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PROCESSOS DE INTERDIÇÃO CIVIL POR LOUCURA NO BRASIL: REFLEXÕES SOBRE TEMPOS HISTÓRICOS, DIREITOS HUMANOS E TESTEMUNHOS Abigail Duarte Petrini UNIOESTE RESUMO A interdição civil é uma medida jurídica prevista no Código Civil Brasileiro, Lei n° 3.071 de 1º de janeiro de 1916, e no Novo Código Civil Brasileiro, Lei n° 10.406 de 10 de janeiro de 2002, portanto atualmente em vigor. A matéria pertence ao Livro da Família, e pode ser aplicada a pessoas que sejam consideradas incapazes, absolutas ou relativas, de conduzir suas vidas e administrar seus bens. Essas pessoas podem ser consideradas incapazes por diferentes motivos, tais como surdo-mudez e alcoolismo, sendo foco deste trabalho a alegação de incapacidade gerada por loucura. Analisa-se a interdição civil enquanto técnica desenvolvida no contato entre práticas e saberes do dispositivo de justiça e daqueles voltados para a loucura. Propõem-se discussões em nível transnacional que colaborem para refletir sobre o desenvolvimento dos direitos humanos, o que deve ser mediado pela compreensão desnaturalizada de tempos históricos. Seguindo essa mesma linha, retoma-se a importância da desconstrução de noções sobre a loucura para a análise dos testemunhos produzidos por loucos, tanto enquanto narrativas individuais quanto seriais ou coletivas. Este texto propõe a reflexão sobre o tempo histórico a partir da discussão sobre a interdição civil e os processos de interdição civil, considerando a questão inserida nos debates sobre direitos humanos, questionando os limites dos estudos sobre a interdição civil. Também pondera sobre os testemunhos presentes nos processos civis de interdição, tanto aqueles que são feitos por testemunhas quanto os exarados pelos próprios sujeitos sob avaliação de capacidade civil. PALAVRAS-CHAVE: Interdição Civil, História da Psiquiatria, Direito.

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PROCESSOS DE INTERDIÇÃO CIVIL POR LOUCURA NO BRASIL: REFLEXÕES

SOBRE TEMPOS HISTÓRICOS, DIREITOS HUMANOS E TESTEMUNHOS

Abigail Duarte Petrini

UNIOESTE

RESUMO

A interdição civil é uma medida jurídica prevista no Código Civil Brasileiro, Lei n°

3.071 de 1º de janeiro de 1916, e no Novo Código Civil Brasileiro, Lei n° 10.406 de

10 de janeiro de 2002, portanto atualmente em vigor. A matéria pertence ao Livro da

Família, e pode ser aplicada a pessoas que sejam consideradas incapazes,

absolutas ou relativas, de conduzir suas vidas e administrar seus bens. Essas

pessoas podem ser consideradas incapazes por diferentes motivos, tais como

surdo-mudez e alcoolismo, sendo foco deste trabalho a alegação de incapacidade

gerada por loucura. Analisa-se a interdição civil enquanto técnica desenvolvida no

contato entre práticas e saberes do dispositivo de justiça e daqueles voltados para a

loucura. Propõem-se discussões em nível transnacional que colaborem para refletir

sobre o desenvolvimento dos direitos humanos, o que deve ser mediado pela

compreensão desnaturalizada de tempos históricos. Seguindo essa mesma linha,

retoma-se a importância da desconstrução de noções sobre a loucura para a análise

dos testemunhos produzidos por loucos, tanto enquanto narrativas individuais

quanto seriais ou coletivas. Este texto propõe a reflexão sobre o tempo histórico a

partir da discussão sobre a interdição civil e os processos de interdição civil,

considerando a questão inserida nos debates sobre direitos humanos, questionando

os limites dos estudos sobre a interdição civil. Também pondera sobre os

testemunhos presentes nos processos civis de interdição, tanto aqueles que são

feitos por testemunhas quanto os exarados pelos próprios sujeitos sob avaliação de

capacidade civil.

PALAVRAS-CHAVE: Interdição Civil, História da Psiquiatria, Direito.

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INTRODUÇÃO

A noção de capacidade e de incapacidade civil, e do cuidado dos incapazes

civis por meio da curatela, está prevista no Código Civil Brasileiro, Lei n° 3.071 de 1º

de janeiro de 1916, e no Novo Código Civil Brasileiro, Lei n° 10.406 de 10 de janeiro

de 2002, portanto atualmente em vigor. Sobre aqueles considerados incapazes de

conduzir sua própria vida e de cuidar de seus bens, seja por sofrimento mental, por

alcoolismo ou outros, pode ser aplicada interdição civil. Este trabalho é desenvolvido

sobre as discussões sobre a interdição civil e seus processos judiciais,

principalmente aqueles que versam sobre a incapacidade por loucura.

Trabalhar com a questão da interdição civil e dos processos de interdição civil

pode ser pensado dentro de um contexto de práticas sobre a loucura que passou

pelo processo de desospitalização e reforma psiquiátrica, travado no Brasil nas

décadas de 1980 e 1990 dentro do âmbito institucional e das políticas pública de

saúde. A reforma psiquiátrica lutou contra as formas desumanas de tratamento e as

condições precárias e por vezes violentas de manutenção daqueles sujeitos

considerados loucos em hospitais psiquiátricos. Seu objetivo foi defender os direitos

humanos, civis, sociais e políticos daquelas pessoas em situação de sofrimento e

perturbações, procurando reinseri-los no contato social de modo humanizado. A

reforma psiquiátrica, embora tenha emergido enquanto discussão principalmente na

Itália e na França, assumiu proporções transnacionais, levando a um movimento que

sobrepôs barreiras nacionais ao ser refletida sobre a questão dos direitos humanos

para os loucos enquanto minoria dentro das democracias ocidentais.

Enquanto os direitos humanos estão dentre os estudos globais, por

pertencerem a temas sobre a humanidade como um todo, sem delimitação

geográfica ou nacional, as tecnologias pertencem ao grupo de estudos

transnacionais. Pensada sob esse prisma, a psiquiatria e outras ciências psi

desenvolvem-se justamente pelas trocas entre profissionais dessas áreas

atravessando as fronteiras nacionais, seja por meio de eventos científicos ou

publicações em periódicos, entre outros. Também o Direito, embora tenha relações

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e mesmo referências globais, tem suas práticas nacionais muitas vezes conjugadas

em outros parâmetros, como os continentais, estabelecendo diálogos ou mesmo

conflitos quanto a suas técnicas.

Esse texto analisa a interdição civil enquanto técnica tensionada pelos

saberes médicos e psiquiátricos e pelas práticas dos dispositivos de justiça, sob o

prisma dos direitos humanos, considerando as discussões de tempos históricos,

estudos transnacionais e testemunhos.

TEMPOS HISTÓRICOS, DIREITOS HUMANOS E TESTEMUNHOS E SUAS

RELAÇÕES QUANTO À INTERDIÇÃO CIVIL

Pensar o tempo é um desafio para os historiadores, mas também é

sintomático do momento que se vive. Para Reinhart Koselleck, em seu texto Futuro

passado: contribuição para a semântica dos tempos históricos (KOSELLECK, 2006),

o tempo é resultado da relação entre passado e futuro, afetada atualmente pela

experiência da modernidade vivenciada pelos sujeitos, que lhes faz sentir sua

experimentação do tempo através do prisma do ineditismo frente a um futuro

desafiador.

E, se no cômputo da experiência subjetiva, o futuro parece pesar aos contemporâneos por ele afetados, é porque um mundo técnica e industrialmente formatado concede ao homem períodos de tempo cada vez mais breves para que ele possa assimilar novas experiências, adaptando-se assim a alterações que se dão de maneira cada vez mais rápida.1

Os processos civis de interdição são eventos, ou seja, são um conjunto de

fatos que podem ser narrados. São histórias que apresentam uma sequência

cronologicamente mensurável, tendo um antes e um depois como sentido da

narrativa. Para Koselleck, a experiência histórica do evento está na sucessão

temporal, embora a cronologia em si não tenha um significado histórico, devendo

antes seguir a orientação da história a que se remete. Assim, os processos de

interdição, que se desenvolvem numa sequência cronológica, significam o tempo em

1 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora Puc-Rio, 2006. p. 16.

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função dos acontecimentos, e para a pesquisa a importância daquele tempo

histórico está vinculada ao significado que ele recebe pelos processos. Pesquisar os

processos civis de interdição condiz com a narrativa, visto que acompanha o

desenvolvimento das histórias das vidas dos sujeitos que passaram pelos

processos.

Por outro lado, ao se debruçar sobre a questão jurídica da interdição civil,

refletindo sobre sua formação enquanto prática social estabelecida em norma

jurídica, oficializada por cânones e tradições, extrapola-se a dimensão eventual dos

casos dos processados em si. Trata-se da discussão sobre os costumes e os

sistemas jurídicos, o que conduz a uma outra percepção da dimensão temporal,

vinculada à média e longa duração, dialogando com uma noção de história absoluta,

porque percebida dentro das discussões sobre o que é o Direito e o que são as leis

para a sociedade, e como estas tratam a loucura e os anormais.

Estabelece-se, assim, uma outra relação com a cronologia e com a

sequência, pensada com parâmetros que incluem questões como a geografia e a

política de longo prazo, comportamentos inconscientes e a sucessão de gerações.

Nesse sentido, a pesquisa sobre a interdição civil pode ser pensada dentro do

parâmetro de estrutura, com caráter descritivo. “Os eventos são provocados ou

sofridos por determinados sujeitos, mas as estruturas permanecem supra individuais

e intersubjetivas.”2

Num movimento inverso, é possível perceber como são desenvolvidas

movimentos e tendências estruturais acompanhando as experiências de

determinadas gerações.

O que hoje se apresenta como reflexão metodológica em relação à história estrutural pode ter feito parte da experiência quotidiana das gerações de então. As estruturas e suas transformações podem ser (re-) convertidas em experiência quando seu período de duração não ultrapassar a unidade de memória das gerações contemporâneas.3

2 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de

Janeiro: Contraponto: Editora Puc-Rio, 2006. p. 136 3 KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora Puc-Rio, 2006. p. 137

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A dinâmica desse movimento entre curta, média e longa duração pode ser

acompanhado, por exemplo, ao seguir as discussões de determinado campo do

conhecimento em meios acadêmicos, periódicos e outras publicações, e

posteriormente ao refletir sobre as implicações desses debates dentro de uma longa

duração daquela área.

O texto que possivelmente é o mais consagrado dos estudos sobre história da

loucura e da psiquiatria, História da loucura na Idade Clássica (FOUCAULT, 2003),

de Michel Foucault4, faz esse movimento de acompanhar os desdobramentos de

costumes e práticas sociais e culturais sobre a loucura na Europa, particularmente

na França, entre os séculos XIV E XIX. Foucault acompanha as discussões

mantidas por saberes e práticas populares, profissionais da medicina, legisladores,

representantes do poder executivo e dos saberes religiosos em torno da loucura,

percebendo como certas tendências de conceitos e práticas sobre a loucura foram

mobilizadas, levando a rupturas mas também a continuidades sobre o tema.

Se para Foucault é necessário praticar a desconstrução e desnaturalização

dos poderes e saberes que governam a vida e a morte dos sujeitos, para Koselleck,

as temporalidades são históricas, portanto passíveis também de desnaturalização. O

tempo é percebido como construção cultural e histórica e não como elemento

abstrato. Cada época, grupo ou conjuntura tem diferentes formas de pensar o

fenômeno da temporalidade.

Koselleck propõe que o tempo seja estudado como resultante da relação

entre passado e futuro, no que equaciona como horizonte de expectativa e espaço

de experiência. Na tensão entre essas duas dimensões, busca-se o que é o tempo

histórico, articulando o passado com o futuro, em que o horizonte de expectativa é o

campo do desconhecido, disperso, amplo, não delimitado, sempre com espaço para

elementos novos. Já o espaço de experiência é o passado presente, pontual,

delimitado, mas que também permanece aberto. Nessa tensão, cada presente re-

significa seu passado e seu futuro. É justamente essa dinâmica do processo como

no presente é pensada as dimensões do passado e do futuro que Koselleck busca

investigar, a partir da semântica dos conceitos.

4 FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. 7. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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Outros elementos que Koselleck não deixa de considerar são a possibilidade

do acaso, pertencente ao presente, que também faz parte da história e se insere

nesse processo; a relatividade que se apresenta a partir da parcialidade dos pontos

de vista, sendo fundamental o reconhecimento da perspectiva adotada tanto por

sujeitos quanto por historiadores; e a noção de coletividade, porque a experiência

não restringe-se apenas ao individual, e a expectativa também é interpessoal.

Sobre o acaso, este pode ser pensado como a criatividade de ação dos

sujeitos históricos frente a configurações sociais estabelecidas, embora nem todo

acaso seja oriundo da interferência intencional humana para determinado fim. O

acaso é um elemento indispensável à reflexão sobre a dinâmica passado-presente-

futuro, visto que combate a mecanização e a estagnação da história ao inserir a

possibilidade de mudança.

François Hartog, em seu texto Tempo e patrimônio (HARTOG, 2006), aponta

que dentro de um mesmo século puderam ser identificados distintos regimes de

relação com o tempo.

O século XX é o que mais invocou o futuro, o que mais construiu e massacrou em seu nome, o que levou mais longe a produção de uma história escrita do ponto de vista do futuro, conforme aos postulados do regime moderno de historicidade. Mas, ele é também o século que, sobretudo no seu último terço, deu extensão maior à categoria do presente: um presente massivo, invasor, onipresente, que não tem outro horizonte além dele mesmo, fabricando cotidianamente o passado e o futuro do qual ele tem necessidade. Um presente já passado antes de ter completamente chegado.5

Hartog consagrou o presentismo como regime de historicidade instaurado no

século XX, em que o tanto o passado quanto o progresso tornaram-se estagnados

por um “presente onipresente”6. Contudo, o presentismo também apresentaria sua

crise, visto que paralisou o devir histórico, colapsando o horizonte de expectativa

com um espaço de experiência massivo.

5 HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol 22 nº 36: p. 261-273, jul/dez 2006. p. 271 6 HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol 22 nº 36: p. 261-273, jul/dez 2006. p. 262

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Para Henri Rousso, em Rumo a uma globalização da memória (ROUSSO,

2014), houve um enfraquecimento do sentido nacional frente a um “comunitarismo”,

que levou à formação desse novo espaço público nacional, regional e mundial.

Nesse novo espaço, formam-se novos campos de disputas, decorrentes dos

conflitos de interesse entre enunciados científicos, emoções populares e políticas

públicas. Esse espaço também é marcado pelo poder da figura da vítima,

principalmente aquela que testemunha em cortes e comissões da verdade os seus

sofrimentos. Esses movimentos estão ligados à formação das discussões

transnacionais, propostas por Rousso.

A globalização de fenômenos culturais, a existência de lugares e de repertórios de ações em nível transnacional ou internacional, especialmente em matéria judiciária, a uniformização – relativa – de certas práticas políticas (a transparência democrática), de certos valores (a defesa dos direitos humanos), de certas preocupações sociais (a compaixão), podem explicar a crença numa ação reparatória e retroativa a respeito do passado.7

Refletindo sobre essa tendência suscitada pela globalização, Hartog

(HARTOG, 2013) destaca a noção de história conectada como ferramenta para sair

da esfera nacional, ampliando as discussões e passível de trocas dentro de regimes

de historicidade compartilhados8. Sandra Kuntz Ficker, no texto Mundial,

transnacional, global: um ejercicio de clarificación conceptual de los estudios

globales (FICKER, 2014)9 através de um balanço historiográfico, buscou clarear as

noções de história global e história transnacional e seus usos. Para ela, os estudos

devotados às mobilidades, especificidades locais e seus fluxos entre fronteiras

estariam contidos nas discussões transnacionais, enquanto que os estudos globais

seriam aqueles dedicados às interconexões e à interdisciplinariedade, e voltados

7 ROUSSO, Henry. Rumo a uma globalização da memória. História Revista, Goiânia, v. 19, n. 1, p. 265-279, jan./abr. 2014. p. 275 8 HARTOG, François. Experiências do tempo. Da história universal à história global? História, histórias. Brasília, v. 1, n. 1, p. 164-179, 2013. p. 178-179 9 FICKER, Sandra Kuntz. Mundial, transacional, global: Un ejercicio de clarificación conceptual de los estudios globales. Nuevo Mundo Mundos Nuevos [Online], Debates, posto online no dia 27 Março 2014.

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para a possibilidade de construção de projetos amplos de sociedade. Os Direitos

humanos estariam, portanto, vinculados às discussões de nível global.

Também sintomático sobre a sensação de futuro inalcançável da

modernidade, Andreas Huyssen, em Culturas do passado-presente: modernismos,

artes visuais, políticas da memória (HUYSSEN, 2014), aborda a discussão

contemporânea sobre o modernismo, a globalização, a memória e o presentismo.

Huyssen aponta para o fenecimento do futuro frente a um passado estabelecido

permanentemente no tempo contemporâneo, sufocando as possibilidades de um

porvir através de sua presença, que impede também a plena assimilação do próprio

presente.

Os direitos humanos internacionais de hoje são legitimados, antes, pela necessidade de o mundo inteiro responder aos desafios de uma modernidade social e econômica que, por mais localmente fraturada e transformada que seja, tornou-se global. Como seria inevitável, isso envolve certo nível de abstração no julgamento das atrocidades e dos abusos dos direitos humanos. Trata-se da abstração da própria modernidade, sem a qual as lembranças de atrocidades não atingiriam seu poder transnacional afetivo nem mobilizariam

comunidades que não são as das próprias vítimas10.

Portanto, desenvolver uma pesquisa que versa sobre os pontos de vista dos

loucos, do que lhes é relevante e de como são e quais são suas experiências, é

adentrar tanto o campo do desconhecido, esfera essa que sempre perpassou as

noções que envolvem a loucura, quanto posicionar-se dentro de uma perspectiva

teórico-metodológica, e mesmo ética, marcada social e historicamente. É voltar-se

para as relações na modernidade dos indivíduos com o mundo, particularmente do

louco com seu cotidiano, num exercício de moldar e ser moldado pelos contatos que

estabelece. É analisar a tensão de relações de poder desiguais, do lugar de outro

ocupado pelo louco, ora excluído por meio de internamentos, ora marginalizado

quando permanece nas relações cotidianas.

Quanto à marginalização dos loucos, a discussão desenvolvida por Huyssen

quanto aos direitos culturais e seu vínculo dialógico aos direitos humanos contribui

10 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu de Arte do Rio, 2014. p. 202-203.

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para o aprofundamento da questão da loucura. A loucura pode ser percebida nos

sujeitos sob diferentes aspectos, inclusive estéticos, mas muitas vezes

discriminatórios. Para agir sobre os loucos foram desenvolvidas políticas públicas,

práticas jurídicas e saberes médicos, tanto em nível nacional quanto para além

deste, sendo essas políticas sincrônicas entre alguns países. A luta pela reforma

psiquiátrica é sintomática sobre esse aspecto. Também outros saberes e práticas

foram construídos pelas sociedades em suas relações com a loucura e o louco, que

envolvem outros sentidos, como os religiosos, por exemplo.

Percebe-se, portanto, que existem culturas e práticas culturais sobre a

loucura, transitando o louco entre vários papéis da loucura, mas muitas vezes

rompendo as bordas desses enquadramentos. A discussão de Huyssen sobre

direitos culturais e direitos humanos reflete que “(...) os direitos culturais devem ser

conciliados com a categoria mais ampla dos direitos humanos como direitos dos

indivíduos” 11, e também que “(...) os direitos culturais devem preservar a

prerrogativa de que o indivíduo nascido numa dada cultura possa deixa-la e escolher

outra.”12

Ao lutar pela dignidade nas condições de tratamento e de vida dos loucos,

mobilizou-se essa cultura sobre a loucura e sobre o direito de ser louco para além de

encarceramentos asilares, terapias desumanas e invasões degradantes. Foram

efetivamente fechados hospitais psiquiátricos, com mobilizações assistenciais no

formato de clínicas abertas em que os atendidos passam o dia em atividades e

terapias, retornando aos seus lares para o convívio familiar e residência efetiva,

propiciando inclusive o contato comunitário, tudo com base em leis estabelecidas.

Apelou-se para os direitos humanos daqueles sujeitos denominados loucos,

transportando os direitos culturais para a esfera dos direitos humanos garantidos a

todos os indivíduos.

11 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu de Arte do Rio, 2014. p. 209. 12 HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto: Museu de Arte do Rio, 2014. p. 209.

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Sem este cuidado da consideração aos direitos culturais, os direitos humanos

podem tornar-se tão individualizantes que planificam as existências, desbotando-as

das relações sociais numa individualização asséptica e produtora de isolamento.

A noção de evidência, cobrada da testemunha e equalizada em um

julgamento, está ligada à ação da visão, primordialmente, e num segundo patamar à

da audição. Visão e audição, ou ainda a presença, em um determinado presente,

que deve ser relembrado mediante a evocação feita pela necessidade do

testemunho. A oralidade da memória da testemunha atravessa a relação passado-

presente, sendo marcada pelo ato de julgar, e por fim formatada no registro do

escrivão sob a autoridade do juiz. Para Seligmann-Silva, em Testemunho e a política

da memória: o tempo depois das catástrofes (SELIGMANN-SILVA, 2005), essa

relação é a tônica do testemunho.

(...) minha proposta é entender o testemunho na sua complexidade enquanto um misto entre visão, oralidade narrativa e capacidade de julgar: um elemento complementa o outro, mas eles se relacionam também de modo conflitivo. O testemunho revela a linguagem e a lei como constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária e impossível, entre o “real” e o simbólico, entre o “passado” e o “presente”. 13

Nos processos civis de interdição, essa relação testemunhal não ocorre

apenas pelas testemunhas chamadas a depor sobre o requerido do processo de

interdição, mas pelo próprio sujeito alvo do processo. Ele deve defender ou não sua

capacidade civil, argumentando sobre sua vida e sua habilidade em dispor de seus

bens, caso haja algum. Desse modo, o elemento da subjetividade é também posto

em questão e considerado no testemunho, mas sob o peso da avaliação da

autodeterminação e autonomia do sujeito. A estes é somado o laudo pericial que

atesta sua sanidade, e com base nestas informações deve o juiz exarar o veredito.

O testemunho do sujeito requerido de interdição não deve ser considerado como

estando alheio ou descolado de seu lugar social. A narrativa testemunhal não exime

13 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 30, p. 71-98, jun. 2005. p. 81-82.

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seu referencial social e seus limites devem ser considerados dentro dos estudos

desenvolvidos a partir dela.

O conceito de testemunho concentra em si uma série de questões que sempre polarizaram a reflexão sobre a literatura: antes de qualquer coisa, ele põe em questão as fronteiras entre o literário, o fictício e o descritivo. E mais: o testemunho aporta uma ética da escritura. Partindo-se do pressuposto, hoje em dia banal, que não existe “grau zero da escritura”, ou seja, a literatura está ali onde o sujeito se manifesta na narrativa, não podemos deixar de reconhecer que, por outro lado, o histórico que está na base do testemunho exige uma visão “referencial”, que não reduza o “real” à sua “ficção” literária. Ou seja, o testemunho impõe uma crítica da postura que reduz o mundo ao verbo, assim como solicita uma reflexão sobre os limites e modos de representação. 14

Friedhelm Boll, no texto O fardo de falar sobre a perseguição nazista na

Alemanha (BÖLL, 2000), tratando dos testemunhos de judeus sobreviventes do

Holocausto, aprofunda a questão das condições da narrativa e de sua determinação

pelas condições sociais e políticas dos sujeitos. Para ele, trabalhos que abordam

histórias de vidas devem ter como fatores preponderantes a sua formação histórica

em contextos sociais e a reflexão sobre sentimentos de pertencimento grupal. Boll

destaca que elementos como a inadequação da linguagem e a carga de emoção

devido a traumas e sofrimentos podem interferir nos testemunhos. Relatos sobre um

certo sofrimento podem ser expressos de modo mais detalhado ou espontâneo

conforme o interlocutor, diferenciando-se quando feitos entre aqueles que partilham

os mesmos sofrimentos ou para outras pessoas alheias à mesma experiência. As

razões sociais do testemunho e da testemunha são preponderantes para as análises

que se deseje fazer destas, visto que os limites do testemunho são indicativos das

experiências – passada e atual – tal como vivenciadas pelo sujeito15.

No caso do testemunho do requerido no processo de interdição, as

experiências passadas e presente que se cruzam são as de seu cotidiano e a do

14 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 30, p. 71-98, jun. 2005. p. 85. 15 BÖLL, Friedhelm. O fardo de falar sobre a perseguição nazista na Alemanha. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FERNANDES, Tania Maria; ALBERTI, Verena. (orgs.) História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Casa de Oswaldo Cruz, CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, 2000.

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momento da deposição para os autos do processo. Devem-se considerar, portanto,

a formalidade dessa circunstância, a autoridade e o distanciamento dos ouvintes, e a

carga emocional tanto do depoente, afetado por suas recordação e pelas condições

da narrativa. Além disso, a linguagem empregada pelo sujeito é elemento de

interpretação e julgamento para seus interlocutores, a fim da avaliação e definição

da capacidade civil.

Ainda dentro do mérito das relações sociais e hierarquizantes que se

estabelecem no momento do testemunho do requerido no processo de interdição

civil, cabe refletir que o depoimento é tomado sob força de lei, devendo o requerido

dizer a verdade sobre si perante o tribunal. As implicações dessa verdade, contudo,

podem torna-lo legalmente incapaz de ser responsável sobre seus atos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A abordagem de estudos transnacionais, globais ou conectados, para o tema

da interdição civil e, portanto, para a história da psiquiatria e o Direito, colabora para

o enriquecimento das discussões, estabelecendo pontes de diálogo entre práticas e

discursos desenvolvidos em diferentes lugares, percebendo como determinadas

noções e saberes são reflexionados em espaços distintos. Ao mesmo tempo,

apenas a compreensão de tempos históricos desnaturalizados permite que seja

possível esboçar uma história comparativa entre práticas e saberes adotados em

diferentes lugares.

Este texto também colabora para pensar a interdição civil não apenas dentro

do tempo factual, como evento, mas na longa duração da história das práticas

legais, da tradição das leis e do direito, e das práticas e saberes sobre a loucura.

A presente proposta também revitalizou o compromisso necessário de

desconstrução e desnaturalização da loucura, propondo também a mesma prática

quanto às noções de tempo histórico, do Direito e da interdição civil. E para isso se

faz necessário desnaturalizar as narrativas sobre a loucura, abrindo espaço para

que o que os sujeitos dizem sobre si e sobre outros sujeitos seja efetivamente

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apreciado com compreensão e empatia, através das quais seja possível avançar

realmente no que concerne aos direitos humanos.

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