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PROCESSOS DE INTERDIÇÃO CIVIL POR LOUCURA NO BRASIL: REFLEXÕES
SOBRE TEMPOS HISTÓRICOS, DIREITOS HUMANOS E TESTEMUNHOS
Abigail Duarte Petrini
UNIOESTE
RESUMO
A interdição civil é uma medida jurídica prevista no Código Civil Brasileiro, Lei n°
3.071 de 1º de janeiro de 1916, e no Novo Código Civil Brasileiro, Lei n° 10.406 de
10 de janeiro de 2002, portanto atualmente em vigor. A matéria pertence ao Livro da
Família, e pode ser aplicada a pessoas que sejam consideradas incapazes,
absolutas ou relativas, de conduzir suas vidas e administrar seus bens. Essas
pessoas podem ser consideradas incapazes por diferentes motivos, tais como
surdo-mudez e alcoolismo, sendo foco deste trabalho a alegação de incapacidade
gerada por loucura. Analisa-se a interdição civil enquanto técnica desenvolvida no
contato entre práticas e saberes do dispositivo de justiça e daqueles voltados para a
loucura. Propõem-se discussões em nível transnacional que colaborem para refletir
sobre o desenvolvimento dos direitos humanos, o que deve ser mediado pela
compreensão desnaturalizada de tempos históricos. Seguindo essa mesma linha,
retoma-se a importância da desconstrução de noções sobre a loucura para a análise
dos testemunhos produzidos por loucos, tanto enquanto narrativas individuais
quanto seriais ou coletivas. Este texto propõe a reflexão sobre o tempo histórico a
partir da discussão sobre a interdição civil e os processos de interdição civil,
considerando a questão inserida nos debates sobre direitos humanos, questionando
os limites dos estudos sobre a interdição civil. Também pondera sobre os
testemunhos presentes nos processos civis de interdição, tanto aqueles que são
feitos por testemunhas quanto os exarados pelos próprios sujeitos sob avaliação de
capacidade civil.
PALAVRAS-CHAVE: Interdição Civil, História da Psiquiatria, Direito.
INTRODUÇÃO
A noção de capacidade e de incapacidade civil, e do cuidado dos incapazes
civis por meio da curatela, está prevista no Código Civil Brasileiro, Lei n° 3.071 de 1º
de janeiro de 1916, e no Novo Código Civil Brasileiro, Lei n° 10.406 de 10 de janeiro
de 2002, portanto atualmente em vigor. Sobre aqueles considerados incapazes de
conduzir sua própria vida e de cuidar de seus bens, seja por sofrimento mental, por
alcoolismo ou outros, pode ser aplicada interdição civil. Este trabalho é desenvolvido
sobre as discussões sobre a interdição civil e seus processos judiciais,
principalmente aqueles que versam sobre a incapacidade por loucura.
Trabalhar com a questão da interdição civil e dos processos de interdição civil
pode ser pensado dentro de um contexto de práticas sobre a loucura que passou
pelo processo de desospitalização e reforma psiquiátrica, travado no Brasil nas
décadas de 1980 e 1990 dentro do âmbito institucional e das políticas pública de
saúde. A reforma psiquiátrica lutou contra as formas desumanas de tratamento e as
condições precárias e por vezes violentas de manutenção daqueles sujeitos
considerados loucos em hospitais psiquiátricos. Seu objetivo foi defender os direitos
humanos, civis, sociais e políticos daquelas pessoas em situação de sofrimento e
perturbações, procurando reinseri-los no contato social de modo humanizado. A
reforma psiquiátrica, embora tenha emergido enquanto discussão principalmente na
Itália e na França, assumiu proporções transnacionais, levando a um movimento que
sobrepôs barreiras nacionais ao ser refletida sobre a questão dos direitos humanos
para os loucos enquanto minoria dentro das democracias ocidentais.
Enquanto os direitos humanos estão dentre os estudos globais, por
pertencerem a temas sobre a humanidade como um todo, sem delimitação
geográfica ou nacional, as tecnologias pertencem ao grupo de estudos
transnacionais. Pensada sob esse prisma, a psiquiatria e outras ciências psi
desenvolvem-se justamente pelas trocas entre profissionais dessas áreas
atravessando as fronteiras nacionais, seja por meio de eventos científicos ou
publicações em periódicos, entre outros. Também o Direito, embora tenha relações
e mesmo referências globais, tem suas práticas nacionais muitas vezes conjugadas
em outros parâmetros, como os continentais, estabelecendo diálogos ou mesmo
conflitos quanto a suas técnicas.
Esse texto analisa a interdição civil enquanto técnica tensionada pelos
saberes médicos e psiquiátricos e pelas práticas dos dispositivos de justiça, sob o
prisma dos direitos humanos, considerando as discussões de tempos históricos,
estudos transnacionais e testemunhos.
TEMPOS HISTÓRICOS, DIREITOS HUMANOS E TESTEMUNHOS E SUAS
RELAÇÕES QUANTO À INTERDIÇÃO CIVIL
Pensar o tempo é um desafio para os historiadores, mas também é
sintomático do momento que se vive. Para Reinhart Koselleck, em seu texto Futuro
passado: contribuição para a semântica dos tempos históricos (KOSELLECK, 2006),
o tempo é resultado da relação entre passado e futuro, afetada atualmente pela
experiência da modernidade vivenciada pelos sujeitos, que lhes faz sentir sua
experimentação do tempo através do prisma do ineditismo frente a um futuro
desafiador.
E, se no cômputo da experiência subjetiva, o futuro parece pesar aos contemporâneos por ele afetados, é porque um mundo técnica e industrialmente formatado concede ao homem períodos de tempo cada vez mais breves para que ele possa assimilar novas experiências, adaptando-se assim a alterações que se dão de maneira cada vez mais rápida.1
Os processos civis de interdição são eventos, ou seja, são um conjunto de
fatos que podem ser narrados. São histórias que apresentam uma sequência
cronologicamente mensurável, tendo um antes e um depois como sentido da
narrativa. Para Koselleck, a experiência histórica do evento está na sucessão
temporal, embora a cronologia em si não tenha um significado histórico, devendo
antes seguir a orientação da história a que se remete. Assim, os processos de
interdição, que se desenvolvem numa sequência cronológica, significam o tempo em
1 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora Puc-Rio, 2006. p. 16.
função dos acontecimentos, e para a pesquisa a importância daquele tempo
histórico está vinculada ao significado que ele recebe pelos processos. Pesquisar os
processos civis de interdição condiz com a narrativa, visto que acompanha o
desenvolvimento das histórias das vidas dos sujeitos que passaram pelos
processos.
Por outro lado, ao se debruçar sobre a questão jurídica da interdição civil,
refletindo sobre sua formação enquanto prática social estabelecida em norma
jurídica, oficializada por cânones e tradições, extrapola-se a dimensão eventual dos
casos dos processados em si. Trata-se da discussão sobre os costumes e os
sistemas jurídicos, o que conduz a uma outra percepção da dimensão temporal,
vinculada à média e longa duração, dialogando com uma noção de história absoluta,
porque percebida dentro das discussões sobre o que é o Direito e o que são as leis
para a sociedade, e como estas tratam a loucura e os anormais.
Estabelece-se, assim, uma outra relação com a cronologia e com a
sequência, pensada com parâmetros que incluem questões como a geografia e a
política de longo prazo, comportamentos inconscientes e a sucessão de gerações.
Nesse sentido, a pesquisa sobre a interdição civil pode ser pensada dentro do
parâmetro de estrutura, com caráter descritivo. “Os eventos são provocados ou
sofridos por determinados sujeitos, mas as estruturas permanecem supra individuais
e intersubjetivas.”2
Num movimento inverso, é possível perceber como são desenvolvidas
movimentos e tendências estruturais acompanhando as experiências de
determinadas gerações.
O que hoje se apresenta como reflexão metodológica em relação à história estrutural pode ter feito parte da experiência quotidiana das gerações de então. As estruturas e suas transformações podem ser (re-) convertidas em experiência quando seu período de duração não ultrapassar a unidade de memória das gerações contemporâneas.3
2 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Editora Puc-Rio, 2006. p. 136 3 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora Puc-Rio, 2006. p. 137
A dinâmica desse movimento entre curta, média e longa duração pode ser
acompanhado, por exemplo, ao seguir as discussões de determinado campo do
conhecimento em meios acadêmicos, periódicos e outras publicações, e
posteriormente ao refletir sobre as implicações desses debates dentro de uma longa
duração daquela área.
O texto que possivelmente é o mais consagrado dos estudos sobre história da
loucura e da psiquiatria, História da loucura na Idade Clássica (FOUCAULT, 2003),
de Michel Foucault4, faz esse movimento de acompanhar os desdobramentos de
costumes e práticas sociais e culturais sobre a loucura na Europa, particularmente
na França, entre os séculos XIV E XIX. Foucault acompanha as discussões
mantidas por saberes e práticas populares, profissionais da medicina, legisladores,
representantes do poder executivo e dos saberes religiosos em torno da loucura,
percebendo como certas tendências de conceitos e práticas sobre a loucura foram
mobilizadas, levando a rupturas mas também a continuidades sobre o tema.
Se para Foucault é necessário praticar a desconstrução e desnaturalização
dos poderes e saberes que governam a vida e a morte dos sujeitos, para Koselleck,
as temporalidades são históricas, portanto passíveis também de desnaturalização. O
tempo é percebido como construção cultural e histórica e não como elemento
abstrato. Cada época, grupo ou conjuntura tem diferentes formas de pensar o
fenômeno da temporalidade.
Koselleck propõe que o tempo seja estudado como resultante da relação
entre passado e futuro, no que equaciona como horizonte de expectativa e espaço
de experiência. Na tensão entre essas duas dimensões, busca-se o que é o tempo
histórico, articulando o passado com o futuro, em que o horizonte de expectativa é o
campo do desconhecido, disperso, amplo, não delimitado, sempre com espaço para
elementos novos. Já o espaço de experiência é o passado presente, pontual,
delimitado, mas que também permanece aberto. Nessa tensão, cada presente re-
significa seu passado e seu futuro. É justamente essa dinâmica do processo como
no presente é pensada as dimensões do passado e do futuro que Koselleck busca
investigar, a partir da semântica dos conceitos.
4 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. 7. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
Outros elementos que Koselleck não deixa de considerar são a possibilidade
do acaso, pertencente ao presente, que também faz parte da história e se insere
nesse processo; a relatividade que se apresenta a partir da parcialidade dos pontos
de vista, sendo fundamental o reconhecimento da perspectiva adotada tanto por
sujeitos quanto por historiadores; e a noção de coletividade, porque a experiência
não restringe-se apenas ao individual, e a expectativa também é interpessoal.
Sobre o acaso, este pode ser pensado como a criatividade de ação dos
sujeitos históricos frente a configurações sociais estabelecidas, embora nem todo
acaso seja oriundo da interferência intencional humana para determinado fim. O
acaso é um elemento indispensável à reflexão sobre a dinâmica passado-presente-
futuro, visto que combate a mecanização e a estagnação da história ao inserir a
possibilidade de mudança.
François Hartog, em seu texto Tempo e patrimônio (HARTOG, 2006), aponta
que dentro de um mesmo século puderam ser identificados distintos regimes de
relação com o tempo.
O século XX é o que mais invocou o futuro, o que mais construiu e massacrou em seu nome, o que levou mais longe a produção de uma história escrita do ponto de vista do futuro, conforme aos postulados do regime moderno de historicidade. Mas, ele é também o século que, sobretudo no seu último terço, deu extensão maior à categoria do presente: um presente massivo, invasor, onipresente, que não tem outro horizonte além dele mesmo, fabricando cotidianamente o passado e o futuro do qual ele tem necessidade. Um presente já passado antes de ter completamente chegado.5
Hartog consagrou o presentismo como regime de historicidade instaurado no
século XX, em que o tanto o passado quanto o progresso tornaram-se estagnados
por um “presente onipresente”6. Contudo, o presentismo também apresentaria sua
crise, visto que paralisou o devir histórico, colapsando o horizonte de expectativa
com um espaço de experiência massivo.
5 HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol 22 nº 36: p. 261-273, jul/dez 2006. p. 271 6 HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol 22 nº 36: p. 261-273, jul/dez 2006. p. 262
Para Henri Rousso, em Rumo a uma globalização da memória (ROUSSO,
2014), houve um enfraquecimento do sentido nacional frente a um “comunitarismo”,
que levou à formação desse novo espaço público nacional, regional e mundial.
Nesse novo espaço, formam-se novos campos de disputas, decorrentes dos
conflitos de interesse entre enunciados científicos, emoções populares e políticas
públicas. Esse espaço também é marcado pelo poder da figura da vítima,
principalmente aquela que testemunha em cortes e comissões da verdade os seus
sofrimentos. Esses movimentos estão ligados à formação das discussões
transnacionais, propostas por Rousso.
A globalização de fenômenos culturais, a existência de lugares e de repertórios de ações em nível transnacional ou internacional, especialmente em matéria judiciária, a uniformização – relativa – de certas práticas políticas (a transparência democrática), de certos valores (a defesa dos direitos humanos), de certas preocupações sociais (a compaixão), podem explicar a crença numa ação reparatória e retroativa a respeito do passado.7
Refletindo sobre essa tendência suscitada pela globalização, Hartog
(HARTOG, 2013) destaca a noção de história conectada como ferramenta para sair
da esfera nacional, ampliando as discussões e passível de trocas dentro de regimes
de historicidade compartilhados8. Sandra Kuntz Ficker, no texto Mundial,
transnacional, global: um ejercicio de clarificación conceptual de los estudios
globales (FICKER, 2014)9 através de um balanço historiográfico, buscou clarear as
noções de história global e história transnacional e seus usos. Para ela, os estudos
devotados às mobilidades, especificidades locais e seus fluxos entre fronteiras
estariam contidos nas discussões transnacionais, enquanto que os estudos globais
seriam aqueles dedicados às interconexões e à interdisciplinariedade, e voltados
7 ROUSSO, Henry. Rumo a uma globalização da memória. História Revista, Goiânia, v. 19, n. 1, p. 265-279, jan./abr. 2014. p. 275 8 HARTOG, François. Experiências do tempo. Da história universal à história global? História, histórias. Brasília, v. 1, n. 1, p. 164-179, 2013. p. 178-179 9 FICKER, Sandra Kuntz. Mundial, transacional, global: Un ejercicio de clarificación conceptual de los estudios globales. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Online], Debates, posto online no dia 27 Março 2014.
para a possibilidade de construção de projetos amplos de sociedade. Os Direitos
humanos estariam, portanto, vinculados às discussões de nível global.
Também sintomático sobre a sensação de futuro inalcançável da
modernidade, Andreas Huyssen, em Culturas do passado-presente: modernismos,
artes visuais, políticas da memória (HUYSSEN, 2014), aborda a discussão
contemporânea sobre o modernismo, a globalização, a memória e o presentismo.
Huyssen aponta para o fenecimento do futuro frente a um passado estabelecido
permanentemente no tempo contemporâneo, sufocando as possibilidades de um
porvir através de sua presença, que impede também a plena assimilação do próprio
presente.
Os direitos humanos internacionais de hoje são legitimados, antes, pela necessidade de o mundo inteiro responder aos desafios de uma modernidade social e econômica que, por mais localmente fraturada e transformada que seja, tornou-se global. Como seria inevitável, isso envolve certo nível de abstração no julgamento das atrocidades e dos abusos dos direitos humanos. Trata-se da abstração da própria modernidade, sem a qual as lembranças de atrocidades não atingiriam seu poder transnacional afetivo nem mobilizariam
comunidades que não são as das próprias vítimas10.
Portanto, desenvolver uma pesquisa que versa sobre os pontos de vista dos
loucos, do que lhes é relevante e de como são e quais são suas experiências, é
adentrar tanto o campo do desconhecido, esfera essa que sempre perpassou as
noções que envolvem a loucura, quanto posicionar-se dentro de uma perspectiva
teórico-metodológica, e mesmo ética, marcada social e historicamente. É voltar-se
para as relações na modernidade dos indivíduos com o mundo, particularmente do
louco com seu cotidiano, num exercício de moldar e ser moldado pelos contatos que
estabelece. É analisar a tensão de relações de poder desiguais, do lugar de outro
ocupado pelo louco, ora excluído por meio de internamentos, ora marginalizado
quando permanece nas relações cotidianas.
Quanto à marginalização dos loucos, a discussão desenvolvida por Huyssen
quanto aos direitos culturais e seu vínculo dialógico aos direitos humanos contribui
10 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu de Arte do Rio, 2014. p. 202-203.
para o aprofundamento da questão da loucura. A loucura pode ser percebida nos
sujeitos sob diferentes aspectos, inclusive estéticos, mas muitas vezes
discriminatórios. Para agir sobre os loucos foram desenvolvidas políticas públicas,
práticas jurídicas e saberes médicos, tanto em nível nacional quanto para além
deste, sendo essas políticas sincrônicas entre alguns países. A luta pela reforma
psiquiátrica é sintomática sobre esse aspecto. Também outros saberes e práticas
foram construídos pelas sociedades em suas relações com a loucura e o louco, que
envolvem outros sentidos, como os religiosos, por exemplo.
Percebe-se, portanto, que existem culturas e práticas culturais sobre a
loucura, transitando o louco entre vários papéis da loucura, mas muitas vezes
rompendo as bordas desses enquadramentos. A discussão de Huyssen sobre
direitos culturais e direitos humanos reflete que “(...) os direitos culturais devem ser
conciliados com a categoria mais ampla dos direitos humanos como direitos dos
indivíduos” 11, e também que “(...) os direitos culturais devem preservar a
prerrogativa de que o indivíduo nascido numa dada cultura possa deixa-la e escolher
outra.”12
Ao lutar pela dignidade nas condições de tratamento e de vida dos loucos,
mobilizou-se essa cultura sobre a loucura e sobre o direito de ser louco para além de
encarceramentos asilares, terapias desumanas e invasões degradantes. Foram
efetivamente fechados hospitais psiquiátricos, com mobilizações assistenciais no
formato de clínicas abertas em que os atendidos passam o dia em atividades e
terapias, retornando aos seus lares para o convívio familiar e residência efetiva,
propiciando inclusive o contato comunitário, tudo com base em leis estabelecidas.
Apelou-se para os direitos humanos daqueles sujeitos denominados loucos,
transportando os direitos culturais para a esfera dos direitos humanos garantidos a
todos os indivíduos.
11 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu de Arte do Rio, 2014. p. 209. 12 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu de Arte do Rio, 2014. p. 209.
Sem este cuidado da consideração aos direitos culturais, os direitos humanos
podem tornar-se tão individualizantes que planificam as existências, desbotando-as
das relações sociais numa individualização asséptica e produtora de isolamento.
A noção de evidência, cobrada da testemunha e equalizada em um
julgamento, está ligada à ação da visão, primordialmente, e num segundo patamar à
da audição. Visão e audição, ou ainda a presença, em um determinado presente,
que deve ser relembrado mediante a evocação feita pela necessidade do
testemunho. A oralidade da memória da testemunha atravessa a relação passado-
presente, sendo marcada pelo ato de julgar, e por fim formatada no registro do
escrivão sob a autoridade do juiz. Para Seligmann-Silva, em Testemunho e a política
da memória: o tempo depois das catástrofes (SELIGMANN-SILVA, 2005), essa
relação é a tônica do testemunho.
(...) minha proposta é entender o testemunho na sua complexidade enquanto um misto entre visão, oralidade narrativa e capacidade de julgar: um elemento complementa o outro, mas eles se relacionam também de modo conflitivo. O testemunho revela a linguagem e a lei como constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária e impossível, entre o “real” e o simbólico, entre o “passado” e o “presente”. 13
Nos processos civis de interdição, essa relação testemunhal não ocorre
apenas pelas testemunhas chamadas a depor sobre o requerido do processo de
interdição, mas pelo próprio sujeito alvo do processo. Ele deve defender ou não sua
capacidade civil, argumentando sobre sua vida e sua habilidade em dispor de seus
bens, caso haja algum. Desse modo, o elemento da subjetividade é também posto
em questão e considerado no testemunho, mas sob o peso da avaliação da
autodeterminação e autonomia do sujeito. A estes é somado o laudo pericial que
atesta sua sanidade, e com base nestas informações deve o juiz exarar o veredito.
O testemunho do sujeito requerido de interdição não deve ser considerado como
estando alheio ou descolado de seu lugar social. A narrativa testemunhal não exime
13 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 30, p. 71-98, jun. 2005. p. 81-82.
seu referencial social e seus limites devem ser considerados dentro dos estudos
desenvolvidos a partir dela.
O conceito de testemunho concentra em si uma série de questões que sempre polarizaram a reflexão sobre a literatura: antes de qualquer coisa, ele põe em questão as fronteiras entre o literário, o fictício e o descritivo. E mais: o testemunho aporta uma ética da escritura. Partindo-se do pressuposto, hoje em dia banal, que não existe “grau zero da escritura”, ou seja, a literatura está ali onde o sujeito se manifesta na narrativa, não podemos deixar de reconhecer que, por outro lado, o histórico que está na base do testemunho exige uma visão “referencial”, que não reduza o “real” à sua “ficção” literária. Ou seja, o testemunho impõe uma crítica da postura que reduz o mundo ao verbo, assim como solicita uma reflexão sobre os limites e modos de representação. 14
Friedhelm Boll, no texto O fardo de falar sobre a perseguição nazista na
Alemanha (BÖLL, 2000), tratando dos testemunhos de judeus sobreviventes do
Holocausto, aprofunda a questão das condições da narrativa e de sua determinação
pelas condições sociais e políticas dos sujeitos. Para ele, trabalhos que abordam
histórias de vidas devem ter como fatores preponderantes a sua formação histórica
em contextos sociais e a reflexão sobre sentimentos de pertencimento grupal. Boll
destaca que elementos como a inadequação da linguagem e a carga de emoção
devido a traumas e sofrimentos podem interferir nos testemunhos. Relatos sobre um
certo sofrimento podem ser expressos de modo mais detalhado ou espontâneo
conforme o interlocutor, diferenciando-se quando feitos entre aqueles que partilham
os mesmos sofrimentos ou para outras pessoas alheias à mesma experiência. As
razões sociais do testemunho e da testemunha são preponderantes para as análises
que se deseje fazer destas, visto que os limites do testemunho são indicativos das
experiências – passada e atual – tal como vivenciadas pelo sujeito15.
No caso do testemunho do requerido no processo de interdição, as
experiências passadas e presente que se cruzam são as de seu cotidiano e a do
14 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 30, p. 71-98, jun. 2005. p. 85. 15 BÖLL, Friedhelm. O fardo de falar sobre a perseguição nazista na Alemanha. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FERNANDES, Tania Maria; ALBERTI, Verena. (orgs.) História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Casa de Oswaldo Cruz, CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, 2000.
momento da deposição para os autos do processo. Devem-se considerar, portanto,
a formalidade dessa circunstância, a autoridade e o distanciamento dos ouvintes, e a
carga emocional tanto do depoente, afetado por suas recordação e pelas condições
da narrativa. Além disso, a linguagem empregada pelo sujeito é elemento de
interpretação e julgamento para seus interlocutores, a fim da avaliação e definição
da capacidade civil.
Ainda dentro do mérito das relações sociais e hierarquizantes que se
estabelecem no momento do testemunho do requerido no processo de interdição
civil, cabe refletir que o depoimento é tomado sob força de lei, devendo o requerido
dizer a verdade sobre si perante o tribunal. As implicações dessa verdade, contudo,
podem torna-lo legalmente incapaz de ser responsável sobre seus atos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A abordagem de estudos transnacionais, globais ou conectados, para o tema
da interdição civil e, portanto, para a história da psiquiatria e o Direito, colabora para
o enriquecimento das discussões, estabelecendo pontes de diálogo entre práticas e
discursos desenvolvidos em diferentes lugares, percebendo como determinadas
noções e saberes são reflexionados em espaços distintos. Ao mesmo tempo,
apenas a compreensão de tempos históricos desnaturalizados permite que seja
possível esboçar uma história comparativa entre práticas e saberes adotados em
diferentes lugares.
Este texto também colabora para pensar a interdição civil não apenas dentro
do tempo factual, como evento, mas na longa duração da história das práticas
legais, da tradição das leis e do direito, e das práticas e saberes sobre a loucura.
A presente proposta também revitalizou o compromisso necessário de
desconstrução e desnaturalização da loucura, propondo também a mesma prática
quanto às noções de tempo histórico, do Direito e da interdição civil. E para isso se
faz necessário desnaturalizar as narrativas sobre a loucura, abrindo espaço para
que o que os sujeitos dizem sobre si e sobre outros sujeitos seja efetivamente
apreciado com compreensão e empatia, através das quais seja possível avançar
realmente no que concerne aos direitos humanos.
REFERÊNCIAS BÖLL, Friedhelm. O fardo de falar sobre a perseguição nazista na Alemanha. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FERNANDES, Tania Maria; ALBERTI, Verena. (orgs.) História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Casa de Oswaldo Cruz, CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, 2000. FICKER, Sandra Kuntz. Mundial, transacional, global: Un ejercicio de clarificación conceptual de los estudios globales. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Online], Debates, posto online no dia 27 Março 2014. FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. 7. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. HARTOG, François. Experiências do tempo. Da história universal à história global? História, histórias. Brasília, v. 1, n. 1, p. 164-179, 2013. HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol 22 nº 36: p. 261-273, jul/dez 2006. p. 271 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu de Arte do Rio, 2014. p. 209. KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora Puc-Rio, 2006. p. 137 ROUSSO, Henry. Rumo a uma globalização da memória. História Revista, Goiânia, v. 19, n. 1, p. 265-279, jan./abr. 2014. p. 275 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 30, p. 71-98, jun. 2005. p. 81-82.