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Produção: Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária – Unidade de Educação Superior Organização e edição: Roseli Salete Caldart Desenho de capa: “Símbolo da Turma José Martí” - arte construída pelos estudantes do curso de Pedagogia Iterra/Uergs com a participação da educadora Ir. Elda Broilo. Projeto gráfico: Diagramação: Todos os direitos reservados ao ITERRA. 1a edição: abril de 2007. ITERRA Rua Princesa Isabel, 373 Cx Postal 134 95 330 000 Veranópolis/RS/ Brasil Fone / fax: 54 3441 1755 Endereço eletrônico: [email protected]

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Sumário

Apresentação

Parte 1: Intencionalidades na formação de educadores do campo: reflexões desde a experiência do curso “Pedagogia da Terra da Via Campesina”

Parte 2: Memória Cronológica da Turma José Martí

Parte 3: Memorial de Aprendizados

Parte 4: Leitura da Turma José Martí sobre seu processo formativo

Sobre o Projeto Político-Pedagógico do Curso Sobre a Construção da Coletividade

Anexos

Lista de Formandos e Formandas da Turma José Martí Canção da Turma José Martí

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Apresentação

Este Caderno retoma a temática da formação de educadores e educadoras do campo nos cursos de “Pedagogia da Terra” vinculados aos Movimentos Sociais, já abordada no número 6 dos Cadernos do ITERRA de dezembro de 2002.1 Desta vez o objeto será uma prática específica desenvolvida pelo Iterra, através de sua Unidade de Educação Superior (UES), em convênio com a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, tendo como referência principal o processo formativo da primeira turma desenvolvida neste convênio, a “Turma José Martí”, que realizou seu curso de graduação em Pedagogia, chamado por nós de “Pedagogia da Terra da Via Campesina”, no período de março de 2002 a setembro de 2005 na sede do Iterra em Veranópolis, Rio Grande do Sul.

A organização do Caderno tem como base textos escritos pelos estudantes da Turma José Martí durante as últimas etapas de curso e que remetem a um conjunto (vasto e diversificado) de registros feitos sobre o processo educativo vivenciado2 e também às intencionalidades pedagógicas do curso, inclusive àquela que provocou a existência destes registros e da produção escrita deles decorrente.

Os textos têm dois recortes principais: as narrativas produzidas pela turma sobre como percebeu e buscou interpretar a totalidade de sua experiência formativa durante este período e algumas reflexões sobre as intencionalidades pedagógicas deste processo. Articuladas, as diferentes produções que compõem este Caderno representam uma forma de reconstituição do projeto político-pedagógico construído/implementado ao longo de oito etapas de curso.

A escolha deste desenho de organização para o Caderno levou em conta que um dos aspectos destacados pelos textos da Turma José Martí foi o de que houve uma forte intencionalidade do curso em provocar “a reflexão sistemática sobre o processo educativo que ia sendo vivenciado” e que os registros e as produções escritas pessoais e coletivas a partir deles foram uma “ferramenta fundamental para garantir esta reflexão”. Logo, tomar estas produções como objeto de socialização agora é um modo de retomar ou de provocar uma reflexão a posteriori sobre esta experiência de formação de educadores.

Também consideramos que não seria possível nos limites de uma publicação como esta abranger a narrativa detalhada e a análise do conjunto das dimensões que acabaram compondo o processo/projeto pedagógico deste curso. Esta tarefa segue como desafio para todos os sujeitos envolvidos na experiência; e de alguma forma este trabalho continua nas práticas que este processo específico ajudou a desencadear.

Esta publicação tem, então, três objetivos combinados: o primeiro é o de valorizar a produção escrita e o esforço de reflexão dos estudantes, reconhecendo nestes textos uma produção de conhecimento importante, integrada ao movimento formativo da práxis. O segundo objetivo é socializar, pelo conteúdo das narrativas, uma experiência de curso que buscou se somar no desafio

1 Este número foi organizado pelo Coletivo de Coordenação do Setor de Educação do MST e divulgou textos sobre cinco turmas de “Pedagogia da Terra” desenvolvidas em diferentes parcerias e regiões do país; foram textos solicitados a estudantes de cada turma com o objetivo de registrar e socializar o percurso e as características principais das experiências em andamento (ou já concluídas) há mais tempo. Há também neste Caderno um texto mais geral que busca chamar a atenção para esta identidade de formação em construção: como diferentes cursos, com distintas bases formais de currículo, com diferentes sujeitos humanos, mas com um mesmo sujeito coletivo, o Movimento Social, passam a se vincular desde um nome simbólico comum: “Pedagogia da Terra”. 2 Que foram organizados e se encontram disponíveis para consulta no Centro de Documentação “Haydée Santamaría Cuadrado” do Iterra.

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mais amplo de ressignificar a formação profissional dos pedagogos, e mais amplamente dos educadores, fazendo isso desde o reconhecimento da especificidade do campo, de seus sujeitos, e das experiências educativas de Movimentos Sociais que influenciam sua dinâmica atual e que estão empenhados na construção da Educação do Campo.

E o terceiro objetivo desta publicação é chamar a atenção (de nós próprios e de possíveis interlocutores que possamos ter pela leitura deste Caderno) para a importância do registro e da sistematização das práticas na reflexão dos sujeitos de cada processo pedagógico e para o diálogo entre elas. Sem registros não há análise; e sem análise não há como atingir o patamar necessário às transformações que buscamos e à formação humana a que temos direito.

No mesmo tempo em que apresentamos este Caderno há uma segunda turma deste curso e deste convênio em andamento, a “Turma Margarida Alves”, que já se encaminha para sua última etapa de curso em 2007 e que também está produzindo suas narrativas sobre o processo formativo vivenciado. Também nesse período o Iterra se prepara para o início de uma nova experiência, de um novo curso, uma Licenciatura em Educação do Campo, que vai desenvolver em parceria com a Universidade de Brasília e com apoio do Ministério da Educação, a partir do segundo semestre deste ano e também envolvendo as organizações da Via Campesina Brasil. Nosso trabalho de formação de educadores, portanto, continua; e os desafios de uma prática mais reflexiva, também.

O Caderno foi organizado em quatro partes. Na primeira delas há um texto que informa brevemente sobre o curso e sua primeira turma, buscando também construir uma chave de leitura para esta experiência formativa através de algumas reflexões sobre o perfil do pedagogo da terra e as intencionalidades do processo de educação desenvolvido.

Nas partes seguintes a palavra está com a Turma José Martí. Socializamos algumas de suas produções escritas que integraram a intencionalidade do registro e da leitura do movimento formativo do curso. A segunda parte divulga um dos produtos finais do processo de construção coletiva da “Memória da Turma”. A terceira traz uma amostra dos Memoriais de Aprendizado escritos por educandos e educandas na etapa final do curso. E a quarta parte foi composta com alguns textos que dão conta da leitura/análise que a turma fez sobre seu processo formativo.

Em anexo trazemos a lista de formandos e formandas da Turma José Martí, os principais autores deste Caderno e a letra da canção que criaram para simbolizar seu compromisso profissional e militante.

Boa leitura e boa reflexão a todos e todas!

ITERRA /Unidade de Educação Superior Veranópolis, abril de 2007.

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Parte 1

Intencionalidades na formação de educadores do campo: Reflexões desde a experiência do curso “Pedagogia da Terra da Via Campesina”

Roseli Salete Caldart3

“…Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido; ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave

para tudo o que veio antes e depois.”

Walter Benjamin

Este texto é um exercício de memória e projeto. Relembra um processo para construir uma chave de leitura sobre seus acontecimentos e resultados e ao mesmo tempo para a projeção de sua continuidade. O processo rememorado tem como objeto a formação de educadores do campo desenvolvida através de um curso de Pedagogia. Seu projeto político-pedagógico específico o integra a um conjunto de práticas identificadas hoje pelo nome de “Pedagogia da Terra”.

Nossa ferramenta de rememoração foi a leitura de escritos produzidos durante o acontecer da experiência de uma turma em particular: a “Turma José Martí”; em uma especificidade de desenho organizativo e pedagógico de curso: o do “Pedagogia da Terra da Via Campesina”. Foram lidas produções da turma, da coordenação do curso e os memoriais de aprendizado construídos pelos estudantes na última etapa; textos de registro e textos de memória reflexiva do processo formativo vivenciado.

Duas interrogações principais orientaram nossa leitura e escrita, e elas estão referenciadas em algumas reflexões desta década de construção prático-teórica da Educação do Campo. Foram as mesmas perguntas que orientaram um exercício semelhante feito pela própria Turma José Martí nas etapas finais de seu curso. A primeira interrogação é sobre o perfil de formação do pedagogo da terra, do educador do campo, que estamos construindo: quais os traços mais significativamente trabalhados neste curso; que perfil orienta e se projeta desde esta experiência formativa. A segunda interrogação diz respeito às intencionalidades do processo de formação: como se chega a produzir este perfil, quais foram as principais estratégias pedagógicas deste processo; como se forma um educador do campo.

Esta reflexão integra um duplo desafio coletivo. O primeiro foi assumido pela Turma José Martí e pela coordenação deste curso: através da reconstituição do processo “passar a limpo” o projeto político-pedagógico da “Pedagogia da Terra da Via Campesina”, pensando em próximas turmas, novas parcerias e também em outros cursos. O segundo desafio é da Educação do Campo: avançarmos na reflexão teórica sobre seu projeto educativo e as práticas de formação de educadores que podem ajudar a constitui-lo. Nesta perspectiva, embora este texto inclua elementos de narrativa, seu objetivo não é contar a experiência vivenciada por esta turma, mas sim abstrai-la.

Escolhemos focalizar neste texto as questões do perfil de formação e das intencionalidades do processo formativo porque elas foram identificadas, junto com os educandos e as educandas

3 Da Unidade de Educação Superior do Iterra e Coordenação do Curso de Pedagogia. Texto concluído em março de 2007.

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que vivenciaram esta experiência particular, como estruturantes do movimento teórico-prático de construção de um curso desta natureza.

O percurso de formação da Turma José Martí foi uma experiência densa, sobretudo pela intensidade das vivências educativas; foi envolvente como são os processos de formação/transformação humana. Rememorar este percurso e pensar sobre ele, ainda que não sobre sua totalidade, pouco mais de um ano depois de celebrarmos a “formatura” destes estudantes é também uma “experiência” que “nos toca”, e pode ajudar a nos formar e transformar. Como na interpelação que nos faz Walter Benjamin em suas reflexões sobre a memória, “...somos tocados por um sopro de ar respirado antes”, “...escutamos ecos de vozes que amadureceram” e o sentimento é de que este apelo do passado não pode ser rejeitado impunemente (apud Arroyo, 2004, pág. 313).

O texto segue estruturado em três tópicos. No primeiro, mais breve, apresentamos algumas informações básicas sobre nosso objeto de reflexão: elementos da constituição e do desenho organizativo do curso que dão conta da materialidade desde a qual foi desenvolvida a experiência formativa da Turma José Martí. No segundo tópico discutimos o perfil do pedagogo da terra desde a reflexão desta prática. E no terceiro tratamos das intencionalidades que esta experiência apontou como fundamentais na perspectiva de formação por ela assumida.

Sobre o curso, a turma e a construção do processo

A experiência de formação de educadores do campo que nos serve aqui de referência se constituiu institucionalmente como uma “turma especial” de um curso de graduação em Pedagogia da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), aprovado e reconhecido pelo Conselho Estadual de Educação sob o título de “Pedagogia Anos Iniciais do Ensino Fundamental: Crianças, Jovens e Adultos”. Esta turma especial foi realizada através de um convênio entre o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA) e a Uergs, com o apoio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, (PRONERA/INCRA), no período de março de 2002 a setembro de 2005.4

A realização pela Uergs de turmas especiais de graduação para estudantes vinculados a Movimentos Sociais foi acordada entre as organizações da Via Campesina Brasil (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB, Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA, Movimento das Mulheres Camponesas - MMC, Pastoral da Juventude Rural - PJR e Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD)5 e a primeira reitoria da Universidade, durante o processo de sua criação, entre 2001 e 2002.

O Iterra, vinculado ao trabalho de formação de educadores para os assentamentos de Reforma Agrária do MST desde 1995, foi a instituição educacional escolhida pelos Movimentos Sociais para formalizar a parceria com a Uergs na realização do curso de Pedagogia. 6

Esta constituição originária deu ao curso um segundo “nome próprio”: ele foi tratado pelos seus principais sujeitos como “Pedagogia da Terra”, para indicar uma continuidade em relação ao

4 Deste mesmo convênio de Pedagogia, há uma segunda turma em andamento no ITERRA, a Turma “Margarida Alves”, que iniciou o curso em 2003 e deverá conclui-lo em junho de 2007. 5 O MTD não integra a Via Campesina, mas participou desta e de outras de suas iniciativas. 6 Há outra parceria no mesmo formato entre a Uergs e a Fundação de Desenvolvimento, Educação e Pesquisa da Região Celeiro (FUNDEP), feita para realização do Curso de Desenvolvimento Rural e Gestão Agroindustrial, também com duas turmas.

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conjunto de cursos que desde 1998, em diferentes lugares, com diferentes sujeitos, particularmente os educadores e as educadoras Sem Terra, vêm se construindo como uma identidade de formação.7 Também foi aos poucos identificado como “Pedagogia da Terra da Via Campesina”, para afirmar uma novidade desta experiência em particular, que foi a da participação de diferentes organizações camponesas na construção de um processo formativo desta natureza e, conseqüentemente, no desenho de novos traços no perfil do educador do campo e no modo de conduzir sua formação.

O currículo do curso de Pedagogia da Universidade foi adequado para uma organização em oito etapas intensivas, com tempos e espaços alternados entre Universidade (Tempo Escola, em torno de 50 dias letivos) e locais de trabalho/militância dos estudantes (Tempo Comunidade, em torno de 90 dias).

O Tempo Escola do curso acontece na sede do Iterra em Veranópolis, Rio Grande do Sul, compartilhando o espaço físico e pedagógico do Instituto de Educação Josué de Castro (IEJC), escola de educação básica de nível médio e de educação profissional mantida pelo Iterra.

A primeira turma de estudantes deste curso, também a primeira a iniciar o curso na Uergs, decidiu já na primeira etapa que queria ser chamada de “Turma José Martí”, em homenagem a este pensador revolucionário latino-americano. Seus integrantes têm algumas características comuns. As principais talvez sejam duas: a de que todas as pessoas tiveram em sua base de formação processos produtivos próprios do campo e a de que foram indicadas para o curso pela sua participação nas Organizações e Movimentos Sociais que constituíram a parceria com esta Universidade.

Concluíram o processo do curso 45 estudantes (10 homens e 35 mulheres) originários de comunidades rurais dos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo. Quando começaram o curso sua média de idade era de 22 anos, incluindo pessoas de 17 a 40 anos, com tempos de envolvimento nos Movimentos Sociais também diferentes: de menos de um mês até pouco mais de 15 anos.

Educadores, educadoras e docentes que trabalham nas turmas especiais deste convênio são originários de diferentes instituições. No convênio, garantir os professores é uma atribuição da Universidade, mas desde o início instituímos um acordo de indicação conjunta, que aos poucos foi assumindo o caráter de negociação, facilitada e dificultada pelo fato de que a Uergs não tinha no período de realização desta primeira turma seu corpo docente concursado e nem dispunha de professores para todos os componentes previstos na base curricular do curso. O Iterra participa da escolha dos docentes a cada etapa, e isto tem significado também a possibilidade de incluir educadores da rede nacional de intelectuais vinculados ao debate dos Movimentos Sociais e da Educação do Campo.

As relações de gestão deste curso são complexas e por isso mesmo potencialmente formadoras; há as relações entre a Uergs e o Iterra; entre a Uergs e os estudantes e entre o Iterra, a escola e os estudantes; há também as relações entre as diferentes organizações da Via Campesina; entre o Iterra, a Uergs e estas organizações; há ainda as relações entre educadores e educandos, entre os estudantes de diferentes turmas que estudam na escola no mesmo período e entre os estudantes da própria turma. Particularmente a situação de realizar um curso de diferentes Movimentos Sociais em uma instituição vinculada a um movimento específico acabou se tornando um objeto privilegiado para desenvolver uma formação na perspectiva de construção e enraizamento do projeto de Educação do Campo da Via Campesina.

O projeto político-pedagógico do curso para esta turma teve a marca da construção processual, exatamente pelas circunstâncias objetivas das parcerias e do processo de implantação da própria Universidade.

7 Uma abordagem deste percurso pode ser encontrada no texto “Pedagogia da Terra: formação de identidade e identidade de formação” (Cadernos do ITERRA, 2002).

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O Iterra participou das discussões que serviram de base para a elaboração do projeto do curso regular de Pedagogia da Uergs. A equipe de implantação da Universidade promoveu seminários no segundo semestre de 2001 com a participação de diferentes segmentos da sociedade, incluindo representação de Movimentos Sociais e Movimento Sindical do Rio Grande do Sul. As experiências de diferentes Universidades que desenvolvem cursos de Pedagogia também foram consideradas.

Não houve tempo para uma discussão institucional (na ou com a Universidade) sobre o perfil específico do profissional da Educação do Campo vinculado aos Movimentos Sociais e que exigências de adequação curricular isso poderia implicar. As organizações entenderam que seria melhor apresentar sua demanda específica já no processo de implantação do curso e realizar imediatamente a primeira turma. As referências teóricas e políticas predominantes no debate da base curricular8 combinadas com a indicação de um currículo flexível a diferentes demandas, sinalizavam a abertura necessária para esta construção, facilitada pela coordenação pedagógica conjunta entre as instituições e a realização do curso no espaço físico do Iterra.

Algumas definições da Universidade na montagem da primeira base curricular do curso foram importantes para ajudar no desenho do processo formativo que construímos depois em cada turma do Iterra. Destacamos: a carga horária reservada para componentes de formação geral (abordagem histórico-sociológica e filosófica) e de estudos de teoria pedagógica; uma pluralidade de abordagens teóricas, mas tendo um fio condutor de interpretação da realidade e de visão de educação, explicitado na própria escolha dos componentes curriculares e nas ementas propostas; a ênfase na pesquisa, como processo desenvolvido ao longo do curso e integrador de outros componentes curriculares; estudos eletivos cujo foco temático ou de práticas poderia ser definido a cada etapa em que fossem oferecidos, de acordo com as demandas do processo de formação; abordagem da Educação de Jovens e Adultos como parte do projeto do curso e feita na perspectiva da Educação Popular e não de recorte necessariamente escolar. 9

A especificidade do projeto político-pedagógico do curso como “Pedagogia da Terra da Via Campesina” foi compreendida e desenhada no processo, através da intencionalidade no planejamento de cada etapa. Este trabalho envolveu coordenação do curso, educandos, educadores e o colegiado das organizações da Via Campesina. As decisões foram registradas nos documentos que orientaram o cotidiano pedagógico das etapas, no Tempo Escola e no Tempo Comunidade.

Por isso na introdução deste texto fizemos menção ao desafio de “passar a limpo” o projeto do curso, uma vez que ele foi elaborado passo a passo, ratificando decisões, retificando caminhos, construindo estratégias, criando e recriando processos. Uma leitura atenta dos registros deste percurso nos permite perceber transformações que foram sendo feitas no seu projeto original e nos interroga sobre o diálogo entre a especificidade dos sujeitos da Educação do Campo e as diferentes concepções de formação de educadores e de desenho do curso de Pedagogia.

8 Especialmente o referencial do materialismo histórico-dialético e da educação popular e a ênfase no vínculo da Universidade com projetos de desenvolvimento regional. 9 A partir da mudança de gestão da Uergs, que aconteceu em 2003, foram feitas algumas alterações na base curricular do curso ao longo da realização das etapas; algumas por mudança de concepção de formação e outras para atender a exigências de reconhecimento do curso. Um exemplo de alteração que gerou muitas tensões no processo da Turma José Martí foi a do entendimento da EJA passar a ser estritamente escolar e apenas no recorte da alfabetização em anos iniciais do ensino fundamental. Outra foi a da retirada da pesquisa como processo ao longo do curso ficando reduzida à elaboração de um trabalho de conclusão apenas nas duas últimas etapas. Neste caso conseguimos manter no Iterra o processo tal como tínhamos desenhado junto com a primeira reitoria da Universidade. E uma terceira alteração importante foi a retirada dos Estudos Eletivos, convertendo-os em outras disciplinas.

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Sobre o Perfil do Pedagogo da Terra, do Educador do Campo

Nas discussões originárias do curso de Pedagogia da Uergs a questão principal foi a do lugar de atuação do pedagogo: prepará-lo para atuar em que espaços educativos. O entendimento que predominou foi o de formar um pedagogo capaz de atuar tanto nos espaços escolares como em outros espaços de educação, incluindo aqueles específicos da dinâmica de formação dos Movimentos Sociais. Ou seja, participando do forte debate sobre o curso que havia na época (e que continua), defendemos a posição de formar o pedagogo como um profissional da educação, entendida como formação humana; e isto pensando inclusive no objetivo de alargar sua atuação na escola.

Além de garantir abordagens teóricas na direção de uma concepção mais alargada de educação, o projeto do curso sinalizou para uma abertura objetiva às práticas pedagógicas não escolares, especialmente ao incluir no seu foco de profissionalização a Educação de Jovens e Adultos. O que não se chegou a discutir mais detidamente naquele momento de concepção do curso foi como se combinaria a ênfase na pedagogia escolar, dada pelas próprias exigências legais de formatação do currículo, com a decisão de formar também para atuação em outros processos educativos.

Começamos a construção da “arquitetura” específica do “Pedagogia da Terra” orientados por esta discussão inicial e por algumas interrogações que são próprias de seus sujeitos coletivos: o que leva Movimentos Sociais Camponeses a colocar alguns de seus integrantes em um curso de Pedagogia? O que esperam de sua formação? Que concepção de educação estes Movimentos vêm produzindo em suas práticas de luta social e organização coletiva que podem ajudar a explicar a especificidade identitária da Pedagogia da Terra? E como um curso como este poderá ajudar no avanço da Educação do Campo?

Boa parte da “engenharia” do curso já estava previamente definida pela sua base curricular e as exigências formais da Universidade e pelas características do ambiente educativo e da forma pedagógica da escola em que o curso foi realizado.10

O desenho prático deste perfil foi feito ao longo das etapas através das decisões pedagógicas tomadas e as intencionalidades construídas no diálogo com as organizações, com a Universidade e com a turma de estudantes. Da reflexão que acompanhou esta construção, e especialmente a partir das discussões de reconstituição deste processo pedagógico feitas com a Turma José Martí ao final do curso, é possível identificar algumas concepções-mestras que foram demarcadas em relação ao debate do perfil do pedagogo, e especificamente na sua identidade de Pedagogo da Terra, dos Movimentos Sociais, da Educação do Campo. São as seguintes:

1a) O objeto central da formação/profissionalização do pedagogo é a condução de processos pedagógicos. É nesta arte e ciência que se prepara para atuar. E processos pedagógicos entendidos como processos de formação do ser humano, em suas múltiplas dimensões, que acontecem desde uma intencionalidade e vinculados a um projeto de sociedade, de humanidade.

Mas o que mesmo significa “conduzir processos de formação humana”? O que são processos? Quais são estes processos e o que quer dizer este “conduzir” em nosso horizonte que é o da emancipação social e humana? Qual a especificidade, do ponto de vista educativo, dos processos formadores próprios da produção da vida no campo? Dos processos formativos vivenciados pela participação dos sujeitos em Movimentos Sociais? Do processo educativo próprio da escola? De uma escola do campo? E que aprendizados essa condução pedagógica exige/produz?

10 Uma síntese sobre a forma pedagógica desta escola pode ser encontrada no texto “Instituto de Educação Josué de Castro: características gerais da organização escolar e do método pedagógico”, 2006.

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Mais importante que aprender as respostas é ser provocado/educado para formular estas perguntas; de modo estrutural em relação à sua tarefa, e a cada situação, a cada reflexão, acumulando elementos teórico-práticos que permitam uma atuação crítica em práticas educativas concretas.

Há, no entanto, dois elementos de compreensão que são fundamentais para constituir este objeto de formação: um deles diz respeito à idéia de processo como “sentido primeiro da pedagogia”; entendendo que “a formação do ser humano se torna possível ao longo do tempo, ao longo de um processo educativo”. É ela que leva a então se interrogar: mas como se educa, como se transforma um ser humano? (Arroyo, 2004, pág. 226). A outra compreensão necessária se refere à palavra conduzir, entendida não como a ação de uma pessoa que tenta conformar o destino formativo da outra, mas sim como intencionalidade e diretividade na atuação coletiva sobre as circunstâncias objetivas em que determinado processo educativo acontece e que permite a cada pessoa fazer escolhas que vão desenhando sua ação/formação/transformação.

2a) Um pedagogo da terra se orienta por uma visão alargada de educação, de pedagogia. Esta visão que a vincula aos processos de formação do ser humano e que permite ao pedagogo, à pedagoga, alargar também sua tarefa, seu horizonte de trabalho, suas perguntas, complexificando e tornando ainda mais fascinante o desafio de sua formação.

Um dos primeiros estudos desencadeados pelo curso com os educandos e as educandas da Turma José Martí (iniciou na primeira e continuou de diferentes formas até a quinta etapa) foi sobre as matrizes de formação humana. Foram diferentes atividades que provocaram a reflexão sobre como se forma o ser humano; problematizando concepções de educação, perguntando sobre que processos formadores ou que dimensões destes processos podem ser intencionalizados na perspectiva do projeto societário que vem sendo construído pelos Movimentos de que fazem parte. Este conjunto de estudos acabou demarcando uma base de compreensão sobre educação; talvez por isso apareça destacado na maioria dos memoriais de aprendizado da turma.

Neste processo os sujeitos da Pedagogia da Terra começaram a se interrogar sobre até que ponto as ações desenvolvidas pelo Movimento Social que integram estão sendo educativas; sobre que transformações os processos de luta ou as relações de trabalho estão produzindo nas pessoas e no próprio sujeito coletivo que elas passam a constituir; sobre que conhecimentos e que valores estas ações estão ajudando a produzir; sobre como podem, afinal, tornar-se educadores em sua atuação cotidiana no Movimento.

Ao fazerem este tipo de reflexão, os pedagogos da terra estão retomando as discussões/interrogações de origem da pedagogia: “a polis é ou não é educativa?” “como se forma o ser humano, o cidadão da polis?” questões que foram se perdendo nos projetos liberais de educação (Valle, 2002; Arroyo, 2004). Mas as retomam de um jeito novo, mais radical, porque fazem a discussão sobre como formar aqueles seres humanos que foram excluídos da polis.

Nosso curso trabalhou pela compreensão de que processos intencionais de educação/formação das pessoas podem acontecer em diferentes lugares sociais, diferentes situações, diferentes tempos da vida. Implicam em um mesmo desafio que é o de transformação do ser humano ou sua formação mais plena, mas têm especificidades, nas “pedagogias”, nos métodos, nas didáticas próprias a cada sujeito, aos tempos de formação, à materialidade de cada situação.

Buscamos ser contraponto a dois reducionismos, produtos da visão moderna/liberal que tem predominado nos meios educacionais e na visão sobre formação de educadores: o de que educação é igual à escola e que escola é igual a ensino, sendo a dimensão da “instrução” a única para a qual efetivamente se precisa preparar o educador; e de preferência uma instrução que seja apenas instrumental.

Estes reducionismos são na realidade armadilhas; construções sociais com objetivos políticos perversos. O capitalismo se sustenta através de um projeto educacional/cultural que vai

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muito além da escola e da dimensão do conhecimento (Mészáros, 2005); e é este projeto maior que a sociedade não coloca em discussão quando determina que os profissionais da educação somente se preocupem e se ocupem consciente e coletivamente (quando por exemplo se encontram para atividades de formação) de conteúdos e métodos de ensino, ou mais reduzidamente ainda, de instruções de recorte apenas cognitivo.

Nos Movimentos Sociais já há um certo acúmulo teórico sobre esta visão mais alargada de educação, produzido talvez pela força das experiências formadoras vivenciadas por estes sujeitos na dinâmica de sua organização. Embora lutem pelo direito à escola e valorizem muito a especificidade do processo educativo que pode acontecer através dela, aos Movimentos parece mais difícil conceber a escola como o lugar supremo de educação; o único para o qual parece justo formar profissionais. Não é isso que vivem em sua realidade; não foi a escola que lhes garantiu o protagonismo social que conquistaram. Não é esta a inspiração que trazem da “Pedagogia do Oprimido”; não é esta a “Pedagogia do Movimento” que buscam construir.

Por isso a Educação do Campo vinculada aos Movimentos Sociais, ao mesmo tempo em que tem a escola como objeto central de sua luta por políticas públicas, tensiona esta concepção “escolacentrista” que absolutiza o papel da educação escolar ou toma a escola como referência central para pensar qualquer processo educativo. A centralidade da reflexão pedagógica da Educação do Campo está na dimensão educativa da práxis social, retomando a reflexão sobre a força formadora do trabalho, da cultura, da luta social, como matrizes educativas do ser humano e que não podem deixar de ser intencionalizadas como práticas pedagógicas em um projeto educacional que se pretenda emancipatório, e por isso mesmo, omnilateral.

Mas a materialidade potencialmente formadora destas práticas sociais não tem como ser reproduzida/vivenciada integralmente na escola; e nem deve sê-lo. A escola precisa integrar-se a uma totalidade formadora mais ampla, vinculando seus processos de socialização, de produção de conhecimento, de formação ética a outras práticas educativas.

Da mesma forma a luta dos Movimentos Sociais pela democratização do acesso ao conhecimento, às ciências, às tecnologias tem importância estratégica na formação dos sujeitos capazes de construir alternativas para um projeto mais justo e sensato de desenvolvimento de campo e de país. Mas esta luta é, pela sua própria natureza, também uma crítica a um outro reducionismo que tem predominado nas discussões sobre educação e que foi denominado pelos seus críticos de “cognitivismo” e “cientificismo” porque absolutiza a dimensão intelectual do conhecimento e a ciência, ou algumas formas de conhecimento e de ciência, tentando desvinculá-las da materialidade de sua construção histórico-social.

Na visão da Educação do Campo esta materialidade precisa ser explicitada e eticamente assumida para que o campo possa ser objeto de produção do conhecimento necessário às transformações buscadas. Também para que se combine com a democratização de outras dimensões da cultura igualmente importantes na construção deste novo projeto social, seja no campo dos valores, das artes ou da chamada “cultura universal”, seja no próprio campo da sabedoria popular sobre diferentes questões do mundo do trabalho e da vida social como um todo.

Este não é um debate específico da Educação do Campo; é um dos grandes debates do chamado “mundo moderno”, motivado pela superficialidade de concepções a que estes reducionismos estão levando e ao conseqüente “empobrecimento da vida social”, pela própria insignificância que a reflexão sobre as grandes questões passa a ter nela (Valle, 2006). E ainda que este seja um debate crucial para a teoria pedagógica, para as práticas de educação (aliás, talvez por isso mesmo), parece que precisa continuar fora do horizonte de formação dos educadores, das educadoras, embora na prática o oriente.

Estes reducionismos que predominam na sociedade também estão muito arraigados entre nós, na Universidade e nos próprios Movimentos Sociais. No caso do nosso curso este tipo de discussão foi recorrente e a construção prática do perfil do pedagogo dela desdobrada foi por isso

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mesmo repleta de tensões, que afinal foram avaliadas como muito importantes para que educandos e educadores fossem clareando e firmando concepções de educação, de pedagogia.

Embora estas questões não sejam próprias da nossa especificidade, o que talvez seja específico é a circunstância objetiva, a identidade própria dos sujeitos destes cursos, que exigem mais escancaradamente esta ampliação da visão de educação: que sentido teria pensar em uma Pedagogia da Terra centrada na docência ou na instrução? Acaso o grande problema da Educação do Campo está na redefinição de conteúdos e métodos de ensino? Pode até haver problemas nisso também, mas considerar que esta é a questão que justifica a especificidade é mais do que um reducionismo; é um desvio de sua concepção originária.

3a) Um pedagogo da terra atua em diferentes espaços, circunstâncias e tipos de processos educativos. Em nossos cursos é comum a presença de pessoas que trabalham em diferentes espaços de formação. E os Movimentos Sociais esperam que um curso como esse possa preparar sujeitos capazes de coordenar processos de formação, mas também de desencadeá-los, ainda que em situações desfavoráveis ou não organizadas com este objetivo principal. Por isso estes mesmos estudantes estão sendo formados também para ser militantes de organizações coletivas comprometidas com projetos de transformação social.

Isto quer dizer que se espera de um pedagogo da terra que esteja capacitado a organizar e intencionalizar processos de formação que podem acontecer tanto em uma mobilização de luta social como em atividades de organização de comunidades camponesas; tanto na coordenação pedagógica de um curso de formação de educadores como em uma escola de educação básica; tanto com crianças como com jovens, ou com adultos ou com idosos. E preferencialmente sabendo como fazer as lutas necessárias para implementar o projeto educativo do Movimento Social, da Educação do Campo.

A compreensão teórica sobre como garantir isso num curso de Pedagogia não parece tão difícil e de certa forma ela foi se tornando comum entre os sujeitos envolvidos na condução do processo dessa turma: é preciso trabalhar com diferentes processos formativos e ao trabalhar a escola e a docência ressignificá-las como dimensões de uma totalidade mais ampla, que não pode ser menos do que a formação omnilateral do ser humano.

Na prática, porém, algumas escolhas feitas e seus condicionamentos evidenciam como este equilíbrio não se configura assim tão simples. Um exemplo disso, em nosso caso, foram os estágios. A Universidade não reconheceu como práticas pedagógicas as que não fossem estritamente escolares e que incluíssem a docência. Organizamos também outros tipos de práticas (no velho estilo de atividade “extra-curricular”), mas inegavelmente houve uma ênfase nas práticas escolares e docentes.

Ao final da última etapa, na discussão da turma, alguns educandos nos chamaram a atenção de que do ponto de vista da concepção do curso isso acabou sendo uma incoerência: “não conseguimos fazer o movimento completo da formação do Pedagogo do Movimento”,11 à medida que não houve a mesma intencionalidade (carga horária, acompanhamento, estudos pedagógicos e didáticos específicos) para práticas educativas “não escolares”; ou seja, a avaliação foi de que a visão de estágio que acabou prevalecendo nas regras da Universidade é extremamente reducionista no contraponto com a concepção de educação afirmada (na teoria e na prática) pelo curso.

11 Esta afirmação é de Joceli Andrioli, estudante do curso em seu Memorial de Aprendizados, pág. 5. Veranópolis, setembro de 2005. A expressão “Pedagogia do Movimento” está sendo usada no sentido de uma práxis pedagógica que tem como origem e referência os Movimentos Sociais e um projeto de transformação da sociedade e do ser humano. “A Pedagogia do Movimento se constitui na historicidade das ações (o jeito que o Movimento vai construindo para formar um sujeito coletivo e educar as pessoas que dele participam) e das reflexões pedagógicas dos Movimentos Sociais, cuja dinâmica aciona ou põe em movimento diferentes matrizes de formação humana, entre as quais, e com centralidade, a matriz pedagógica combinada da luta social e da organização coletiva” (Caldart, 2005).

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Por outro lado, educandos e educadores que acompanharam mais diretamente o desenvolvimento das práticas de estágio, não ficaram satisfeitos com seus resultados porque faltou tempo, faltaram talvez estratégias específicas, para vivenciar uma forma de docência também mais coerente com as discussões/convicções pedagógicas construídas ao longo do curso. A novidade da entrada em sala de aula para muitos exigia um tempo de maturação maior para que este ciclo se completasse.

Já houve quem tenha proposto que para resolver esta tensão o melhor seria distinguir focos de profissionalização/formação em nossos cursos de Pedagogia da Terra: turmas que se centrem na formação pedagógica escolar; turmas se centrem na formação do “pedagogo social” para atuação em outros espaços educativos próprios à realidade do campo e de atuação dos Movimentos Sociais.

Esta discussão foi feita pela Turma José Martí em alguns momentos do curso; a síntese feita foi de que embora essa fosse uma alternativa aparentemente facilitadora do processo, do ponto de vista da formação poderia ser empobrecedora porque predisporia a reducionismos; diferentes, mas reducionismos; a realidade é complexa e os processos formativos para uma atuação e outra, pelas próprias tensões que implicam no cotidiano do curso, acabam chamando a atenção para esta concepção mais alargada de educação e para a intersecção de aspectos que são importantes no conjunto da formação pedagógica. Por isso estas tensões não devem ser eliminadas, e também porque elas estão no debate educacional mais amplo de que fazemos parte.

4a) Um pedagogo da terra é um profissional preparado para “ocupar” a escola transformando-a na perspectiva da Educação do Campo. A escola não é então apenas uma das suas possibilidades de atuação profissional. Ela é um dos focos necessários de sua formação pedagógica, pela importância educativa que a escola tem no período histórico em que vivemos e no tipo de formatação de nossas sociedades. Não é por acaso que as lutas do movimento pela Educação do Campo dão a ela centralidade; a escola a que têm (ou não têm) acesso as famílias trabalhadoras do campo são emblemáticas do papel que a sociedade capitalista brasileira atual confere ao campo e aos sujeitos dos seus processos produtivos. A questão é ocupar-se da escola sem absolutizá-la ou deixar de vê-la em perspectiva.

Mas o que os Movimentos Sociais esperam do pedagogo da terra em relação à escola? Esta é uma questão que também foi bastante discutida pela Turma José Martí e que tem diferentes nuances de compreensão nas organizações que a compõem. Certamente uma expectativa de consenso é que possam ajudar a ressignificá-la, como instituição e como práticas, de modo a que se integre a um projeto/processo educativo bem mais amplo que sua “especialização” permite ver, que é o da práxis de construção de um novo projeto de desenvolvimento para o campo, que signifique um novo lugar para o campo em um novo projeto de país, com um novo lugar para sua classe trabalhadora.

Isso significa, desde a nossa particularidade, provocar que a “Pedagogia do Movimento” ocupe/se ocupe da escola, fazendo nela as transformações necessárias, mas desde uma compreensão mais rigorosa sobre a especificidade do processo educativo que pode acontecer através dela e nos diferentes tempos da vida.

Trata-se de algo mais do que estar preparado para a docência, mas que também passa por ela, daí já como uma “humana docência” (Arroyo, 2004). A escola pode ser objeto de atuação do pedagogo da terra “porta adentro” ou “porta afora”, mas em ambos os casos a “ocupação” não será bem sucedida se não incluir em seu movimento quem efetivamente domine os meandros dos processos formativos que ali acontecem.

De qualquer modo, e talvez ainda mais fortemente na realidade do campo, e em sua dinâmica atual, o pedagogo (como todo educador) não pode ser formado apenas para a atuação dentro dos limites internos da escola, e muito menos como um docente, no sentido estrito;

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primeiro porque a educação escolar se empobrece muito quando não colocada em perspectiva e na relação com outros processos formadores do ser humano. Em nosso entendimento não há Educação do Campo sem essa perspectiva. E segundo porque na situação atual da agricultura brasileira se o educador não souber atuar na formação dos camponeses, não souber trabalhar com a organização das comunidades, das famílias, não encontrará mais escolas do campo em que possa exercitar sua pedagogia.

Os pedagogos da terra são também convocados a se apropriar do debate político-teórico realizado nesta década de construção do movimento por uma Educação do Campo para poderem contribuir nas suas formulações pedagógicas. São chamados a produzir novos conhecimentos sobre a especificidade dos processos formativos dos sujeitos do campo e particularmente dos que participam de Movimentos Sociais, e sobre como a escola pode dialogar com estes processos sem deixar de cumprir as tarefas educativas que lhe são próprias.12

5a) O pedagogo da terra desenvolve sua atuação e formação como práxis. Quer dizer, é o educador, a educadora, que aprende a juntar teoria e prática em um mesmo movimento que é de transformação do mundo e autotransformação humana, de modo a poder ajudar a desencadeá-lo nos processos educativos que acompanha.

O conceito de práxis de Leandro Konder, desde Marx, foi inspirador de reflexões importantes para a Turma José Martí, sintetizando uma das perspectivas formativas centrais do curso: “A práxis é a atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la, transformando-se a si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais conseqüente, precisa da reflexão, do autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática. (...) A práxis é a atividade que, para se tornar mais humana, precisa ser realizada por um sujeito mais livre e mais consciente. Quer dizer: é a atividade que precisa da teoria” (2002, pág.115-6).

Mas não se entende teoria aqui como teoricismo ou como conhecimento apenas em sua dimensão cognitiva. A reflexão teórica que integra o movimento da práxis diz respeito à capacidade de interpretação/análise crítica e tomada de posição diante da realidade; é o conhecimento que se constrói também como uma escolha ética que fundamenta e organiza o pensamento produzido desde o agir humano. Da mesma forma que as práticas identificadas como formadoras não se referem ao ativismo, mas às práticas sociais que efetivamente exigem a transformação das pessoas, integrando processos de produzir e transformar o mundo; processos que podem envolver múltiplas dimensões e diferentes materialidades.

A perspectiva da práxis é um desafio formativo fundante da intencionalidade do tipo de processo pedagógico de que aqui se trata. No curso buscamos trabalhá-la tanto nas relações estabelecidas durante o Tempo Escola, como na dinâmica das relações sociais constitutivas do Tempo Comunidade, nas estratégias de inserção de educandos e educandas nas organizações, nas práticas educativas, e no desafio específico de ir formulando neste movimento as questões para o seu aprofundamento de estudos.

A partir deste princípio foi possível para a turma desenhar/ler alguns traços considerados fundamentais no perfil do pedagogo da terra e que juntam teoria e prática: capacidade organizativa, atuação política, convicções sobre o que é educar e como se educa; capacidade de leitura da realidade; capacidade de síntese para integrar diferentes conhecimentos e articular vivências educativas; agilidade e discernimento na tomada de decisões e na sua implementação; parâmetros coletivos para posicionamentos pessoais; valores e visão de mundo que exijam o exercício sistemático de interrogar-se e de refletir sobre os processos em que está inserido.

12 Uma referência bibliográfica importante para apropriação deste debate é a Coleção “Por Uma Educação do Campo”, publicada pela articulação nacional de mesmo nome desde 1999.

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Como se pode perceber estes elementos de concepção sobre o perfil do pedagogo produzido no curso de Pedagogia da Terra da Via Campesina são e não são específicos do pedagogo da terra e mesmo dos educadores do campo. E nos parece que é esta perspectiva de Educação do Campo que inclui e tensiona o movimento entre o particular e o universal, a que deve ser assumida para continuarmos essa reflexão.

Sobre as Intencionalidades na Formação de Educadores

Se desenhamos um perfil de formação é porque acreditamos que a construção do ser humano pela educação é um projeto, uma tarefa intencional, consciente (Arroyo, 2004, pág. 226). A questão passa a ser então sobre que intencionalidades garantem este projeto, ou pelo menos reforçam as expectativas que temos em relação aos resultados da formação.

Ter intencionalidades em um processo de formação é já uma primeira intencionalidade e aquela que não pode deixar de ser aprendida por quem está sendo preparado para a condução de processos educativos; considerar que a educação das pessoas é um processo quer dizer que ela acontece em um movimento dialético que envolve tempos, transformações, contradições; que é historicidade a ser compreendida e trabalhada. Considerar que é um processo intencional quer dizer que há um trabalho pedagógico planejado que pode ser feito no propósito das transformações e dos traços humanos que elas vão desenhando; e mais amplamente, que há como pensar e agir para tornar mais plena a formação humana.

Há quem considere isso autoritário: como podemos querer pensar a priori o que vai acontecer com o outro em sua formação? Mas o ato educativo é possível sem alguma projeção de perfil e a diretividade que lhe corresponde? Entendemos que não. A direção pode não ser consciente, pode não ser explicitada; pode não ser emancipatória, pode ser autoritária; não é absoluta, é histórica. Mas defender que educadores não sejam diretivos significa pedir que alguns abram mão de educar para que outros assumam a tarefa; em nosso tempo, isso quer dizer para que outros “entes” do ambiente social se encarreguem disso; para que os meios de comunicação ou outros instrumentos da indústria cultural moderna possam conduzir o processo à sua maneira: tentando formar pessoas subservientes à forma social hegemônica: ativas no consumo e passivas diante das principais questões da vida em sociedade e no planeta.

Saber disso não tira a tensão real que acompanha qualquer processo educativo, especialmente os que se pretendem emancipatórios. Queremos formar sujeitos criadores do novo, construtores do futuro, mas fazemos isso pela interiorização da cultura, dos valores, da história já construída, “conformando” as novas gerações aos parâmetros sociais e humanos (contraditórios) já existentes. Ou seja, o ser humano produtor do novo se forma na própria tensão entre conformação e inconformação social; entre estabilidade e instabilidade; entre inserir-se no mundo que aí está e participar de sua transformação.

E é assim tanto pensando na educação como acesso do novo ser humano ao patrimônio histórico da humanidade, como na particularidade de situações formativas. Para formar um militante o Movimento Social precisa conformá-lo a sua cultura política e organizativa; precisa que incorpore os conhecimentos, os valores, o jeito de ser que esta organização coletiva já construiu antes da sua entrada, ainda que o seu maior objetivo seja preparar a pessoa para dar conta dos novos desafios, das transformações necessárias para que o Movimento responda às questões de seu tempo histórico, o que não conseguirá sem algumas “subversões” de sua própria ordem. O dilema é que de fato um processo pode anular o outro, ainda que o objetivo não seja esse; o “conformar” pode educar pessoas ‘conformadas ao atual estado de coisas’ e o “inconformar” pode educar pessoas que se contraponham a qualquer forma de organização coletiva.

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Mas não parece que escapar desse dilema seja tentar eliminar a tensão; ou deixar de intencionalizar processos; pelo contrário, significa trabalhar a intencionalidade pedagógica tendo esta tensão como referência.

Nesta perspectiva há já uma intencionalidade que pode fazer muita diferença: é possível organizar processos educativos que vão construindo o protagonismo dos educandos na condução de sua própria formação. E isso se consegue mais facilmente quando se “desindividualiza” o processo; ou seja, não se trata de um indivíduo conduzir outro indivíduo (o que é pretensioso e geralmente acaba se tornando autoritário), mas de um sujeito coletivo fazer a autocondução do processo formativo das pessoas que o integram. E nesta mesma intencionalidade está a criação de ferramentas capazes de materializar a “democratização” da condução pedagógica.

Em nossas experiências de cursos de formação uma estratégia pedagógica fundamental nesta direção é o processo de construção de uma “coletividade educadora” e duas ferramentas importantes para isso têm sido o “Projeto Metodológico” (PROMET) de cada etapa e uma estrutura orgânica de “Acompanhamento Político-Pedagógico” de cada turma.

O Projeto Metodológico é o nome dado a uma forma de elaborar o planejamento específico de cada etapa, registrando as decisões pedagógicas tomadas. No documento que o materializa constam justamente as intencionalidades do processo, considerando um determinado recorte de tempo, o Projeto Político-Pedagógico do curso (no que já estiver formulado previamente) e uma leitura cuidadosa da situação atual da turma (olhando para o conjunto de seus membros) e da realidade mais ampla em que o curso e seus sujeitos coletivos se inserem.

A elaboração do PROMET é atribuição dos educadores, mas sua estratégia pedagógica implica no envolvimento progressivo dos educandos nesta tarefa. O documento é discutido com toda a turma nos primeiros dias do Tempo Escola de cada etapa e envolve decisões também para o Tempo Comunidade. Pode ser retificado, transformado; mas depois de aprovado pelo conjunto dos envolvidos terá que ser implementado.13 Ajustes podem ser feitos no andar da etapa, sempre que o processo exigir, mas não podem ser arbitrários e precisam ser avalizados pela coletividade de educandos e de educadores.

A Turma José Martí identificou o PROMET como uma estratégia pedagógica importante na sua formação; primeiro porque permitia aos educandos “se enxergar na totalidade da etapa e do curso”; ter claro os desafios e o caminho a seguir; e segundo, porque aos poucos foi levando-os a compreender cada intencionalidade e suas razões (ou a leitura do processo que as justificava) possibilitando que passassem a interferir na sua escolha e a participar mais ativamente da condução de sua formação.

A organização do Acompanhamento Político-Pedagógico, por sua vez, pode ser feita em diferentes níveis, envolvendo várias pessoas e considerando diferentes dimensões da formação. Também é uma atribuição dos educadores que aos poucos vai envolvendo os educandos. Na forma pedagógica que desenhamos no Iterra este conjunto é coordenado por um coletivo constituído especificamente para esta tarefa.

Acompanhar é orientar e fazer junto com os educandos seu processo de formação. É ajudar na compreensão de que sempre há escolhas a serem feitas e que é preciso aprender a decidir sobre caminhos a seguir, mas também a construir, coletivamente, por conta própria.

O acompanhamento pode envolver (e é bom que envolva) muitas pessoas desde que se consiga construir uma unidade (que não quer dizer uniformidade) de atuação: em torno da implementação do PROMET e pela construção de uma leitura coletiva do processo formativo que está sendo vivenciado pelos educandos, seja como coletividade seja como indivíduo, e para além do movimento planejado. Seu objeto fundamental de análise/condução diz respeito às relações

13 No Iterra costumamos brincar fazendo um jogo de linguagem: o que se PROMET(e) se cumpre!

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sociais que vão se estabelecendo no processo, visando torná-las mais plenamente educativas na direção do projeto de ser humano que serve de referência ao curso.

Na Turma José Martí a tarefa de acompanhamento envolveu diferentes coletivos, sendo os principais identificados os seguintes: o colegiado das organizações sociais responsáveis pelos educandos (um interno à turma e outro externo), a coordenação do curso, o coletivo de acompanhamento político-pedagógico à turma (organizado desde a dinâmica do IEJC), os núcleos de base que foram a estrutura primária de organização dos próprios educandos, e aos poucos a coordenação dos núcleos de base da turma, que foi desafiada a coordenar o processo chamado de “auto-acompanhamento”, iniciado na sétima etapa.

Estas ferramentas, ou outras que podem ser criadas com intencionalidade semelhante, ao mesmo tempo complexificam e democratizam a condução do processo pedagógico. Se utilizadas com sua intenção originária, contribuem na capacitação dos pedagogos, especialmente para que aprendam a intencionalizar processos dando-se conta das tensões e contradições que o trabalho de formação do ser humano envolve.

De qualquer modo, ações e ferramentas de condução de processos formativos não prescindem da postura (ética, pedagógica, política) daquelas pessoas que estão na condição ou na tarefa de “educadores”. E uma postura fundamental que aprendemos com nossas experiências é a de não pretender ter o controle total do processo de educação: seja por negar a historicidade do próprio perfil da formação esperada, 14 seja por considerar que tudo o que acontece fora do que foi anteriormente pensado ou intencionalizado é necessariamente um desvio educativo; algo a ser eliminado.

A grande sabedoria da condução de um processo pedagógico, e para a qual também se pode ser educado, é assumir como “guia” o movimento real do processo, buscando fazer uma adequada interpretação de seu espiral de avanços e retrocessos, de contradições, de conflitos; de movimentos às vezes lentos e progressivos, às vezes acelerados e abruptos. Há um movimento pensado (as intencionalidades) que produz um movimento real de transformação da realidade, das pessoas, que quase nunca é igual ao movimento pensado e que deve produzir um novo movimento pensado para continuidade do processo e assim sucessivamente, mas nunca sem muitos “saltos e sobressaltos”, exatamente porque o desafio assumido é o de emancipar as pessoas de qualquer subserviência; inclusive aos processos pensados para educá-las.

No exercício de memória-projeto que estamos fazendo neste texto, trata-se agora de identificar algumas intencionalidades importantes que integraram o movimento pedagógico realizado na formação da Turma José Martí, Pedagogia da Terra da Via Campesina, abstraindo para uma reflexão mais geral sobre o movimento a ser pensado para a formação de educadores. Dialogamos para isso, uma vez mais, com a análise feita entre estudantes e coordenação do curso, e com a reflexão sobre o perfil de formação construído; certamente as intencionalidades aqui indicadas não esgotam o movimento real, a experiência formativa como um todo; também não se pretende aqui fazer um balanço de seus resultados; apenas pensar em algumas referências para que esta reflexão continue.

1a) Preparar para a condução de processos pedagógicos através da vivência refletida do seu processo formativo no curso. Porque esta pode ser uma experiência processual comum ao grupo, ainda que diferenciada para cada pessoa, que pode ser lida e analisada coletivamente. Em nosso “Pedagogia da Terra” esta foi a intencionalidade-mestra, que fundamentou e articulou as demais. Este próprio texto é um de seus produtos e se pretende também uma de suas ferramentas. Ela implica em dois movimentos articulados: (a) uma seleção cuidadosa das intencionalidades

14 Todo o desenho de perfil de formação é histórico e sempre projeção de tendências do presente, ou do movimento da realidade atual.

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desdobradas, de modo que as vivências no curso, ou a propósito dele, sejam suficientemente complexas para servir de objeto de capacitação para a condução de processos pedagógicos; (b) uma intencionalidade específica para que estas vivências tornem-se objeto de reflexão teórica rigorosa e sistemática, com um método pensado para isso e indo além das costumeiras avaliações sobre o andamento do curso.

Na Turma José Martí uma das ferramentas básicas trabalhadas para garantir a reflexão sobre o processo formativo foi o seu registro (pessoal e coletivo), para construção de uma memória destas vivências e sua retomada sistemática, em diálogo com os estudos, e especialmente os de teoria pedagógica, que iam sendo feitos. O objetivo era tornar estas vivências efetivamente uma “experiência” formativa, garantindo uma análise coletiva do processo, inclusive o de fazer registros por escrito.

Esta ferramenta foi composta em nosso caso por diferentes “peças” ou atividades: do tempo diário e um caderno específico para cada pessoa ir registrando as vivências do cotidiano do curso e começar a pensar sobre elas até uma produção de texto geralmente chamada de “síntese dos aprendizados da etapa” feita no final de cada Tempo Escola, passando pelo diário de campo escrito durante o Tempo Comunidade. No plano coletivo o movimento foi do registro dos acontecimentos que iam compondo a “Memória da Turma” de cada etapa à escrita de sua história no final do curso, passando pelos seminários de discussão dos textos que iam sendo produzidos ou sobre as “situações fortes” e as “crises” que surgiam no processo da turma ou da coletividade da escola em que a turma estava inserida.

O desafio pedagógico aqui é de compreender que a memória registrada por escrito favorece a reconstituição coletiva do processo em outro tempo, permitindo teorizá-lo e analisá-lo com mais rigor. E nesta intencionalidade é particularmente possível constatar o que muitos estudos da psicologia sócio-histórica já indicaram: há muitas aprendizagens em que primeiro se faz e depois se compreende para que, porque e como exatamente se fez. Se tivéssemos tentado inverter a lógica neste caso, ou seja, permitido que a turma somente passasse a fazer o registro de suas vivências depois de “descobrir” a importância disso, é muito provável que não tivessem chegado a escrever sua história no final do curso e nem atingido o patamar reflexivo demonstrado em suas obras.

Afirmar que a vivência refletida/teorizada de um processo formativo é a grande estratégia para a capacitação de pedagogos é reafirmar uma vez mais o primado da prática na formação do ser humano, mas não da prática em si mesma e nem de qualquer prática. A prática precisa ter uma força material que a projete como práxis: que exija a “exposição” real das pessoas ao processo, tornando-o uma “experiência” efetiva, a tal ponto que elas se disponham ao esforço de compreender teoricamente as transformações que esta prática está provocando; na realidade mais ampla e em si mesmas.15

Neste movimento pedagógico há apropriação e produção de conhecimentos, de valores, de posturas, de jeito de agir; há confirmação ou mudança de convicções, de concepções. E há um aprendizado fundamental para a formação de pedagogos, ou de educadores, que é o da postura e da prática da própria reflexão: do pensar sobre o que está acontecendo e lhes acontecendo; de pensar sobre o que estão pensando e sobre porque estão pensando assim e já pensaram de outro jeito. Entendendo que é possível refletir sem parar de agir; a reflexão é posterior a uma ação particular,

15 Estamos usando a palavra “experiência” aqui no sentido indicado por Jorge Larrosa desde reflexões de Walter Benjamin: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”. (Bondía, 2002, pág. 21) Para que o que se passa se torne uma “experiência” é fundamental a “exposição”, “nossa maneira de ‘ex-pormos’, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ‘ex-põe’... A palavra experiência “contém inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo” (pág. 24-5). O que insistimos nós é que embora esta atitude de “exposição” seja pessoal, subjetiva, ela pode ser provocada ou acelerada pela materialidade e intencionalidade da prática a que a pessoa deve se “ex-por” para então autotransformar-se.

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mas é parte de uma prática mais ampla. E a prática não pára para que se possa pensar sobre ela; o movimento da realidade não se interrompe para que se possa entendê-lo. É preciso aprender a “tomar distância” sem ter que sair do lugar; é preciso “parar para pensar” ou para sentir ou para contemplar a ação, mas sem necessariamente ter que “parar de agir”.

2a) Trabalhar diferentes dimensões da formação humana em uma perspectiva omnilateral. Porque um curso para ser uma “experiência formativa” terá que se constituir como um lugar de formação que seja o máximo possível integral. E isso deve ser assim porque é à construção humana como totalidade que cada pessoa tem direito, a cada tempo de sua vida e nos diferentes espaços educativos em que se encontre e, neste caso, porque é para saber intencionalizá-la nesta perspectiva que está sendo preparada.

Mas como materializar esta intencionalidade em um curso universitário, cuja centralidade de concepção costuma estar no estudo e na dimensão do conhecimento? Em nosso formato de curso, produzido pelas circunstâncias específicas de acesso dos educadores do campo à Universidade (etapas, alternância, constituição de turmas...), isso parece mais fácil; pelo menos do ponto de vista da materialidade necessária para que isso aconteça. A convivência em tempo integral durante o período presencial do curso traz para dentro dos seus tempos e espaços a “vida real”, necessariamente multidimensional, tendo-se ou não intencionalidade para seus diferentes “movimentos”. A questão que se coloca neste caso é se vamos tomá-la como parte (que é todo) do processo formativo do curso ou não; se vamos apenas “admitir” que esta vida está pulsando entre nós e “deixá-la acontecer” ou se vamos buscar intencionalizá-la em uma mesma totalidade formadora, e desde um mesmo projeto de ser humano.

Na Pedagogia da Terra da Via Campesina a decisão foi tentar trabalhar com a totalidade, para poder desdobrar sua intencionalidade-mestra: preparar para a condução de processos pedagógicos pela vivência refletida do seu processo formativo no curso. Para isso foi preciso firmar uma convicção prévia entre os educadores, as educadoras, de modo que pudesse aos poucos ser também uma convicção dos educandos, das educandas, que é na verdade um contraponto ao mais “usual” em cursos universitários: nosso curso não se esgota em sua “base curricular”, por melhor que ela seja; e a formação profissional do pedagogo da terra não passa somente pelos tempos de estudo, embora estes devam mediar todo o processo, dada a natureza da formação em questão. Em nossa linguagem, isto quer dizer que o “projeto metodológico da etapa” não pode ser restrito a um planejamento de estudos e menos ainda de aulas; precisa ser um plano de formação.

Na experiência da Turma José Martí a materialidade destas “intenções” esteve centrada na relação entre Tempo Escola e Tempo Comunidade, e no Tempo Escola teve como estratégia principal a inserção dos educandos na construção da “coletividade” do IEJC, onde o curso foi realizado, combinada com o alargamento da concepção de estudo. A forma pedagógica da escola inclui a organização de diferentes tempos educativos e a participação dos educandos nos processos de gestão coletiva, de trabalho e de convivência social que visam sua formação mais integral. Em um mesmo dia cada pessoa é provocada a se “ex-por” em diferentes dimensões: seus valores, seus conhecimentos, sua cultura, sua postura, sua ideologia, sua visão política, sua capacidade organizativa, suas habilidades, seu ritmo de ação e de reação.

Mas há um grande desafio nesta dinâmica: a busca da omnilateralidade é necessariamente tensa, nunca linear e nem completa, porque a cada período se desenham novas dimensões para o processo e os tempos permanecem os mesmos; porque o movimento da realidade vai produzindo ênfases, emergentes ou necessárias; porque nem sempre as situações se completam na formação das diferentes dimensões; às vezes até se contradizem; às vezes o trabalho pedagógico numa dimensão anula ou fragiliza o trabalho em outra. E afinal um curso ou uma escola pode não ser mesmo o melhor lugar para trabalhar determinadas dimensões. Por isso a perspectiva de totalidade não é um horizonte dado, mas um desafio de cada dia, cada etapa, cada experiência; e não do curso

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em si mesmo, mas sim de uma totalidade formadora muito mais ampla que é a práxis social onde os educandos se inserem.

Trabalhar com estas tensões e os conflitos que delas emergem no dia a dia de um processo concreto é sem dúvida um aprendizado importante na formação do educador. E este aprendizado implica em dar-se conta que um “erro fatal” para nossa intencionalidade maior é a desarticulação entre as dimensões ou entre o trabalho pedagógico feito em torno delas; “fatal” porque impede que o processo se realize como práxis. Ou seja, é preciso pensar em intencionalidades específicas para que o processo seja conduzido não apenas de forma multidimensional, mas efetivamente na perspectiva “omnilateral”, que no sentido marxiano vai bem além de justapor diferentes dimensões, mas visa a totalidade pensada da formação do ser humano.

Na particularidade de um processo desse tipo há um risco permanente de que ou o estudo seja secundarizado porque outras dimensões acabam sendo mais envolventes ou, ao contrário, outras dimensões, da formação ou de diferentes tipos de práticas, sejam preteridas em relação aos estudos sempre que as situações da “vida real” não tenham apelo imediato de solução. Isso parece uma visão dicotômica e excessivamente redutora da própria concepção de estudo, e de fato é; mas é ainda a que predomina na formação anterior de educandos e educadores e por isso emerge no cotidiano de processos “reais” precisando ser enfrentada/trabalhada.

Pensando uma vez mais neste tipo de curso de que aqui se trata, nossa experiência aponta que o desafio da articulação implica necessariamente em uma ressignificação dos processos de estudo, de modo que a “vida real”, desde a que pulsa ali mesmo na coletividade da turma e da escola ou a que continua pulsando lá nas comunidades ou organizações de origem dos educandos, das educandas, seja seu objeto e também os docentes do curso se assumam como formadores, integrando-se na construção do seu projeto/processo pedagógico.

3a) Organizar o trabalho pedagógico em torno de atividades-processo que exijam a produção de obras. Porque atividades e obras objetivam ou materializam as intencionalidades e o movimento formativo real. São uma forma privilegiada de garantir maior articulação entre as dimensões da formação, de concretizar sua dimensão processual e de provocar a necessidade do estudo, acelerando o exercício da práxis.

A atividade, neste sentido, não é qualquer ação; nem deve ser confundida com o artifício didático de algumas “pedagogias ativas” ou na oposição à apropriação de conteúdos teóricos. Atividade aqui se associa ao próprio conceito de trabalho da filosofia da práxis: é pela atividade que se forma o ser humano; nos mesmos processos que produzimos nossa existência social nos produzimos como humanos.

Em um processo educativo as atividades que têm peso formador maior são aquelas que se constituem como um conjunto articulado de ações desenvolvidas para responder a determinadas necessidades percebidas ou provocadas nas pessoas. Ações cujos motivos (sempre se precisa de um motivo para agir) estão vinculados aos próprios objetos da atividade, potencializando a aprendizagem que pode ser construída através delas. Exemplo: se vou ler um livro não é pelo motivo de ter que cumprir um “tempo leitura” obrigatório, o que seria um motivo externo à ação de ler, mas porque a pesquisa que estou fazendo exige que eu o leia para compreender um conceito, uma idéia.

E estamos chamando aqui de “atividades-processo” (quase uma redundância no sentido de atividade aqui trabalhado) aquelas que se desenvolvem em um tempo maior, decompondo-se em vários conjuntos de ações. Em um curso quer dizer que são atividades que acontecem ao longo de várias etapas, incluindo a dimensão de fases, metas e produtos diferenciados a cada tempo.

A Turma José Martí, quando provocada a responder sobre o que tinha contribuído mais significativamente em sua formação durante o período do curso, acabou identificando as atividades-processo intencionalizadas desta forma no planejamento do coletivo de educadores.

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Elas foram nomeadas pela turma como “estratégias pedagógicas” e interpretadas como a própria intencionalidade formativa do curso. E foi refletindo sobre cada uma delas que os educandos e as educandas destacaram como especialmente formadora a exigência da produção de obras, individuais e coletivas.

A turma identificou nesta perspectiva atividades de natureza distinta e que envolveram tipos diferentes de ação, produzindo obras de materialidades também diferentes. Foi indicada com especial destaque a atividade de inserção da turma na dinâmica do IEJC que envolveu múltiplas ações e produziu vários tipos de obras: desde ajudar a garantir o próprio funcionamento da escola até o pão da mesa do café ou o parque infantil construído para as crianças que estão junto com seus pais na escola; também o processo da pesquisa que culminou na apresentação do trabalho monográfico e depois em artigos dos grupos de pesquisa.

Foi destacada nesta mesma perspectiva a importância da participação sistemática em eventos da Educação do Campo com tarefas delegadas à turma, como por exemplo a de ter que produzir a mística de abertura da II Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo. Da mesma forma a turma identificou como fortemente formadoras as práticas pedagógicas e o ter que se enxergar planejando e dando aulas seja em uma escola de acampamento seja nas escolas públicas de Veranópolis; também a construção da memória da turma foi identificada como estratégia pedagógica do curso e igualmente o desafio de a cada Tempo Escola trazer indicações materiais de que a inserção militante na organização se ampliava ou aprofundava. 16

Mas qual a força educativa destas atividades e das obras que produziram? Possivelmente sua capacidade de provocar e de objetivar a “ex-posição”, o envolvimento das pessoas no processo formativo: a uma idéia, a um texto ou a uma aula as pessoas podem se por de acordo, se opor ou ignorar, sem se deixar envolver efetivamente, afetivamente; em uma atividade que é delas, e cujas obras serão o seu espelho, as pessoas se expõem, se mostram ainda que não queiram; ainda que resistam. E seja qual for a natureza da atividade/da produção ela acaba trazendo diferentes dimensões à tona: a dimensão cognitiva, a emotiva, a ética, a organizativa, a operativa, e pode revelar identidades que também ajuda a constituir.

A força das obras está na objetivação do processo vivenciado. Como elas são externas aos sujeitos, passam a ter existência própria; ou seja, elas “falam por si mesmas” e por isso “expõem” seus produtores. Se a mística da abertura de uma conferência nacional “não toca os participantes”, de nada adianta aos seus realizadores tentar explicar o que queriam ter feito ou porque não o fizeram; seria inútil até para si mesmos. De igual modo acontece quando um trabalho monográfico chega inconcluso na etapa em que deveria estar sendo apresentado à banca. Ou o contrário. O objeto toma força de processo porque não permite subterfúgios, escancara. Sempre há explicações a dar sobre tudo o que acontece ou não acontece, mas elas não mudam a imagem do espelho porque não têm a materialidade do que ele mostra. E isso permite às pessoas indagar sobre o que lhes está acontecendo e pode levá-las a tomar o processo de formação em suas mãos, seja de modo individual ou coletivo.

É possível que esse processo de compreender como se desenvolve sua própria formação inclua também um aspecto que vem sendo destacado em estudos mais recentes da psicologia sócio-cultural e que se referem à “externalização do trabalho mental” produzida pelas obras e que é um outro tipo de obra para a qual deveríamos prestar mais atenção: a “externalização produz um registro de nossos esforços mentais, um registro que fica ‘fora de nós’, e não vagamente ‘na memória’. É algo parecido como produzir um rascunho, um esboço, uma ‘maquete’. (...) Esse registro nos liberta, até certo ponto, da tarefa sempre difícil de ‘pensar sobre nossos próprios pensamentos’, embora freqüentemente chegue ao mesmo objetivo. (...) O processo de pensamento

16 A descrição e reflexão sobre cada atividade identificada podem ser encontradas no texto da turma José Martí “Estratégias Pedagógicas que nos formaram”, de setembro de 2005.

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e seu produto tornam-se interligados, (...) [porque] o pensar se realiza em seus produtos” (Bruner, 2001, pág. 31-2).

Isso nos abre novas possibilidades para pensar o próprio acompanhamento pedagógico, ou a intencionalização do processo formativo, justamente a principal tarefa para a qual pensamos estar formando nossos pedagogos. A idéia não é nova, a de conhecer o que a pessoa pensa, ou até como ela é, muito mais pela expressão do seu fazer, do que pelo que ela diz ou mesmo pelos seus comportamentos; mas nem tão novo é o entendimento de como esta revelação acontece ou o que acontece com a mente da pessoa neste processo e que implicações há para a pedagogia, ainda tão presa a uma tradição “verbalista” e de “conversão pela palavra”.

Quem absolutiza na educação a lógica do ensino, seja na atuação do educador seja na reação esperada do educando, jamais compreenderá do que afinal isso trata.

4a) Alargar pela prática o conceito de estudo ressignificando-o como ferramenta do exercício da práxis. Porque o conceito de estudo predominante entre educandos e educadores ainda é restrito às “aulas” e às vezes em um viés “intelectualista” e “conteudista”; e porque este alargamento é fundamental para garantir uma maior articulação entre as diferentes dimensões da formação humana e também a potencialidade pedagógica das atividades-processo de diferentes naturezas ou materialidades.

Esta ressignificação do estudo está relacionada, pois, à busca de superação da dicotomia entre educação e ensino e implica também em alargar a própria concepção de conhecimento. Do mesmo modo que a “sala de aula” pode ser um espaço que ajuda na reflexão sobre a totalidade do processo formativo, e nisso pode haver produção de conhecimento, é possível estudar em outros tempos e espaços da escola ou do curso. Além disso, é necessário que o chamado “tempo aula” não se constitua apenas de aulas. E que as aulas possam ser ressignificadas (“aulas podem ser mais do que aulas”) para que incluam em sua dinâmica “entregas teóricas” exigidas pelo (ou que visem provocar) o envolvimento ativo dos educandos nas diferentes situações formadoras que estão à sua disposição no ambiente da escola ou do próprio Movimento Social.

Na experiência formativa da Turma José Martí é possível afirmar que todas as atividades-processo envolveram tempos e ações específicas de estudo. Os educandos estudavam nas aulas, mas também em seu tempo de leitura individual ou de pesquisa; quando produziam textos ou participavam de oficinas de capacitação para o trabalho ou a gestão da escola; quando discutiam sobre o que registrar na memória da turma ou quando escreviam seu diário de campo ou faziam um trabalho de interpretação de texto; quando faziam oficinas de arte ou preparavam de forma reflexiva suas celebrações; quando participavam de seminários de análise de conjuntura do país, ou buscavam fazer uma leitura do processo formativo vivenciado pela coletividade; quando escreviam seu trabalho monográfico ou sua síntese de aprendizados da etapa ou pensavam sobre práticas desenvolvidas no seu Tempo Comunidade.

Em um processo formativo o estudo diz respeito ao trabalho pedagógico relacionado à dimensão do conhecimento que visa a formação. Em nossa experiência conseguimos identificar pelo menos três tipos de atividades de estudo que podem integrar este conceito mais amplo: aquelas atividades específicas de apropriação e produção teórica, que trabalham com conceitos, categorias, método de análise, de pensamento, e que envolvem processos de ensino, pesquisa, leitura e interpretação de textos, posicionamentos teóricos ou elaborações próprias; aquelas atividades que são voltadas à construção de habilidades, e que seguem a lógica da capacitação (fazer para saber), que podem ser desde as necessárias para o primeiro tipo de estudo (ler e escrever, por exemplo) até as específicas do perfil profissional pretendido pelo curso, passando por tantas outras escolhidas por serem consideradas importantes no contexto de atuação destes educadores. E há também aquelas atividades de estudo cujo foco é a reflexão ou a produção de conhecimentos ou de significados para as vivências da pessoa ou da coletividade (sua

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“experiência”) nos diferentes tempos e espaços de formação oportunizados ou intencionalizados pelo curso.

Esta diferenciação é apenas um recurso analítico. Não se considera nem se pretende que estas atividades aconteçam de forma separada ou fragmentada, mas nos parece importante distingui-las para que se compreenda que não existe apenas uma forma de estudo, embora exista uma especificidade ou uma intencionalidade específica no ato de estudar. Isso implica em afirmar que existem diferentes formas de conhecimento e de produção do conhecimento.

Se isso entrar na dinâmica da educação escolar, da formação dos educadores, exigirá pensar que cada forma de estudo tem uma lógica diferente de apropriação/produção de conhecimento que pode exigir diferentes estratégias em relação a conteúdos e métodos. Nem toda reflexão sobre a prática produz conhecimento, assim como nem toda aula chega a garanti-lo. E aqui entendendo a “produção de conhecimento” não apenas como conhecimento novo, criação, mas como a própria reconstrução necessária à apropriação ou “descoberta” dos conhecimentos já produzidos.

Quando estas diferentes atividades de estudo acontecem em um mesmo processo formativo, e de modo articulado, ainda que tenham sua centralidade no conhecimento, acabam produzindo aprendizados também no campo dos valores, da postura, do modo de agir, de pensar, de sentir. Potencializam o exercício da práxis porque acabam tocando em algo que é básico para o seu movimento e, portanto, objetivo de qualquer processo formativo de perspectiva omnilateral: a visão de mundo que cada pessoa já tem ao chegar no curso (ainda que não tenha consciência dela), e que pode reconstruir, transformar, reafirmar, no processo mesmo de compreender a realidade que passa a vivenciar e de se expor para transformá-la, autotransformando-se.

Nesta concepção de estudo cabe então uma intencionalidade específica no inventário e na problematização de concepções e de convicções sobre o ser humano, sobre projeto de sociedade, de humanidade, de educação, para transformar/firmar posicionamentos coletivos e individuais no plano ético, político, ideológico, epistemológico, pedagógico, ecológico.

Ter consciência e ser sujeito da própria visão de mundo é fundamental no projeto de formação que defendemos, e ainda mais para quem está sendo preparado para a condução de processos educativos. Nesse processo o inventário é muito importante, assim como as sínteses de concepção que vão sendo feitas a cada momento. E o inventário poderá ser muito mais completo ou profundo se não ficar limitado ao “discurso”: o que dizemos ser nossas concepções, convicções; novamente a força das atividades-processo: porque nossas concepções se revelam com mais força nas ações e nas relações sociais que construímos/vivenciamos para realizá-las.

Por sua vez as sínteses poderão ser mais profundas se os estudos teóricos tiverem esta mesma perspectiva ou integrarem o projeto formativo; e também se estes estudos forem articulados a práticas onde esta visão de mundo vá sendo politicamente confrontada, ou seja, onde fique claro que não basta estudar para saber, mas sim para melhor intervir em uma realidade que precisa ser transformada.17

5a) Definir estratégias de estudo que levem ao aprendizado da elaboração própria. Porque nosso objetivo é formar um pedagogo/educador que não seja apenas “consumidor” ou “reprodutor” de conhecimentos, mas sim um sujeito capaz de produzir conhecimento novo, de

17 Na Turma José Martí a terceira etapa do curso foi um tempo forte de primeiras sínteses, motivadas pelo cotejo entre estudos teóricos e relações sociais que aos poucos iam sendo construídas na escola ou refletidas no Tempo Comunidade. No Projeto Metodológico da etapa, uma afirmação expressou o momento da turma e lhe serviu de guia reflexivo importante, por isso a trazemos de volta aqui: “Se queremos crescer, precisamos evitar a tentação de nos aferrar a modos de sentir e de pensar que estão funcionando mal; precisamos fazer o esforço cansativo, difícil, incômodo, no sentido de abrir nossas cabeças para a aventura de pensar o novo” (Konder, 1992). O processo de pesquisa e as práticas político-pedagógicas de inserção na escola e nas organizações de origem foram outras circunstâncias fortes na exigência destas sínteses.

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elaborar ciência, teoria, análises e de criar métodos de intervenção na realidade ou de fazer o diálogo entre teoria e prática. A exigência não pode ser menor para quem pretende se inserir em processos educativos emancipatórios. Mas para isso é preciso aprender a pensar ou a apropriar-se e recriar métodos de pensamento, o que requer uma intencionalidade específica em relação ao que e como estudar.

Pensando na experiência desenvolvida com a Turma José Martí é possível afirmar que o aprendizado da “elaboração própria”18 necessita de algumas estratégias diferenciadas (às vezes com lógicas distintas), que articuladas em uma mesma intencionalidade podem contribuir no desafio da emancipação intelectual dos estudantes.

Uma primeira estratégia é a exigência sistemática, e desde o início do curso, de posicionamentos orais ou escritos sobre diferentes questões ou temas da realidade. O texto escrito ajuda na organização das idéias e, como indicamos antes, torna-se um daqueles registros materiais (obras) que permanecem “fora de nós” e nos permitem “pensar sobre o que pensamos” no momento de fazê-lo.

Os educandos da Turma José Martí começaram este processo já no Memorial de entrada no curso que exigia sua posição em relação ao que esperavam encontrar ali e sobre como viam seu percurso de formação até este momento. Chegaram na última etapa buscando fazer em seu Memorial de Aprendizados uma reflexão teórica sobre seu processo de formação. A cada dia eram desafiados a se posicionar sobre o que lhes acontecia ao ter que fazer sua “reflexão escrita” ou escrever seu diário de campo. Depois participavam de instâncias coletivas onde eram tomadas decisões sobre o funcionamento do curso e da escola, algumas vezes sob a inspiração de propostas elaboradas nestes momentos individuais de “matutação”.

Uma segunda estratégia é buscar construir a “sala de aula” como um lugar de aprender onde se combinem diferentes formas de trabalho pedagógico compartilhadas entre educandos e educadores, entre professores e estudantes: aulas que tragam aportes teóricos e metodológicos consistentes, preparadas por professores que conseguem dar exemplo de “elaboração teórica própria” e de diálogo com diferentes formas de conhecimento;19 exercícios individuais e em grupos de pesquisa bibliográfica, de interpretação de um texto ou de uma aula, de reescrita de textos que exija algum tipo de formulação interpretativa própria, seguidos de socialização e de debates entre os estudantes, com ou sem a mediação docente.

A Turma José Martí avaliou como importante na construção de um método de estudo a organização de tempos específicos para estas diferentes atividades dentro de cada componente curricular e teve destaque a exigência de elaboração individual de textos-síntese a cada bloco de “aulas”.

Combinada a anterior uma estratégia específica em relação ao “aprender a estudar por conta própria”, especialmente pela garantia de um tempo diário de leitura e anotações de estudo, não necessariamente vinculado às aulas de cada período, mas organizado a partir de um plano de leituras ou de estudos e motivado por exigências do conjunto de atividades-processo do curso. Nessa turma a pesquisa foi o processo que teve mais força na organização das leituras, mas a discussão que era feita do planejamento de leituras de cada estudante com seu grupo de estudos e ou com a coordenação do curso também foi avaliado como muito importante.

Por último, a pesquisa, certamente uma estratégia fundamental no aprendizado da elaboração própria, e que em cursos como os nossos pode ter a potencialidade formadora de uma atividade-processo, ajudando especialmente na construção de uma postura

18 A expressão está em Demo, 2006. Estamos utilizando-a aqui com alguns ajustes de interpretação. 19 Ao mesmo tempo em que é pedagogicamente importante descentrar o processo educativo das aulas, entendidas no sentido estrito de momento do “discurso didático”, é preciso aprender sobre a importância de “boas aulas” e da postura dialógica que se exige de educandos e educadores para que possam potencializá-las como parte do processo formativo.

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interrogativa/questionadora diante da realidade, e de um método (rigoroso) de pensamento ou de como fazer um “diálogo inteligente com a realidade” (Demo, 2006, pág. 36), juntando teoria e prática.20 A pesquisa tem esta força quando trabalhada ao mesmo tempo como ferramenta de apropriação/elaboração científica e como dimensão do processo formativo.

Na Turma José Martí a pesquisa foi trabalhada como atividade processual que buscou fazer um exercício prático real de produção de conhecimento científico voltado para desafios de intervenção social identificados junto com as organizações sociais de origem dos estudantes e em diálogo com as ferramentas culturais e o acúmulo de conhecimentos já produzidos pela sua própria dinâmica coletiva. Esta produção foi pensada para acontecer combinada com objetivos de uma formação científica preocupada com certos traços importantes do perfil de pedagogo da terra, entre os quais o de se desafiar a interpretar uma realidade desde o método de pensamento histórico-dialético.

A experiência começou já na primeira etapa do curso com exercícios de observação da realidade (sujeitos em sua materialidade histórica) e registro em diário de campo e foi concluída na última etapa com a elaboração de artigos nos grupos de pesquisa a partir dos trabalhos monográficos defendidos perante banca na etapa anterior. O tema comum à turma (a formação dos sujeitos do campo) e incomum nos estudos já realizados pelas organizações e pelos próprios estudantes, ajudou no aprendizado da postura de interrogação e de desnaturalização da realidade e da importância da mediação de categorias teóricas para sua interpretação, rompendo com certas resistências iniciais dos estudantes aos estudos de natureza mais conceitual.21

A atividade da pesquisa ajuda os estudantes a se perceber/afirmar como capazes de produzir conhecimento ou de construir uma nova interpretação da realidade que permite projetar intervenções conseqüentes nela e que pode chegar à construção de categorias de análise e à criação de novas teorias. Faz isso quando consegue articular a busca do rigor intelectual com a valorização das próprias idéias, ou dos próprios conhecimentos, sejam produzidos individualmente ou pelos sujeitos coletivos que estes educandos integram. Também ajuda a firmar concepções e a desenvolver o pensamento crítico quando seu objeto ou processo exige que os educandos distingam posições teóricas contraditórias, inclusive sobre a própria produção do conhecimento e sobre a ciência.

Além disso, a pesquisa pode ajudar a construir um método de elaboração que sirva de referência para os outros processos de estudo. Na pesquisa a elaboração própria não significa criar “do nada”, por pura inspiração. É “livre pensar”, mas não só. O caminho de produção da ciência passa pela reconstrução/apropriação de outros conhecimentos ou informações já disponíveis. Não há criação teórica consistente que possa prescindir do acesso ao conhecimento anteriormente produzido.22 Porque aprender a dialogar com as teorias existentes é condição da elaboração teórica própria. E é importante neste processo distinguir a atitude/tarefa de “descoberta” do que já foi criado e a de “criação cientifica” nova, superando tanto posturas elitistas quanto de banalização dos processos de produção do conhecimento.

É por isso que aquela estratégia de exigir posicionamentos próprios desde o começo do curso foi colocada como primeira, porque é preciso intencionalidade para se atingir equilíbrio: a exigência de rigorosidade e de diálogo com o conhecimento já produzido não pode gerar uma espécie de “bloqueio intelectual” muito comum em cursos universitários: não se pode dizer a

20 Quem não pergunta não cria; e quem não tem método (não confundi-lo com a formalização/cristalização de técnicas) somente cria em situações extraordinárias. No cotidiano a elaboração teórica própria geralmente é fruto do rigor metodológico ou da reflexão sobre o caminho que vai sendo percorrido/construído pelo pensamento. 21 Narrativa e reflexão específicas sobre o processo de pesquisa vivenciado pela Turma José Martí estão na Introdução que elaboramos para o livro “Como se formam os sujeitos do campo?” onde foram publicados estes artigos produzidos pelos grupos de pesquisa (Caldart, Paludo e Doll (org), 2006). 22 Mas que precisa incluir a reflexão sobre que conhecimento e produzido por quem a serviço do quê.

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própria palavra enquanto não se dominar tudo que já se pensou ou escreveu sobre o tema; e também somente se pode propor intervenções na realidade depois de chegar a uma criação teórica original. Isso é teoricismo, tão estreito e danoso quanto o ativismo.

As questões da “vida real” exigem um diálogo permanente entre teoria e prática; tão profundo e “inteligente” quanto se consiga fazer a cada momento. E um diálogo/confronto que não se restringe ao âmbito da pesquisa (nem da ciência), sendo objetivo e construção do processo formativo como um todo, mas para o qual a pesquisa pode se tornar uma ferramenta pedagógica muito importante.

A pesquisa potencializa outro aprendizado que não lhe é exclusivo, mas que ela ajuda a tornar ainda mais necessário: escrever o que efetivamente se quer dizer; construir uma forma de exposição que consiga socializar o que foi buscado e como foi buscado, o que foi pensado e como foi pensado; um texto que não “traia” o processo da pesquisa nem seus resultados. Todos sabemos algo sobre o tamanho deste desafio.

6a) Buscar construir no cotidiano do curso parâmetros éticos de uma convivência humana e socialmente justa. Porque a formação ética pode fazer grande diferença no ‘destino’ social destes educadores; para o que vão continuar fazendo consigo mesmos e com aqueles que buscarem educar. E valores se formam, se firmam ou se retificam fundamentalmente no exercício da convivência, ou das diferentes relações humanas (interpessoais) e nos comportamentos individuais e coletivos que acabam revelando os resultados produzidos pelas nossas intencionalidades formativas, no que se refere ao “ethos”, ao jeito de ser das pessoas. E este modo de ser se constrói fundamentalmente nas relações sociais que constituem a materialidade de um processo educativo.

Em nossa experiência a forma pedagógica da escola e a dinâmica pensada para o curso permitem/exigem trabalhar com uma das concepções básicas da construção destes parâmetros, que diz respeito ao entendimento da relação indivíduo-coletivo ou mais amplamente da relação indivíduo-sociedade. Esta relação está no centro de muitas tensões vivenciadas no cotidiano de processos formativos que têm uma perspectiva de totalidade e que recolocam a referência de projetos coletivos.

Vivemos em um tempo e um tipo de sociedade que tem no “culto ao indivíduo” e sua contraposição a qualquer forma de coletividade e à própria sociedade, supostamente responsáveis pela não realização da “liberdade individual plena”, um dos seus produtos históricos. O capitalismo tornou possível e necessário criar a ilusão de que a liberdade é ‘naturalmente’ individual e que a privacidade é um valor supremo, para poder absolutizar uma ordem social que pelo “avanço vitorioso das forças produtivas” é capaz de tornar o ser humano cada vez mais independente, mas que por opor as pessoas entre si, e desumanizar as relações de trabalho (necessariamente sociais) é incapaz de torná-las efetivamente livres.23

23 István Mészáros, em seu livro “A teoria da alienação em Marx”, capítulo IX, “Indivíduo e sociedade”, nos ajuda na análise: “O avanço vitorioso das forças produtivas do capitalismo cria um modo de vida que coloca uma ênfase cada vez maior na privacidade. À medida que avança a liberação capitalista do homem em relação à sua dependência direta da natureza, também se intensifica a escravização humana ante a nova ‘lei natural’ que se manifesta na alienação e reificação das relações sociais de produção. Diante das forças e dos instrumentos incontroláveis da atividade produtiva alienada sob o capitalismo, o indivíduo se refugia no seu mundo privado ‘autônomo’. (...) [E] é induzido, ou mesmo compelido, a retirar-se para seu pequeno reino privado (...) na medida em que, com a extensão da produção de mercadorias, o seu papel como consumidor privado adquire uma significação cada vez maior para a perpetuação do sistema capitalista de produção” (2006, pág. 236). E o “que resta, depois da ‘desvalorização do mundo do homem’ pelo capitalismo é simplesmente a ilusão desumanizada de uma realização pela ‘interiorização’, pela ociosidade ‘contemplativa’, por intermédio do culto da ‘privacidade’, da ‘irracionalidade’ e do ‘misticismo’ – em suma, por meio da idealização da ‘autonomia individual’ como contraposta aberta ou implicitamente à ‘liberdade universal’” (pág. 241).

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Se nosso objetivo é preparar sujeitos para a superação do tipo de estrutura social e de mentalidade que gera esta tendência, é preciso intencionalizar o contraponto, que se fundamenta na denúncia de como é falsa a oposição entre indivíduo e sociedade e de como é possível uma nova síntese histórica: nem individualismo, nem coletivismo, mas na expressão de Marx, a formação do “indivíduo social”.

Na síntese de Mészáros, “o indivíduo numa sociedade socialista não dissolve sua individualidade nas determinações sociais gerais. Ao contrário, tem de encontrar um escoadouro para a realização plena de sua própria personalidade (...). Numa sociedade capitalista, os indivíduos só se podem reproduzir como indivíduos isolados. Numa sociedade burocraticamente coletivizada, por outro lado, eles não se podem reproduzir como indivíduos, e muito menos como indivíduos sociais. Em ambas a esfera pública está divorciada da esfera privada e opõe-se a ela, por mais diferentes que possam ser as formas dessa oposição. Segundo Marx, em contraste, a realização da personalidade implica necessariamente a reintegração de individualidade e socialidade na realidade humana concreta do indivíduo social” (2006, pág. 246).

No processo formativo da Turma José Martí, bem como no conjunto das práticas educativas que acontecem no espaço onde seu curso foi realizado, as circunstâncias da convivência em tempo integral, a diversidade dos sujeitos envolvidos e o trabalho de acompanhamento pedagógico que deu ênfase às relações sociais, tornou as tensões entre interesses individuais e coletivos uma questão de formação; não foram poucos os momentos (de crise) em que a turma buscou discutir/estudar sobre o que são afinal parâmetros mais justos para as relações humanas orientadas pela busca dessa síntese, ou da construção deste “indivíduo social”.

O processo de avaliação do curso, que incluía a dimensão da chamada “vivência social” e o exercício coletivo de crítica e autocrítica a cada etapa, foi ferramenta importante para garantir um tempo coletivo para esta reflexão. Da mesma forma a dinâmica que aos poucos foi sendo instituída pelos núcleos de base, para que as pessoas pudessem assumir-se como educadoras entre si, permitiu abordar essas questões de diferentes ângulos e envolvendo diferentes tipos de relações humanas.

Nosso objetivo formativo é o de construir relações sociais que sejam pautadas pela solidariedade e preocupação com os problemas do outro, pelo companheirismo, pelo respeito e compreensão mútua, pela disponibilidade pessoal para garantir o bem-estar do coletivo, pela honestidade e fidelidade nas relações, pelo senso de igualdade, de justiça, de beleza, pelo afinamento das emoções, pelo cultivo do bom humor (este último sempre um bom tempero no convívio de qualquer coletivo). Esses são parâmetros de relações, e também de uma forma de afetividade que pode ajudar no desenvolvimento pleno das pessoas, das personalidades, do indivíduo social.

E uma questão que sempre retorna quando se discutem referenciais para uma convivência humanizada é a do necessário “respeito às diferenças”, entre pessoas, grupos, gerações, etnias, raças, gênero, culturas... Na formação de educadores, e particularmente educadores do campo, esta é sem dúvida uma questão relevante; até mesmo para que se possa problematizar certos parâmetros de comportamentos ou de valores apresentados pela sociedade como “universais” e que na verdade reproduzem exclusões, preconceitos, elitismos.

Educadores e educadoras do campo sabem bem como há discriminações feitas em nome de determinados padrões de cultura, de conhecimento, de trabalho e de como se concretizam reafirmando desigualdades históricas sofridas pelo povo que vive no campo; desigualdades econômicas, sociais, culturais, educacionais. Por isso o desafio de ser educado para não reproduzir estas discriminações na relação com seus educandos, suas educandas. Mas aprendendo a reconhecer diferenças ou particularidades de pessoas, de grupos, de relações sociais, sem absolutizá-las nem deixar de buscar a igualdade e a justiça; sem deixar de acreditar em um projeto coletivo ou de trabalhar pela unidade de sua classe.

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Este nos parece um parâmetro especialmente importante hoje, porque uma das expressões do “culto ao indivíduo” tem sido a absolutização da diferença ou do chamado “direito à diferença”, tirando-a de sua própria historicidade. A diferença não pode ser considerada um valor em si, vinculado à lógica da falsa “autonomia individual” e descolado da vida real a que se refira. Seu valor está vinculado à “reciprocidade social” (Mészáros). Não pode justificar privilégios nem desagregação da coletividade ou obstáculo para seu florescimento. Temos “direito” a “ser diferentes” sempre que esta diferença nos remeta a direitos coletivos e a um horizonte emancipatório.

Nem a diferenciação nem a padronização de comportamentos, de características ou de idéias são nosso objetivo em um processo formativo. O que buscamos, novamente, é o equilíbrio próprio a uma convivência humana e socialmente justa.

7a) Fazer do curso uma ferramenta de enraizamento da Educação do Campo. Como prática social e como concepção de campo e modo de pensar a educação de seus sujeitos. Porque sendo esta experiência de formação de educadores ‘fruto‘ da construção prático-teórica da Educação do Campo também pode se tornar sua ‘raiz’, à medida que forme os sujeitos continuadores de seu projeto originário. No curso trata-se de uma “intencionalidade-tempero” que está presente no conjunto das estratégias pedagógicas e na reflexão do perfil de formação do pedagogo da terra, do educador.

Mas como um curso universitário pode ajudar a enraizar a Educação do Campo? A Turma José Martí, que continua a nos servir como referência nesta reflexão, nasceu desafiada a participar da construção do movimento “por uma Educação do Campo”. Esse foi um dos traços fortes da identidade comum trabalhada pelo curso entre as organizações da Via Campesina que o constituíram.

Já em sua primeira etapa de formação a turma participou da “II Conferência Estadual Por Uma Educação do Campo” (Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2002). Na sexta etapa teve a tarefa de preparar a mística de abertura da “II Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo” (Luziânia, Goiás, 2004, cujo encerramento foi preparado por outra turma de Pedagogia da Terra que acontecia no Pará). Mais do que tudo foram momentos de perceber/vivenciar a materialidade deste movimento nacional de diferentes organizações e entidades do campo e sentir-se sujeito desta construção.

A cada etapa do curso havia um momento específico para a chamada “análise de conjuntura” da Educação do Campo que focalizava avanços e retrocessos tanto na dimensão de luta por políticas públicas como do enraizamento das ações educativas em cada organização ou Movimento Social. Foi durante este curso e pela mobilização dos estudantes que as organizações da Via Campesina passaram a participar mais do debate da Educação do Campo e de sua articulação em cada estado ou região. Em certo momento o colegiado de coordenação do curso passou a se constituir em fórum de debate da Via Campesina sobre esta questão.

Também foram feitos alguns ajustes nas ementas de componentes curriculares para garantir estudos específicos sobre a realidade do campo e algumas questões particulares trazidas pelas diferentes organizações: juventude, gênero, controle de energia,... Na mesma estratégia foram reforçados conteúdos de formação geral que pudessem ajudar a consolidar a visão de mundo que fundamenta o projeto político-pedagógico da Educação do Campo.

Aos poucos a intencionalidade principal deste processo foi ficando mais clara: são os sujeitos e as práticas sociais em que estão envolvidos, à medida que efetivamente reconhecidas no diálogo pedagógico, que exigem o tratamento da especificidade, bem mais do que programas ou conteúdos de ensino podem ou devem garantir. Quanto mais complexas e coletivas as práticas de Educação do Campo em que se inserem educandos e educandas, e isso quer dizer ir além das práticas particulares de cada organização ou Movimento Social, mais ela se torna objeto do curso.

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Por isso, se essa inserção não puder ser condição de entrada, deve ser intencionalidade do processo, desafio que deve ser transformado em estratégia pedagógica de cada Tempo Comunidade, integrando o exercício da práxis.

Da mesma forma, garantir e intencionalizar este diálogo, que é político, pedagógico e epistemológico, pode ajudar efetivamente a provocar a emergência dos sujeitos (pessoas e coletivos) na condução do seu processo formativo. Ele integra o movimento permanente, e às vezes contraditório, entre o particular e o universal na produção do conhecimento, na construção do ferramental teórico de análise da realidade e na consolidação de valores próprios às novas relações sociais pretendidas.

Um curso em si mesmo não tem a força material necessária ao enraizamento de uma prática social como a Educação do Campo, mas o projeto formativo que o produz e se produz a partir dele pode compor o processo de “territorialização” desta prática. Parafraseando Bernardo Mançano Fernandes, talvez seja possível afirmar que a Pedagogia da Terra da Via Campesina se constitui como um “território imaterial” que procura contribuir com a formação dos “territórios materiais” da Educação do Campo, o que quer dizer com a produção do campo como um espaço de vida plena e de uma educação comprometida com esta vida e seus sujeitos (In: Molina, 2006, pág. 29).24

A concepção de Educação do Campo que se busca enraizar através deste processo de formação de educadores é aquela que retoma sua materialidade de origem: um projeto educacional vinculado às lutas sociais camponesas, de natureza anticapitalista e voltado à construção de um novo projeto de nação, de sociedade, de campo. Projeto que pressiona por políticas públicas que garantam de fato a universalização do acesso às diferentes formas de educação; mas que tensiona a visão liberal de pedagogia, supostamente “universal”, e se integra ao desafio de construção de uma práxis de educação unitária da classe trabalhadora.

A tarefa continua e é grandiosa. Esperamos que prática e reflexão expressas neste texto possam ser lidas como um dos movimentos do trabalho coletivo que ela exige.

Referências Bibliográficas

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do campo? Idosos, Adultos, Jovens, Crianças e Educadores. Brasília: Pronera/NEAD, 2006. 7. DEMO, Pedro. Pesquisa princípio científico e educativo. 12a ed., São Paulo: Cortes, 2006. 8. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 32a ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 9. KONDER, Leandro. O futuro da filosofia da práxis. O pensamento de Marx no século XXI. 2a ed., Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

24 Segundo Fernandes, “territórios são espaços geográficos e políticos, onde os sujeitos sociais executam seus projetos de vida para o desenvolvimento. Os sujeitos sociais organizam-se por meios das relações de classe para desenvolver seus territórios. No campo, os territórios do campesinato e do agronegócio são organizados de formas distintas, a partir de diferentes classes e relações sociais” (pág. 29). “O território é uma fração do espaço geográfico e ou de outros espaços materiais ou imateriais. (...) o território imaterial é também um espaço político, abstrato. Sua configuração como território refere-se às dimensões de poder e controle social que lhes são inerentes” (pág. 33).

31

10. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005. 11. MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. 12. MOLINA, Mônica Castagna e JESUS, Sonia Meire Santos Azevedo de (orgs) Contribuições para a

construção de um projeto de Educação do Campo. Coleção Por Uma Educação do Campo, n. 05, Distrito Federal: Articulação Nacional Por Uma Educação do Campo, 2004.

13. FERNANDES, Bernardo Mançano. Os campos da pesquisa em Educação do Campo: espaço e território como categorias essenciais. In.: MOLINA, Mônica Castagna (org.) Educação do Campo e Pesquisa. Questões para reflexão. Brasília, MDA, 2006, pág. 27-39.

14. VALLE, Lílian do. Os enigmas da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. 15. ______. Educação. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (org.). Dicionário da Educação

Profissional em Saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2006, pág. 99-106.

Documentos consultados

1. Construção da Memória da Turma José Martí. Registros do processo. Veranópolis, maio de 2003 a novembro de 2005.

2. Instituto de Educação Josué de Castro: características gerais da organização escolar e do método pedagógico. Documento que integra a sistematização do processo pedagógico do Iterra/IEJC. Veranópolis, outubro de 2006.

3. Memoriais de Aprendizado dos estudantes da Turma José Martí. Veranópolis, setembro de 2005. 4. Memória do Processo de Pesquisa na Turma José Martí. Texto elaborado em janeiro de 2006. 5. Memória da Turma José Martí. Veranópolis, setembro de 2005. 6. Projeto Metodológico de cada etapa do curso. Veranópolis, março de 2002 a setembro de 2005. 7. Projeto Curso Pedagogia Anos Iniciais do Ensino fundamental: Crianças, Jovens e Adultos. UERGS,

2001 e 2004.

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Parte 2

Memória Cronológica da Turma José Martí 25

“Todo esta escondido en la memoria,

refugio de la vida e de la historia. Todo esta cargado en la memoria, arma de la vida e de la historia...”

Da canção “La Memoria” de León Grieco 26

Ousando, os trabalhadores e trabalhadoras vão além dos limites impostos por aqueles que querem explorá-los. Ousando, os camponeses resistem na terra ou conquistam-na novamente depois de terem perdido o direito de cultivá-la. E ao resistir, semeiam vida, esperança, semeiam o alimento. Colhem comida, colhem cultura, colhem um jeito próprio de viver. Vivem em constante semeadura e colheita; uma faz parte da outra.

Durante o processo de resistência, os camponeses aprendem que quando estão sozinhos as coisas ficam mais difíceis e se torna necessária a organização. Resistir já não basta. É preciso inventar novos jeitos. É preciso fazer semeadura com enxadas e canetas, na terra e nos cadernos, porque o latifúndio da riqueza e da terra está junto com o latifúndio do saber e do conhecimento. Estudar e conhecer são tão fundamentais quanto arar a terra.

Por isso, estudamos, nos organizamos. Por isso, a necessidade de uma Turma de Pedagogia. Esse texto-memória conta a história desses sujeitos, porém de uma parcela bem particular: uma Turma de Pedagogia da Terra da Via Campesina.

Falar em memória tem sido comum na sociedade em geral. Porém é necessário delimitar de que memória falamos e para que serve. A memória valorizada socialmente é também desvalorizada em alguns momentos. Valorizada ao aumentarem os mecanismos de registro e gravação dos fatos, dos acontecimentos e das pessoas. Porém, extremamente desvalorizada na medida que não é posta como parte da construção do conhecimento.

Segundo Madalena Chauí, a memória é a garantia de nossa própria identidade. É poder dizer “nós” reunindo tudo o que fomos e fizemos a tudo que somos e fazemos. A memória individual ou coletiva traz o que possuiu maior significação. Por isso, geralmente não guardamos um fato inteiro, e sim, os detalhes mais importantes do mesmo e que nos marcaram. A memória é a organização/síntese de acontecimentos. Não é neutra porque traz uma interpretação dos fatos.

A memória não é a totalidade da realidade, mas fragmentos com sentido. Em nosso caso fomos lembrando e registrando os momentos marcantes de cada etapa. A reflexão da nossa história, agora trazida nesse texto, é parte de algo construído desde o início do curso e que foi chamado de “Memória da Turma”. A cada etapa algumas pessoas ficaram responsáveis por essa

25 Este texto é parte da obra final produzida pela turma com o nome de “Memória da Turma José Martí” e entregue a cada educando e educanda e também a educadores e educadoras do curso e das organizações da Via Campesina na solenidade de formatura realizada em 23 de setembro de 2005. Além deste texto cronológico a obra inclui uma contextualização histórica da criação do curso, um balanço dos objetivos atingidos no processo e os textos sobre estratégias pedagógicas e sobre as fases de formação da turma que foram inseridos na parte 4 deste Caderno. Há um documento específico do curso de registro detalhado das decisões e dos passos de construção da memória da turma em cada etapa. Está disponível no Centro de Documentação do Iterra. 26 Canção inspiradora de muitos momentos de construção da Memória da Turma José Martí.

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sistematização, sendo na maioria os secretários e secretárias dos Núcleos de Base (NB’s) 27. Nas três primeiras etapas era um trabalho feito por estudantes que integravam o Colegiado de Coordenação dos Movimentos. A partir disso, nasceu a idéia de fazer a sistematização da história toda. Este trabalho foi baseado nos documentos, nas discussões da turma, nas memórias guardadas. Ele traz a bonita história da Turma Pedagogia da Terra José Martí. Começou a ser elaborado na sétima etapa do curso, em que mais uma pessoa passou a ocupar o posto de trabalho responsável pelos registros, com a tarefa específica de sistematizar o que a turma construísse e decidisse que deveria compor esta sua obra coletiva final. 28 Ainda nesta etapa a turma se debruçou duas vezes sobre o texto para pensar sua elaboração. Durante a última etapa do curso a turma teve vários momentos de reflexão sobre a memória, desde os acréscimos na parte da história cronológica, bem como momentos de análise sobre a trajetória vivida.

Este texto tem a intenção também de trazer presente a memória/história da turma como algo marcante em nossa formação, sistematizar algumas reflexões, angústias, conflitos e contradições, e a superação que fizemos. Além de ser um texto importante para nós, tem o objetivo de contribuir com outras experiências educativas/formativas nas nossas organizações, ao olhar limites e avanços nesse processo específico.

Momentos da História da Turma José Martí

A história da Turma José Martí começou em momentos diferentes que se completaram quando a turma estava ali, convivendo, estudando, refletindo e trabalhando.

Todos os momentos anteriores, desde as negociações até a vivência, fazem parte da nossa história. Tudo isso tem reflexos na nossa caminhada enquanto turma, no nosso processo de formação. A seguir traremos o que aconteceu conosco no período em que permanecemos juntos.

Etapa Preparatória e Etapa I

A etapa preparatória teve a sua abertura no dia 15 de março de 2002, em Veranópolis, no Iterra com um ato bonito e muito significativo. A mística feita pelo MAG VIII29 mostrou a relação da terra com o ser humano e com a pedagogia. Os representantes dos Movimentos e Pastoral presentes no Ato de Abertura falaram da importância do curso e do quanto era preciso aproveitá-lo como ferramenta de conhecimento para contribuir na luta do povo.

Quem paga o estudo de vocês são os trabalhadores. A burguesia nos faz algumas concessões porque é obrigada. Se fosse por eles, nós seríamos analfabetos, como são tantos em nosso país (Mário Lill, MST).

Quem sabe estaremos formando aqui os que darão rumo à educação no país (...) os que forem capazes de ir até o final do curso serão os que conseguirem demonstrar compromisso com a luta (Joceli Andrioli, MAB).

Para as mulheres, ter deixado as panelas e estar aqui já é uma vitória (Luciana, MMTR).

27 NB é a instância organizativa de base do IEJC. 28 O registro da memória da etapa de cada turma é atribuição de um dos postos de trabalho que integra a Unidade Sistematização do IEJC. A criação deste posto de trabalho foi uma decisão tomada pela escola a partir e durante o processo vivenciado pela Turma José Martí.

29 A turma Magistério VIII, Roseli Nunes, que ficou responsável por fazer a mística de abertura da nossa turma já

havia acabado seu Tempo Escola e por isso, somente alguns dos educandos/as da turma fizeram a mística. Convivemos depois por duas etapas com esta turma que muito contribuiu com nossa formação pelo tempo que já tinham na escola e pelo acúmulo de discussão enquanto educadores e educadoras do povo.

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Nosso lema é Trabalho, Terra e Teto. Nós também queremos fazer a revolução neste país (Maria Santa, MTD).

Sejam educadores formadores, ajudem os camponeses a elevar sua auto-estima, acreditar em si mesmos e na sua organização (Paulo Facione, MPA).

Não esqueçam que o que trouxe cada um de vocês aqui foi o vestibular da luta (Érico, PJR).

Essas falas demonstravam um pouco do que as organizações esperavam de nós. Ao longo do texto será possível responder em que medida conseguimos concretizar esses objetivos. Afinal, o curso veio para atender essa demanda de formação de pedagogos e pedagogas, para atuarem na formação dos sujeitos envolvidos na luta de nossas organizações.

O curso aconteceu no espaço do Instituto de Educação Josué de Castro. A primeira semana foi para iniciar o conhecimento da própria estrutura física, da organização e do trabalho na escola. Logo no primeiro dia, nos organizamos em sete Núcleos de Base e coordenação da turma. Também escolhemos pessoas para compor a Equipe de Disciplina e Ética e o Conselho Fiscal do Instituto, bem como, fizemos estudo do Regimento interno no qual estão as normas gerais de funcionamento da organicidade, convivência e atribuições das instâncias. Muitas vezes não sabíamos onde fazer cada discussão, em que instâncias. Era falta de domínio do próprio fluxo interno das informações e discussões, que foi sendo assimilado na medida que vivenciamos o dia a dia no IEJC.

Ao tentar entender esse processo de inserção na escola, dialogamos no sentido de que as turmas quando aqui chegam já existe uma construção de acordos a serem cumpridos em função do andamento do coletivo. Acontece que, pelo fato de não serem os protagonistas desses acordos tendem a não se sentirem sujeitos desse processo. Então, costuma haver uma rebeldia contra aquilo que já está construído.

Os primeiros dias foram difíceis e muitos conflitos se estabeleceram. Para alguns educandos, algumas educandas, era a primeira vez que ficavam longe da família por tanto tempo. Além disso, os horários e tempos educativos com os quais não estávamos acostumados causavam cansaço. As exigências foram grandes, porque era necessário mudar muitos hábitos e ter uma disciplina rigorosa para dar conta das tarefas. Logo na primeira semana o excesso de atrasos nos tempos educativos chegou a 72 minutos, repostos no domingo (que era Domingo de Páscoa), antes do café da manhã, lendo. As anotações dos atrasos se davam pelos responsáveis, o coordenador e a coordenadora dos Núcleos de Base (NB’s).

Esse método foi sendo questionado e havia um sentimento de que o Instituto teria que se habituar com o nosso jeito, além de trazer os elementos da diversidade enquanto Via Campesina. Colocava-se, por parte de algumas educandas e educandos, que por ser o IEJC uma escola de camponeses não respeitava os horários e tempos do campo. Por outro lado, outras pessoas entendiam que o Instituto respeitava. A diferença é que a escola estabelece horários definidos para uma organização disciplinada e a vida dos camponeses tem horários, porém são flexíveis de acordo com sua necessidade. Outra avaliação é de que nós, pelo fato de sermos militantes, precisaríamos avançar na compreensão e aproveitamento do tempo, pois vivemos um processo de formação intensivo.

Toda essa nova vivência dentro da escola significou para nós a mudança da nossa própria existência. Para a grande maioria foram um choque a questão dos horários e as exigências em torno do cumprimento das tarefas.

Tudo era novo no mundo novo em que nos propomos a viver e nos construirmos de um jeito diferente. O IEJC enquanto esse mundo novo, por fazer conjuntamente a sua gestão, também nos colocou desafios. Para o Primeiro Encontro Geral da Escola de que participamos, ficaram

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alguns medos e significações. Antes do Encontro estudamos nos nossos NB's as prestações de contas do mês anterior, os orçamentos do mês seguinte e fizemos avaliação da vivência social. Esta, uma espécie de crítica e autocrítica para que cada pessoa ajudasse e fosse ajudada pelas demais na sua melhor construção como lutadores do povo e como seres humanos. O Encontro da Coletividade do Instituto tem uma mística própria e se constitui como um espaço pedagógico de aprendizagem sobre como gerir uma escola. É a Assembléia para decisões e apontamentos. Porém no início não tínhamos essa compreensão, o que nos fazia ficar muito tensos nos momentos do encontro. A própria dinâmica era organizada de uma maneira formal que dificultava a participação das pessoas nas decisões e particularmente a nossa participação já que éramos novos no Instituto.

Essa inserção e construção enquanto coletividade do IEJC era um desafio. A outra grande tarefa era a construção do coletivo da turma que necessitava dar passos para irmos nos entendendo e estabelecendo objetivos, metas e desafios. O fato de estarmos em diversos Movimentos e Pastoral trouxe também elementos diferentes de análise e de identidade. Alguns já conheciam relativamente a história de algumas das organizações, mas isso não era do domínio de todas e todos. Por isso, a necessidade e importância de fazer o Seminário dos Movimentos, como sendo um espaço de socialização da história de luta, dos objetivos e da organização. Permeou dentro da turma, ao longo das primeira e segunda etapas, um certo agrupamento por organizações. As pessoas tinham dificuldades de se abrir para os debates das outras organizações, entender cada processo, bandeiras de luta específicas e as próprias relações estabelecidas eram restritas às próprias organizações de origem.

Uma constante foi a sobreposição dos objetivos e interesses pessoais sobre os coletivos. Um exemplo era a organização dos quartos que são de quatro, cinco a dez, onze pessoas. Muitos não entendiam essa necessidade da convivência coletiva, o que ocasionava conflitos nos quartos pelos interesses diferenciados entre as pessoas.

Por entender a importância de conhecer a história das pessoas, para melhor conviver e melhor ajudar foi que fizemos a socialização das nossas histórias de vida. Essa atividade foi realizada nos NB's. Sentimos a dificuldade de falar dos medos, dos problemas que nos cercam. Por isso, muitos choraram e todos passaram a ter mais apoio dos companheiros e das companheiras e um certo compromisso com a formação dos demais, principalmente do NB. Essa prévia foi importante para a construção do Memorial de Vida, o “vestibular” para ingresso oficial na Universidade. O Memorial foi construído e ao mesmo tempo revivemos sonhos, dúvidas, certezas, momentos marcantes da vida.

Fizemos também o Teste de Conhecimentos Gerais, este para uso interno na Escola, no qual tivemos um baixo desempenho. Tivemos dificuldades ao responder as questões, o que revelou algumas deficiências que teriam que ser levadas em conta e, na medida do possível, supridas durante o curso.

O nome e os objetivos da turma foram momentos de debate e discussão. Os objetivos foram elaborados a partir de propostas iniciais que fizemos nos NB's. Quanto ao nome, discutimos bastante. A primeira proposta é que fosse uma construção da turma. Na primeira plenária não foi possível fechar, as pessoas queriam manter o combinado de ser um nome construído e nenhum dos nomes agradou completamente. Então, foi necessário fazer uma votação, já que não foi possível chegar a um consenso. Na votação o nome escolhido foi José Martí. Esse nome demorou a ser incorporado. Na avaliação da primeira etapa a turma falou que sentia a necessidade de estar estudando sobre esse lutador para melhor compreender o sentido de ter esse nome. Ao conhecermos a história do educador, poeta, pensador da transformação social, cubano internacionalista, agarramos como sendo digno de dar nome à turma e durante o curso fizemos estudos e seminários para aprofundarmos o conhecimento sobre ele e seu ideário pedagógico e político.

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Ainda durante a etapa I, tivemos vários momentos de desespero, choros e vontade de desistir. Era saudade da família, cansaço, cobranças para concretização das atividades. Uma companheira desistiu e foi um choque para a turma, mas os outros ficaram firmes com alguns consolos coletivos e esperança de mudar aspectos que pudessem contribuir com nossos interesses. Além da grande reclamação dos horários e das muitas atividades tínhamos ações individualistas, o que dificultava a nossa inserção e melhor entendimento do processo, bem como de capacidade de contribuição. As pessoas estiveram bastante acomodadas esperando umas pelas outras e principalmente da coordenação, como se fossem os responsáveis por levar tudo adiante.

Um desafio da turma foi a construção do Parque Infantil no espaço de pátio do IEJC, como espaço a ser utilizado pela Ciranda Infantil30. Havia calçamento e foi necessário que, num domingo de manhã, a turma fizesse a remoção das pedras. Depois as pessoas que trabalhavam na Prestação de Serviços continuaram o trabalho e a turma voltou a contribuir num outro domingo na construção dos brinquedos, quiosque, etc. Essa atividade gerou descontentamentos e reclamações por parte de alguns. Houve comentários de que sequer em casa alguns trabalhavam no domingo, e na escola precisavam trabalhar. Na própria avaliação no final do TE foram apontados vários limites que a turma teve enquanto individualismo e fechamento, e os desafios para a etapa seguinte na perspectiva da superação desses limites.

A Etapa Preparatória foi emendada à primeira etapa. Foram setenta e dois dias na escola. Não propriamente no espaço escola, em Veranópolis, porque saímos duas vezes. A nossa primeira atividade enquanto turma fora do IEJC foi a participação na Conferência Estadual Por Uma Educação Básica do Campo, em Porto Alegre. Nessa atividade fomos desafiados a fazer a Mística de Abertura, o que mobilizou a turma e nos envolvemos para construir o melhor possível. Foi um momento de testar a nossa capacidade organizativa. Demonstramos desorganização, às vezes as pessoas não se entendiam, houve discussões fora dos espaços e momentos apropriados. Por outro lado, a participação foi fundamental para o início de contato com a discussão da Educação do Campo (que naquele momento ainda era chamada de Educação Básica do Campo) e de mostrarmos a própria mística enquanto turma da qual ficamos orgulhosos de vivenciar. A segunda vez que saímos foi para um Seminário sobre a ALCA, também em Porto Alegre.

As produções e desafios coletivos da turma iam dando corpo à nossa identidade. Tanto a mística da Conferência de Educação, como a construção do Memorial faziam com que nos víssemos uns nos outros porque era preciso vencer conjuntamente. A própria ansiedade em saber se todos passaram no “vestibular” demonstrava a nossa preocupação com os outros, embora esse ainda fosse um grande limite pelo pouco tempo de convivência. Durante a etapa I tivemos um momento que nos emocionou bastante: uma companheira da turma nos revelou que era soropositivo e contou também sobre a sua luta pela vida. Essa experiência nos deixava com uma certa responsabilidade de continuar lutando ao ver o exemplo de persistência da companheira.

A passagem da etapa preparatória para a etapa I foi marcada com uma mística onde todos educandos e educandas firmaram o compromisso em relação ao curso, com palavras que representavam as nossas expectativas para o grande desafio que se colocava.

Para fazer tudo isso era preciso força de vontade extraída de vários momentos do nosso próprio companheirismo. Momentos extraídos da nossa mística de lutadores e lutadoras. Um dos espaços intencionalizados foi a mística no dia 17 de abril, que trouxe presente o Massacre de Eldorados Carajás. A representação dos corpos com rastros de sangue nos causou a indignação necessária para entender o tamanho da necessidade de continuar lutando.

30 As Cirandas Infantis são uma prática constante nos Movimentos Sociais, principalmente no MST. É um espaço de educação infantil para crianças de 0 a 6 anos com a tarefa de trabalhar as várias dimensões do ser criança. Para maiores informações ver: Cadernos de Educação do MST, nº 12, 2004.

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Outro elemento importante que marcou o início das etapas foi o estudo do PROMET31 pois trazia os desafios e as atividades concretas que nos eram propostas. Muitas vezes nos confundimos com tanta sigla diferente para ser decorada e compreendida. Os PROMET's das etapas preparatória e primeira foram construídos pela coordenação do curso e do IEJC e pelo colegiado dos Movimentos/Pastoral.

O Colegiado Interno da Via Campesina na turma foi constituído e reuniu-se pela primeira vez para discutir como poderiam estar contribuindo, política e pedagogicamente com a turma. Aí foram escolhidas pessoas para fazerem a memória da turma, da etapa preparatória e da primeira etapa. Essa discussão sobre a memória, apesar de aprofundada, tinha apenas indicações e a turma deveria ir construindo o jeito de elaborar. A primeira memória foi construída por dia e colocou, principalmente, os elementos sobre as disciplinas e conteúdos estudados, não conseguindo trazer presente as relações estabelecidas. Durante a etapa I realizamos o Seminário da Memória da etapa preparatória em que as grandes discussões foram: deveria constar nomes quando se relatava os fatos; que tipo de fato deveria ser registrado? como construiríamos a memória? Essas eram as preocupações da turma do ponto de vista do jeito de escrever.

As aulas dessa primeira etapa estavam ligadas ao estudo sobre os sujeitos: Crianças, jovens e adultos; a história da educação e política geral. Tivemos contato com conceitos marxistas importantes como mais-valia, modos de produção, relações de produção e fomos questionando nossas concepções de mundo. Também aprendemos sobre como usar e a importância do Diário de Campo no ato de pesquisar.

Um momento marcante foi o estudo sobre as matrizes pedagógicas formativas do ser humano: a cultura, o Movimento Social, a exclusão e o trabalho. Essas matrizes foram aprofundadas em outras disciplinas e outros espaços, durante todo o curso e fazem parte da nossa concepção de educação. Estudamos também, textos literários e lembramos de nosso tempo de criança, devorando histórias infantis. Foi, principalmente, no estudo dos componentes curriculares que começamos a aprofundar a história com um olhar diferente, desde o ponto de vista da classe trabalhadora. Elementos importantes de análise foram trazidos pelos educadores e educadoras da turma, que contribuíram para argumentar o contraponto necessário à história, contada nas escolas, que só evidencia os grandes heróis das elites.

Uma “disciplina” que perpassou todas as etapas foi a da pesquisa. Ainda na primeira etapa tivemos algumas noções metodológicas e uma experiência prática: observamos algumas pessoas dentro do próprio Instituto. Alguns observaram as crianças, outros observaram os jovens. O primeiro contato com a pesquisa foi no sentido de testar a nossa capacidade de estranhamento, de observar os detalhes que passam desapercebidos. Olhar principalmente os sujeitos, as pessoas ao estabelecerem relações. Para pensar o processo geral da pesquisa se reuniu o Colegiado dos Movimentos. Nessa reunião se decidiu a linha de pesquisa, quais seriam os espaços importantes, os sujeitos a serem pesquisados.

O Tempo Comunidade começou ainda no IEJC com muitos trabalhos, apontamentos e saudades. Tivemos o Ato de Envio32 para o nosso primeiro TC que foi o menor que tivemos durante o curso: apenas quarenta dias. Era preciso fazer atividades relacionadas ao curso e aprofundar a inserção, ou iniciá-la se fosse o caso, na organização que nos enviou ao curso. Foram muitas recomendações quanto às atividades a serem desenvolvidas e como nos organizar para fazê-las. Uma leitura importante que fizemos nesse primeiro TC foi do livro "O Manifesto

31 O Projeto Metodológico – PROMET – é o documento projetivo de cada etapa. Consta nele todos os objetivos do curso, da etapa, as metas de aprendizagem, as disciplinas a serem trabalhadas. 32

O Ato de Envio é realizado no final do Tempo Escola quando as turmas saem para o Tempo Comunidade. Essa é uma prática realizada no IEJC com todas as turmas que aí estudam.

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Comunista" (Karl Marx e Friedrich Engels), que tivemos que interpretar respondendo algumas questões que foram entregues no início do TE II.

Os desafios foram grandes na pesquisa que realizamos sobre os sujeitos do campo. Foi um exercício de observação, para aprender a estranhar aquilo que era normal, corriqueiro. Tivemos dificuldade de fazer o estranhamento da realidade, de relatar e refletir sobre a mesma, além de fazer a sistematização. Muitos de nós fizemos a observação no local onde moramos e isso fez com que ficasse ainda mais difícil, pois a tendência de ‘normalizar’ o que existe e acontece é ainda maior.

Foi também um período de espera por parte de alguns. Espera de que alguém do Movimento dissesse que atividade era necessário ser feita. Tínhamos muitas angústias e vontade de fazer, de mostrar serviço. Afinal, o curso estava nos munindo de capacidades de fazer a leitura da realidade e era preciso utilizar-se disso. Porém, em muitos casos nos acomodamos não percebendo o que fazer. Em outros casos, dos companheiros e companheiras que já estavam há algum tempo na militância, entraram já com tarefas a serem cumpridas. Foram tarefas diferenciadas pelo nível de inserção que cada educando e educanda tinha em sua organização. Houve reflexões dizendo que o Movimento não entendia o curso e por isso não deu tempo pra fazer as atividades. Depois, começamos a nos perguntar quem é o Movimento, questionando se não éramos, também responsáveis por puxar a frente e entender o que era preciso ser feito para contribuir com as organizações.

Etapa II

Retornamos para a escola para a etapa II com todos os trabalhos feitos, que foram entregues no primeiro dia de aula. Esse Tempo Escola foi, de 2 de julho a 16 de agosto, de 2002. O processo de inserção no IEJC foi menos difícil que na etapa anterior. O fato de já conhecermos o Instituto e o funcionamento do mesmo contribuiu para que mais rapidamente nos inseríssemos, muito embora, haja muitos aspectos que vão mudando constantemente. Por isso, a cada volta era preciso “entrar no barco andando” e ir tentando compreendê-lo.

As Noites Culturais realizadas, principalmente nos sábados a noite, se constituíam como espaço importante de relação com o coletivo do IEJC. Esse espaço, com trocas de experiências, enquanto cultura musical, danças, poesias, dinâmicas e brincadeiras. Em alguns momentos, as noites culturais não foram o espaço de integração. Até se estabeleceu uma certa competição entre as turmas, apesar de não ser essa a intenção. O que aprendemos foram as expressões distintas, a valorização desses jeitos de cada um. A nossa turma tinha a maioria das pessoas da Região Sul do Brasil, enquanto as outras turmas tinham mais diversidade, o que enriquecia a troca. Às vezes, nossa turma teve dificuldade de aprofundar a inserção nesses momentos, fazendo seus espaços e não conseguindo se integrar com os demais. Havia também uma certa resistência e não entendimento da importância do próprio Tempo Cultura, sendo que participamos muitas vezes porque era um tempo educativo obrigatório.

Num dos sábados, tivemos o que chamamos de “Noite Latina”. Foi uma participação especial de Pedro Munhoz e Oscar Jara, 33 que nos encantaram com sua bonita voz e o conteúdo das canções.

Os domingos no IEJC eram para organização pessoal, atividades de sobrevivência feita pelos NB's, como limpeza e alimentação, algumas reuniões necessárias e muitos aproveitavam para lavar roupas, passear na cidade, ler algo que não deu tempo durante a semana. Outra atividade realizada pela turma como contribuição era de uma pessoa por NB ajudar na Ciranda nos

33 Pedro é cantor e compositor ligado aos Movimentos Sociais e Oscar Jara um educador da Costa Rica, vinculado à Educação Popular, que estava visitando a escola.

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domingos por determinado tempo. Geralmente a ajuda era na limpeza e ornamentação dos espaços da Ciranda Infantil.

Os componentes curriculares da etapa foram na linha da história do Brasil enquanto formação social e enquanto Educação. Conseguimos perceber as relações entre a história política, social, econômica e a ligação que a educação teve com esses outros processos e períodos históricos. Quer dizer, a história brasileira pensada desde outros povos que aqui invadiram e se adonaram e suas artimanhas para se manter no poder. Por outro lado, o caminho que se aponta enquanto classe trabalhadora e como pensar o processo de transformação. Essas, como outras disciplinas iam nos situando no mundo e no Brasil, bem como na questão específica da educação. No aprofundamento sobre a educação desde a nossa perspectiva, as aulas foram fundamentais, como a discussão sobre Educação Popular. Aprendemos e tiramos lições importantes das tentativas de fazer educação de um jeito diferente desde a necessidade da classe trabalhadora, inclusive com a contribuição do companheiro Oscar Jara, da Costa Rica, que nos falou sobre sua experiência de Educação Popular e sistematização das práticas educativas.

É importante dizer que em alguns componentes curriculares houve dificuldades no seu desenvolvimento, devido as concepções diferentes dos educadores não ligados as nossas organizações e pela nossa postura em relação aos mesmos. A turma se fechou para os educadores, o que distanciou a relação e a compreensão dos próprios conteúdos.

Tivemos a devolução daquilo que produzimos na pesquisa durante o Tempo Comunidade, já com muitos apontamentos. Em seguida, na disciplina sobre pesquisa fizemos algumas reflexões sobre o processo de desnaturalização, de estranhamento da realidade. Para a realização da pesquisa a turma foi organizada em grupos: infância, jovens, adultos, educadores e idosos. O foco de pesquisa foi “como se formam os sujeitos do campo”.

Para a divisão dos grupos, algumas organizações fizeram a combinação do que pesquisar. O MMC tirou como linha pesquisar as mulheres nas diferentes faixas etárias. A PJR definiu que pesquisaria jovens e educadores. O MAB tentou garantir pesquisas sobre todos os sujeitos. O MPA tentou contemplar os sujeitos, porém tinha menos educandas, não conseguindo estar em todos os grupos de pesquisa. O MTD fez a discussão de que as duas educandas pesquisassem crianças e jovens pela necessidade do Movimento entender essas faixas etárias no sentido de intencionalizar melhor o trabalho organizativo. O MST contemplou a afinidade e a necessidade da realidade em que estavam atuando, tentando garantir todas as fases a serem pesquisadas. Houve algumas trocas de educandas e educandos dos grupos de pesquisa. O motivo era que alguns temas se encaixavam melhor com o outro grupo, ou por discussão nas organizações. Cada Grupo de Pesquisa contou com a colaboração de professores e professoras de instituições universitárias que colaboraram orientando os grupos e os educandos e as educandas na realização do trabalho.

A continuidade da pesquisa se deu no TC. Fizemos observação de sujeitos do grupo etário em que seria a nossa pesquisa para construção da monografia.

Naquela etapa os Grupos de Estudo também tiveram a tarefa de contribuir mais intencionalizadamente com o avanço do conhecimento de cada um e cada uma de seus membros. Havia uma meta de tentar avançar o próprio desempenho dos grupos, que na etapa anterior ficou falha. Porém, ficou bastante restrito aos estudos e avaliações dos componentes curriculares e não conseguimos aprofundar o acompanhamento individual de cada educanda e educando em suas leituras e estudos. Os grupos de estudo conseguiram avançar no desempenho de seu papel, proporcionando momentos coletivos de debate sobre as disciplinas e estudos. No entanto, faltaram momentos de leitura e estudo individual para suprirmos nossas necessidades de aprofundamento.

O IEJC realizou, nesse período, um processo chamado “emulação das místicas”. Era feita uma avaliação das místicas realizadas durante a semana, com o levantamento dos nomes nos NB's e a escolha na Coordenação dos Núcleos de Base do Instituto (CNBI). Essas eram homenageadas e os NB's que as fizeram tinham um “prêmio”, geralmente um livro. Muitas vezes os NB's da nossa

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turma foram emulados. Aconteceu que um dia, dois coordenadores de NB's da turma chegaram atrasados na CNBI em que se fazia a emulação das místicas e, por isso, as indicações não puderam ser relatadas por esses coordenadores, conseqüentemente não foi emulada a mística de um dos nossos NB's, o que causou um certo conflito, pois as pessoas gostavam de receber os prêmios e sentirem-se elogiadas pelo desafio de elaborar melhor o tempo de mística da coletividade. Ao mesmo tempo em que era um processo bonito de valorização do trabalho feito, às vezes, se tornou motivo de competição entre os NB's e entre as turmas. Por isso, a dificuldade do como fazer a valorização do que é bem planejado e bem feito, sem estabelecer competição no processo de educação/formação das pessoas.

Naquela etapa foi a primeira vez que tivemos crítica e autocrítica na turma. Foi um momento com preparação prévia, estudo nos NB's e dicas de quem já havia feito. Tivemos medo desse momento afinal era uma coisa nova, que a maioria da turma ainda não tinha feito. A crítica foi um espaço de toda turma. Foi um tanto superficial porque as pessoas tinham um certo medo de dizer o que realmente percebiam nos outros. Algumas avaliações foram pessoais e não trouxeram elementos de contribuição.

No final do Seminário a turma avaliou que a maioria das críticas sobre as pessoas que eram feitas nas conversas informais não apareceu no momento de crítica, com a tendência de despolitizar o processo de ajuda através da crítica, apontamento dos desvios, limites e desafios. Surgiu aí e em outros momentos na turma um conflito sobre a construção da coletividade. A pergunta era: como se constrói a coletividade, com que elementos, o que é realmente uma coletividade e, principalmente, que tipos de relações se estabelecem e/ou devem ser estabelecidas. Tivemos um importante seminário acerca desse tema que fomentou importantes discussões sobre o coletivo, as relações e interesses individuais e as possíveis superações.

Ao longo da etapa, tivemos a discussão de que diminuímos a animação, cantando menos e socializando poucas dinâmicas em relação ao que fizemos na etapa 1. Outro limite foi em relação aos tempos educativos que não foram tão valorizados, com participação fraca, principalmente nos Tempos Educação Física e Notícia, nos quais as pessoas não participavam e usavam o tempo para fazer outras atividades. Houve avanços em relação ao fluxo de informações NB e coordenação da turma.

Realizamos durante a etapa algumas produções. Uma, a nobre tarefa de fazer a mística de formatura da Turma MAG VII, Herdeiros de Zumbi e contribuímos na preparação: painel, limpeza e ornamentação do Instituto, organização dos espaços e alimentação nos dias que antecederam a formatura, realizada no dia 20 de julho de 2002. Outra obra que produzimos foi a Síntese dos Aprendizados, no final do Tempo Escola, onde nos debruçamos para pensar sobre o que marcou, os ensinamentos e os aprendizados que tivemos. Importante para o auto-ajeitamento das idéias. Afinal de contas, que aprendizados ficam, essa era a grande questão que cada um, cada uma foi motivado a responder. Nas avaliações dos componentes curriculares também produzimos várias obras. Ao final de cada disciplina fomos desafiados a produzir textos-síntese, para percepção dos educadores sobre a nossa aprendizagem e para servirem como conceito de avaliação para a Universidade.

Outra tarefa que a turma tinha o desafio de construir era a memória da etapa. Nessa tarefa, a turma como um todo, não se envolveu ficando bastante sob a responsabilidade das pessoas escolhidas mais os/as secretários dos NB's. A turma ainda não tinha compreensão da importância da Memória. A visão era de que tínhamos mais uma tarefa a fazer.

O Tempo Comunidade 2 trouxe maiores desafios de inserção e de contribuição das pessoas da turma. Tivemos o desafio de ler e interpretar o livro Pedagogia do Movimento Sem Terra. Houve um avanço na inserção política nas organizações. Muita dificuldade de ligar a militância, as atividades do curso, a família e a sustentação financeira. Houve bastante ativismo das pessoas, no

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sentido de que participaram de inúmeras atividades para as quais foram designados, porém, pouco ajudaram a construir processos nas organizações.

O acompanhamento aos educandos, às educandas por parte das organizações foi diverso. Onde havia entendimento sobre a importância do ato de acompanhar, houve avanços na inserção, no entanto, se percebeu que muitos acompanhantes por não terem clareza do seu papel, tiveram dificuldade de contribuir com os educandos/as.

Durante esse Tempo Comunidade aconteceu eleição presidencial e a maioria da turma se envolveu. O Brasil escolheu um Presidente oriundo das classes operárias e a animação e expectativa do povo em relação às mudanças naquele momento foi grande.

Outra atividade importante durante esse TC foi o plebiscito da ALCA, em que muitos educandos e educandas ajudaram. O plebiscito conseguiu reunir dez milhões de assinaturas em todo Brasil dizendo não ao Acordo de Livre Comércio das Américas.

Etapa III

Voltamos para o IEJC em 3 de janeiro de 2003, agora para a nossa terceira etapa. Tínhamos o grande desafio de melhor organização como turma. Além disso, o próprio aprofundamento teórico em relação à questão da educação e do ato de pesquisar. Para o Tempo Comunidade o objetivo era de avançar no debate da Educação do Campo em cada organização.

Logo no início fizemos o Seminário do TC, como em todos os retornos para o Tempo Escola. O Seminário do TC, juntamente com o Seminário da Memória do Tempo Escola anterior, eram fundamentais para relembrarmos o caminho percorrido, os limites e apontar os desafios a seguir durante o Tempo Escola.

Quanto aos estudos, já na primeira semana tivemos aula de Sociologia da Educação. Foi um espaço importante de discussão das visões de mundo intrínsecas na sociedade e que influenciam a nossa ação. Algumas dinâmicas e “pegadinhas” do educador ajudaram a nos darmos conta do que e como pensamos o mundo e as relações. Entendemos muitos jeitos que existem de pensar e porque as pessoas pensam assim e não de outra forma. Nessa mesma linha, no componente Filosofia da Educação, estudamos a análise de Marx sobre as Teses de Feuerbach. Foi importante para compreendermos que uma teoria sempre tem outras teorias intrínsecas.

Durante uma aula socializamos e refletimos sobre a observação feita no grupo de base durante o Tempo Comunidade. Foi uma troca importante no sentido de entendermos os métodos usados no trabalho com o povo, os principais equívocos, limites e como poderíamos contribuir no avanço desse trabalho em nossas organizações. Tivemos também a contribuição do companheiro João Pedro na discussão sobre a Questão Agrária no Brasil, na qual fez um resgate da concentração da terra desde o período colonial até os dias atuais.

No intuito de entender o processo de educação/formação das pessoas, realizamos o estudo de “Clássicos da Pedagogia”. Nesse primeiro contato com as teorias sobre a educação os grupos de estudo foram desafiados a estudar alguns livros que sistematizam as concepções de educação e pedagogia. Posteriormente cada grupo fez uma apresentação sobre o clássico para toda a turma. Foi uma tarefa que exigiu esforço, pois poucos já haviam estudado e aprofundado as teorias pedagógicas. Outro estudo importante foi a aula de Língua Espanhola. Nessa aula, aprendemos dicas importantes sobre o espanhol, palavras mais usadas e também cantamos algumas músicas.

Tivemos o desafio de elaborar o projeto de pesquisa a partir das observações já feitas durante os TC's anteriores, das aulas de metodologia da pesquisa, da nossa escolha de qual faixa etária pesquisar e da contribuição dos orientadores e das orientadoras. A construção dos projetos se deu em meio ao desafio coletivo da turma e, que muitas vezes, se tornou um desafio individual, pois as pessoas tinham muita ansiedade de acabar, de fazer o seu projeto. Outro limite enfrentado

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foi em relação à própria estrutura, pois tínhamos poucos computadores e horários escassos para produzir e digitar o que escrevíamos. Através dos Grupos de Pesquisa nos ajudávamos e contamos também com a contribuição dos orientadores e orientadoras de cada grupo. Cada grupo foi acompanhado/orientado por duas pessoas que contribuíram durante todo o processo da pesquisa e na elaboração da monografia. Avançamos na própria compreensão da importância de pesquisar, de alguns métodos de pesquisa e no sentido de colocar no papel o que iríamos tentar entender e buscar respostas.

Um elemento que nos unificava como turma era o desafio de produção de obras coletivas. Nessa etapa a turma foi designada a participar enquanto Via Campesina do Fórum Mundial de Educação, que se realizou em Porto Alegre. Além disso, fizemos a mística de abertura da Assembléia Mundial dos Campesinos. Durante o Fórum, a turma foi convidada a expor sua experiência numa mesa temática.

Aproveitamos para visitar a UERGS, onde escutamos, por alguns minutos, o pronunciamento do novo Reitor. Pela sua fala foi possível observar que o projeto da Universidade sofreria uma transformação significativa, pois a compreensão de desenvolvimento do Reitor apresentava um conteúdo substantivamente diferenciado da proposta original da mesma. Além disso, não sabíamos como seria a nossa relação com a atual Reitoria. Na oportunidade, também escutamos o companheiro Fausto (da Via Campesina / Nicarágua) que nos falou sobre as definições da Assembléia dos Camponeses.

Essas atividades, fora do IEJC, proporcionaram lições importantes sobre nossa capacidade organizativa e nossa unidade de turma. Muitas vezes, não conseguimos ter a mesma compreensão dos encaminhamentos e nos atrapalhamos em nossas ações. Depois de avaliarmos os limites, ficou como desafio avançarmos na capacidade organizativa e na nossa própria unidade, capacidade de diálogo e consenso.

De volta à escola participamos de um momento comemorativo dos 19 anos do MST. Foi de comemoração pela grandeza do Movimento e pela importante luta que faz na sociedade.

Como participação no trabalho prático no IEJC, no domingo fizemos uma roçada juntamente com toda coletividade, para suprir as necessidades econômicas apontadas durante a elaboração do orçamento do mês seguinte. Esses momentos por serem entendidos como educativos e fundamentais no nosso processo de formação eram encarados pela maioria como serviço ao coletivo. Porém, isso não era um consenso. Muitas pessoas da turma reclamavam por precisar trabalhar no domingo, dizendo que eram atividades penosas.

A vivência no Instituto durante essa etapa foi conflituosa, com muitas reclamações em relação aos horários, ao Regimento da escola, às regras estabelecidas. A idéia era de que como não participamos da construção do método, então não éramos sujeitos desse processo. Alguns grupos, dentro da turma, fizeram discussões de como mudar algumas regras ou partes do seu método de condução que estava sendo o grande problema.

Um questionamento que se colocou nessa terceira etapa foi em relação aos tempos educativos apertados, os horários cheios e o pouco tempo vago para o próprio descanso. A questão que se colocava era se isso realmente é educativo e formativo para as pessoas e, que aprendizados poderíamos construir em meio a tantas tarefas a serem cumpridas. Logo no início da etapa as pessoas já se sentiam cansadas e com pouca disposição de realizar as atividades. Isso fez com que a turma propusesse mudança dos horários. Essas mudanças propostas foram levadas em conta pelas pessoas responsáveis do IEJC e quando voltamos do Fórum Mundial de Educação haviam algumas mudanças significativas nos horários, o que alegrou a turma. Na nova organização dos horários havia mais tempos vagos e levantaríamos mais tarde. Essas críticas e proposições da turma, enquanto parte da coletividade do IEJC, foram muito importantes para nós, ao conseguirmos entender o processo; e também para o Instituto, enquanto coletivo que ao se colocar em conflito repensou alguns elementos de sua prática educativa.

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Aconteceu uma plenária da turma, a qual chamamos de “plenária dos desabafos” no intuito de socializar os conflitos que estávamos passando e quais eram os sentimentos que permeavam a turma. Nessa plenária, várias pessoas falaram do cansaço e esgotamento pelas muitas tarefas e questionaram o próprio método da escola. Entendia-se que aí estava o “problema”. O fator positivo é que conseguimos fazer proposições, pensar diferente desde aquilo que estávamos criticando, porque o grande dilema era o fato de criticar e não propor mudanças para avançar. Durante toda a etapa ficou uma certa competição entre quem defendia o jeito que a Escola se organizava e os outros que questionavam. Apareceu também, um conflito com o acompanhamento da turma, feito por pessoas da própria turma. Em muitos momentos, houve o sentimento de que as decisões eram tomadas de cima para baixo, fazendo com que muitos se revoltassem e a culpa recaía sobre as pessoas que faziam o acompanhamento. Muito também, porque essas pessoas tinham dificuldade de aproximação com a turma e não estavam em todos os tempos educativos que a turma vivenciava, parecendo haver privilégios a alguns.

Participamos como Instituto de atividades na comunidade de Veranópolis. Uma foi a Marcha pela Paz, por ocasião do Dia Mundial de luta contra a guerra, onde mostramos a cara para a comunidade e a nossa capacidade organizativa, bem como nossa simbologia. Também fomos várias vezes em jogos de futebol em algumas comunidades do interior do município; e nos sábados a noite, principalmente os meninos, jogavam futebol de salão num ginásio na cidade. Esses momentos contribuíam na própria integração com a comunidade, pondo uma outra imagem dos Movimentos Sociais, que não aquela pregada pela grande mídia para distanciar a sociedade das organizações.

O trabalho no Instituo também foi um ponto polêmico na nossa vivência. Estudado desde a primeira etapa como matriz formativa do ser humano e assim entendido por nós como princípio educativo. Porém, a relutância contra esse tempo foi constante. Havia a compreensão de que o trabalho era cansativo e em conseqüência disso dificultava o estudo e a aprendizagem. Esse entendimento não era de toda a turma, mas conseguia provocar análises e envolver o coletivo na discussão. Em alguns de nós, ficava a indignação pelos outros não entenderem a importância do trabalho.

Um momento de construção como turma foi o processo de crítica e autocrítica, desta vez realizado nos Movimentos e Pastoral, onde apontamos nossos limites e desafios individuais e coletivos. Esse momento não foi consenso, pois uma parte da turma pensava que a crítica deveria ser com o grupo todo. A partir dessa avaliação de cada educando e educanda, o Parecer Descritivo da etapa foi construído nos NB's, num processo de crítica e autocrítica. Os pareceres eram enviados às organizações para terem noção dos nossos aprendizados, limites e desafios a serem superados.

Nesse Tempo Escola iniciamos a construção do símbolo da turma. Numa noite, nos reunimos para começar. No primeiro momento dissemos uma palavra que simbolizava a unidade da turma. Depois fizemos desenhos individuais e coletivos que expressassem tais sentimentos. Neste dia, ficou encaminhado que o grupo que havia organizado o processo até ali, faria a sistematização. A finalização do símbolo aconteceu na etapa seguinte com a contribuição da Irmã Elda, numa tentativa de contemplar os elementos significativos e que mais apareceram nos desenhos individuais.

Um pouco antes dessa etapa, havia sido lançado o caderno n. º 6 da coleção Cadernos do ITERRA, no qual consta um texto sobre a experiência da nossa turma. Lemos o caderno e ficamos bastante animados por ver a importância do curso e da turma, para a discussão pedagógica e de um novo jeito de fazer educação. Nesse texto há uma citação referente à discussão que fizemos com uma educadora sobre nossa identidade. A questão levantada pela educadora é de que nós precisávamos ter orgulho de sermos universitários. Num primeiro momento, todos calaram diante da fala. Depois, houve algumas intervenções no sentido de dizer que éramos militantes de Movimentos/Pastorais Sociais e que essa era a primeira característica de nossa identidade. Por

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parte de alguns ficou a dúvida de o que realmente deveríamos cultivar, porém fomos afirmando essa unidade enquanto organizações e luta.

Outro momento que construiu unidade foi a leitura do livro de literatura Fontamara, através do qual nos identificamos com os "cafones" personagens do livro. Eles eram camponeses, num primeiro momento ingênuos, depois iam tomando consciência de sua opressão e lutavam por seus direitos. Ficamos por muito tempo nos chamando uns aos outros com expressões como “cafones” ou “cafonada” e para as crianças “nossos cafoninhos” que pra nós significava camponeses lutadores.

Numa manhã, uma companheira da turma, responsável pelo IEJC, foi até a rádio de Veranópolis falar sobre a existência da nossa turma no Instituto e escutamos sua entrevista. A entrevista foi realizada pelo fato da comunidade Veranense estar questionando por não poderem participar dos Cursos de Pedagogia existentes no Instituto.

Para o TC dessa etapa foram encaminhados muitos trabalhos do curso e outros enquanto Movimento e Pastoral. Leitura de livros, pesquisa e observação em sala de aula sobre métodos de leitura e escrita. E o grande desafio de iniciar a pesquisa de campo, que seria a coleta de dados para elaboração da monografia. Além disso, uma pesquisa nos Movimentos sobre a concepção de formação/educação dos mesmos. No geral, houve avanço na inserção. A maioria reclamou sobre a visão que os Movimentos têm sobre o estudo e a pesquisa, como se fossem atividades individuais e não de qualificação dos militantes. Levamos o desafio de puxar o debate da Educação para dentro das organizações e essa foi uma tarefa que permeou todo o curso. Aos poucos, foi sendo internalizada nos Movimentos e na Pastoral.

Etapa IV

A Etapa 4 transcorreu durante o período de inverno, iniciando dia 6 de junho de 2003. Foi um período de muito frio, chegando a 8° graus negativos. Dezenove pessoas não chegaram para o Ato de Abertura da Etapa, o que era um problema, pois toda a preparação para o início da etapa, feita pela coordenação do curso e a CAPP ficava prejudicada, criava-se um descompasso na inserção da turma no processo e na organicidade.

Quatro educandos não retornaram para o curso, aumentando para 13 o número de desistentes e ficando a turma em 47 pessoas. Com essa diminuição, também foi destituído mais um NB, o Caio Prado Júnior, ficando cinco Núcleos de Base na turma. Duas pessoas a mais foram convidadas a contribuir naquela etapa, como membros do Coletivo de Acompanhamento Político-Pedagógico da turma, sendo seis companheiros e companheiras da turma com atribuição de fazer o acompanhamento da turma como um todo.

Retornávamos para um novo desafio, após a agitada Etapa 3. O seminário de memória da turma34 realizado no início de cada etapa, desta vez teve um ingrediente a mais, que foi uma “entrega teórica”, acerca de como fazer a leitura do processo, para tentarmos entender o significado da Etapa III, uma etapa de muitas polêmicas, sendo caracterizada como um “divisor de águas” no processo de nossa formação. Foi nessas discussões que fomos nos dando conta de que há sempre uma tensão entre o individual e o coletivo, e nos questionando como conciliar essas tensões. O conflito se materializava sobre a vivência nos horários do Instituto. Naquele seminário demos um passo à frente, também na compreensão do que é identidade e começamos a matutar qual seria a base de construção da nossa identidade, dado que éramos de organizações diferentes. Nos perguntávamos também: temos mesmo que ter uma identidade enquanto turma?

34Feito sempre ao início de cada etapa, a partir do texto de memória da etapa anterior, com objetivo de rememorar onde paramos, fazer o “engate” entre um período e outro, e avaliar quais questões e desafios se colocavam para a etapa que se iniciava.

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Compreendemos que uma pessoa pode ter (e tem) várias identidades, desde que não sejam contraditórias entre si, e o que acontece é que as pessoas normalmente têm uma identidade maior, mais forte, que dá rumo às suas ações, quando o processo é consciente. De certa forma, essas questões tranqüilizaram o debate, deixando de ser uma preocupação, mas caindo quase no outro extremo, que era não discutir mais sobre a identidade da turma.

Os focos de aprendizagem que estavam direcionados no Projeto Metodológico daquela etapa eram: avançar na capacitação organizativa, na formação e na postura de pedagogos e na qualificação como estudantes universitários. Começava a despontar a idéia de irmos assumindo responsabilidades quanto ao nosso processo de formação e, por isso, fomos desafiados a definir as oficinas e seminários que teríamos naquela etapa.

Estiveram na Escola conosco, naquele período, duas turmas do curso Técnico em Administração de Cooperativas: a turma Antônio Conselheiro (TAC VIII), que estava na Etapa 3 e o TAC IX, que estava na Etapa Preparatória. Com ambas as turmas tivemos relações de convívio positivos e momentos de conflito. Em relação ao TAC VIII parecia que, de ambas as partes, não nos dávamos muito bem. Neste período, tivemos atritos por causa de uma sala de aula que o Instituto estava utilizando na parte usada pela Universidade de Caxias do Sul. Era o TAC que estava designado para estudar lá, porém as aulas deles eram à tarde e nesse horário, tinha muito barulho naquela sala, por causa das crianças de uma Escola que também funcionava no mesmo prédio. Como nossas aulas eram de manhã e neste período não tinha barulho, nos propuseram trocar. Nós trocamos, mas a maioria da turma não gostava daquela sala e, além disso, tínhamos três companheiras grávidas e isso dificultava seu deslocamento, pois tinham muitas escadas. Propusemos destrocar e a turma do TAC resistiu, pois se sentiam prejudicados e nós quase que impusemos a volta à sala 412, que era vista por muitos de nossa turma como a “nossa” sala.

Com a turma do TAC IX os maiores conflitos foram de convivência, pois não nos entendíamos bem. Nossa turma achava que eles eram muito “piazada” e eles nos chamavam de “trombose”, que queria dizer algo que trancava, que não deixava “correr” o sangue, no caso, não permitíamos construir relação.

Por outro lado, se existiam alguns conflitos, também convivemos e construímos momentos bonitos como coletividade do IEJC. Aconteceram fatos como o da festa junina e quadrilhas que integrou a coletividade, onde as turmas se envolveram para fazer apresentações e se divertir. Houve também os jogos de futebol das meninas e dos meninos com times de Veranópolis, que unificava a identidade da escola perante a comunidade.

Os componentes curriculares que estudamos nesta etapa nos remeteram a aprofundar três grandes campos do conhecimento, que foram a teoria marxista sobre a lógica do capital, como se dá a extração da mais-valia, a concorrência entre os capitalistas. Fez com que a turma se desse conta de que, no capitalismo, não há saída para a classe trabalhadora. Uma segunda linha de questões estudadas foi a das matrizes pedagógicas, as quais, desde o início do curso, eram tidas como de grande importância na formação do ser humano. Isto nos deu maiores elementos para nossas observações dos sujeitos de nossas pesquisas, que se desenvolvia neste período. Tivemos o seminário a respeito do pensamento pedagógico de Makarenko, sobre o qual havíamos lido o livro “Vida e Obra de Makarenko”, no Tempo Comunidade, e o seminário contou com a presença da autora do livro, Cecília Luedemann.

Nas aulas de Português e Literatura nos debatemos com nossa restrita formação escolar em escrita e nos desafiamos a superar nossos limites, a partir dos vários recursos de linguagem trabalhados na disciplina. Naquela etapa, o trabalho foi direcionado ao estudo da literatura dos Movimentos Sociais contribuindo para com nossa sensibilização em relação ao tema, a partir do qual passamos a enxergar com mais propriedade a literatura feita dentro dos nossos Movimentos e/ou por apoiadores que têm visão de mundo semelhante à nossa. Resgatamos produções e/ou nós mesmos produzimos algumas obras, em teatro, historia infantil, contos e histórias orais,

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incentivados pela idéia de publicarmos um livro sobre o tema, com algumas amostras de obras populares, feitas nos Movimentos. A turma não agarrou a idéia da publicação e, por isso, não se esforçou para garanti-la; terminou sendo esquecida.

Foi a última etapa em que tivemos o componente curricular de Português e Literatura e nos sentíamos ainda fragilizados, sem bom domínio do processo da escrita. Por isso, buscamos garantir algumas oficinas que nos qualificassem para o grande desafio de escrever a monografia, que começava a tomar corpo, pois trouxemos do TC nossos primeiros escritos sobre os resultados das pesquisas.

A questão da pesquisa foi se colocando como desafio de outra ordem, naquela etapa. De posse dos primeiros dados, começamos a matutação de como sistematizá-los, lemos alguns textos de apoio e vimos, no diálogo com os orientadores e orientadoras, uma grande ferramenta de apoio e passamos a ver mais sentido para os grupos de pesquisa. Fomos desafiados a fazer uma apresentação dos primeiros resultados de pesquisa, sistematizados nos grupos, para o conjunto da coletividade do IEJC. Foi uma atividade muito importante para nós, pois, se por um lado, nos motivava o fato de produzir sínteses, nos organizarmos nos grupos e apresentar nossa primeira compreensão dos sujeitos, por outro lado mostrava o quanto ainda tínhamos que aprofundar e, principalmente analisar os dados coletados e ensaiar um sumário. Alguns de nós não havíamos ainda conseguido muitos dados, e nos sentimos desafiados a buscá-los com seriedade no TC seguinte.

A discussão sobre a identidade da turma teve alguns caminhos reabertos por conta da construção de alguns símbolos, ou seja, o desenho e a canção que representassem o que se tinha construído até então. A idéia do desenho foi mais tranqüila, conseguiu ser objetivado em elementos com os quais a turma se identificava e percebia um sentido, como as raízes, tronco e galhos segurando a Via Campesina, o casulo, a borboleta, as sementes como estrelas, expressando a idéia do movimento como transformação. Com o desenho, confeccionamos as camisetas, passando a ter uma expressão da representação que a turma fazia de si mesma.

A canção não teve a mesma fluência, foi uma questão mal resolvida desde o momento de sua criação e assim permaneceu várias etapas. Não conseguimos finalizar em “alto e bom som”, houve descontentamento com o ritmo da música, muitas pessoas não gostaram, porém, não conseguimos aprofundar. Havia várias concepções, gostos e estilos e havia também uma fragilidade em fazer a discussão aberta. A canção construída valorizou o aspecto do conteúdo, as aprendizagens construídas no curso e, com isto, todos se identificavam. A dificuldade estava em cantar a música, não “embalava”, não conseguíamos seguir o mesmo ritmo e nem decorar a letra. Vários foram os episódios envolvendo a “música da turma”. Na construção do ritmo da música contamos com a ajuda do companheiro Zé Pinto, cantor do MST.

Um fato que começou a acontecer, naquela etapa e que permaneceu nas seguintes, chamou atenção da turma, foi o fato de 28 pessoas se encontrarem por acaso num domingo à tarde, numa pastelaria da cidade. A repetição destes encontros revelava um elemento da nossa cultura, em que a idéia de sentar-se num “bar”, lanchar e “jogar conversa fora” atraía a maioria da turma como opção de lazer.

Nessa etapa muitas brincadeiras foram feitas, informalmente nos quartos, por iniciativa de algumas pessoas e que ficaram guardadas na memória de quem esteve envolvido. Aconteceu também a nossa primeira ida ao Balneário Bom Retiro, mesmo sendo no inverno e não podendo desfrutar de banho no rio, foi um dia muito agradável, com jogos, brincadeiras risos e almoço junto a natureza. Acompanharam-nos nesse passeio dois repórteres das revistas Veja e Época, que fizeram algumas entrevistas e observações. Estavam fazendo uma pesquisa no MST, em vários locais no RS, e ficaram alguns dias no ITERRA. Posteriormente ao olharmos a revista ficamos chocados com as distorções feitas do que dissemos; apareceram declarações contrárias ao que realmente tínhamos falado. A revista falou muito mal da juventude Sem Terra.

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Algumas situações fortes de solidariedade foram requeridas dentro da turma, como no caso da crise de convulsão que aconteceu com um companheiro da turma, durante uma das aulas e que, ao mesmo tempo em que abalou as pessoas, foi grande o esforço por socorrê-lo. O convívio com este companheiro, aumentou em nós a dimensão da necessidade de cuidado com as pessoas. Em outras situações de pessoas doentes procurávamos atender e contribuir para com as mesmas, sendo sempre mais forte a solidariedade dos moradores, das moradoras do mesmo quarto, pelo fato de estarem mais próximos.

Ainda na questão da saúde, a notícia de que nossa companheira da coordenação do curso estava com seu problema de coluna agravado e que teria que fazer uma cirurgia, sensibilizou a turma e provocou gestos de carinho e solidariedade.

Na busca de sensibilizar a nossa formação, para as mais variadas dimensões, na etapa 4 tivemos duas atividades importantes que nos fizeram refletir e avançar: um seminário sobre gênero, no qual, entre outras coisas, nos questionamos se era correta a política de ter sempre um companheiro e uma companheira na coordenação das instâncias da turma, sendo que o número de homens era bem menor, sendo em torno de 25% dos membros dos NB’s. Nos demos conta de que, a política instituída, levava a que os companheiros se capacitassem bem mais do que as companheiras, pois se repetiam na coordenação das instâncias e sabíamos que isso é um elemento de capacitação/formação. Esse fato deu margem a que, nas etapas seguintes, os NB’s passassem a escolher duas companheiras para coordená-lo, mantendo-se a idéia de um companheiro e uma companheira naquelas instâncias que eram do Instituto e também, na coordenação da turma, por serem os membros da CNBI.

A cada etapa buscou-se ter alguma atividade voltada à sensibilização musical e/ou de outras artes, e, desta vez, tivemos uma oficina de sensibilização musical e também uma noite de música latino-americana.

A idéia de que, para educar é importante trabalhar diversos recursos nos levou a desenvolver uma “oficina de dinâmicas de grupo” construída pelos NB’s, que foi sistematizada e ficamos com cópias das dinâmicas para trabalharmos nos espaços educativos em que atuamos. Naquela etapa, também começamos a aprender a fazer planos de leitura, para nos auto-organizar nos tempos leitura e, inclusive, para aprender a indicar prioridades de leitura no Tempo Comunidade.

Na formação de habilidades políticas e pedagógicas, tivemos o seminário sobre método de direção e formação. Para aprofundarmos a identidade com nosso inspirador José Martí, fizemos um seminário sobre seu pensamento e a história de Cuba.

Durante o TC, nossa turma contribuiu com a coletividade do IEJC e com os Movimentos Sociais, fazendo a mística de Abertura da Turma de Pedagogia da Terra II, a segunda turma de Pedagogia da Terra do convênio da Via Campesina com a UERGS. Para esta tarefa a turma escolheu um grupo, com representantes de todos os Movimentos, que se encontrou no IEJC nos dias que antecederam o início do curso, preparou e apresentou a mística e também deu as boas vindas aos companheiros e às companheiras da nova turma entregando uma pequena lembrança, um colar com uma semente para cada um, em nome da Turma José Martí.

Outra atividade realizada pela turma foi a venda de rifa, feita religiosamente em todos os TC. A rifa era uma forma de arrecadar fundos para os gastos que precisávamos ir fazendo durante as etapas e também para a formatura.

Foram muitas as lutas que os educandos/as participaram, em todos os Movimentos/ Organizações. Consideramos aquele TC mais desafiante, com atividades mais orgânicas e de maiores dimensões. Muitos de nós começamos a prestar mais atenção para perceber o Movimento como espaço educativo e a maioria conseguiu propor várias questões ao Movimento/Pastoral, enquanto atuação pedagógica. Fomos desafiados a desenvolver uma prática pedagógica em

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atividades de formação do nosso Movimento/Pastoral e também uma prática pedagógica com crianças. Ambas nos propiciaram grandes aprendizados e nos inseriram mais diretamente nas áreas de educação e formação das nossas Organizações.

Etapa V

Era verão, mais especificamente janeiro e fevereiro de 2004. A Etapa V inicia com a presença de apenas 26 estudantes dos 47 que compunham a turma ao final do Tempo Escola anterior. Quem não estava presente no início, foi chegando naquele mesmo dia ou no dia seguinte, restando ausentes quatro pessoas, duas com justificativa de saúde e duas tidas como desistentes. Uma desistência se concretizou, passando a 46 o número de integrantes da turma. O NB Patativa do Assaré foi destituído e seus membros foram integrados aos quatro NB’s que permaneceram como base de organização da turma.

As três companheiras que estavam grávidas no Tempo Escola anterior vieram com seus filhos nascidos, somando-se às crianças com as quais já convivíamos e, ao mesmo tempo, iniciando uma nova história com os bebês na turma.

Realizamos logo no início da etapa, o Seminário da Memória da etapa anterior onde discutimos as grandes questões que acreditávamos ter movido a turma e os desafios que se colocavam. Foi no sentido de fazer um balanço da etapa e analisar os fatos. A turma fez uma autocrítica em relação à sua postura com as demais turmas do Instituto, onde levantamos que havia um “clima” de que a nossa turma tinha privilégios e se sentia superior às demais. Constatamos também que, ao contrário da etapa III, na etapa IV nós abafamos os conflitos, houve uma certa “anomia” e tivemos dificuldades de nos assumir como sujeitos. Crescemos na análise dos fatos e síntese das idéias. Foi o momento de “nos darmos conta”, de percebermos o essencial dos fatos. Ficava o desafio de levantar propostas de ação.

O principal foco daquela etapa era a busca do ser autodidata, ou seja, a própria determinação no estudo e nas reflexões acerca dos temas trabalhados no curso e dos interesses individuais e/ou das organizações.

A turma retornou do TC sentindo que havia ampliado a sua inserção na base e na condução dos processos organizativos, políticos e educativos. Trouxemos observações feitas durante a pesquisa de campo, que propiciaram ir mais fundo e conhecer a realidade dos sujeitos pesquisados.

Tivemos o estudo de Desenvolvimento e Educação, que nos levou a compreender a urgência e os meios de recriar e valorizar o jeito de ser camponês, e quanto nós temos que intensificar esta luta, pois o agronegócio representa a ampliação do capitalismo no campo. Foi combinando este estudo com a questão da educação que começamos a entender, mais profundamente, os fundamentos da Educação do Campo e todo um novo desafio se descortinava em nossa frente.

Os Fundamentos da Escola do trabalho, de Pistrak, livro que tínhamos lido no TC, motivou um seminário sobre o tema. Na discussão fizemos muitas relações com a prática, nos questionando como trabalhar a educação a partir deste princípio pedagógico e que trabalho pode e deve ser desenvolvido nas escolas.

Com os dados empíricos coletados na pesquisa e os estudos anteriores de como fazer a análise de dados fomos desafiados a iniciar nosso Plano Provisório do Trabalho Monográfico (PPTM), ou o “Sumário Recheado” como o apelidamos. Para isso, foram constantes as atividades nos Grupos de Pesquisa e o trabalho junto com os orientadores e orientadoras. O exercício de defesa do Sumário e da tese central que estaríamos defendendo dentro de nossa monografia, nos ajudou muito para qualificarmos as nossas produções e para percebermos que havíamos dado um salto, enquanto turma, no processo de pesquisa, compreensão, sistematização, análise, elaboração e escrita. Foi emocionante ver e pensar na trajetória de cada pessoa desde quando chegamos no

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curso, quando nossa compreensão intelectual era bem aquém e, naquele momento, nos víamos “emergindo” com capacidade e domínio intelectual de lidar com teorias e formular teses sobre a realidade pesquisada.

Fizemos um exercício de defesa dos trabalhos monográficos, dentro das aulas de metodologia da pesquisa. Esta marcou a etapa, por ser um momento coletivo, sendo este um exercício de muito esforço individual, de leitura, sistematização, elaboração, procurando avançar ao máximo ou mesmo conseguindo se “achar” dentro do que cada um estava projetando para sua produção textual. Um dos elementos que contribuiu para a compreensão do processo de escrita foram as aulas de Desenvolvimento e Educação, onde aprendemos a “desconstruir”, compreender, detalhar, analisar o texto.

Estávamos no período de comemoração dos 20 anos do MST, e muito nos envolvemos, estudando aspectos da história deste movimento, em conjunto com toda a coletividade, e também nos envolvemos na mística desta data e na festa realizada.

Mais ou menos na metade da etapa, uma companheira tida como desistente, “desistiu de desistir”, como nos disse a coordenadora do curso. A turma foi chamada a se posicionar se aceitava o retorno da companheira, à medida que sua desistência era tida como questão pessoal. A decisão foi de acolher o retorno da educanda, com o sentimento de que precisávamos de todas as pessoas dispostas a seguir a caminhada e se educar nela.

Na busca de construir a coletividade e a unidade da turma, desde a etapa anterior tínhamos feito a brincadeira do “amigo secreto” e combinamos de revelar num domingo, onde organizamos um passeio nos pontos turísticos de Veranópolis e depois fomos passar o restante do dia no Balneário Bom Retiro. Essa foi uma atividade da turma que ajudou para dar harmonia às relações, pois ia se criando uma maior camaradagem entre nós e nos construindo com afetividade e alegria.

Desde o TE anterior que detectamos a necessidade de termos uma leitura sobre ate que ponto a turma estava conseguindo avançar nos desafios e metas de cada etapa. Por iniciativa do CAPP, fizemos um processo de avaliação que ajudou a enxergarmos “em que pé” estávamos. A discussão se deu primeiramente entre o CAPP, a coordenação do curso e a Coordenação de Núcleos de Base da Turma. Depois fizemos uma plenária com toda turma, onde cinco principais desafios foram colocados para a turma avançar: leitura e interpretação de textos; assumir-se como pedagogos em construção; disciplina intelectual e coerência entre teoria e prática; busca da entre-ajuda; superar a auto-suficiência (na relação de coordenar e ser coordenado). Naquela plenária apareceu a noção de que existiam grupos de articulação na turma, o que ocasionou um certo mal-estar em alguns, porém, não ficou claro que articulações eram essas.

O cumprimento dos tempos educativos nunca foi exemplar pela nossa turma, porém, naquela quinta etapa foi grave o descumprimento dos mesmos. Tanto assim, que foi necessário discutir e tirar encaminhamentos de como tratar o assunto. Os tempos de Educação Física eram os que as pessoas mais faltavam.

Repetimos nessa etapa algo que religiosamente sempre fizemos como turma: a contribuição na compra de fraldas para as crianças da turma. Além de contribuir com as mães na hora de buscar as crianças na ciranda, durante as refeições e intervalos. Vimos como uma forma de solidariedade com as mães e também de expressar uma concepção, a de que as crianças são de responsabilidade do coletivo e não apenas de sua família.

Na coletividade do IEJC vivenciamos diversas situações e aprendizados: o método de fazer a segurança mudou, a partir dos debates do TE anterior. A escola tomou boas medidas no aspecto da prevenção de incêndio, com instalações adequadas e fazendo oficinas de como utilizar os equipamentos.

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Foi um período em que fizemos como escola a comemoração dos 20 anos do MST e nos preparamos para a comemoração dos 10 anos do ITERRA. A turma se envolveu principalmente nas produções de artes plásticas, na construção de uma música e do painel dos 20 anos.

Em todas as etapas o trabalho esteve colocado. Nesta, contudo, recebeu um ingrediente a mais que foi o dia de trabalho externo, que cada turma passou a dedicar para contribuir na sustentação financeira do Instituto. Fizemos uma roçada, e estes momentos eram sempre marcantes, pelo tamanho do esforço físico, pelas reflexões sobre o sentido do trabalho e também, por ser algo que contribuía para aliviar as tensões da vivência um tanto fechada que tínhamos na escola.

No conjunto da escola, e também dentro de nossa turma, vivemos situações de tensões e conflitos diante da disciplina. A situação de um grupo de educandos e educandas que entraram no IEJC fora do horário estabelecido no regimento, gerou muita polêmica, especialmente porque a discussão não aconteceu nas instâncias, e sim, nos corredores.

Outro ponto de tensão era com relação com os computadores, porque poucos estavam funcionando, mesmo tendo o espaço físico da informática sido ampliado. Tínhamos muitos trabalhos para entregar: o sumário da monografia, o relatório da oficina de capacitação pedagógica, a “desconstrução” de um livro, eram apenas alguns exemplos da necessidade dos computadores e freqüentemente estragavam, perdíamos trabalhos inteiros já digitados e, nessas horas, a indignação era geral.

Alguns dos componentes estudados haviam começado a preparar a turma para as didáticas dos processos pedagógicos, tendo em vista a prática pedagógica que fizemos nessa etapa, e também por serem fundamentais para a formação de pedagogos. Áreas como leitura e escrita e a etnomatemática foram nos abrindo a imaginação de estarmos numa sala de aula, com crianças e/ou jovens e adultos, contribuindo para a construção do conhecimento.

A idéia de que iríamos ter nossa primeira Oficina de Capacitação Pedagógica (OCAP), que seria num acampamento de 800 famílias Sem Terra, em Cascavel/PR, era uma situação que despertava muitos sentimentos, um misto de alegria, medo, curiosidade, responsabilidade e ansiedade muito forte, no período que antecedeu nossa viagem. Tivemos vários momentos de preparação para o trabalho que íamos desenvolver com a Educação de Jovens e Adultos. Os relatos de como era o lugar, a organização e os sujeitos do local nos faziam criar imaginação que, na chegada, logo percebemos que o contexto era bem diferente, mas surpreendente.

Ficamos maravilhados com aquela experiência, que foi nosso primeiro estágio como educadores e educadoras e, para muitos da nossa turma, foi a primeira vez que entraram numa sala de aula como educador, educadora. A prática pedagógica foi formativa para nós, começamos a aprender em que consiste um planejamento, a relação educador/educando, o trabalho coletivo e a interlocução com o acompanhamento. Além disso, para muitos de nós era uma primeira experiência também de estar em um acampamento; tivemos grandes aprendizados na organicidade, nas atividades diárias lá desenvolvidas. Depois da prática no acampamento, ficaram as tarefas de fazer o relatório e as reflexões sobre o estágio.

Durante a etapa fomos imaginando como deveria ser a pasta da turma. Decidimos como seria, os desenhos, o modelo. Decidimos por colocar o símbolo da Via Campesina, a frase de José Martí “O Conhecimento Liberta”. A pasta chegou no dia em que acabou a etapa, depois do ato de envio. Por isso, muitas pastas foram levadas pelos companheiros que permaneceram umas horas a mais na escola.

Fomos para o Tempo Comunidade com o grande desafio de escrever a Monografia e trazê-la pronta, três cópias encadernadas, no primeiro dia do Tempo Escola seguinte.

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O desafio de continuar a inserção nos Movimentos/Pastoral também nos motivou a voltar para casa. Esse TC trouxe ainda mais responsabilidades, atividades orgânicas principalmente na área da formação humana.

Etapa VI

A etapa iniciou em 22 de julho de 2004, faltando catorze companheiras e companheiros, dos quais seis chegaram durante o Ato de Abertura e sete pessoas só chegaram posteriormente. Alguns dias depois do início da etapa tivemos a confirmação da desistência de mais uma companheira da turma. Assim, a turma ficou com quarenta e cinco educandos/as.

No ato de abertura participaram, como sempre, as outras turmas que estavam no IEJC. Naquele momento, a Pedagogia II (Turma Margarida Alves) e o MAG IX (Turma Salete Stronzake). Após o ato começamos nossa inserção no IEJC. Tivemos alguns informes sobre a quem ainda não havia chegado, sobre as mudanças acontecidas na escola, do ponto de vista da estrutura, de pessoal e de toda coletividade.

O primeiro dia é sempre muito caloroso. Abraços, beijos, saudades, perguntas de como estamos, como foi o Tempo Comunidade, é tempo de matar saudades, de escutar as novidades. É dia também, de escolher coordenação e secretaria dos NBs, coordenação da turma, pessoas para compor as Equipes de Ética e Disciplina, Conselho Fiscal, Equipe de Segurança. Além disso, ficamos sabendo quais os Postos de Trabalho que ocuparíamos durante a etapa.

A inserção no IEJC continuou ao longo da etapa e a convivência com as outras turmas presentes na casa. Com a turma Margarida Alves, Pedagogia II, era a primeira vez que convivíamos e por poucos dias. Por isso, fizemos uma visita surpresa na sala deles. O objetivo era a integração. Aproveitamos para convidar quem da turma fosse para a II Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo (CNEC) para nos ajudar a pensar a mística de abertura, que tínhamos recém sabido que seria de nossa responsabilidade. Nesse momento cantamos a música da nossa turma e foi necessário que fizéssemos um ensaio anteriormente, além de levar a letra escrita, pois a maioria ainda não tinha decorado toda a canção.

Essa integração com o coletivo também foi reforçada com um “canjicão” que o MAG IX serviu, no domingo de manhã, ao mesmo tempo em que faziam a reforma do parque infantil. Posteriormente, ainda naquela semana, fizemos durante o tempo formatura uma conversa com a turma do curso Normal falando do que seria a nossa ida à CNEC como Turma e como IEJC.

Durante aquele mês o Encontro Geral do Instituto foi realizado com a participação de somente duas turmas, nós mais o TAC VIII. Ambas não haviam estado na casa no mês que se passara, por isso, houve um certo descompromisso com o Encontro, muitos risos e falta de propostas para os problemas a serem solucionados.

Houve durante a etapa algumas trocas de horários e tempos. Algumas vezes trocamos tempo trabalho com outras turmas, para continuidade de atividades como o Seminário sobre escola organizada em ciclos e também no período de defesa das monografias. No seminário estiveram presentes as professoras das redes municipal e estadual de Pontão, RS.

Tivemos um Seminário que nos ajudou a entender melhor o método do Instituto, bem como de nossa inserção nesse espaço.

Num Sábado, o momento cultural foi diferente, sendo realizada uma Jornada Socialista antes do jantar e uma bonita festa com churrasco e baile animado e, no domingo, muitas pessoas receberam visitas de familiares, esposos e filhos.

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A sensibilidade artística da turma também esteve presente em nossa inserção no Instituto, sendo que produzimos obras para comemorar os dez anos do IEJC: artes plásticas, música e redação. Saíram bonitos desenhos e uma música bonita e animada. Essas produções foram socializadas num sábado a noite no momento cultural. O Seminário sobre os dez anos também foi produtivo e conseguimos refletir sobre a importância que a escola tem na formação de militantes dos Movimentos Sociais e também pela referência que é para outras experiências de formação/educação.

Logo na segunda reunião da CNBT, já foi discutida a questão da pontualidade nos tempos educativos, o controle da freqüência e a política de recuperação de tempos. Além disso, foi organizado o cronograma da coordenação do dia pelos NB’s. A tarefa do NB que coordenava o dia era coordenar as atividades, fazer o chimarrão e limpar o refeitório após os lanches da manhã e da tarde. Os lanches eram uma novidade nessa etapa, pois anteriormente as refeições eram café, almoço e janta. Também foi feita uma escala para os tempos Educação Física, sendo os NB’s responsáveis de planejar as atividades.

Logo no início da etapa tivemos uma notícia desagradável: o curso aumentaria em uma etapa tendo em vista uma exigência de mais quatrocentas horas de estágio. O argumento era de que como o nosso curso habilitava em duas áreas, crianças, jovens e adultos teríamos que fazer quatrocentas horas com crianças e quatrocentas horas com jovens e adultos. Isso aumentava uma etapa e com isso o curso só acabaria em 2006.

Depois, recebemos outra notícia, desafiadora, mas agradável. Fomos designados a pensar e fazer a mística de abertura da II Conferência Nacional de Educação do Campo (II CNEC). Uma obra a ser construída coletivamente. Além de ser um grande desafio, tínhamos pouco tempo para realizar. Iniciamos a preparação da mística fazendo chuva de idéias sobre o que deveria conter, depois fomos organizando as idéias. Montamos uma equipe para construir o roteiro e a partir daí começamos a ensaiar. Além da mística, organizamos os outros detalhes: alimentação, chimarrão, higiene... e para isso os NBs ficaram responsáveis.

Tivemos a disciplina de Organização e Políticas Públicas, que nos interessou especialmente, pois tratava do tema que também seria discutido na Conferência. Estudamos a legislação educacional, LDB, as Diretrizes específicas da Educação do Campo e os Conselhos de Educação. Isso nos instrumentalizou e ficamos mais munidos de argumentos para cobrar os direitos de educação dos camponeses e das camponesas e do povo em geral.

Durante a viagem para a Conferência aconteceram alguns transtornos. O que lembramos, com mais nitidez, foi um problema que aconteceu no ônibus tornando-se algo até engraçado: uma roda do ônibus caiu e não foi possível encontrar mais o pneu. Paramos na estrada cerca de duas horas e meia aproveitando para tomar café.

Chegando em Luziânia, local da Conferência, ainda um dia antes do início para preparar a mística. Os materiais necessários que ficaram de ser organizados pelas pessoas próximas do local e que eram responsáveis, só chegaram duas horas antes do início. Com isso, tivemos que apurar a confecção dos materiais e tivemos apenas quinze minutos para ensaiar. Ficamos apreensivos e já estávamos nervosos pelo atraso dos materiais. Porém pensamos que isso não influenciou a grandeza da mística e a emoção que conseguimos transmitir através daquele momento. A mística ficou muito bonita e recebemos vários elogios. No entanto, nossa participação nos debates da Conferência ficou restrita e quase não expomos as nossas idéias.

Tivemos durante os dias contato com a turma de Desenvolvimento Rural da Via Campesina e, também, com a Turma de Pedagogia da Terra da Regional Amazônica. Isso fortaleceu a mística de estudantes militantes do povo e das organizações sociais. As noites eram recheadas com músicas, livros, teatro, muita integração.

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Fizemos avaliação da nossa participação e fomos desafiados a escrever um balanço da turma sobre a Conferência, tarefa que deveria ser feita depois da nossa volta à escola. No retorno paramos em São Miguel d’Oeste para conhecer a Cooperoeste, uma cooperativa de assentamento vinculada ao MST. Lá ganhamos iogurte, que foi saboreado na nossa janta com pão e salame. Ao chegar na escola não pudemos dormir nos quartos, pois houve a Formatura do Curso Técnico em Saúde Comunitária – Turma Che Guevara e o Instituto estava lotado. Dormimos no chão do Salão de Atos.

Ainda tivemos o final do componente curricular, que estudamos antes de ir para a Conferência, Organização e Políticas Públicas da Educação do Campo, agora estudando as resoluções da II CNEC e elementos para elaboração de um Projeto Político-Pedagógico.

Era chegada a hora de mais um dos grandes desafios da etapa: iniciarmos a partilha da nossa construção das monografias. No início da etapa recebemos o aviso de que os pareceres dos orientadores das monografias chegariam em breve, o que gerou uma expectativa. Quando chegaram, tivemos a notícia: seriam 22 companheiros e companheiras a apresentar seu trabalho naquela etapa. A preocupação maior chegou depois da CNEC, pois chegavam mais perto os dias das defesas, que aconteceram, em 11 e 12 de agosto de 2004. Não tivemos alguns tempos educativos para nos dedicarmos ao estudo do trabalho monográfico para a defesa. A angústia e ansiedade eram grandes por parte daqueles que iriam apresentar. Tivemos as informações de como seriam os procedimentos e que teriam três apresentações simultâneas. Houve solidariedade da turma para com cada companheiro e companheira que ia defender. Cada pessoa recebia abraços antes e depois do momento da apresentação, desejos de boa sorte e parabéns. No entanto, também houveram algumas defesas com pouca participação da turma, o que foi avaliado depois como um limite na solidariedade com todos e todas.

No Sábado, fizemos uma avaliação do processo das pesquisas/monografias, enquanto resultado, para as nossas organizações e para a nossa formação enquanto pedagogos e pedagogas da terra. A noite fizemos um brinde ao saber que todas as apresentações foram aprovadas e após assistimos o filme Fontamara. Aqueles que não defenderam na sexta etapa continuariam a elaboração do trabalho para apresentar na etapa seguinte e os que já haviam apresentado tinham a tarefa de melhorar o que fosse necessário e entregar a versão final.

Da avaliação feita podemos trazer aqui algumas frases significativas:

Que somos capazes sim, de fazer elaborações, desmistificando esta idéia de que alguns sabem e outros não, e provando que cada vez mais os trabalhadores têm que ir forjando conhecimentos nessa sociedade de desigualdades.

Para saber que educação queremos é preciso entender que sujeitos temos e que sujeitos queremos construir.

E nos alerta para a importância da pesquisa, pois que a realidade está sempre em movimento e é fundamental atualizar a ‘leitura’ da mesma.

Para a minha organização contribuiu no sentido de repensar ainda mais profundamente a estratégia, o centro de tudo onde queremos chegar. Acredito ser a construção do ser humano com dignidade, e então como estamos lidando com isso (...).

Aprendi a cuidar mais dos seres humanos e principalmente perceber o opressor dentro de mim, e amar mais intensamente e me mostrar para me conhecer também.

Isso mostra a importância que demos ao processo da pesquisa e construção do texto e do quanto aprendemos com isso. Mas não parou por aí. Os desafios com as pesquisas ainda seriam grandes.

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A memória também foi um desafio coletivo durante essa etapa. Ainda no início da etapa tivemos o Seminário da Memória, no qual lemos a síntese da etapa anterior com o objetivo de entendê-la, olhando mais de longe e apontando os desafios que permaneciam na etapa VI. Para isso a memória teve sempre um papel fundamental na discussão de início de cada etapa. Era como lembrar de onde paramos, quais os limites apresentados, em que precisávamos melhorar. A nossa avaliação, naquele momento, foi de que a etapa anterior foi de consolidação da turma, porém com pouca mística e animação. Houve uma certa confusão sobre o que era ser autodidata. Alguns entenderam como “se autocomandar para não ler”, não entendendo o sentido proposto e não agarrando o desafio.

A construção da memória da etapa se deu pelo posto de trabalho responsável, com a ajuda da turma, através das secretárias e secretários dos NB’s. No final da etapa tivemos o Seminário da Memória em que lemos o texto construído e apontamos as sugestões.

Foi uma etapa de poucos componentes curriculares, com os educadores em sala de aula por vários dias. Na maioria das vezes foram seminários de preparação ou de avaliação, também várias oficinas em preparação ao estágio. Um componente curricular sobre Concepção e Método no ensino de Ciências Sociais nos instrumentalizou para as práticas pedagógicas em sala de aula. Tivemos uma parte dessa disciplina antes, e outra depois do estágio. A outra disciplina foi de Educação Matemática, com foco na Etnomatemática, a matemática da vida, e aprendemos a lidar de uma forma menos difícil com esse componente considerado difícil pela maioria das pessoas.

O estudo esteve direcionado pelos Grupos de Estudo, já que na etapa anterior o ser autodidata havia sido confundido com “eu estudo se quiser”. Por isso, o Plano de Leituras foi feito de duas formas: um individual e um coletivo no grupo de estudo, juntando os dois num só. Também tivemos duas pastas de leitura, a individual e a do grupo.

Os seminários foram muitos. Teve uma semana, antes do estágio, em que tivemos cinco seminários: crítica e autocrítica; tensões, contradições e conflitos na construção da coletividade; a realidade das escolas de Pontão (local onde realizamos o estágio); sobre Ciclos; e o último que teve o caráter de oficina em preparação ao estágio. Os seminários sobre as escolas de Pontão e sobre os ciclos foram praticamente juntos, porém não conseguimos entender bem os ciclos e a maioria ficou com muitas dúvidas sobre o assunto.

Os estágios foram um desafio. Primeiro tivemos que refazer os relatórios do estágio/OCAP, que realizamos com jovens e adultos no Acampamento Dorcelina Folador em Cascavel/PR. Depois, iniciamos a preparação para o Estágio em Anos Iniciais. Realizamos em Pontão/RS, em sete escolas das redes municipal e estadual. A organização inicial foi desde a divisão por grupos para cada escola, as questões práticas como alimentação, ciranda infantil, etc e o Seminário com as professoras das escolas da rede. A coordenação da turma, também fez os acertos com as diretoras das escolas para acertar os alojamentos, o transporte e a ciranda durante os dias do estágio. Cada escola apresentou sua experiência e nós fizemos alguns questionamentos. Após, fizemos alguns combinados em relação aos relatórios e materiais necessários a serem elaborados sobre a prática.

Durante a semana que antecedeu o estágio, também tivemos alguns tempos educativos alterados para a preparação. Fizemos os planejamentos por escola, por séries e por turmas. Construímos materiais a serem utilizados e tiramos uma equipe para ser responsável pelos materiais didáticos. No dia da viagem, numa sexta-feira, acordamos cedo, pegamos o ônibus e lá fomos nós, rumo a Pontão. Chegando lá, cada grupo foi para as escolas onde trabalhariam, para fazer a observação da escola e da aula. No sábado, voltamos todos para a cidade para nos reencontrarmos enquanto turma, juntamente com os educadores das escolas e para socializarmos os planejamentos. O domingo foi utilizado para integração nas comunidades e nas famílias.

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De segunda a sexta-feira demos aula num turno e no outro planejávamos. Fomos vivenciando a experiência concreta de sermos educadores, ou simplesmente professores, em situações bastante distintas, conforme a realidade da escola onde estávamos atuando35.

Nos encontramos também, na quarta-feira a noite, juntamente com a equipe de acompanhamento do estágio. Foi uma alegria reencontrar todos e todas, contar novidades e o que cada um estava fazendo. Voltamos a nos encontrar, sem ter combinado, na sexta-feira, num baile na cidade de Pontão. Estava a maioria da turma e festejamos bastante. Nesse baile, um companheiro da turma resolveu fazer o desfile promovido pelo baile. O mesmo venceu o desfile ganhando R$50,00 de prêmio que foi gasto para tomarmos cerveja.

No sábado fizemos avaliação, junto com o acompanhamento, os educadores e educadoras das turmas, as diretoras das escolas e a secretária de educação. Distribuímos um girassol para cada pessoa como lembrança do estágio. Retornamos, chegando ao IEJC no início da noite. Agora era hora de iniciar relatórios e ajeitar os diários de práticas pedagógicas.

Na semana seguinte tivemos uma notícia um tanto triste para todos nós. Uma companheira da turma, que estava grávida teve algumas complicações de saúde e ao fazer o exame descobriu que o feto já fazia algum tempo que não estava mais se desenvolvendo. Ficou um dia hospitalizada. Naquela etapa, mais cinco companheiras engravidaram, trazendo para a turma a esperança no brilho da vida.

Já estávamos perto do final da etapa e algumas pessoas precisaram sair antes. Isso foi baixando a estima da turma e se estudou a possibilidade de terminar a etapa um pouco antes, um dia. Como não se conseguiria pelas atividades a serem feitas, alguns companheiros e algumas companheiras ameaçaram sair na noite anterior ao encerramento da etapa. Diante disso, a escola e a coordenação do curso decidiram e comunicaram à turma que então não haveria ato de envio da turma para o Tempo Comunidade. Isso deixou a turma em baixa e as pessoas saíram da escola muito tristes.

Saímos também com muitos desafios. O Tempo Comunidade nos esperava. As organizações cada vez depositando mais confiança e responsabilidade. Já no Seminário sobre o TC anterior, tínhamos a constatação que uma grande parte da turma estava atuando nos coletivos de formação e educação dos Movimentos e Pastoral. Nesse não foi diferente. Fizemos também o Estágio em Educação de Jovens e Adultos.

Todos voltaram com o compromisso de terminar suas monografias. Aqueles que já tinham apresentado deveriam trazer a versão final e os que iriam apresentar deveriam trazer três cópias para o primeiro dia do próximo Tempo Escola.

Etapa VII

A etapa iniciou em 31 de janeiro de 2005, faltando vinte e dois companheiros e companheiras dos quarenta e cinco que tínhamos desde o final da etapa VI. Depois se confirmou o pedido de transferência de uma companheira, enquanto que as demais pessoas foram chegando aos poucos. No primeiro dia não foi possível escolher coordenações definitivas nem dos NB’s, nem da turma pelo fato de estarmos com estas ausências.

Logo no Ato de abertura, a coordenação do curso nos disse dos grandes desafios que teríamos: o estágio a ser realizado nas escolas em Veranópolis, a conclusão da apresentação dos trabalhos monográficos e um processo novo para nós, que era o desafio de fazermos nosso próprio acompanhamento pedagógico. A nossa turma não teria mais CAPP. A coordenação da turma seria

35 Registros da Memória da Turma José Martí, Etapa VI, pág. 18.

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responsável para coordenar o processo de acompanhamento e a turma se auto-acompanharia, contando com a contribuição de um companheiro do IEJC que ajudaria a turma.

Logo no início da etapa se instalou o conflito dos atrasos que a turma vinha fazendo. No ato de abertura, faltava metade da turma e não era possível realizar as primeiras atividades. Por isso, fomos discutindo que esse era um limite da turma e que devia ser superado. Chegamos à conclusão de que para superar teríamos que fazer ações concretas. Por isso todos os companheiros e companheiras que chegaram atrasados foram intimados a realizar algumas tarefas. Como turma teriam que pensar o ato de encerramento da etapa e enviar uma carta às organizações comunicando sobre os atrasos. Além disso, fariam tarefas delegadas por cada NB. Algumas pessoas contribuíram ao longo da etapa na Ciranda, outras ajudaram, por vezes, na limpeza da sala e em atividades pontuais. A carta aos Movimentos foi apresentada na reunião do Colegiado, que aconteceu durante a etapa.

No início da etapa tivemos um seminário para introduzir o tema do acompanhamento e entender, afinal de contas, qual era a nossa tarefa. Aos poucos fomos compreendendo, na prática do dia a dia, que só um seminário não tinha como bastar para entender de fato como fazer esse processo. Ainda durante a etapa, estudamos outro texto sobre o acompanhamento e a CNBT teve um tempo maior para realizar o estudo e aprofundar sobre o tema. O método de acompanhamento utilizado foi através das metas da turma e das metas individuais de cada um. Por aí, íamos identificando nossos limites e avanços e fazíamos a autocrítica, e ajudando também os companheiros. O seminário de crítica e autocrítica também foi construído nessa lógica do acompanhamento, com um método diferente. Primeiro cada pessoa fazia sua autocrítica falando suas metas da etapa e avaliando como as estava cumprindo; depois, recebia as crítica, não havendo, pois, momento para auto-justificativas.

Havia, na turma, a sensação e uma avaliação de que o novo jeito de acompanhar estava sendo melhor que o antigo, no sentido de que agora estávamos sendo nós mesmos, sem medo de ser vigiado como se alguém “de fora” estivesse cuidando do que fazíamos. Depois, foram levantados questionamentos para entender se realmente era possível fazer auto-acompanhamento pedagógico, ou seja, será que o ser humano em construção é capaz de ir se corrigindo à medida que percebe seus limites. Houve dificuldades para as pessoas assumirem a condição de pedagogos de si e da turma, tendo resistência em ser sujeito de sua própria construção. Algumas vezes, o auto-acompanhamento foi confundido por “cada um faz o que quiser” o que desviava da intencionalidade de construir um acompanhamento coletivo.

Para fazer o acompanhamento e refletir sobre o processo da turma a CNBT reunia-se nos domingos, já que na semana o tempo era escasso. Os NB’s contribuíam fazendo reflexões semanais sobre o processo e tentando apontar caminhos. As reflexões nos traziam para o compromisso de uma prática importante na construção de pedagogos e pedagogas.

A turma esteve recheada de desafios a serem superados e tinha mais um: a construção de sua memória. Esta que agora lemos, começou a ser construída durante a sétima etapa. A turma teve a tarefa de ir pensando como construir e como contar sua história. Algumas pessoas foram escrevendo isso. A tarefa se estendeu também durante o Tempo Comunidade: a equipe com a tarefa de elaborar continuaria escrevendo e enviando para a turma dar sugestões.

A memória da etapa VII, também foi sendo construída pelas pessoas responsáveis, contando com a ajuda dos secretários e secretárias dos NB’s que lhes muniam de informações.

O seminário da memória da etapa anterior trouxe elementos importantes. Fizemos a análise de que, os grandes desafios é que nos movem e que houve uma unidade da turma perante esses desafios. Conseguimos ampliar a visão de totalidade, não ficando nos detalhes. Tivemos fragilidade no debate da Educação do Campo dentro das organizações que se concretizou na pouca intervenção que tivemos na II CNEC. Outro limite foi que ainda não absorvemos a importância da disciplina nos tempos educativos. O desafio que ficava para a etapa VII era avançar na postura de

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pedagogos e pedagogas.

A discussão sobre a construção e o papel do ser educador ganhou corpo e gerou conflito durante um grande período da etapa. Houve uma discussão no sentido de entender quem seria mais importante nos movimentos: educador ou dirigente. Nas discussões abertas sobre o tema era consenso geral, que as atividades são fundamentais e uma é intrínseca na outra. Ao mesmo tempo em que um dirigente precisa ser educador, um educador também precisa ser dirigente. Porém, em muitas falas na turma apareciam outras concepções. Pensamos que fosse pela nossa perspectiva de atuação nas organizações. Alguns, por atuarem nas escolas com a tendência de supervalorizá-la, outros que atuam na militância não-escolar com a tendência de pormenorizar a escola. Fizemos, várias vezes, esse debate nas discussões em sala de aula, nos NB’s e pelas conversas informais. Cremos não ter esgotado a discussão e sabemos que esse conflito é uma realidade nos nossos Movimentos/Pastoral.

Outro informe que recebemos no primeiro dia foi sobre a situação do nosso curso. Havia mudado de nome oficial pela terceira vez. Além disso, uma boa notícia: a UERGS havia voltado atrás na decisão sobre a carga horária dos estágios. Havia a possibilidade concreta de terminarmos, ainda nesse ano de 2005 o curso, realizando a formatura no tempo que tínhamos previsto antes. Esse foi, aliás, um impasse que vivemos por um longo período na etapa, já que a Universidade não confirmava a data da formatura. No entanto, fomos nos organizando: começamos a fazer os encaminhamentos mais urgentes e foram organizadas equipes de trabalho para dividir as tarefas. Além disso, foram tiradas duas pessoas da turma para coordenar as equipes e os encaminhamentos necessários. As equipes foram trabalhando e realizando as tarefas mais urgentes, de forma que foi possível fazer um orçamento geral do gasto que teríamos com a nossa festa. Quase na metade da etapa tivemos a confirmação: 23 de setembro. Numa reunião do colegiado dos Movimentos, foram apresentadas as idéias e o planejamento da turma em relação à formatura.

Também aceleramos a confecção das nossas roupas. Havia a proposta, ainda da etapa anterior, de confeccionarmos a roupa da formatura, de algodão cru, e cada um fazer um bordado. Isso gerou muitos conflitos na turma. Algumas pessoas não queriam usar na formatura esse tipo de roupa. Aos poucos fomos discutindo e compreendendo o significado de construir uma roupa com nossas próprias mãos, de um jeito alternativo, porém, sempre existiam divergências. Compramos coletivamente o tecido e começamos a tirar as medidas para a confecção. Numa oficina de bordado, que tivemos com a Irmã Elda, ela fez uma sensibilização em torno do que significava usar roupas de algodão cru. Saímos do Tempo Escola com a tarefa de ir fazendo o bordado durante o Tempo Comunidade. Doze pessoas fizeram o símbolo da turma na camisa, sendo que os demais teriam que criar seu próprio desenho para bordar.

A vinda dos Movimentos na escola, também foi aproveitada para fazer reuniões por organização, onde se debateu a conjuntura dos Movimentos e Pastoral e a atuação dos educandos dentro da escola. Por ora, quando necessário, se encontra tempo e os próprios educandos fazem reuniões das suas organizações, principalmente no final de semana. Nessa etapa tiveram alguns questionamentos da turma em torno da saída de companheiros durante o Tempo Escola para cumprir atividades dos Movimentos e Pastoral. Aconteceram algumas saídas e isso foi avaliado como prejudicial à dinâmica da escola e também para o educando ou educanda, que acaba perdendo o andamento da vida do Instituto.

Alguns Movimentos, também estiveram mais ativos nesse período na escola. Durante o período de comemoração do Dia Internacional da Mulher (8 de março), o MMC contribuiu na preparação de uma Jornada Socialista sobre a atuação da mulher na sociedade. Bem como, durante o período de comemoração do Dia Internacional da Luta Contra as Barragens (14 de março), o MAB contribuiu com as místicas do Tempo Formatura mostrando a luta dos povos atingidos e a questão energética.

Como na etapa VI, nesta também enfrentamos as bancas de defesa para apresentação dos

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trabalhos monográficos. Foram dezenove pessoas da turma com esse desafio. Ficaram ainda quatro pessoas para defender durante o Tempo Comunidade. Quem iria apresentar, teve alguns tempos para preparar-se. Alguns conseguiram ensaiar a defesa e foram ajudados pelos companheiros no sentido de perceber o que ainda poderia ser melhorado. Aqueles e aquelas que já haviam apresentado na etapa anterior iriam iniciar a elaboração do texto coletivo. Cada grupo de pesquisa teve a tarefa de elaborar um texto sintetizando as idéias principais tiradas das pesquisas feitas pelos integrantes do grupo.

Para quem iria defender, muita expectativa e angústia. Depois de todos terem apresentado, a turma reuniu-se para agradecer aos orientadores e às orientadoras e às pessoas que estiveram contribuindo nas bancas. Em seguida, a noite, fizemos um jantar na casa de uma companheira da turma para comemoração.

Durante a janta os NB’s aproveitaram para entregar presentes à Kallena, filha de uma companheira e um companheiro, integrantes da turma. A Kallena foi a primeira criança da turma que nasceu durante um Tempo Escola em Veranópolis.

Um outro desafio importante foi o estágio. Embora já havíamos feito nas outras etapas, nessa tinha um gosto diferente, pois foi nas escolas urbanas de Veranópolis. Deu arrepio na maioria e também um certo medo. Fizemos algumas oficinas de preparação, além de corrigir os relatórios do estágio, que fizemos em Pontão, sobre o qual tivemos um seminário que contribuiu também, para percebermos alguns limites que enfrentamos como superá-los no próximo estágio. Recebemos algumas informações de que as escolas de Veranópolis eram muito bem organizadas pedagogicamente. A maioria da turma deu aula pela tarde, sendo que dois companheiros deram aula pela parte da manhã. Foi uma semana de estágio, e conseguimos estabelecer uma relação com a Secretaria de Educação e com as professoras do município. Fizemos um seminário antes de iniciar o estágio e um depois para avaliação reunindo educandos/as da turma, as professoras e algumas pessoas da secretaria de educação.

Houve grandes dificuldades na relação nossa com as pessoas do acompanhamento, tendo pouca interlocução. Elas estiveram em poucos momentos na sala de aula, e tivemos dificuldades de entender algumas críticas que nos faziam.

Após a apresentação das monografias os grupos de pesquisa se dedicaram mais à construção coletiva do texto sobre os sujeitos do campo que estavam estudando. A idéia era de publicar o conjunto dos textos num livro.

Antes disso foi organizado um seminário para que os grupos apresentassem a sua síntese e elaboração sobre a formação dos sujeitos do campo para o coletivo da turma e para o Colegiado dos Movimentos. O seminário foi um momento de troca de conhecimento sobre as pesquisas. A partir dessa nossa experiência de pesquisadores, houve um convite para que algumas pessoas da turma que moram mais perto de Veranópolis e tinham pesquisado temas parecidos contribuíssem na orientação das pesquisas da turma X do curso Normal. Essa tarefa se estenderia ainda após o nosso curso, até a apresentação dos trabalhos.

Alguns momentos da turma mexeram conosco e parece que criamos uma certa identidade, além daquilo que já construímos nas outras etapas. Ainda no início começamos discutindo sobre a nossa canção e os nossos desentendimentos em torno dela. Apesar de a termos feito coletivamente não conseguíamos associar o ritmo com a letra. Tivemos a contribuição do cantor e compositor Pedro Munhoz, que nos falou sobre a música em geral e sobre a nossa. A partir dessa conversa tivemos o encaminhamento de que deveríamos continuar a cantar a nossa música. Mudamos nossa visão sobre a mesma e conseguimos cantar com mais vontade durante várias vezes ao longo da etapa.

No serviço externo, também exercitamos nosso companheirismo e alegria. No dia do trabalho da turma a maioria foi ajudar na roça, sendo que conseguimos tomar vinho e muitas

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brincadeiras foram feitas. Foi além de trabalho, um momento de confraternização da turma.

A nossa construção de coletividade passou por momentos fortes e alguns um pouco tristes. A saúde de uma companheira não esteve bem ao longo da etapa e foi preciso que ela fosse para casa alguns dias antes do final para realizar alguns exames e cuidar-se melhor com a ajuda da família. Antes da sua saída, ela tirou a foto que seria integrada à foto da turma a ser usada no convite da formatura.

Depois todos nós juntos tiramos a foto da turma. Essa foto também gerou alguns conflitos e discussões. No momento que tiramos, faltava uma companheira e, por isso, ela precisou tirar a foto depois. Isso gerou uma polêmica sobre quem deveria bancar os custos disso. Houve discussão nos NB’s e na coordenação da turma. Primeiro a posição foi uma e depois mudou. O encaminhamento tirado no final foi de que a companheira bancaria os custos da foto, em função de ter que tirar a foto novamente e inseri-la naquela já tirada pela turma.

Além da saída da companheira pelo motivo de saúde, outros companheiros e companheiras também precisaram sair um pouco antes do final da etapa o que ocasionou uma certa tristeza na turma. Parecia que a cada dia a sala de aula ficava maior e nós diminuíamos.

Os momentos de estudo trouxeram importantes reflexões. Os grupos de estudo foram espaços de partilha de nossas compreensões e onde construímos vários conhecimentos coletivamente, e muito a partir do que era trabalhado nos componentes curriculares.

Sobre Projeto Político-Pedagógico fizemos um longo estudo. Primeiro entendemos os conceitos básicos, imaginamos como seria dentro de cada organização, fazendo projetos para realidades distintas. Depois, numa aula envolvente, aprofundamos o nosso próprio percurso ao longo do curso. Analisamos as situações que fomos vivendo e como fomos nos formando. Fizemos uma reflexão sobre quais elementos teriam sido mais importantes para o nosso processo de formação, e depois, aprofundamos cada um desses elementos, lembrando como foi e porquê foi importante:

- Construção da coletividade da turma - Inserção no IEJC - Inserção nos Movimentos Sociais e Pastoral - Pesquisa/construção da Monografia e textos coletivos - Projeto Metodológico das etapas - Estudo - Memória - Acompanhamento - Estágios - Alternância - Gestão

Algumas revelações sobre divergências de opinião entre membros da turma foram feitas e conversamos sobre seu significado no nosso crescimento enquanto militantes e pedagogos.

Tivemos um componente curricular sobre Educação Especial, estudando sobre portadores de necessidades especiais e como atuar pedagógica e humanamente com essas pessoas. Descobrimos nossos próprios preconceitos. Dessa disciplina ficou atividade para o Tempo Comunidade, fazer uma pesquisa em torno do tema na comunidade onde atuávamos.

A escola esteve em debate. Além do estágio e de algumas oficinas práticas sobre como agir em sala de aula, uma disciplina chamou muita atenção. Aprofundamos a reflexão em torno de entender a escola capitalista e como ir mudando objetivos, avaliação, na perspectiva de um outro projeto de educação e de sociedade.

Terminamos o Tempo Escola no dia 28 de março, com a sensação de que no Tempo Comunidade teríamos muito que fazer. Além das atividades das organizações levamos folhas com

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instruções e indicação do que deveríamos dar conta. As equipes da formatura, com vários encaminhamentos a serem feitos, a equipe de elaboração da memória com a tarefa de continuar, um estágio de 150 horas a fazer, uma pesquisa sobre educação especial e o bordado da roupa para a formatura. O convite não estava pronto e algumas pessoas ficaram com a tarefa de acabá-lo e enviar a todos.

Durante o TC fomos para as atividades de nossas organizações. As perguntas mais gritantes, no todo da turma, eram sobre a formatura, sobre o estágio. Houve uma negociação com a UERGS que nos preocupou bastante. A posição é de que deveríamos usar a beca durante o ato solene de colação de grau. Além disso, a Universidade coordenaria o momento solene. Essa notícia chegou via correio eletrônico e nos deixou aflitos.

Os companheiros e companheiras que não haviam feito a defesa de suas monografias durante as duas etapas anteriores, a fizeram nesse TC, no dia 02 de junho. Fizeram a defesa, mas acabaram não informando a turma sobre como tinha sido.

Etapa VIII

A nossa oitava e última etapa teve início no dia 18 de agosto de 2005. Tivemos um significativo avanço no número de companheiros/as que estavam presentes no Ato de Abertura em relação às etapas anteriores. Estávamos em 32 pessoas.

A CNBT da turma, que fora escolhida ainda no final do TE 7 chegou antes no Instituto e se reuniram para discutir o andamento da etapa. Nesta reunião, participaram também as secretárias dos NB’s, como forma de contribuírem na discussão sobre a turma. A equipe de sistematização também se reuniu para discutir o andamento da memória da turma para o decorrer da etapa e discutir a proposta de estudo da memória do TE etapa 7.

A mística de abertura trouxe presente o desafio do tempo comunidade que foram as monografias, as roupas da formatura, os trabalhos dos componentes curriculares e os registros da prática pedagógica no estágio. Também trouxe presente os desafios deste Tempo Escola, entre eles novamente o auto-acompanhamento, a memória coletiva da turma e a preparação para a formatura.

Após o ato, iniciamos os encaminhamentos da inserção. Fizemos a ratificação da coordenação dos NB’s e a CNBT da turma. Depois fizemos um levantamento por Organização, sobre os companheiros e as companheiras que ainda não tinham chegado e quais os motivos. Também apontamos os nomes para fazerem parte da Comissão de Disciplina e Ética e do Conselho Fiscal. Recebemos os informes gerais sobre o Instituto.

A coordenadora do curso nos informou sobre a situação do retorno de uma companheira que não havia cursado a etapa 7, tendo em vista a não aceitação da UERGS do seu pedido de transferência para a turma II de Pedagogia, que decidiu pelo seu retorno ao considerar o atestado médico enviado pela educanda. Desta forma, houve o seu retorno ao curso, bem como a possibilidade de conclui-lo desde que a educanda fizesse a recuperação dos trabalhos da etapa 7, fazendo depois a colação de grau em gabinete e não com a turma.

Também fomos informados sobre os encaminhamentos feitos pelo Iterra e pela comissão da turma com a Universidade durante o TC sobre a nossa formatura. Nos informaram que após o termino do TE da etapa 7 a UERGS havia enviado uma nova resolução onde nos informava sobre todos os procedimentos de uma formatura, inclusive o uso de beca, para realizar a colação de grau. Durante a reunião com a Universidade ficou acertado que a mesma iria fazer a colação de grau, porém a turma realizaria o ato da formatura conforme o planejamento estabelecido pela nossa equipe. Também ficou acertado que uma equipe da Universidade viria para a escola durante o TE 8 para acertar o planejamento da formatura. Em relação ao uso das roupas, ficou encaminhado que ambas as partes faria uma nova avaliação.

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Após os informes, fizemos a entrega dos trabalhos do TC e fomos para os NB’s fazer o estudo do PROMET da Etapa. Da construção deste PROMET tínhamos participado ainda no final do TE anterior. Fizemos então, nessa etapa a construção das metas coletivas da turma e das metas individuais de cada educando e educanda.

Continuamos com nosso auto-acompanhamento, sendo que a CNBT ficou responsável por intencionalizar mais o processo. Nesse sentido continuou-se usando o método de fazer reuniões aos domingos, porém, contando também com a participação das secretárias dos NB’s. Logo no início da etapa a turma fez o estudo do cronograma geral da etapa na perspectiva de contribuir no seu “recheio”, colocando as atividades necessárias. O método de repasse de informes nos NB’s ficou mais dinâmico, podendo ser usado o tempo para discussões políticas, a vivência no IEJC e a análise sobre o nosso processo de formação.

A etapa foi de afirmação da coletividade da turma, de construção conjunta perante os vários desafios que se colocaram. As equipes de formatura trabalharam bastante, fazendo os encaminhamentos específicos, e a equipe geral coordenava no sentido de ter o conjunto das informações, sendo que algumas vezes realizamos plenárias com toda a turma para os encaminhamentos políticos e estruturais. Fizemos vários momentos de convites para a formatura: paraninfo e paraninfa da turma, equipe de acompanhamento dos estágios, turmas que estavam no IEJC, educadores e educadoras do IEJC, da turma, colaboradores... Também confeccionamos lembranças e materiais para ornamentação do Salão da Gruta, espaço de nossa formatura. Além das atividades que diziam respeito à coletividade, também fomos fazendo nossa preparação individual: conclusão do bordado da roupa, compra de calçados, etc.

O Ato/Cerimonial sempre foi um ponto de conflito com a Universidade. Durante a Etapa fomos negociando o roteiro do ato. Primeiro, uma comissão da UERGS veio no IEJC para construirmos a proposta do ato conjuntamente. Depois, tivemos a informação que o Reitor não aceitaria a proposta construída. Então, pensamos em como garantir a nossa parte no ato, necessitando dividi-lo em dois momentos.

A turma esteve bastante animada e unida durante toda a etapa, compartilhando conjuntamente vários momentos. Chamou a atenção, assim como em outras etapas a presença das crianças pequenas que eram trazidas na sala de aula, de vez em quando, para sua amamentação. Uma companheira que estava em licença-maternidade, chegou na etapa alguns dias depois do seu início. Outro momento de descontração foi de várias celebrações de aniversários feitas a noite nos quartos, após o término das atividades. E durante alguns dias também aconteceram atividades com exercícios físicos e música, tanto nos quartos como na sala de aula, após as atividades.

No que diz respeito ao estudo esta foi uma etapa um tanto diferente. Os componentes curriculares oficiais foram apenas dois, porém tivemos muitos momentos de estudo e reflexão interna. Aprofundamos nas disciplinas, algumas teorias sobre psicologia da educação, e também sobre a história da EJA no Brasil. Essa última, principalmente, trouxe elementos significativos sobre o analfabetismo, a situação de preconceito em relação aos analfabetos, sobre o que refletimos bastante.

Quanto à aula de Psicologia aprofundamos elementos sobre as teses do desenvolvimento e a aprendizagem. Também aproveitamos para entender melhor sobre a teoria sócio-histórica, na perspectiva de Vigotsky. Estivemos apreensivos diante das diferentes teorias apresentadas, e buscamos nos esforçar para fazer o contraponto desde as experiências que tivemos nos estágios. Durante essa mesma aula estivemos olhando o documentário “ O Ônibus 174” que relata um assalto a ônibus feito no Rio de Janeiro no ano de 2000, por um menino sobrevivente da chacina da Candelária, o que nos chocou bastante pelo conteúdo tratar da miserabilidade que sofre a população brasileira.

Estivemos também refletindo sobre nosso processo de estágio. Logo no início da etapa quando fizemos o Seminário do Tempo Comunidade, elencamos aspectos significativos sobre o

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estágio e a prática pedagógica. Posteriormente, tivemos um momento para a reflexão específica sobre os estágios que tivemos durante o Curso. A avaliação mostrou que a turma teve um avanço na compreensão da concepção de educação e sobre os limites na atuação das escolas. Aprofundamos também o entendimento do papel da escola na perspectiva da Educação do Campo, e como concretizar a concepção nas escolas que temos. Neste Seminário, construímos individualmente uma síntese sobre a concepção do papel da escola do campo e nos Movimentos Sociais e Pastoral.

Tivemos também um momento para fazer a correção dos relatórios de estágio feitos no Tempo Comunidade. Organizamos os certificados do estágio, pois alguns demoraram para chegar do local onde fizemos o estágio. Uma companheira da turma teve problemas na certificação do estágio que havia feito.

Quanto ao processo de pesquisa, estivemos acabando os textos coletivos elaborados nos grupos. Os orientadores e as orientadoras nos enviaram o que já havíamos produzido e tivemos um dia para olhar novamente e dar as últimas sugestões para construção do texto sobre a formação dos sujeitos do campo.

A Memória foi um elemento importante e que avançou significativamente na etapa. Tivemos vários momentos de envolvimento de toda a turma na própria elaboração dos textos. No primeiro estudo coletivo, a turma fez as últimas observações referentes a este texto cronológico. Num segundo momento, construímos textos em grupos, sobre as estratégias pedagógicas que nos formaram durante o curso. Posteriormente fizemos uma análise sobre as grandes fases da turma, além de estudarmos também a memória da etapa 8. A equipe de sistematização da memória esteve fazendo as elaborações a partir dos debates da turma. A idéia era no dia da formatura ter uma cópia encadernada para cada educando/a, além de fazer entrega da mesma para alguns educadores e para as Organizações.

Estivemos bastante voltados para a turma. No entanto, tínhamos o desafio de aperfeiçoar a vivência no Instituto. Continuamos com o limite da pouca participação nos momentos culturais, porém estivemos bem presentes em outros momentos. Participamos da abertura do Cinema na Terra no IEJC, assistindo junto com toda a coletividade o filme “Quase Dois Irmãos”. E um momento de construção foi a realização da mística de Formatura da Turma MAG IX, Salete Stronzake, que aconteceu no dia 03 de setembro. Nos empenhamos na organização da mesma, nos ensaios, na organização de alguns materiais.

Um outro limite na participação dos tempos educativos foi nos momentos de Reflexão Escrita, nos quais poucas pessoas iam para a sala de aula, provocando alguns debates nos NB’s sobre a importância desse tempo na formação humana, enquanto reflexão sobre a vivência.

Também participamos como Instituto dos desfiles do dia 07 de setembro no centro de Veranópolis.

Realizamos o Balanço do Curso, um momento de avaliação política por Movimento Social e Pastoral e enquanto Via Campesina. A avaliação, no geral, foi positiva destacando a importância do curso e os desafios da formação de pedagogos e pedagogas, educadores e militantes da luta da classe trabalhadora.

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Parte 3

Memorial de Aprendizados

“Uma árvore cai com um grande estrondo, mas ninguém ouve a floresta crescer.”

Provérbio Africano

A seguir apresentamos uma amostra da produção escrita de educandos e educandas da Turma José Martí que foi nominada de “Memorial de Aprendizados” e foi concluída em setembro de 2005, no final da última etapa do curso.36

Esta atividade foi decidida pela turma durante a sétima etapa como parte da discussão sobre a sistematização de seu processo formativo. Cada pessoa foi convocada a fazer uma reflexão sobre sua trajetória de formação, destacando seus aprendizados fundamentais e buscando analisar como considera que foram construídos. O nome “Memorial de Aprendizados” foi sugestão de uma das educandas: “fizemos um memorial de entrada no curso e agora podemos fazer um memorial de saída”.

A matéria-prima para esta produção envolveu uma releitura de escritos anteriores, especialmente o memorial de entrada no curso, a síntese de aprendizados de cada etapa e os cadernos de reflexão ou diários de campo. Também foram considerados os registros e ou as matutações sobre as vivências pessoais a propósito dos processos de elaboração do texto final da memória da turma e da reconstituição do projeto político-pedagógico do curso, que aconteceram no mesmo período e dentro da mesma intencionalidade.

Os quatro trabalhos escolhidos nos permitem ter uma idéia de por onde a turma caminhou na elaboração de uma de suas obras de conclusão deste ciclo formativo e que aprendizados foram mais destacados em suas reflexões sobre o processo vivenciado no período do curso.

Memorial de Aprendizados de

Alexandra Borba da Silva

Cambia lo superficial Cambia también lo profundo

Cambia el modo de pensar Cambia todo en este mundo.37

É preciso cambiar. É preciso mudar. Do detalhe do cotidiano ao curso da história. Não porque nós queremos, mas porque a vida está em movimento constante. Porque independente da nossa vontade, tudo muda. Tudo está mudando. No entanto, quem intencionaliza a mudança, a pensa a seu favor.

Entendendo esse movimento histórico, consegui olhar o Memorial de Vida que escrevi no início do curso, com mais serenidade, e também esperança. Quantas mudanças de ação e

36 O conjunto dos Memoriais de Aprendizado da turma está arquivado no Centro de Documentação do Iterra. 37 Canção interpretada por Mercedes Sosa.

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pensamento. É bom de ver a beleza do movimento histórico na formação das pessoas e na sua ação na realidade.

Na escrita do Memorial tem dois momentos. No primeiro fiz um relato de opressão e de vítima:

"Fui crescendo, sempre magrela e fraquinha." "Na escola, fui me fechando, ficando cada vez mais quietinha, tímida, até porque minha professora me reprimia (...) Enquanto fui ficando fechada, fui criando dificuldade de criar amizades". "Nessa época minha mãe já estava muito doente. Lembro que a boca dela era torta por causa das convulsões e vivia muito triste (...) Ela descontava em mim, me surrava muito".38

Esse olhar que fazia sobre minha trajetória era um olhar de pena de mim mesma. E eu me apequenava diante da vida. Isso implicava nas minhas ações, na coragem que tinha de encarar os desafios. Isso veio a implicar dentro do curso, quando deixei de enfrentar debates por entender que os outros sabiam mais que eu, quando não expus o que eu pensava por pensar que sempre pensava errado e os outros é que pensavam certo sobre tudo.

No segundo momento do Memorial eu trouxe elementos sobre a entrada no Movimento e como isso foi mudando a minha existência, o jeito de olhar a vida, o mundo e olhar pra mim.

"Comecei a sentir falta dos amigos (...) e comecei a me indignar com a situação. As barragens não deram vantagem pra nenhum atingido (a)."

"(...) uma pessoa representando o MAB (...) falou sobre a possibilidade de desenvolver a Educação de Jovens e Adultos na comunidade, desde que tivesse algum (a) voluntário (a) para dar as aulas, e eu me dispunha a fazer esse trabalho. Foi um grande desafio. Eu tinha apenas dezesseis anos, nunca tinha sido educadora e conhecia muito pouco do MAB, mas fui em frente".

"Continuei a militar no MAB, no setor de formação e "eles" acreditaram em mim".

"Acredito que ser educadora é (...) ensinar as pessoas a ler o mundo para serem sujeitos do mundo em que vivem".39

Há aí uma outra fase da minha vida. Uma fase de busca como ser humano, uma busca pelo seu reconhecimento perante os demais, e principalmente, uma busca pelo "auto-reconhecimento" enquanto gente que pode construir a sua libertação e a liberdade coletiva. Quando eu não me via como gente, capaz, também não era possível de assim ser, e por isso, os demais não me reconheceriam como tal.

A atuação no Movimento Social estava começando a mudar a minha condição, o meu ser condicionado para o meu ser construtor. Eu estava começando a descobrir que era possível mudar tanta coisa. Era a primeira fase, de paixão, de ver a luta de uma forma romântica. A mística me cativava, a minha concepção de revolução era idealista e sonhadora. Mas isso me motivava a seguir em frente. A minha maior motivação era a vingança, eu não aceitava as perdas da família, a mudança de vida. E a vida está sujeita a essas mudanças. Eu estava começando a entender que eu também poderia ser sujeito das mudanças, e fazê-las de modo diferente. Pra mim, a educação tinha esse papel. A educação, como concepção que eu construíra antes do curso não é o oposto da que tenho agora. Está recheada, mais bonita, apresentável.

Quero abrir um parêntese para registrar que, agora, ao cantar a parte da música colocada no início do texto, algumas gotas de água nos olhos me dizem mais uma vez, que é preciso mudar, e viver eternamente a mudança.

Apesar da abertura que eu estava começando a construir, da possibilidade de ser uma militante, eu não estava disposta a abrir mão de certos vícios e valores que tinha. Eram construções

38 Memorial de Vida. Abril de 2002. 39 Idem.

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desde criança, da família, da religião, da escola. E por falar em escola, eu não tive uma boa experiência nesse sentido. A escola foi o espaço responsável pela poda da minha faceirice de criança. Foi onde aprendi a obedecer e tirar boas notas para ter um boletim bonito e apresentá-lo para a mãe e o pai.

O que então o Movimento como espaço educativo estava me proporcionando, me animava para a vida. Mas eu não estava de todo mudada. E ao chegar num espaço novo, muitas concepções em mim retrocederam. Era preciso me desconstruir. Essa desconstrução foi em parte pela chegada no novo ambiente, com novas pessoas, outros desafios. Porém, houve também a desconstrução no sentido do precisar, e essa foi dolorosa porque era aquilo que eu não queria. Eu estava de bem com uma certa carga de visões, concepções e jeitos, e de certo modo, acomodada. Por isso, desconstruir/ reinventar teve esses dois gostos. Um, de querer, e outro, de necessidade de sobrevivência.

Logo no início do curso, talvez primeira e segunda etapas, eu estava num momento de entender a mim mesma, o que eu era dentro do Movimento, o que era o Movimento e qual seu papel na sociedade. Estava voltada para as minhas implicações, os meus problemas. "(...) Aprendi a me olhar, me controlar, cuidar de mim"40. E isso me fez entrar em choque com o que eu era.

Os primeiros componentes curriculares, voltados à filosofia, à história, à educação, colocavam em xeque as concepções de mundo construídas. A minha explicação sobre a vida e o mundo começavam a ser questionadas. Tinha uma explicação religiosa fundamentada, que estreitava a análise. O mundo fora criado por Deus, e precisaríamos da ajuda "Dele" para mudar. Nesse sentido, a aula de História da Educação com o educador Miguel Arroyo, só me trouxe questionamentos. E eu tinha que dar conta de responder. Fui construindo esse aprendizado, de olhar sobre a ordem de coisas. Cada componente curricular trazia mais elementos, cito aqui a leitura do livro O Papel do Indivíduo na História e o estudo com o educador Mauro Iasi, no qual aprofundamos as concepções naturalista e marxista. As aulas possibilitaram que eu entrasse em contato com possibilidades de explicação, que eu não conhecia.

O outro elemento igualmente fundamental para o contato com as novas concepções foi a vivência na luta concreta. Aí, no enfrentamento, fui aprendendo que nada era tão natural e impensado. Ou seja, as explicações estão na materialidade dos fatos, nos interesses de classes, de forças sociais. Escrevi na minha Síntese de Aprendizados da segunda etapa: "Vejo que adquiri muitos conhecimentos político-sócio-culturais, que ampliaram minha visão de mundo. O que me levou a isso foram as disciplinas, os debates nos NB’s, nos grupos de estudo, nos seminários, nas conversas de corredor, no TC,..."41 Esses estudos foram trabalhando concepções, e eu ia fazendo a confrontação com a prática. Por isso houve também um fenômeno de começar a perceber os limites na prática do Movimento, e estabelecer críticas sobre isso. Era uma fase de ver todos os desvios possíveis, os equívocos, porém não conseguia propor avanços com fundamentos na realidade. Avancei dessa fase de crítica, para a proposição, principalmente com o processo de pesquisa, sobre o qual falo mais adiante.

Quanto ao IEJC e o método. No início tentei me adaptar. Lembro que na avaliação que fizemos enquanto MAB no primeiro TC, eu fiz uma fala dizendo que nós teríamos que aprender com o Instituto, olhar a caminhada que o MST tinha na área da Educação e enquanto Movimento. Tinha aí nessa fala, dois elementos. Um era de afirmação, eu precisava falar coisa inteligente; outro era também de preocupação, no sentido de não cair no criticar tudo.

Através da vivência, estudo sobre a formação humana e tentativa de compreensão, comecei a refletir sobre o método do Instituto. Esse movimento não foi unicamente meu, mas foi de grande parte da turma, embora com níveis diferentes. Muitos e muitas de nós começava então a criticar a

40 Agosto de 2002. 41 Idem.

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proposta e fundamentar através das teorias estudadas. Foi um momento significativo para a turma, do ponto de vista do jeito de fazer, aprendemos a argumentar, aprofundar. Porém, quanto ao conteúdo, estava ‘furado’, porque na verdade não tinha tanto aprofundamento e argumento concreto. Outro elemento que se coloca aqui, talvez não tenha acontecido tão profundamente em mim, mas em outros companheiros e outras companheiras da turma isso foi forte, o fato de projetar nas pessoas que estavam coordenando e cobravam a realização das tarefas, os limites individuais. Quer dizer, a pessoa não consegue, então culpa alguém, materializa em alguém o fracasso. E esse é um aprendizado do ponto de vista dos processos de formação humana.

O fato de não ter argumentação convincente forçou-nos compreender a realidade e perceber nossos erros. Mais uma vez aprendi que quando as minhas explicações não davam conta, e eu entrava em contato com outras, tinha a possibilidade de reinventar o que eu sabia. Mas isso não era pacífico, eu sofria e demorava muito tempo pra compreender, construir o novo. Na maioria das vezes, eu escutava o que as pessoas diziam (educadores, educadoras, companheiros, companheiras da turma) e colocava uma barreira para não entrar em choque com o que eu pensava. Deixava de dialogar com essas pessoas. Para refletir, escutar os novos conceitos, necessitava de ajuda de alguém mais próximo que não me fizesse sentir ameaçada. Isso eu consigo perceber hoje, e consigo entender também como um aprendizado que para ajudar na mudança de outra pessoa é preciso seguir alguns desses caminhos. Colocar em xeque, ter alguém pra ajudar na "ruminação", colocar tarefas concretas que ensinem a pessoa na prática.

Fui compreendendo melhor o espaço e o método do IEJC, principalmente quando fui contribuir em espaços de formação dentro do Movimento e que necessitei administrar conflitos muito parecidos com os que acontecem no Instituto, por exemplo, problemas nas relações afetivas, ou indisciplina nos horários. Mais que um método em si, comecei a perceber que havia uma necessidade concreta de organização e respeito às necessidades coletivas. É um jeito de educar as pessoas a viverem diferente e compreender que a sociedade pode ser organizada de maneira diferente.

Estabeleci também relações entre os aprendizados construídos no IEJC com os aprendizados que se constrói em outras escolas dos Movimentos, e isso me fortaleceu algumas convicções que aprendi no método de organização da escola, enquanto espaço de formação.

O acompanhamento foi um elemento que consegui ressignificar através do diálogo entre a vivência no Instituto e minha prática. Quando estava no Instituto, ainda no início do curso, parecia que o acompanhamento era algo negativo, alguém estava com a tarefa de fiscalizar os meus atos, e isso incomodava, principalmente porque o ser humano não gosta que apontem seus limites. Na atuação como Coletivo de Formação fui aprendendo a necessidade de compreender as pessoas com quem estávamos trabalhando, para melhor ajudá-las na sua caminhada e então comecei a perceber o significado do ato de acompanhar. Mais que fiscalizar, estar próximo, acompanhar é cuidar com carinho de cada pessoa com quem trabalhamos. Aí então comecei a ter necessidade de entender melhor a concepção e o método de acompanhamento do Instituto. Por isso construí muitos aprendizados.

Cito aqui uma reflexão que fiz: É preciso ter clareza que quem acompanha já sabe e precisa ajudar, e dirigir também, quando necessário. Quem acompanha tem acúmulo. E conflitos sempre haverão porque quem é acompanhado muitas vezes não entende que precisa ser ajudado, que tem limites42. Acompanhar seres humanos é entendê-los e colocá-los em contato com o novo, possibilitar que vivam experiências concretas, colocá-los em choque com suas concepções e seus limites, possibilitar que estando no seu limite consigam avançar qualitativamente na sua formação. E nesse sentido aprendi que colocar alguém no seu limite é também colocá-lo entre seus interesses

42 Reflexão Escrita do dia 26 de agosto de 2005.

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individuais e os interesses coletivos. Neste momento se explicitam os vícios e é hora de refletir coletivamente sobre eles.

Vejo que os grandes aprendizados que ficam em relação à formação humana estão ligados muito mais à vivência no Instituto do que aos componentes curriculares estudados, se é que de fato estou sendo coerente na quantificação. O que quero expressar é que a vivência prática e a reflexão foram determinantes. Nesse sentido elenco questões teóricas, mas que nesse momento têm um significado concreto e consigo compreendê-las. A primeira, é que o ser humano está em permanente construção. A existência, ou seja, o espaço onde as pessoas vivem e atuam é que determina a forma como ela pensa, sua ideologia. Sendo assim, é possível transformar o modo de agir e pensar através de espaços de vivência diferentes. Os Movimentos Sociais Populares são um exemplo disso, de novas vivências que possibilitam as pessoas ressignificarem a sua existência; por isso são educativos, espaços de formação humana.

O trabalho, como reprodução da existência humana, humaniza as pessoas. É a principal matriz formadora, porque dá a dimensão da construção da sobrevivência individual e coletiva e possibilita a reflexão. A formação dos trabalhadores se dá através do trabalho e da reflexão sobre esse processo. Ou seja, é preciso trabalhar, mas não basta. A reflexão sobre as relações de trabalho é que dá a possibilidade das pessoas entenderem o mundo. Chamamos esse processo de práxis. A relação da prática e da teoria, a prática refletida. Nesse sentido a escola, enquanto espaço educativo deve possibilitar a experiência do trabalho como um dos princípios pedagógicos para a formação dos educandos, das educandas.

Também fui construindo muitos aprendizados sobre a organização coletiva. Primeiro, que ninguém se torna humano sozinho. É vivendo com seres humanos que falam, caminham, dançam, escrevem, trabalham, se organizam em famílias, ou clãs, ou tribos, que aprendemos a fazer essas coisas. Ou seja, nos humanizamos coletivamente. Segundo, que para sobreviver como humano, é necessário que continuemos nos relacionando com humanos. Quer dizer, sozinho, ninguém produz comida, roupa, casa ou reproduz seres humanos. Isso requer organização. Cada parcela da sociedade deve ficar com uma parte da produção. Terceiro, que não dá para todos os seres humanos se reproduzirem se cada qual tiver livre escolha, porque a tendência é que haja exploração de uns sobre os outros. Quer dizer, é necessário que haja uma organização verdadeiramente coletiva para que todos possam viver bem. A organização coletiva deve ter objetivos e princípios (que no caso da escola estão no PPP), gestão coletiva (no nosso caso NB, CNBT, CNBI, Encontro Geral,...), normas estabelecidas (no caso o Regimento), sistemas de cobrança (no caso DGT, Vivência Social, Crítica e Autocrítica, freqüência nos tempos educativos) e instâncias responsáveis (NB, CNBT, CNBI, Comissão de Disciplina e Ética, Conselho Fiscal, ...).

E um dos grandes aprendizados que se construiu foi sobre a gestão da Escola através do trabalho, organicidade e instâncias. Olhei para o Encontro Geral do IEJC no sentido de entender as regras da organização coletiva.

Na organização coletiva não há hierarquia de poder, no sentido autoritário. Há instâncias com respectivos poderes de decisão, no sentido de autoridade e responsabilidade. Todas as pessoas coordenam e são coordenadas dentro da dinâmica dos espaços de atuação. E esses espaços de coordenação são fundamentais para a formação do ser humano, no desafio. Para coordenar é preciso ter a visão do conjunto e propor consensos a partir das idéias diferentes.

Levo também para minha atuação na militância o aprendizado fundamental da crítica e autocrítica como método de superação e construção coletiva. É um momento de desmascarar aquilo que o ser humano quer esconder. E necessita da abertura para o diálogo no sentido de querer avançar.

Também tive significativos aprendizados relacionados ao processo de pesquisa e construção da monografia. Um está ligado à própria importância de pesquisar para entender, de

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fato, a realidade. A tendência que temos é pensar que conhecemos um determinado espaço e o povo com quem trabalhamos, e durante o processo de pesquisa fui percebendo o quanto sabemos pouco e precisamos aprofundar, para fazer um trabalho organizativo melhor fundamentado. Nesse sentido aprendi a estranhar aquilo que parecia normal, que era consenso. Outro aprendizado está ligado ao método de pesquisa, no sentido dos aspectos que devem ser olhados pelos pedagogos, pedagogas: a necessidade de perceber os sujeitos e as relações entre eles, como vivem, como se relacionam, qual o movimento de formação que percorrem, qual sua historicidade, cultura, quais as contradições da realidade; ou seja, é preciso olhar as pessoas em relação com sua realidade, no movimento e nas suas contradições.

Aprendi, no processo de elaboração e sistematização da monografia. O esforço realizado durante o período do Curso para escrever sobre o Movimento com delimitação prática e teórica teve seu ponto culminante nessa etapa.43 Foi o momento de confrontar todas aquelas teorias que estávamos estudando com uma realidade concreta onde eu atuava. Relacionar teoria e prática num sentido de entrelaçamento, de fazer com que as realidades sistematizadas e já refletidas ajudassem a entender a realidade que eu estava observando. Escrever olhando os vários aspectos, não generalizar o pensamento, sistematizar dados, fazer o exercício de escrever para alguém que não conhece a realidade sobre a qual escrevo, o que também está ligado ao estranhamento, ou seja, aquilo que era dado, para outras pessoas poderia ser extraordinário, diferente.

Compreendi pela pesquisa melhor o próprio Movimento enquanto organização, suas concepções de trabalho, de luta, de táticas naquela determinada realidade onde pesquisei, e que está ligada à realidade e concepção geral do Movimento. Aqui comecei então a avançar de uma fase de críticas à organização para um momento de reflexão sobre o que era realmente o MAB, a que se propunha, e como eu poderia, enquanto militante, contribuir. Ao mesmo tempo em que esse avanço se dava internamente na minha compreensão, a minha atuação precisou ser moldada como pesquisadora. Os momentos de pesquisar tiveram que ser compreendidos como momentos de não-militância. O desafio se colocava em perceber os limites, mas que só poderiam ser apontados no “final” da pesquisa.

E quanto ao conteúdo da pesquisa, aprendi que os educadores dirigentes se formam como educadores quando estão assumindo essa missão, quando estão organizando os Atingidos por Barragens, quando estão contribuindo na luta, quando estão assumindo uma identidade de classe oprimida e lutadora.

No exercício de defesa da monografia construí outros aprendizados. Defender a monografia necessitou de uma grande capacidade de síntese e de clareza política do que falar e escrever. 44. Havia muitos elementos a serem socializados, porém, foi um exercício de, ao ter a clareza do que era o trabalho, definir os elementos que não poderiam faltar, o que era central na discussão.

Aprender a sistematizar e elaborar também foram uma construção além da pesquisa. Nos vários componentes curriculares que estudamos, tivemos como tarefa construir sínteses sobre o assunto, o que contribuía tanto com a assimilação do conteúdo, bem como com a capacidade de elaborar sobre o mesmo. Olhando assim, era um elemento importante de avaliação dos aprendizados dos educandos, das educandas.

Além da pesquisa e dos componentes curriculares, um elemento fundamental para meu processo de sistematização foi o trabalho que fiz na sétima e oitava etapa na tarefa de sistematizar a Memória da Turma. Mais que elaborar uma síntese minha, era necessário elaborar uma síntese coletiva, da turma. Isso exigiu a habilidade de construir consensos, de não generalizar um ponto de vista, e de contemplar as várias compreensões.

43 Síntese dos Aprendizados, sexta etapa, 2004. 44 Idem

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O maior aprendizado que tive na construção da memória foi muito doloroso. Aprendi colocar a “minha” produção para que as outras pessoas criticassem, escutar todas as críticas e entendê-las como limites, não somente meus, mas do coletivo da turma. Esse foi um processo de amadurecimento extraordinário, embora não esteja de todo tranqüilo, que eu já não me importe mais com as críticas. A tendência é que as pessoas não admitam erros nas suas produções, desde um material concreto, um texto ou o próprio filho. Por isso considero o significado desse avanço para a minha caminhada enquanto educadora e pedagoga da luta.

Enquanto educadora também construí aprendizados em relação à concepção de educação, aos objetivos e à relação educador e educando. Educação é processo de formação humana, de pessoas, é movimentar as pessoas na busca de sua humanização. A educação traz consigo uma ideologia, que historicamente foi utilizada para a manutenção da exploração e domesticação da classe trabalhadora pela classe dominante. No Brasil a educação foi negada aos trabalhadores, e principalmente aos camponeses. Porém, pode ser construída com base em outra ideologia, de construção de pessoas capazes de construir também a história sua e contribuir na construção da história da humanidade liberta. Precisamos, e já estamos, a construir referenciais de uma nova educação, socialista, humanizadora. Está aí a necessidade e importância do Movimento Social lutar e construir escolas e uma concepção de educação. No nosso caso específico de camponeses, o desafio é continuar construindo a Educação do Campo como ferramenta de luta e espaço de formação dos seres humanos que vivem e trabalham no campo.

Sobre a relação entre educadores e educandos, construímos coletivamente alguns aprendizados que valem ser destacados. Educador e educando têm conhecimentos que produziram durante suas vidas. Por isso trocam saberes. Isso não tira da responsabilidade do educador, da educadora a intencionalidade do processo educativo. Deve ser uma relação de troca, entendendo a responsabilidade maior que está sobre um dos sujeitos. É preciso conhecer os educandos, as educandas com quem vamos trabalhar, sua história, cultura, saberes. São pessoas com história, com traumas, com vontades, desejos45. Daí se tem a base para iniciar a construção dos novos conhecimentos. Essa compreensão construímos nos componentes curriculares estudando Paulo Freire, Miguel Arroyo, ..., mas na prática conseguimos vivenciar essas teses pedagógicas. Durante os estágios tivemos a oportunidade de estabelecer as comparações e confrontar os conhecimentos teóricos. Estar na sala de aula não foi só ter a preocupação de ensinar alguns códigos, mas de ajudá-los (os educandos, as educandas) a entender, por exemplo, que era necessário entrar na escola com seus calçados (nem que para isso fosse necessário limpar).(...) Além disso, tentei entender um pouco a relação familiar que convivem para me aproximar mais facilmente de cada um.46

O estágio também foi um espaço de aprender a ter seqüência nas atividades. Primeiro estabelecer objetivos, a partir daí fazer o planejamento da atividade, desenvolver, após avaliar para perceber os limites e voltar novamente. Estabelecer os novos objetivos e seguir.

Tive também muitos aprendizados técnicos que valem ser destacados: uso do computador, bordado, organização de materiais, construção de materiais didáticos, conservação de alguns alimentos, manuseio de máquina fotocopiadora,...

Antes de entrar no curso eu tinha uma tendência de escrever poesia, mas o curso me possibilitou acreditar nesse potencial, que então eu consegui desenvolver. Ficam ainda muitos desafios e a necessidade de me dedicar mais a essa tarefa.

Quanto ao próprio processo de construção da turma também construí alguns aprendizados. E estou refletindo nessa oitava e última etapa que a inserção no Movimento Social, enquanto espaço de ação concreta a partir do que entendemos nas reflexões, foi o determinante para avançar

45 Relatório do Estágio Acompanhado em Anos Iniciais II, sétima etapa, Tempo Comunidade, Julho de 2005. 46 Idem.

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na compreensão do curso, ou seja, a ação prática é que consolidou os pedagogos militantes. Por isso ficam muitos desafios para as Organizações e para os companheiros e as companheiras que até esse momento não conseguiram consolidar sua inserção.

Em relação à atuação no Movimento Social, consegui compreender o quanto ele constrói as pessoas. E isso está ligado também à minha experiência, de que falei no início do texto, do resgate do auto-reconhecimento como gente, pessoa que sabe e pode ajudar.

A interlocução do curso com a atuação no Movimento me permitiu significativos aprendizados do ponto de vista do conhecimento e da concepção de mundo e Sociedade, os quais descrevo nos parágrafos seguintes.

Um dos aprendizados é que a sociedade está em constante movimento, e que esse movimento está intimamente ligado à luta de classes que se estabelece entre a classe que domina e a classe que é dominada. O sistema hegemônico atual de organização da produção na sociedade é o modo de produção capitalista, que concentra capital e poder com a tendência de concentrar cada vez mais. Esse modelo explora o ser humano e seu trabalho em detrimento do capital. A ideologia dominante na sociedade é da classe dominante, hoje a burguesia, que utiliza os aparelhos ideológicos (mídia, religião, escola) para propagandear e massificar suas idéias, sua cultura e seus valores. Outro aparato é o Estado, que garante os privilégios da burguesia, dá migalhas para os pobres não se revoltarem e garante a segurança (polícia, exército, etc), se necessário. A classe trabalhadora não tem domínio de nenhum aparato, por isso precisa contar unicamente com seu poder de organização.

Apesar desse cenário social, existem possibilidades concretas de transformar o atual modo de produção e relações, através do entendimento do movimento histórico e da construção do novo. Existem experiências concretas que comprovam essa possibilidade. Os trabalhadores estão criando alternativas e é necessário fortalecê-las. É possível criar aos poucos a cultura de mudança. Construir um novo jeito de viver, de pensar, de agir. Construir novos princípios, novos valores. Construir um novo ser humano baseado na solidariedade e companheirismo em detrimento do individualismo. É necessário criar os métodos, o caminho para se chegar à mudança. Existem várias formas de construir. Os trabalhadores precisam se apropriar do método dialético de ler a realidade na perspectiva de entender e transformar. Olhar o movimento da sociedade e a sua totalidade.

E se tudo está em constante movimento o desafio se coloca em entender como as coisas mudam, para pensar como podem mudar a nosso favor, da classe trabalhadora que busca a libertação.

E assim como tudo muda, que a mudança não me seja estranha.

Bibliografia Consultada:

- Memorial de Vida escrito em 01/04/2002 em Veranópolis, compreendido como vestibular para entrada no Curso de Pedagogia.

- Sínteses dos Aprendizados do Tempo Escola 2, 3, 4, 5, 6 e 7. - Relatório do Estágio em Anos Iniciais II, realizado em Barracão/RS em julho de 2005. - Diário de Práticas Pedagógicas do Estágio em Anos Iniciais II, realizado em

Barracão/RS em julho de 2005.

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Memorial de Aprendizados de Mari Luci Pegoraro

“...com o tempo você aprende que realmente pode suportar .... que realmente é forte e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não pode mais. E que realmente a vida tem valor e

que você tem valor diante da vida.” (WS)

Hoje, após terem se passado três anos e meio de curso, me vejo a refletir sobre os aprendizados que construí ao longo do curso. Na memória estão registrados todos os momentos que vivenciei, mas me cabe agora, destacar os mais marcantes, tendo como ponto de partida como se deu o processo de escolha para minha vinda ao curso. A seguir destacarei os aprendizados a partir da inserção no curso e no Movimento. Para finalizar vou trazer presente os desafios que ficaram após o curso.

Em janeiro de 2002 a Direção Regional do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais, atual Movimento de Mulheres Camponesas da Região de Santa Maria, indica o meu nome para fazer parte deste curso pelo fato da região ter uma grande demanda de trabalho. Tendo em vista que a presença jovem contribuiria no trabalho de base o Movimento resolveu apostar nas jovens.

Para fazer parte do curso era preciso estar inserida em um Movimento e como eu não era militante do MMC e sim filha de uma trabalhadora rural que fazia parte do Movimento, eu teria desta forma o desafio de conhecer o Movimento. Para que isso fosse possível a coordenadora regional me convocou para participar do Encontrão massivo de jovens, que aconteceu em Santa Maria, do 3o acampamento de mulheres – o acampamento Margarida Alves – que aconteceu em Porto Alegre, e também me forneceu alguns materiais para que eu pudesse ler e conhecer mais sobre o Movimento. Isso contribuiu para que eu pudesse saber algumas coisas, mas não era o suficiente, pois o curso teria início já no mês de março.

Tendo em vista que o Movimento de Mulheres havia selecionado um público jovem e que quase não se conheciam, reuniu todas as educandas no dia 13 de março de 2002, na secretaria do Movimento em Passo Fundo com a finalidade de se conhecerem e saberem um pouco de como seria o curso.

No dia 15 de março pegamos o ônibus na rodoviária em Passo Fundo para ir até Veranópolis, estávamos em 11 jovens/mulheres, todas ansiosas, pois ninguém conhecia o local para onde estávamos indo, o ITERRA.

Chegamos no ITERRA no meio da tarde, esperamos um pouco na portaria até que o pessoal veio nos buscar para fazer o alojamento. Como o ambiente era estranho queríamos ficar todas no mesmo quarto, mas isto não foi possível, pois, o mapa dos alojamentos já havia sido organizado. A partir desse momento passei a fazer parte de um quarto com 10 companheiras, destas, eu e mais duas do MMC e as demais da PJR, MST e MPA. Para mim isto não foi novidade pelo fato de eu já ter morado fora de casa com outras gurias formando uma coletividade de 7 pessoas que tinham bem claro as normas, os valores e os princípios que norteavam a convivência e a permanência na casa. A diferença é que aqui a coletividade era bem maior, 150 pessoas aproximadamente.

O local era estranho, a organicidade era totalmente diferente, as pessoas eu também não conhecia.

Ocorreu o ato de abertura do curso, e eu não conseguia assimilar tudo o que estava acontecendo, aquilo tudo era novo. Fomos inseridos na organicidade do Instituto e passamos a fazer parte da coletividade do IEJC. Na primeira semana foi um pouco difícil me acostumar com os horários e os tempos, mas logo isso já não me incomodava mais, pois eu já havia me adaptado ao novo ambiente. O mais difícil estava por vir.

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Era preciso compreender o que era de fato um Movimento Social, a razão de sua existência, sua importância e organização. Era preciso compreender o que é uma coletividade e o porque viver em coletivo baseado em normas, princípios e valores de uma organização. Era preciso compreender o que de fato nos tornava semelhantes, companheiros e companheiras.

Pode parecer muito tempo, mas eu levei aproximadamente duas etapas para entender tudo o que estava acontecendo e tudo o que eu estava vivenciando. Isto não quer dizer que eu não tenha compreendido os conteúdos que foram trabalhados nos componentes curriculares, pois me refiro mais à questão política em si.

O curso me fez refletir sobre as relações de classe que permeiam nossas relações com a sociedade, me fez compreender que vivo numa sociedade capitalista onde os camponeses são desvalorizados, são explorados em seu trabalho em função do capital e da burguesia. Todos os debates que foram realizados sobre a nossa identidade de povo camponês me fizeram reafirmar a minha identidade de camponesa, reafirmar o gosto de continuar vivendo no campo, cultivando a terra e produzindo para a subsistência juntamente com a minha família.

O curso também me ajudou a compreender que o único modo de mudar as relações de dominação impostas pelo sistema capitalista é a luta e a compreensão de que estamos sendo explorados e que para sair dessa condição e preciso lutar contra o sistema capitalista e se juntar à classe trabalhadora que está organizada em Movimentos e que lutam por um novo projeto de sociedade.

Além de compreender melhor as relações de classe passei a compreender também as relações de gênero, relações estas que estão intimamente ligadas, pois as relações de gênero são criadas e mantidas pela sociedade.

É importante salientar que quando vim para o curso eu não fazia nem idéia do que queria dizer a palavra gênero, sabia que era o eixo das lutas do Movimento de Mulheres, mas não compreendia o porquê lutar por novas relações de gênero. A inserção no Movimento me fez perceber que a luta por novas relações de gênero é uma luta justa e verdadeira, é uma necessidade real pois as relações de gênero perpassam pelas nossas vivências cotidianas, ou seja, permeiam as relações de todo e qualquer sujeito. O que se diferencia é que alguns sabem que estão vivendo rodeados por relações dominantes e buscam compreender e mudar estas relações, mas há outros que convivem com as relações de dominação e não sabem.

Aí está a razão de existir do MMC, a situação concreta, considerando a questão gênero, a submissão da mulher. A partir do momento que comecei a fazer trabalho de base pude perceber como é importante trabalhar com as mulheres trazendo presente a importância da mulher na história da sociedade, pois assim elas podem perceber como foram desvalorizadas até hoje e como foram peças fundamentais na história da sociedade, por exemplo, na descoberta da agricultura e que até então não eram reconhecidas pelas contribuições que trouxeram para a humanidade.

Fazer trabalho de base e ser militante do MMC são duas atividades muito importantes pelas quais eu adquiri o gosto em fazê-las. São coisas que me movem, talvez pelo fato de eu ter feito muitas descobertas, de ter conseguido ampliar a visão de mundo que eu tinha, passando a perceber o que está por trás de tudo o que acontece, os fatos, as ações, as relações, analisando de forma crítica, percebendo que nem tudo que se apresenta está dado e é estático, mas que é mutável e pode ser transformado.

Mencionei anteriormente que o curso possibilitou que eu ampliasse minha visão de mundo, dentro dela está também a mudança na compreensão de que o nosso curso não foi voltado somente para a escola, mas também para a nossa formação como militantes, como educadores e educadoras, do povo. Até então eu tinha uma visão muito reduzida do que seria o curso no geral, achando que teríamos uma formação somente para atuarmos em sala de aula, não percebendo que a educação vai além da sala de aula, e vai além da escola.

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Os estudos e debates que realizamos sobre a educação e sobre a escola, sobre a Pedagogia do Movimento me fizeram compreender que nós educadores e educadoras temos a grande missão de lutar pela garantia do acesso à educação a todos, precisamos lutar por uma educação pública de qualidade que respeite a diversidade do povo, do camponês. Também temos o desafio de continuarmos na luta e cada vez mais envolvidos na militância contribuindo com os conhecimentos que construímos e adquirimos ao longo do curso.

Durante este curso fomos desafiados também a assumir o papel de pesquisadores e construtores de obras, e é claro que isso não foi muito fácil. Pesquisar e elaborar teses em cima do que se pesquisou exige o exercício do estranhamento, da construção de idéias, da busca de teorias para compreender o que se está analisando. O processo de pesquisa e a elaboração da monografia foram muito importantes para o meu crescimento como militante e como pessoa porque me desafiaram a ler, a conhecer uma comunidade que eu achava que conhecia e na realidade não conhecia. E a sistematizar pois sempre tive dificuldade de colocar no papel tudo o que penso e elaboro.

O exercício de pesquisar me fez buscar conhecimentos para compreender as relações de gênero, de classe e de raça, pois, pesquisei mulheres negras. A partir daí comecei a refletir sobre as diferenças que existem entre as próprias mulheres e que se não forem observadas com uma intencionalidade não são percebidas. Comecei a pensar como o MMC poderia avançar ainda mais na ampliação do trabalho de base com as mulheres e como eu poderia estar contribuindo.

A vivência de todos os tempos educativos durante o curso e em especial das aulas e estágios reafirmou meu gosto pelo trabalho com as crianças e desde o Tempo Comunidade passado comecei a dar aula na escola da comunidade onde pesquisei e assim estou conhecendo ainda mais a realidade da comunidade a partir da convivência com as crianças que trazem diariamente as vivências da família e da comunidade. Isto me incentiva a continuar pesquisando a história do povo negro para qualificar o trabalho com as crianças, pois, as crianças da escola são de origem negra e trazem presente a questão do preconceito entre eles mesmos por não se reconhecerem como negros. Para trabalhar com as crianças este tema é preciso ter um certo jeito e muito conhecimento para trazer elementos da história, mas em nível de fácil entendimento para as crianças, para que elas possam compreender que não é feio ser negro, mas que no entanto o povo negro teve sua história marcada pela discriminação, dominação e exclusão. Será um grande desafio trabalhar na perspectiva do resgate da auto-estima e da valorização do negro na sociedade, como seres de direitos.

É importante trazer presente que com a realização dos estágios durante o curso fomos desenvolvendo a capacidade de perceber que nos diferentes locais em que atuamos as realidades sempre serão diferentes e sempre vão exigir de nós a capacidade de trabalharmos de forma diferenciada, utilizando diferentes metodologias, recursos e jeitos. Mas acredito que o que tenha ficado mais forte é a questão da observação da realidade onde os educandos estão inseridos, pois isto fará o diferencial no desenvolvimento das atividades, tornando-as mais coerentes e de interesse para eles.

Não poderia deixar de trazer presente que durante o curso o processo de crítica e autocrítica me fez refletir sobre as minhas qualidades, sobre os meus avanços, sobre os meus limites e também sobre os desafios, por mais que o curso esteja encerrando a nossa formação não encerrou, como dizia Paulo Freire “somos seres inconclusos” que estamos num processo permanente de formação.

Partindo do pressuposto de que somos seres inconclusos trago presente alguns desafios que ficaram para o período após o curso: - dar continuidade ao estudo sobre a história do povo negro; - qualificar a atuação no MMC, no trabalho de base e na coordenação de processos; - avançar na compreensão da Educação do Campo, fomentando o debate no Movimento e na escola onde vou atuar; - cultivar os princípios e valores do povo camponês.

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Memorial de Aprendizados de

Marilene Cupsinski

Foi na busca de mais conhecimentos, para melhor contribuir com a classe trabalhadora e

para minha formação humana, que voltei a estudar. Busquei no memorial de vida, escrito no início do curso em 2002, dizer o que eu esperava do curso de Pedagogia. Neste consta que esperava suprir com as necessidades, para que eu pudesse cada vez mais ser capaz de ajudar na construção de uma sociedade mais igualitária.

No momento em que algo chega ao fim se faz necessário um balanço do que vivenciamos e aprendemos, para que possamos fazer uma leitura do processo.

Recordar a experiência que tivemos, neste período do curso, descrevendo o que aprendemos é uma tarefa um tanto difícil, pois demonstrar isso com palavras é um processo limitado.

Busco no dia-a-dia do passado e do presente, relacionar o que aprendo e o que ensino, na perspectiva da qualificação de minha prática.

Neste sentido, vou desenvolver neste texto alguns pontos que foram essenciais em minha formação enquanto pedagoga militante e como ser humano.

Termos chegado ao final deste curso é termos vencido mais uma etapa de nossas vidas. Não estamos prontos, mas podemos dizer com toda a convicção que estamos melhor preparados para atuar nas diferentes áreas de nossos Movimentos Sociais.

Um dos aspectos fundamentais, que começa abrir horizontes para uma nova formação, foi pra mim o estudo do Papel do Indivíduo na História, realizado no início do curso. Através deste livro começamos a nos dar conta que todos têm um papel fundamental na sociedade em que vivem. Sendo assim, também nos dávamos conta da importância que temos em nossos Movimentos Sociais e na construção de uma sociedade diferente. Falar em mudança de sociedade parece se tratar de algo muito distante. Mas, uma das coisas que aprendi durante o curso, é que é através das pequenas ações, atitudes e mudanças que devemos partir para chegar ao maior.

Uma das atividades que percorreu durante todo o curso, e que foi o que mais me ajudou a entender os sujeitos, foi a pesquisa e produção do trabalho monográfico. Esta nos trouxe muitas angústias e ao mesmo tempo aprendizados que irão percorrer toda minha vida.

Ser desafiada a ler, pesquisar e produzir uma obra propiciou uma busca constante. Para mim, o maior significado da realização do trabalho de pesquisa, foi o de aprender a olhar para o ser humano como o centro de tudo. E, a partir deste olhar aprender a conhecer e entender desde suas raízes culturais até o meio em que vive. Saber porque determinada pessoa atua ou age de tal forma, compreendendo as relações que são estabelecidas no meio em que vive, é extraordinário para a qualificação de pedagogos militantes.

Este desenvolvimento constante permitiu e permite, olharmos para os sujeitos com quem atuamos, como pessoas capazes. Principalmente nos permite refletir antes e depois de cada ação que vou desenvolver. Isso quer dizer que é preciso entender as pessoas para desenvolver uma prática que contribua para o avanço de uma pessoa ou de um grupo. Em outras palavras, é ver as plantas produzirem bons frutos.

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Durante o curso foram realizados vários estágios, em diferentes realidades com diferentes sujeitos envolvidos. Tivemos a oportunidade de realizar práticas pedagógicas em acampamentos, assentamentos, bairros de cidade e em comunidades de pequenos agricultores, com crianças, jovens e adultos. Nesta diversidade de experiências, consegui aprofundar minha prática de docência. Ter experiência nesta área contribuiu para um maior avanço. Mas posso afirmar que as práticas desenvolvidas durante o curso de Pedagogia me deram uma outra visão do trabalho pedagógico, seja com crianças, jovens ou adultos. Permitiram-me refletir sobre minha prática e construir uma nova forma de trabalho, mais coerente com os princípios de educação do MST, ligada a uma dimensão maior que é a Educação do Campo.

Entender o campo como um lugar específico, de direitos a uma educação de qualidade que envolva todos os sujeitos que nele vivem, é compreender o campo como um lugar de desenvolvimento. Para tanto, se faz necessário construir uma educação que valorize a diversidade cultural, trabalhe o campo como um lugar de grandes possibilidades, e se volte para várias dimensões educativas existentes nele.

Outro estudo que permitiu um maior aprofundamento foi em relação às matrizes pedagógicas que formam as pessoas cotidianamente. Entender o próprio Movimento Social implica em passar da luta pelo ter para a luta pelo ser. Entender que as pessoas entram para a luta por uma necessidade de sobrevivência e através dela vão se descobrindo como sujeitos de direitos.

Durante o curso vivemos uma experiência em regime de alternância, com parte do curso feito em Tempo Escola (TE) e parte em Tempo Comunidade (TC). Aparentemente isso poderia não ter muita influência. Porém, os dois espaços de convivência, estudo, reflexão e ação se interligam, com suas especificidades, de forma a proporcionar espaços que permitem um elo de coerência entre ambos.

O TE permitiu um maior aprofundamento de teorias relacionadas com a realidade concreta em que vivemos e atuamos. As educadoras e os educadores que trabalharam conosco trouxeram elementos significativos, possibilitando reflexões sobre as ações desenvolvidas e ações sobre as reflexões estabelecidas. Foi um processo contínuo de formação nos possibilitando muitas análises.

Nesta interlocução entre TE e TC, construí a capacidade de direção, de lidar com o povo. Não como algo acabado, mas como um caminho possível de sempre avançar nos limites e desafios que vão surgindo na caminhada.

O curso foi também e principalmente um espaço de afirmação e fortalecimento de minha identidade de camponesa, de MST, de educadora e de lutadora. O curso mediou a produção e afirmação de valores da classe trabalhadora. Isso foi sendo construído nos conflitos, os quais permitiam uma reflexão sobre a ação, seja na convivência do dia-a-dia na coletividade do IEJC ou do MST onde atuo com mais intensidade. Foi no embate das contradições que aprendi olhar para além de mim. Aprendi a olhar para as pessoas, cada uma com seu jeito de ser respeitando as diferenças.

Acredito que só serei uma boa educadora/militante se for capaz de entender o outro, se aprender a lidar com as diversas situações para assim poder contribuir na formação das pessoas.

Já nos dizia José Martí: “Conhecer é resolver”. E foi adquirindo conhecimentos que fomos ao longo da caminhada nos qualificando para a atuação de pedagogos nas áreas e espaços em que atuamos.

Posso afirmar que saio deste curso preparada para enfrentar vários desafios, tanto para contribuir na direção do MST como na construção de uma educação diferente. Acredito conseguir olhar com mais intencionalidade para as coisas, desenvolvendo ações de forma pedagógica.

Durante todo o curso fomos desafiados a agir e refletir e isso nos qualificou como pedagogos. Fomos desafiados a nos apropriar dos conhecimentos historicamente produzidos e a produzir nossas próprias obras. Se o curso não tivesse proporcionado a dimensão da produção

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individual e coletiva, com certeza, nossa formação teria sido limitada como sujeitos construtores de nossa própria história. Pois, ouvir aulas, por exemplo, é adquirir conhecimentos. Mas, ouvir, analisar e produzir intensifica nossa capacidade de leitura do mundo.

Na conclusão deste curso nos fica o desafio de darmos continuidade à nossa formação, para que possamos, a cada dia, nos qualificar como seres humanos e como educadores. A continuidade dos estudos e a inserção nos Movimentos Sociais são o que continuará nos enraizando, permitindo ação e reflexão permanente do processo.

Somos pedagogas, pedagogos, lutadoras, lutadores privilegiados de uma formação a que poucos têm acesso. Por isso nosso desafio é produzir bons frutos continuadores, hoje e sempre, da luta da classe trabalhadora.

Nossos Movimentos crescem significativamente a cada dia, se ampliam os espaços de luta e resistência. E nós, somos algumas sementes que podem e devem contribuir na qualificação da caminhada. Não como alguém que faz milagres, mas como alguém que está junto com o povo e vai semeando pedagogicamente o germe da mudança.

Concluo, reafirmando que não estou formada e sim melhor preparada para continuar a luta pela igualdade social. Mas, continuar junto com a base, porque sozinha nada mudarei.

Memorial de Aprendizados de Maciel Cover

“Somos aquilo que fazemos. Mas somos principalmente aquilo que fazemos para mudar o que somos”. Eduardo Galeano.

A seguir descreverei a memória dos aprendizados que tive no curso de pedagogia da terra. Farei um resgate desde a primeira etapa até os dias atuais.Tentarei observar desde os aprendizados até os elementos que me ajudaram a construir estes aprendizados.

Vim para o curso de pedagogia, pois queria fazer uma faculdade. Eu tinha militância na PJR e no PT na organização de base. Tinha claro de que a sociedade só mudaria se as pessoas se engajassem em sua transformação. Eu havia me disposto a colaborar com a militância de maneira mais intensiva após concluir o ensino médio. Eu tinha o interesse em estudar, para colaborar com mais qualidade no processo. Então aceitei a proposta de estudar pedagogia pela PJR na UERGS/ITERRA. Não entrei no curso por que eu gostava de crianças, ou por que achava que a pedagogia resolveria os problemas de formação nas organizações de esquerda. Minha estratégia era estudar, e parcialmente era viável estudar pedagogia, pois isso me daria mais tempo, e a possibilidade de estudar algo na linha das ciências humanas quando concluísse a pedagogia.

Como nos aponta Engels, o movimento nunca acontece da maneira como se tinha programado. Ainda bem. Hoje percebo que tive um crescimento considerável comparando com minha entrada no curso.

A conjuntura mudou várias vezes. Fui me inserindo nas demandas da PJR e alargando minha visão de mundo. Na medida em que eu ia me inserindo, aprendia novas lições.Tive vários aprendizados, que transpassam desde a visão de mundo até a operacionalização de uma frigideira. Os aprendizados foram ocorrendo com o passar do tempo. Entendo que aprender seja, saber fazer

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e entender o que se está fazendo. Aprender significa mudança, superação de limites. E só é possível provar isso, fazendo na prática. Classificarei os aprendizados em áreas distintas.

Relação Prática e Teoria

Tive várias mudanças do ponto de vista de entender o mundo e as relações que o constituem. O meio em que fui criado antes de entrar no curso e a educação que eu tive, fortaleceram em mim uma visão idealista do mundo. O curso foi um divisor de águas em minha vida.

Neste sentido, considero como aprendizado a relação com a concepção dialética da história.47 Seja com informações teóricas, seja com vivências práticas. Eu era muito idealista. Eu tinha uma visão muito romântica ou dramática da realidade. Essa visão se sustentava pois eu tinha pouco trabalho de base. Então eu só lia, e no mundo das idéias fica fácil de resolver os problemas, mas quando partimos para o mundo real, fica mais complicado.

No curso tive a oportunidade de entender a origem deste tipo de pensamento, e também ver onde e como isso se reproduz. Coletivamente estou superando este jeito equivocado de compreender o mundo.

Na medida em que eu fui fazendo trabalho de base e aprendendo a ler as relações no curso, fui percebendo que existem interesses em cada pessoa, e que eles podem convergir ou se tornar contraditórios. Nem sempre temos a força necessária para implementar o que pensamos.

No curso tivemos elementos para interpretar as teorias. Aprendemos a desconstruir o pensamento dos autores, o que me possibilitou ver nas teorias o que nos interessa na construção de uma sociedade diferente.

O fato de estar permanentemente relacionando prática com teoria fez eu avançar no jeito de entender as teorias e qualificar minha prática. Foi importante descobrir que por trás das palavras existem concepções, mas mais necessário é descobrir como superar esta concepção divergente que orienta a ação.

Vivência no coletivo do IEJC

A existência no IEJC é educativa, pois fez eu ter que mudar e aprender muitas coisas como: arrumar a cama, limpar o quarto, partilhar materiais de higiene, conviver com pessoas de culturas diferentes, repor tempos aos domingos, ser avaliado pelos companheiros, pelas companheiras.

Todos estes elementos ajudaram a compreender-me melhor. Como humanos podemos fazer sempre melhor. Para isso são fundamentais nosso esforço pessoal e o cuidado coletivo.

Um aprendizado a destacar no IEJC é a disciplina. Antes de vir para o curso eu não tinha essa prática. Os tempos educativos e a exigência de fazer tudo no horário programado me impulsionaram a ter agilidade. No começo eu percebia essa organização do tempo como nociva para mim. Mas na medida em que isso ia me dando agilidade, eu percebia que eu teria muito a explorar de mim, e que chegando ao meu limite eu descobriria coisas novas.

A vivência no coletivo educa as pessoas, pois tem uma força maior do que a força do indivíduo. Por isso ajuda a superar desvios e a solucionar os problemas da coletividade. No meu caso me ajudou a ter o entendimento de que os problemas pessoais podem ser resolvidos de maneira coletiva. O fato do IEJC ter uma gestão coletiva, de ter instâncias para todos colaborarem, de ter responsáveis para as diversas tarefas, me fez forjar uma consciência organizativa.

47 Concepção dialética da história: sinônimo de materialismo histórico e dialético; marxismo; filosofia da práxis.

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Compreender o processo de formação humana

Minha busca na pedagogia era entender como as pessoas passam de um nível de consciência ingênua para um nível de consciência revolucionária. Essa foi a dúvida crucial que tentei descobrir durante o curso inteiro.

Seria inconcebível se um curso de pedagogia não apresentasse elementos para compreender o sujeito humano. E são vários elementos que me ajudaram a entender o ser humano.

A pesquisa que eu fiz era pra descobrir como se dava a formação na PJR foi um deles. Para isso fiz entrevistas que me ajudaram a ir fundo na história de vida das pessoas, entendendo alguns elementos que a olho nu seria difícil perceber.

Aqui no IEJC se tem uma vivência intensa, que faz com que se explicitem várias contradições das pessoas, que desvelam a essência das pessoas, sendo possível assim identificar os limites e coletivamente ir se superando. Este exercício de buscar entender o outro me ajudou a entender melhor a mim mesmo.

As entregas teóricas, os estudos sobre as matrizes de formação e os fundamentos da pedagogia marxiana, foram instrumentos que me ajudaram a entender as ações das pessoas.

O fato de realizar estágios também contribuiu, pois ali se vê onde começa a vivência de valores que balizarão a vida da pessoa por um bom tempo. Saio do curso não sabendo que receita tem que ser utilizada para fazer as pessoas avançarem em seu nível de consciência. Mas aprendi que é necessário organizar a existência, para ser possível avançar na consciência.

Trabalho

Neste sentido o primeiro aprendizado é que o trabalho educa. Nas primeiras etapas eu trabalhava só porque achava bom para a saúde e por que seria um jeito de diminuir os custos aqui no ITERRA. Num segundo momento eu me esforçava o menos possível para ter mais energias para estudar. Depois fui compreendendo que o trabalho é a oportunidade de nos realizarmos enquanto transformadores e aprendizes da realidade. O trabalho nos identifica enquanto classe trabalhadora. Além disso, aprendi a fazer muitos trabalhos que nunca eu tinha feito antes. Tive que limpar as ruas de Veranópolis, pintar calçadas, vender pastel na rua, limpar banheiros, cuidar e educar crianças, trocar fraldas de bebês, fazer pães, biscoitos, rapaduras, pastéis, pudins, cozer arroz, descascar batatas... Esses foram aprendizados valorosos, pois me ajudaram a entender de que tudo que nos cerca é construído pelo trabalho humano. Por mais que eu ache difícil e nojento limpar banheiro, tenho que entender que alguém tem que fazer isso, e que fazer isso não machuca ninguém, pelo contrário, ajuda a construir um mundo melhor. Agora cada vez que preciso ocupar um banheiro eu lembro de que alguém terá que limpá-lo. Compreender que o trabalho é educativo é um dever de todo o militante de esquerda. No IEJC isso não é um tema apenas no debate teórico. É sim, uma prática cotidiana.

Outro elemento a ser destacado é de que no IEJC somos sujeitos na construção do processo do trabalho e das metas de produção. As relações de trabalho educam, incentivam a sermos organizados e ágeis, para dar conta daquilo que nós mesmos nos programamos a fazer.

As práticas docentes

Fazer estágios foi importante para minha formação. Antes de fazer os estágios eu nunca tinha lecionado. Não morro de amores em trabalhar com EJA ou Anos Iniciais, mas tenho que dizer que o curso me capacitou para ser também um educador de sala de aula e de escola. Os

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estágios foram importantes, pois fizeram eu perceber que a escola pode ser um espaço de luta e de construção de conhecimento socialmente útil.

Além de perceber o papel da escola, com os estágios exercitei o ato de lecionar, ou seja, de conduzir uma aula do início até o fim. Ali tive que planejar, replanejar, exercitar o “domínio de classe”, perceber o ritmo dos educandos, entender as relações entre os educandos.

O fato de lecionar me ajudou a qualificar meu trabalho na PJR, pois agora tenho mais facilidade de organizar uma fala, de ser mais sintético, de entender o ritmo dos jovens. De perceber com mais elementos onde os jovens estão do ponto de vista do conhecimento, para melhor intervir na construção do saber.

Compreender os Movimentos Sociais.

Esse foi um elemento que me ajudou no processo de entendimento da luta dos camponeses. O fato de viver numa turma da Via Campesina possibilitou o conhecimento do jeito e da mística de cada organização. Além de que, o seminário na etapa preparatória mostrou-me a dimensão das organizações do campo.

Por mais que façamos atividades em conjunto, é muito importante, para sairmos do corporativismo entender o jeito de agir das outras organizações camponesas. Foi significativo porque criamos relações de confiança, ensaiamos uma consciência política de classe. Pois entender isso de maneira teórica é fácil, mas do ponto de vista da prática é um pouco mais trabalhoso, e isso foi ensaiado neste curso.

Fazer pesquisa

Em fazer a pesquisa aprendi muitas técnicas: como fazer um diário de campo, entrevistar um sujeito, categorizar dados, fazer relação com a teoria, estranhar a realidade, duvidar do óbvio. Porém o mais significativo foi o fato de ir a fundo numa realidade, exercitar uma interpretação para formular métodos de intervenção nessa realidade. Nesse caminho, descobri muitos dados sobre a PJR e sobre a formação humana. Creio que eu poderia ter avançado mais e aprendido mais; me limitei a fazer a monografia e parar por aí. É claro que consegui realizar alguma intervenção prática, que é um elemento central da concepção de pesquisa que adotamos.

Por ter que observar para fazer a pesquisa, criei o hábito de observar a realidade em outros campos. Assim, onde vou, tenho sempre um caderno, onde anoto o que vejo e tento entender o que aparentemente está a alcance dos meus olhos. Isso tem me ajudado a compreender melhor a realidade.

O conflito como educativo e a politização dos conflitos

Este foi um grande aprendizado que desenvolvi aqui no curso. Fui educado, antes de vir para o curso, a não gostar de conflitos. Porém a vivência no IEJC tem me feito entender de que o conflito é positivo. Existem várias contradições na realidade, num grupo social, numa coletividade. E podemos ou ignorá-las ou aproveitá-las no processo de formação. Mas elas existem. E se as ignorarmos estaremos sujeitos a sofrer com elas mais adiante.

Mas o grande aprendizado foi o de tentar politizar/pedagogizar os conflitos. Aprendi isso quando eu estava na coordenação da turma, na etapa 7. Para politizar os conflitos é necessário ter princípios e metas. Os conflitos se superam se conseguirmos relacioná-los com outras relações que permitem o processo andar. Um conflito sempre traz uma oportunidade de crescimento, basta aproveitar.

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Então diante de alguns conflitos que apareceram, soubemos torná-los claros, buscar suas raízes e politizá-los, assim politizando a coletividade e a nós também. Não dá para deixar os conflitos para depois. Os conflitos têm um tempo para amadurar. Faz-se necessário ter a sensibilidade de entender bem os conflitos para politizá-los.

Dessa maneira, em minha vida particular também tenho procurado encarar os conflitos que tenho comigo no meu jeito de pensar e agir. Tento articular meus desejos com os princípios e com as possibilidades da conjuntura.

Vivenciar a mística das pequenas coisas

O normal é nos encantarmos com a mística das grandes revoluções, e esquecemos que é necessário revolucionar todo dia. O fato de ter que ajeitar a cama, caprichar na realização de um trabalho escolar, desenhar, pintar, enfeitar o caderno são pequenas coisas que ajudam a tornar o dia-a-dia mais gostoso. Aqui vale o exemplo de Olga Benário, que mesmo estando nos campos de concentração e tendo a certeza de que iria ser assassinada, ainda limpava o lugar onde estava e ajudava as companheiras a limpar também, porque mesmo prestes a morrerem elas ainda tinham o direito de buscar vida digna.

Durante o curso fui adquirindo esta consciência. Principalmente tendo contato com as pedagogas e com a Irmã Elda, que tem contribuído bastante com a coletividade do IEJC sobre isso.

A tecnologia da vivência coletiva e da educação de esquerda

Hoje no Brasil penso que a experiência mais avançada de educação socialista é o ITERRA. Ter vivido aqui foi muito oportuno, pois agora fica mais fácil de se fazer uma educação diferente. Os aprendizados teóricos e muitos dos aprendizados práticos foram realizados aqui no ITERRA. Esse foi o grande pano de fundo dos aprendizados.

Poder entender de maneira prática a pedagogia de Pistrak atualizada é privilégio para poucos no Brasil e também é um compromisso de todos os que estudaram no ITERRA de que consigam desenvolver esta experiência em outras localidades.

Olhar com mais cuidado para as relações que formam as pessoas

O aparente que eu via era de que as pessoas se formam ao ter informações. Por isso eu me debruçava horas e dias sobre livros e teorias para me educar. Depois eu pensava que era necessário a pessoa analisar sua prática para se formar. Por último, com a vivência prática, descobri que o que constitui a sociedade são as relações. Elas são as maiores educadoras dos seres humanos. Fui entendendo isso graças a vivência no IEJC e as entregas teóricas que o Cerioli trazia. Ouvi muitas vezes este educador dizer isso. Mas só incorporei este aprendizado na etapa 6. E se as relações não forem educadas, não há educação intencionalizada.

Assim acontece aqui no IEJC. O foco central da educação é educar as relações, para que se possa forjar militantes num perfil esperado pelos Movimentos Sociais.

Acompanhamento

Um grande aprendizado foi o de realizar nosso auto-acompanhamento. A relação que eu tive com o acompanhamento no curso foi diversa. Num primeiro momento eu até concordava teoricamente, mas na prática achava estranho ter alguém me “vigiando”. Este sentimento era tão grande na turma que por um tempo eu não concordava nem teoricamente com o acompanhamento. Na etapa 7 tivemos o desafio de nos acompanhar a nós mesmos. Ali compreendi a importância que

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tem o acompanhamento nos processos de formação humana. No Tempo Comunidade da etapa 6 eu tinha chegado à conclusão de que eu precisava aproveitar mais no ITERRA essa questão da formação do caráter, da personalidade, pois eu estava tento atitudes que não me ajudavam. Por mais que eu compreendesse várias coisas do ponto de vista teórico, eu não via avanços na minha prática. Com a experiência de estar na coordenação da turma e fazer essa tarefa do auto-acompanhamento eu avancei no meu jeito de encarar a vida. Sinto um amadurecimento. Encaro as questões com mais seriedade. Esse foi um grande saldo positivo do curso.

O fato de ter que estar mais atento para o processo de formação dos outros me ajudou a olhar com mais carinho e atenção para o meu processo. Assumi alguns limites e tentei, com a ajuda da coletividade, superá-los. Eu já sabia de que as pessoas só mudam se assumirem pra si a mudança, ou seja, ninguém vai aprender por mim, ninguém vai amadurecer por mim. As várias avaliações no curso me ajudaram a ter este salto, que se dependesse só do ativismo da militância, creio que eu não conseguiria mudar.

Também por causa do auto-acompanhamento, e com a leitura do livro “A Arte da Guerra”, aprendi a fazer análises coletivas. Por mais que já tivesse essa informação, de que cada olhar é um ponto de vista, de que nosso olhar é subjetivo e de que para melhor entender a realidade objetiva é necessário ter vários olhares, eu “ocupei” este aprendizado fazendo auto-acompanhamento.

Todos os domingos a coordenação da turma se reunia e coletivamente fazia-se a leitura do processo e se elaborava as estratégias e táticas pedagógicas que se implementariam durante a semana. Ali percebi de que eram aproveitáveis as análises dos companheiros, pois nos ajudavam a ter uma prática com mais qualidade. Estou convencido de que para aprender é preciso assumir os limites, buscar ajuda e exercitar o novo de maneira coletiva. Isso tudo acontece num contexto, que deve ser levado em conta. Outro aprendizado foi o de ter algumas técnicas ou ferramentas para fazer acompanhamento.

Estar planejado, organizado

Creio que este foi um grande aprendizado do curso. Do ponto de vista teórico, afirmo de que só será possível superarmos o capitalismo se tivermos pessoas que tenham capacidade de se planejar, de elaborar estratégias e executar táticas. No curso fui bastante impulsionado para ter a disciplina de planejar. Nas primeiras etapas isso era estranho para mim. Levava a fundo o dito popular preconceituoso de que pra colônia qualquer coisa serve. E isso ia desde organizar o quarto até chegar atrasado na abertura da etapa. A dinâmica do IEJC faz com que se supere este tipo de desvio. Hoje tento ser diferente, por mais que, quando me descuido, percebo que estou desorganizado. Mas é um constante caminhar.

Refletir e registrar

No curso, desde a primeira etapa, fomos orientados a realizar a reflexão escrita. Incorporei essa técnica também durante o Tempo Comunidade. Isso ajuda a organizar meu pensamento, bem como ajuda a aprimorar a escrita. Hoje isso é um hábito. Todos os dias, antes de dormir, eu registro e reflito meu dia, e em seguida eu planejo o dia seguinte. A partir da etapa 6 eu comecei a me colocar metas diárias e semanais, mas realizei este trabalho de metas a partir da etapa 7. Um dia tem 24 horas e são nessas 24 horas é que estaremos realizando atividades para ajudar a transformar a sociedade. Se eu deixar o mundo me organizar, nunca serei sujeito, pois as forças que o mundo tem são maiores que as minhas. Mas se eu me planejar, me organizar, conseguirei incidir com mais qualidade neste mundo. Além do que, em processos educativos, sem organização se torna impossível avançar e fazer os outros avançarem.

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Oficinas

Aqui tive aprendizados diversos que devem ser destacados. As oficinas são locais onde se aprende mais rápido, pois já se sai fazendo. Assim foi nas oficinas de xadrez, violão, ortografia, bordado, falar em público, lembranças pra formatura, informática, digitação...

Parecem coisas simples, mas eu tinha medo de ver um teclado de computador, pois eu não dominava aquele amontoado de teclas. Da mesma maneira quando eu via uma agulha para bordar, que além de a técnica ser exigente, foi necessário desconstruir todo o preconceito machista de que bordar é coisa de mulher.

As oficinas são um exemplo síntese do que é aprender. Se não se exercitar não se aprende. O grande segredo do curso foi este, o de ensinar desde a concepção até a execução prática, pois é esta a instância que muda a realidade.

A importância da educação na luta social

Neste curso aprendi que os processos formais de educação têm muita importância na construção do socialismo. Não é por nada que Cuba faz fortes investimentos em educação. Não é de graça que o MST consegue ter quadros com clareza teórica e política. Assim percebo que forjar quadros com capacidade técnica é fundamental para conseguir fazer a revolução. Pois para mudar a estrutura da sociedade não basta apenas belos discursadores. São necessários bons operários, pedagogos, técnicos, engenheiros, economistas, administradores... E não serão as universidades capitalistas que formarão estes profissionais que necessitamos. Estamos num momento de refluxo das massas e temos que acumular forças. E para isso formar bons quadros é fundamental. Pois no momento de levante das massas, não sei se teremos tempo para isso.

Nisso se faz necessário pleitearmos por educação em todos os níveis. Pois é um direito perigoso que a população de maneira geral não tem acesso e existe uma vontade popular de estudar.

Hoje me vejo diferente de quando entrei no curso. Aprendi muitas coisas e pelo menos imagino que sei porque aprendi. O curso me ajudou a amadurecer enquanto pessoa, e possibilitou que eu produzisse aprendizados que me ajudam em minha prática militante. Fico grato às organizações da Via Campesina, à PJR, por terem me proporcionado esta oportunidade de me tornar mais humano. E, é com minha prática que tentarei agradecer e fazer valer a Pedagogia da Terra.

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Parte 4

Leitura da Turma José Martí sobre seu processo formativo

“O verdadeiro movimento nunca aparece como o concebiam aqueles que o prepararam”.

Friedrich Engels, 1857.

Sobre o Projeto Político-Pedagógico do Curso

Em suas últimas etapas de curso, a Turma José Martí realizou um conjunto de atividades visando reconstituir o projeto político-pedagógico que ajudou a construir com suas práticas e reflexões sobre o processo formativo.

As discussões principais foram sobre o perfil do Pedagogo da Terra da Via Campesina e as estratégias de formação desenvolvidas pelo curso. As questões que orientaram a reflexão da turma foram as seguintes:

Que perfil de educador/de pedagogo estamos construindo nesta experiência formativa, através de nossas vivências e a partir da necessidade das nossas organizações? Para o que estamos sendo formados? Para atuar em que tipo de atividades? Em que espaços? Fazendo especialmente o quê? Que saberes principais ou que tipos de saberes estamos construindo através da vivência neste curso? O que sabemos fazer melhor agora do que antes? Quais as dimensões principais da nossa formação aqui? Que elementos deste perfil consideramos básicos na formação de um Pedagogo da Terra (vinculado a Movimentos Sociais e para atuação na perspectiva da Educação do Campo)?

Que estratégias ou que intencionalidades pedagógicas foram as que mais ajudaram em nossa formação ou na construção deste perfil de Pedagogo da Terra da Via Campesina? Que situações vivenciadas ao longo do período do curso foram as mais significativas em nossa formação? Em cada uma das estratégias conseguimos identificar qual mesmo a intencionalidade formadora, que aprendizados provoca e que traços do perfil reforça? Do que não deveríamos abrir mão pensando nas próximas turmas ou em novas experiências de cursos deste tipo?

Sobre as estratégias pedagógicas a Turma José Martí elaborou um texto que integrou a produção final de sua Memória e que apresentamos na seqüência. Sobre o perfil não foi elaborado um texto específico, mas foi feita uma síntese das discussões que permitiu a retomada da reflexão entre uma etapa e outra, e orientou nossos esforços posteriores de sistematização. Por isso consideramos importante também trazê-la aqui, nos termos em que foi formulada naquele momento (março de 2005).

Perfil de formação

Síntese da discussão feita pela Turma José Martí durante a Etapa 7

O perfil foi discutido em torno de três dimensões que foram consideradas básicas: formação profissional (o ser pedagogo propriamente dito), formação ou qualificação da militância

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política, e formação do caráter, no sentido de postura, valores e convicções ou visão de mundo construída.

Os traços que mais tiveram destaque nas discussões foram aqueles que envolvem aprendizados combinados para atuação política e pedagógica: - capacidade de articular, de desencadear e de coordenar processos; capacidade de intervir em processos que já estejam em andamento; - capacidade de leitura/análise da realidade; - capacidade de conduzir e de acompanhar processos pedagógicos, incluindo os que podem acontecer na escola (e não apenas na sala de aula); - capacidade de apropriação de teorias que permitem qualificar práticas (compreensão e vivência da perspectiva da práxis) ou simplesmente capacidade de juntar teoria e prática; - capacidade de compreender a perspectiva de totalidade, o que são contradições e como se trabalha política e pedagogicamente com elas; - capacidade de refletir sobre o que se faz; - capacidade de focalizar e de atuar no “miúdo”, sem perder a noção de totalidade; capacidade de transformar concepções de educação em didáticas; - capacidade de diálogo; - habilidades específicas de trabalho de base; - capacidade de interpretar textos; capacidade de produzir textos; - capacidade de elaborar sínteses; - capacidade de pensar e de implementar estratégias e táticas (jogar xadrez); - capacidade de auto-organização; de coordenar e de ser coordenado; de vivenciar a organicidade de um coletivo; de combinar críticas com proposições; - capacidade de compreender relações sociais: como acontecem, como formam os sujeitos, como as pessoas lidam com as contradições;...

Foram destacados também traços relacionados à construção de convicções (visão de mundo) e a posturas: - abertura para o crescimento (autotransformação); - superar resistências em relação a ser acompanhado, a ser avaliado; para aprender a acompanhar, a avaliar; - capacidade de fazer crítica e autocrítica: rigorosa, verdadeira, fraterna; - pertença a uma organização coletiva; - respeito aos Movimentos Sociais; fidelidade a projetos coletivos; valorização do coletivo, aprendendo a lidar com a tensão entre interesses pessoais e interesses coletivos, sem deixar que isso se torne uma contradição antagônica; - opção de classe; - coerência entre princípios/valores defendidos e atuação concreta; - gosto pelo estudo; - construir/consolidar uma concepção de educação alargada e que se relaciona a uma visão de mundo, de sociedade; - perceber/preocupar-se com as pessoas (e suas particularidades) nos processos; - disposição para a reflexão; superação do ativismo pela ação pensada e não apenas pelo discurso;...

O debate construiu uma espécie de balanço deste perfil: estamos capacitados para tudo isso, mas não estamos prontos em nada disso. Nenhum curso capacita completamente para alguma coisa; seu papel é mostrar as possibilidades para que cada pessoa, no nosso caso em conjunto com a organização, possa fazer as escolhas de atuação: em que espaços prioritários, em que tipo de atividades, e então continuar o processo de formação na ação. A questão-chave é clarear uma concepção de educação e a própria abrangência da tarefa de ser educador, ser pedagogo da terra. Isto permite a escolha, por exemplo, entre atuar na escola ou em outros processos pedagógicos. Este curso fez isso. Estamos preparados para estar em diferentes tipos de processos e continuar nossa formação. Já conseguimos compreender a educação como um processo de formação humana, de humanização e isto é fundamental para atuar em todos os tipos de atividades.

Mas a Turma reconheceu que tem ainda muitos limites no que parece ser um traço fundamental para atuação do pedagogo num movimento social: ser capaz de iniciar processos, o que implica em ter iniciativa, “enfiar a cara”, conquistar espaço, construir as condições objetivas para a própria atuação e saber fazer uma leitura adequada da realidade, até para se dar conta onde é necessário e possível desencadear processos. E a percepção construída na discussão é de que a Turma não aproveitou suficientemente a própria experiência proporcionada pelo curso para este exercício: esquivou-se de ser sujeito, de assumir o comando do seu processo de formação, de superar os obstáculos que foram aparecendo; mais esperou do que propôs; mais buscou “rotas de fuga” do que “rotas de enfrentamento” das situações que poderiam ser mais radicalmente

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formadoras nesta direção como, por exemplo, a de participar da condução do processo pedagógico do IEJC.

Junto com este limite anterior também a percepção de uma certa fragilidade no debate político: aprender a disputar idéias em uma discussão coletiva aberta, com argumentação inteligente e rapidez de raciocínio. Isto não ficou como marca da turma; ficou mais a marca de uma postura reflexiva diante das situações, ainda que isso, em si virtuoso, às vezes dê uma impressão de imobilismo, o que desgosta a maioria.

Um debate que ficou inconcluso: o curso preparou ou não para atuação na escola? Diferentemente, talvez, de estudantes de outros cursos de Pedagogia, que necessariamente vinculam pedagogia com escola e docência, a Turma José Martí demorou (enquanto Turma) para prestar atenção maior à pedagogia escolar e sempre resistiu à idéia de que estava sendo preparada também para a docência em escolas, seja de crianças, seja de jovens e adultos. Os estágios trouxeram a consciência da necessidade de certos conhecimentos e certas habilidades didáticas específicas para esta atuação; para muitas pessoas ficou a sensação de que não aprenderam o necessário e de que não estão saindo preparadas para esta tarefa, que contraditoriamente tem aparecido como uma alternativa de atuação depois de concluído o curso.

Mas na discussão apareceu o contraponto, ligado à própria perspectiva indicada nas reflexões anteriores: o que é mesmo estar preparado para atuar na escola? existe um processo pedagógico específico que acontece na sala de aula, e que tem a ver com didáticas, com ensino, com determinadas aprendizagens; mas o processo pedagógico escolar é muito maior do que a sala de aula e talvez foi para este mais amplo que o curso tenha preparado com mais ênfase; aliás, este pensar que escola pode ser mais do que escola e que faz parte de processos formadores bem mais amplos é muito rico para a formação de um pedagogo e fundamental para um pedagogo de movimentos sociais. Por outro lado, para as pessoas da Turma José Martí que já foram ou são professores, a sensação foi de avanço e de mais segurança na própria atuação docente... Afinal, ficou claro que a turma defende a ênfase na formação do pedagogo coordenador de processos pedagógicos, mesmo na escola, e não apenas como docente; mas não ficou claro qual o equilíbrio proposto entre a capacitação própria para uma atuação e outra.

Estratégias pedagógicas principais do curso

Turma José Martí em setembro de 2005

Organizar e preparar espaços, ou momentos de formação passa necessariamente, pela elaboração de estratégias, em torno e através das quais deverá se articular o processo. No caso do curso de Pedagogia da Terra estas intencionalidades estavam colocadas no Projeto do Curso, na base curricular e no Projeto Metodológico – PROMET, de cada etapa, e no ambiente organizado e proporcionado pelo Instituto de Educação Josué de Castro.

Algumas das estratégias já estavam previstas desde o início do curso, outras foram sendo percebidas e/ou redimensionadas no processo, como foi o caso da memória da turma, que foi ganhando dimensões cada vez mais complexas e envolvendo, cada vez mais a turma no seu conjunto.

A coordenação do curso e o Coletivo de Acompanhamento Político Pedagógico, CAPP sempre tiveram um papel importante no apontar destas estratégias, mas aos poucos a turma foi sendo desafiada a contribuir na construção de sua intencionalidade a cada etapa. Na penúltima etapa (sétima), dentro do processo de estudo sobre construção de projetos pedagógicos, a turma foi desafiada a pensar sobre que questões fizeram diferença na sua formação como turma/curso.

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Foi na última etapa, que a turma foi provocada pela coordenação do curso e assumiu o desafio de elaborar uma avaliação sobre cada uma das estratégias levantadas. Este texto é uma tentativa de elaboração sobre como cada uma destas estratégias foram percebidas e vivenciadas e, em que medida contribuíram para com a formação da Turma José Martí. O método de elaboração deste texto foi coletivo, com a constituição de grupos de quatro educandos e educandas que buscaram escrever o ponto de vista expressado pela turma nos debates da etapa anterior, complementando-o com percepções posteriores. O texto foi apreciado pelo conjunto da turma e depois reescrito incorporando as revisões indicadas. Passamos a descrever como se desenvolveram e, em que medida foram formativas as onze estratégias pedagógicas que, na avaliação da turma, foram as que mais contribuíram para nossa formação.

Vivência e Inserção no IEJC

Durante o curso a turma esteve inserida na organicidade do IEJC. Para muitos de nós, mesmo que a escola estivesse organizada de forma parecida com as nossas organizações, o primeiro impacto foi de estranhamento. A vivência no IEJC representou uma grande mudança de rotina, para todos nós. A grande maioria passou do convívio de um ambiente familiar, para uma coletividade formada por múltiplos indivíduos. A individualidade, de cada um estava agora sujeita a decisões, organizações e a um convívio coletivo. Este fato provocou nas pessoas e na turma, muitos conflitos e tensões, que a partir de seus debates e reflexões, contribuíram muito na nossa construção. O processo exigiu que tivéssemos uma vivência coletiva, fazendo aflorar alguns desvios como o individualismo e a não aceitação da organicidade, que nos impunha maior esforço físico e mental. No decorrer do período fomos entrando no ritmo dos tempos educativos e entendendo, e em alguns casos, até nos acostumando com o processo estabelecido. Isso nos levou a compreender e, aos poucos, fomos nos sentindo mais sujeitos desse processo formativo.

Uma das estratégias, na vivência no IEJC, são os tempos educativos, os quais têm uma intencionalidade política e pedagógica, que foi proporcionando a superação dos nossos limites. A dinâmica dos tempos nos colocou em movimento, vivenciando tensões, fazendo aflorar contradições na vivência coletiva. Essas tensões nos levaram a questionar alguns elementos do método pedagógico do Instituto que resultaram em mudanças. Essa vivência nos propiciou a reflexão e a mudança de postura.

Outro elemento a ser destacado é a direção coletiva do processo, enquanto divisão de responsabilidades e compromisso ao coordenar e ser coordenado. Pudemos exercitar a nossa capacidade de coordenar processos educativos, desde vários espaços de dentro do IEJC: estudo, trabalho, discussão política. Por muitas vezes, houve rejeição de nossa parte em aceitar esse método de direção, porém, tivemos significativos avanços, na medida em que fomos vivenciando-o na prática e compreendendo a sua importância na organização coletiva.

A disciplina individual e coletiva também fez parte do processo de vivência e formação no Instituto, através do cumprimento das decisões coletivas e dos próprios horários estabelecidos. O método de verificação da freqüência se dava através dos Núcleos de Base e possibilitava o controle da participação nas atividades. Esse processo para nós foi importante e avançamos; porém, ficou ainda o desafio de nos qualificarmos mais nos espaços onde atuaremos.

Outro elemento importante na organicidade do IEJC, que se mostrou forte na nossa construção foi o trabalho. É nítido o avanço que a turma teve em relação ao trabalho desenvolvido no Instituto. Quando afirmamos o avanço da turma, afirmamos também que o trabalho assumiu um papel de sobrevivência para a turma. Deixamos de ver o trabalho como um “fardo”, uma tarefa a ser cumprida, e passamos a entendê-lo como algo essencial para a nossa formação enquanto seres humanos. Houve um avanço significativo no que diz respeito à divisão do trabalho. Esta discussão permeou todo o curso e provocou diferentes debates e reflexões. No início, o significado do

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trabalho era algo confuso para nós e, principalmente, a divisão entre trabalho manual e intelectual, a importância de cada tipo de trabalho e os motivos que levavam as pessoas da turma a assumirem sempre, as mesmas tarefas enquanto trabalho manual ou intelectual.

Na apropriação da visão do trabalho como matriz formadora um dos debates era se todo o trabalho é formador. As dúvidas eram fortes, diante de alguns trabalhos realizados enquanto prestação de serviço que se davam dentro de relações de exploração e destruição do meio ambiente. Havia também o forte cansaço ao final da jornada, que nos levava a questionar se estava sendo educativo aquele processo. Ao final concluímos que se tratavam de duas questões: todo trabalho, enquanto tal, é formativo, porém, as relações de trabalho podem humanizar ou desumanizar as pessoas envolvidas.

Importante na nossa inserção, e que representou momentos de alegria e diversão para a turma, foram as vivências culturais que assumiram um cunho educativo. Esses momentos foram vivenciados no tempo cultura do Instituto, no qual são feitas jornadas socialistas, filmes e noites culturais, que fizeram com que fôssemos, além da própria turma, nos construindo enquanto coletivo do Instituto. Um limite, que a turma apresentou, foi que demoramos para entender o papel educativo das noites culturais e deixamos de participar em muitas delas. Outro limite foi a integração com as outras turmas, que não acontecia conforme a intencionalidade, com a nossa turma ficando sempre muito fechada em si mesmo.

A vivência perpassou também, pela relação que estabelecemos com outras turmas que estudavam no Instituto no mesmo período. Foram momentos importantes de troca de experiências, de locais e culturas diferentes. Entretanto, um limite que se apresentava era o de construirmos um processo de formação mais coletivo enquanto Escola/IEJC, pois, muitas vezes, restringíamo-nos às relações dentro da própria turma.

O método fez com que vivêssemos várias contradições e tensões, que foi preciso serem mediadas por seminários de entregas teóricas.

O Projeto Metodológico – PROMET

O curso teve um Projeto Político-Pedagógico (PROPED), que se desdobrava no Projeto Metodológico (PROMET) de cada etapa.

O PROMET era constituído de várias partes. Na primeira parte constava o resumo do Método Pedagógico do IEJC. A seguir, a concepção do Curso de Pedagogia com os objetivos do Curso e da Turma. A terceira parte trazia o planejamento da etapa, as intencionalidades (focos), atividades, componentes curriculares com conteúdos, método e avaliação. Constavam ainda as oficinas, os seminários e as leituras a serem feitas durante o Tempo Escola. Por fim, uma pequena projeção do Tempo Comunidade e previsão do método do acompanhamento.

A construção do Projeto Metodológico era feita, nas primeiras etapas, pela coordenação do Curso e pelo acompanhamento da turma, a partir das leituras do processo da mesma e também, pelas necessidades da turma apontadas ao final de cada etapa, durante o seminário de avaliação do Tempo Escola. No início de cada nova Etapa o PROMET era estudado pela turma, que contribuía colocando metas e atividades a serem realizadas: oficinas, seminários, leituras.

O estudo do PROMET no início de cada etapa, tinha o objetivo de trazer uma visão geral sobre a etapa, a intencionalidade, os focos pedagógicos e as metas. Assim, era possível detalhar melhor o planejamento da etapa. Além disso, era importante para a auto-organização individual e coletiva da turma.

Esse processo foi formativo à medida que, olhávamos a etapa como uma parte no conjunto do curso, sendo possível visualizar o processo pedagógico e projetar os vários espaços de formação. Avançamos de leitores do PROMET para debatedores e entendedores do mesmo até

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chegarmos a contribuir na sua construção. Avaliamos que o mesmo apontava o caminho a ser percorrido e era preciso nos desafiar a construir os passos, organizando os desafios dentro de cada etapa. O PROMET permitia à turma conduzir sua caminhada e ter presente o conjunto da mesma, projetando os desafios que tínhamos pela frente. A experiência que vivemos nos ajudou a entender a necessidade de pensar a intencionalidade de cada momento e espaço de formação. È um aprendizado que levamos do curso e que nos faz sentir a necessidade de ter o “PROMET” em outros processos de formação que somos desafiados a conduzir e também nos espaços de atuação dentro das organizações.

O Sistema de Alternância

A alternância implicava na divisão da etapa em um Tempo Escola (TE), mais curto, em torno de 60 dias, e um Tempo Comunidade (TC) de 90 a 120 dias.

O Tempo Escola era o período de estudo dos componentes curriculares e a vivência da Escola. Era o espaço de nos apropriamos das teorias acumuladas historicamente e de construirmos nossas concepções. Além do estudo, uma das intencionalidades era nos fazer refletir sobre as nossas vivências nos Movimentos Sociais/Pastoral e no próprio Instituto, percebendo as estratégias que nos fazem avançar e dando-nos conta dos limites. Eram os momentos em que mais se dava a compreensão e análise sobre a base social dos Movimentos e sobre nós, enquanto educadores e educadoras do povo.

O Tempo Comunidade era o período em que acontecia a atuação concreta na organização, além das atividades de complementação de estudos. Nos TC’s fomos forjando nossa prática e buscando encontrar espaços de atuação ligados às ações práticas, vivenciadas cotidianamente nos Movimentos e Pastoral. Era neste período, que se dava a concretização de muitos aprendizados do que estudávamos e, ao mesmo tempo, o espaço onde ocorria a prática, que nos possibilitava ter a realidade social como objeto da reflexão.

Situações marcantes para a turma, dentro desta estratégia pedagógica, foram os momentos de avaliação dos TE’s e TC’s. Nas avaliações nos dávamos conta da nossa formação e afloravam as contradições que propiciavam uma leitura dos processos e vivências nos Movimentos/Pastoral, da nossa inserção nos mesmos, das tarefas delegadas pela organização e da nossa construção individual e coletiva.

O sistema de alternância nos possibilitou o aprendizado desde realidades, vivências e coletividades diferentes, propiciando a participação no processo pedagógico dentro da Escola e na condução de processos políticos dentro das organizações a que pertencemos.

Acompanhamento

O acompanhamento tem a função de orientar e fazer junto com os educandos/as o seu processo de formação. Por isso, é preciso ter pessoas (educadores), com a tarefa específica de fazer a leitura permanente do processo educativo. É o que costumamos chamar de “movimento do Movimento”. Sem Acompanhamento não há, de fato, processo pedagógico intencionalizado. É preciso acompanhar o processo de cada educando, cada educanda, a realização das atividades, o fluir de cada tempo educativo, para que se possa potencializar a dimensão educativa. Acompanhar é mais que conviver com os educandos; é mais que saber onde eles estão e o que estão fazendo, é mais que conhecer as qualidades e os limites de cada um, mais que saber seus gostos e sonhos.

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“Acompanhar consiste fundamentalmente em saber compreender os educandos, as educandas”. É

importante cuidar para que o Acompanhamento não vire um “consultório sentimental.” 48

A turma teve Acompanhamentos diversos e em diferentes dimensões, das quais destacamos algumas:

Colegiado externo: tinha por função garantir a inserção dos seus educandos nos respectivos Movimentos e Pastoral, garantindo estratégias de formação objetivadas pela Via Campesina. Era quem mantinha o contato político com a UERGS, fazendo um acompanhamento mais político do que propriamente pedagógico à turma.

O colegiado interno: sua função era acompanhar os educandos, as educandas, de cada Organização internamente na Escola e garantir a interlocução com os Movimentos/Pastoral via colegiado externo. Visava garantir os objetivos gerais da Via Campesina e do MTD na formação dos pedagogos da terra.

Coordenação do curso: teve a função de garantir a estratégia de formação do curso, discutida na Via Campesina, implementando a ligação entre a UERGS, a Via Campesina e o ITERRA, garantindo a originalidade na proposta de educação dos Movimentos/Pastoral, em vista da construção de educadores/as do campo, numa dimensão mais ampla que a própria discussão da escola, para conduzir processos de formação.

Coletivo de Acompanhamento Político Pedagógico – CAPP: assegurava o acompanhamento do cotidiano interno, a fim de garantir o estabelecido no PROMET, as metas e o acompanhamento mais pedagógico. De início, e por um longo período, houve resistência da turma ao acompanhamento do CAPP e a deixar-se acompanhar. Muitas críticas eram feitas e, principalmente, pelo fato do acompanhamento ser feito por educandos e educandas da própria turma. Transparecia uma relação de “poder” que não era bem aceita.

Auto-Acompanhamento: este desafio apareceu mais ao final do curso, a partir da etapa 7, e levando em conta a caminhada da turma. A proposta foi colocada no PROMET e a turma aceitou o desafio, dando-se conta de que precisava avançar na relação com este tema, pois começava a vivenciar situações em que, não somente devia sentir-se acompanhada, mas em que pudesse também acompanhar.

Núcleo de Base: este era o nosso acompanhamento mais pessoal e próximo e acontecia desde a etapa preparatória. Pensamos ser este o acompanhamento mais profundo, que ocorre dentro da organicidade do IEJC, pois está ligado às relações sociais internas à turma.

Nas Unidades de Trabalho: era outra forma de acompanhamento, feito pela coordenação do setor e membros da unidade e tinha a intenção de fortalecer o compromisso com as tarefas do coletivo. Zelava pelo sentido do trabalho na nossa formação, entendido como uma matriz formadora.

Essas dimensões do acompanhamento proporcionaram aprendizados ao nos “desvelar”, deixar que caíssem as nossas máscaras. Como turma tivemos dificuldade de vivenciar essa estratégia pedagógica. Saber da existência do acompanhamento nos fazia sentir medo, pensávamos que seria algo difícil. O tempo, o estudo e a vivência fizeram com que percebêssemos seu verdadeiro sentido, fazendo com que nos sentíssemos parte do mesmo, no final do curso, embora ainda tenhamos muitos desafios neste aspecto. Acompanhar outros cursos e processos de outras turmas ajudou a qualificar nosso próprio auto-acompanhamento.

48 Extraído do texto “Acompanhamento”. Cadernos do ITERRA n. 09 – Método Pedagógico, 2004, pág. 104 e 107.

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Gestão

Olhando para a nossa trajetória, uma das coisas que aparecia, era nosso limite em assumir o processo de gestão, que no Instituto assume a forma de democracia ascendente-descendente. Três posturas demonstravam nossas limitações: - se esquivar de coordenar, não assumindo a gestão e demonstrando uma visão limitada; - tínhamos uma visão separada entre o processo de gestão e educação/formação, revelando que em nossa concepção de educação não tinha ainda incorporada essa dimensão e a importância do aprender fazendo; - os que assumiam o processo de coordenação demonstravam traços de uma postura bastante autoritária, gerando fortes conflitos.

Ao vivenciarmos as situações da gestão, tínhamos várias reações frente a essa estratégia pedagógica, com recusa às posturas autoritárias que expunham as contradições existentes acerca da concepção do que é coordenar e ser coordenado. Muitas vezes também relutávamos a nos deixar coordenar. Estabelecíamos cobranças e reflexões entre nós, ainda que superficiais, sobre a postura de não querer assumir a gestão. Com o tempo, conseguimos fazer um debate mais aprofundado sobre a necessidade de assumirmos a gestão com mais responsabilidade.

Entendemos que o limite expresso na recusa de assumir a responsabilidade de coordenar e vivenciar a gestão, que quer dizer: “assumir o comando” se dava pela nossa falta de experiência, influenciada pela cultura de dominação do povo brasileiro. Refletia, também, algumas experiências vividas dentro dos Movimentos Sociais, em que, muitas vezes, essa tarefa não é partilhada de forma a envolver a todos. Por outro lado, tínhamos medo de deixar transparecer o que éramos, nos expondo diante do coletivo. Por fim, assumir tarefas significava ter que dedicar tempo e abrir mão de cuidar de questões individuais.

O principal nesta questão está em como concebíamos as relações de poder na escola e dentro da turma. Era um ponto de tensões e conflitos, que se revelavam maiores em relação à gestão e ao acompanhamento. A vivência destes conflitos e tensões proporcionou o amadurecimento do entendimento quanto à gestão. Isso se refletiu em algo positivo para a inserção nos Movimentos Sociais e Pastoral, ajudando a acelerá-la, ao mesmo tempo em que, qualificou nossa atuação e nos possibilitou fazer o contraponto entre as experiências vivenciadas no IEJC e nos Movimentos.

No exercício de construção do perfil de pedagogo/educador influenciamos o processo de gestão do IEJC, trazendo para o debate características das ações pedagógicas, nos preocupando com as questões da educação e da formação humana. Destacamos elementos percebidos dessa influência dentro da coletividade:

* A mudança do método de condução dos Encontros Gerais mensais da coletividade, quando da Reprodução da Gestão. Os questionamentos feitos pela turma sobre como estávamos participando, em que medida estávamos sendo sujeitos daqueles processos, se pouco entendíamos sobre as questões que teríamos que decidir, como, por exemplo, a prestação de contas e os orçamentos do mês seguinte, contribuíram para deflagrar a busca de uma metodologia que facilitasse a compreensão e, por conseguinte, a participação da coletividade nos debates.

* Outro fato marcante na turma foi a discussão de gênero, com relação à escolha da coordenação de cada Núcleo de Base. Quando chegamos na escola era, necessariamente, uma mulher e um homem. Essa discussão aflorou na turma porque éramos mais mulheres do que homens e, ao reconhecermos que a tarefa de coordenar é formativa, avaliamos que o critério distorcia a intencionalidade, pois, os companheiros se repetiam na coordenação a cada etapa, o que os levaria a uma formação mais aprofundada em relação às companheiras, que assumiam menos vezes essa tarefa. Discutiu-se a importância da participação das mulheres na condução do processo e, por várias etapas, a coordenação foi composta por mais mulheres do que homens.

* Consideramos importante, também, para a formação da turma, em relação à Gestão, o amadurecimento da compreensão do Regimento Interno do IEJC. No início das etapas, pelo fato

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de não termos participado da construção do regimento, pois o mesmo já existia, vivemos tensões por entendê-lo como “imposição”, e por não reconhecermos sua historicidade. Os questionamentos nos provocaram a buscar entender sua historicidade e a partir de então passamos a influenciar propondo mudanças.

* A gestão dos postos de trabalho foi também bastante formativa, principalmente, quando éramos desafiados a assumir a coordenação das unidades, pela rotatividade das turmas.

* A própria estratégia de sermos desafiados a agarrar o processo de gestão, tendo que assumir mesmo sem ter experiência, e não entendendo o seu sentido, nos provocou para a reflexão e nos fez avançar nessa compreensão.

Estágios

Durante o curso realizamos cinco estágios. Destes, dois foram com Educação de Jovens e Adultos, EJA, sendo que o primeiro foi realizado num acampamento do MST, no Paraná, com a

metodologia de Oficina de Capacitação Pedagógica, OCAP49, e o segundo foi no Tempo Comunidade, onde cada um se auto-organizou, em combinação com seu Movimento/Pastoral.

Em Anos Iniciais do Ensino Fundamental, com crianças, tivemos três estágios: o primeiro foi nas escolas do município de Pontão, RS; o segundo foi nas escolas de Veranópolis, RS e o terceiro foi durante o Tempo Comunidade e, novamente, nos auto-organizamos, em conjunto com o Movimento/Pastoral, priorizando as escolas do campo.

Nossos desafios foram muitos, incluindo a construção de uma concepção do que era estágio e nossa aproximação a uma sala de aula, experiência totalmente nova para muitos da turma. Consideramos que uma das questões, que foi fundamental para alcançarmos os objetivos, foi o espaço onde aconteceram as práticas pedagógicas, pois proporcionaram o conhecimento das diferentes realidades onde acontece a educação, desde as crianças, os jovens e os adultos. Contribuíram, também, a possibilidade de convivermos diretamente com as famílias e as comunidades onde realizávamos nossas práticas pedagógicas.

Os estágios foram organizados de forma que conseguimos exercitar o planejamento individual e coletivo, bem como, a prática em sala de aula. O fato de ser ora individual, ora coletivo proporcionou o novo, a reflexão, o exercício de planejar em dupla, de refletir em grupo e individualmente. Já as avaliações foram feitas, na maioria das vezes, de forma coletiva, o que possibilitou que nós educandos/as contribuíssemos com a nossa prática e com a prática dos colegas e recebêssemos a avaliação e contribuição de educadores e educadoras responsáveis pelo acompanhamento.

O acompanhamento foi organizado com pessoas que tinham a capacidade de nos auxiliar no planejamento e na avaliação das ações concretas na sala de aula, além de nos ajudarem em questões mais profundas, para além do debate de conteúdos. Exemplo disso foram as orientações diante de situações de educandos e educandas com necessidades especiais e outras questões referentes à vida destes sujeitos com quem trabalhamos. A forma como foram organizados os estágios nos ajudou a refletir sobre as diferentes maneiras e possibilidades de acompanhar um processo de formação/educação. Isso porque os métodos e metodologias de acompanhamento foram mudando conforme a necessidade/clareza de que era necessário mudar. Ainda, nos ajudou a perceber, que o acompanhamento em equipe é importante, tanto em função das várias cabeças

49 Segundo texto de Roseli S. Caldart, na Revista de Educação n° 02, da FUNDEP, 1995: “Uma OCAP caracteriza-se por uma metodologia centrada na relação prática-teoria-prática e na lógica da capacitação. (...)No âmbito da pedagogia, a oficina indica um tipo de curso ou de momento educativo formalizado que se centra na atividade prática dos participantes. Pode até haver espaços para estudos teóricos, mas estes acontecem para instrumentalizar a prática pretendida.”

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pensarem estratégias e leituras do processo, como pela necessidade de dialogar sobre o processo pedagógico, podendo construí-lo. Assim, nos desafia, pois são várias idéias que acabam sendo canalizadas para um determinado método de trabalho que vamos aos poucos compreendendo.

A preparação que antecedia o estágio foi sempre um momento importante na solidificação desta estratégia. Eram organizadas oficinas em preparação a essa prática, recebíamos informações sobre os educandos/turma que iríamos atuar, sobre a escola e sobre o local.

Outro fator que consideramos importante a ser destacado é que esses estágios foram organizados intercaladamente entre práticas em EJA e práticas em Anos Iniciais com crianças, o que proporcionou que cada um de nós se identificasse com as fases que tem maior afinidade para o trabalho em sala de aula.

Analisando os estágios vemos que colocaram para a turma a necessidade de compreender a escola como um espaço político em disputa. A organização dos estágios proporcionou que compreendêssemos que estávamos realizando um curso de Pedagogia e que deveríamos saber que ser pedagogo vai além da sala de aula. Mas que para compreender o papel da educação temos de compreender também a sala de aula.

Conseguimos enquanto educadores e educadoras entender um pouco mais sobre o papel da educação/escola, à medida que fomos colocados diante da realidade concreta, para desenvolver atividades concretas. Os vários espaços (comunidades, acampamentos, bairros), auxiliaram na compreensão de que a formação dos sujeitos acontece nos diferentes espaços e o desafio é, sabendo diferenciar os espaços educativos, olhando para as diferentes maneiras de formação dos sujeitos, ter intencionalidade pedagógica a ponto de desconstruir as velhas práticas e, com os educandos e educandas construir as novas.

Os momentos de prática educativa nos proporcionaram uma desconstrução, como indivíduos educandos e também como educadores. Mas ao mesmo tempo em que éramos desconstruídos, nos construíamos com uma nova prática, com um novo olhar para a educação e para a nossa formação. Percebemos que essas práticas nos ajudaram a construir nossas concepções de educação, quando conseguimos fazer a articulação com as demais dimensões trabalhadas durante o curso (Ex. a Pesquisa sobre os sujeitos do campo, a compreensão de conceitos da educação).

A possibilidade de planejar, replanejar e avaliar, dentro de realidade que não conhecíamos cumpriu papel essencial. Em alguns momentos, nos trouxe insegurança por não conhecermos os sujeitos nem a realidade e, também, por estarmos fazendo uma atividade nova. A insegurança trazida por esse “novo” dava-se por nos reconhecermos limitados e tínhamos receio de partilhar o planejamento com o acompanhamento. Esse foi um dos fatores que ocasionou distanciamento entre os coletivos de educadores e educandos.

Sabemos que avançamos, enquanto educadores, no momento em que nos deixamos acompanhar e fomos quebrando as barreiras, superando limites pessoais e descobrindo que a ruptura entre o velho e o novo dói, e só acontece quando nos abrimos a ele. Na atividade de educador é preciso se desconstruir e se reconstruir permanentemente.

Estudo

Num primeiro momento, vamos trazer a conceituação de estudo, para posteriormente contextualizar os espaços e tempos de estudo que a turma vivenciou, a reflexão sobre esse processo de construção/formação, e os desafios que ainda temos.

Se buscarmos no dicionário ou em alguma enciclopédia veremos que o estudo é entendido como “aplicação intelectual” que implica em aprender, entender, empreender, examinar, analisar e observar”.

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Para os Movimentos Sociais e Pastoral, além disso, o estudo é um processo de reflexão da prática. (...) “o conhecimento da teoria não é suficiente para que possamos decifrar a realidade que se apresenta diante de nós. Para isso é preciso juntar o conhecimento teórico com o conhecimento prático, ou seja, o conhecimento que adquirimos através da ação” (Cartilha da Consulta Popular, nº 04, p. 08).

Foi da necessidade de nos apropriarmos das teorias e refletirmos a nossa prática, que nos inserimos num espaço que potencializava o estudo em diferentes tempos.

Os espaços e tempos no IEJC, que nos proporcionaram estudo, são os tempos Aula/Estudo/Leitura, que eram espaços onde tínhamos o enfoque na construção do conhecimento teórico mais relacionado aos componentes curriculares. O tempo Núcleo de Base nos propiciava estudos políticos de vários temas relacionado à conjuntura interna e externa, e às nossas organizações de origem, além de leituras do processo vivido na escola. As produções textuais, tanto individuais como coletivas, também foram estratégias que nos ajudaram a identificar o sentido do estudo; os seminários e as chamadas “entregas teóricas” se constituíram em momentos de grandes aprendizados.

No início a turma tinha uma certa resistência ao estudo nos tempos educativos, que julgava serem muitos e tiravam o tempo livre. A justificativa se dava pela questão cultural dos camponeses, que organizam o tempo de outra forma, não sendo a mesma que o Instituto. O outro elemento estava ligado à compreensão do que se estudava. Por isso, uma das superações foi a desconstrução de preconceitos com relação ao estudo, compreendendo a importância crucial que o mesmo tem para a construção do conhecimento, numa perspectiva social. Durante todo o curso vivemos o conflito e fomos desafiados a romper barreiras impostas pela nossa cultura de não ter o hábito de estudo, e a nova necessidade colocada pelo curso e pelos próprios Movimentos Sociais e Pastoral.

Foi nessa compreensão da importância do estudo que entendemos que o mesmo vai além da sala de aula, que é essencial para a reflexão da nossa própria prática. O curso nos provocava para o estudo através de mecanismos, como os diversos textos a serem estudados nas etapas, como, por exemplo, aqueles necessários à pesquisa. A elaboração dos planos de leitura, as leituras dirigidas, a verificação de leitura, também nos despertaram para a importância da leitura, levando-nos a nos interessar pelos livros que circulam e buscar outros. As provocações feitas através dos focos e metas de cada etapa, como ser autodidata, ser pedagogo, desenvolver um método de estudo nos Grupos de Estudo, além dos componentes curriculares, foram situações que nos conduziram a sermos mais disciplinados com nossa busca do saber.

Uma das provocações que foi marcante para a turma, foi o método de “desconstrução do texto”, com o qual aprendemos a entender uma obra escrita. O salto foi nos sentirmos mais preparados para relacionarmos as teorias estudadas com a prática. Ao chegarmos na oitava etapa, percebemos avanços consideráveis, como a compreensão do que foi estudado, da relação teoria e prática, na análise e no próprio gosto e compromisso com o estudo através da prática que vivenciamos.

Persistiu durante todo o curso o debate e a reflexão sobre a questão do estudo na turma. Porém não conseguimos avançar na sistematização de um método mais coletivo, cabendo a cada um a superação dos seus limites. Por isso, ainda percebemos alguns desafios na leitura, que não conseguimos praticá-la como algo fundamental para a militância e para a vida. Prova disso é que os depoimentos em relação ao estudo no Tempo Comunidade revelaram que grande parte da turma só lia o que era obrigatório para o curso e o que era necessidade imediata.

“...quanto mais você lê, mais aprende a ler. O importante é não ter medo do livro. Nem querer guardar cada frase que leu na cabeça” (Frei Beto).

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Pesquisa

Enquanto trabalhadoras e trabalhadores vinculados aos Movimentos Sociais, somos continuamente desafiados a intervir na realidade. Nossa ação se qualifica na medida que sabemos interpretar a realidade para transformá-la.

Precisamos, enquanto Organizações que integram a Via Campesina, desenvolver a nossa reflexão sobre a realidade pesquisada, a partir de categorias, em vista da superação e qualificação do próprio método utilizado. Nesta perspectiva, a pesquisa é uma estratégia pedagógica da Via Campesina e do próprio curso de Pedagogia da Terra e, no nosso caso, em duas dimensões complementares. A primeira visava nos ajudar, enquanto organizações do campo, a conhecer melhor os sujeitos do campo e a realidade na qual nos propomos a trabalhar. A segunda dimensão, que foi a linha de pesquisa do curso, foi termos elementos para entender como se formam estes sujeitos.

A pesquisa como intencionalidade pedagógica de formar educadores-pesquisadores durante o processo do curso, teve como método o estudo da concepção de pesquisa e pesquisador dos Movimentos Sociais, pois era necessário que num primeiro momento, entendêssemos a importância da pesquisa para as nossas organizações, bem como para o perfil de pedagogo que propunha o curso. A construção da proposta de pesquisa, a definição do foco e do objeto de pesquisa de cada membro da turma se deu numa elaboração em conjunto com sua Organização de origem, levando em conta as necessidades específicas das Organizações e as contribuições que esse trabalho poderia dar para cada um dos Movimentos e Pastoral.

Para que pudéssemos qualificar a reflexão sobre os elementos que o processo de pesquisa ia nos apresentando, destacamos a importância dos grupos de pesquisa, como um espaço de socialização de diferentes realidades pesquisadas, troca de idéias, conclusões, dúvidas que iam surgindo no decorrer da pesquisa.

O primeiro passo foi um momento de estudo e reflexão do colegiado dos Movimentos/Pastoral, a partir de uma minuta elaborada pela coordenação do curso. Este estudo teve o papel de pensar qual era o foco e que recortes seriam importantes no âmbito dos Movimentos Sociais e Pastoral, a partir dos sujeitos do campo. Nesse sentido, foram definidos os seguintes recortes: crianças, jovens, adultos, idosos e educadores.

No intuito de iniciar o processo de pesquisa, a primeira tarefa da turma foi começar as observações dos sujeitos, ainda sem direcionamento para uma pesquisa específica. O desafio foi olhar para a realidade buscando ao mesmo tempo o estranhamento da mesma, para o olhar de pesquisadores preocupados em conhecer melhor estes sujeitos. Fomos instigados a descrever em diário de campo o que conseguíamos perceber.

Após o exercício de observar os sujeitos, se deu o momento de definições dos recortes e dos temas a serem pesquisados. Foi um processo de escolha, baseado nas necessidades dos Movimentos/Pastoral. Com isso, as definições aconteceram de forma conjunta, em uma relação de diálogo entre educandos e organizações. Já com uma maior visão do que cada pessoa iria pesquisar, mesmo alguns estando indecisos, realizamos a elaboração do projeto de pesquisa. Voltamos a campo com um olhar mais direcionado para os sujeitos com os quais desenvolveríamos este trabalho. Nesta ida a campo, olhamos para a realidade, fazendo observações, coleta de dados e realizamos várias leituras sobre o tema de cada projeto.

Na continuidade e aprofundamento da pesquisa, realizamos uma análise dos dados coletados e mergulhamos em leituras, buscando um maior aprofundamento teórico.

Tivemos nossos orientadores por grupos de pesquisa, que nos acompanharam e orientaram durante todo o processo de pesquisa, contribuindo nas análises e reflexões a partir da pesquisa de campo e bibliográfica e também na construção da monografia.

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Após a construção e apresentação das monografias “individuais” cada Grupo de Pesquisa elaborou, junto com seus orientadores e orientadoras, um texto-síntese falando como se formam os sujeitos do campo que o grupo pesquisou.

À medida que o curso foi se desenvolvendo e as estratégias de aprendizagem sendo aplicadas, tivemos momentos coletivos e individuais para construção de nosso processo de aprendizagem. Destacamos alguns aprendizados:

* O ato de pesquisar, observar e analisar os dados coletados, buscando comparar e dialogar a partir de elementos teóricos historicamente sistematizados, nos remeteu a conhecer e desenvolver uma metodologia própria de construção da pesquisa. Percebemos que somos capazes de produzir conhecimentos sistematizados e quão necessária é a pesquisa, pois se constitui numa ferramenta para a classe trabalhadora.

* O estranhamento da realidade, a busca de desnaturalizar nosso olhar, perceber as relações e as contradições nos tornou mais atentos e nos fez compreender, na prática, que nada se dá ao acaso, e a importância da correta leitura da realidade.

* A socialização em coletivo, dos jeitos de cada um, contribuiu para reavaliarmos nosso próprio método, percebendo a necessidade de conhecer e qualificar nosso método de pesquisa.

* O ato de compartilhar o desenvolvimento da elaboração escrita junto aos orientadores, na interlocução da troca de saberes, descrevendo os sujeitos da pesquisa, facilitou o desenvolvimento da escrita e a interpretação das bibliografias consultadas no processo.

* A apresentação junto à banca de defesa recolocou a análise sobre a nossa própria apresentação escrita e oral, tornando possível uma elaboração dos grupos, descrevendo e chegando a um perfil de quem são os sujeitos pesquisados junto às nossas organizações.

* A pesquisa foi para nós um momento de exercício de olhar para a realidade, através de um processo sistemático e contínuo que aconteceu antes, durante e após a produção do trabalho monográfico.

Construção da coletividade da Turma

A turma teve seu princípio quando nos Movimentos Sociais e Pastoral fomos indicados para fazer o Curso de Pedagogia da Terra. Cada Organização teve alguns critérios para escolher as pessoas, geralmente levando em conta a inserção nas tarefas e/ou ter alguma relação com a organização e com a educação, tendo assim a perspectiva de nos qualificar para uma atuação já iniciada ou prevista.

Na constituição da turma havia perfis diferentes. Alguns com um bom entendimento da luta, e outros para quem tudo era muito novo. Além disso, éramos de vários Movimentos com inserção diferenciada.

Nossa identidade se consolida na diversidade dos Movimentos Sociais e Pastoral, que compuseram a turma. No início, parecia ter um distanciamento, ocasionando até disputas. No decorrer do processo isso foi se transformando em aproximação e aprendizado, nos demos conta que lutamos e buscamos o mesmo projeto de sociedade.

No entanto, toda nossa construção foi gestada no conflito, articulado tanto ao conhecer-se, quanto na abertura de conhecer o outro. Assim, construindo-se conjuntamente, como sujeitos coletivos dessa história.

À medida que foi se aprofundando o debate sobre a educação no interior de nossas organizações e aumentando nossa inserção, foi se assinalando com mais nitidez nossa identidade coletiva, uma vez que, conseguíamos refletir mais sobre nossa prática, articulada com a teoria.

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Ressalta-se que essa construção se deu pelos indivíduos que ao mesmo tempo, que tiveram que abrir mão de algumas vontades individuais, para ter condições de construir um coletivo maior, também se construíram como individualidade. Nisso, percebe-se que ocorreu sempre uma tensão em relação ao considerar o que era individual e o que era coletivo, ou o que era mais importante tendo em vista o momento em que vivíamos.

Essa construção foi fundamentada em três pilares que se entrelaçavam: - o conhecimento de nossas organizações, entendendo o seu processo organizativo, refletindo, e dessa forma, auxiliando na construção, como alguém que é parte. Destaca-se também que o processo de inserção se deu por dois momentos que se articularam: um deles foi opção pessoal, ou seja, opção de vida; o outro se deu pela abertura da própria organização para essa inserção; - a intencionalidade pedagógica do curso e do IEJC; - o método de funcionamento/organicidade do IEJC (autogestão, vivência coletiva, alternância...), fazendo com que no decorrer do curso, passássemos a nos sentir parte do processo e fazendo a ligação entre a teoria estudada e a prática.

Na coletividade da turma outro processo vivenciado foi a construção de obras coletivas, fazendo com que cada vez mais nos enxergássemos como coletivo, como Turma José Martí, percebendo, também nossos limites. Essas obras fizeram com que nos reconhecêssemos nelas e nos inseríssemos no processo de construção da coletividade.

Tivemos como experiência fazer a mística do II Encontro Estadual da Educação do Campo, no Rio Grande do Sul, a partir de uma proposta elaborada anteriormente por outro grupo. Posteriormente, fizemos a mística de abertura da II CNEC. Esta construímos desde as idéias, os passos e nos envolvemos em toda a elaboração, o que fez com que nos víssemos na obra.

No entanto nem todas as obras foram uma construção sem conflitos. Exemplo disso foi a construção dos nossos símbolos: nome da turma, desenho da turma, música e roupa da formatura.. A música, principalmente, nos incomodava o ritmo, o que deixava um certo descontentamento em relação à nossa obra. Porém, isso foi superado principalmente, na sétima etapa, quando num seminário sobre musicalidade fizemos o esforço de entendê-la melhor.

Tivemos momentos de reflexão sobre a construção da coletividade e da nossa identidade enquanto turma. Fomos levados a nos questionar se realmente era necessário termos uma identidade de turma.50 Chegamos à compreensão de que, enquanto seres humanos, nos agrupamos a partir dos objetivos que temos em comum e que não há uma única identidade. O que existe são identidades e que uma prevalece sobre as demais.

Fomos construindo a turma e o curso com muitas tensões, muitos debates contraditórios. A valorização do indivíduo, acima do coletivo, fez com que em certos momentos, não nos submetêssemos às discussões coletivas de condução do processo do Instituto, e então questionávamos o método. Claro, que nesse processo, há contribuições também, talvez no âmbito de estrutura de tempos, horários, acompanhamento e algumas definições, que foram sendo amadurecidas e rediscutidas no decorrer de nossa caminhada. Permanece como desafio, sermos autocríticos e, ao mesmo tempo, críticos, no sentido de olhar mais para nossos desvios como o individualismo, o personalismo e acomodação, que fizeram com que encobríssemos certos comportamentos, não os trazendo à tona, porque mexeria com todos, caindo máscaras, desnudando-nos. Fazer vir à tona contribuiria para que tivéssemos uma formação mais coerente com nossos objetivos e princípios. Isso se presenciava na discussão nos NB’s, nos estágios, na vivência dos tempos educativos do IEJC, no auto-acompanhamento. Reconhecer limites remete a esforço tanto de tempo como de repensar a própria prática.

50 Este debate foi feito num seminário, no início da quarta etapa, a propósito da análise da terceira etapa, com a presença do educador Paulo Cerioli, que contribuiu fazendo-nos perceber a fase de construção em que nos encontrávamos.

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Construímos bastante, nos orgulhamos desta construção, mas poderíamos ter tido maior empenho e, hoje, sermos ainda mais capacitados.

Inserção nos Movimentos Sociais e Pastoral

Entendemos por inserção a iniciativa, a participação ativa, o pensar, elaborar e fazer as atividades dentro de uma organização social: ser parte, sentir-se dentro do Movimento ajudando a pensar o processo de organização, tomando posição e propondo. Inserção tem a ver com decisão pessoal, acreditar: acredito nisso, por isso vou ajudar, tomo a decisão de ajudar, aceito fazer parte, participo. Inserção está ligada à concepção de mundo, ao que pensamos, acreditamos. Está ligada a interesses pessoais e coletivos, que são articulados, mediados.

A estratégia de formação foi sendo implantada, a partir das necessidades e das demandas de atividades a serem desenvolvidas em cada Movimento/Pastoral. Além dos espaços específicos de cada organização, também foi acontecendo o processo de inserção quando compreendemos a articulação política dos Movimentos Sociais e Pastoral, enquanto Via Campesina.

Ao nos inserirmos fomos também contribuindo nas reflexões e análises dos processos de formação dos Movimentos Sociais e não só assumindo a prática, sem debate e reflexão. Inserimo-nos mais à medida que houve delegação de tarefas e funções dentro de cada organização. A socialização de experiências e práticas vivenciadas nos Movimentos Sociais e Pastoral possibilitou a ampliação das visões sobre as funções nos e dos Movimentos e Pastoral, o que veio qualificar a nossa inserção.

Nesse sentido o curso nos desafiou a fazer relações entre a teoria e a prática, em diferentes espaços e momentos, levando-nos a refletir sobre o significado da inserção.

Os momentos que mais contribuíram conosco foram os espaços de luta51, onde compreendemos melhor as organizações, seus papéis na sociedade, bem como, o nosso papel na luta e na organização. Fomos criando um olhar crítico perante a realidade, tendo a possibilidade de olhar além do senso comum.

Percebemos também limites nesse processo, que valem ser destacados: houve momentos em que tivemos pouca iniciativa pessoal para buscarmos a inserção, e por outro lado, as organizações deixaram de nos ajudar, pela necessidade ou organicidade do Movimento, que não conseguiu incorporar a nossa inserção. Apesar dos limites, percebemos que a inserção nas Organizações foi o diferencial, o elemento fundamental para o nosso crescimento no próprio curso, pois nos fez compreender a dimensão da luta e da organização, vinculada a um projeto maior.

Memória

O desenvolvimento dessa estratégia iniciou a partir da constituição do Colegiado dos Movimentos Sociais e Pastoral, interno da turma, no início da etapa 1. Foi apresentada a proposta de construirmos a memória da turma a cada etapa, ficando o colegiado responsável. Foram então apontados um educando e uma educanda para resgatar os fatos e escrever o texto da etapa preparatória, já encerrada, e outro educando e educanda para fazer a memória da etapa 1.

Com isso, passamos a ter esta tarefa em todas as etapas: ao final era feito o estudo do texto produzido naquela etapa, com sugestões de acréscimos e precisões dos fatos registrados pelos responsáveis. Ao início da etapa seguinte, retomávamos o texto da etapa passada, já acrescido das

51 Entendemos como luta todas as atividades que visam acumular forças para o embate de classes, e neste caso, acumular forças em favor da classe trabalhadora, incluídas aquelas necessárias para dar sustentação e alargar a abrangência das ações, como, por exemplo, as coordenações, as atividades de formação/educação, o acompanhamento.

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alterações, num seminário que tinha como objetivos principais rememorar o processo vivido e fazer o engate para a continuidade.

Começando este processo, ao final da etapa 1, o texto da preparatória foi apreciado. De início a turma não compreendia o sentido da tarefa, mas um debate ajudou a envolver as pessoas: que fatos devemos registrar? Todos, inclusive os dos bastidores? Só os ocorridos dentro do IEJC ou fora da escola também? Apesar desses questionamentos ainda não tínhamos despertado para perceber o processo pedagógico como objeto da memória.

Os limites do momento inicial foram o pouco envolvimento da turma como um todo e a fragmentação dos fatos. A percepção baseava-se no cronograma das atividades.

Nas etapas seguintes a turma foi se apropriando do significado de construir a memória, que até então, resumia-se num texto. Contribuíram para a turma avançar na compreensão da memória, as perguntas e focos que direcionavam o debate nos seminários de início de cada etapa, a propósito do texto da anterior.

Nas discussões surgiu a idéia de registrar/arquivar outros tipos de registros, como fotos e outros documentos. Não repetir o que já constava em outros documentos. Priorizar fatos e acontecimentos do cotidiano. A partir da etapa 2 também passamos a fazer a síntese individual de aprendizados de cada etapa.

A partir da etapa 4 foi criado um posto de trabalho na unidade sistematização do IEJC, que passou a ter a tarefa de garantir o registro e elaboração do texto de memória da turma. Para isso, deveria contar com o apoio de uma equipe, a de secretários e secretárias dos NB’s ou outras pessoas indicadas. Resultou na qualificação de registros e elaboração do texto, a partir das sugestões e críticas do conjunto da turma, porém, nem sempre, a equipe designada conseguiu contribuir.

Com a regularidade do posto de trabalho, tornou-se uma tarefa sistemática, que passou a produzir texto semanal, para registro e apreciação da coordenação da turma, com a intencionalidade de que contribuísse para a melhor condução do processo. A partir da etapa 6 começamos a matutar a idéia de fazer uma sistematização final da Memória/História da turma. No início da etapa 7 decidimos assumir o desafio, clareamos os objetivos e designamos responsáveis, sendo uma equipe de apoio e um novo posto de trabalho específico. Após muita elaboração, leitura e análise tivemos, finalmente, a conclusão da nossa memória.

Avaliamos que a estratégia de construir a memória da turma contribuiu na nossa formação em diversos aspectos. Passou de uma atividade que, de início, tinha sentido mais de rememorar os fatos, sem reflexão, onde ríamos de nós mesmos e registrávamos qualquer fato, tendo um formato cronológico, para um processo que colocou em movimento nossas habilidades e reflexões sobre o processo vivido. Contribuiu na nossa capacitação na escrita, na compreensão do que é sistematizar um processo, que envolve registro, análise, interpretação.

Propiciou a compreensão de que a memória contribui para a inserção no processo. Vivemos a experiência de que, antes do estudo da memória, ao início de cada etapa nos sentíamos como se ainda estivéssemos fora da escola, lá na comunidade, e ao estudar a memória anterior era como se mergulhássemos no interior da turma, da própria escola, naquilo que estava proposto para a etapa.

Através do estudo da memória conseguíamos perceber os fatos, avaliar seus significados e discuti-los, tirando lições. Constatávamos que, na hora que os fatos aconteciam, não conseguíamos avaliá-los, porque “doía”, fugíamos do debate. Ao retomar a memória os fatos voltavam e aí, pelo distanciamento de uma etapa para a outra, conseguíamos analisar o porquê, as repercussões e os desafios que apontavam para avançarmos na nossa formação.

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A memória nos despertou para a importância de considerar os fatos recentes (da semana), na projeção da semana seguinte, dentro do processo da turma contribuindo para com o acompanhamento e auto-acompanhamento.

Ao nos darmos conta de todo o nosso processo de formação, nos capacitamos a estruturar/montar outros projetos de formação, à medida que conseguimos ter uma leitura da complexidade de aspectos que o processo envolve, provocados, tanto pelas estratégias pedagógicas e suas repercussões, na formação dos sujeitos, quanto destes para com o processo.

Nos damos conta que a memória ajuda a identificar os fatos e acontecimentos ligados ao processo pedagógico, com reflexos na nossa prática como educadores. Materializamos estes aprendizados ao fazer a memória das aulas, nas nossas práticas pedagógicas durante os estágios.

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Sobre a construção da coletividade

Turma José Martí em setembro de 2005

No esforço de sistematizar e compreender nosso processo de formação realizamos na etapa 8 um seminário de análise do processo vivenciado durante o curso, tentando ver quais foram as grandes fases ou períodos que tivemos, dentro da nossa formação como turma. O desafio era perceber se, de fato, houve fases, quantas e quais foram, e se conseguíamos nominá-las. Num segundo momento, o esforço seria descrever o que caracterizou cada uma delas, bem como, tentar identificar que fatores provocaram a passagem de uma fase para a outra.

Este texto procura relatar as discussões feitas e as conclusões a que a turma chegou, considerando que foi uma primeira tentativa de análise do conjunto de um processo que foi longo e complexo. O material de apoio que tivemos para a reflexão foi o registro cronológico e o estudo das estratégias pedagógicas que nos formaram, somados à memória de cada um/a. A análise teve início nos Núcleos de Base da turma e posteriormente foi socializada e discutida em plenária.

Estamos cientes de que a análise feita não está esgotada. Ela significa uma abertura de caminho para continuarmos refletindo e, a partir de novas experiências, podermos compreender mais profundamente como se deu a nossa formação.

Identificação das Fases

De modo geral foram detectadas quatro diferentes fases, mais ou menos identificadas com as etapas do curso. Ficou entendido que não se trata de um processo linear, ou seja, as fases não começaram nem terminaram junto com as etapas, porém, era no decorrer de cada etapa que as manifestações de cada fase apareciam com força. Por implicarem diversos aspectos que não avançavam e nem eram superados todos ao mesmo tempo, muitas questões permaneciam, ainda que o conjunto da turma já se encontrasse envolta em novos desafios e vivências, que caracterizavam um salto de qualidade no processo vivido. Quando buscamos descrever cada fase, alguns elementos se destacaram:

Primeira Fase – Estranhamento ou “Choque”

Foi o período compreendido entre as etapas 1 e 2, com alguns elementos que se estenderam até a etapa 3. Caracteriza-se como a fase do choque inicial, do susto, do estranhamento, da surpresa. O que mais nos marcou neste período foi a vivência no IEJC. O desafio era nos conhecer, nos encontrar e entender minimamente o que acontecia. Fase de experimentar a vivência no coletivo, os tempos educativos, o trabalho, as normas e regras da Escola. Nossa linguagem era a dos “chavões”. A repercussão de alguns choques vividos nesta fase vai até o final do curso, pois algumas coisas nos provocaram, mexendo forte conosco, como, por exemplo, repor nos domingos o tempo perdido ou desperdiçado durante a semana, ao nos atrasarmos no início dos tempos educativos. Mesmo com metodologias diferentes, esta situação foi uma constante. Quando estudamos o papel dos Núcleos de Base passamos à discussão de acompanhar mais as pessoas do NB, inclusive em relação à reposição dos tempos.

Para alguns, era o sair de casa pela primeira vez, o ficar longe da família, o que levou a muitos conflitos pessoais. Vivíamos centrados no “eu”. Não compreendíamos o curso, nos perguntávamos o que era aquilo tudo? Onde estávamos? Em meio a outros que tinham outras experiências.

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Naquele período achávamos tudo bonito nos Movimentos Sociais, idealizávamos. Era um primeiro momento de inserção. Estávamos nos conhecendo e rompendo o cordão umbilical. Era também o primeiro contato com o curso e com os demais Movimentos Sociais e Pastoral.

Na seqüência da caminhada deu-se o início do debate da nossa identidade. Através dos estudos que íamos realizando e da vivência, passamos a compreender alguns elementos e, ao mesmo tempo, começamos a fazer críticas e a visualizar outras possibilidades. Começamos ter contato com as diferentes teorias e com as matrizes formadoras do ser humano. Podemos citar, como exemplo, o quanto foi forte o estudo da obra de Plekanov, “O Papel do Indivíduo na História”, fazendo-nos perceber que somos seres condicionados, mas as condições são social e historicamente construídas, e, portanto, podemos ajudar a criá-las.

Segunda Fase – Criticar Tudo

A compreensão foi de que esta fase deu-se nas etapas 3 e 4, englobando elementos da etapa 5 com algumas questões perpassando até a etapa 6. Fase das críticas, do questionar tudo, de achar que tudo estava errado, não aceitar. Fase dos maiores conflitos, das tensões e da rebeldia. Demonstrávamos resistência aos horários da escola, dizíamos que não se pareciam com os vivenciados nos Movimentos, na vida dos camponeses.

E tínhamos resistência ao trabalho, principalmente aquele da “prestação de serviço”, onde eram contratados alguns trabalhos com fortes relações de exploração, e que entendíamos que nos desumanizava. Eram trabalhos pesados, ficávamos muito cansados e não conseguíamos produzir mais nada, não aproveitávamos o tempo leitura. Questionávamos se o trabalho desta forma era educativo? Quem fazia o trabalho interno não tinha tanto esta situação, o fazia bem feito e tinha o respaldo dos coordenadores de setores.

Uma característica desta fase era um perceber o limite do outro. Achar que o outro era o culpado das coisas erradas. Passamos a nos compreender sujeitos e queríamos exercer este papel, porém, não nos sentíamos parte do processo, da escola, da coletividade. Fazíamos toda a critica ao método. Passamos a vivenciar um embate entre o que aprendíamos na escola e o que era feito nos Movimentos. Este foi um período de muitas tensões.

Depois passamos da resistência à busca de compreender e a nos desafiar. Procurávamos compreender as concepções, abrirmo-nos para o conhecimento. A pesquisa nos levava a observar, a alargar nosso olhar. Foi o tempo em que começamos a compreender mais a fundo nossas Organizações e perceber os limites que se tinha, coletivamente.Fatores fortes desta fase foram o desafio de construção individual do projeto de pesquisa que nos fazia ter que assumir, nos posicionar, dizer o que íamos fazer de fato. Os horários estabelecidos no IEJC e a vivência do processo da escola também nos provocaram a tomar posição.

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Contribuíram para fazermos a passagem desta para outra fase: o aprofundamento do estudo das matrizes pedagógicas da formação humana e do trabalho como matriz formadora; os seminários com “entrega teórica” sobre o método pedagógico do Instituto que nos ajudavam a ver nossos limites, a tentar fazer análise; e nossa famosa plenária do “desabafo” onde falamos sobre nossos sentimentos.

Os elementos ligados a observar o sujeito/a formação, conhecer o método de trabalho de base, o método pedagógico da escola e das organizações, leitura da realidade, a questão da intencionalidade, o compreender a pessoa humana, a teoria marxista, o trabalho como formativo, foram questões que perpassaram todo o curso, e que nos fizeram ir avançando. Porém, não foi de uma hora para outra, foi um processo.

Terceira Fase – Dar-se Conta

Atribuiu-se esta fase às etapas 5 e 6. Os desafios aumentaram. As tensões vividas nas etapas anteriores pareciam não ter solução e esse sentimento gerou acomodação. Além disso, tínhamos o grande desafio de produzir as monografias e isto fez com que nos fechássemos cada um em sua tarefa. Era um tempo de matutações, de muita leitura e escrita. Por outro lado, tínhamos avançado na compreensão do método da escola passamos a entender mais profundamente a importância do curso. Começou a fase de sentirmos medo: de não conseguirmos dar conta; de assumir as grandes responsabilidades que se colocavam, como os estágios e a monografia. Surgiam pensamentos de desistir do curso e, ao mesmo tempo, sentíamos que era preciso encarar os desafios e assim o fizemos.

Este foi um tempo, também, de “baixar a poeira”, de compreender, desmontar, desconstruir e reconstruir nossas concepções. Na sala de aula estabeleceu-se uma tensão, pois poucos falavam ou intervinham e foi ficando claro que quem não falava também tinha opinião e manifestava-a em outros espaços, que não propiciavam a reflexão coletiva. Além disto, a visão de quem intervinha não contemplava a maioria da turma. Ao nos darmos conta desta situação, começamos a discutir seu significado e ver formas de nos ajudar para que todos expressassem suas opiniões, posições.

Aprofundava-se se dar conta de que temos que ser sujeitos e íamos nos sentindo mais responsáveis. Pelo desafio da monografia, tínhamos que priorizar o estudo, pedir tempo para as Organizações para produzi-la. Sofríamos com nossos limites na escrita.

No Tempo Comunidade foi a fase de aprofundar a inserção nos Movimentos/Pastoral. Nos inserimos mais nos processos de formação e educação, começando a melhorar nossa contribuição dentro dos Movimentos/Pastoral, com aprendizados concretos enquanto pedagogos, pedagogas. Por outro lado, nossas organizações começavam a nos perceber e nos atribuir maiores responsabilidades, mudando nosso papel junto às mesmas.

Nos Tempos Escola estava posto aprofundar o estudo das teorias e concepções e isto exigia maturidade. As aulas de filosofia nos auxiliavam na compreensão e construção de concepções. Os estudos sobre método de trabalho popular foram marcantes e nos faziam amadurecer enquanto turma para o trabalho de base nas nossas Organizações. As pesquisas alargavam nosso olhar e estávamos desafiados a colocar no papel aquilo que já sabíamos.

Começou a fase da produção de obras individuais e coletivas. Os fatores que entendemos demarcadores deste período são o início da realização dos estágios acompanhados e a nossa participação na III Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo, realizada em Luziânia, para a qual fomos os responsáveis por construir e apresentar a mística de Abertura da mesma. Foi o período em que começamos a compreender mais profundamente e nos encantarmos com a Educação do Campo. Começamos a compreender as escolas, pelos estudos feitos e pelos estágios. Eles nos deram um banho de realidade.

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A pesquisa, mesmo sendo um trabalho que cada um tinha que produzir individualmente, nosso esforço era coletivo, nos Grupos de Pesquisa e na turma como um todo. Alguns procuravam se ajudar na produção. O apoio e a torcida do coletivo na hora das defesas nas bancas foram exemplos marcantes.

Quarta Fase – Amadurecimento e Decisão

Correspondeu, de modo geral às etapas 7 e 8. É a fase do amadurecimento, do agarrar o “boi pelo chifre”, com o desafio de ser autodidata. É uma fase de decisão. Ocorre, de certa forma, novo choque que nos faz olhar as dificuldades e pensar como superá-las.

Caracterizou-se por compreendermos as intencionalidades do processo em que estávamos envolvidos, refletir sobre o que é ser pedagogo, assumir com responsabilidade o que nos era proposto e entender a importância de sermos autodidatas; compreender, na prática, a importância do estudo, do planejamento e de estabelecer prioridades na atuação. Fomos sendo desafiados a acompanhar processos nos Movimentos/Pastoral, fossem eles de formação/educação e ou político-organizativos.

Foi um tempo de tensões e reflexões acerca do limite de boa parte da turma de se atrasar para o início das etapas. Os atrasos propiciaram que nos questionássemos sobre o perfil de pedagogos e de militantes que estávamos sendo.

Os debates deste período assumiam uma relação mais concreta com as concepções que havíamos construído ao longo dos estudos. Por exemplo, uma questão que havia sido constante ao longo do curso, e havia provocado, inclusive, alterações no método era a respeito de quem devia coordenar a turma. Tinha-se a idéia de que, sendo uma escola, todos os membros dos NB’s deviam se revezar na coordenação, para que todos se capacitassem nesta tarefa. Isto levou, por exemplo, a termos duas companheiras na coordenação de alguns NB’s, por serem a maioria entre os membros. Nesta quarta fase, final e decisiva para nossa formação, quando a turma foi desafiada a assumir seu auto-acompanhamento e a tarefa de coordenar tornou-se mais exigente, pois todo o processo de formação passava a ser responsabilidade da coordenação, este debate retornou, com o questionamento sobre se era correto manter os rodízios ou se neste momento deveriam assumir aquelas pessoas que já tinham mais experiência. As visões eram divergentes, a conclusão do debate ficou em aberto. Com o tempo, compreendemos tratar-se da concepção de direção que existia na turma, e vimos que não tínhamos uma única visão quanto ao tema, por tratar-se de ser uma escola, e também por não ter tido acúmulo suficiente de experiência prática, que possibilitassem eliminar todas as nossas dúvidas.

Outro debate desta fase, e que marcou forte a turma, foi sobre o “ser pedagogo”: se era mais importante, como militantes, atuarmos nas escolas ou nas direções das organizações? Fomos compreendendo que não se tratava de uma situação ou outra, mas sim de atuar pedagogicamente, garantindo e implementando os aprendizados que tivemos como pedagogos/as, em todos os espaços onde formos encaminhados para contribuir.

Nesta fase sentimos que a pesquisa mexeu forte conosco, o escrever a monografia, lidar com os computadores, colocar no papel nossas idéias. Passamos a prestar mais atenção na realidade.

O desafio do auto-acompanhamento, de darmos o rumo ao nosso processo de formação, nos fez ter mais seriedade e agilidade nos encaminhamentos. Passamos a fazer reflexões mais profundas, com análise da realidade, ao mesmo tempo em que passamos a ter maior inserção nos nossos Movimentos e Pastoral.

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Novamente, fatores como os estágios, o debate do ser pedagogo e do perfil de pedagogo que estávamos construindo, a produção coletiva dos textos dos grupos de pesquisa e a vivência na coletividade aparecem como os guias dos nossos avanços.

A sistematização do nosso processo de formação, analisando as estratégias pedagógicas, fazendo o balanço do curso e a construção final do texto de Memória da Turma, aparece como síntese desta grande caminhada.

Elementos de análise que perpassam as fases

Percebe-se que o processo não acaba porque acaba o curso. Se fôssemos continuar em mais uma etapa 9, novas fases se abririam e questões se colocariam, pois aqui estamos apenas fechando um ciclo que foi programado enquanto tal.

No final do curso, na etapa 8, foi que a turma teve uma passagem importante, que foi ter começado a juntar na ação, a teoria e a prática, de forma coletiva. Parece que tínhamos um bloqueio de produzir rápida e coletivamente e demoramos para dar este salto. Uma novidade da turma, dentro do IEJC, é fazer a reflexão do curso a partir dos desafios individuais, como a pesquisa, por exemplo, e os estágios.

Um elemento que contribuiu para o crescimento da turma foi o dar-se conta que deveríamos contribuir com a direção dos nossos Movimentos e era necessário estar preparado para tal. O Tempo Comunidade e nossa inserção nos Movimentos nos faziam refletir e compreender mais profundamente as questões estudadas no Tempo Escola.

O método coloca-nos no limite de “fazer” ou “fazer”, no sentido de que não sobreviveríamos no curso se não fizéssemos as tarefas. Esta era a relação colocada quanto à pesquisa, os estágios, o abrir-se para a vivência do processo formativo e do IEJC. Esta é a principal estratégia pedagógica que foi colocada em movimento neste processo.

Algumas situações foram de grande impacto no processo, como a escolha do nome da turma que nos colocou em “cheque”, pois nos obrigou a dizer o que queríamos e também forçou a construção de relações, a administrar conflitos, logo ao início do curso. A mesma análise pode ser feita sobre a construção da nossa canção, que foi produzida numa fase ruim da turma, em um período de “desencantamento” de uns com os outros, e por isso não gostamos da obra que produzimos a partir daquele “clima”. Não nos acertávamos com a melodia e o ritmo. Ficamos, assim, com problema com nossa música até quase ao final do curso, quando viemos a descobrir que era uma boa música, e tinha identidade conosco.

Analisando todo o processo, a partir da experiência que vivenciamos, vemos que os elementos a seguir não podem ficar de fora de um processo de formação, em se tratando de garantir a passagem/avanço de uma fase para outra:

- Pesquisa: no sentido de olhar para os sujeitos, as relações, aprender a lidar com as teorias. - Estágio: pelo dar-se conta das escolas, para fazer o debate sobre o ser pedagogo, sobre as

relações pedagógicas. - Inserção nos Movimentos: porque permite um estudo contextualizado, materializado na

realidade, na prática. - Coletividade: pelos aspectos de horários e tempos, a vivência das relações, o acompanhamento. - Aprofundamento teórico: necessário para compreender as concepções e para aprender a fazer

das teorias ferramentas. - Produção de obras: porque são a materialização dos aprendizados. - Memória: porque nos ajuda a olhar para nós mesmos, refletir, dar-se conta do processo que

está sendo vivido.

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Por fim, algumas lições adicionais que apreendemos desta análise:

- Somos movidos pelos desafios. - A produção faz as pessoas avançarem. - As fases não são naturais, nem todas as pessoas percorrem as fases ao mesmo tempo, nem

todas aprendem do mesmo jeito e nas mesmas circunstâncias. - As pessoas às vezes regridem ou estagnam na formação. - Há necessidade de sermos acompanhados e de acompanhar. - Compreendendo a intencionalidade, vemos que nos Movimentos/Pastoral muitas vezes, não

paramos para refletir, retomar a análise, elaborar. - O auto-acompanhamento sendo feito em grupos menores propicia conhecermos melhor os

sujeitos e perceber suas relações, o que num grande grupo nem sempre é possível.

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Anexos

I – Lista de Formandos e Formandas da Turma José Martí

1 Adaiane Soares da Silva

2 Alexandra Borba da Silva

3 Carla Martins Henrique de Lima

4 Cilone Zang

5 Claudia Isabel Stehr

6 Cleide de Fátima L. de Almeida

7 Denise Queiroz

8 Eber Cristian Dartora

9 Edson Risso

10 Elisiane de Fátima Jahn

11 Fabiane Purper

12 Gibrail Cordeiro

13 Inajara Bogo

14 Joceli Jaison José Andrioli

15 Joice Aparecida Lopes

16 Katiane Machado da Silva

17 Liciane Andrioli

18 Maciel Cover

19 Mari Luci Pegoraro

20 Maria Santa Amador dos Reis

21 Maria Sueli C. Hoffmann

22 Mariane de Potter

23 Marilene Cupsinski

24 Marilene Hammel

25 Marisa de Fátima da Luz

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26 Maristela Danelli

27 Matilde de Oliveira de A. Lima

28 Mauro Adílio dos S. Gonçalves

29 Reni Maria Rübenich

30 Rita Cristina Riffel Zaparoli

31 Roberto Vilant de Biasi

32 Rosana Pereira Mendes

33 Rosane Barcé

34 Rosimeire Pan D' Arco de Almeida 35 Sandra Kaufmann

36 Sandra Mara Maier

37 Sandra Regina Christ

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Sandro José Tunini

39 Sandro Roque de Almeida

40 Soniamara Maranho

41 Tania Marcia Bagnara

42 Tatiana Peretti

43 Valdemir Gonçalves

44 Vanessa Reichenbach

45 Vanuza Simone Bonini da Luz

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II – Canção da Turma José Martí

Sonho que brota da terra Regado por liberdade Com crença no ser humano E na coletividade Dentro da realidade Ensinar e aprender A nossa pedagogia Vai além do ABC

Pedagogia da Terra Povo do campo em ação Buscando conhecimento Plantando educação José Martí é exemplo Nós somos fermento Nessa construção

Numa Educação do Campo Colhendo cidadania Homens, mulheres, crianças Construindo um novo dia Numa canção libertária Reforma Agrária no chão Queremos ser alicerce Para uma nova nação

Educar como sujeito Que chegou para aprender Desafiando limites Compartilhando o saber Resgatar nossa cultura Soletrar soberania E ver presente no povo A nossa pedagogia

Turma José Martí, 2003. Assessoria na composição musical: Zé Pinto, MST.