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126 GIRAMUNDO, RIO DE JANEIRO, V. 2, N. 3, P.7-19, JAN./JUN. 2015. PROFESSORA DADÁ MARTINS ENTREVISTA A professora Maria Adailza Martins de Albuquerque, conhecida como Dadá Martins, presenteou a Giramundo com uma conversa muito estimulante. Natural do Ceará, com experiência de atuação profissional na rede pública do estado de São Paulo, Dadá Martins é professora e pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba - UFPB e atualmente realiza pós-doutorado na Universidade de Lisboa - UL, em Portugal. Vem dedicando-se, desde seu doutorado, a pesquisas em história da Geografia Escolar no Brasil, com especial atenção aos livros didáticos do século XIX. A entrevista aqui apresentada se realizou em conexão direta Rio- Lisboa, via plataforma digital, que não prejudicou em nada a expressividade, o conhecimento e o envolvimento de Dadá com todos os temas propostos. Fica o agradecimento à professora, por seu pronto aceite em dialogar e contribuir com nossa revista, e a satisfação pelo resultado tão interessante, que se pode conferir a seguir.

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entrev ista

A professora Maria Adailza Martins de Albuquerque, conhecida como Dadá Martins, presenteou a Giramundo com uma conversa muito estimulante. Natural do Ceará, com experiência de atuação profissional na rede pública do estado de São Paulo, Dadá Martins é professora e pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba - UFPB e atualmente realiza pós-doutorado na Universidade de Lisboa - UL, em Portugal. Vem dedicando-se, desde seu doutorado, a pesquisas em história da Geografia Escolar no Brasil, com especial atenção aos livros didáticos do século XIX. A entrevista aqui apresentada se realizou em conexão direta Rio-Lisboa, via plataforma digital, que não prejudicou em nada a expressividade, o conhecimento e o envolvimento de Dadá com todos os temas propostos. Fica o agradecimento à professora, por seu pronto aceite em dialogar e contribuir com nossa revista, e a satisfação pelo resultado tão interessante, que se pode conferir a seguir.

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GIRAMUNDO: Fale um pouco sobre a sua trajetória pessoal e profissional, destacando as motivações que levaram à escolha da Geografia.

PROF.A DADÁ MARTINS: Primeiro devo dizer que a Geografia não foi uma escolha desde a infância, como é comum a muitas pessoas. Ela me apareceu no Ensino Médio, quando me envolvi com o movimento estudantil e os debates sobre a questão ambiental, daí fui fazer um curso de Bacharelado em Geografia, com ênfase em Ecologia, e que não existe mais, para falar a verdade eu acho que aquele curso nunca existiu direito, mas foi o que eu escolhi. Na Universidade fui muito bem recebida pelo movimento estudantil pois já vinha das lutas secundaristas, mas comecei também a fazer pesquisa logo nos primeiros semestres. Isto é diferente do que vejo com os alunos hoje na universidade, me parece que estas atividades são distintas para eles e, quem faz política, não faz ciência, o que não ocorria com a nossa geração de 1980. Naquele momento, na Universidade Estadual do Ceará - UECE, onde eu estudei, fazíamos tudo ao mesmo tempo. Além da pesquisa, participávamos dos movimentos sociais (estudantil, feministas, alfabetizadores de adultos, ambientalistas, culturais, comunidades eclesiásticas, etc.) e também éramos da AGB, foram atividades fundamentais para a nossa formação. Além disso, convivíamos com colegas de outras instituições universitárias de Fortaleza e de outras cidades do Brasil. Nesse contexto, ingressei no Núcleo de Geografia Aplicada - NUGA, que existe até hoje. Foi aí que comecei minhas experiências como pesquisadora, em geral lidando com as questões ambientais, trabalhamos em Aquiraz, Pacatuba e em Jeriquaquara, cidades cearenses. Eram projetos que não tinham financiamentos como ocorre hoje, nem bolsas de estudos para alunos, praticamente tínhamos que pagar para fazer pesquisa, como quase tudo que fazíamos na universidade. Passávamos o dia inteiro por lá, fazíamos eventos científicos, festas, shows, lutávamos contra a derruba da mata que ainda

restava no campus, comíamos no restaurante universitário, nos organizávamos para as viagens de campo, para participar de eventos etc. Hoje com o tipo de formação que temos, os alunos assistem a aula e vão embora... Alguns colegas também se iam depois das aulas, mas para o grupo que participava da pesquisa e do movimento estudantil, vivíamos a universidade no sentido integral. Conhecíamos professores, diretores de centro, batíamos na porta do reitor para reivindicar direitos, mas também para solicitar transporte etc. Isto foi, de certa forma, nos envolvendo com o curso e contribuindo para a nossa formação. Desse grupo, praticamente todos permanecem direto ou indiretamente ligados a instituições de ensino e pesquisa. Com o modelo de formação atual, esta participação coletiva não é valorizada, pois não cabe no currículo formal e nem no lattes, já que o que vale é fazer correndo a graduação, o mestrado, o doutorado e publicar, e os jovens recém-formados ficam depressivos quando não são aprovados em um primeiro concurso para ser professor universitário ou ingressar na Escola Básica. Eu penso que não deveria ser bem assim, o improviso, os encontros, os desencontros, as oportunidades, o convívio… a vida vai nos levando por caminhos inesperados e nós vamos construindo a nossa carreira. Sei da importância de um bom curso, mas continuo acreditando no que dizia Gil Sodero: “nos corredores da universidade também se aprende”. Na década de 1980, os professores da UECE montaram um curso de especialização, que se tornou depois o Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual do Ceará. Parte do nosso grupo, apesar de ainda estarmos na graduação, assistia às aulas, mesmo não sendo aluno formal. Então, tivemos aula com Milton Santos, Ruy Moreira, Antônio Carlos Robert de Morais, entre outros. Nos envolvíamos com tudo, foi uma experiência muito rica, porque encontramos pessoas apaixonadas por aquilo que nós estávamos aprendendo a fazer. Este é um olhar sobre a minha trajetória inicial: descobrir um curso, fazer pesquisa, movimento estudantil e

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encontrar pessoas que me estimularam. Foi assim que a minha carreira foi sendo construída, dentro da universidade, junto aos professores e colegas. Eu nunca tive esta coisa: “eu sonhava em ser geógrafa desde pequena” ...Eu fui construindo minha maneira de ser geógrafa.

GIRAMUNDO: Como surgiu, mais especificamente, seu interesse pela Geografia escolar como objeto de estudo?

PROF.A DADÁ MARTINS: Isso foi mais tarde, porque na graduação nós trabalhávamos com outras questões, e tem relação com o meu desejo de estudar. Depois de acabar a graduação migrei para São Paulo: queria viver em uma cidade grande e, em Fortaleza, eu não tinha muitas perspectivas. Ali fui muito bem recebida e, depois de chegar, uma semana depois, estava trabalhando em uma escola. Aliás, eu acho que desde que eu saí de casa, com 14 anos, tenho sido bem recebida em todos os lugares por onde ando, e não foram poucos! Eu, com sotaque cearense bem forte, cheguei na escola no Jardim São Luiz, periferia de São Paulo e o diretor falou: “sobe, tem seis turmas agora de manhã pra você dar aula”. Quando cheguei na sala e dei bom dia, os alunos logo falaram: “Ih, professora... de onde você é?” Eles já sabiam que eu não era de São Paulo e começaram a me gozar porque eu tinha sotaque nordestino. Imagina... Não tinha mais aula, eles começaram a rir e tal... Quando eu voltei para casa, eu me disse: “vou aprender paulistanês hoje!”. Fiquei no espelho falando paulistanês. No dia seguinte cheguei a escola treinadíssima, com meu R certíssimo, “porrrrque”, “porrrrrrta”, “porrrrrtão”. Os alunos não acreditaram: “não professora”, “você vai deixar a gente louco”, “você agora é de São Paulo?”, “você estava mentindo ontem ou hoje?”. Eu poderia ter tomado isto como provocação preconceituosa, mas eles eram crianças e aprendi muito com eles, inclusive o “paulistanês”!!! Daí a Geografia escolar vem dessa minha empolgação pela escola. Mas como isso vai ser

organizado como objeto de estudo? Em São Paulo me tornei mesmo profissional. Apesar das minhas roupas e atitude rock’n roll, os alunos me adoraram e eu virei uma apaixonada pela profissão. Como professora sempre continuei estudando, participei de vários cursos de educação continuada. Em um deles, o professor Ruy Moreira – eu já o conhecia do Ceará e ele lembrava que eu era do NUGA – me sugeriu dar continuidade aos estudos formalmente e procurar o professor Gil Sodero de Toledo, na USP. Este é um querido, é da Geografia Física e tinha uma relação muito próxima e entusiasmada com o ensino e sempre abriu a porta para professores que desejavam estudar… era o meu caso. Ingressei no mestrado e terminei trabalhando com os alunos que moravam em bairros com diferentes níveis de urbanização na cidade de São Paulo e a recepção que eles faziam dos saberes escolares e das informações difundidas pela televisão (ALBUQUERQUE, 1998). Esta foi minha entrada na pesquisa sobre a Geografia escolar. Naquele período, havia poucos pesquisadores que trabalhavam com a Geografia escolar, dava para contar nos dedos e, de certa forma, um bom número de geógrafos se sentia autoridade nesta questão mesmo sem fazer pesquisa. Hoje temos um número maior de pesquisadores, com áreas específicas: formação de professores, história da disciplina escolar, metodologias de ensino, livros didáticos, cartografia escolar, entre outros. Podemos ver isto no trabalho de Pinheiro (2005). Acredito que estamos constituindo mais um campo epistemológico na Geografia.

GIRAMUNDO: E no Doutorado, você continuou as pesquisas na área do Ensino?

PROF.A DADÁ MARTINS: No doutorado, fui para Faculdade de Educação – USP trabalhar com currículos (ALBUQUERQUE, 2004). Analisei o conceito de lugar em duas propostas curriculares de Geografia para o Ensino Fundamental do período da abertura democrática no Brasil, a da Secretaria Municipal de São Paulo, que tinha

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como secretário Paulo Freire, e a da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, feita pela Coordenação de Ensino e Normas Pedagógicas – CENP. Esta última levou cerca de 7 anos para ser elaborada, foi um processo longo e bastante conflituoso, em meio a mudanças dos governadores Montoro e Quércia. Este currículo foi sabotado pela própria Secretaria de Educação, que escondia-o, não permitindo a sua circulação nas escolas, porque trazia um aporte teórico marxista. Este percurso entre o mestrado e o doutorado delineou minhas pesquisas na Geografia Escolar. Inicialmente, eu não entendia que estava fazendo História da disciplina escolar: isto ainda estava em construção e só vai se dar de forma consciente e sistemática depois da qualificação de doutorado, quando ingressei no Projeto Temático: Educação e Memória – Organização de acervos de livros didáticos, coordenado pela Professora Circe Maria Fernandes Bittencourt, na FE – USP, do qual resultou a criação da Biblioteca do Livro Didático e a Biblioteca Virtual Livres, que conta com um bom acervo de livros publicados de 1810 até os dias atuais. Foi neste grupo que conheci as referências teóricas que utilizo e, assim, a pesquisa foi tomando a configuração atual.

GIRAMUNDO: Como andam os debates sobre ensino de Geografia nas universidades do Nordeste?

PROF.A DADÁ MARTINS: Entendo que os debates têm se ampliado por uma série de fatores e acredito que em um futuro próximo teremos uma produção ainda maior e melhor. Quando cheguei em João Pessoa encontrei um ambiente propício ao desenvolvimento de pesquisas sobre a Geografia Escolar no Grupo de Pesquisa Ciência Educação e Sociedade - GPCES, no qual temos uma linha dedicada à Educação Geográfica, com pesquisadores especialistas da UFPB, UFCG, UEPB e alunos da Geografia e da Pedagogia. Esse debate vem sendo uma construção coletiva e não acontece da noite para o dia. As discussões foram se acalorando à medida

que anunciávamos em palestras e eventos a necessidade de criação de uma linha específica em todos os Programas de Pós-Graduação em Geografia. Por incrível que pareça, há resistências sistemáticas por parte dos geógrafos. Na UFPB criamos a linha Educação Geográfica, e o nosso trabalho vem surtindo efeitos, já temos um bom número de mestres, e agora virão os doutores e egressos trabalhando nas universidades, nos IFE e nas escolas básicas, e assim vamos constituindo um corpo de investigadores. Com as DCN – 2001, as licenciaturas atualizaram seus currículos modificando o modelo de formação e ampliando o número de horas desta. Com isto, as universidades tiveram de ampliar o número de vagas para professores que trabalhavam com as questões relativas à Educação Geográfica, incorporando aos seus quadros os especialistas. Outros dois fatores ainda estimularam a ampliação dos debates e da produção, a realização do ENPEG na Paraíba – a primeira vez que ele acontece no Nordeste – e o PIBID. O primeiro porque trouxe pesquisadores do Brasil, da América Latina e Europa e pudemos divulgar nosso trabalho e passamos a ter maior visibilidade nacional e internacional. O segundo possibilitou a muitas universidades, mesmo aquelas que não têm Programas de Pós-Graduação, realizar pesquisas, desenvolvidas em conjunto com a escola, este é um programa fantástico! Este quadro estimulou alguns Programas de Pós-Graduação a criarem linhas, como ocorreu na UFPI e na UFRN – de mestrado profissional (Caicó, Natal e Pau dos Ferros), assim como projetos para criação de especialização em outras instituições da região, além da abertura de vagas e orientações para os alunos que querem pesquisar temáticas relativas à Geografia escolar. E tudo isto tem ocorrido nos últimos dez anos. GIRAMUNDO: Paulo Freire, pernambucano; Milton Santos, baiano; Manoel Corrêa de Andrade, pernambucano... O Nordeste, historicamente, sempre trouxe contribuições importantes para o cenário intelectual brasileiro e, em particular,

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para a Geografia e a Educação. Entretanto, às vezes, o processo de legitimação da inserção de intelectuais em cenário nacional/internacional passa pelo eixo Rio-São Paulo. Como Maria Adailza, cearense, analisa, hoje, essa relação centro-periferia no campo das ideias e no da projeção profissional?

PROF.A DADÁ MARTINS: Essa questão regional, eu penso que sempre foi muito cara aos intelectuais brasileiros, pois sempre gerou conflitos. Na década de 1930, este debate regional foi exacerbado entre intelectuais do Nordeste e Sudeste; hoje, em função das últimas eleições, esse conflito ficou explícito, trazendo revanchismos nas mídias virtuais, o que não é nada positivo. Mas a questão aqui não é o regionalismo! Entendo que hoje há possibilidades maiores, mesmo para quem está na periferia, possibilitadas pelos meios de comunicação: posso comprar livros em qualquer lugar do mundo, ler as revistas editadas em qualquer cidade, como a Giramundo, mesmo estando aqui em Lisboa (PT) ou no Mauriti (CE) e ainda publicar em várias mídias ou outros artefatos culturais (revistas, livros, e-book). Isso nos possibilita tanto conhecer o que se faz no centro, quanto difundir o que fazemos na periferia ou vice-versa. Então, essa relação centro-periferia mudou, não é que ela não exista, pois no centro estão os investimentos, o capital, as grandes empresas e universidades, tenho consciência disto. Mas do ponto de vista do acesso ao conhecimento, essa relação não é a mesma do passado. São muitos intelectuais nordestinos que não precisam mais migrar para São Paulo ou Rio de Janeiro para construir sua carreira. O Manuel Corrêa era mais arraigado à região, o Milton, eu acho que ele era um homem do mundo, ele de fato nasceu no Nordeste, mas a sua formação intelectual se deu entre Salvador, São Paulo, Paris, e o Paulo Freire, também. Já eu, não me vejo como uma pesquisadora da periferia, naquele sentido clássico do termo, me sinto como uma pesquisadora brasileira, eu sou nordestina, mas sou lida no país inteiro,

tanto como pesquisadora quanto autora de livros didáticos. Sinto a importância de ter tido a nossa coleção “Geografia: Sociedade e Cotidiano” adotada pelo Colégio Pedro II… brincadeiras à parte, me sinto como o Senador Pompeu, meu conterrâneo, que teve seu livro adotado nesta mesma escola no século XIX. Agora mesmo, eu estava com Ivaine Tonini (UFRS) e Sergio Claudino (UL), organizando o Seminário Internacional de Educação Geográfica - Manuais Escolares: entre contextos e discursos, um evento virtual que contou com a participação de pesquisadores de 13 instituições localizadas em 5 países (Brasil, Portugal, Espanha, Itália e Turquia). Quem estava no centro ou na periferia? E insisto, estou falando da inserção da produção intelectual, em especial, para a Educação Geográfica no Brasil, de onde posso falar. Talvez para outras áreas, não seja assim.

GIRAMUNDO: O Colégio Pedro II foi sistematicamente citado por vários pesquisadores como pioneiro na institucionalização da Geografia enquanto disciplina escolar. Em alguns de seus estudos, você chegou a relativizar tamanha importância atribuída a uma instituição só, considerando esse destaque exagerado. Em função de suas pesquisas neste campo, em algumas oportunidades você chega a suspeitar desse pioneirismo. Em que medida essa discussão é importante? Fale-nos um pouco sobre isto.

PROF.A DADÁ MARTINS: Bom, primeiro quero dizer como é bacana poder falar sobre esta questão na revista do Colégio Pedro II. Acho que essa foi a pergunta mais inquietante! Também dizer que meu objetivo não é desmerecer essa escola, pela qual tenho imenso respeito. Acho que é um debate muito interessante, porque para fazer as afirmações que faço, foi preciso compreender que no passado a escola era muito diferente do que é hoje, a instituição, o prédio, a disposição da mobília, a lousa, os livros, os sujeitos sociais e seus papéis. Assim, não podemos negar a existências de outros modelos de escolas, antes e depois da criação do Pedro II. Havia muitas

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escolas no país e que tinham organização distinta desse grande colégio e, em muitas delas, tinham aula de Geografia. Essa é uma questão central de uma discussão que tenho travado, em especial, com o professor Genylton Rocha (UFPA), a quem respeito muito, com quem dialogo bastante, e discordamos, além desta, sobre outras questões, mas acredito que somente assim fazemos ciência. Eu consigo entender que o Pedro II foi a primeira escola (e isso o Genylton diz muito bem) que institucionalizou o ensino de Geografia. Mas ela não é a primeira escola que ensina geografia no Brasil. Eu não posso dizer que a Geografia escolar começou no Pedro II se no Brasil existiam escolas, livros didáticos, Atlas, globos, mapas, professores que ensinavam e alunos que aprendiam Geografia antes da fundação desse colégio. No Pedro II, vai ser adotado um currículo específico, estabelecida seleção e abordagens de conteúdos, modos de ensinar Geografia, de usar outros recursos didáticos etc. E isto nem sequer é efetivamente seguido por todas as escolas secundárias do país, como se quer fazer acreditar, uma leitura equivocada – porque longe da realidade – da equiparação das Escolas Secundárias no país: muitas escolas não seguiam o currículo, o modelo e não tinham a estrutura daquele colégio, mesmo alguns liceus provinciais. Assim, entendo que um dos modelos de escola existente no país eram as Cadeiras Isoladas, para fazer tal afirmação nos baseamos em documentos que encontramos (ALBUQUERQUE, 2012) e na tese de Silva (2012), que confirmam a criação de cadeiras de Geografia na Paraíba, em Pernambuco, no Maranhão e no Piauí a partir de 1831. Outro dado importante é a criação dos Liceus da Paraíba e do Rio Grande do Norte, antes mesmo da criação do Pedro II, e com disciplinas de Geografia. Além disso, encontramos livros didáticos de Geografia que são anteriores a criação do Pedro II. Diante deste último dado perguntamos: quem iria publicar um livro se não tivesse consumidores para o mesmo? Se a disciplina não existisse? Acho que temos avançado bem neste campo e existem hoje três trabalhos que eu acho

fundamentais pra pensar a história de geografia escolar, que é o da Jeane Medeiros, que foi aluna da Vânia Vlach (UFU), do Eduardo Maia (2014), aluno do Faria Filho (UFMG), e outro, de uma aluna minha a Deusia Angelo (2013), nenhum deles foi ainda publicado em livro, mas são merecedores. Para responder à questão solicitada é importante pensar as relações entre centro e periferia no século XIX, porque as províncias já tinham autonomia para criar escolas primárias desde a lei de 1827 e elas criaram, sem uma organização, sem um modelo específico, em algumas tinha a disciplina Geografia, em outras, não. Nós temos evidências e documentos, estamos lidando com fontes que geralmente os pesquisadores da geografia não se dão ao trabalho de botar a mão. Fazemos o trabalho “de formiguinha”! Ao contrário de pesquisadores que citam fontes secundárias, sem ir as fontes primárias. Por exemplo, o trabalho de Genyton e de Vania Vlach são importantes, marcam um momento do campo, o primeiro inclusive recorrendo a História das Disciplinas Escolares. Isso é formidável! Mas é preciso avançar! E para isto é necessário trabalhar com os documentos sejam ou não “oficiais”. Lendo os historiadores e conhecendo os debates a respeito das fontes é que fomos buscar outras fontes além daquelas ditas oficiais, como os livros didáticos, que mesmo que nunca tivessem sido adotados são fontes reais: a partir deles podemos inferir e responder importantes questões. As marcas de texto, feitas por alunos e professores nesses livros, podem identificar o que era valorizado como conteúdo, o tipo de atividades, as avaliações, entre outras questões. É essa construção que tem fundamentado esta nossa afirmação.

GIRAMUNDO: A obra do professor Delgado de Carvalho é reconhecida, nos seus trabalhos, como de grande importância para a “renovação” da Geografia escolar durante o século XX. Como vê o impacto daquele movimento ainda hoje?

PROF.A DADÁ MARTINS: O Delgado de Carvalho é

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para nós uma referência, pois trouxe contribuições importantes para a história da Geografia escolar brasileira. Suas propostas, apesar de inovadoras, não foram facilmente aceitas pelos professores de Geografia, inclusive do Pedro II, pois, como já afirmei em outro texto, a escola não absorve rapidamente propostas novas, sejam elas inovadoras ou conservadoras, as permanências é que são uma constante nesta instituição (ALBUQUERQUE, 2011). Imagina como deve ter sido difícil para os professores do início do século XX se defrontarem com as propostas deste professor: do ponto de vista teórico pautado na Geografia científica; do ponto de vista metodológico apoiado nas proposições escolanovistas, incluindo entre elas práticas anarquistas (DIAS; ALBUQUERQUE, no prelo) e do ponto de vista político rompendo com um tipo de nacionalismo constituído no Império!? Nas suas críticas ao ensino e aos livros didáticos de Geografia, ele deixa isto muito evidente. Mas também consigo entender o que estava por trás do universo político dele: era um nacionalista, como era grande parte dos intelectuais do período que comungavam das suas ideias. Infelizmente, a máxima que advoga a relação estreita entre metodologia e posição política, precisa ser melhor analisada, pois sempre houve, e ainda há professores, metodologicamente, inovadores e, politicamente, conservadores. Essa contradição é corriqueiramente encontrada nos estudos sobre História da Educação. Tudo isto era muito novo para os professores que estavam lecionando havia anos, com seus textos e cadernos amarelados, metodologias mnemônicas, e bastante confortáveis em suas práticas. Ainda hoje, os textos de Delgado de Carvalho são provocadores, costumo utilizar trechos deles, em minhas aulas. Inicialmente não aviso o nome do autor e data da publicação, quando os alunos descobrem, ficam admirados, pois acreditam que tais propostas são atuais. Ele realmente rompia com a Geografia constituída até aquele momento, mas não sabemos sobre a efetiva circulação e adoção de seus livros nas escolas brasileiras. Um estudo como este seria importante, para sabermos o

alcance de suas propostas e mais efetivamente as suas contribuições que permaneceram até os dias atuais. Quando se estuda autores e livros didáticos é preciso verificar a circulação dos mesmos: no Brasil existem poucos estudos sobre isto. No caso Delgado de Carvalho o que nós sabemos a este respeito foi dito pelo professor Manuel Correa, em uma entrevista que fizemos com ele, na qual afirma que tinha estudado com um livro desse autor. Eu fiquei empolgada, achando que as escolas de Recife poderiam ter adotado o livro dele, mas, em seguida, nos revelou que isto só havia acontecido em sua escola, pois o pai do seu professor, que era lente do Ginásio Pernambucano, tinha ganho do próprio Delgado, o seu livro de 1913. Outra informação sobre sua circulação está na dissertação de Rosana Nogueira da Silva (2008) – UFPB, que descobriu, em matéria de jornal, que ele tinha viajado pelo país oferecendo cursos para professores e que ele passaria em João Pessoa, porém se ele foi não se sabe, pois os arquivos não foram guardados. Este é um problema na Paraíba, assim, como em quase todo o país, como não se tem consciência da importância dos documentos, se joga tudo fora.

GIRAMUNDO: A senhora mencionou estar investigando atualmente o livro Lições de Geografia, de Abbade Gaultier, do final do século XVIII. Conte-nos um pouco sobre essa pesquisa.

PROF.A DADÁ MARTINS: Este livro foi publicado pela primeira vez na França em 1788, e traduzido para o Brasil em 1838. O seu autor era um padre que fundou uma escola em Paris e criou um método para ensinar todas as disciplinas. Com base neste, escreveu livros didáticos destinados a todas elas, inclusive este de Geografia, que eu estou estudando. Com a Revolução Francesa ele migrou para a Inglaterra, onde (re)fundou sua escola, agora destinada a outros imigrantes franceses e teve seu método elogiado tanto em Oxford quanto em Cambridge. Como era comum as publicações daquele período, ele era autor, editor e custeava a edição

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de seu livro. Somente a partir de 1820, dois anos após sua morte, o referido livro foi publicado por uma editora comercial, a Aillaud. Com a sua morte, seus discípulos ficaram com a sua escola e os direitos de seus livros, modificando o título e assumindo a autoria do mesmo. Isto pode ser visto a partir da edição de 1831, quando sutilmente se verifica que o livro antes denominado Leçons de Geographie, Par L’abbé Gaultier (1820), passa a ser denominado Leçons de Geographie de L’abbé Gaultier, Par De Bligniéres, Demoyencourt, Ducros et le Clerc. Observe a sutilidade da mudança em uma tradução livre, Geografia por Gaultier, neste ele é autor e, Geografia de Gaultier, portanto é uma Geografia dele e não necessariamente escrita por ele. O livro publicado, por mais de 100 anos na França, e traduzido para o português, espanhol e italiano. Além de ter sido publicado em francês na Bélgica e Holanda, foi também adotado na América Latina. O livro em português recebeu o título Lições de Geographia pelo Abbade Gaultier, e teve 06 edições entre 1838 e 1878. Esta tradução pode ser vista como uma “afronta” aos preceitos metodológicos do autor, pois o seu método de ensino não foi traduzido. Gaultier, desde a primeira edição, defendia o ensino a partir de proposições lúdicas, do uso de jogos. O seu livro está organizado em três capítulos e para cada um deles, foi selecionado um jogo distinto, no qual os alunos são organizados em sala aula, para aprender brincando. É louvável a proposta, pois quebrava com a estrutura de distribuição dos alunos na sala, discutia a importância das brincadeiras, o papel do professor, o aprender com os colegas e não evidencia castigos. Portanto, mesmo sabendo que o seu objetivo era conservador, pois aprender era memorizar, é preciso reconhecer o seu esforço. Na tradução para o português, o método foi cortado, e o livro não faz referências a jogos e é escrito em um modelo comum aos demais livros da época, em formato de perguntas e respostas. Bernardo Issler (1973) afirma que Gaultier foi uma referência para os autores de livros didáticos de Geografia no Brasil no século XIX. Eu acho que Issler pode ter

razão, mas o livro lido no Brasil não foi o original, foi a tradução, e há grande diferenças entre os dois. Em 1846, o português José Inácio Roquete, assume a edição da obra. Este era uma pessoa benquista pela corte de Pedro II e pela sociedade brasileira, apesar de sua posição contrária a Pedro I (Pedro IV em Portugal), quando do conflito entre conservadores miguelistas e liberais. Quando estes depuseram Dom Miguel, Roquete fugiu para a França em 1834, após a Guerra Civil portuguesa. Aí, assumiu a edição do referido livro, e tornou-se, além de tradutor, um dos autores que mais vendeu livros didáticos no Brasil no século XIX, tendo inclusive livro adotado pelo Pedro II. A partir dessa edição, o livro vai tomar uma configuração mais nacionalista, passando a advertir o leitor, na capa do livro, sobre a ampliação dos conteúdos sobre o nosso país. Neste projeto o nosso objetivo é compreender o discurso sobre o Brasil após a independência. Discutir a influência dos debates a respeito da nacionalidade e dos métodos de ensino que ocorriam no Brasil, nos livros didáticos estrangeiros que eram traduzidos para o Brasil. O trabalho ainda não está concluído, e é cedo para apresentarmos conclusões, mas em breve teremos resultados publicados.

GIRAMUNDO: Como você avalia o estado da arte em História da Geografia Escolar hoje?

PROF.A DADÁ MARTINS: Fazer um estado da arte é bastante difícil, porque as pesquisas vêm se ampliado e as publicações são dispersas, mas tenho tentado acompanhar o desenvolvimento do campo. É possível encontrar grupos estabelecidos ou em formação, assim como pesquisadores isolados na Unicamp, UFMG, UFU, UFPB, PUC-SP, UFSE, UFES, USP e UFPA. São instituições onde é possível mapear teses e dissertações a respeito de temáticas desse campo. O mérito inicial é de Bernardo Issler, que foi pioneiro na década de 1970, depois o Genylton Rocha (1996) e a Vânia Vlach (1988) e depois, a partir dos anos 2000 há um aumento sistemático das pesquisas.

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Ando entusiasmada com o fato de algumas instituições (escolas, universidades, institutos) estarem organizando catálogos de livros didáticos, currículos e outros documentos. A partir do momento em que estes estiverem disponíveis na internet, vamos gastar menos tempo e dinheiro com viagens e buscas em arquivos desconhecidos, o que facilitará o trabalho de todos. Com relação aos temas observamos que estes têm sido ampliados, a introdução da disciplina Geografia na escola ainda é frequente entre os autores, inclusive na UFPB. Mas outros temas estão sendo estudados: os sujeitos sociais envolvidos com a disciplina e a publicação de livros didáticos e os lugares sócias de onde se posicionavam; autores, editores, professores e alunos; o ensino de Geografia nas províncias; a cartografia nos livros didáticos; os exercícios nos livros didáticos, as práticas escolares; os livros adotados nas escolas; a relação entre Estado autoritário e Geografia escolar; os usos dos recursos didáticos; as metodologias de ensino; entre outros. Mas ainda é um campo em constituição, que dialoga pouco, que precisa ler e conhecer a sua própria produção. Além disso, insisto na necessidade de recorremos às fontes primárias, aprender a lidar com todos os tipos de fontes, inclusive as que não são leis, pois as práticas que se efetivam na escola, nem sempre podem ser vistas por este tipo de documento. Por exemplo, estou com depoimento e documentos de uma professora paraibana de quase 90 anos, Dona Noemia, que não tive tempo de escrever e publicar, que é maravilhoso! Ela tem os cadernos, provas, livros de quando era aluna e depois de quando era professora, com este material, que não são leis ou decretos, poderemos investigar as aulas de Geografia na escola primária em Cuité, cidade onde lecionou por muitos anos. Precisamos ir aos poucos (re)conhecendo nossas publicações, discutir, discordar, concordar… mas dialogar, para termos uma produção reconhecida nacional e internacionalmente.

GIRAMUNDO: Em seus trabalhos é possível identificar a preocupação em compreender

a relação entre o conhecimento geográfico acadêmico e a Geografia escolar. Como vê esta relação hoje? De que forma avalia que as produções acadêmicas têm impactado o ensino atualmente?

PROF.A DADÁ MARTINS: Para fazer este debate temos que discutir o conceito de transposição didática (CHEVALLARD, 1991), utilizado em muitos estudos no Brasil, em conjunto com o conceito de conhecimento escolar advogado por Chervel (1990) e compreender que estes são antagônicos e não podem constituir juntos o aporte de uma análise. O primeiro indica uma relação de hierarquia entre o conhecimento produzido pela noosfera, simplificado pela didática e difundido pela escola. Assim, quando se admite a transposição didática não se pode entender a escola como um espaço de produção de conhecimento, mas sim um espaço de reprodução de um conhecimento produzido fora dela. Na Geografia isso até já foi mais ou menos compreendido por uma parte daqueles que estudam a Geografia escolar, mas ainda há textos que trazem esta confusão, e os alunos reproduzem-na. Penso que este posicionamento, que também influencia a prática de parte dos professores, é fruto do estruturalismo nas análises educacionais, nas quais a escola era vista como uma instituição criada para difundir os ideais da superestrutura, sem contar o seu potencial criador e contestador. Diante disso, é que nos posicionamos contrariamente ao conceito de transposição didática e acreditamos que somente se vai superar tal posicionamento, empreendendo projetos nos quais professores e alunos, sejam reconhecidamente produtores de conhecimento. Podemos formar professores que entendam que a sua prática é parte de sua pesquisa, e que esta se distingue da acadêmica, pois os conhecimentos produzidos por estas instituições têm origem, métodos e objetivos distintos. Moreira e Candau (2007) discutem essa questão de maneira muito esclarecedora em texto publicado pelo MEC e destinado a professores. Eles analisam a relação entre conhecimento escolar e os movimentos

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sociais, a área dos esportes, a área médica, as mídias e o conhecimento acadêmico, entre outros. E, por fim, é preciso compreender que a relação entre a universidade e a escola não é de mão única, pois elas fazem trocas, e uma influencia a outra sistematicamente, e nem de subordinação da segunda à primeira.

GIRAMUNDO: Na coleção “Geografia: sociedade e cotidiano”, na parte do “Manual dos Professores”, você e os outros autores oferecem um subtexto intitulado “Breve histórico da Geografia como disciplina escolar no Brasil”. Como você analisa o papel do campo da “História da Geografia Escolar” na formação do professor?

PROF.A DADÁ MARTINS: Aquilo foi idéia minha, em função das pesquisas que desenvolvo, mas que o grupo acolheu, pois entendemos a necessidade do professor da Escola Básica conhecer historicamente o papel da disciplina que leciona para melhor compreender sua função na sociedade contemporânea. Na graduação, os alunos de Geografia, mesmo nas Licenciaturas, estudam a história do pensamento geográfico, em alguns casos leem autores brasileiros, mas não estudam a história da disciplina escolar, e é exatamente a área na qual eles vão atuar. Parte dos professores da academia desconhece esta história e outros, que a conhecem, silenciam sobre a mesma. A geografia escolar é um capítulo ausente da história do pensamento geográfico no Brasil. Diante deste contexto de ausência é que pensamos a publicação desse texto, e foi escrito com o propósito de contribuir com a formação dos professores, de modo que eles pudessem compreender as transformações do papel do professor e da disciplina ao longo do tempo e reconhecer as permanências e mudanças para atuar de forma consciente na sala de aula. Assim, eles saberão diferenciar a Geografia que trabalham daquela que foi estudada pelo pai do seu aluno, que cobra, insistentemente, a repetição de práticas ultrapassadas e tradicionais. Também reconhecemos a dificuldade

enfrentada por professores para ter acesso a livros e outros bens culturais (baixos salários, falta de tempo, etc.), mas também não podemos negar a falta de hábito de leitura, a falta de curiosidade, por parte de alguns, em busca uma formação cultural permanente. Hoje, como dissemos anteriormente, o acesso ao conhecimento é facilitado pela rede internacional de computadores. Mas, mesmo em cidades onde se oferecem gratuitamente atividades culturais, são poucos professores de Geografia que as frequentam (exposições de arte, filmes, apresentações musicais, etc.), pois em parte eles não aprenderam a aprender: a universidade não se preocupa com uma formação mais ampla dos nossos alunos, futuros professores... aí já sabemos o resultado. Lembro-me de um trabalho do SESC – Pompéia, em São Paulo. Há anos atrás, ofereceu 700 vagas para um curso destinados a professores da rede pública, que tinha como objetivo discutir as possibilidades de uso nas escolas das fotos de Sebastião Salgado – com material e tudo gratuito. E, apesar da larga divulgação, somente apareceram cerca de 150 professores, e muito poucos eram de Geografia, foi decepcionante. Aliás este será nosso próximo tema de pesquisa, a formação cultural dos professores de Geografia. Em algumas universidades esta questão começa a fazer parte do currículo, vamos ver futuramente o resultado. Mas voltando à questão da ausência da história da Geografia escolar na formação de professores, no III Encontro Nacional de História do Pensamento Geográfico, em 2012, no Rio de Janeiro, esse foi um dos pontos de pauta estabelecido pelo grupo que compunha o nosso GT, e entendemos a necessidade de lutar por um espaço para o nosso campo dentro Geografia. O que nós fazemos é geografia! Essa luta tem que iniciar pela Graduação, especialmente nas Licenciaturas, mas também nos Programas de Pós-Graduação, onde nossos alunos são criticados pelas escolhas de seus objetos de pesquisas, críticas feitas pelos “geógrafos” de plantão!!! E aí eu pergunto: A maior parte dos nossos egressos vai trabalhar onde? Que eu

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entrevista

saiba na escola, há ainda os que vão para a Universidade formar professores. Então, porque não reconhecer efetivamente o campo? E aqui me refiro à Educação geográfica como um todo. Por que não temos espaço junto aos órgãos de fomento à pesquisa? Este campo vem se constituindo no Brasil há muitos anos, temos pesquisadores, publicações com os resultados das nossas pesquisas, revistas especializadas, inúmeros livros circulando pelo país como um todo, estamos nas universidades e nas escolas. O que falta para sermos reconhecido como tal? Como os demais campos, precisamos de recursos para fazer pesquisa!

GIRAMUNDO: E quanto aos principais desafios para a disciplina escolar Geografia na contemporaneidade? Quais seriam eles? Fique à vontade para acrescentar o que considerar pertinente à finalização desta entrevista.

PROF.A DADÁ MARTINS: Primeiro eu acho que temos um desafio grande que é permanecer como disciplina no currículo da Escola Básica brasileira, pois vivemos sob ameaças de banimento ou ainda de redução da carga horária. Acho que precisamos estar sempre atentos a esse debate, senão vamos perdendo espaço na escola, até porque, na contemporaneidade, com essa quantidade de informação a que os alunos têm acesso, a Geografia é uma disciplina que cumpre um papel muito importante. Um dos desafios é aprendermos a trabalhar, juntamente com os alunos, as habilidades necessárias a acessar, filtrar, sistematizar e utilizar informações e conhecimentos. Não é só o uso de ferramentas, mas sim o próprio conhecimento disponível para os jovens, adolescentes e crianças. Nós precisamos aprender a lidar com isso! O segundo é o rompimento com uma questão que está posta desde o século XIX e que vem sendo criticada do início do século XX até os dias atuais, e talvez tenha mesmo relação com o que estamos estudando aqui em Portugal e com questões mais amplas: a Geografia trabalhada em sala de aula permanece mnemônica, como por

exemplo, os malditos questionários para provas, apesar de muitas propostas teóricas e práticas escolares inovadoras. Então precisamos romper com esta tradição que foi sendo criada ao longo de pelo menos dois séculos. Mas isto é um trabalho demorado, não pode ser feito da noite para o dia, não acaba por decreto ou portaria, nem mesmo é resolvido com a adoção de currículos inovadores, essa tradição somente será rompida com práticas efetivamente inovadoras. O terceiro desafio é formar professores que sejam capazes de trabalhar com tais práticas inovadoras. Porque uma coisa é ele sistematizar conhecimento, outra coisa é fazer isto junto com os alunos. Uma construção que não é fácil, pois muitas vezes os alunos têm mais informações sobre determinado tema do que o próprio professor. Então como o professor vai lidar com isto? Como fica sua ideia de autoridade? Como é que ele vai trabalhar essa informação para transformá-la, junto com o aluno, em conhecimento? Penso que o desafio da disciplina Geografia é construir um conhecimento escolar que, recorrendo a este, o aluno seja capaz de compreender e atuar espacialmente. Mas o que é o espaço hoje? Como lidar com esta categoria? Estamos vivendo um período em que ao “espaço concreto” foi incorporado o espaço virtual. Vejamos esta entrevista, feita por uma conexão virtual, estamos ao vivo, a cores e no mesmo espaço virtual, mas em espaços reais distintos: Rio de Janeiro (Brasil) e Lisboa (Portugal). Como a Geografia escolar vai lidar com estas relações? Assim, o desafio é trabalhar com uma Geografia que está sendo desafiada na contemporaneidade, que traga respostas para a sociedade, que está um pouco perdida com tudo isso, pois os problemas do passado permanecem, a fome, a miséria extrema, a acumulação de riquezas como nunca se viu antes… mas a estes, outros desafios foram somados. E esses problemas não estão postos somente para os países pobres, mas sim para o mundo todo. Eu estou vendo aqui os portugueses indo morar na periferia, o aumento da emigração, o envelhecimento da população, os baixos salários, assim como também os gregos,

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os espanhóis, os italianos e por aí a fora. E para nós da América Latina? E para a África? E para a Oceania? Eu penso que tratar sobre estes temas são grandes desafios para Geografia escolar. Não é só pensar a organização do território, mas sim dar respostas para essas questões, que são políticas e que estão no nosso cotidiano, no prato que comemos ou que deixamos de comer. Então, penso que esse é o desafio maior da Geografia. E entendo que a Geografia escolar pode contribuir para a formação do cidadão futuro, que saiba buscar o conhecimento para construir um mundo melhor. Eu sou uma pessoa

que pensa positivo! Apesar de tudo que vivemos hoje, ainda acredito que possamos contribuir de forma positiva para o planeta. Não é possível que sejamos uma espécie fadada a autodestruição, que não tomemos consciência do nosso papel nesse planeta. É evidente que diante do sistema econômico que está posto as respostas não são fáceis!!!

Elaboração - Conselho Editorial | Prof. Demian Garcia Castro, Prof. Carolina Lima Vilela, Prof. Marcio Nery Correa, Prof. Pedro Paulo Biazzo

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