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    REVISTA DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EMEDUCAO MATEMTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL

    DE MATO GROSSO DO SUL (UFMS)

    Volume 8, Nmero Temtico2015ISSN 2359-2842

    inma.sites.ufms.br/ppgedumat/seer.ufms.br/index.php/pedmat

    Produo de histrias na Educao Matemtica: um exerccio

    com os Projetos Minerva mobilizando texto ficcional e fotografias

    compsitas.

    Making histories in Mathematics Education: an exercise with the Minerva

    Project mobilizing one fictional text and composite portraits

    Thiago Pedro Pinto1

    Resumo

    Abordamos neste texto um entendimento quanto produo de histrias na Educao Matemtica, articulandoalgumas ideias da Filosofia de Ludwig Wittgenstein (1999), em sua segunda fase. Neste sentido, discutimos o

    papel da linguagem na nossa compreenso de mundo e apreciamos uma metfora para a produohistoriogrfica: as fotografias compsitas. A primeira parte discute o papel da "linguagem" na constituio

    daquilo que nomeamos, usualmente, realidade, e destaca a impossibilidade de se desvincular realidade delinguagem. Em seguida, apresentamos e discutimos a construo de um texto ficcional que se preocupa emoferecer uma exemplificao para o trabalho com mltiplos discursos exercitando o conceito de jogos delinguagem sobre o Projeto Minerva. Por fim, recorremos s Fotografias Compsitas para estabelecer umaanalogia com a produo ficcional elaborada no trabalho que subsidia este texto (PINTO, 2013), em especialdestacamos o aspecto que Francis Galton d a elas e como Wittgenstein recorre a tais fotografias para aelaborao de um de seus conceitos: as semelhanas de famlia (modo como as pessoas de uma mesma famlia seassemelham).PALAVRAS-CHAVE:Metodologia de pesquisa, Ludwig Wittgenstein, fico.

    Abstract

    In this paper we bring our understanding about making histories in mathematics education articulating someideas of philosophy of Ludwig Wittgenstein (1999) in his second period. In this way, we argument the role oflanguage in our comprehension of the world and we articulate one metaphors for building histories: theComposite Portraits. The first part of this paper discusses the role of "language" in the constitution of what weusually call reality", and the impossibility to dissociate language andreality. Next, we bring foward here thedevelopment of a fictional text that enables us to construct multiple discourses and to exercise of variouslanguage games about the so called Minerva Project. To finish, we bring the Composite Portraits in order to

    point out an analogy to the fictional production presented in Pinto (2013). In particular we discuss the approach

    1Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Instituto de Matemtica (INMA). Vice-lder do Grupo

    HEMEP e pesquisador do Grupo GHOEM. [email protected].

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    Francis Galton gave to some photographs called Composite Portraits, and the way Wittgenstein used theseportraits to define the idea of family resemblances.KEYWORDS:Research Methodology, Ludwig Wittgenstein, fictional text.

    Produo de histria e aproximao com a filosofia de linguagem de Wittgenstein

    Este texto discute um dos modos de se produzir histria na de Educao Matemtica,

    com destaque a um modo mltiplo, de diversas vozes e verses, inspirado em fotografias

    compsitas e na filosofia de linguagem de Ludwig Wittgenstein em sua segunda fase2. Como

    exemplificao para este exerccio, chamaremos tona uma produo ficcional por ns

    elaborada com base no Projeto Minerva, ou, nos Projetos Minerva3.

    O presente trabalho insere-se no campo de pesquisa da Educao Matemtica, mais

    especificamente na rea que tem sido chamada de Histria da Educao Matemtica, na qual,

    comumente, tm-se pesquisado as histrias da formao e da atuao de professores de

    matemtica. Trata-se, segundo Miguel (2014), de um campo que tem tomado como "objeto de

    investigao historiogrfica, todas as prticas educativas mobilizadoras da cultura matemtica

    em quaisquer contextos de atividade humana, dentre eles, sobretudo, os contextos educativos

    escolares" (MIGUEL, 2014, p.31).

    crescente o nmero de pesquisas que enriquecem a Histria da Educao

    Matemtica. Trabalhos que se propem a realizar estudos histricos inseridos em temticas

    relacionadas com o ensino de matemtica e seu entorno.

    Tal crescimento torna-se mais evidente quando consideramos, por exemplo, a criao

    de um evento prprio e continuado, no qual um expressivo acervo de trabalhos tem sido

    apresentado 4 . Outra evidncia desse crescimento a publicao, pelo mais tradicional

    peridico da rea de Educao Matemtica, de uma edio temtica, em dois volumes, um

    tributo ao expressivo nmero de trabalhos a ele submetidos e aprovados5. Certamente h uma

    2Comumente divide-se a filosofia de Wittgenstein em duas fases, uma primeira marcada pela obra: TractatusLogico-philosophicus, publicado pela primeira vez em 1921, e uma segunda marcada por diversos escritos queculminaram, postumamente, na obra:Investigaes Filosficas, publicado em 1953; comumente fala-se tambmem primeiro e segundo Wittgenstein, dada a distino de posicionamentos nestas duas fases.3Essa forma plural ser discutida no corpo do artigo.4Nos referimos ao ENAPHEM (Encontro Nacional de Pesquisa em Histria da Educao Matemtica), realizadoem 2012 na em Vitria da Conquista e em 2014 na cidade de Bauru(SP) a sua segunda edio. Somente naedio de 2014 foram publicados e apresentados 102 trabalhos de pesquisa em nvel de Ps-Graduao.5

    Trata-se do Volume 23 do BOLEMA (Boletim de Educao Matemtica), do ano de 2010, publicado em doisnmeros: 35A e 35B, com um total de 24 artigos.

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    variao nos aspectos metodolgicos com referncia a tais trabalhos e mesmo nos grupos de

    pesquisa entre os quais estes pesquisadores se inserem.

    O adjetivo "histrico" comumente associado aos trabalhos no campo da Histria da

    Educao Matemtica faz que comumente nos debrucemos sobre questes originalmente

    desenvolvidas em outras reas, como, por exemplo, a Histria.

    Neste sentido, uma discusso bastante presente e atual aquela sobre a no unicidade

    de verses histricas, ou, ainda, provocando, a no unicidade e a no coerncia do passado, o

    que reflete, para ns, uma discusso metodolgica sobre como lidar com essas diversas

    versesdo passado.

    Esta discusso a que nos propomos, importante destacar, no se circunscreve

    estritamente ao mbito da Educao Matemtica, mas extrapola para toda a Histria.Movimentos historiogrficos anteriores pregavam a busca pela verdade e a qualificao das

    fontes, determinando aprioristicamente aquelas que poderiam, ou no, inserir-se na elaborao

    de uma desejada verso definitiva da histria, a verdade dofato histrico. Podemos atribuir ao

    Movimento dos Annales6boa parte da responsabilidade na mudana dessa perspectiva.

    Certamente, as mudanas em uma disciplina ou rea de pesquisa so permeadas e

    retroalimentadas pelo contexto em que ocorrem; por aquilo que, em determinado tempo

    histrico, possvel pensar;encontra-se disponvel nos recursos lingusticosdos grupos, depessoas, das formas de vida 7 , algo prximo ao que tem sido chamado de regime de

    historicidade8 . Neste sentido, a historiografia atual tem proposto e efetivado abordagens

    prximas multiplicidade de vises de mundo, valendo-se de uma diversidade de fontes,

    relacionando-se mais intimamente com outras reas como, por exemplo, a Sociologia, a

    Geografia, a Antropologia e a Literatura. Mais recentemente, outro movimento tem ganhado

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    Movimento dos Annales, tambm chamado por alguns de "Escola dos Annales", trouxe uma guinada naproduo historiogrfica do incio do Sculo XX. Alguns nomes se destacam como lderes deste movimento aolongo dos anos, como: Lucien Febvre, Jacques Le Goff e Marc Bloch. Alguns autores, como Matos (2010), sedebruam sobre as diferenciaes em cada poca do movimento, chegando a traar diversas correntes dentrodele, seus reflexos so ainda vistos nas escolas contemporneas como a Nova Histria Cultural.7Wittgenstein utiliza a expresso "formas de vida" no Investigaes Filosficas numa imbricao mtua com os"jogos de linguagem". Segundo Cond (1998, p. 101), nas formas de vida, no contexto da vida, que os jogos delinguagem encontram sustentao. Para GOTTSCHALK (2008, p. 80), Wittgenstein se utiliza desta expresso

    para designar nossos hbitos, costumes, aes e instituies que fundamentam nossas atividades em geral,envolvidas com a linguagem.8Garnica (2011) discute, a partir das ideias de Franois Hartog, os Regimes de Historicidade e contribuiesdesse modo de pens-los para a Histria Oral, em especial por afastar-se da ideia de Perodo ou Periodizao, tocara Histria. Sintetizando algumas ideias de Hartog, Garnica prope: "Um regime de historicidade marcado

    por um modo especfico de (re)orientar o tempo tema to caro Historiografia , um modo especfico dearticular passado, presente e futuro". (GARNICA, 2011)

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    destaque, a Nova Histria, alguns a entendem como uma evoluo na Escola dos Annales,

    outros preferem pontuar distines entre tais movimentos. Julia Matos (2010), discutindo a

    obra de Dosse, apresenta-nos:

    Assim, em sua viso [(Dosse, 1992)], enquanto o movimento dos Annales teria

    surgido com o intuito de fazer uma Histria total, centrada no homem e suasrelaes com o meio, a Nova Histria se fragmentaria para estudar as mentalidades eimaginrios em suas mais variadas estruturas e temporalidades. (MATOS, 2010,

    p.115)

    Para a autora, a Nova Histria se caracteriza como "corrente terica, diretamente

    ligada ao movimento dos Annales" (MATOS, 2010, p.117), destacando ainda as diferentes

    abordagens ao longo do tempo, como a mudana, tanto de objeto de estudo como de

    metodologia.Nestes diferentes modos de lidar compassado, presenteefuturo, ou com os diferentes

    objetos de interesse da Histria, a Educao Matemtica tem se apropriado de algumas dessas

    abordagens e as recriado segundo uma leitura prpria que resulta em novas aproximaes.

    Alguns grupose neles nos inclumostm tematizado essas questes e, para isso,

    tm frequentemente buscado apoio em outros tericos, em outras metforas, em outras fontes

    e procedimentos para a produo historiogrfica em Educao Matemtica.

    Ns, particularmente, abraando essa empreitada, realizamos uma tentativa deaproximao com a filosofia de linguagem de Wittgenstein, em sua segunda fase. Esta

    aproximao deu-se por conta de um trabalho anterior que traava compreenses sobre o uso

    da linguagem em sala de aula de matemtica (PINTO, 2009). A filosofia de linguagem de

    Wittgenstein trouxe ao pesquisador e, em certa medida, ao grupo de pesquisa, profcuos

    modos de ver e constituir o mundo.

    Em Investigaes Filosficas (Wittgenstein, 1999), obra pstuma que marca a segunda

    fase de seu pensamento, Wittgenstein problematiza a produo em Filosofia e se afasta de

    uma prtica filosfica que busca estabelecer significados em mbito que extrapola seu

    contexto de uso ordinrio, que busca algum tipo de essncia das coisas, conceitos, fora da

    prtica cotidiana humana, em cada um dos diversos grupos que compem a sociedade. Em

    termos mais apropriados a seus escritos, com base nesse pensamento de Wittgenstein, busca-

    se evidenciar os usos, os diversos usos,de um termo nos diversos jogos de linguagem, nas

    diversas formas de vida, e compreender tais usos, haja vista o significado das palavras ser o

    uso que se faz delas. Ir alm do que est posto nesses jogos criar outros jogos, criar novos

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    usos, novos significados para os termos em referncia e, segundo ele, ao fazer isso, a filosofia

    "deixa tudo como est" (WITTGENSTEIN, 124, 1999).

    Para o filsofo, prtica e existncia humana fundam-se na linguagem, no seu uso, no

    cabendo buscar "para alm da linguagem", numa empreitada metafsica. Se o que podemos

    fazer, enquanto entendimento da nossa realidade, tentar "ver as conexes" dos usos das

    palavras, na tentativa de delinear uma viso panormica desses usos (WITTGENSTEIN,

    122, 1999), como produziremos histria segundo esse modelo de compreenso da realidade?

    Na busca por respostas a esta questo, discutiremos o entendimento de histria e de

    historiografia, sem a pretenso de nos perdermos em longos estudos acerca da relao que

    entre elas se estabelece, visto que a prpria disciplina de Histria tem se debruado

    longamente sobre o tema, constatando muitas divergncias de pontos de vista e abordagens,incluindo divergncias sobre o prprio conceito de histria:

    Seguindo as reflexes de W. Walsh, Callinicos lembra que histria cobre (1) a

    totalidade das aes humanas passadas e (2) a narrativa ou o relato que delasconstrumos hoje, ou seja, a historiografia. Essa ambiguidade importante, poisabre a dois campos distintos da filosofia da histria. Tal estudo pode voltar-se, comoo foi na forma tradicional, ao curso real dos eventos histricos, a histria vivida

    pelos agentes, no sentido da experincia histrica. Tambm pode, por outro lado,ocupar-se com os processos do pensamento histrico, os meios pelos quais a histriano segundo sentido chegaou constriquela. Portanto, conduz tanto filosofia

    da histria como historiografia. (MALERBA, 2006, p. 18)

    No presente artigo adotamos, como ponto de partida, a histria, entendida como o

    fluxo de aes humanas passadas, e historiografia, como a narrativa acerca das aes humanas

    em referncia. Em determinado momento histrico, indispensvel pareceu-nos traar distino

    entre essas duas perspectivas, a fim de eliminar entendimentos ambguos na definio de tais

    esferas. Esclarecidos provveis equvocos, passa-se a falar em verses histricas, traduzidas

    em expresses como: "um olhar", "perspectivas", "uma histria", alm de outras,

    Tem-se a impresso que o interesse do historiador no mais a pesquisa de umarealidade, mas do olhar sobre. Estamos atualmente num perodo do estudo doolhar sobre o olhar, abordagem que d a sensao de desfazer toda uma parte datrama do discurso histrico. (DALESSIO, 1998, p. 84 apud SOUZA, 2006, p. 72)

    Passa-se a falar, tambm, em fatos histricos que no so objetos dados a priori:

    Isso significa que o historiador constri sempre o seu objeto de pesquisa e o passadonunca um objeto de anlise por si mesmo. A iluso do passado como dado leva auma prtica incorreta do fazer histrico. (VALENTE, 2007, 22)

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    No que concerne a esses modos de escrita e diferenciao entre uma possvelhistria a

    ser contata e ahistria (o fluxo dos acontecimentos em si), importante ressaltar que nosso

    entendimento a respeito da produo historiogrfica no uma mera transformao do

    ocorrido em um texto, mas uma produo que se refere a certo momento vivido, concernente

    a uma escrita, no da experincia vivida, mas de uma escrita a partir da experincia vivida.

    Duas instncias diferentes, mas fortemente ligadas.

    Ao discutir narrativas, uma das principais formas de se produzir dados na histria oral,

    Garnica (2007) apresenta:

    Sempre existir uma distncia entre o que vivo e o que me narrado como vividopelo outro. As formas de narrar vo se modificando e o modo de perceber tanto oque narrado quanto o modo de narrar dos sujeitos vo se configurando junto aessas alteraes nas formas de narrar. (p. 51)

    A tentativa proposta , face s vrias verses apresentadas, trabalhar cada uma delas,j que so sempre lacunares, considerando-as como modos dos narradores senarrarem e constiturem suas verdades como sujeitos (p. 61)

    Para Albuquerque Jnior (2007), tem-se que

    O conhecimento histrico torna-se, assim, a inveno de uma cultura particular, numdeterminado momento, que, embora se mantenha colado aos monumentos deixados

    pelo passado, sua textualidade e sua visibilidade, tem que lanar mo daimaginao para imprimir um novo significado a estes fragmentos. (p.63)

    Para alguns historiadores, "descolar" a escrita da histria da experincia vivida poderia

    aproximar, sobremaneira, histria e literatura, fazendo-a perder o estatuto epistemolgico de

    cincia. Em resposta a tais crticas, muitos historiadores se propuseram a oferecer respostas

    que aproximassem novamente a histria do mbito da historiografia. Para Albuquerque

    Jnior, citado anteriormente, h documentos deixados pelo passado, revisitados pelo

    historiador, que transforma tais documentos em monumentos, para ele, o historiador escrever

    sua histria, narra, mas no pode, deliberadamente, criar dados (ALBUQUERQUE JNIOR,2007, p. 62), ou ainda, como sintetiza, devemos "Tomar a histria como arte de inventar o

    passado, a partir dos materiais dispersos deixadospor ele" (ALBUQUERQUE JNIOR, p.

    64, grifo nosso)

    Para ns, distinguir histria de historiografia enquanto possuidoras de naturezas

    diferentes, ontologicamente diferentes, seria como falar de uma realidade para alm da

    linguagem, algo que pudesse ser produzido/identificado independente da linguagem (a

    experincia vivida). Em tais circunstncias, colocaramos, a ns mesmos, na posio daquela

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    filosofia criticada por Wittgenstein, que ignora o uso cotidiano dos termos, e, aqui, diramos

    "o que se diz sobre o passado", para a busca de uma essncia das palavras que estivesse em

    algum lugar que no na linguagem, a busca de uma histria que "est em algum lugar" que

    no, exclusivamente, no que se diz ordinariamente sobre ela.

    Se o significado de uma palavra o uso que dela fazemos, o significado de expresses

    que nos remetem a um momento passado no "o momento passado em si", mas o uso que se

    faz dessas mesmas expresses em um determinado jogo de linguagem.

    Em outras palavras, poderamos questionar: o que o mundo seno aquilo que as

    pessoas dizem dele? O que um fato histrico seno o que se narra sobre ele? Haveria uma

    realidade anterior, para alm do relato, que se possa buscar?

    Somos levados, dada a no operacionalizao da "realidade em si", como quedesvinculada dos jogos de linguagem e das formas de vida, a propor aqui uma confuso (ou

    apenas fuso) proposital entre histria e historiografia, visto que o ocorrido, a experincia,

    "depende", para sua existncia, do narrador e, mais do que isso, de uma linguagem que

    evidencie a experincia de "tais e tais coisas", uma linguagem pblica, partilhada por certa

    comunidade que permite ver, permite sentir determinadas coisas.

    Para exemplificar este aspecto de como a linguagem "constitui" efetivamente as

    pessoas, Wittgenstein utiliza e problematiza a palavra "dor". Como podemos, eu e voc,nomear da mesma forma aquilo que sentimos sem podermos experienciar a dor do outro9?

    Como aprendemos a nomear algo alis, que algo esse a que nomeamos dor? sem

    nunca t-la sentido, como na afirmao Ele est com dor!? Para Wittgenstein, essas

    questes so cabveis, pois Voc aprendeu o conceito dor com a linguagem

    (WITTGENSTEIN, 384, 1999). Nesta problematizao, o filsofo mostra, ainda, como

    certas construes com a palavra em referncia no fazem sentido em nossos jogos de

    linguagem do dia a dia: no sei se sinto dores, em que contexto alm da fico, da poesia,

    se diria desta forma?

    Com este exerccio, e tantos outros apontados nas Investigaes Filosficas

    (Wittgenstein, 1999), como a noo de cores, sentimentos, jogos, o filsofo rejeita a proposta

    de uma linguagem referencial, para a qual cada palavra tem um algoa que se ligar no mundo.

    9 Partilhamos de determinados jogos de linguagem que nos permitem identificar, mesmo no outro, coisas squais damos o mesmo nome, usamos as mesmas palavras e nos permitem outras condutas, como sermos

    medicados e passarmos a no sentir mais as mesmas coisas.

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    Neste sentido, em no havendo uma correspondncia biunvoca entre as palavras e as coisas,

    como poderia haver tal correspondncia entre a histria e a escrita da histria? Para ns,

    assumir tal postura no significa negar a possvel existncia de uma "realidade", afinal,

    falamos dela, articulamos o termo em nossos jogos de linguagem, mas impe-se compreender

    que qualquer ao humana praticada "na linguagem" e por meio dela.

    Entendemos que, cotidianamente, como se navegssemos em imenso oceano, e

    exercitssemos aquilo a que denominamos experincia portando um grosso e pesado

    escafandro que deturpa a viso, tato e audio, e, no fundo desse oceano, o que nos permite

    sobreviver e sentir determinadas coisas justamente este escafandro, nossa linguagem, os

    jogos de linguagem. No imaginamos com isso poder um dia retirar tal escafandro e nadar

    livremente, mas, sim, compreender que toda e qualquer significao se d nele. Quandofalamos de algo, de alguma experincia vivida, falamos muito mais de nossos escafandros, e

    sobre nossos jogos de linguagem, e diramos que nos limitamos a eles, dizemos sobre o que

    eles nos permitem dizer.

    Um para alm da linguagem, um algo em s, um fato histrico em si saem de

    cena, cedendo espao a questes como: "o que possvel dizer?", "o que se diz efetivamente

    sobre tal coisa?", o que estes escafandros, jogos de linguagem, possibilitavam-lhe ver ou

    sentir?, que leitura possvel fazer das memrias e das lembranas que tais pocas e taisocasies oferecem?.

    Desta forma, j no faz sentido buscar distines entre historiografia e histria, visto

    que temos apenas a primeiraque toda histria histria escrita, falada, praticada nos jogos

    de linguagem , desta forma, tomaremos aqui, a partir de agora, a palavra histria em uma

    aplicao ampliada, para os que assim desejassem "dividir" a histria de sua escrita.

    Entender a histria como uma escrita com base nos fatos ou nos monumentos legados

    pelo passado incita questes de ordem metodolgica diferentes daquelas que emergem ao

    tomarmos a escrita da histria como uma produo lingustica, nos jogos de linguagem que

    expressa, no um fato, mas o que se diz, hoje, sobre um determinado tema histrico. No se

    buscam meios de se aproximar a escrita em refernciade algo efetivamente vivido, mas, sim,

    de potencializar e de problematizar o que se diz sobre tais temas.

    Os Projetos Minerva: um exerccio

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    Durante a elaborao de nossa tese de doutoramento10,tnhamos como foco o Projeto

    Minerva (PMi). Debruamo-nos sobre diversos "discursos" a respeito dele, cada um com

    peculiares nuances. Recorremos a documentos e legislaes da poca que regiam o Projeto,

    bem como ao Acervo Histrico da Rdio MEC11, onde encontramos produes e materiais,

    dentre eles, vrios documentos referentes s aulas de Matemtica do PMi. Tambm

    recorremos, ao longo do mesmo trabalho, a colaboradores que, de alguma forma, vivenciaram

    o projeto em questo oferecendo depoimentos sobre ele , seja como aluno, seja como

    monitor, produtor, seja como escritor de material didtico. Nossa grande questo

    metodolgica centrou-se na forma como lidar com essas vrias "vozes" que nos chegavam,

    para enriquecer a pesquisa com a contribuio desses nossos depoentes nas entrevistas, sem

    produzir uma histria totalizante.Entendemos todos estes "dados" como produes do pesquisador junto/diante de

    outros interlocutores (documentos, depoentes, fotografias, alm de outros). Esta nossa viso

    se apoia na noo de comunicao presente no Modelo dos Campos Semnticos (Lins, 1999),

    segundo o qual o leitor produz um texto/autor que diz o que ele, efetivamente, compreende

    daquele "resduo de enunciao", bem como o nosso leitor produz, no ato de ler, outro autor,

    ao afirmar aquilo que ele efetivamente compreende. Desta forma, ao lermos, produzimos

    outro texto, outro autor no se trata apenas de outra leitura que poderia, supostamente,aproximar-se da leitura corretadaquilo que o autorquis dizer12; ou, ainda, segundo outros

    modelos de comunicao, de codificar e decodificar corretamente uma mensagem. O processo

    de leitura e de produo de significados vai muito alm desse processo estvel.

    10 Trata-se da Tese de Doutorado "Projetos Minerva: caixa de jogos caleidoscpica" de Thiago Pedro Pinto,

    orientada pelo Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica, defendida em 2013, junto ao Programa de Ps-Graduao em Educao para as Cincias, Universidade Estadual Paulista "Jlio de Mesquita Filho", UNESP-Bauru.11O Acervo Histrico da Rdio MEC est sob os cuidados da SOARMEC - Sociedade de Amigos e ouvintes daRdio MEC -, com sala prpria instalada no interior do Prdio da Rdio MEC. O Acervo conta comaproximadamente 400 caixas arquivos devidamente etiquetadas disponveis ao pblico. Ao trabalho com esteacervo produzimos e disponibilizamos um catlogo e um mapa deste material (PINTO, 2013). A RdioMinistrio da Educao e Cultura, mais conhecida como Rdio MEC, tem suas origens na Rdio Sociedade do

    Rio de Janeiro, fundada em 1922, sendo a primeira emissora de rdio brasileira. A Emissora foi doada aoMinistrio da Educao em 1936 pela falta de condies em mant-la devido opo de no veicular

    propagandas (BARBOSA, 1957). Uma das condies para a doao foi que a Rdio seria de carter educativo eno poltico.12No Modelo dos Campos Semnticos comumente se diferencia O autor (biolgico) de UM autor (cognitivo),

    produzido no ato de ler (LINS, 1999). Por esse motivo, em alguns momentos optamos por trazer estes artigos,definidos ou indefinidos, grafados em maisculas, ressaltando esta diferenciao.

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    Produzimos, ento, ao longo do trabalho, nove materiais distintos (divididos em nove

    volumes) e, de certa forma, independentes. Cada um desses materiais tentando abordar uma

    perspectiva do Projeto, no disjunta como se isto fosse possvel , mas no

    complementares tambm, visto que o somatrio desses nove textos no compe "O Projeto

    Minerva", nem alguma outra totalidade como esta. Neste tpico, elegemos uma dessas

    produes em especfico, aquela na qual tentamos dar conta dessa multiplicidade de Projetos

    Minerva e na qual discutimos a Fotografia Compsita enquanto metfora para nossa produo

    historiogrfica.

    No volume em questo, utilizamos a fico deliberadamente para tratar do

    Projeto Minerva, optando por criar um debate radiofnico, no qual pudemos exercitar a

    escrita radiofnica, que foi um dos temas marcantes ao longo da pesquisa: como escrever parauma comunicao pelo rdio? Como tratar contedos, em especial os de matemtica, para ser

    veiculado pelo rdio?

    O exerccio desta esttica de comunicao transita pela tentativa de se recorrer a

    outros jogos de linguagem, de se exercitar o adequado uso das palavras para o veculo em

    questo, em especial nas aulas do Projeto Minerva.

    Na criao deste debate ficcionalocorrido em dois programas , tivemos que nos

    deter no detalhe da temporalidade para situar esse evento. Optamos pelo incio da dcada de1990, quando, efetivamente, o Projeto Minerva foi oficialmente extinto com a dissoluo do

    SRE (Servio de Radiodifuso Educativa), para ceder espao a novas polticas e projetos. A

    escolha desse perodo mostra-se relevante para destacar a extino paulatina do Projeto,

    iniciada em meados da dcada de 1980, que culminou no incio da dcada seguinte, quando se

    consumou oficialmente o seu trmino. Nas palavras de uma de nossas depoentes: "Bom, no

    sei te precisar em que data foi o fim do Minerva, porque as coisas, quando terminam, elas vo

    se extinguindo... No sei como." (PINTO, v. Entrevista com Marlene Blois, p. 19, 2013). No

    incio da dcada de 1980, quando o Projeto Minerva completava aproximadamente dez anos

    de existncia, o projeto foi "definhando", em especial pela falta de obrigatoriedade em sua

    transmisso, at ento realizada diariamente, de segunda a sexta-feira, em todas as emissoras

    de rdio do Brasil. Outro fator que contribuiu significativamente para a extino do Projeto

    coincidiu com o fim do regime militar. Tendo o PMi nascido sob a gide o Regime, a

    populao e, principalmente, as novas polticas governamentais vo deixando para trs esses

    "filhos do regime", que vo se desestruturando aos poucos.

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    Na criao do debate radiofnico que discutia a suposta extino do Projeto Minerva,

    j ocorrida na prtica, mas ainda no oficializada, optamos por trazer marcas de

    temporalidade que colocassem nosso leitor a vivenciar, minimamente, a dcada de 1990.

    Desta forma, optamos por trazer, com as discusses supostamente ocorridas no debate,

    diversos detalhes que aproximassem este texto de uma transcrio. Criamos, para isso,

    vinhetas de abertura e de encerramento do programa, bem como pesquisamos e trouxemos

    transcries que reproduzem intervalos comerciais da dcada de 1990, lista das msicas em

    evidncia na poca, notcias veiculadas naquele ano, tanto em mbito de Brasil como ao

    cenrio mundial. Outra marca da temporalidade presente no debate o modo de interao

    com os ouvintes que, comumente, ligavam para a rdio por meio de um telefone pblico

    ("orelho")para solicitar suas preferncias musicais, oferecendo comentrios a respeito daprogramao ou, neste caso, para manifestar sua opinio a respeito do debate. Elaboramos,

    ainda, as vinhetas de abertura, de encerramento e de intervalos comerciais para o programa

    que estivessem em consonncia com o perodo, diferentemente do que temos hoje, com um

    excesso de sons computadorizados, era comum o uso de coro de vozes e de instrumentos

    acsticos, como o violo.

    Alm desse detalhe de registro de usos e de costumes da poca, foi necessrio

    caracterizar os personagens para esse debate: que pessoas poderiam canalizar as ideiasencontradas no percurso da tese? Qual a linguagem e usosda linguagem dessas pessoas? De

    onde elas viriam e por que estavam ali? Todas essas questes se mostraram presentes na

    elaborao deste debate. A escolha dos personagens e, por consequncia, das respostas a

    essas questes, esteve intimamente ligada tanto leitura de documentos quanto a depoimentos

    produzidos ao longo da realizao da pesquisa, destacando argumentos contrrios e a favor do

    Projeto. No que se refere aos depoimentos, destacamos as falas de dois ex-alunos do curso de

    Primeiro Grau do PMi (moradores da zona rural no interior do Rio de Janeiro, os quais

    destacaram de forma diferente a importncia do Projeto em suas vidas), um monitor do Curso

    Supletivo de Primeiro Grau (morador do interior do Mato Grosso do Sul, cuja atuao

    basicamente transcorreu em rea de alfabetizao, mesmo no sendo este o foco do Projeto),

    uma ex-produtora (que atuou praticamente durante toda a existncia do PMi e que apresenta

    uma viso ampla das atividades que exerciam, focando o expressivo alcance do Projeto e a

    inovao que implementavam), um professor de Matemtica (o qual escreveu os Fascculos

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    de Matemtica para o Curso Supletivo de Segundo Grau, idealizado para sua utilizao na

    televiso e que, posteriormente, descobriu o seu uso no Projeto Minerva), entre outros.

    No se tratou, no entanto, de replicar as falas dos depoentes com novos nomes, mas,

    sim, de aglutinar alguns pontos de vista (que eram defendidos por mais de um depoente em

    alguns casos), apresentar outros que se mostravam unssonos, mas que pareciam responder a

    questes que outros a respeito do mesmo tema colocavam, enfim, em se tratando de um

    debate sobre a extino do Projeto, colocar, de um lado e de outro, pontos crticos sobre o

    contexto e discuti-los, sem a necessidade de nos fecharmos em "certo" ou "errado", sem juzos

    de valor, ou mesmo, de vitria de um ponto de vista sobre o outro. Este formato ficcional e

    radiofnico nos permitia tal embate, em uma tentativa de desconstruir discursos, de desfazer

    imagens exclusivistas, de exercitar jogos de linguagem prximos aos dos nossosentrevistadose compor um novo, o do prprio debate em questo.

    O primeiro personagem que construmos foi o do autor desta pesquisa que,

    supostamente, nos dias que passou dentro da Rdio do MEC, tivera notcias de um debate

    ocorrido na dcada de 1990, em outra emissora de rdio, e contataria o Sr. Eduardo Nogueira,

    produtor do referido programa que gentilmente nos cederia duas cpias de fitas K-7 e

    conversaria conosco sobre esse debate, contando-nos sobre os personagens escolhidos para

    participar dele e suas impresses sobre aquele programa especificamente. Preocupamo-nosem elaborar a linguagem do apresentador e mediador do debate. Sendo ele um profissional do

    rdio, haveramos que incorporar nele as diretrizes do Manual urgente para radialistas

    apaixonados (VIGIL, 2004), com uma fala simples, com os jarges e a repetio de

    informaes prpria do rdio: criamos Elias Jnior, um nome fcil e sonoro, que se fixaria no

    imaginrio popular dos ouvintes da rdio.

    Para compor a bancada, imps-se a criao de personagens que infundissem

    credibilidade, pessoas que uma emissora sria convidaria para participar de um debate sobre

    um projeto to abrangente e, de certa forma, to importante. Para esse primeiro programa,

    dividido em cinco blocos, criamos, ento, de um lado, a Professora Maria Amlia Martins,

    que, supostamente, teria coordenado o projeto no perodo de 1975 a 1983 e, no outro, o

    Deputado Jos Carlos Bulhes, da base parlamentar que proporia alteraes no ensino

    supletivo e a distncia, alteraes estas que implicariam o encerramento oficial do Projeto

    Minerva.

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    Maria Amlia sustentaria em sua fala uma defesa firme, de quem acompanhou o

    Projeto por muitos anos e conhecia um grande nmero de pessoas atendidas por ele. A

    participao de pessoas formadas pelo Projeto Minerva testemunharia a efetiva existncia

    desse mesmo Projeto e demonstraria uma enorme gratido a ele. No discurso de Maria

    Amlia ficaria ainda evidente sua paixo por essa ao e o rano desse trmino, que j vinha

    ocorrendo na prtica. J o Deputado Bulhes, de fala difcil, mas ao mesmo tempo

    extremamente polido, aproveitaria a fala da professora para rebater seus argumentos e teria

    que formalizar e justificar o que j vinha ocorrendo: a extino do PMi. A fala de ambos os

    personagens aglutina as mais diversas crticas ao Projeto, com as quais tomamos contato

    durante a pesquisa, crticas de Marlene13, Paulo14, Edivaldo15, Maurlio e Cleuza16, nossos

    entrevistados durante a realizao da pesquisa, canalizados em uma mesma voz.Para o segundo dia de programa, seria convidada a Professora Arlete Maria do

    Nascimento, monitora no Projeto na cidade de Araras, no interior de So Paulo, e Sr. Joaquim

    Leandro, um dos redatores do PMi. Neste segundo programa, os personagens no chegariam a

    uma oposio direta, como no primeiro debate, mas ambos abordariam mritos, sucessos e

    dificuldades que marcaram a realizao do Projeto. Arlete reuniria argumentos a respeito da

    dificuldade em manter o radioposto funcionando e de agregar os alunos, que frequentemente

    abandonavam as aulas por enfrentarem muitas dificuldades, at mesmo de alfabetizao.Joaquim Leandro relataria basicamente o esforo que empenhava e a dificuldade que

    encontrava em radiofonizar os textos das aulas de matemtica, sentindo-se, muitas vezes,

    imobilizado diante de um contedo tipicamente visual e, sem meios de esclarecer dvidas,

    limitava-se a indicar as atividades na apostila. Os dois personagens em referncia

    aglutinariam, novamente, diversos pontos de vista encontrados, at ento em locais dispersos:

    livros e textos que abordam o projeto, falas de um monitor do interior de Mato Grosso do Sul

    e um redator do Rio de Janeiro (da Rdio MEC).

    Nestes programas tambm houve a inteno de contar com a participao de ouvintes

    que ligariam para a rdio e participariam ao vivo no programa, expondo posies muito

    13Marlene M. Blois, professora aposentada, ex-produtora do Projeto Minerva.14 Paulo R. Motejunas, professor aposentado, foi quem produziu o material escrito do Curso Supletivo deSegundo Grau do Telecurso e Projeto Minerva.15Edivaldo Dias, professor aposentado, ex-monitor do Projeto Minerva na cidade de Coxim(MS)16

    Maurlio Costa Filho e Cleuza Inz Pecoraro Costa, agricultores, alunos formados no Curso Supletivo dePrimeiro Grau do Projeto Minerva, moradores de Paraba do Sul (RJ).

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    particulares e afetivas quanto ao Projeto, que dificilmente seriam colocadas pelos debatedores

    de forma to adequada.

    Ao longo da pesquisa, diversas atas e dirios oficiais enriqueceriam os

    posicionamentos em relao ao Projeto. Em certa medida, alguns destes documentos tambm

    ajudaram a compor as falas desses personagens ao longo do debate.

    Sendo um debate ficcional, mesmo que "amparado" em uma suposta realidade de

    nossos entrevistados, sentimos a necessidade de discutir o estatuto epistemolgico dessa

    produo, em especial em se tratando de um jogo de linguagem especfico do qual

    participamos: a Educao Matemtica como rea de pesquisa que, comumente, no aceita

    como regra deste jogo a inveno de personagens e contextos.

    Neste sentido, traaremos aqui uma analogia da nossa produo com as fotografiascompsitas, de Francis Galton e Moritz Nhr, utilizadas por Wittgenstein em suas reflexes.

    Fotografias Compsitas

    Na Conferncia de 10 anos do Grupo GHOEM 17 , Miguel (2012) nos apresenta

    algumas ideias de Wittgenstein e como elas esto relacionadas com as fotografias compsitas.

    Com base nesses documentos, elaboramos outras reflexes sobre elas.

    Observemos cuidadosamente a imagem a seguir:

    17Grupo Histria Oral e Educao Matemtica. Grupo multi institucional com sede na Universidade EstadualPaulista "Jlio de Mesquita Filho" - UNESP (Bauru), preocupa-se, entre outros, em elaborar um mapeamento

    histrico sobre a formao e atuao de Professores de Matemtica no Brasil. Mais informaes podem serencontradas em: .

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    Figura 01. Fotografia Compsita: a Famlia Wittgenstein18

    A fotografia acima teria sido feita a pedido de Ludwig Wittgenstein por seu amigo e

    fotgrafo Moritz Nhr (1859-1945), em meados da dcada de 1920. Ao observamos um

    retrato, algumas questes podem surgir: "quem a pessoa retratada, a quem essa foto se

    refere?" No entanto, a imagem acima, criteriosamente, ao mesmo tempo uma fotografia de

    todos e de ningum. Expliquemos: essa imagem foi gerada pela sobreposio de quatro

    imagens, quatro fotos independentes, de quatro diferentes pessoas: Ludwig Wittgenstein e

    suas trs irms (pode-se ver na imagem abaixo as quatro imagens que teriam gerado a

    imagem acima).

    18Disponvel em: .

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    Figura 02.Retratos da famlia Wittgenstein utilizados da fotografia compsita apresentada no incio do tpico19.

    Para Wittgenstein, as pessoas de uma mesma famlia se assemelham umas s outras,

    no por um trao essencialmarcante em todos os membros dessa famlia, mas, sim, por

    pequenos grupos de semelhana presentes em uns e no em outros e algumas outras

    semelhanas que ligam este com um terceiro20. A fotografia compsita (Composite Portraits)

    no evidencia uma essncia, um trao geral da famlia, mas os sobrepe, escondendo alguns e

    evidenciando outros, conforme a tcnica utilizada pelo compositor (retomaremos este

    ponto mais frente).

    Wittgenstein no foi o primeiro a compor fotografias e elaborar ideias e conceitos por

    meio delas. Francis Galton (1822-1911), prximo a Charles Darwin e discusso de suas

    ideias e teorias, buscava, na composio de imagens, elementos fsicos caractersticos de

    determinados grupos de pessoas. Galton teria, assim, produzido imagens tpicas de

    determinados grupos, como o sifiltico tpico, o assassino tpico, dentre tantos outros.

    19Nhr, M. Disponvel em: .20

    Esta ideia utilizada para falar sobre como os jogos de linguagem se assemelham, a chamada "semelhana defamlia" (WITTGENSTEIN, 1999).

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    Perseguia-se, ento, reproduzir nas fotos as caractersticas tpicas de cada grupo, a

    possibilidade de se evidenciarem tais traos comuns21. Na fotografia abaixo podemos ver

    algumas Composite Portraitsde estelionatrios:

    Figura 03.Retratos compsitos22

    Certamente, no eram as pessoas vistas acima que circulavam nas ruas cometendo

    estelionato, tampouco algum com tais traos, e exclusivamente por exibir esses traos, seria

    propenso a cometer infraes. Discordaramos aqui de Galton ao enunciar: Eles representam

    no o criminoso, mas o homem que est sujeito a cometer um crime23. (GALTON, 1879, p.

    135, traduo nossa). As imagens acima so manipulaes de Galton que teve que

    desenvolver uma difcil e apurada tcnica para conseguir obt-lasa partir de fotos que, porsi s, j podem ser consideradas uma "manipulao" daquilo que alguns denominariam

    "realidade".

    Aqui retomamos o ponto em que fundamental e preponderante a tcnica utilizada

    pelo compositor, entendendo tcnica como algo amplo que vai desde a realizao da

    fotografia original at a seleo dos grupos de fotos no processo propriamente dito. A tcnica

    utilizada talvez interfira mais significativamente na imagem final encontrada do que os

    prprios sujeitos fotografados. O compositor seleciona as fotos segundo critrios estticospara uma boa composio. Na imagem acima, quatro diferentes imagens se apresentam e,

    21Galton considerado o pai da eugenia, termo que el e prprio criou para significar o estudo dos fatores quepodem alterar melhorando ou empobrecendo as qualidades raciais de geraes futuras. Acreditava natransmisso e aprimoramento gentico dos grupos, seja por seleo natural, como sugeria Darwin, seja por aointencional do homem.22Galton, F. Disponvel em: .23They represent, not the criminal, but the man who is liable to fall into crime. All composites are better looking

    than their components, because the averaged portrait of many persons is free from the irregularities thatvariously blemish the looks of each of them.

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    caso tivssemos agrupado de forma diferente as fotografias originais, produziramos,

    certamente, outras imagens, outros "criminosos tpicos", talvez muito diferentes destes.

    Mas, ento, o que nos dizem as fotografias compsitas? Ou, ainda, o que diz a fico

    criada por ns para discutir o Projeto Minerva?

    Apontamentos Finais

    As imagens em referncia e entendemos aqui nosso texto ficcional como uma

    fotografia compsita, uma imagem certamente no representam, como provavelmente

    queria Galton, a extrao da essncia ou a tipagemde um criminoso, cientista, estudante ou,

    em nosso caso, uma ao governamental de mais de dez anos: o Projeto Minerva.

    No recriamos, em nossa fico, o Projeto Minerva tpico, uma cerzidura que delineia

    contornos rgidos sobre o que era, ou no, esse determinado Projeto. Os temas de pesquisa, ou

    as temticas utilizadas para a sobreposio de fotos, como no caso das fotografias compsitas,

    so disparadores de nossas capacidades de discurso, de seleo de imagens e da explorao de

    critrios, de insero em outros jogos de linguagem: da linguagem radiofnica, do monitor do

    Projeto, de um poltico que deseja extinguir uma ao sem o menor contato pessoal com ela,

    alm de outros mais.Compomos, nas fotos ou no texto, como quem, recorrendo a imagens, gera outra

    imagemou como quem compe uma msica ou um cenrio: articulamos ideias, s vezes j

    existentes, com novas, criamos articulaes entre elas, formando uma nova melodia, com

    notas j conhecidas, mas que, na composio, tornam-se outras.

    Diante da impossibilidade de apreendermos e de aprisionarmos em um texto O Projeto

    Minerva (se julgssemos ele assim existir), bem como de apreender e aprisionar em uma

    imagem o "cientista tpico", o "professor de Matemtica tpico", resta-nos produzir, criar,novas imagens, novos textos ou sonetos que sejam de todosou de ningumnum sentido

    essencial , que nos movimente nas reflexes sobre nossos temas de estudo e sobre nossas

    prticas cotidianas, que transite pelas fotografias, no na instaurao de verdades absolutas,

    mas no movimento de suas produes, nas relaes que podem ser estabelecidas entre umas e

    outras, nas semelhanas de famlia que, mesmo no essencialmente, a todos une, como

    Projetos Minerva.

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    Por fim, as pesquisas, por mais que ofeream temas e assuntos de interesse geral ou

    particular, tratam, sobremaneira, do prprio pesquisador e de sua prtica profissional, dos

    jogos que joga e nos quais capaz de transitar em um movimento de pesquisa, invadindo e

    esgarando fronteiras, evidenciando as multiplicidades de modos de constituio desses

    objetos e, em nosso caso, a impossibilidade delinear "o objeto em si", como algo "para alm

    da linguagem".

    Referncias e bibliografia

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    Submetido em maio de 2015

    Aprovado em setembro de 2015