vez que se traduz na aplicação de princípios e normas de condutas variáveis sob o ponto de vista moral, em determinadas situações, sempre maculadas por interesses predominantes. Trata-se da ética no jornalismo, ética na política e ética empresarial. Em termos práticos, nota-se uma aplicação de “ética amoral”, sendo um con-trassenso natural do conceito de ética. Nesses casos o direito torna-se indispensável para regular as relações em que não exista conteúdo de moralidade norteador da ati-vidade humana.

Ainda pouco desenvolvida no mundo contem-porâneo, a ética jurídica talvez ainda não possua um estudo aprofundado em função da própria positivação do direito material e processual, dando-se a falsa impressão de que todos os comportamentos considerados antiéticos sejam penalizados pelo direito, o que não se mostra como verdade absoluta, em consonância com o próprio enten-dimento jurídico de que não existe verdade absoluta, apenas a verdade processual. No entendimento do psica-nalista Jorge Forbes, se os historiadores se debruçassem

11 FORBES, Jorge. Você quer o que deseja. 3 ed. São Paulo: ed. Best Seller, 2004. p. 43.

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sobre os últimos vinte anos do último século, notariam uma “cultura do sem limites”: sem limites para distâncias entre cidades e países, sem limites para a revolução tecno-lógica da internet, sem limites para as possibilidades de cura da medicina, em limites de segurança pela tec-nologia aplicada à segurança das pessoas em sociedade, sem limites de beleza pelo desenvolvimento da indústria cosmética e cirurgia plástica. O resultado para as sociedades contemporâneas atuais é definitivamente marcado pelo crescimento dos quadros depressivos e toxicofilias. O limite é inerente ao ser humano, amplamente aplicado na educação humana e extre-mamente relevante no direito material e processual como forma de se aplicar os meios morais e éticos adequados para se promover justiça social e um ser humano “huma-nizado” e ciente de seus direitos e limites.

A história do Direito demonstra a importância das legítimas fases recursais aplicáveis aos certames jurídicos em cumprimento do devido processo legal. A crescente e constante alteração legislativa típica do Poder Judiciário brasileiro, amparado historicamente pela predominância da civil law, começa a ser questionada pela academia jurídica com resultados que apontam diretamente para um novo comportamento do Poder Judiciário em cum-primento do devido processo legal de forma justa e ética.

O filósofo estudioso do Estado Burocrático Luh-mann foi quem originalmente desenvolveu a tese de que “burocracia gera mais burocracia12”, marcando o sociólogo alemão uma sociedade burocratizada típica do século XX. É clara a percepção do quanto o Poder Judi-rio nacional é burocratizado e dispendioso para todos que atuam no processo, direta e indiretamente. O excesso burocrático associado ao uso indevido dos direitos pro-cessuais são os fatores de risco ao saudável cumprimento da Constituição vigente (artigo 5º, LXXVIII), baseada na

12 Niklas Luhmann, estudioso do Estado Burocrático, desde o ângulo epistemológico até o entendimento jurídico no âmbito da filosofia geral, destaca em sua Teoria Política os aspectos de corrupção e silêncio no Direito.

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Convenção Européia de Direitos Humanos de 1950. Lembra-se que, a partir dos anos 50, “processo” e “direitos huma-nos” formaram um vínculo jurídico indissolúvel, con-forme o Direito Internacional e de acordo com os princí-pios nacionais sobre o tema.

Conforme nítida a necessidade de nova mentali-dade instrumental dos processualistas contemporâneos, a modernização da estrutura do sistema jurídico brasileiro implica a reflexão acerca do sentido normativo do proces-so em face da democracia e coerência jurídica para a rea-lização da segurança e estabilidades sociais. A discussão teleológica do discurso acadêmico acerca do processo já não basta ao estudioso que busca a transformação do sis-tema jurídico brasileiro – discutir o óbvio não satisfaz a sociedade, tendo-se em vista as falácias instrumentais do novo processo a partir das últimas décadas.

A procrastinação processual que atinge o direito processual brasileiro promove a negação do regime de cooperação entre todos os participantes da relação pro-cessual na busca de resultados justos, solução adequada e tempestiva dos conflitos de interesse e na administração da justiça. Essa prática processual nefasta é o espelho da real situação dos tribunais contemporâneos brasileiros: a maior parte das causas observadas nos tribunais supe-riores se ocupa de matérias de cunho repetitivo, temas dos quais o resultado é previsível juridicamente. E surge a necessidade jurídica de criação de métodos coercitivos dessa inutilidade de repetição de demandas, coibindo o “demandismo” estéril e inútil que toma conta de nossos tribunais.

A procrastinação como meio de impedimento da entrega de prestação jurisdicional adequada atenta, em sua essência, contra o direito fundamental da tutela juris-dicional efetiva, o Estado Democrático de Direito, o Princípio da Lealdade Processual, os direitos da parte ex-adversa e, finalmente, contra os valores e fundamentos da República consagrados na Constituição de 1988, desmoralizando a jurisdição brasileira. Esta prática tem sido denominada, esporadicamente em determinados casos concretos e a partir dos últimos cinco anos, como “assédio processual”.

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A finalidade desejada pelo assediador é clara no sentido de retardar a prestação jurisdicional ou o cumprimento das obrigações reconhecidas judicialmente, em prejuízo da parte ex adversa e do processo civil, penal e trabalhista.

6 O “assédio processual” e “abuso processual”

O assédio processual remete à noção de conduta intencional e repetitiva do agente assediador, preju-dicando dolosamente a parte processual. Ocorrendo por meio do exercício reiterado e abusivo das faculdades pro-cessuais legítimas, o assediador atua no processo sob pro-teção legal do direito ao contraditório e ampla defesa, obsta-culizando a entrega da prestação jurisdicional à parte contrária. Configura-se o assédio processual13 pelo abuso ou excesso no emprego dos meios legalmente contemplados pelo ordenamento jurídico para defesa de direitos amea-çados ou violados, portanto.

Na busca da diferenciação dos institutos aplicáveis na atualidade em relação ao abuso de direito, podemos nos nortear pelo próprio conceito mais amplo e genérico do que seja abuso: prática excessiva ou injusta, des-regrada para fins imorais ou ilícitos. A litigância de má-fé não deve ser confundida com o abuso de direito, uma vez que abrange a deslealdade processual e se transmuta em ato infracional ao processo, muito mais amplo que um ato abusivo de direito.

A melhor técnica nos aponta que para haver abuso deve preexistir o direito, lógica jurídica inexistente quanto à litigância de má-fé (ato infracional). Sendo o direito em questão legítimo, questiona-se até que ponto transforma-se em abuso. Percebemos que o direito legítimo esbarra no abuso quanto à matéria de defesa, nos casos concretos. Logo, o abuso de direito pode ser com-preendido (academicamente) como gênero da espécie

13 Mauro Vasni Paroski foi um dos primeiros cientistas jurídicos a tratar do tema, denominando o assédio processual na justiça do trabalho.

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abuso de direito de defesa, quando utilizado na modalidade de defesa processual.

O ato assediador ocorre, necessariamente, durante o momento de defesa processual, mas apenas dentro do contexto abusivo desta defesa – não existe possibilidade da ocorrência de imoral ato tendente a burlar a duração razoável do processo na justiça obreira se essa ocorrência não se verificar no momento da defesa. Sendo a duração razoável do processo um conceito indeterminado e aberto na doutrina e jurisprudência, legítimo seria o direito de abusar dessa premissa por meio de um assédio pro-cessual defensivo?

A pacificação social, realizada por meio da solução de conflitos individuais e coletivos deve gerar um resultado justo, individualmente e na coletividade, de acordo com o ordenamento jurídico-constitucional vigente.

Casuisticamente, a procrastinação em questão visa alongar prazos de entrega processual e exigir provas des-necessárias ao feito, causando extremo prejuízo às partes envolvidas e à morosidade processual. A atuação dissi-mulada dos operadores do direito (referindo-se também à parcela da magistratura responsável pela inobservância do assédio processual) envolve dissimulação com aparência de exercício regular de direito, pretendendo-se um resul-tado ilícito ou reprovável eticamente.

O Direito do Trabalho depara-se a todo momento com a “procrastinação judicial”, o que vem incomodando não apenas a comunidade jurídica atuante como toda a sociedade civil que pretende a observação dos princípios constitucionais basilares eleitos como regentes da vida em comum. O julgado nesse sentido apresentado é a decisão da Juíza Mylene Pereira Ramos, da 63ª Vara do Trabalho de São Paulo, Processo nº 02784200406302004, que sugere a conceituação de “assédio processual” como classe do conhecido “assédio moral”, in verbis14:

14 BRASIL. 63ª Vara do Trabalho. Processo nº 02784200406302004. Juíza Mylene Pereira Ramos. São Paulo. 2004

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Praticou a ré 'assédio processual', uma das muitas classes em que se pode dividir o assédio moral. Denomino assédio processual a procrastinação por uma das partes no andamento de processo, em qualquer uma de suas fases, negando-se a cumprir decisões judiciais, amparando-se ou não em norma processual, para interpor recursos, agravos, embargos, requerimentos de provas, petições despropositadas, procedendo de modo temerário e pro-vocando incidentes manifestamente infundados, tudo objetivando obstaculizar a entrega da prestação jurisdi-cional à parte contrária (JURISPRUDÊNCIA, 2004, 63a Vara do Trabalho de São Paulo, Processo N° 02784200406302004).

No mesmo ramo justrabalhista, nota-se a observação do magistrado em apontar a ocorrência de “assédio processual” no caso concreto, apontando a inde-nização como forma coibidora do uso imoderado dos direitos processuais15 agora inserido nos tribunais traba-lhistas: “Assédio processual. Indenização. Retardamento do processo. Conduta reprovável”.

Um terceiro exemplo na área trabalhista em que o magistrado mineiro, em sede de tribunais trabalhistas, faz tecer uma verdadeira tese jurídica sobre os conceitos de “assédio processual”, suas implicações na justiça bra-sileira e sua coibição pelo Poder Judiciário competente, sendo16:

A prática do assédio processual deve ser rechaçada com toda a energia pelo Judiciário. Os Tribunais brasileiros, sobretudo os Tribunais Superiores, estão abarrotados de demandas retóricas, sem a menor perspectiva científica de sucesso. Essa prática é perversa, pois além de onerar sobremaneira o erário público torna todo o sistema brasi-leiro de justiça mais lento e por isso injusto. Não foi por outro motivo que a duração razoável do processo teve de ser guindado ao nível constitucional (JURISPRUDÊNCIA, 2008, TRT, 3ª. Região. Processo Nº: 00760-2008-112-03-00-4. 4ª).

15 BRASIL. TRT 9ª Região. Processo Nº 00511-2006-562.09.00-3. Rel. Tobias de Macedo Filho. 2006. 16 BRASIL. TRT, 3ª. Região. Processo Nº: 00760-2008-112-03-00-4. 4ª Turma. Minas Gerais. 2008.

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Por fim, apresenta-se a questão do “assédio proce-cessual” sob o ponto de vista do Direito Civil, também abordado em sede dos tribunais, novamente confi-do-se o conceito do tema abordado. Nota-se a relevância do tema na demarcação do assédio moral provocado pelo uso imoderado de recursos jurisdicionais legítimos, bem como a distinção entre “assédio processual” e “litigância de má-fé” e suas consequências para o bom andamento processual17:

Configurado está o assédio processual quando a parte, abusando do seu direito de defesa, interpõe repetidas vezes medidas processuais destituídas de fundamento com o objetivo de tornar a marcha processual mais morosa, causando prejuízo moral à parte que não conse-gue ter adimplido o seu direito constitucional de receber a tutela jurisdicional de forma célere e precisa. A exclusão da pena de litigância de má-fé em recursos relacionados à presente questão, anteriormente interpostos, em nada influencia a configuração do assédio processual in casu, posto que só a análise de todos os atos que formam a relação processual permite verificar a conduta da parte e o seu intento procrastinatório. A quantificação do dano moral pela prática do assédio processual deve observar o número de incidentes praticados com intuito procras-tinatório, bem como o tempo despendido na espera pro-cessual (JURISPRUDÊNCIA, 2008, TJMT. 6ª Câmara Cível. Processo Nº. 89150/2007).

7 Diferenciação conceitual entre “assédio processual” e “litigância de má-fé”

Os dois institutos aqui analisados possuem dife-renças básicas importantes e essenciais que refletem, por via de consequência, o modelo jurídico coibidor ade-quado como forma de sanção. A multa automática pela duração da demanda é uma das hipóteses contempladas na atualidade como forma de se incentivar a celeridade processual de forma eficaz. Dessa forma, evita-se a con-denação por “litigância de má-fé”, instituto jurídico

17 BRASIL. TJMT. 6ª Câmara Cível. Processo Nº. 89150/2007. Mato Grosso. 2008.

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diverso do assédio processual e inadequado nesta análise científico-jurídica por não ser, essencialmente, rela-cionada à duração legal do processo ou direitos legítimos pleiteados pela parte.

A litigância de má-fé abrange hipóteses definidas de caracterização expressa conforme observamos os artigos 17 e 600 do CPC, não cabendo interpretação extensiva do instituto para abrangência do assédio processual, até porque não se trata de matéria regulamentada. Contudo, podemos tomar por referência a multa estipulada nos dispositivos citados acima (de 1% a 20% do valor atua-lizado atribuído à causa), e a legislação nacional admite a fixação de outras sanções de natureza processual, mate-rial ou indenizatória. Assim sendo, abrimos a possi-dade jurídica de aplicação de multa para a atuação pro-crastinatória das partes. O assédio processual, apesar de demonstrar a clara atitude maliciosa do agente, se apre-senta de forma mais ampla porque se caracterizada pela sucessão intensa de atos processuais que, em conjunto, sinalizam para o propósito deliberado e ilícito de obstruir ou retardar a efetiva prestação jurisdicional ou prejudicar a parte ex-adversa18.

Defende-se, portanto, que nos casos implicadores de assédio processual não haja a mera fixação de multa san-cionatória, mas a fixação de indenização que possa reparar os prejuízos materiais e morais decorrentes da prática assediadora. Lembra-se que não se defende a apli-cação analógica de multas pré-existente sob pena de ofen-sa à ordem constitucional na parte que preceitua inexistir pena sem prévia cominação legal (art. 5º, XXXIX). O novo instituto que vem sendo criado, por não se confundir com as hipóteses expressas de litigância de má-fé, permite a interpretação no sentido da necessidade de reparação dos

18 NETO, José Afonso Dallegrave. Assédio Processual na Justiça do Trabalho. São Paulo, 2012. Disponível em: http://www.nucleotrabalhistacalvet.com.br/artigos/Ass%C3%A9dio%20Processual%20na%20Justi%C3%A7a%20do%20Trabalho%20-%20Jos%C3%A9%20Affonso%20Dallegrave.pdf Acesso em: 10 fev. 2012.

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prejuízos materiais ou morais relacionados à parte preju-dicada e, especialmente, ao próprio processo civil. Daí o termo “assédio” utilizado como forma injusta de perse-guição processual que atenta contra a honra do processo, uma vez que demonstra clara insistência impertinente e reiterada de protelação capaz de prejudicar o próprio pleito com pretensões duvidosas.

8 Formas legais de coibição das práticas assediadoras do processo

Desenvolvimento do instituto da arbitragem no Brasil como instrumento de busca pelo processo ético contemporâneo

A arbitragem, ainda não desenvolvida no Brasil como cultura jurídica aplicável em grande escala, é legítima em todos seus aspectos técnicos e adequada para garantir maior ética nos litígios a partir do novo século. A arbitragem promoveria um efeito especial no âmbito jurídico nacional, a partir do novo século: o desenvolvi-mento de novo costume de participação de outras pessoas no processo que não sejam advogados, juízes ou Ministé-rio Público.

A arbitragem é a aproximação entre povo e direito, como estágio intermediário de solução de confli-tos, tanto “desafogando” os tribunais como promovendo a justiça de modo eficaz e simples com relação aos proce-dimentos hoje adotados. Dessa forma, atua-se conforme a soberania estatal compreendida como “povo”, munida de legitimidade no desenvolvimento de todos os ramos do direito, ganhando nova vida e entendimentos a serem discutidos: um verdadeiro tempo de recriação do Direito Pós Moderno.

Percebemos um problema cultural de sua admis-sibilidade pela desconfiança das partes em relação ao julgador não-magistrado. Exige-se, assim, que o instituto da arbitragem não seja aplicado de maneira arbitrária. Porém, observa-se nas recentes propostas de reforma da legisla-ção trabalhista um grande espaço destinado à “arbitra-gem obrigatória” para solução de conflitos trabalhistas, que seria realizada por comissões de fábricas ou pelos

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próprios sindicatos. Ainda que temerária sob determina-dos aspectos jurídicos, a arbitragem definitivamente merece maior espaço de reflexão para a conquista da efi-cácia dos direitos trabalhistas e “desafogamento” da justi-ça em geral.

Desconsideração da personalidade jurídica como opção coibidora do processo anti-ético no mundo contemporâneo em sede dos tribunais brasileiros

A desconsideração da personalidade jurídica é aplicada como sanção em diversos ramos do Direito (tri-butário, comercial e civil, por exemplo) como forma de delimitação de responsabilidades. A penalidade visa impedir a obtenção de fins anti-sociais pela notória fraude em face de terceiros. Nesse sentido, tanto o Código Civil vigente (artigo 50) como o Código de Processo Civil (artigo 596) tratam da questão, abrindo a possibilidade legal de que os bens particulares de administradores ou sócios de pessoa jurídica sejam utilizados como forma de ressarcimento pecuniário em casos de abuso de persona-lidade jurídica (desvio de finalidade ou confusão patri-monial).

A possibilidade da desconsideração da personali-dade jurídica em sede trabalhista é clara e latente, sendo defendida por parte da doutrina como uma forma de se coibir os atos abusivos das partes. Uma vez que sendo os créditos trabalhistas primordiais pelo caráter alimentar, e sendo a alimentação valor e direito essencial do ser humano, então a forma legal existente de se garantir a manutenção da existência digna do trabalhador deve ser perseguida de modo a utilizar todo o instrumental vigen-te possível.

Dessa forma, apesar de ainda inexistir argu-mentação jurídica no sentido de transmutar-se o enten-dimento sobre a questão trabalhista (de desconsideração da personalidade jurídica) para o processo civil praticado de forma abusiva, nota-se o registro da importância desse instituto nos dias atuais. Isso porque o processo está sem-pre em evolução, e caminha a partir conceito de direito privado publicístico romano para propiciar aos litigantes a solução de seus conflitos e, além disso e mais relevante,

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desempenhar papel na missão da ordem pública de paci-ficação social.

Conclusão No mundo contemporâneo, o Direito Material não

pode ser interpretado de forma hierarquizada ou diferen-ciada em relação ao Direito Processual no tocante às pro-vas. Mesmo diante da inércia processual, ao Juiz não é dado ignorar elementos de convicção capazes de elidir a presunção legal relativa. A doutrina e jurisprudência há tempos se ocupam da preocupação com medidas que visem coibir condutas protelatórias, entregando àquele de razão o bem da vida perseguido no menor tempo possí-vel.

O Direito Brasileiro dá exemplo internacional regulamentando formas de se tornar dispensáveis o pro-cessamento de denominadas demandas repetitivas, con-forme o artigo 285-A do Código de Processo Civil vigente. Busca-se o direito progressista de instituições processuais estáveis, sem cautelas essencialmente inibitórias, incor-porando-se de forma legítima o formalismo conforme os ensinamentos basilares de Kelsen e, no âmbito do Estado de Bem-Estar Social, a formação de uma nova e destacada plêiade de processualistas para que o direito natural de acesso à justiça seja aplicado de forma científica e autô-noma.

Quando observamos a prejudicial atuação pro-cessual perante o Estado, a obrigação de reparar os danos a ele provocados não se mostra exclusiva do Poder Execu-tivo ou Judiciário. A capacidade de proteção do Estado Democrático de Direito depende também do Ministério Público e da coletividade, uma vez que observamos o assédio cometido não contra a pessoa física, mas contra o ente público, atingindo diretamente a ética jurídico-processual. A imposição da obrigação de reparar o dano não depende de requerimento de partes, portanto. Há o interesse público em coibir os excessos verificados em condutas contrárias à moral e ética inerentes ao processo, garantindo-se credibilidade e eficiência do processo enquanto instrumento de jurisdição democrático e neces-sário ao exercício do poder jurisdicional pelo Estado-juiz.

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Logo, não há como o operador jurídico cogitar que o assédio processual careça de regulamentação legal para ser aplicado. O ato imoral endoprocessual que causa danos aqui nomeados como “assédio” indica a necessida-de de reparação na medida dos prejuízos causados pela insistência importuna de alegações no processo do traba-lho. Sob a égide de um Poder Judiciário guardião efetivo da supremacia constitucional e da ordem democrática, a Democracia Participativa do novo milênio consiste na “repolitização” não apenas da legitimidade material, mas também processual, no contexto de uma nova herme-nêutica lógico-jurídica sediada nos direitos fundamentais.

O novo século aponta para um maior desenvolvi-mento do direito processual, uma vez que a funcio-nalidade e eficácia que marcam a nova técnica proces-sualística não se mostram suficientemente elaboradas no sentido de se coibir o uso técnico dos recursos processuais para objetivos alheios às boas práticas judiciais; o Estado Democrático influente se mostra fortalecido pela eficácia e eficiência que marcam a democracia participativa contem-porânea.

As diretrizes deste trabalho acadêmico são um ponto de partida para o início de um pensamento qualita-tivo acerca da filosofia do direto processual como con-tribuição para os estudiosos da ética no processo em geral, as práticas assediadoras do processo e as formas de sanção dos abusos processuais observados na atualidade.

O estudo do litígio sempre traz consigo as questões humanas intrínsecas, e cabe ao magistrado e operador do direito conhecer as sutilezas da utilização abusiva de formas de satisfazer as necessidades na seara judicial a partir do novo século. Um novo modelo ético de práticas processuais torna-se indispensável para uma sociedade que busca o resultado justo e ético de uma democracia participativa.

O litígio, sendo estrutural, traz a noção de que o outro não satisfaz, preenche ou apaga a insistente pre-sença da falta. O altar dessa discórdia é trazido, em mui-tos casos, para o tribunal, como uma tentativa de se bus-

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car a solução para a falta que o litígio provoca no sujeito da ação19.

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19 BARROS, Fernanda Otoni de. Cada cabeça uma sentença: o litígio conjugal. Belo Horizonte: ed. Psique, 1996.

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Filosofia do direito processual e o assédio processual 56

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A VULNERABILIDADE DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA E A EFETIVAÇÃO DE SEUS

DIREITOS FUNDAMENTAIS

Ana Paula Santos Diniz 1

Resumo: O trabalho demonstra a preocupação com a pro-teção dos seres expostos à exploração, razão pela qual se pontuou a necessidade de se definir a nomenclatura “vulnerabilidade” e apresentar uma nova visão para o conceito de “direitos dos grupos vulneráveis”. Para tanto, ocupou-se em abordar o importante papel desempenhado pelos direitos fundamentais na fruição dos direitos por estes grupos de seres, que necessitam de proteção.

Palavras-chave: direitos fundamentais. Vulnerabilidade. Emancipação.

“Caminhando contra o vento

Sem lenço e sem documento No sol de quase dezembro

Eu vou... O sol se reparte em crimes

Espaçonaves, guerrilhas Em cardinales bonitas

Eu vou...[...] Sem lenço, sem documento Nada no bolso ou nas mãos

Eu quero seguir vivendo, amor Eu vou...

Por que não, por que não...”

1 Aluna do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Direito, Área de Concentração: Proteção dos Direitos Fundamentais, Universidade de Itaúna; Professora na Faculdade de Pará de Minas; Advogada. Especialista.

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Introdução

Os direitos fundamentais da população em situação de rua é um tema que tem recebido um trata-mento abrangente por juristas de diversas partes do mundo, tendo em vista a sua relevância social. A partir de estudos preliminares, observa-se que a questão é amplamente discutida sob a ótica processual, política, econômica e jurídica.

O principal objetivo deste estudo está em demonstrar a necessidade de se investigar a efetividade dos direitos fundamentais da população em situação de rua.

O foco da análise é o Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua e Catadores de Materiais Recicláveis - CNDDH.

As diretrizes deste trabalho se circunscrevem ao desafio de mostrar que se deve buscar o conteúdo subs-tantivo dos direitos das populações excluídas do campo e das cidades, utilizando das ferramentas existentes em outros ramos do conhecimento, assim como as ofertadas pelo Direito.

Pretende-se, ainda, demonstrar a necessidade de se construir os conceitos primordiais dos objetos de estudo de suas pesquisas unindo o conhecimento teórico ao prático, ou seja, buscando nos modos de vida dos diversos atores sociais, a percepção quanto ao conteúdo dos direitos fundamentais e das necessidades e aspirações humanas.

No que tange à vertente teórico-metodológica, planeja-se seguir a linha crítico-metodológica, que, nas lições de Miracy Gustin e Maria Tereza Dias (2012), supõe uma teoria crítica e problematizadora da realidade socio-jurídica. Essa linha compreende o Direito como uma rede complexa de linguagens e de significados. Opta-se, neste primeiro momento, pelo tipo de pesquisa jurídico-compreensiva ou interpretativa que se utiliza do proce-dimento analítico de decomposição do problema em seus diversos aspectos, relações e níveis. Este tipo meto-dológico foi escolhido, pois se adequa melhor a pesquisas

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cujos objetos possuem maior complexidade e, por isto, exigem maior aprofundamento.

A vulnerabilidade da população em situação de rua e a efetivação de seus direitos fundamentais

O estudo da vulnerabilidade é norteado pelos princípios jurídicos da dignidade e da isonomia, fontes do direito à diferença, garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88.2 Assim, a análise da vulnerabilidade considera a dig-nidade pautada pela autonomia, pela capacidade de jul-gar a si e aos outros na era da globalização.

Honneth3 explica que, a autonomia é alcançada de forma intersubjetiva e acontece quando se aprende por meio do reconhecimento por outras pessoas, a se com-preender como seres cujas necessidades, convicções e habilidades são dignas de serem realizadas. Para ele, deve haver reciprocidade nesta relação, porque se deve poder reconhecer, como em um espelho, o próprio valor no comportamento das pessoas com relação a si próprio.

Portanto, a proteção da população em situação de rua constitui, atualmente, um dos pontos centrais de transformação do próprio pensamento jurídico, permi-tindo a análise do Direito, especialmente dos direitos fundamentais, no plano da sua efetivação.

Para definir a “vulnerabilidade”, é preciso com-preender o que vem a ser “situação de risco” e “de exploração”. Isso porque, simplificadamente, estão “vul-neráveis” todos aqueles que estão expostos à exploração e que, por condições sociais, culturais, étnicas, políticas,

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 10, dez., 2012. 3 HONNETH, Axel. A textura da justiça Sobre os limites do procedi-mentalismo contemporâneo. Civitas, Porto Alegre, v. 9, n. 3, p. 345-368, set.-dez. 2009.

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econômicas, educacionais e de saúde têm as diferenças, estabelecidas entre eles e o meio envolvente.

O Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU4 concluiu que estão em condição de vulnerabilidade a população de baixa renda que ocupa os assentamentos informais, mulheres, idosos, crianças e adolescentes, nascituros, obesos, desempregados, sem terra, sem teto e analfabeto.

Albernaz e Marques5 entendem que vulneráveis são aqueles que fazem parte da parcela da população despida dos direitos que socorram suas principais neces-sidades ou do acesso à justiça que garanta efetividade aos poucos direitos legais por ela conquistados. As autoras destacam que a origem da vulnerabilidade no Brasil remonta à colonização:

A força dessa “cultura do jeito”, assim, imunizou a efi-cácia do ideal de igualdade formal, ditado desde os pri-mórdios da formação da racionalidade jurídica moderna do Ocidente, e possibilitou a vigência institucional de fatores opostos a tal igualdade, tais como o nepotismo, a política de favores, o patrimonialismo e o clientelismo [...] o formato de Estado centralizador português também cooperava para imunizar os princípios modernos das liberdades privadas, da igualdade e da livre iniciativa, que já inflamavam a juridicidade europeia da época colo-nial do Brasil, fatos que dificultaram a ascensão social dos não nobres ou dos não vinculados ao Estado6.

4 Disponível em: http://www.onu.org.br/Acesso em 08, dez, 2012. 5 ALBERNAZ, Renata Ovenhausen e MARQUES, Camila Salgueiro Purificação. Os grupos juridicamente vulneráveis e a formação da legalidade e do judiciário brasileiro: histórico e tendências do acesso aos direitos e à justiça no Brasil. Doi: 10.5212/Emancipacao.v.12i1.0004. Disponível em: http://revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/1255/3126. Acesso em 10, nov, 2012. 6 ALBERNAZ, Renata Ovenhausen e MARQUES, Camila Salgueiro Purificação. Os grupos juridicamente vulneráveis e a formação da legalidade e do judiciário brasileiro: histórico e tendências do acesso aos direitos e à justiça no Brasil. Doi: 10.5212/Emancipacao.v.12i1.0004. Disponível em:

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Em relação à população de baixa renda que ocupa os assentamentos informais, sem-teto, sem terra e desem-pregados, eles têm a sua desigualdade iniciada no Brasil-colônia, pelo modo agressivo da exploração colonial que optou pela concentração, e não pela distribuição das riquezas e oportunidades:

[...] a metrópole queria terras produtivas. Tanto foi assim que o rei instituiu, por meio da Carta Régia de 20 de janeiro de 1699, que as terras não cultivadas ou ocupadas passassem a ser consideradas devolutas, podendo ser repassadas pela Coroa, novamente, em sesmaria, àqueles que denunciassem a existência e a localização dessas terras incultas. Daí a importância da escravidão de índios e, depois, de negros africanos para manter a produção de riqueza pela terra7.

Importa, portanto, analisar a efetividade das polí-ticas e ações públicas em relação aos direitos funda-mentais e à tutela da dignidade e autoestima da popu-lação em situação de rua e à preservação de sua quali-dade de vida, com foco especial no Centro de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua.

Entende-se neste trabalho a efetividade do cum-primento dos objetivos da legislação e das políticas públi-cas como o cruzamento de suas condições de eficiência e eficácia com a correspondência das demandas e neces-sidades de determinados estratos populacionais e grupos em relação a seus direitos ao bem-estar.

Os direitos fundamentais são entendidos com con-teúdo mais amplo que sua conceituação clássica e abrange todas as espécies de direitos e interesses ligados ao direito à vida e ao direito à existência com dignidade e

http://revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/1255/3126. Acesso em 10, nov, 2012. 7 ALBERNAZ, Renata Ovenhausen e MARQUES, Camila Salgueiro Purificação. Os grupos juridicamente vulneráveis e a formação da legalidade e do judiciário brasileiro: histórico e tendências do acesso aos direitos e à justiça no Brasil. Doi: 10.5212/Emancipacao.v.12i1.0004. Disponível em: http://revistas2.uepg.br/index.php/emancipacao/article/view/1255/3126. Acesso em 10, nov, 2012.

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bem-estar, uma relação de adequação com a teoria dos direitos e das garantias fundamentais constitucionais.

A análise da efetividade é de grande relevo para

todos os campos das Ciências Sociais Aplicadas, uma vez que, além de analisar o cumprimento de objetivos, apre-senta interesse pela demanda externa ao objeto de estudo. O Brasil é um país que pelo texto constitucional tem por obrigação garantir a dignidade da pessoa humana e não somente o mínimo existencial.

Neste sentido, surge a necessidade de se constatar a efetividade das políticas públicas voltadas à realização dos direitos fundamentais das populações em condições de exclusão e de risco, em especial da população em situação de rua que tem sofrido linchamentos, morta em vários locais do País e, permanentemente, deslocada de um local para outro, impedindo-a de constituir uma esta-bilidade e um projeto de vida.

O Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em Situação de Rua - CNDDH, com o apoio do Ministério Público de Minas Gerais, foi criado com o objetivo de se constituir em um espaço de ação política direcionada a assegurar a promoção e defesa dos direitos humanos das pessoas que se encontram em situação de rua em face de todas as formas de violência pessoal e social a que estão submetidas em razão da sua precária condição de vida nas cidades brasileiras.

Por População em Situação de Rua compreende-se o grupo populacional heterogêneo, que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares inter-rompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públi-cos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória, nos termos do Decreto 7053, de 23 de dezembro de 20098.

8 BRASIL. DECRETO Nº 7.053 DE 23 DE DEZEMBRO DE 2009.Institui a Política Nacional para a População em Situação de

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São contemplados pelo Governo Federal, que ins-tituiu um Comitê de Avaliação e Monitoramento para a População em Situação de Rua9 e que desenvolveu uma Pesquisa em 71 municípios do país, incluindo as capitais e cidades com mais de 300 mil habitantes. A pesquisa evi-denciou a presença de 31.922 pessoas adultas em situação de rua. Os locais pesquisados foram os logradouros públicos e/ou ociosos e as instituições, públicas ou pri-vadas existentes.

Assim, torna-se necessário investigar a efetividade do trabalho realizado pelo CNDDH e das políticas públicas em relação aos sofrimentos e necessidades dessa população e quais são os obstáculos pelos quais passa esse órgão, pois, a realidade que é mostrada pelos noti-ciários, nas ruas, nos indicadores sociais, demonstra que não são suficientes as medidas implementadas pelo Ministério Público para transformar a realidade social dessas pessoas, em especial a implantação do CNDDH, que não tem recebido o apoio necessário para a sua atua-ção.

Conclusão

O estudo de um tema amplo e complexo como esse exige um tratamento sob vários enfoques, sendo assim, considerando que o tema envolve diversas questões relevantes e atuais, é importante uma análise profunda nos diversos campos do saber. Por isso, deve-se realizar uma investigação multidisciplinar, enfocando-se, primordialmente, a Teoria do Direito, os Direitos Consti-tucionais, os elementos da Sociologia e da Antropologia Jurídica e a Análise das Organizações.

Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monito-ramento, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm. Acesso em 12, dez, 2012. 9 http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2012/03/16/comite-para-populacao-em-situacao-de-rua-divulga-nota-de-repudio-contra-atos-de-violencia

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As análises de impacto e de efetividade permitem uma visão bastante completa da situação analisada e, neste sentido, contribuirá com a rediscussão de legisla-ções e políticas governamentais que tenham como foco grupos populacionais de extrema exclusão, no caso a população em situação de rua e as organizações gover-namentais e sociais que se incumbem dessa tutela.

Referências bibliográficas

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“DEU COM UMA MÃO E TIROU COM A OUTRA?” A CRIAÇÃO DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS

Gláucio Maciel Gonçalves1 Alex Lamy de Gouvêa2

Resumo: Os Juizados Especiais Federais (JEF’s), criados pela Lei nº 10.259/2001, surgiram com a expectativa de processos céleres e informais. A concentração, na União, da figura de legisladora dos e ré nos juizados, todavia, acabou conduzindo à elaboração de uma legislação cer-cada de amarras, com excesso de instrumentos pro-cessuais. Repeat player na justiça federal, a União, ao mesmo tempo em que cedeu espaços para as inovações que os juizados especiais estaduais já experimentavam, por outro, tentar traçar limites. Alguns, explícitos; outros, nem tanto. Neste contexto, o presente artigo pretende abordar como a aparente manutenção do modelo recursal simplificado dos juizados especiais estaduais (fonte de inspiração para o modelo dos JEF’s) se choca com a previ-são legal de novas figuras recursais - até então desco-nhecidas pela Lei 9.099/95 -, a razão de ser destes novos recursos e suas conseqüências práticas.

1 Bacharel (1993), Mestre (2000) e Doutor (2007) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, com pesquisa na área de Processo Civil e Administração da Justiça, coorde-nando um novo projeto sobre o Observatório do Judiciário. Professor Adjunto de Processo Civil da Universidade Federal de Minas Gerais (graduação e pós-graduação). Juiz Federal em Belo Horizonte. 2 Bacharel em Ciências Militares (APM, 2005). Bacharel em Direito (UFMG, 2010). Especialista em Direito Processual (PUCMinas, 2011). Mestrando em Direito (UFMG), sob orientação do Prof. Dr. Gláucio Maciel Gonçalves. Professor Substituto de Direito Civil na UFMG. Analista Judiciário na Justiça Federal em Belo Horizonte.

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Palavras-chave: Juizado Especial Federal – Repeat player – Recursos.

El linguaje del hombre de la calle posee términos significativos para este estado de cosas. Si se pregunta a un campesino como avanza un proceso, nos contesta que el mismo “pende todavia”. Qué palabra más excelente para el lentíssimo progreso del juicio y su completa incomprensibilidad para la parte! Si el campesino pierde el proceso, no disse que le fal-taba la razón, sino que afirma: he perdido el jue-go. La perdida del proceso y la devastación de su agro por granizadas constituyen para él aconte-cimentos de análoga naturaliza: mala suerte, pero no injusticia.

He aquí el resultado triunfal de la ciencia jurídica: un Derecho ignorado por el Pueblo, que no reside ya en su Corazón y que él equipara a la fuerzas salvages de la Naturaleza3.

V. KIRCHMANN, 1847.

Introdução

Os juizados especiais vêm sendo reconhecidos como espaços privilegiados de acesso à justiça, em razão da orientação do processo judicial pelos critérios da orali-dade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.

Com a experiência bem sucedida dos juizados especiais cíveis e criminais estaduais (Lei 9.099/95), tam-bém a União foi instada à criação de juizados especiais no âmbito federal, o que acabou sendo concretizado pela Lei 10.259/01.

O presente artigo pretende abordar como a União (legisladora dos e ré nos juizados especiais federais) lidou com a sua criação, inserindo na Lei 10.259/01 meca-

3 KIRCHMANN. El carácter a-científico de la llamada Ciencia del Derecho. In: La Ciencia del Derecho, p. 277-278.

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nismos recursais que acabam por desnaturar a sua con-cepção original de Justiça rápida e acessível.

1 Os juizados especiais: sua vocação para o acesso à justiça

A ordem constitucional promulgada em 1988 con-sagrou a cidadania como fundamento do Estado Demo-crático de Direito da República Federativa do Brasil4 e colocou em primeiro plano o valor Justiça, a ser concreti-tizado no ponto de convergência de uma ordem jurídica democrática, plural e aberta.

Sincronizada à realidade de uma sociedade em que ainda perpetuam exclusões de toda sorte (eco-nômicas, sociais, sexuais, raciais etc) a Constituição traça programas buscando a igualdade substancial, irrealizável de todo, mas sempre almejada5.

É neste contexto que o Sistema dos Juizados Espe-ciais6 se insere como locus privilegiado de acesso à justiça.

Composto pelos juizados especiais cíveis federais e estaduais, juizados especiais criminais federais e esta-duais e juizados da Fazenda Pública, o Sistema dos Juizados Especiais representa para milhões de brasileiros a única

4 CRFB/88: “Art. 1º A República Federativa do Brasil formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como funda-mentos: [...] II – a cidadania [...]. 5 Como alerta JOSÉ AFONSO DA SILVA, “não é fácil realizar a justiça social num sistema em que predomina a concentração da riqueza. É que ela só se concretizará mediante equitativa distribuição da riqueza nacional, pois um regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais de viver confortavelmente segundo as exigências de sua natureza física, espiritual e política. Um regime democrático de justiça social não aceita as profundas desi-gualdades, a pobreza e a miséria. Ora, o reconhecimento dos direitos sociais, como instrumentos de tutela dos menos favorecidos, não tem tido a eficácia necessária para reequilibrar a posição de inferioridade que lhes impede o efetivo exercício das liberdades garantidas”. AFONSO DA SILVA. Aplicabilidade das normas constitucionais, p. 144. 6 Esse microssistema, em seu conjunto, é disciplinado pelas Leis 9.099/95, 10.259/01 e 12.153/09.

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possibilidade de acesso ao poder Judiciário, quer pelo valor de sua causa, quer pela prescindibilidade de advogado em um primeiro momento.

Apenas em 2010, por exemplo, foram ajuizados 1.334.280 novos processos nos juizados especiais federais e 437.607 recursos chegaram às turmas recursais da jus-tiça federal. A par destes novos processos e recursos, pen-pendiam 1.709.885 processos sem julgamento nos mesmos juizados e 620.980 recursos nas mesmas turmas, de acordo com dados do relatório Justiça em Números 20107, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

“A lei não deve ser fonte de privilégios ou perse-guições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos8”. Para não se constituir em mais uma fonte de discrímen, a lei deve ser minimamente compreendida e acessível. Inclusi-sive a lei processual. O processo judicial não pode ser visto como espaço privilegiado de iniciados, mas espaço democrático de participação e diálogo na construção do provimento jurisdicional, sob pena de assim não o sendo, violar a garantia fundamental do contraditório (art. 5º, LV da Constituição).

A lei dos juizados especiais cíveis e criminais esta-duais (Lei 9.099/95), avançando nas conquistas da Lei 7.244/84, conseguiu realizar, em boa medida, este ideal: processo célere, com possibilidade de acesso à função jurisdicional – ao menos até eventual recurso inominado – sem a necessidade de advogado, irrecorribilidade em separado das decisões interlocutórias, recurso de sentença julgado por turma composta por juízes de primeiro grau de jurisdição9.

7 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/relat_federal_jn2010.pdf>. Acesso em 20 abr. 2012. 8 MELLO. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, p. 10. 9 Lei 9.099/95: “Art. 9º. Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória”; “Art. 41. Da sentença, excetuada a homologatória de conciliação ou laudo arbitral, caberá recurso para o próprio Juizado. § 1º O recurso será

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Em face da experiência exitosa dos juizados nos estados, a União sofreu pressões para a criação dos jui-zados especiais também no âmbito federal10. O que, efeti-vamente, aconteceu.

Criação (co)medida, todavia. De um lado cedendo e de outro tentando ditar limites à nova forma de concre-cretizar Justiça que surgiria, a União “cuidou para que seus interesses, que, promiscuamente, mistura iniciativa legiferante e qualidade de parte, preponderasse, podendo exercer certo controle da situação11”. Desta forma, a “dita criação foi cercada de receios, estabelecendo o legislador, no entanto, formas de controle, peias e amarras, com vis-tas à especial proteção dos órgãos públicos, representan-sentando, assim, retrocesso12”. Vale lembrar, a título de exemplos, que a justiça federal é competente para julga-mento de feitos envolvendo o Instituto Nacional do Segu-ro Social (INSS), Universidades Federais e Caixa Econô-mica Federal (Caixa).

É bem verdade que as tentativas de “controle, peias e amarras” não se tornaram completamente bem suce-didas. A justiça federal, em dívida com a sociedade, con-seguiu ultrapassar as várias rédeas impostas pelo governo federal na norma, por meio de mudança de pen-samento e preocupação social, aproximando-se do cida-dão e realizando justiça. Em síntese, concretizando a cidadania e a dignidade da pessoa humana, fundamentos da República, “isso, pela atuação de seus juízes: o que sempre comporta riscos, na medida em que amplia o espectro de contingência das decisões. O tema do risco,

julgado por uma turma composta por três Juízes togados, em exercício no primeiro grau de jurisdição, reunidos na sede do Juizado. § 2º No recurso, as partes serão obrigatoriamente representadas por advogado”. 10 Cf. GONÇALVES. Observação Jurídico-Sociológica da Lei dos Juizados Especiais Federais. 11 GONÇALVES. Observação Jurídico-Sociológica da Lei dos Juizados Espe-ciais Federais, p. 14. 12 Idem, p. 131.

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por isso, merece especial atenção, devendo ser objeto de nossas investigações futuras13”.

Por outro lado, não se pode recusar que algumas inovações da Lei 10.259/01 em relação à disciplina da Lei 9.099/95 revelam que as tentativas de controle da União visando à “especial proteção dos órgãos públicos” não foram totalmente vãs. E um aspecto particular da estrutura dos juizados federais parece apontar exa-tamente para essa conclusão: o evidente deslocamento das esferas de decisão definitiva, por meio de incidentes e reclamações, com criação de cinco turmas regionais de uniformização de jurisprudência dos juizados especiais federais14, de uma turma nacional de uniformização de jurisprudência dos juizados especiais federais e ção – por via infraconstitucional – das competências do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

É de se destacar que, inicialmente presente apenas no âmbito dos juizados especiais federais, esta nova estrutura de órgãos jurisdicionais e recursos agora se faz presente – embora com algumas características parti-culares, como a falta de uma turma nacional de unifor-mização – também nos juizados especiais da Fazenda Pública no âmbito dos estados, Distrito Federal e municí-pios.

2 Juizados especiais federais (Lei 10.259/01) e os juizados especiais cíveis e criminais estaduais (Lei 9.099/95): igual, mas diferente.

A aplicação subsidiária da Lei 9.099/95 prevista nas Leis 10.259/01 e 12.153/09 trouxe para a justiça comum federal e para os juizados especiais da Fazenda Pública, respectivamente, a orientação do processo pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, eco-nomia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.

13 Idem, p. 133. 14 Uma para cada Região da justiça federal.

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A natureza dos conflitos e o valor da causa permi-tiram ao legislador prever a direção do processo pelo juiz com liberdade para determinar as provas a serem produ-zidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica (art. 5º da Lei 9.099/95), adotando, em cada caso, a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigên-cias do bem comum (art. 6º da Lei 9.099/95).

Na esteira da Lei 9.099/95, o legislador da Lei 10.259/01 aparentemente buscou simplificar o sistema recursal para os juizados federais, afastando-o da proces-sualística civil da codificação de 1973. Assim, em termos de recursos ordinários15, a Lei 10.259/01 prevê apenas recursos de decisões interlocutórias de mérito proferidas em tutelas de urgência que causem gravame às partes, recursos de sentenças e embargos de declaração.

Ocorre que a aparente manutenção do modelo recursal simplificado dos juizados especiais estaduais na Lei 10.259/01 se choca com a previsão legal de três novas figuras recursais, até então desconhecidas pela Lei 9.099/95: incidentes de uniformização dirigidos à Turma Regional de Uniformização (TRU), incidentes de unifor-mização dirigidos à Turma Nacional de Uniformização (TNU) e incidentes de uniformização dirigidos ao Supe-rior Tribunal de Justiça (STJ).

Posteriormente, na elaboração da Lei 12.153/09 – que dispõe sobre os juizados especiais da Fazenda Públi-ca no âmbito dos estados, do Distrito Federal e muni-cípios – repetiram-se os modelos da Lei 10.259/01, pas-sando a existir a previsão legal de incidentes de uniformi-zação também no âmbito dos juizados especiais da Fazenda Pública: incidentes fundados em divergência entre turmas do mesmo estado, dirigidos às turmas esta-duais (locais) de uniformização e incidentes de uniformi-zação dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça16.

15 Isto é, recursos julgados nas Varas dos Juizados Especiais Federais e Turmas Recursais. 16 Lei nº 12.153/2009: “Art. 18. Caberá pedido de uniformização de interpretação de lei quando houver divergência entre decisões pro-

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Qual zelo teria provocado tamanha preocupação com a uniformização da interpretação do direito dito material, nos termos do art. 14, caput da Lei 10.259/01 e do art. 18, caput da Lei 12.153/09)? Por que esta preo-cupação se fez presente apenas nos juizados em que a Fazenda Pública é ré? Afinal, no âmbito da Lei 9.099/95, os referidos incidentes não têm previsão legal. Estaria também o cidadão comum habilitado a manejá-los?

3 União: O repeat player dos juizados especiais federais

Na obra Os Tribunais na sociedade contemporânea: O caso português17, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS escreveu um capítulo antecedente (e esclarecedor) ao capítulo expositivo do projeto de investigação: objeto, hipóteses e meto-dologia de que se ocupará toda a obra de mais de 760 páginas.

Intitulado Da micro-economia à micro-sociologia da tutela jurisdicional, nesse capítulo BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS irá apresentar uma função procura da tutela juris-dicional, a gestão da procura dos serviços judiciais e, princi-palmente, irá caracterizar os “consumidores” ou “mobili-zadores” do sistema judicial.

Retomando a tipologia de MARC GALANTER, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS explicitará que alguns mobilizadores do aparato judicial estão repetidamente envolvidos em litígios similares ao longo do tempo. São os repeat players. Outros, por seu turno, comparecem

feridas por Turmas Recursais sobre questões de direito material. § 1o O pedido fundado em divergência entre Turmas do mesmo Estado será julgado em reunião conjunta das Turmas em conflito, sob a presi-dência de desembargador indicado pelo Tribunal de Justiça. § 2o No caso do § 1o, a reunião de juízes domiciliados em cidades diversas poderá ser feita por meio eletrônico. § 3o Quando as Turmas de dife-rentes Estados derem a lei federal interpretações divergentes, ou quando a decisão proferida estiver em contrariedade com súmula do Superior Tribunal de Justiça, o pedido será por este julgado”. 17 SANTOS et al. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O caso português.

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muito ocasionalmente – ou apenas por uma vez – aos tribunais. São os one shot players. BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS renomeou a clássica tipologia das partes, de MARC GALANTER, (repeat-player/one shotter ou one shot player)18 para litigantes frequentes (LF) e litigantes espo-rádicos (LE)19, esclarecendo que

O que faz com que um litigante seja freqüente ou espo-rádico é, não apenas, o tipo de litígio em que está envolvido, mas também a sua dimensão e os recursos dis-poníveis que tornam distinta – menos custosa e mais pró-xima – a sua relação com o tribunal. O tipo ideal de LF é, de acordo com Galanter, o litigante que tem tido e prevê que vai ter litígios freqüentes, que corre poucos riscos relativamente ao resultado de longo prazo. Pelo contrário, o tipo ideal de LE é o litigante cujo valor do litígio é demasiadamente importante, relativamente à sua dimen-são, ou demasiado pequeno, relativamente ao custo da reparação, para poder ser gerido de forma racional e roti-neira20.

Para BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, as entidades públicas são litigantes frequentes: dispõem de serviços jurídicos próprios, “podem e tem interesse em influenciar, não só o conteúdo das leis, substantivas ou processuais, mas também a sua interpretação, para que ambas lhe sejam favoráveis, visto ser repetidamente afectado por elas21” e detêm recursos que lhes permitam litigar com freqüência e com longos processos.

No outro polo estão os litigantes esporádicos (LE):

18 “We might divide our actors into those claimants who have only occasional recourse to the courts (one-shotters or OS) and repeat players (RP) who are engaged in many similar litigations over time”. GALANTER. Why the “Haves” Come Out Ahead: Speculations on the Limits of Legal Change, p. 4. Disponível em: <http://www.lawforlife.org.uk/data/files/whythehavescomeoutahead-33.pdf> . Acesso em 20 abr. 2012. 19 SANTOS et al. Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O caso português, p. 71. 20 Idem, p. 71. 21 Ibidem, p. 72.

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Por sua vez os LE são fundamentalmente as pessoas sin-gulares. Na maioria dos litígios não é comum que a mes-ma pessoa recorra ao tribunal duas vezes na vida pelo mesmo motivo e por isso não está dotada dos recursos necessários para o fazer, sendo mais cara a litigação, maior o risco que corre e o empenho que coloca na reso-lução do problema (naturalmente quando se trata de um verdadeiro litígio e não de pseudo-litigação, como é o caso de divórcios por mútuo consentimento)22.

Com a lição de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS em mente, é interessante volver os olhos ao noticiado por RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR: esclarece o ministro apo-sentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que quando da elaboração do projeto que viria a se tornar a Lei 10.259/01, houve diversas reuniões no STJ com a cola-boração e a participação de juízes federais, reuniões do Conselho de Justiça Federal e com a Advocacia Pública. Nestas ocasiões, a Advocacia Geral da União teria expressado “a preocupação da União, de todos os seus órgãos de um modo geral, de que não poderia ela, sendo a ré, nas diversas Instâncias e nos diversos Estados, res-ponder pelo mesmo fato, mas condenada de modo diver-so em cada um deles”. Surgiu então a “necessidade de compatibilizar o sistema dos Juizados Especiais Federais” com a “necessidade de uniformizar esses julgamentos23”.

Uma das soluções seria admitir o recurso especial direta-mente ao STJ, o que significaria trazer para a vala comum, isto é, incluir nas dificuldades próprias do procedimento ordinário, todas as causas em que houvesse a alegação de divergência ou de ofensa à lei. Tal solução nos pareceu inconveniente do ponto de vista do Juizado, porque atra-saria de modo infindo as demandas, e representaria um acréscimo significativo no número de recursos a serem julgados pelo STJ. A solução que nos pareceu mais conve-niente, portanto, foi a de, permitindo de algum modo essa uniformização de interpretação da lei em todo o País, mantê-la dentro do próprio sistema dos Juizados, tanto

22 Ibidem, p. 73 23 AGUIAR JÚNIOR. O Sistema Recursal nos Juizados Especiais Federais, p. 6-7, passim.

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quanto possível. E sob essa perspectiva foi normatizado o incidente na nova lei. [...] Pode-se argumentar que o procedimento introduz várias fases no processamento do incidente de uniformização dentro do Juizado. Realmente isso acontece, mas foi a única forma encontrada para compatibilizar a possi-bilidade da uniformização com a idéia de que poderia ser feita dentro do próprio sistema24.

E, com efeito, prevê o art. 14 da Lei 10.259/01 três figuras recursais novas no ordenamento brasileiro, denominados “incidentes de uniformização”. São eles:

a) incidente de uniformização regional (art. 14, §

1º, da Lei 10.259/01): caberá este pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre turmas da mesma Região. Será julgado em reunião con-junta das turmas em conflito (Turma Regional de Uniformização de Jurisprudência), sob a presidência do juiz coordenador dos juizados da Região;

b) incidente de uniformização nacional (art. 14, § 2º, da Lei 10.259/01): caberá este pedido de uniformização de interpretação de lei federal quando houver divergência entre decisões de turmas de diferentes Regiões ou da proferida em contrariedade a súmula ou jurisprudência dominante do STJ. Será julgado pela Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais (TNU), integrada por juízes de turmas recursais, sob a presidência do ministro corregedor-geral da justiça federal;

c) incidente de uniformização para o Superior Tribunal de Justiça (art. 14, § 4º, da Lei 10.259/01): caberá este pedido de unifor-mização de interpretação de lei federal quando a orientação acolhida pela Turma Nacional de

24 Idem, p. 6-7.

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Uniformização, em questões de direito mate-material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

4 Reflexos da criação dos incidentes: deslocamento espácio-temporal das esferas de decisão definitiva no âmbito dos juizados especiais federais

Como não poderia deixar de ocorrer, o efeito da previsão de incidentes no âmbito dos juizados se faz sentir de forma marcante no sistema recursal dos juizados especiais federais. Isso por que, se no plano da Lei 9.099/95 a decisão da turma recursal pode ser atacada exclusivamente pelos embargos de declaração e, excep-cionalmente, pelo recurso extraordinário, com a criação dos incidentes no âmbito dos juizados especiais federais e dos juizados especiais da Fazenda Pública, um verda-deiro cipoal de recursos acabou sendo viabilizado.

Das três figuras básicas previstas no art. 14 da Lei 10.259/01, por exemplo, passou a se verificar a ocorrência de uma longa série de recursos. A começar pela decisão da própria turma recursal, que, salvo as hipóteses dos embargos de declaração e do recurso extraordinário (de previsão constitucional), na concepção original dos juiza-dos não deveria ser atacada por nenhum outro recurso. Com a Lei 10.259/01, entrementes, a decisão final da tur-ma recursal pode ser atacada por até três recursos, a serem manejados simultaneamente: incidente de unifor-mização dirigido à TRU, incidente de uniformização diri-gido à TNU e recurso extraordinário.

Da decisão da TNU, pode-se recorrer via inciden-te de uniformização dirigido ao STJ. Mesmo a questão debatida no STJ ainda será recorrível, via recurso extraor-dinário, dirigido, como cediço, ao Supremo Tribunal Federal.

A todos estes incidentes somem-se as reclamações. No STJ, para preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões (art. 105, I, f, da Cons-

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tituição25) e na TNU, contra decisão da turma recursal que recusa adaptar acórdão à jurisprudência consolidada (Questão de Ordem 16 da TNU26).

Na complexa teia de recursos, os incidentes sofrem rigorosos requisitos de admissibilidade, que chegam a três momentos de análise (na turma de origem, pelo presidente da turma de destino e pelo relator do incidente). Como alertam FLÁVIA DA SILVA XAVIER e JOSÉ ANTONIO SAVARIS, “apesar da aparente singeleza do tra-tamento legal dispensado a estes incidentes são rígidos os pressupostos de admissibilidade, exigindo-se cuidadosa observância pela parte recorrente, sob pena de não serem conhecidos27”.

O assimétrico sistema recursal construído para os juizados especiais federais e para os juizados especiais das Fazendas Públicas segue percurso inverso àquele apontado por MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH como uma das tendências no uso do enfoque do acesso à justiça: é um sistema complexo. As mesmas leis que orientam os juizados pela simplicidade, oralidade, infor-malidade, economia processual e celeridade, trouxeram em seus ventres o gérmen dos ideais traídos. A com-plexidade nos procedimentos dos juizados é antípoda do acesso à justiça, pois,

Se a lei é mais compreensível, ela se torna mais acessível às pessoas comuns. No contexto do movimento de acesso à justiça, a simplificação também diz respeito á tentativa de tornar mais fácil que as pessoas satisfaçam as exi-

25 Constituição da República Federativa do Brasil: “Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I – Processar e julgar, originariamente: [...] f) a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões”. 26 Questão de Ordem 16 da TNU: “Na Turma Nacional de Unifor-mização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais, admite-se reclamação contra decisão da turma recursal que recusa adaptar acór-dão à jurisprudência consolidada”. 27 XAVIER; SAVARIS. Manual dos Recursos nos Juizados Especiais Federais, p. 179.

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gências para a utilização de determinado remédio jurídico28.

Dados estatísticos básicos demonstram que o manejo dos incidentes vem sendo progressivo, como se pode constatar a partir dos números seguintes, com os quais é possível uma comparação entre a movimentação processual nas turmas recursais da 1ª à 5ª Regiões, anos de 2004 a 2010 e a movimentação processual no principal colegiado uniformizador previsto na Lei 10.259/10 – A Turma Nacional de Uniformização – anos de 2002 a 2011.

28 CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à Justiça, p. 156.

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TABELA 01 PROCESSOS DISTRIBUÍDOS NAS TURMAS

RECURSAIS POR REGIÃO (2004 – 2010)

Fonte: Conselho da Justiça Federal29

29 Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/atlas/Internet/Gr%C3%A1ficos_Turmas_Recursais_2004_2008.htm>. Acesso em: 09 mar. 2012.

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TABELA 02 MOVIMENTAÇÃO PROCESSUAL DA TURMA NACIONAL DE

UNIFORMIZAÇÃO (2002-2011)

Fonte: Conselho da Justiça Federal30

30 Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/atlas/Internet/Mov_Proc_TUN.htm>. Acesso em: 22 abr. 2012.

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Dos números apresentados podem-se extrair algumas constatações: 1º) início de congestionamento da TNU, com 12.288 processos em trâmite em 2011, embora tenham sido julgados pouco mais de 10% (1.342); 2º) ele-vado número de decisões monocráticas em comparação com julgamento colegiado. Com efeito, dos 14.486 pro-cessos registrados em 2011, apenas 5.498 foram distribuí-dos, tendo 9.360 processos sido decididos monocratica-mente pelo presidente da TNU.

O congestionamento da TNU acabou provocou inédito mutirão. Noticiou o site do Conselho da Justiça Federal em 06.06.2012 que “pela primeira vez em seus dez anos de existência, a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais (TNU) promove um mutirão”. O objetivo, segundo a notícia postada, “é reduzir a quantidade de recursos que aguardam julga-gamento. De acordo com o balanço da primeira fase, lizada entre fevereiro e abril deste ano, foram julgados 3.408 processos. No período, o colegiado analisou a média mensal de aproximadamente 1.139 casos31”.

Por outro lado, o grande número de processos decididos monocraticamente pelo presidente do órgão colegiado, a par de representar um desvirtuamento da natureza do órgão – colegiado –, pode passar a se con-figurar um problema acessório, já que frequentemente sujeita a agravos ou a pedidos de reconsideração.

A título de exemplificação, é interessante sin-tetizar o tortuoso caminho que um incidente nacional de uniformização pode seguir até ser conhecido: realizado o juízo preliminar do incidente, caso este seja pela inad-missão, a parte poderá interpor agravo nos próprios autos, no prazo de dez dias, a contar da publicação da decisão recorrida, devendo fundamentar o pleito, demonstrando o equívoco da decisão recorrida e a cir-cunstância de se encontrar em confronto com súmula ou

31 TNU bate recorde de processos julgados em mutirão inédito. Disponível em <http://www.jf.jus.br/cjf/noticias-do-cjf/2012/junho/tnu-bate-recorde-de-processos-julgados-em-mutirao-inedito>. Acesso em: 16 jul. 2012.

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jurisprudência dominante da TNU, do STJ e do STF (art. 15, § 4º, do Regimento Interno, veiculado pela Resolução CJF 22/08, com a redação dada pela Resolução CJF 163, de 9 de novembro de 2011).

Após a interposição do agravo (em decorrência de inadmissão preliminar na Turma a quo) e ante os funda-mentos colacionados, o presidente da Turma Recursal ou da Turma Regional de Uniformização pode reconsiderar a decisão de inadmissão. Não havendo reconsideração, os autos serão encaminhados à TNU.

Compete ao presidente da Turma Nacional de Uniformização, antes da distribuição, “negar seguimento ao incidente de uniformização manifestamente inad-missível ou em confronto evidente com súmula ou juris-prudência dominante da Turma Nacional de Unifor-mização, do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal” (art. 7º, VII, c, da Resolução 22/08). Esta decisão atualmente é irrecorrível, a teor do disposto no art. 7º, § 1º, da Resolução 22/08, em redação dada pela Resolução 163, de 9 de novembro de 201132. Até então, da decisão monocrática do Presidente da TNU que negava seguimento ao incidente, cabia agravo regimental, no prazo de cinco dias. No caso de interposição de agravo regimental, os autos eram distribuídos, cabendo ao rela-

32 Encontram-se pendentes de julgamento no Supremo Tribunal Federal os Agravos de Instrumento 757.624, 758.203 e 758.214, todos “contra decisão que não admitiu recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 5º, XXXV, LIV e LV; e 22, I, da Constituição Federal, a consti-tucionalidade, ou não, do art. 9º, §4º, da Resolução nº 390/2004, do Conselho da Justiça Federal – CJF, o qual estabelece a irrecorribilidade da decisão do Presidente da Turma Nacional sobre a admissibilidade do incidente de uni-formização, em face dos princípios de acesso à Justiça, inafastabilidade da jurisdição, devido processo legal, ampla defesa e reserva de competência da União para legislar sobre direito processual”. Os três recursos foram con-siderados “representativos da controvérsia”, permitindo, nos termos do art. 543-B, § 1º, do Código de Processo Civil, o imediato sobresta-mento dos recursos que versem sobre o mesmo tema nos tribunais e turmas recursais de origem. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaRepercussaoGeralRepresentativo/anexo/Descricao_RC_5.1.htm>. Acesso em 16 jul. 2012.

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tor apresentá-lo em mesa, proferindo voto na primeira sessão subsequente.

Vencidos estes dois primeiros juízos prévios de admissibilidade, o relator ainda deverá examinar o preenchimento de todos os pressupostos processuais, especialmente nas particularidades que alguns guardam no tocante ao incidente nacional de uniformização, para, só então, vir a conhecer do incidente, adentrando no mérito.

É ainda necessário destacar a possibilidade de suspensão de processos portando o mesmo tema ou questão prejudicial pendente de apreciação na Turma Nacional de Uniformização, no Superior Tribunal de Jus-tiça ou no Supremo Tribunal Federal (art. 8º, VIII, do Regimento Interno da TNU).

Em síntese, o itinerário processual que tendia à linearidade foi se tornando excessivamente complexo e demorado com a criação dos incidentes. O curso que uma simples atermação pode seguir após escapulir das ins-tâncias ordinárias assusta. E, é certo, pode provocar o afastamento do cidadão brasileiro da função judicial, remetendo-o ao seu locus histórico, de onde vem custando a sair, negando-lhe o exercício de direitos básicos de cida-cidadania.

5 Perplexidades do comum do povo ou de como tudo foi se complicando

Como escreveu PAOLO GROSSI, Professor Titular de História do Direito na Universidade de Florença e membro da Corte Constitucional da República Italiana,

Não está errado o homem do povo, mesmo em nossos dias, que traz em si ainda frescos os cromossomos do pro-letário da idade burguesa quando desconfia do direito: o percebe como alguma coisa que lhe é completamente estranha, que cai do alto sobre a sua cabeça, como uma telha do telhado, confeccionado nos mistérios dos palácios do poder e evocando sempre os espectros desagradáveis

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da autoridade sancionadora, o juiz ou o funcionário de polícia33.

E não estará errado ao também desconfiar de um ordenamento jurídico que se pretende aplicável unifor-memente. Ordenar, lembra PAOLO GROSSI, é colocar ordem, prestando contas com a realidade subjacente, pressupondo-a na sua onticidade. Ordenar não é res-tringir, mas registrar e respeitar toda a complexidade do real. “Uma coisa é certa: a ordem, se é rigor, se torna rigo-roso o mundo indócil dos fatos, significa respeito à com-plexidade e à pluralidade do real: ou seja, o oposto de massificação e de simplificação forçada34”.

Desconfiar e desconhecer são estados de exclusão. O cidadão que não confia no Sistema Jurídico de seu país e o cidadão que o desconhece são excluídos da parti-cipação social. O processo judicial que se apresentava simples vai se tornando tão complexo que em certo ponto se torna absolutamente incompreensível.

Os incidentes no âmbito dos juizados parecem flertar com o passado dos últimos dois séculos: zelo obcecado pela formalização e pelo esclerosamento da positividade do direito, época em que falar do direito “era como se referir a uma noção fechada, impermeável35”. Ademais, sua proposta – de uma aplicação ou, no mínimo, interpretação uniforme do direito – parece irrea-lizável.

Se o caso concreto é para o juiz um acontecimento que exige uma solução, o direito positivo controla apenas parcialmente os critérios de categorização de sentido e valor. Em verdade, afirma GUSTAVO ZAGREBELSKY36, “el derecho positivo presupone, pero no puede imponer, una com-prensión de sentido” e, continua,

33 GROSSI. Mitologias Jurídicas da Modernidade, p. 56. 34 Idem, p. 69. 35 Ibidem, p. 70. 36 GUSTAVO ZAGREBELSKY é Professor de Direito Constitucional na Uni-versidade de Turim. Foi Juiz e Presidente do Tribunal Constitucional Italiano.

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Esto es tanto como afirmar, una vez más y desde un particular punto de vista, que el derecho no puede separarse del ambiente cultural en que se halla inmenso y erigirse como sistema nor-mativo independiente y autosuficiente. Es una parte, aunque importante, pero sólo una parte, nunca el todo37/38.

Os incidentes podem provocar exatamente esta ruptura com o ambiente cultural em que vive o autor da ação. “recurso excepcional ou de estrito direito”, pois, “voca-cionado a definir a interpretação de direito que deve se prestar como paradigma de uniformização – e não à aná-lise da justiça da decisão no caso concreto39”, os incidentes apenas podem devolver à nova instância a rediscussão do direito material, sem revolver fatos40.

Sabe-se, entretanto, que no âmbito dos juizados os fundamentos fáticos preponderam sobre os fundamentos jurídicos. Basta lembrar que o processo sequer precisa se iniciar com assistência de advogado.

37 ZAGREBELSKY. El Derecho Dúctil: Ley, derechos, justicia, p. 138. 38 É interessante notar que a obra de G. ZAGREBELSKY, em italiano, tem por título “Il diritto mite. Legge diritti giustizia”. O destaque é relevante por que, como registrou Marco Aurélio Nogueira, tradutor da obra de N. BOBBIO, intitulada “Elogio dela mitezza e altri scritti morali” (“Elogio da serenidade e outros escritos morais”, na tradução brasileira), “a palavra mitezza, em italiano, é rica de sentidos e significados. [...] De mite, vem o verbo mitigar (em italiano, mitigare): suavizar, arrefecer, diminuir, atenuar, abrandar, aliviar. E também o substantivo abstrato mitezza. No entender de Bobbio, mite e mitezza são ‘palavras que somente a língua italiana herdou do latim’. Alguns tradutores france-ses e ingleses preferem mantê-las sempre em italiano, provavelmente por entenderem que sua tradução acarretaria alguma perda quanto ao significado”. BOBBIO. Elogio da serenidade e outros escritos morais, p. 9. ZAGREBELSKY, ao intitular sua obra “Il diritto mite...”, pretende chamar a atenção para a necessidade do direito se amoldar (e, portanto, de ser maleável, flexível, dúctil) à multifacetada realidade da vida, e não o contrário. 39 XAVIER; SAVARIS. Manual dos Recursos nos Juizados Especiais Federais, p. 169. 40 Cf. Súmula nº 42 da TNU: “Não se conhece de incidente de unifor-mização que implique reexame de matéria de fato”.

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6 O risco do passado que se repete

O acesso à justiça, na visão de MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH, dá-se por meio de soluções sequenciadas, ou “ondas”: na primeira “onda”, o foco foi a assistência judiciária para os pobres, afastando do acesso ao judiciário a barreira econômica; a segunda “onda” buscou proporcionar a adequada representação jurídica para os interesses difusos. Por fim, a terceira “onda” é a chamada “enfoque de acesso à justiça”, inclusiva das anteriores, mas avançando na proces-sualística, centrando sua atenção “no conjunto geral das instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utili-zados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas41”.

Para MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH, desde o momento em que os juristas reconheceram que “as téc-nicas processuais servem a funções sociais”, o tema do acesso à justiça passou a ser o ponto central da moderna processualística42.

Um dos enfoques de acesso à justiça elencados por MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH é exatamente o delineamento de instituições e procedimentos especiais para determinadas ações judiciais (causas) de particular importância social. Trata-se de esforço para criar “sociedades mais justas e igualitárias”, com atenções cen-tradas “sobre pessoas comuns – aqueles que se encontravam tradicionalmente isolados e impotentes ao enfrentar organizações fortes e burocracias gover-namentais”, buscando “prover mais direitos substantivos aos relativamente fracos43”.

Nas veredas das reflexões de NORBERTO BOBBIO, entende-se que a atual ordem jurídica brasileira precisa de mais atuação e concretização do que novas declarações de direitos – representados por toda ordem de Estatutos e

41 CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à justiça, p. 68. 42 Idem, p. 12-13, passim. 43 CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à justiça, p. 91, passim.

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Códigos que a cada dia são promulgados –, ou seja, já “não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento [...] mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados44”.

A garantia de direitos no âmbito dos juizados especiais federais e dos juizados especiais da Fazenda Pública implica a necessidade de máxima simplificação processual possível. Como advertiram MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH,

Procedimentos contraditórios altamente estruturados, uti-lizando advogados bem treinados e perícias dispendiosas, podem ser de importância vital nos litígios de direito público, mas colocam severas limitações na acessibilidade de nossos tribunais a pequenas causas intentados por pes-soas comuns. [...] Um sistema destinado a servir às pessoas comuns, tanto como autores, quanto como réus, deve ser caracterizado pelos baixos custos, informalidade e rapidez, por jul-gadores ativos e pela utilização de conhecimentos técnicos bem como jurídicos45”.

É necessário ainda a permanente consciência de que o estado, nos juizados especiais federais e nos jui-zados especiais da Fazenda Pública, representa, na clássi-ca tipologia das partes, de MARC GALANTER, um repeat-player, enquanto o cidadão é one shotter ou one shot player.46 Como bem alertou PAULO EDUARDO ALVES DA SILVA,

A complexidade e multiplicidade das regras processuais abrem caminho para que o diálogo entre as partes para a

44 BOBBIO. A era dos direitos, p. 25. 45 CAPPELLETTI; GARTH. Acesso à justiça, p. 91, 94. 46 “We might divide our actors into those claimants who have only occasional recourse to the courts (one-shotters or OS) and repeat players (RP) who are engaged in many similar litigations over time”. GALANTER. Why the “Haves” Come Out Ahead: Speculations on the Limits of Legal Change, p. 4. Disponível em <http://www.lawforlife.org.uk/data/files/whythehavescomeoutahead-33.pdf> . Acesso em 20 abr. 2012

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solução do conflito se transforme em uma batalha de regras formais, desatenta a seu objetivo primordial, a solução do conflito. Este cenário é letal para o equilíbrio democrático, pois permite que os repeat-players utilizem o sistema de justiça em seu favor e os one-shotters sejam pri-vados do único socorro em caso de violação a seu direi-to47.

Insistir em uma observação permanente dos jui-zados especiais federais é não se deixar vencer por um fenômeno que não é exclusivamente brasileiro: como aler-taram MAURO CAPPELLETTI e BRYANT GARTH, em diversos países do mundo, passados alguns anos de sua criação, os chamados “tribunais de pequenas causas” foram se desnaturando, tornando-se complexos, morosos e incompreensíveis ao seu público. “Muitos tribunais de pequenas causas tornaram-se quase tão complexos, dis-pendiosos e lentos quanto os juízes regulares (devido, particularmente, à presença dos advogados e à resistência dos juízes em abandonar seu estilo de comportamento tradicional, formal e reservado)48”. No caso brasileiro, permitir que os juizados especiais federais se desnaturem de tal modo é permitir que a concretização plena de direi-tos básicos do cidadão brasileiro (como é o caso dos bene-fícios previdenciários) seja protelada indefinidamente.

Conclusões

A União, instada à criação de juizados especiais no âmbito federal, em razão da experiência bem sucedida dos juizados especiais cíveis e criminais estaduais (Lei 9.099/95), acabou por fazê-lo no bojo da Lei 10.259/01.

Reunindo na mesma pessoa as figuras de legis-ladora e futura ré nos juizados especiais federais, todavia, se preocupou em inserir na lei mecanismos recursais que acabam por desnaturar a concepção original do rito do

47 ALVES DA SILVA. Gerenciamento de Processos Judiciais, p. 31. 48 ALVES DA SILVA. Gerenciamento de Processos Judiciais, p. 96-97.

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juizado como procedimento vocacionado a concretizar a Justiça de modo rápido e acessível a todos.

A par de “controle, peias e amarras” que foram sendo superados pela justiça federal, a Lei 10.259/01 criou um assimétrico sistema recursal nas instâncias extraordinárias dos Juizados (TRU, TNU e STJ), com a possibilidade de inúmeros recursos simultâneos ou sucessivos, antípoda, pois, da orientação do processo pelos critérios da simplicidade, oralidade, informalidade, economia processual e celeridade.

A compreensão de ser a União um repeat player permite entender melhor estes mecanismos recursais vol-tados a uma suposta uniformização de jurisprudência. Ao lançar luzes para os métodos de atuação dos litigantes freqüentes, BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS permite interpretar os juizados especiais como criação (co)medida da União: dá com uma mão (possibilita atermação – sem advogado –; a antecipação de tutela é freqüente, por exemplo), mas tira com a outra (retarda o trânsito em jul-gado – e, consequentemente, o recebimento das parcelas atrasadas, anteriores ao ajuizamento da ação ou não per-cebidas por antecipação de tutela –; dificulta ao máximo o acesso às instâncias extraordinárias na falta de advogados especialmente preparados para nelas atuar, ao mesmo tempo em que conta com corpo profissional de procura-dores federais).

Ao tornar complexo o acesso às instâncias unifor-mizadoras, por fim, a União acaba por impelir os juizados à desnaturação, à morosidade e à incompreensão pelo seu público. E, em última instância, ao fortalecimento da uma sensível descrença coletiva na atuação do poder Judiciá-rio.

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OS PRÍNCIPIOS PROCESSUAIS NA PROPOSTA DA NOVA LEI DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Ana Flávia Nogueira Silva1 Ana Luiza Rocha de Melo Santos2

Resumo: O Projeto de Lei 5.139, elaborado em dezembro de 2009, propõe uma nova disciplina para a Ação Civil Pública e visa uma adequação ao Sistema Único Coletivo, passando tal sistema a atuar como regra geral, de forma ampla, integradora e sistemática. Apesar do processo coletivo do Brasil ser um dos melhores e mais avançados do mundo, as normas que disciplinam a tutela coletiva no país precisam de significativas alterações para se ajustar a nova ordem constitucional. Neste trabalho, serão abor-dados os princípios da tutela coletiva elencados na men-cionada proposição legislativa, demonstrando, assim, a autonomia do direito processual coletivo. Tais princípios, inseridos nessa proposta, são imprescindíveis para con-cretizar as finalidades do modelo processual coletivo. Entre as expectativas da Nova Lei de Ação Civil Pública, evidencia-se a necessidade de garantir a todos um amplo acesso a justiça, ou seja, a possibilidade concreta de utili-zar do processo como meio de defesa de seus direitos. Assim, destaca-se a importância desse projeto de lei fren-te às transformações econômicas, políticas, tecnológicas e culturais marcantes dos últimos séculos, que obtiveram evidentes reflexos na sociedade e não foram, ainda, ade-quadamente disciplinados no Sistema Processual. Palavras-chave: Princípios processuais – Ação Civil Pública.

1 Mestranda em Direito pela Universidade de Itaúna. Advogada. 2 Mestranda em Direito pela Universidade de Itaúna. Advogada.

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Ana Flávia Nogueira Silva & Ana Luiza R. de Melo Santos 94

Introdução

O direito transindividual é um dos temas de maior relevância nos dias atuais. Esse fenômeno vem se desta-cando no cenário jurídico devido às inúmeras relações coletivas, que desconsideram a individualidade, para vincular sujeitos pelos objetivos comuns.

No Brasil, os direitos individuais foram intro-duzidos e regulamentados a partir da Lei de Ação Popu-lar (Lei 4.717/65). Vinte anos depois foi promulgada da Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.347/85) e em seguida o Código de Defesa do Consumidor, que trouxeram impor-tantes inovações processuais para a tutela coletiva.

Atualmente, a defesa dos direitos coletivos no Brasil é considerada uma das mais avançadas e ino-vadoras. Entretanto, ainda, são necessárias diversas alte-rações para se ajustar ao atual modelo constitucional.

Assim, em dezembro de 2009 foi elabora o Projeto de Lei n° 5.139/2009, que “Disciplina a ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, e dá outras providências”. Com a aprovação da proposta, a futura Lei de Ação Civil Pública será a norma disciplinadora de todo o Sistema Único Coletivo, atuando como regra geral e, quando necessário, como regra espe-cífica em outros diplomas de tutela coletiva. Ao assumir a sistematização das regras esparsas que regulam o pro-cesso coletivo, o projeto de lei assume o efeito de ampliar e facilitar o acesso à justiça em relação aos interesses difu-sos, coletivos e individuais homogêneos.

Porém, o projeto de lei 5.139/2009, elaborado por uma comissão especial do Ministério da Justiça, formada por renomados juristas e advogados, foi rejeitado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Depu-tados, que alegaram a falta debate e discussão pública.

Diante da rejeição, foi interposto recurso, que se encontra em fase de julgamento. No recurso foi exposto que houve um trabalho coletivo, cuja discussão durou mais de seis anos, publicação em livros, anteprojeto do Código de Processo Civil, Congressos, artigos, audiências

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públicas realizadas no país, tudo isso para divulgar e proporcionar críticas ao Projeto de Lei 5.139/2009.

Contudo, o projeto de lei 5.139/2009 mostra-se inovador e um autêntico “divisor de águas” para a tutela coletiva. Apesar de haver quem sustente que o projeto de lei, na verdade, será retrocesso para a defesa dos direitos coletivos.

Neste trabalho, serão abordados os princípios da tutela coletiva elencados na proposição legislativa. São princípios próprios do processo coletivo que demonstram sua autonomia. Insta mencionar, que o rol do art. 3° do referido projeto de lei é apenas exemplificativo, o que possibilita que o processo coletivo ser interpretado sob a ótica de outros princípios processuais.

Os princípios processuais apresentados pela pro-posição legislativa mencionada revelam extrema impor-tância para a efetividade do modelo processual coletivo. Diante disso, notamos a importância de seu estudo e de sua utilização nas ações coletivas.

1 A importância dos princípios da Nova Lei de Ação Civil Pública para a efetividade do processo coletivo

As ações coletivas ganham um espaço cada vez maior no cenário jurídico, principalmente depois do estudo mais aprofundado da nova summa divisio direito individual e direito coletivo, que supera a antiga summa divisio direito público e direito privado.

Essa espécie de tutela jurídica pode ser entendida como uma ação que tem como finalidade a proteção de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Direitos difusos, por sua vez, é uma espécie de direitos transindividuais, ou seja, são direitos que ultrapassam a esfera de um único indivíduo, caracterizados princi-palmente por sua indivisibilidade, onde a satisfação do direito deve atingir a uma coletividade indeterminada, porém, ligada por uma circunstância de fato. Os Direitos coletivos constituem direitos transindividuais de pessoas ligadas por uma relação jurídica base entre si ou com a

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parte contrária, sendo seus sujeitos indeterminados, porém determináveis. Já os direitos individuais homo-gêneos são aqueles que dizem respeito a pessoas que, ainda que indeterminadas num primeiro momento pode-rão ser determinadas no futuro, e cujos direitos são liga-dos por um evento de origem comum.

Diante do interesse social que reveste as ações coletivas, nota-se a relevância da aplicação dos princípios próprios arrolados no Projeto de Lei 5.139/2009, para a garantia dos direitos transindividuais. Nesse ponto, faz-se importante transcrever a lição de Didier e Zaneti3 “a ela-boração de uma tipologia dos princípios tem o objetivo de ressaltar as grandes linhas políticas de interpretação e aplicação dos institutos do processo coletivo. São prin-cípios gerais justamente porque devem prevalecer em relação aos processos coletivos de todas as espécies.”.

Os princípios processuais apresentados na pro-posta da nova lei de ação civil pública apresentam enorme relevância para a efetividade dos direitos cole-tivos, uma vez que possuem aplicabilidade prática muito grande. Apesar de existirem algumas coincidências entre os princípios do direito processual comum e os princípios do processo civil coletivo, estes últimos são mais amplos e apresentam algumas diferenças tendo em vista, a com-plexidade e grandiosidade da matéria que regulam.

Assim, diante da importância da aplicabilidade dos princípios disposto no artigo 3º do Projeto de Lei nº 5.139/2009, para que se tenha um resultado prático mais efetivo e ágil das ações coletivas é inegável que esses princípios devem ser adotados e utilizados no processo coletivo, mesmo que esse projeto seja reprovado, uma vez que não há necessidade de previsão legal para que um princípio seja respeitado e utilizado no ordenamento jurídico.

3 DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes. Curso de direito Processual Civil: Processo Coletivo. 3ª Ed. Bahia, Editora JusPodivm, 2008, p. 111.

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2 Amplo acesso à justiça e participação social

Entre as expectativas que a Nova Lei de Ação Civil Pública traz, evidencia-se a importância de garantir a todos um amplo acesso à justiça, a possibilidade concreta de utilizar do processo como meio de defesa de seus direitos. Isso porque é própria do processo a ideia de concretização do direito material. Assim o acesso ao judi-ciário deve significar a efetividade da tutela pretendida, assegurando tudo o que for necessário e exigível para sua realização.

A Constituição Federal ao dizer em seu art. 5°, XXXV que “a lei não excluíra da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, está assegurando o direito do acesso à justiça. E o processo coletivo é mais abrangente ao dizer que o acesso deve ser amplo. Além disso, a noção de direitos coletivos, segundo Didier e Zaneti4, “nasceu para garantir o acesso à justiça de situações que antes não encontravam guarida no judi-ciário”.

Nesse ponto, é relevante mencionar as fases evo-lutivas do acesso à justiça, de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que ocorreram sucessivamente a partir de 1965 nos países ocidentais. Segundo os autores uma primeira onda garantiu assistência jurídica aos pobres, uma segunda onda superou obstáculos mais complexos e se refere à defesa em juízo de interesses difusos e, uma terceira onda, diz respeito à ampliação do acesso à justiça.

Cappelletti e Garth sobre a primeira onda reno-vatória ponderam que:

Os primeiros esforços importantes para incrementar o acesso à justiça nos países ocidentais concentraram-se, muito adequadamente, em proteger serviços jurídicos para os pobres. Na maior parte das modernas sociedades, o auxílio de um advogado é essencial, senão indispensável para decifrar leis cada vez mais complexas e proce-dimentos misteriosos, necessários para ajuizar uma causa.

4 DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes. Curso de direito Processual Civil: Processo Coletivo. 3ª Ed. Bahia, Editora JusPodivm, 2008,, p.112

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Os métodos para proporcionar a assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por si mesmo, vitais. 5

A segunda onda renovatória, que tratou da supe-ração de obstáculos mais complexos: fazer acessível à tutela jurisdicional àqueles direitos e interesses que gem particularmente importantes e vulneráveis. Cap-pelleti e Garth6 explicam que o “segundo movimento no esforço de melhorar o acesso à justiça enfrentou o pro-blema da representação dos interesses difusos, assim chamados os interesses coletivos ou grupais, diversos daqueles dos pobres.”

Os autores, ainda, expõem que a dificuldade da segunda onda renovatória é consequência da concepção tradicional do processo civil, que tinha o processo apenas como uma solução de controvérsia entre duas pessoas que discutiam interesses próprios e individuais.

Entretanto algumas reformas a esse modelo tradi-cional mostraram um resultado rápido sobre as mudan-ças que caracterizam a segunda onda renovatória. Cap-pelleti e Garth7 apresentam algumas reformas:

Em primeiro lugar, com relação a legitimidade ativa, as reformas legislativas e importantes decisões dos tribunais estão cada vez mais permitindo que indivíduos ou grupos atuem em representação dos interesses difusos. Em segundo lugar, a proteção de tais interesses tornou necessária uma transformação do papel do juiz e de con-ceitos básicos como a “citação” e o “direito de ser ouvi-do”. Uma vez que nem todos os titulares de um direito difuso podem comparecer a juízo – por exemplo, todos os interessados na manutenção da qualidade do ar, numa determinada região – é preciso que haja um “repre-sentante adequado” para agir em beneficio da cole-tividade, mesmo que os membros dela não sejam “cita-dos” individualmente. Da mesma forma, para ser efetiva,

5CAPPELLETTI, Mauro, GAHTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 31-32. 6 CAPPELLETTI, Mauro, GAHTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 49. 7 CAPPELLETTI, Mauro, GAHTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 49-50.

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a decisão deve obrigar a todos os membros do grupo, ain-ainda que nem todos tenham tido a oportunidade de ser ouvidos. Dessa maneira, outra noção tradicional, a da coisa julgada, precisa ser modificada, de modo a permitir a proteção judicial efetiva dos interesses difusos. A criação norte-americana da class action, abordada a seguir, permite que, em certas circunstâncias, uma ação vincule os membros ausentes de determinada classe, a despeito do fato de ele não terem tido qualquer informação prévia sobre o processo. Isso demonstra as dimensões sur-preendentes dessa mudança no processo civil. A visão individualista do devido processo judicial está cedendo lugar rapidamente, ou melhor, está se fundindo com uma concepção social, coletiva. Apenas tal transformação pode assegurar a realização dos “direitos políticos” relativos a interesses difusos.

Por fim, a terceira onda renovatória seria o acesso

mais amplo à justiça, através de um novo enfoque. Nas lições de Cappelletti e Garth8:

O fato de reconhecermos a importância dessas reformas não deve impedir-nos de enxergar os seus limites. Sua preocupação é basicamente encontrar representação efeti-va para interesses antes não representados ou mal repre-sentados. O novo enfoque de acesso à Justiça, no entanto, tem alcance muito mais amplo. Essa “terceira onda” de reforma inclui a advocacia, judicial ou extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de insti-tuições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. Nós o denominamos “o enfoque do acesso à Justiça” por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso.

As ondas renovatórias do acesso à justiça

orientam o processo coletivo. Isso porque o inicio do debate sobre direitos coletivos se deu em face da exclusão

8 Acesso à Justiça. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 67-68.

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de uma grande parte da população em ter seus direitos fundamentais assegurados. Através, da segunda e da ter-ceira onda é que realmente se visualiza o direito coletivo, uma vez que se busca efetivar de forma ampla os direitos coletivos.

Em relação ao princípio em análise, Hugo Nigro Mazzilli tece suas criticas no sentido de que o artigo 1º, parágrafo 1º da Lei de Ação Civil Pública deve ser extinto, pois, nas palavras de autor, “a proibição de uso de ação civil pública em matérias como questões tributárias, pre-videnciárias, etc., consiste em denegação de acesso coleti-vo ao judiciário, em afronta ao artigo 5º XXXV, da CF.”. Verifica-se que o projeto de Lei 5.139/2009 adota a mes-ma redação da lei que regula a matéria atualmente. Entende-se que o posicionamento de Mazzilli é correto, ainda mais se considerarmos que um dos objetivos da nova lei é ampliar o acesso à justiça.

Nesse contexto ressalta-se a importância que se tem a participação popular diante das características do processo coletivo. É necessária a participação da sociedade para a concretização de seus direitos. E com a garantia de um acesso amplo é relevante o interesse de toda a sociedade em participar na defesa de seus direitos transindividuais.

O princípio de amplo acesso à justiça e da partici-pação social junto aos demais princípios do processo cole-tivo, assegurará de forma ampla o direito ao acesso sufi-ciente, eficiente e justo aos propósitos do Estado Demo-crático de Direito.

3 Duração razoável do processo, com prioridade no seu processamento em todas as instâncias

O direito processual coletivo é o instrumento para resguardar os direitos fundamentais da sociedade. Através dele se resolve conflitos sociais e impede que se disseminem inúmeras ações individuais, bem como decisões contraditórias.

De acordo com o art. 5°, inciso LXXVIII, da CF “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são asse-

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gurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”. Agilizar o trabalho jurisdicional por parte do Estado é uma neces-sidade indiscutível. No processo coletivo o princípio da duração razoável, vem de forma diferenciada e ampla, pois além do processo ter uma duração razoável, terá também prioridade em relação aos processos individuais em todas as instâncias.

Entretanto, é importante mencionar que o prin-cipio em analise não fere o princípio da isonomia, como afirma Letícia Mariz de Oliveira9. A demanda coletiva sempre será revestida de interesse social e em conse-cia disso os processos coletivos devem ser analisados com máxima prioridade, até mesmo porque os direitos coleti-vos prevalecem sobre os interesses individuais, o que afasta a possível critica no sentido de ferir o principio constitucional da igualdade entre todos.

Neste sentido, é o posicionamento de Gregório Assagra de Almeida ao afirmar que:

Essa prioridade já acontece em relação a outras formas de tutela jurisdicional, como habeas corpus e habeas data. Não seria nem um pouco razoável que o Poder Judiciário não desse prioridade às tutelas jurisdicionais coletivas, pois é no julgamento desses conflitos coletivos que ele terá o condão de dirimir, em um único processo e em uma única decisão, um grande conflito coletivo ou vários conflitos individuais entrelaçados por uma homogeneidade de fato ou de direito que justifique, seja por força de economia processual, seja para evitar decisões conflitantes, a tutela jurisdicional coletiva.10

9 OLIVEIRA. Letícia Mariz de. Os princípios da tutela coletiva no substitutivo ao projeto de Lei (PL) nº 5.139/2009, que trata da Ação Civil Pública e sua violação às garantias constitucionais. Disponível em <http://www.cnc.org.br/sites/default/files/arquivos/dj1jan10.pdf> 10 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Bra-sileiro: Um novo ramo do direito processual. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

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Portanto, o Poder Judiciário e todas as demais partes de uma ação coletiva, devem sempre perseguir os objetivos de uma duração plausível das demandas cole-tivas e prioridade de tramitação das mesmas em relação as que possuem interesse apenas individual. O que se justifica diante dos objetivos que a tutela coletiva aspira atingir.

4 Isonomia, economia processual, flexibilidade procedimental e máxima eficácia.

A sociedade atual, diante de seu grandioso cres-cimento, avanço e acesso a informação, estimula um enorme número de litígios judiciais provocados por gru-pos ou indivíduos homogeneizados. Ocorre que existem milhares de processos, ajuizados individualmente, que possuem o mesmo objeto e a mesma causa de pedir. Cer-tamente, se fosse intentada uma ação coletiva para solu-cionar o conflito o desgaste do judiciário seria mínimo, ao mesmo tempo em que a solução seria potencializada e geraria maior segurança jurídica a sociedade.

Assim, para a máxima efetividade da tutela coletiva é necessário uma redução do número de ações ajuizadas individualmente que visam a mesma matéria a ser discutida. E a consequência dessa redução de processo é que teremos economia processual não só de tempo, mas também de dinheiro para todas as partes envolvidas no processo. Além da segurança jurídica que isso traz, uma vez que teremos uma solução única para todos, o que irá evitar julgamentos contraditórios, garantir isonomia entre as partes e o funcionamento mais harmônico do judi-ciário.

O principio da isonomia, também chamado de princípio da igualdade, é um principio previsto no artigo 5º, caput, da Constituição da República de 1988, que enuncia que “todos são iguais perante a lei”. Alexandre

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Freitas Câmara11 assevera que “a isonomia está intima-mente ligada à ideia de processo justo – isto é, de devido processo legal – eis que exige o tratamento equilibrado entre seus sujeitos”. Esse princípio para a tutela coletiva é mais que uma mera igualdade, é a garantia de segurança jurídica para as partes, uma vez que assegura que as deci-sões irão atingir todos os afetados de forma igual, evitan-do, assim, decisões contraditórias. Pode-se dizer, ainda, que a isonomia no processo coletivo tem a finalidade de evitar a “loteria judiciária na medida em que a decisão será igualitária para todos os membros do grupo” 12.

O princípio da economia processual possui previ-são expressa na Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Cri-minais (Lei 9.099/95) e preconiza o menor desgaste das partes do processo e uma economia de tempo e dinheiro. A respeito do princípio em análise, Ada Pellegrini, Antô-nio Cintra e Cândido Rangel asseveram:

Se o processo é um instrumento, não pode exigir um dis-pêndio exagerado com relação aos bens que estão em dis-puta. E mesmo quando não se trate de bens materiais deva haver uma necessária proporção entre fins e meios, para equilíbrio do binômio custo benefício. É o que reco-menda o denominado princípio da economia, o qual pre-coniza o máximo resultado na atuação do direito com o mínimo emprego possível de atividades processuais.13

Busca-se, através do princípio da economia pro-

cessual, que o judiciário tenha um desgaste mínimo, ten-do em vista que o objetivo é o maior número de atos em menor tempo. Nesse ponto, é importante destacar que esse princípio apresenta um grande avanço para o pro-

11 CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 2007, p. 42. 12 GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel, FAVRETO Rogério. O Projeto da Nova Lei de Ação Civil Pública: principais aspectos. Direitos funda-mentais e sua proteção nos planos Interno e Internacional. Belo Hori-zonte: Arraes Editores,2010, p. 229. 13 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 79.

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cesso coletivo, pois a tutela jurisdicional prestada vai atingir um número indefinido de pessoas.

Ao contrário dos princípios da isonomia e da eco-nomia processual, os princípios da flexibilização da téc-nica processual e da máxima efetividade são inovações do Projeto de Lei 5.139/2009, uma vez que não possuem amparo no ordenamento jurídico brasileiro, nem mesmo na jurisprudência pátria. Ocorre que no entanto esses princípios foram alvos de inúmeras críticas. Dentre elas salientamos a Emenda ao Substitutivo (ESB) nº 96, pro-posta pelo Deputado Federal Arnaldo Madeira (PSDB-SP), que sugere a retirada de tais princípios do Projeto de Lei. De acordo com o deputado esses princípios violariam outras garantias constitucionais fundamentais, tais como o devido processo legal substancial, a segurança jurídica, o equilíbrio das partes no processo e a isonomia, além de gerarem instabilidade no procedimento. Nesse contexto, faz-se importante transcrever um trecho da justificativa do Deputado Federal Arnaldo Madeira:

Sugere-se a retirada dos denominados princípios da flexi-bilidade procedimental e da máxima eficácia, que o proje-to visa introduzir. Tais princípios não existem no ordena-mento jurídico nem na jurisprudência processual civil e visam justificar dispositivos do projeto que violam as garantias constitucionais do devido processo legal subs-tancial, da proporcionalidade, da segurança jurídica, do equilíbrio das partes no processo e da isonomia, pois a pretexto de tutelar os direitos coletivos, tais princípios vulneram as prerrogativas processuais dos réus, pois dão ensejo a um regime desequilibrado, voltado a fazer com que a ação coletiva seja julgada procedente a qualquer custo.14

Entretanto, entendemos que os princípios apre-sentam uma grande inovação para o processo, diante da finalidade dos mesmos. O processo coletivo deve-se se pautar na máxima eficácia e na flexibilização das formas,

14 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=696849&filename=Tramitacao-ESB+96+CCJC+%3D%3E+SBT+1+CCJC+%3D%3E+PL+5139/2009

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não devendo ficar preso as formalidades do proce-dimento e buscar sempre resolver as demandas com a mais alta efetividade, pois se trata da tutela de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos que tem a pretensão de conduzir uma solução mais eficiente da lide15. Contudo, na aplicação de tais princípios é preciso se atentar para que outros direitos fundamentais não sejam violados, fazendo sempre a correta e devida pon-deração de interesses.

A aplicação dos princípios da flexibilização do procedimento e da máxima eficácia, bem como os da iso-nomia e da economia processual no processo coletivo são de suma importância, uma vez que tratam da defesa do direito de um desmedido número de pessoas, deter-minadas ou não. O que requer um procedimento mais ágil, justo, seguro e econômico, para que se obtenha o resultado otimizado. Deve tais princípios ser inter-dos “como garantia da boa hermenêutica dos direitos fundamentais coletivos e dos próprios direitos fundamen-tais individuais (...)” 16.

5 Tutela coletiva adequada, com efetiva precaução, prevenção e reparação dos danos materiais e morais, individuais e coletivos, bem como punição pelo enriquecimento ilícito

A Constituição Federal consagrou como direito fundamental em seu art. 5°, incisos V e X, à indenização por dano moral e dano material. O dano material diz res-peito aos danos econômicos que sofreu o lesado, seja em virtude da diminuição do seu patrimônio (danos emer-gentes), ou pelo acréscimo patrimonial que o mesmo dei-xou de receber (lucros cessantes). Já no dano moral, o lesado é afetado em seu ânimo psíquico, moral e inte-

15 MAZZILLI, Hugo Nigro. P. 51 16 DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes. Curso de direito Pro-cessual Civil: Processo Coletivo. 3ª Ed. Bahia, Editora JusPodivm, 2008, p. 145.

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lectual, na maioria das vezes relacionado à ofensa à sua honra, privacidade, intimidade, imagem e nome, consis-tindo em violações de natureza não econômica.

A proposta da nova lei de Ação Civil Pública dis-ciplina em seu artigo 12 que “sendo inestimável o valor dos direitos ou danos coletivos, o valor da causa será indicado pelo autor, segundo critério de razoabilidade, com a fixação em defi-nitivo pelo juiz em saneamento ou na sentença.”. Além disso, destinou o capítulo XI da referida proposta legislativa para tratar do chamado “Programa Extrajudicial de Preven-ção ou Reparação de Danos”.

A precaução é uma espécie de prevenção, porém deformada, pois pela precaução ainda não se conhece, ao certo, as consequências de determinado ato. Pode-se dizer o ponto que distingue a precaução da prevenção é a falta certeza científica, porém essa incerteza não pode ser motivo para a não adoção de medidas eficazes para evitar danos.

A prevenção, por sua vez, visa prevenir danos de maneira consciente, uma vez que suas consequências já são conhecidas. Assim, a prevenção tem como finalidade evitar danos que já são ou poderiam ser conhecidos, enquanto a precaução se realiza quando não existe certe-za científica do dano, porém o que prevalece é o dever de evitá-lo. Contudo, muitas vezes não será possível pre-venir o dano, e assim será necessário a sua reparação, sejam esses danos morais, matérias ou derivados de enri-quecimento ilícito.

O enriquecimento ilícito também deve ser punido e as partes lesadas por esse dano indenizadas. Neste sen-tido, podemos citar como exemplo as empresas de telefo-nia de celular que fazem cobranças indevidas nas contas de seus clientes, enriquecendo ilicitamente. Nessa situação, pelo princípio da punição pelo enriquecimento ilícito, as empresas devem ser condenadas a indenizar as partes lesadas.

Portanto, o que se espera de uma ação coletiva é que a mesma resolva a controvérsia. E, além disso, que promova a precaução, a prevenção, a reparação pelos danos matérias e morais e impeça o enriquecimento ilíci-

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to. Disso conclui-se a importância de tais princípios para a efetiva proteção dos direitos coletivos.

6 Motivação específica de todas as decisões judiciais, notadamente quanto aos conceitos indeterminados

A motivação da sentença é um instituto de influência histórica na atividade do juiz. A obrigatorieda-de da motivação da sentença é uma forma de controlar e limitar os poderes do julgador. Apresenta como sua prin-cipal função esclarecer às partes as razões que levaram o juiz a chegar a certa decisão em relação ao litígio apresen-tado pelas partes, controlando a arbitrariedade do julga-dor.

Motivar, na concepção de Gilmar Mendes17 “sig-fica dar as razões pelas quais determinada decisão há de ser adotada, expor as suas justificações e motivos fático-jurídicos determinantes.”

Esse princípio é uma garantia para as partes, uma vez que possibilita que as partes entendam as razões que levaram o julgador a determinada decisão e poste-riormente poderão utilizar de instrumentos processuais adequados para defender seus interesses e direitos.

De fato, em todas as decisões do poder judiciário impõem-se o dever de fundamentação, sob pena de pre-juízo às partes. Dessa forma, tendo em vista, que o pro-cesso coletivo é um ramo relativamente novo no direito e seus conceitos ainda são não determinados, há neces-sidade que o julgador fundamente sua decisão de forma que não gere dúvidas e que ainda, defina bem os concei-tos que não foram definidos pela doutrina ou pela juris-prudência e no caso de conceitos que apresentam contro-vérsias é preciso justificar seu entendimento minu-ciosamente.

17 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 612.

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7 Publicidade e divulgação ampla dos atos processuais que interessam à comunidade

O princípio da publicidade e divulgação dos atos processuais tem como finalidade levar ao conhecimento da sociedade o que foi realizado no processo, ou seja, tor-nar público todos os atos processuais de interesse da população no processo coletivo.

Este princípio se mostra extremante necessário no direito processual coletivo, uma vez que o bom resultado das Ações Coletivas está intimamente ligado ao fato que os efeitos da tutela transpassarão os integrantes do pro-cesso. As decisões proferidas no processo coletivo ou terão alcance erga omnes ou ultra partes, o que significa que poderão atingir pessoas que não fizeram parte do proces-so. Dessa forma, é necessário que lhes sejam assegurados o amplo e o mais irrestrito respeito ao princípio da publi-cidade e divulgação dos atos processuais, através de todos os meios publicitários existentes.

Ademais, o artigo 37, parágrafo 2º do Projeto da Nova Lei de Ação Civil Pública diz que:

Cabe ao réu, na ação individual, informar o juízo sobre a existência de demanda coletiva que verse sobre idêntico bem jurídico, sob pena de, não o fazendo, o autor indi-vidual beneficiar-se da coisa julgada coletiva mesmo no caso de o pedido da ação individual ser improcedente, desde que a improcedência esteja fundada em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

Nesse mesmo sentido dispõe o artigo 104 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 104 - As ações coletivas, previstas nos incisos I e II do parágrafo único do artigo 81, não induzem litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada erga omnes ou ultra partes a que aludem os incisos II e III do artigo anterior não beneficiarão os autores das ações individuais, se não for requerida sua suspensão no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da ciência nos autos do ajui-zamento da ação coletiva.

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Diante dos dispositivos transcritos acima, visua-lizamos ainda mais a importância do princípio da publi-cidade, pois somente através do conhecimento da demanda coletiva é que os indivíduos poderão optar ou não pela suspensão do processo.

Além disso, Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. ponderam:

Por este princípio, percebe-se outro aspecto da tutela coletiva: sua característica democrática. Tanto na ampla divulgação, que tem suas raízes na fair notice do direito norte-americano e possibilita a opção pela ação coletiva, ao invés da individual, aumentando o espectro da coisa julgada, bem como possibilitando a opção de suspensão do processo individual, nos termos do artigo 104 do CDC, para garantir ao titular da demanda individual já ajuizada sua continuação, caso o processo coletivo não seja bem sucedido.18

Dessa forma, notamos que para que seja asse-gurada a efetividade das ações coletivas é de suma importância o respeito ao princípio da publicidade e divulgação dos atos processuais, devendo ser dado amplo conhecimento de todos os atos praticados no processo coletivo e não apenas das decisões, uma vez que a decisão proferida em sede de ação coletiva poderá atingir aqueles que não foram partes no processo.

8 Dever de colaboração de todos, inclusive pessoas jurídicas públicas e privadas, na produção das provas, no cumprimento das decisões judiciais e na efetividade da tutela coletiva

O processo coletivo exige para a sua concretização um foco diferenciado da ação individual. Para a ade-

18 DIDIER JR., Fredie, ZANETI JR., Hermes. Curso de direito Pro-cessual Civil: Processo Coletivo. 3ª Ed. Bahia, Editora JusPodivm, 2008, p. 131.

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quada satisfação de uma ação coletiva efetiva e justa, exi-ge-se a realização de mecanismos diferenciados e ino-vadores, uma vez que de nada adiantaria um aparato judicial coletivo se não existirem instrumentos de rea-lização mais efetiva do comando judicial. Diante disso, o dever de colaboração de todos, pessoas físicas, jurídicas, privadas e públicas, é de grande importância para se obter um resultado mais célere e eficaz nas ações cole-tivas.

Em relação à produção de provas, o art. 20 do pro-jeto de Lei da Nova Lei de Ação Civil Pública, dispõe que:

Art.20 - Não obtida a conciliação ou quando, por qualquer motivo, não for utilizado outro meio de solução do conflito, o juiz, fundamentadamente: [...] IV – distribuirá a responsabilidade pela produção da prova, levando em conta os conhecimentos técnicos ou informações específicas sobre os fatos detidos pelas partes ou segundo a maior facilidade em sua demonstração; V – poderá ainda distribuir essa responsabilidade segundo os critérios previamente ajustados pelas partes, desde que esse acordo não torne excessivamente difícil a defesa do direito de uma delas; VI – poderá, a todo momento, rever o critério de distribui-ção da responsabilidade da produção da prova, diante de fatos novos, observado o contraditório e a ampla defesa; VII – esclarecerá as partes sobre a distribuição do ônus da prova; e VIII – poderá determinar de ofício a produção de provas, observado o contraditório.

Nota-se que com a colaboração de todos o proces-

so poderá ser mais ágil, eficiente e ter decisões mais jus-tas. E essa colaboração pode se dar de várias formas, por parte dos órgãos públicos a cooperação pode ocorrer, por exemplo, por meio de convênio e acordos com o poder judiciário.

Insta salientar, que o processo coletivo defende direitos transindividuais, e isso significa que ele atinge um número indeterminado de pessoas, não fica apenas na esfera individual, ou seja, seus efeitos são ultra partes ou erga omnes.

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Dessa forma, como o processo poderá atingir a todos é também de interesse de toda a coletividade coo-perar para o processamento de uma ação coletiva. A coo-peração deixa de ser apenas um dever e passa a ser tam-bém uma oportunidade da sociedade ver a tutela coletiva efetivada.

Em face ao exposto, fica demonstrada a enorme importância desse princípio para o processo coletivo, pois com a contribuição de todos para a produção de provas para o cumprimento das decisões e para a efetividade da tutela coletiva, o processo coletivo irá se realizar de forma mais célere e justa.

9 Exigência permanente de boa fé, lealdade e responsabilidade das partes, dos procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo.

A boa-fé, a lealdade e a responsabilidade das partes devem ser as finalidades perseguidas nas demandas coletivas. Esse princípio afasta a autonomia das partes e indica modelos sociais e éticos para a tutela coletiva. Verifica-se que existe um interesse eminen-temente público de que o processo seja eficaz, reto, pres-tigiado e útil à sua elevada finalidade.19

Por consequência, caso esteja presente a má fé as partes devem ser responsabilizadas de acordo com a previsão legal. E conforme o artigo 35 do Projeto de Lei 5.139/2009, que trata da Nova Lei de Ação Civil Pública “No caso de extinção dos processos individuais como efeito da decisão prolatada em ações coletivas, não haverá condenação ao pagamento de novas despesas processuais, custas e honorários, salvo a atuação de má fé do demandante. (grifos nossos).”. É

19 REIS, Simone Luiza Guimarães. Princípio da Lealdade Processual. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF: 12 fev. 2011. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.31217&seo=1>. Acesso em: 30 nov. 2012.

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importante mencionar que a má fé não possui apenas natureza indenizatória, mas acima de tudo sancionatória.

Boa fé pode ser definida como sinceridade, lisura, ausência de intenção dolosa. A lealdade é a qualidade, ação ou procedimento de quem é leal. Leal é aquele que é sincero, franco e honesto, enfim, fiel aos seus com-promissos. Já responsabilidade, segundo o vocabulário jurídico tem o significado de responsabilizar-se, vir garantindo, assegurar, assumir o ato que praticou20.

A boa fé, a lealdade e a responsabilidade são ele-mentos externos ao ato, pois se encontram no pensamento do agente, na intenção com a qual ele fez ou deixou de fazer algo. Na prática, é impossível definir o pensamento, mas é possível aferir a boa ou má fé, a lealdade ou a des-lealdade, a responsabilidade ou a irresponsabilidade pelas circunstâncias do caso concreto. Esses princípios jurídicos são aplicados na avaliação da intenção na práti-ca de determinando ato.

Outro ponto que merece destaque é o fato de que o Código de Processo Civil, em seu artigo 14, inciso II, assevera que todos que de alguma forma participar do processo tem o dever de agir com boa fé e lealdade, o que deve ser aplicado ao Processo Coletivo por força do artigo 19 da Lei 7.347, que fala da aplicabilidade subsidiária do CPC nas ações de cunho coletivo. Nesse mesmo sentido a Ação Civil Pública (Lei 7.347) dispõe, em seu artigo 17 que “em caso de litigância de má fé, a associação autora e os diretores responsáveis pela propositura da ação serão solidariamente condenados em honorários advocatícios e ao décuplo das custas, sem prejuízo da responsabilidade por perdas e danos”.

O processo coletivo é um instrumento de interesse da sociedade. Sendo assim, justifica-se a maior exigência em comportamentos baseados na boa fé, lealdade e res-ponsabilidade. Nesse contexto faz-se importante trans-crever o entendimento de Donizetti Cerqueira:

20 CORREIA, Jadson Dias. Responsabilidade civil do advogado. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/662>. Acesso em: 30 nov. 2012

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No processo coletivo, tais deveres assumem especial rele-vância. Em primeiro lugar, porque tal processo permite a molecularização dos litígios e, assim, representa importante instrumento de acesso à Justiça e a viabi-lização da atividade judiciária. Além disso, geralmente também se destina à solução de lides de relevo social, permitindo inclusive a implementação de políticas públi-cas definidas pela Constituição.21

Cabe salientar que não apenas ao autor e ao réu

são exigidas condutas éticas. Essa exigência atinge também o juiz e todas as outras partes que participaram do processo. O Código de Processo Civil registra expres-samente, em seu artigo 14, caput e inciso II que todos que, de alguma forma participam do processo, tem o dever de atuar com lealdade e boa fé, sendo que o des-cumprimento do citado artigo caracteriza ilicitude pro-cessual e aplicação de sanções processuais. Isso se inten-sifica quando se pretende tutelar o direito de um número indeterminado de pessoas.

As partes e todas as demais pessoas que par-ticipem de uma ação coletiva devem agir com boa fé, lealdade e responsabilidade e, assim, contribuírem para a solução mais justa da crise jurídica em questionamento.

10 Preferência da execução coletiva

Ajuizada e julgada procedente a ação coletiva passa-se então para a última fase do processo: a execução. Gregório Assagra de Almeida define a execução coletiva como

[...] a realização material e fática, de forma voluntária ou forçada, de obrigações certas, líquidas e exigíveis, de fazer ou não fazer, de dar coisa certa ou incerta ou de dar quantia, contidas em determinado título executivo judicial ou extrajudicial que reconheça a existência de direitos ou interesses difusos, de direitos ou interesses coletivos em

21 DONIZETTI, Elpídio, CERQUEIRA, Marcelo Malheiros. Curso de Processo Coletivo. São Paulo, Editora Atlas, 2010, p 89.

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sentido estrito e de direitos ou interesses individuais homogêneos.22

Embora Hugro Nigro Mazzilli alegar em sua carta de sugestões que o Projeto 5.139/2009 não foi claro ao tratar do princípio da execução coletiva, é muito fácil entender o seu significado: priorizar a execução coletiva em face da execução individual nas demandas coletivas.

Ademais, a execução coletiva irá atingir um número enorme e indeterminado de indivíduos, enquanto a execução individual visa uma proteção singu-lar. Assim, nota-se a necessidade e a importância do prin-cípio da preferência da execução coletiva, uma vez que passa a dar prioridade a satisfação que vai beneficiar um grande número da população.

Com efeito, Elton Venturi defende a necessidade de uma execução coletiva diferenciada:

Parece lícito, reclamar-se pela implementação de uma tutela executiva diferenciada dos direitos metaindividuais que permita, em cada situação concreta, o exato e ime-diato cumprimento do provimento judicial, uma vez que, consoante Federico Carpi, há ‘estrema difficoltà di uti-zare forme esecutive uniche per tutti i tipi di situazioni Che debbano essere realizzate in via diretta’. Nada mais certo, pois, que se propugnar, ‘de lege ferenda’, pela cria-ção de um procedimento específico, adequado às aspira-ções de funcionalidade dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.23

Portanto, não basta dar um tratamento dife-renciado em todo o trâmite de uma Ação Coletiva se no momento de sua satisfação, aplicar-se o sistema comum.

22 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Execução coletiva em relação aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Algumas consi-derações reflexivas. Jus Navegandi, Teresina, ano 13, n. 1956, 8 nov. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/11951>. 23 VENTURI, Elton. Execução da tutela coletiva. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 90.

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Conclusão

O Projeto de Lei 5.139/2009 propõe uma nova dis-ciplina para a Ação Civil Pública e visa uma adequação ao Sistema Único Coletivo frente às transformações eco-nômicas, políticas, tecnológicas e culturais marcantes dos últimos anos que obtiveram evidentes reflexos na sociedade e não foram, ainda, adequadamente disciplina-dos no Sistema Processual.

Apesar do sistema coletivo do Brasil ser um dos melhores e mais avançados do mundo, as normas que disciplinam a tutela coletiva no Brasil precisam de signifi-cativas alterações para se ajustar a nova ordem constitu-cional. O estabelecimento de princípios próprios é uma das inúmeras inovações apresentadas pelo Projeto de Lei que visa disciplinar a Ação Civil Pública.

Tendo em vista o significado e a importância dos princípios para o sistema jurídico, a criação de princípios próprios para nortear o sistema coletivo brasileiro é de grande importância para a concretização das finalidades desse modelo processual. A aplicação dos princípios pro-cessuais apresentados pelo projeto de lei da Nova Lei de Ação Civil Pública demonstra-se necessária diante da demonstração de seu alcance prático para ter uma tutela coletiva mais justa, ágil e efetiva, mesmo com a reprovação do projeto, uma vez que é imprescindível previsão legal para que um princípio jurídico seja aplica-do.

Além disso, os avanços propostos pelo Projeto de Lei 5.139/2009, principalmente no que diz respeito aos princípios, representa uma garantia a toda sociedade de acesso à justiça de forma mais ampla e efetiva.

Referências bibliográficas

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