PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO -...

148
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - MESTRADO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS Daniela Gomes A EFETIVAÇÃO ADMINISTRATIVA DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE URBANA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS DIRETRIZES APRESENTADAS PELO ESTATUTO DA CIDADE Santa Cruz do Sul, outubro de 2007

Transcript of PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO -...

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - MESTRADO

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM DIREITOS SOCIAIS

E POLÍTICAS PÚBLICAS

Daniela Gomes

A EFETIVAÇÃO ADMINISTRATIVA DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTA L DA

PROPRIEDADE URBANA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS DIRETR IZES

APRESENTADAS PELO ESTATUTO DA CIDADE

Santa Cruz do Sul, outubro de 2007

Daniela Gomes

A EFETIVAÇÃO ADMINISTATIVA DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA

PROPRIEDADE URBANA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS DIRETR IZES

APRESENTADAS PELO ESTATUTO DA CIDADE

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Direito - Mestrado - Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Hermany

Santa Cruz do Sul, outubro de 2007

Daniela Gomes

A EFETIVAÇÃO ADMINISTATIVA DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA

PROPRIEDADE URBANA: UMA ANÁLISE A PARTIR DAS DIRETR IZES

APRESENTADAS PELO ESTATUTO DA CIDADE

Esta dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado - Área de Concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Dr. Ricardo Hermany Professor Orientador

Pós Dr. Jorge Renato dos Reis

Dr. Ricardo Aronne

Aos pais, o motivo de tudo: Vilmar e Valquíria, À Natália, irmã predileta: Pelo amor, apoio e paciência. Com imensa saudade (in memorian): Vó Helena, Vó Ana e Vô Adelino.

Ao professor Dr. Ricardo Hermany, minha gratidão pela orientação, apoio e incentivo. À coordenação do Mestrado em Direito, na pessoa do Coordenador Professor Dr. Jorge Renato dos Reis, pela oportunidade. À professora Elenise Felzke Schonardie, pelo despertar da pesquisa jurídica. Aos colegas de UPF, do grupo de pesquisa “ambiente, saúde e comunicação”, pela amizade. Aos afetuosos colegas de Mestrado, pela força. Aos amigos e amigas do coração, pelo apoio inicial e incentivo sempre. A Gaspar Girardi, pelo carinho e paciência.

Devemos nos preparar para estabelecer os alicerces de um espaço verdadeiramente humano, de um espaço que possa unir os homens para e por seu trabalho, mas não para em seguida dividi-los em classes, em exploradores e explorados; um espaço matéria-inerte que seja trabalhada pelo homem mas não se volte contra ele; um espaço Natureza social aberta à contemplação direta dos seres humanos, e não um fetiche; um espaço instrumento de reprodução da vida, e não uma mercadoria trabalhada por outra mercadoria, o homem fetichizado. Milton Santos – Pensando o Espaço do Homem

RESUMO

O estudo da temática urbano-ambiental ocupa relevante papel na sociedade contemporânea, uma vez que a regulamentação dos dispositivos constitucionais da política urbana (artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988), através do Estatuto da Cidade, propicia um olhar renovado aos temas da função social e ambiental da propriedade e da cidade, do desenvolvimento urbano sustentável e, principalmente, da participação da população nas decisões locais, enfatizando a necessidade de relações sinérgicas entre o Estado e a sociedade. A Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, também conhecida como lei do meio ambiente artificial, estabelece interfaces entre a política urbana e a política ambiental, especialmente ao regular o uso da propriedade em prol do equilíbrio ambiental, bem como remete ao município sua implementação através do Plano Diretor. Diante de tal situação a propriedade privada deixa de ser um direito individual e absoluto, passando por um processo de flexibilização, devendo cumprir seu papel socioambiental, privilegiando a coletividade. Frente a isso, a finalidade desse estudo consiste em verificar quais instrumentos presentes no Estatuto da Cidade possibilitam a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana. Para enfrentar tal questão adota-se o método de abordagem hipotético-dedutivo, permeando a observação dos artigos da referida lei, destacando como hipóteses de solução da problemática os instrumentos abarcados na legislação referente ao tema, podendo ao final serem validadas ou falseadas. O procedimento ou técnica de pesquisa empregado nessa investigação é o levantamento bibliográfico do assunto por meio de doutrinas, artigos científicos, entre outros, imprescindível à pesquisa jurídica. De igual forma, utilizam-se como referenciais teóricos os estudos de Norberto Bobbio e Milton Santos. A partir de tais considerações, pretende-se demonstrar que a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana passa indiscutivelmente pela aplicação dos instrumentos de indução ao desenvolvimento urbano (parcelamento, utilização ou edificação compulsórios, IPTU Progressivo no Tempo e desapropriação). Nesse contexto, ressaltam-se a gestão democrática compartilhada, as audiências públicas e os conselhos municipais como os principais instrumentos aptos ao desiderato, uma vez que é na co-participação do ente público aliado à sociedade que se configura um novo padrão de relação entre Estado-Sociedade, cujo alicerce está na participação dos cidadãos. Ademais, acredita-se que é na ampliação de possibilidades de apropriação do espaço público pela sociedade que se consolida a idéia de democratização das decisões públicas e a idéia de controle social, possibilitando a concretização da função socioambiental da propriedade urbana.

Palavras-chave: estatuto da cidade; função socioambiental; gestão democrática; propriedade urbana.

ABSTRACT

The study of the urban-environmental thematic represents a relevant role in the contemporary society, once the regulation of the constitutional devices of the urban politics (articles 182 and 183 of the Federal Constitution of 1988), through the Statute of the City, provides a renewed look to the subjects of the social and environmental function of the property and the city, to the sustainable urban development and, mainly, to the participation of the population in the local decisions, emphasizing the necessity of synergic relations between State and society. Law 10,257 July 10th, 2001, also known as law of the artificial environment, establishes interfaces between the urban politics and the environmental politics, especially when regulating the use of the property in favor of the environmental balance, as well as, makes the city responsible for its implementation through the Managing Plan. In such situation, the private property stops being an individual and absolute right, passing through a flexibilization process, and must fulfill its social-environmental role, privileging the collective goal. Thus, the purpose of this study consists in verifying which present instruments in the Statute of the City make possible the effectiveness of the social-environmental function of the urban property. To face such question the hypothetical-deductive approaching method is adopted, permeating the comment of articles of the related law, emphasizing as solution hypotheses of the problematic the instruments accumulated in the legislation referring to the subject, being able in the end to be validated or falsified. The research procedure or technique used in this inquiry is the bibliographical survey of the subject by means of doctrines, scientific articles, among others, essential to the legal research. In the same way, the studies of Norberto Bobbio and Milton Santos are used as theoretical references. From such considerations, it is intended to demonstrate that the effectiveness of the social-environmental function of the urban property passes undoubtedly through the application of the induction instruments to the urban development (parceling, use or mandatory construction, progressive time IPTU and dispossession). In this context, it is emphasized the shared democratic management, the public audiences and the city councils as the main instruments apt to the desideratum, once it is in the co-participation of the public being allied to the society that a new standard of relation between State-Society is configured, whose foundation is in the participation of the citizens. Besides, it is believed that it is in the magnifying of possibilities of appropriation of the public space for the society, that the idea of democratization of the public decisions and the idea of social control are consolidated, making possible the concretion of the social-environmental function of the urban property.

Key-words: statute of the city; social-environmental function; democratic management; urban property.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................................10

1 DEMARCAÇÃO HISTÓRICA E EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA: DO

INDIVIDUAL AO SOCIOAMBIENTAL ...........................................................................14

1.1 As diferentes formas de propriedade ao longo do tempo........................................................... 14

1.2 A contribuição doutrinária na caracterização da propriedade e da função social ...................... 23

1.3 A influência da evolução histórica dos direitos fundamentais no direito de propriedade.......... 40

1.4 A flexibilização do direito de propriedade no Brasil: do individual ao socioambiental ............ 47

2 O MEIO AMBIENTE ENQUANTO DIREITO - DEVER FUNDAMENTAL:

PROPRIEDADE, ESPAÇO URBANO E SUSTENTABILIDADE....................................52

2.1 O direito – dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.............................................. 52

2.2 O espaço urbano e a propriedade privada como bens ambientais.............................................. 62

2.3 O Estatuto da Cidade e suas diretrizes ....................................................................................... 69

2.4 Sustentabilidade urbana ............................................................................................................. 78

3 A CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE

URBANA SOB A ÓTICA DO ESTATUTO DA CIDADE ................................................92

3.1 O Plano Diretor enquanto instrumento público.......................................................................... 92

3.2 Do IPTU Progressivo no Tempo como instrumento tributário-financeiro à Desapropriação

como instrumento jurídico-político................................................................................................ 102

3.3 A Gestão Compartilhada: poder público e participação popular ............................................. 114

3.4 As Audiências Públicas e os Conselhos Municipais................................................................ 122

CONCLUSÃO....................................................................................................................129

REFERÊNCIAS..................................................................................................................138

ANEXO A – Quadro esquemático de utilização do método hipotético-dedutivo..............148

INTRODUÇÃO

O Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, tem por finalidade

regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, que dispõem sobre a

política urbana municipal. Com o intuito de disciplinar o meio ambiente artificial, ou seja,

o espaço urbano, encontra amparo constitucional não apenas nesses artigos, como também

no artigo 225 do mesmo diploma legal, que trata do meio ambiente. Igualmente conhecido

como lei do meio ambiente artificial, estabelece interfaces entre política urbana e política

ambiental, trazendo contribuição essencial à caracterização e à efetivação da função

socioambiental da propriedade, da sustentabilidade urbana e da gestão democrática da

cidade em prol do equilíbrio urbano-ambiental para as presentes e as futuras gerações.

Com a regulamentação dos dispositivos constitucionais da política urbana pelo

Estatuto da Cidade, observa-se, no espaço urbano, a emergência de uma nova

racionalidade de planejamento e de gestão urbano-ambiental da cidade e das propriedades.

O parcelamento e a apropriação privada do solo urbano representaram e ainda representam

uma das muitas causas das desigualdades sociais e dos problemas urbano-ambientais. Os

embates causados pelo não-acesso à propriedade evidenciam a necessidade de se repensar

a organização e o planejamento do espaço urbano. Nesse sentido, não poderia ser outro o

foco dessa investigação senão a funcionalização socioambiental da propriedade privada.

É importante ressaltar que a abordagem da função socioambiental da propriedade

urbana é cercada de dificuldades, levando-se em conta a tendência reducionista de pensar a

propriedade como um direito individual e absoluto. Frente a isso, torna-se imprescindível

verificar a possibilidade de efetivação da função socioambiental da propriedade urbana no

Brasil e as prováveis hipóteses para sua consecução, com base no Estatuto da Cidade e na

Constituição Federal de 1988. A partir de tais considerações, pretende-se investigar quais

instrumentos presentes no Estatuto da Cidade possibilitam a instrumentalização da função

socioambiental da propriedade urbana.

Buscando enfrentar a problemática da materialização da função inerente ao direito

de propriedade, utilizam-se, como referenciais teóricos, as obras do jurista Norberto

Bobbio, acerca dos direitos fundamentais, e os estudos do geógrafo Milton Santos,

11

referentes ao espaço urbano como espaço-tempo do homem. Contudo, embora sejam estes

os referenciais principais, esta pesquisa encontra respaldo ainda nas teorias de Léon

Duguit, José Rubens Morato Leite, Boaventura de Sousa Santos, entre outros, com a

finalidade de um enfoque ambiental e social do Estatuto da Cidade e da propriedade

privada.

Tendo em vista a consecução do trabalho proposto, de forma a lhe conferir

cientificidade, com suporte nas bases lógicas de investigação científica, adota-se o método

de abordagem hipotético-dedutivo, permeando a observação dos artigos da legislação

referente ao tema, destacando como hipóteses de solução da problemática os instrumentos

abarcados na lei do meio ambiente artificial, podendo ao final serem validadas ou

falseadas. Nesse contexto, torna-se importante referir que o método hipotético-dedutivo foi

definido por Karl Popper a partir de críticas à indução, baseando-se no argumento de que a

indução não se justificaria uma vez que o salto indutivo de “alguns” para “todos” exigiria

que a observação de fatos isolados atingisse o infinito. Para Popper a indução cai no

apriorismo, e sua justificação exigiria o trabalho de sua verificação factual. Dessa forma, o

método hipotético-dedutivo afirma-se quando os conhecimentos disponíveis sobre

determinado assunto são insuficientes para a explicação de um fenômeno, surgindo o

problema. Para explicar o problema são formuladas conjecturas ou hipóteses das quais se

deduzem conseqüências que deverão ser testadas ou falseadas. Em tal método procuram-se

evidências empíricas para derrubar ou corroborar as hipóteses. Quando não se consegue

falsear a hipótese, tem-se a sua corroboração provisória, já que não definitivamente

confirmada, uma vez que a qualquer momento poderá surgir fato que a invalide.

Dessa forma, pode-se dizer que o método hipotético-dedutivo parte de observações,

e destas, a uma hipótese, a parti daí, uma dedução reconduz a experiência para controlar a

hipótese, desembocando na idéia de coerência lógica. Esse método é redutível a um ciclo,

pois, a pesquisa desenvolve-se colocando uma hipótese na presença de fenômenos e

presumindo-se que ela permitirá reencontrá-los como conseqüências. Observa-se, que o

método de tentativas e eliminação de erros, como também é conhecido, foi constituído com

a intenção de que toda a discussão científica partisse de um problema (P1), ao qual fosse

contemplado uma solução provisória, hipótese ou teoria-tentativa (TT), passando-se depois

a criticar a solução provisória com vistas à eliminação do erro (EE). Assim, esse processo

renovaria a si mesmo, acarretando o surgimento de novos problemas (P2) (ANEXO A).

12

Por outro lado, o procedimento ou técnica de pesquisa empregado nessa

investigação é o levantamento bibliográfico do assunto por meio de doutrinas, artigos

científicos, entre outros, indispensáveis à pesquisa jurídica. Utilizam-se igualmente os

métodos comparativo e funcionalista. Por método comparativo entende-se a pesquisa de

dois ou mais fenômenos ao mesmo tempo ou ao longo de um tempo, comparando-os entre

si, identificando e privilegiando as diferenças e semelhanças. Dessa forma, é utilizado o

método comparativo diacrônico, pois o estudo da propriedade-bem e da propriedade-

função abrange épocas distantes do tempo, conforme a evolução dos direitos fundamentais.

Já o método funcionalista, justifica-se na pesquisa, por essa levar em consideração que a

sociedade é formada por partes diferenciadas, cada uma com funções específicas na vida

social, mas, o ponto fundamental reside na percepção de que as partes são mais bem

compreendidas pela função que desempenham no todo. Assim, a relação da sociedade e

das questões relativas à percepção dos problemas urbano-ambientais, encontram-se

reunidas em uma estrutura complexa de grupos e indivíduos, em uma trama de ações e de

reações sociais, como um sistema correlacionado entre si. Se a sociedade é um todo em

funcionamento, o papel das partes é de extrema importância, pois é trabalhando as partes (a

exemplo do poder local), que se poderá buscar o fortalecimento e melhor funcionamento

do todo (percepção ou conscientização acerca dos problemas urbano-ambientais globais).

Assim, divide-se o presente trabalho em três partes, nas quais se desenvolve o tema de

forma a elucidar suas diversas facetas.

No primeiro capítulo, pretende-se, de maneira sintética, demarcar historicamente o

surgimento e a evolução da noção de propriedade como direito. A partir daí, procura-se

evidenciar as diferentes formas de propriedade ao longo do tempo, para, posteriormente,

proceder a uma análise sociológico-histórica do direito de propriedade, através da

contribuição doutrinária na caracterização desta e de sua função social. Ainda,

considerando-se a necessidade de esclarecer o direito de propriedade e a função

socioambiental como direitos fundamentais e princípios constitucionais, busca-se

demonstrar, por meio da evolução histórica dos direitos fundamentais e de sua

constitucionalização no ordenamento jurídico brasileiro, a importância das dimensões de

direitos na reconfiguração das feições do direito de propriedade. Por fim, aborda-se a

flexibilização do direito de propriedade no Brasil, passando de um direito individual de

caráter absoluto para um direito de cunho socioambiental.

13

No segundo capítulo, é abordado o meio ambiente enquanto direito-dever

fundamental. Parte-se da idéia de que o meio ambiente ecologicamente equilibrado (natural

e artificial) não pode mais ser percebido apenas como um direito fundamental, tornando-se

imprescindível entendê-lo, igualmente, como um dever fundamental que se estende ao

Poder Público e, principalmente, à coletividade, buscando romper com a noção

antropocêntrica do homem como detentor da natureza. Visualizam-se, nesse sentido, o

espaço urbano e a propriedade privada como bens ambientais. Frente a isso, no ensejo de

concretização das propostas trazidas pela lei do meio ambiente artificial, prossegue-se à

lapidação do estudo, abordando-se as origens e as principais diretrizes do Estatuto da

Cidade com o propósito de se verificar sua aplicação frente à instrumentalização da função

socioambiental da propriedade urbana. Finalmente, são frisadas as particularidades da

sustentabilidade urbana com o objetivo de identificar a possibilidade de materialização de

um espaço urbano mais justo e solidário, corroborando com o adimplemento da função

socioambiental da propriedade urbana.

No terceiro capítulo, buscam-se demonstrar os possíveis caminhos para a

materialização da função socioambiental da propriedade urbana. Nesse sentido, analisa-se

o Plano Diretor municipal enquanto instrumento público. Posteriormente, estudam-se o

parcelamento, a edificação e a utilização compulsórios do imóvel urbano e o IPTU

Progressivo no Tempo como instrumento tributário-financeiro. Em seqüência à aplicação

dos instrumentos de indução ao desenvolvimento urbano, encontra-se a desapropriação-

sanção enquanto instrumento jurídico-político, apto a realizar o tão esperado ordenamento

das cidades e o adequado aproveitamento da propriedade urbana.

Como ápice do estudo, após a investigação dos principais instrumentos trazidos

pelo Estatuto da Cidade, ressaltam-se a gestão democrática compartilhada, as audiências

públicas e os conselhos municipais como os principais instrumentos capazes de

implementar uma política urbana eficiente. Nesse contexto, a lei traz a participação popular

como forma de propiciar a gestão democrática da cidade. Assim, procura-se demonstrar a

importância da gestão compartilhada, aliando-se o Poder Público à participação popular, o

que possibilita a conscientização de que todos fazem parte do meio ambiente artificial e

são co-responsáveis pela sua preservação para as presentes e as futuras gerações.

1 DEMARCAÇÃO HISTÓRICA E EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE PR IVADA: DO INDIVIDUAL

AO SOCIOAMBIENTAL

O estudo da propriedade privada traz no seu bojo a necessidade da demarcação

histórica do surgimento da propriedade como direito, bem como, da evolução da noção de

propriedade ao longo do tempo. Desse prisma, baliza-se a análise sociológico-histórica do

direito de propriedade através da contribuição doutrinária na caracterização da propriedade

e da função social ao longo da história.

Considerando a influência das dimensões de direitos fundamentais e de sua

constitucionalização no ordenamento jurídico brasileiro, busca-se verificar o processo de

reconfiguração pelo qual tem passado o direito de propriedade, de um direito absoluto para

um poder-dever de contornos socioambientais.

1.1 As diferentes formas de propriedade ao longo do tempo

A propriedade não foi sempre a mesma. Não há, na história da humanidade, um

conceito único de propriedade que seja imutável. Por essa razão, para que não haja um

entendimento inadequado de seu conteúdo, faz-se necessária uma abordagem no contexto

político, econômico, social e histórico do direito de propriedade1 ao longo do tempo.

Assim, buscando traçar um panorama da evolução da noção de propriedade, a partir da

análise de sua história, procuram-se estabelecer quatro períodos de tempo distintos: a Idade

Antiga, a Idade Média, a Idade Moderna e a Idade Contemporânea.2

1 Alguns autores, a exemplo de Edésio Fernandes, questionam a terminologia empregada para designar os direitos do proprietário que, em vez de ter direito de propriedade, estaria frente a um direito à propriedade. Essa terminologia “direito à propriedade”, decorre do fato de ao proprietário se estenderem inúmeras condições para o exercício legítimo de seu direito. Nessa pesquisa, optou-se por utilizar o termo “direito de propriedade”, tendo em vista que não se faz distinção entre os termos, entendendo-os de mesmo significado. FERNANDES, Edésio. Direito de propriedade e direito à propriedade. Jornal O Tempo, Belo Horizonte, 14 dez. 1996. 2 O tempo é uma convenção criada com o intento de facilitar o entendimento do que rodeia os homens. Frente a essa perspectiva, os historiadores criaram “períodos de tempo” para a seqüência dos acontecimentos históricos. Assim, a História foi “dividida em quatro épocas: Antiga (do aparecimento da escrita, por volta de 3500-3000 a.C., até a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C.); Medieval (de 476 a 1453, data da tomada de Constantinopla pelos turcos); Moderna (de 1453 à Revolução Francesa de 1789); e Contemporânea (de 1789 para a frente).” PETTA, Nicolina Luiza de; OJEDA, Eduardo Aparicio Baez. História: uma abordagem integrada. 1. ed. São Paulo: Moderna, 1999, p. 4.

15

A demarcação histórica, com vistas a estabelecer o surgimento da noção de

propriedade, perde-se na história. Grande parte dos historiadores acredita ser mais seguro

avaliar o surgimento de alguma forma de propriedade, quando do aparecimento da escrita.

Entretanto, é possível afirmar que a propriedade surgiu com o homem.

Nos primórdios de sua existência, especificamente no período pré-histórico, o

homem era nômade e de comportamento similar às outras espécies de animais, ou seja,

vivia em um estado selvagem, coletando frutos e exercendo a caça. Com a domesticação de

animais, o cultivo de plantas e a utilização da cerâmica, o homem atinge o estado de

barbárie. Posteriormente, com a fundição do minério e a invenção da escrita, há a

passagem do estado de barbárie para o estado de civilização. Mesmo no período selvagem,

o homem já tem noção de propriedade, seja de sua canoa ou de seu instrumento de caça.

Entretanto, é com a domesticação de animais e o cultivo de plantas, no ano de 10.000 a.C.,

que o homem passa a fixar bases geográficas. Ocorre que, nesses períodos, a noção de

propriedade não assume as feições atualmente dadas pela sociedade, de tal forma que “a

relação de domínio exercida pelo homem sobre o objeto era condicionada e legitimada por

uma ordem jurídica natural, com vistas a assegurar-lhe a satisfação das necessidades mais

prementes [...]”.3

Com a invenção da escrita e a passagem do homem ao estado de civilização, inicia-

se o período denominado de Antigüidade ou Idade Antiga. Há que se considerar nesse

período uma importante divisão: os povos do antigo oriente (egípcios, sumérios, acádios,

babilônios, assírios, caldeus, fenícios, hititas, hebreus, persas, cretenses, além da Índia e da

China) e os povos da antigüidade clássica como os romanos e os gregos.

Os povos do antigo oriente são as primeiras sociedades divididas em classes

(nobreza, elementos livres, servos e escravos) que inspiraram os povos gregos e romanos

na cultura material e espiritual. No Egito e na Mesopotâmia, a terra era controlada,

juntamente com seu produto agrícola, pelos governantes. Diferentemente se dava essa

relação na Pérsia, onde o regime de propriedade era o particular, no qual, o proprietário

pagava impostos elevados para cultivá-la. Contudo, é entre os babilônios, com o Código de

Hamurabi, por volta de 2.300 a.C., que a propriedade é regulamentada sob normas de

3 ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno. Londrina: UEL, 1998, p. 35.

16

estrutura codificada (seja a propriedade do escravo ou a propriedade de qualquer objeto

material ou imaterial).4 Também entre os povos hebreus, há a instituição da propriedade

particular, de forma expressa, no segundo livro do Pentateuco5, denominado Êxodo.6 A

preocupação com os bens particulares foi exaltada por Moisés nos Dez Mandamentos.7

Ressalta-se ainda que, na Índia, também houve o reconhecimento expresso do direito de

propriedade, no Código de Manu.

De outro giro, na sociedade grega e romana, a propriedade privada começa a existir

a partir de uma modificação na organização gentílica. É com os gregos e os romanos que a

propriedade passa a incorporar o caráter individualista.

Entre os gregos, a “gens” na sua forma primitiva se fundamentava na concepção de

grupo de consangüíneos, e com certo grau de parentesco, a propriedade, de início, tinha o

aspecto de ser comum a todos. Com a introdução do direito paterno em substituição ao

direito materno, houve a acumulação de riquezas pela família, em função, principalmente

da instituição da herança. A partir daí, verifica-se que foi entre os gregos que apareceram

os primeiros impulsos à propriedade privada. “[...] a propriedade privada entre os gregos é

resultado de um processo que gera o fortalecimento concomitante da família. A partir daí,

família e propriedade privada são instituições que caminham juntas e no mesmo passo”.8

Para Fustel de Coulanges, os gregos sempre reconheceram a propriedade privada.

Entretanto, seguiram caminho inverso ao natural, uma vez que a propriedade se aplicou

primeiro ao solo e, depois, à colheita. Em sua concepção, a religião doméstica, a família e

o direito de propriedade guardam relação inseparável em suas origens. “A idéia de

propriedade estava implícita na própria religião. Cada família tinha o seu lar e os seus

4 Ibidem, p. 40-41. 5 Pentateuco é uma palavra derivada do grego e significa “cinco livros”. Essa palavra é usada para indicar os cinco primeiros livros da Bíblia Cristã, isto é: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Também chamado de Torá, uma palavra de língua hebraica com significado associado a ensinamento, instrução, especificamente Lei. São os primeiros cinco livros da Bíblia Hebraica, de autoria de Moisés, conhecidos pelos cristãos como Antigo Testamento. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulus, 1990, p. 12. 6 Êxodo significa a saída dos hebreus do Egito, onde eram escravos. Está intimamente ligado com a libertação do povo hebreu e o estabelecimento de uma aliança e de leis de transformação das relações interpessoais. Essa aliança foi firmada de duas formas: princípios de vida (Decálogo) que orientam o povo para um ideal de sociedade, e leis (Código de Aliança) que têm por finalidade conduzir o povo a prática desses ideais. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulus, 1990, p.68. 7 Ver em Êxodo, capítulo 20, versículo 15 e 17. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulus, 1990, 93. 8 ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno. Londrina: UEL, 1998, p. 49.

17

antepassados. Esses deuses podiam ser adorados pela família e só a ela protegiam; eram

sua propriedade.”9 Assim, o lugar onde a família fixa seu altar é sua propriedade, é

domínio sagrado e protegido por divindades domésticas. Essa demarcação traçada pela

religião e por ela protegida é símbolo evidente do direito de propriedade, o que corrobora

com o entendimento de que não foram as leis, mas a religião que primeiro garantiu o

direito de propriedade.

A propriedade era fundamental na estrutura da polis. Em Esparta, a venda de terras

era expressamente proibida, assim como a casa e o túmulo eram inalienáveis. Quem

conferia lotes de terra aos homens adultos era o Estado. Esse direito de propriedade era

condicionado à exploração com eficiência, caso contrário, o Estado tomava-o e repassava-

o a alguém capaz de fazê-lo. Em Atenas, somente os cidadãos poderiam possuir terras.

Nesse caso, a posse encontra-se intimamente ligada à cidadania. Não havia nenhuma

vedação expressa à venda de terras, entretanto, quem as vendesse perderia o direito de ser

cidadão grego.10

Em Roma, o processo é similar. A primeira forma de propriedade foram as tribos,

que deram origem à formação da cidade. Em um primeiro momento, toda a terra cultivada

era da tribo, e a propriedade era coletiva. Em um segundo momento, a propriedade passa a

ser familiar e somente os filhos homens eram herdeiros. Em um terceiro momento, a

propriedade passou a ser individual, ou seja, “essa concentração de poderes no grupo

familiar perdeu o vigor e passou a se focalizar no indivíduo”. 11 Assim, cada integrante do

grupo familiar foi adquirindo direito individual, o que acarretou a mudança do traço

familiar da propriedade para a característica da individualidade.

Com a passagem do traço familiar para uma propriedade individualista e absoluta,

ao proprietário assiste o direito livre e irrestrito de utilizá-la como bem entender. Esse foi o

ponto de partida dos três atributos do domínio: o jus utendi, o jus fruendi e o jus

9 COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 65-77. 10 PIPES, Richard. Tradução de Luiz Guilherme B. Chaves e Carlos Humberto Pimentel Duarte da Fonseca. Propriedade e liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 129. 11 MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p. 25-26.

18

abutendi.12 A concepção romana inicial de propriedade é a de um direito absoluto e

protegido, que, com as complexas relações sociais, foi cedendo vez aos direitos do outro

indivíduo e não aos da coletividade. Cabe salientar que a Lei das XII Tábuas trouxe

consigo algumas limitações à propriedade, tais quais, as limitações em favor do interesse

dos vizinhos. É também por essa lei, que a propriedade passa a ser alienável.

O período da Idade Média foi caracterizado pelo surgimento do feudalismo como

uma nova organização econômica, política e social no Ocidente. A sociedade medieval tem

a sua origem com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476 d.C., em função da

articulação de valores romanos, católicos e germânicos.

Em linhas gerais, entre os fundamentos para o surgimento do feudalismo,

encontram-se a preocupação com a segurança, com as desiguldades sociais e o interesse de

defesa das propriedades privadas, que estavam sendo invadidas e saqueadas

constantemente, acarretando todos os tipos de danos aos proprietários. Assim, os donos de

terras submeteram-nas ao soberano em troca de proteção. O soberano passa a ter o domínio

eminente, e a sua utilização - domínio útil - é garantida aos proprietários, agora

denominados de feudatários.13 A sociedade feudal era dividida em estamentos: os

proprietários (clero e nobres) e os trabalhadores (servos).

Esse contexto foi fortemente influenciado pelo Cristianismo e pelas doutrinas

filosóficas de São Tomás de Aquino e de Santo Agostinho, que retomaram a discussão

acerca do direito de propriedade privada. O ponto de apoio da doutrina filosófica de São

Tomás de Aquino assenta-se no ideário de que a propriedade é um meio injusto de poder.

Em sua obra, Suma Teológica, ele não defende a idéia de uma propriedade coletiva,

entretanto salienta que a propriedade individual deve atender aos interesses coletivos.14 O

impacto de suas idéias não foi absorvido no período feudal. Contudo, é o seu pensamento

que vai embasar a teorização acerca do princípio da função social da propriedade.

12 “Jus utendi é o direito de usar a coisa, como, por exemplo, o direito do proprietário de construir sobre sobre o seu terreno, o de montar animal de sua propriedade, o de utilizar-se dos trabalhos do escravo. Jus fruendi é o direito de usar, não propriamente a coisa, mas o direito de aproveitar os furtos e os produtos da coisa. Jus abutendi é o direito que tem o proprietário de abusar da coisa, dispondo dela como melhor lhe aprouver, inclusive destruindo-a, isto é, alterando-lhe a ‘substantia rerum’[...]”. CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 155. 13 MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p. 28. 14 Ibidem, p. 29-30.

19

Durante a vigência do feudalismo, em 1245, ainda na Idade Média, surge a Magna

Carta na Inglaterra. A Magna Carta constituiu documento que procurava assegurar

liberdades individuais em relação ao rei, mas essas liberdades não tinham o propósito de se

estender a todos os membros da sociedade. Ressalta-se que, apesar do propósito nuclear de

atendimento apenas dos interesses dos nobres, a Magna Carta não foi apenas uma

conquista, foi também o marco inicial do surgimento das Declarações de Direitos. Entre as

liberdades que procurava assegurar, destaca-se o direito à propriedade privada.15 Isso se

deu em função do declínio do feudalismo, uma vez que seus pressupostos não atendiam às

novas questões sociais que estavam surgindo.

O período moderno teve seu ponto de partida com as grandes expedições

marítimas, realizadas pelos europeus. Concomitante a esse acontecimento, constatou-se

uma Revolução Comercial, que se traduziu na transformação da economia européia e

trouxe como conseqüência a ascensão do capitalismo. O Renascimento também marcou

presença no período moderno, fazendo ressurgir valores da Antiguidade Clássica, como o

individualismo16. São esses três fatores (as grandes navegações, a Revolução Comercial e o

Renascimento) que modelaram e influenciaram as instituições na Idade Moderna.

Sob a influência desses fatores, surgiu o Iluminismo, que procurou contestar as

instituições políticas, econômicas e sociais da época. Seus ideais chegaram a influenciar a

independência dos Estados-Unidos, a Revolução Francesa e até mesmo os movimentos de

independência do Brasil.17 Politicamente, foi uma ampla crítica à forma do poder vigente

(Absolutismo) e a proposta de um novo entendimento da vida social, mas foi, acima de

tudo, uma revolução cultural, além de ser a matriz do pensamento liberal.

No século XVIII, as práticas mercantilistas já não atendiam as necessidades da

burguesia. Como uma crítica ao mercantilismo, que prejudicava a expansão do capitalismo,

e com a finalidade de combater as antigas formas da economia, surgiu o movimento

chamado Fisiocratismo. Foi sob a influência dos fisiocratas que nasceu uma nova corrente

de pensamento econômico, propondo uma ordem baseada na liberdade de comércio,

denominada Liberalismo.

15 ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno. Londrina: UEL, 1998, p. 58-59. 16 Ibidem, p. 63-64. 17 Ibidem, p. 64.

20

Da combinação do declínio do Feudalismo e da intensificação do Absolutismo,

originou-se o movimento que culminou na Revolução Francesa de 1789. Os detentores da

riqueza (burguesia) estavam insatisfeitos em ter posses e não ter poder. Esse contexto de

centralização do poder nas mãos do clero e da nobreza foi, sem dúvidas, fator

desencadeante da Revolução. Os ideais iluministas de “liberdade, fraternidade e igualdade”

foram a manifestação do repúdio e do inconformismo com esse cenário. A propriedade se

tornou questão pontual entre os anseios da Revolução Francesa. Nesse sentido, também

houve a influência dos fisiocratas, que defendiam a propriedade como instituição

sacrossanta.18

No entendimento de Antonio Carlos Wolkmer, o Estado Moderno é um processo

histórico que apresenta dois momentos: “o Estado Absolutista (soberano, monárquico e

secularizado) e o Estado Liberal (capitalista, constitucional e representativo)”.19O direito

moderno tem em seu marco a Revolução Francesa, fortemente caracterizada por uma

concepção individualista, produto do anseio de mínima intervenção do Estado na sociedade

e da luta por liberdades individuais. Norberto Bobbio salienta que a “concepção

individualista significa que primeiro vem o indivíduo (o indivíduo singular, deve-se

observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado, e não vice-versa, já que o

Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado [...]”.20A crítica feita à

Revolução Francesa é a de que seu caráter ideológico favoreceu os interesses da burguesia,

exaltando a propriedade absoluta e individualista, preponderando o valor liberdade em

detrimento do valor igualdade.

Em 1789, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a propriedade

foi consagrada como direito inviolável e sagrado, inserindo-se no rol dos direitos naturais e

imprescritíveis do homem. Com o Código Napoleônico de 1804, a definição romana de

propriedade absoluta foi resgatada. Ressalta-se que a noção de propriedade, adotada pelo

Código Civil brasileiro de 1916, é idêntica à do Código de Napoleão, o que causou e ainda

gera graves distorções em sua aplicação, uma vez que os contextos nos quais estavam

inseridos não guardam nenhuma semelhança.

18 MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p.30-31. 19 WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: Fabris, 1990, p. 24-25. 20 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 60.

21

Frente a isso, em contraponto à doutrina liberal, sustentada pela burguesia em um

momento no qual os países europeus se encontravam marcados por profundas

desigualdades sociais, que pioraram em razão da Revolução Industrial desenfreada, surge o

pensamento socialista21. A possibilidade de pensar uma nova forma de organização social

foi herança do Iluminismo. “No pensamento limitado pela religião, em que as coisas são da

forma que são pela vontade divina, não era possível questionar a estrutura social. Quando o

Iluminismo propôs que a sociedade fosse examinada pela razão, foi aberta a possibilidade

de elaborar uma outra estruturação da sociedade [...]”.22 A partir daí, surgiram teorias que

defendiam uma estrutura social em que o poder fosse exercido pelas classes trabalhadoras.

Em linhas gerais, os socialistas acreditavam ser possível transformar a sociedade acabando

com os desequilíbrios econômicos.

O cenário de injustiças e de miséria da época inspirou o Socialismo Científico ou

Socialismo marxista, contribuindo para a difusão dos ideais de igualdade e de justiça

social, que se realizariam por meio da distribuição de riquezas, da crítica das relações de

trabalho e da tutela estatal dos bens de produção. A partir do pensamento marxista, a

propriedade passou a ser vista como um bem de produção, ligada à divisão do trabalho.

Dessa forma, a propriedade deveria pertencer à sociedade e não apenas a alguns homens.

O ideal marxista foi aplicado com a Revolução Russa de 1917, quando se chegou a

implantar a propriedade coletiva sob o domínio administrativo do Estado, abolindo-se as

propriedades privadas. Em outros países, o pensamento marxista também inspirou

21 Na transição da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, surgiram as doutrinas socialistas, que propunham uma nova forma de organização da sociedade. Em 1838, o Movimento Cartista, através da publicação da “Carta ao Povo”, por parte da Associação dos Operários ingleses, denunciou as dificuldades pelas quais passavam os trabalhadores e reivindicou a participação política da classe trabalhadora, a fim de melhorar a condição de vida dos operários. Por volta de 1820 e 1829, falou-se em Socialismo Utópico, que nada mais foi do que a sensibilização de alguns empresários com a situação da época, propondo reformas que mantinham o sistema capitalista, mas buscavam atender melhor os trabalhadores. Superando essas duas teorias, surgiu o Socialismo Científico em 1848, com a publicação do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. O Socialismo marxista, em síntese, defendia a apropriação coletiva dos meios de produção que deveriam pertencer a toda sociedade. Para conseguir a coletivização dos meios de produção, o ideal marxista defendia a via revolucionária e a implantação da ditadura do proletariado (etapa provisória a ser implantada até a eliminação da propriedade privada e sua coletivização). Realizadas essas transformações, a sociedade entraria no Comunismo. Outra importante corrente socialista foi o Anarquismo ou Comunismo Libertário, que pregava que a origem das desiguldades sociais está no Estado. O poder do Estado é corruptor, e mesmo que controlado pelos trabalhadores gera desiguldades. Essa corrente fundamentava-se na eliminação do Estado e no regime da autogestão em grupos, com leis próprias. PETTA, Nicolina Luiza de; OJEDA, Eduardo Aparicio Baez. História: uma abordagem integrada. 1. ed. São Paulo: Moderna, 1999, p.182-183. 22 PETTA, Nicolina Luiza de; OJEDA, Eduardo Aparicio Baez. História: uma abordagem integrada. 1. ed. São Paulo: Moderna, 1999, p. 181.

22

mudanças, fazendo com que houvesse uma maior intervenção do Estado no domínio

privado. De certa forma, o pensamento marxista foi decisivo para o rompimento do

paradigma de propriedade absoluta.

A análise da propriedade privada na contemporaneidade é marcada pela revisão da

postura não-intervencionista do Estado e pela contestação do caráter individualista da

propriedade. A releitura da noção de propriedade, atribuindo-a caráter social, emerge a

partir da Revolução Industrial e do surgimento dos movimentos sindicais, que exigiam a

proteção dos direitos sociais por parte do Estado.

O processo de socialização dos direitos e de limitação das liberdades individuais

teve por influência o ideário socialista, o anarquista e também o Cristianismo de cunho

social. Nesse sentido, o Estado Contemporâneo, de postura intervencionista, passa a ser

conhecido como Welfare State ou Estado do Bem Estar Social. Para César Luiz Pasold o

marco do surgimento do Estado Contemporâneo se deu com a Constituição Mexicana de

1917 e com a Constituição de Weimar de 1919, que impôs limites aos direitos privados e

incluiu a idéia do direito de propriedade vinculado a obrigações sociais.23 Assim, tem-se

que, no Estado Contemporâneo, a propriedade passa a estar vinculada ao cumprimento da

função social.

Nas palavras de Rogério Moreira Orrutea, há, no século XX

[...], uma nova fórmula ao direito de propriedade privada, fugindo àquele caráter absolutista prevalecente em fases anteriores. Floresce neste período, ao lado do caráter individual e eminentemente civilista, o caráter social e de cunho até publicista. O direito de propriedade particular assume e concilia aspectos jurídicos que à primeira vista parecem infensos e inconciliáveis entre si, eis que passa a figurar, à partir de então, entre os chamados direitos individuais e entre os direitos econômicos, compromissado que se vê com a ordem econômica. É sem sombra de dúvidas o inaugurar de um novo predicativo ao direito de propriedade privada e que a ele atribuiu um novo papel ou uma nova função, notadamente sob a ótica do social.24

A essência desse processo histórico-evolutivo da propriedade é pertinentemente

resumida por Eros Roberto Grau, quando afirma que

23 PASOLD, César Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo. 2. ed. Florianópolis: Estudantil, 1988, p. 43. 24 ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno. Londrina: UEL, 1998, p.87.

23

a observação da evolução da propriedade – que da plena in re potestas de Justiniano, da propriedade como expressão do direito natural vai desembocar, modernamente, na idéia de propriedade-função social – apresenta momentos e matrizes realmente encantadoras, bastantes para desviar o estudioso da senda que tencione explorar. Tal evolução consubstancia, como afirmou André Piettre, a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção romana, que justifica a propriedade por sua origem (família, dote, estabilidade dos patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, finalista, que a justifica por seu fim, seus serviços, sua função.25

No Estado Democrático de Direito, a propriedade deve adequar-se à busca da

realização da justiça social e da igualdade, através da passagem de uma propriedade-direito

(absoluta e individualista) para uma propriedade-função. A propriedade contemporânea

deve orientar-se para os valores sociais e ambientais.

Com isso, realizada a demarcação histórica da noção de propriedade na antigüidade

até sua evolução para uma propriedade privada na modernidade e na contemporaneidade,

pretendeu-se assinalar que não há um conceito universal e imutável de propriedade ao

longo do tempo. O direito de propriedade tem caráter dinâmico, está em constante

transformação, e tem seu conteúdo modificado em virtude das necessidades sociais e

ambientais. Frente a isso, buscar-se-á demonstrar que essa alteração na concepção de

propriedade privada, além de ser produto histórico, também teve origem na contribuição

doutrinária de autores clássicos e contemporâneos.

1.2 A contribuição doutrinária na caracterização da propriedade e da função social

A origem e os fundamentos da propriedade sempre instigaram interesse e

controvérsias de doutrinadores e filósofos que se dividiram em três correntes de

pensamento acerca do assunto. Há os que contestam a propriedade privada e defendem sua

abolição; existem também, os que afirmam ser a propriedade um direito natural do homem,

que nasce no estado de natureza, antes e independentemente do surgimento do Estado, e

outros tantos, entendem que a propriedade é uma criação do Estado, conseqüência da

constituição do estado civil e que, portanto, está sujeita às normas que dele derivam.

25 GRAU, Eros Roberto. Direito Urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, projeto de lei de desenvolvimento urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983, p. 63.

24

No desenvolver histórico da Idade Moderna, procurou-se dar destaque à

contribuição das doutrinas socialistas (socialismo utópico, socialismo científico e

anarquismo) na caracterização da propriedade. Embora já abordado de maneira sucinta o

aporte marxista nesse cenário, cabe destacar a importância das críticas à propriedade que

partiram de Pierre-Joseph Proudhon e de Friedrich Engels.

As críticas mais radicais à propriedade constam na obra O que é a propriedade? de

Pierre-Joseph Proudhon, um dos expoentes do Socialismo anarquista. Para ele, “[...] nem o

trabalho, nem a ocupação, nem a lei podem criar a propriedade; que ela é um efeito sem

causa [...]”.26 A origem das desigualdades sociais está no Estado, que sempre vai agir em

benefício de um pequeno grupo e em detrimento do restante da sociedade. Ao esboçar seu

entendimento em relação à propriedade, afirma: “A propriedade é o roubo!”.27

De outro lado, a crítica de Friedrich Engels contextualiza a causa das desiguldades

na propriedade, em sua forma privada. Para ele, foi a privatização da propriedade que

trouxe a distinção entre as classes e as divergências de interesses. Assim, o Estado nada

mais é do que um instituto criado com o intuito de mediar os conflitos e, principalmente,

de proteger a propriedade privada.28

De tal forma, demonstrar a importância dos diversos focos doutrinários no

delineamento do direito de propriedade ao longo do tempo é de suma relevância para a

compreensão do reconhecimento e da sistematização da função social como princípio

consagrado no ordenamento jurídico brasileiro.

Aristóteles, filósofo grego, em sua obra A política, dentre outros temas relevantes,

traz contribuição essencial à temática da propriedade privada ao abordá-la de forma

vinculada a uma destinação social.

De início, fala Aristóteles da felicidade e do bem comum, anseios que dão origem à

cidade como uma espécie de comunidade política. Se a cidade é para ele uma criação

26 PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 15. 27 Ibidem, p.16. 28 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987, 158-159.

25

natural, “[...] o homem é por natureza um animal social [...]”,29 que só desenvolve suas

potencialidades vivendo em sociedade. A vida humana, no contexto associativo, visa à

realização de um interesse comum que atribua alguma vantagem ao cidadão. Nesse

contexto, a realização do bem comum traria a felicidade individual. Assim, o Estado passa

a ser visto como uma associação de homens, entrelaçados que estão em busca de sua

parcela de felicidade.

A supremacia do interesse público sobre o particular e o bem comum são evidentes

e marcantes em sua obra. O bem comum deve ser garantido pela Constituição uma vez que

é o objetivo da Sociedade e do Estado. O interesse público, por sua vez, guarda ligação

com o juízo defendido por Aristóteles, de que o todo deve ser colocado antes das

partes,30ou seja, o Estado está à frente do indivíduo. Por isso, em função de o Estado ser a

união de homens, o interesse público deve ser preponderante ao interesse individual.

Entretanto, é a partir da noção de justiça que Aristóteles examina a propriedade

privada. Refere ele que a noção de justiça idealizada para o Estado vai depender da

ponderação dos interesses públicos e privados, ou seja, “[...] a palavra justiça refere-se ao

mesmo tempo ao interesse geral da cidade e ao interesse particular dos cidadãos”.31 O

preceito de justiça determina a concepção de propriedade dada por Aristóteles que, apesar

de ser uma propriedade privada, deve ser utilizada como se comum a todos fosse.

A propriedade compreende as feições do individual e do comum. A harmonização

dessas feições é essencial à vida privada e à vida pública. Aristóteles não busca a

comunidade dos bens, tanto é que entende a propriedade como condição primordial ao

cidadão. O justo está na noção de meio-termo. Na verdade, para ele, são as qualidades do

cidadão, tais como a amizade, que farão com que os bens dos amigos sejam comuns quanto

ao uso, sem que haja a necessidade de privação de qualquer meio de subsistência por parte

do cidadão proprietário.

Já ponderava Aristóteles que “há uma diferença indizível, em termos de prazer,

quando uma pessoa sente que um bem é exclusivamente seu, pois o instinto generalizado

29 ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília: UnB, 1997, p. 15. 30 Ibidem, p. 15. 31 Ibidem, p. 68.

26

de amor próprio certamente não é uma vaidade, e sim um sentimento natural [...]”, e

continua essa explanação evidenciando que “[...] fazer favores e prestar assistência a

amigos ou hóspedes ou companheiros é um grande prazer, e isto só é possível quando se

dispõe de bens próprios”.32

A crítica que ele faz à apropriação coletiva dos bens, baseia-se no entendimento de

que os pertences coletivos despertam pouco interesse e cuidado. Para ele, os homens têm

mais zelo com aquilo que lhes pertence individualmente. Nas palavras de Aristóteles: “[...]

nada inspira menos interesse que uma coisa cuja posse é comum a um grande número de

pessoas. Damos uma importância muito grande ao que propriamente nos pertence,

enquanto que só ligamos às propriedades comuns na proporção do nosso interesse

pessoal”.33

Dessa forma, conclui-se que, para Aristóteles, a propriedade deve ter características

de propriedade privada e de propriedade comum, ou seja, a propriedade deve ir além da

satisfação dos interesses do proprietário, deve ter um uso de interesse comum. Em função

disso, revela-se a importância do meio-termo entre privado e público.

Devido ao caráter teológico da doutrina de Santo Agostinho e de Santo Tomás de

Aquino, em um primeiro momento, parece inconcebível qualquer referência à função

social da propriedade. Entretanto, embora sem tratamento expresso do tema, alguns

fundamentos acerca da função social podem ser apontados.

Em Santo Agostinho, a propriedade privada pode ser interpretada analisando-se o

entendimento referente aos bens como concepção da obra divina.34 A propriedade

particular não é objeto da criação divina, existe apenas a título de providência aos seres

humanos, com o fim de atendimento das necessidades sociais. Para ele, “[...] os bens

oriundos da criação divina não se colocam como sujeitos a uma relação de domínio

32 Ibidem, p. 42. 33 Ibidem, p. 42. 34 Santo Agostinho elabora o entendimento de que as “coisas” se fazem presentes por obra divina no livro: AGOSTINHO, Santo. Confissões. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

27

privada, individualizada, submetida a um critério personalista. Assim, teria Deus criado o

céu e a terra, sem contudo transferi-los a uma relação de domínio individual [...]”.35

No entendimento de Rogério Moreira Orrutea, é basicamente na “ausência de

exclusividade do interesse individual” quanto aos objetos, que se encontra a contribuição

de Santo Agostinho em relação à função social da propriedade. Há, por parte de Agostinho,

a preocupação com a característica de produção da terra, que somente será completa em

sua finalidade quando corresponder a uma função produtiva. Para ele, a função social da

terra é dar frutos, o que deixará de existir no momento em que inexistir produção.36

De outro lado, em Santo Tomás de Aquino, há referência mais direta sobre a

propriedade como direito.37 Influenciado pelo pensamento de Santo Agostinho, ao tratar da

propriedade, vai buscar confrontar o interesse privado e o interesse público. Santo Tomás

de Aquino reconhece ao homem um direito natural de posse dos bens materiais, uma vez

que sua condição como homem é uma condição natural. Os bens disponíveis pertencem a

todos, sendo apenas provisoriamente destinados ao domínio individual. Há que se ressaltar

na doutrina tomista o forte apelo à solidariedade e ao compartilhamento das riquezas. Os

proprietários devem temer a Deus e utilizar suas áreas em proveito de toda a sociedade.38

A admissão do direito de propriedade privada está, então, condicionada ao interesse

individual e ao interesse social. “Destarte, o direito de propriedade é algo resultante e posto

por uma vontade comunitária, geral, donde se extrai o interesse público na conformação do

instituto [...]”.39 É justamente na presença do interesse público que se interpreta a

manifestação do princípio da função social da propriedade. Em outros termos, o

pensamento de São Tomás de Aquino deixa transparecer a preocupação com a utilização

dos bens, buscando a realização do bem comum e do interesse público. Frente a essas

considerações, abre-se espaço para o reconhecimento da função social da propriedade.

35 ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno. Londrina: UEL, 1998, p. 138. 36 Ibidem, p.140. 37 São Tomás de Aquino aborda o uso e o caráter privatista das coisas exteriores na obra: AQUINO, Tomas de. Suma teológica. Porto Alegre: Sulina, 1980. 38 BERTAN, José Neure. Propriedade privada & função social. Curitiba: Juruá, 2005, p. 26. 39 ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno. Londrina: UEL, 1998, p.142.

28

O princípio da função social apenas vem a lume com o envolvimento da Igreja nas

discussões acerca da propriedade, através das Encíclicas Papais. O marco do envolvimento

da Igreja se deu com o papa Xisto IV (Francesco Della Rovere), em 1476, quando da

edição da bula In ducit nos. Com essa bula, pretendeu-se cobrar dos proprietários de terras

o compromisso com a produção, ou seja, a propriedade para ser legítima deveria ser

produtiva e não ociosa. Medidas semelhantes foram tomadas pelo papa Clemente VII

(Giulio de Médici) entre os anos de 1523 a 1534, durante o exercício de seu papado.

Com o papa Leão XIII (Gioacchino Pecci) e a edição da Encíclica Rerum Novarum,

em 1891, há referência expressa ao uso racional da propriedade privada. Nessa Encíclica,

destaca-se a manutenção da propriedade privada, tentando eximi-la da perversidade do

capitalismo liberal. É praticamente uma crítica ao cenário vigente do operariado e uma

tentativa de união de todos na realização de uma ordem justa. Para isso, admite-se a

propriedade privada exigindo o seu exercício em conformidade com os princípios cristãos.

O direito de propriedade privada é reconhecido como um direito natural, condicionado ao

atendimento do interesse público no suprimento das necessidades sociais.

Não se oponha também à legitimidade da propriedade particular o facto de que Deus concedeu a terra a todo o gênero humano para a gozar, porque Deus não a concedeu aos homens para que a dominassem confusamente todos juntos. Tal não é o sentido dessa verdade. Ela significa, unicamente, que Deus não assinou uma parte a nenhum homem em particular, mas quis deixar a limitação das propriedades à indústria humana e às instituições dos povos. Aliás, posto que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade comum de todos, atendendo a que não há ninguém entre os mortais que não se alimente do produto dos campos [...]. De tudo isto resulta, mais uma vez, que a propriedade particular é plenamente conforme a natureza. 40

Quarenta anos após, especificamente em 1931, com o papa Pio XI (Achille Ratti), é

publicada a Encíclica Quadragesimo Anno, com o objetivo de comemorar o 40°

aniversário da Rerum Novarum. Além de reiterar as idéias já postas quarenta anos atrás,

avança no trato com a função social da propriedade ao evidenciar a distinção entre

propriedade privada e o uso que se faz dela.

40 VATICANO. Carta Encíclica: Rerum Novarum. Disponível em: <http://www.vatican.va>. Acesso em: 18 mai. 2007.

29

[...] o direito de propriedade é distinto do seu uso. Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio excedendo os limites do próprio domínio; que porém os proprietários não usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento não pode urgir-se por vias jurídicas. Pelo quê sem razão afirmam alguns, que o domínio e o seu honesto uso são uma e a mesma coisa; e muito mais ainda é alheio à verdade dizer, que se extingue ou se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele.41

Por sua vez, com João XXIII (Angelo Giuseppe Roncalli), em 1961, foi elaborada a

Encíclica Mater et Magistra, que trata da evolução da questão social à luz da doutrina

cristã. Essa Encíclica destaca o princípio da função social, questionando a legitimidade da

propriedade como direito natural, quando ela não atende o princípio da função social. A

propriedade deve satisfazer as necessidades materiais dos homens, pois, agora, passa a

estar vinculada a uma verificação de ordem social e coletiva. O exercício do direito de

propriedade deve levar em conta a utilidade para todos.42

Por fim, é com a Constituição Pastoral Gaudium et Spes43 de 1965, que a Doutrina

Social da Igreja aponta para a necessidade de conscientização do homem em relação à sua

natureza social. Somente consciente de seu compromisso social, o homem se vê

comprometido com o que o rodeia e passa a reconhecer a importância da função social da

propriedade para o bem comum.

Thomas Hobbes, na obra Leviatã ou Matéria, Forma ou Poder de um Estado

Eclesiástico e Civil, busca fazer distinção entre o estado de natureza e o estado civil. Para

ele, no estado de natureza, os homens vivem em liberdade absoluta, sem leis e em

constante luta, ao passo que, no estado civil, através de um pacto social, os homens

renunciam a liberdade natural em nome de um poder soberano, com vistas à obtenção de

segurança e paz. Naturalmente, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder

comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquelas condições a

que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”.44

41 VATICANO. Carta Encíclica: Quadragesimo Anno. Disponível em: <http://www.vatican.va>. Acesso em: 18 mai. 2007. 42 VATICANO. Carta Encíclica: Mater et Magistra. Disponível em: <http://www.vatican.va>. Acesso em: 18 mai. 2007. 43 VATICANO. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual. Disponível em: <http://www.vatican.va>. Acesso em: 18 mai. 2007. 44 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 75.

30

Hobbes reconhece tanto o Estado quanto a anarquia como dois males. O menor

deles é o Estado, pois necessário. No seu entender, a passagem do estado de liberdade para

o estado de servidão é preço pago pela segurança. A solução posta por Hobbes para o

estado natural (anarquia) leva a um estado absoluto.45

É através do contrato social que se dá a renúncia de todos os direitos naturais e a

transferência de poder em favor de um único homem ou assembléia. O que move os

homens para o estado civil é o instinto de autoconservação, de garantia de segurança e de

paz. Dessa forma, estando o homem em sua condição natural, na qual todos têm direito a

todas as coisas, é impossível existir propriedade. Para Hobbes, “outra conseqüência da

mesma condição é que não há propriedade, nem domínio, nem distinção entre o meu e o

teu; só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir, e apenas enquanto for

capaz de conservá-lo”.46

Nesse sentido, aponta Hobbes que a propriedade não é um direito natural, mas um

benefício concedido pelo poder soberano por meio da instituição do Estado e das leis. A

propriedade, de fato, é um efeito do Estado através de um ato do soberano. Com o contrato

social e o estabelecimento de um estado civil, fica evidente a forte relação entre

propriedade e justiça, pois a instituição do poder soberano justifica-se e tem como

condição de existência o entendimento da justiça como “a vontade constante de dar a cada

um o que é seu”.47 Assim, para Hobbes:

Onde não há o seu, isto é, não há propriedade, não pode haver injustiça. E onde não foi estabelecido um poder coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, pois todos os homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde não há Estado nada pode ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e é também só aí que começa a haver propriedade.48

Cabe ressaltar que Hobbes destaca a existência de limitações à propriedade, por

parte do poder soberano, em função da manutenção da paz social. Para ele, a lei civil tem a

45 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant. 4. ed. Brasília: UnB, 1997, p. 45. 46 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 77. 47 Ibidem, p. 86. 48 Ibidem, p. 86.

31

incumbência de limitar a liberdade dada pela lei da natureza.49 Então, no estado civil, só há

a liberdade que a lei permite, nos limites da obrigação civil. Nessa perspectiva, o direito de

propriedade, que é um direito excludente para os outros homens que não o proprietário,

não exclui o direito de o Estado limitá-la. De fato, uma propriedade absoluta e ilimitada

prejudica a manutenção do Estado e da ordem social.

A verdadeira essência da propriedade em Hobbes consiste no fato de ela ser um

direito criado, fruto do Estado e não decorrência de um direito natural. A propriedade é

prerrogativa dada ao poder soberano através das leis civis, que também tem a finalidade de

limitar o direito de propriedade em razão da necessidade de manutenção do Estado e em

função do bem comum. Dessa forma, a liberdade civil que assiste ao detentor da

propriedade privada é uma liberdade condicionada às obrigações da vida em sociedade.

John Locke foi um dos principais pensadores dos séculos XVII e XVIII. Suas idéias

deram origem ao Iluminismo e embasaram teoricamente o Liberalismo. Sua teoria não é

propriamente oposta à teoria desenvolvida pelo pensamento cristão, entretanto, sobre seus

escritos recaíram acusações de ateísmo e materialismo. Incompreensões à parte, é em

Locke que se encontra o principal embasamento da teoria individualista da propriedade.

O ponto de partida de Locke é a afirmação do estado natural como o estado

originário dos homens, que não conheciam outras regras a não ser as advindas das leis

naturais. O estado de natureza, embora seja um estado ideal para os seres racionais, não é

mais suficiente no momento em que os homens não agem sempre racionalmente. No

estado de natureza, todos os indivíduos se guiam pela liberdade absoluta. Por não haver

nenhum poder que lhes seja superior, acabam, por vezes, retribuindo ofensas de forma

desproporcionada. Assim, o estado de natureza, que deveria ser um estado de paz,

transforma-se em um estado de guerra. É justamente para se livrar do estado de guerra e de

incertezas que os homens constituem o estado civil.50

Para Locke, frente às opções de liberdade sem segurança ou de segurança sem

liberdade, a alternativa é encontrar uma forma de conciliar a liberdade do estado de

49 Ibidem, p. 174. 50 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant. 4. ed. Brasília: UnB, 1997, p. 37.

32

natureza com a segurança proporcionada pelo estado civil. Essa alternativa buscada por ele

leva à ideologia do estado liberal.

Em sua obra Segundo tratado sobre o governo, sustenta a origem do estado civil no

desejo de os homens conservarem os direitos naturais, principalmente à vida e à

propriedade. Para constituírem o estado civil, os homens não renunciam os direitos

naturais, como Hobbes pensava, ao contrário, têm seus direitos naturais assegurados pelas

leis. O que ocorre é uma espécie de integração que permite a instituição do Estado sem a

perda dos benefícios do estado natural. Dessa forma, a única renúncia feita pelos homens é

a do direito de fazer justiça por si mesmos. É com a passagem do estado natural para o

estado civil, através do contrato social, que os homens vêem preservado o seu direito

natural à propriedade.51

Há, portanto, uma clara distinção entre Locke e Hobbes em relação ao direito de

propriedade. Hobbes entende a propriedade como um direito criado em decorrência do

surgimento do Estado, ao passo que Locke o apresenta como um direito inerente à natureza

do homem. Assim, para Locke, a propriedade é um direito natural que precede a

constituição do estado civil. Esse entendimento fica evidente ao afirmar que:

A fim de evitar esses inconvenientes que perturbam as propriedades dos homens no estado de natureza, estes se unem em sociedade para que disponham da força reunida da sociedade inteira para garantir-lhes e assegurar-lhes a propriedade, e, para que gozem de leis fixas que a limite, por meio das quais todos saibam o que lhes pertence. É para esse fim que os homens transferem todo poder natural que possuem à sociedade para a qual entram, e a comunidade põe o poder legislativo nas mãos que julga mais convenientes para esse encargo, a fim de que sejam governados por leis declaradas, senão ainda ficarão na mesma incerteza a paz, a propriedade e a tranqüilidade, como se encontravam no estado de natureza.52

Em relação à forma de aquisição da propriedade no estado natural, dispõe Locke

que o homem que tomar uma porção de terra para si e trabalhar sobre ela, adquire a

propriedade, pois é justamente o trabalho que a legitima. “A extensão de terra que um

homem lavra, planta, melhora, cultiva, cujos produtos usa, constitui a sua propriedade.

51 LOCKE, John. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 34. 52 Ibidem, p. 88.

33

Pelo trabalho, por assim dizer, separa-a do comum”.53 Entretanto, mesmo a propriedade

sendo um direito natural, ela pode sofrer algumas limitações, uma vez que, no estado civil,

não é aceita a apropriação de terras além dos limites necessários à subsistência. Apropriar-

se de recursos, além do necessário, é desperdício, que caracteriza a intervenção de

terceiros.54

Cabe destacar que a propriedade privada, na teoria de Locke, é um dos fins maiores

da sociedade, pois os indivíduos uniram-se justamente para assegurá-la. Contra a

propriedade legítima (constituída em função do trabalho na terra, que não ultrapassa os

limites do que se tem condição de cultivar), não se pode opor qualquer intervenção do

governo ou dos indivíduos, pois é absoluta, exclusiva e ilimitada. A intervenção na

propriedade privada contraria o fim para o qual o Estado foi instituído.55

Assim, conclui-se que Locke, apesar de entender a propriedade como um direito

natural, absoluto, exclusivo e ilimitado, compreende que essas características apenas se

estendem às propriedades que estão legitimas pelo trabalho. Inegavelmente, deixa

transparecer que o cumprimento da função social se dá por meio da utilização dessa

propriedade através do trabalho. Por isso, quando o homem se apodera de um montante de

terras que não tem condições de explorar com seu trabalho, fica evidente a possibilidade de

intervenção.

De outro modo, a teoria desenvolvida por Jean-Jacques Rousseau é composta de

entendimentos derivados do jusnaturalismo. Contudo, a solução que propõe ao problema

da Constituição estatal é diferenciada dos caminhos antes traçados (de liberdade sem paz

ou paz sem liberdade). Para ele, entre o estado natural e o estado civil, deve-se optar pelo

estado civil, visto que entre eles não há meio-termo. Em virtude desse entendimento,

desenvolve a teoria de Hobbes em um sentido democrático, fundamentando sua teoria no

problema da compatibilidade entre Estado e liberdade.

53 Ibidem, p. 47. 54 Ibidem, p. 47. 55 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Visualbooks, 2003, p. 41.

34

Com a pretensão de verificar o entendimento de Rousseau acerca do estado social e

da propriedade, são importantes duas obras: Do contrato social e Discurso sobre a origem

e fundamentos da desigualdade entre os homens.

Na obra Do contrato social, Rousseau procura elaborar uma fórmula que

compatibilize liberdade e Estado. Para isso, examina como se dá a passagem do estado

natural para o estado civil. A solução encontrada por ele está na fórmula do contrato. Para

avaliar essa passagem, liga-se, em partes, ao entendimento de Hobbes. Dessa forma,

entende que o contrato social é um ato coletivo de renúncia aos direitos naturais, pôr cada

um em favor de todos, e não em favor de um terceiro. Com a renúncia, abandona-se a

liberdade natural para se obter uma liberdade superior que é a liberdade civil (liberdade no

estado).56 Para Rousseau, é preciso “encontrar uma forma de associação que defenda e

proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um,

unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto

antes”.57

O estado civil, constituído através do contrato social, cujo núcleo fundamental é o

permanecer tão livre quanto antes, é elogiado por Rousseau. Com o contrato social, a

mudança mais importante foi a substituição do instinto humano pela noção de justiça.

Corroborando com o exposto, Rousseau frisa: “o que o homem perde pelo contrato social é

a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar. O que

com ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo que possui”.58

Na teoria de Rousseau, com o contrato social, há a garantia da posse natural do

primeiro ocupante que, com a instituição do Estado e das leis, torna-se proprietário. Nesse

sentido, compartilhando do entendimento de Hobbes, a propriedade como direito somente

tem origem a partir da instituição do Estado. Entretanto, assim como em Locke, também

em Rousseau, é o trabalho realizado pelo homem, no cultivo da terra, que vai caracterizar a

legitimidade do direito de propriedade.

56 BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant. 4. ed. Brasília: UnB, 1997, p. 46-47. 57 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 38. 58 Ibidem, p. 42.

35

Cabe ressaltar que o direito de propriedade, como um direito privado, estará sempre

subordinado ao direito que a comunidade tem sobre todos os bens, pois a propriedade

como direito está vinculada ao atendimento do bem comum. Com base nisso, pode-se

afirmar que também em Rousseau há uma forma embrionária de funcionalização da

propriedade, subordinada que está aos direitos da coletividade.

É na obra Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens

que Rousseau faz críticas à propriedade privada. Para ele, a origem da desigualdade está na

propriedade. Sua intenção não era a de contestar a propriedade, mas salientar as

desigualdades que dela resultavam. A sua crítica fica evidente com a afirmação de que “o

verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno,

lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acredita-

lo”.59 É justamente com a instituição da propriedade como direito, através das leis, que há a

destruição da igualdade e da liberdade do estado de natureza. O direito de propriedade é a

usurpação de um direito irrevogável, que subordina toda a coletividade e causa inúmeras

desigualdades.

Por outro lado, Thomas More, filósofo humanista, acreditava que a solução dos

problemas sociais estava intimamente ligada à adequada utilização da razão e à sujeição

dos homens à natureza. Seu principal livro, A Utopia, é uma obra política que, além de

constituir uma crítica à estrutura social e política da Inglaterra, compõe uma importante

apreciação da propriedade enquanto direito privado.

Para elaborar A Utopia, Thomas More inspirou-se em A República de Platão. Na

República, Platão fala de uma cidade ideal. Na Utopia, More fala de um Estado ideal, de

organização perfeita, no qual prevalecem a igualdade e a justiça. Nessa sua obra, a Utopia

é uma ilha que abarca a sociedade ideal. É através da ficção da ilha da Utopia, fazendo um

paralelo entre a Inglaterra e a ilha, que o filósofo aponta as imperfeições do Estado inglês.

De tal forma, refere ele que a Inglaterra é marcada por leis injustas, pela ganância e por

todos os tipos de explorações advindas da propriedade privada, ao passo que, na ilha de

Utopia, as instituições são justas, as pessoas vivem em harmonia e em comunidade de

bens.

59 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 265.

36

Para More, uma sociedade justa não precisa possuir muitas leis, mas necessita de

riquezas repartidas. Assim, uma de suas principais críticas é à propriedade privada e aos

males que dela advêm. More é um dos primeiros a contestar a propriedade privada e a

defender a comunidade dos bens. É com base nesse seu pensamento, que, anos depois,

Pierre-Joseph Proudhon vai chamar a propriedade de roubo.

Aponta More que a propriedade privada é a causadora dos males do Estado, pois é

contrária à justiça. A sua crítica à propriedade está pautada nos valores da igualdade e da

justiça, que são ameaçados pela concepção privatista da propriedade. Nesse sentido,

entende que

a igualdade é, creio, impossível num Estado em que a posse é particular e absoluta; porque cada um se apóia em diversos títulos e direitos para atrair para si tudo quanto possa, e a riqueza nacional, por maior que seja, acaba por cair na posse de um reduzido número de indivíduos que deixam aos outros apenas indigência e miséria.60

Buscando a solução para restabelecer a igualdade e a justiça Thomas More, aponta

a necessidade de eliminação da propriedade privada e a adoção da comunidade dos bens.

Assim, em seu entendimento, “[...] o único meio de distribuir os bens com igualdade e

justiça, e de fazer a felicidade do gênero humano, é a abolição da propriedade. Enquanto o

direito de propriedade for o fundamento do edifício social, a classe mais numerosa e mais

estimável não terá por quinhão senão miséria, tormentos e desespero”.61 More não acredita

que medidas limitadoras ao direito de propriedade possam solucionar os problemas por ela

causados, pois, para ele, não passam de medidas paliativas.62

Portanto, pode-se dizer que, na teoria de More, recrimina-se o individualismo e

incentiva-se o uso comum dos bens. Para ele, onde não há a propriedade privada, há um

Estado ideal, de igualdade e de justiça para todos os homens.

Afirma-se que o primeiro a mencionar a expressão “função social”, ligando-a à

propriedade, foi o criador do positivismo, Augusto Comte, em sua obra Opúsculos de

60 MORE, Thomas. A utopia. Tradução de Jeferson Luiz Camargo e Marcelo Brandão Cipolla. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 52. 61 Ibidem, p. 53. 62 Ibidem, p. 53.

37

filosofia social.63 Contudo, foi somente com Leon Duguit, grande publicista francês, que se

desenvolveu a teoria da função social da propriedade, de modo a contribuir

significativamente para a incorporação da função social como princípio em diversos

ordenamentos jurídicos.

As indagações trazidas por Duguit evidenciam a justificação da função social em

uma construção lógica, de premissas extraídas da observação do papel social a ser exercido

pelos homens. Com uma análise sutil, no âmbito da doutrina do direito social, vem a lume

com Duguit, uma nova faceta da propriedade particular, entremeada do princípio da função

social.

Duguit procura se desfazer do caráter absoluto do direito de propriedade, admitido

em virtude da adoção de institutos do Direito Romano e do Código de Napoleão. Para ele,

“[...] a propriedade cessa de ser um direito subjetivo do indivíduo e tende a tornar-se uma

função social do detentor de capitais móveis e imóveis”.64 A propriedade deixa de ser o

direito subjetivo de caráter individual e passa a ser uma função social do detentor do bem.

Em uma análise superficial, quer parecer que Duguit tem posicionamento contrário à

propriedade como um direito particular. Essa conclusão se baseia em uma análise mal

elaborada de seu pensamento, pois não parece ter pretendido Duguit incitar a abolição da

propriedade privada da ordem jurídica. Muito ao contrário, apenas trabalha ele sobre a

modificação da noção jurídica da propriedade privada em observância à função social do

detentor do bem. Nessa perspectiva, deve haver uma mudança no comportamento do

proprietário ao exercer seu direito, que deve se basear em uma finalidade social e não

apenas em uma finalidade individual. É justamente a finalidade social que justifica a

propriedade privada e a legitima perante o interesse público, que deverá então protegê-la e

garanti-la. Assim, a função social em Duguit, é, basicamente, resultado da condição do

homem em sociedade.

63 Embora Augusto Comte não tenha desenvolvido trabalho específico sobre a função social da propriedade reconheceu a necessidade do exercício da propriedade particular em combinação com interesses de ordem social. Para ele, o proprietário deve exercer seu direito de propriedade sem se descuidar do bem comum. Na teorização de Comte, nenhuma noção de direito pode ser fundada na individualidade, pois o positivismo não admite deveres que não seja de todos para com todos. Em seu entendimento, o exercício da propriedade particular está envolto de um interesse geral, que se traduz em função social. COMTE, Augusto. Opúsculos de filosofia social. Tradução de Ivan Lins e João Francisco de Souza. São Paulo: Editora Globo, 1972. 64 Na expressão literal: “[...] la propriété cesse d’ être le droit subjectif de l’ individu et tend à devenir la fonction sociale du detenteur de capitaux mobiliers et immobiliers”. DUGUIT, Leon. Manuel de droit constitutionnel. 2. ed. Paris: Fontemoing, 1911, p. 295.

38

Para uma correta análise da teoria da função social da propriedade em Duguit, é

necessário iniciar pelo questionamento por ele feito ao fundamento do direito, diante dos

chamados direitos individuais. De início, questionou ele se o fundamento e a existência de

um direito independe da instituição do Estado. Pois bem, para Duguit, o direito não

depende do Estado ou de alguma autoridade política para existir, pois é anterior ao Estado.

Assim, em sua concepção, as regras de direito surgiram em decorrência da necessidade da

sociedade, de tal forma que “não é impossível demonstrar que fora de uma criação por

parte do Estado, o direito tem um fundamento sólido, que ele é anterior e superior ao

Estado e que, como tal, ele se impõe ao próprio Estado”.65

Por esse entendimento, buscando comprovar seu entendimento acerca do direito e

da função social da propriedade, utilizou-se da classificação de dois grupos de doutrinas: as

doutrinas do direito individual e as doutrinas do direito social. É com base no contraponto

dessas duas doutrinas, que Duguit vai chegar à justificação da função social em sua teoria.

As doutrinas individualistas fundamentam-se no entendimento de que o homem é

portador de direitos subjetivos (direitos individuais naturais). O homem, por ter nascido

livre, tem o direito de se desenvolver livremente. A todos os homens cabe então o dever de

respeitar o desenvolvimento de seus semelhantes. Para a doutrina do direito individual, é

justamente essa obrigação que sustenta e que dá fundamento ao direito. Duguit, por seu

turno, critica os postulados dessa doutrina por compreender que a afirmação do homem

natural, livre e detentor de direitos constituídos em função dessa liberdade, deve ser

considerada apenas uma abstração não condizente com a realidade. Para ele, esse homem

que a doutrina se refere, é membro da coletividade, pois vive em sociedade. E, em sendo

membro da sociedade, está sujeito às obrigações necessárias para a manutenção da vida em

sociedade.66

De outro lado, as doutrinas socialistas partem do direito objetivo para chegar ao

direito subjetivo, da norma social para chegar ao direito individual, da mesma forma que

partem da sociedade para chegar ao indivíduo. A doutrina do direito social tem por

pressuposto que o homem é um ser social por natureza, ao qual se impõem regras e

65 Ibidem, p. 2. 66 DUGUIT apud ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno. Londrina: UEL, 1998, p.156.

39

obrigações sociais com os outros homens. Baseado nas doutrinas socialistas, Duguit vai

desenvolver sua teoria, relacionando-a a questões como a interdependência social e a

solidariedade como fundamentos do direito. Para ele, se o homem vive em sociedade, é

lógico concluir que o direito se fundamenta na solidariedade social, sem a qual, não

haveria sociedade. Entretanto, a vivência em sociedade não retira do homem a consciência

de sua individualidade. Dessa forma, estão postos por Duguit, através dessas colocações,

os princípios elementares de sustentação da função social da propriedade, que deve

atender, ao mesmo tempo, ao interesse individual e ao interesse social.67

Duguit assinala ainda que a lei positiva, para ser legítima, deve ser a expressão do

princípio da solidariedade social. Ao homem se impõe a regra de que não deve fazer nada

que atente contra essa solidariedade. Complementando o que já foi dito, salienta:

L’ homme vivant en société a des droits; mais ces droits ne sont pas des prérogatives qui lui apparttiennent en sa qualité d’ homme; ce sont des pouvoirs qui li appartiennent parce que, étant homme social, il a um devoir à remplir et qu’ il doit avoir le pouvoir de remplir ce devoir. On voit qu’ on est loin de la conception du droit individuel. Ce ne sont pas les droits naturels, individuels, imprescritibles de l’ homme, qui sont le fondement de la règle de droit s’ imposant aux hommes vivant en société.68

Para Duguit, o homem já nasce com um dever social a ser cumprido. O exercício

desse dever lhe é instrumentalizado através de direitos que lhe são conferidos pela ordem

social. Nesse sentido, para ele, há uma transição do paradigma dos direitos subjetivos, de

caráter individualista, para um paradigma mais condizente com a realidade, uma vez que

estão baseados nas funções que cada membro da sociedade deve desempenhar. Frente a

esse entendimento, a propriedade implica para o detentor, a obrigação de empregá-la na

produção de riqueza social.

No entendimento de Fernanda de Salles Cavedon, Duguit pretendeu expressar que

nem o homem, nem a coletividade têm direitos. O que os indivíduos têm em sociedade é

uma determinada função a cumprir, uma certa atividade a executar. É esse o fundamento

67 Ibidem, p. 157. 68 Pode se traduzir por: “O homem vivendo em sociedade tem direitos, mas esses direitos não são prerrogativas que lhe pertencem em sua qualidade de homem. São poderes que lhe pertencem, porque sendo homem social, ele tem um dever a cumprir e deve ter o poder para cumprir esse dever. Vê-se que se está longe da concepção do direito individual. Não são os direitos naturais, individuais, imprescritíveis do homem que são o fundamento da regra de direito que se impõe aos homens vivendo em sociedade”. DUGUIT, Leon. Manuel de droit constitutionnel. 2. ed. Paris: Fontemoing, 1911, p. 12.

40

da regra de direito que a todos se impõe. Em conseqüência disso, não existem direitos

individuais e coletivos, o que existe é uma função social a cumprir.69

La propiedad no es un derecho; es una función social. El propietario, es decir, el poseedor de una riqueza tiene, por el hecho de poseer esta riqueza, una función social que cumplir; mientras cumple esta misión sus actos de propietario están protegidos. Si no la cumple o la cumple mal, si por ejemplo no cultiva su tierra o deja arruinarse su casa, la intervención de los gobernantes es legítima para obligarle a cumplir su función social de propietario, que consiste en asegurar el empleo de las riquezas que posee conforme a su destino.70

Dessa forma, observa-se que a propriedade em Duguit se apresenta como uma

instituição jurídica, constituída em função de uma necessidade econômica, que abarca

interesses individuais e coletivos. A propriedade se traduz na idéia de um poder-dever por

parte do proprietário. Por sua vez, a esse poder-dever se estende uma dupla função: a

satisfação das necessidades particulares e a satisfação das necessidades da coletividade. É

com base nesse entendimento que Duguit afirma que o proprietário não tem um direito,

mas tem um poder-dever e que a propriedade não é um direito subjetivo, mas uma situação

jurídica objetiva, uma função social.

Após breve digressão à contribuição doutrinária na caracterização da propriedade e

da função social, como forma de elucidar o delineamento do direito de propriedade ao

longo do tempo, é mister abordar a influência da evolução histórica dos direitos

fundamentais no direito de propriedade, a fim de estabelecer o momento histórico e os

fatores que contribuíram para a consagração da função social da propriedade como

princípio jurídico.

1.3 A influência da evolução histórica dos direitos fundamentais no direito de propriedade

Para que se possam compreender o direito de propriedade e a função social como

direitos fundamentais e princípios constitucionais, tão importante quanto à evolução

histórica da noção de propriedade e à contribuição doutrinária ao tema, é verificar as

69 DUGUIT apud CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Visualbooks, 2003, p. 49. 70 Ibidem, p. 50.

41

conseqüências da constitucionalização dos mesmos. Para atingir esse propósito, busca-se

demonstrar, através da evolução histórica dos direitos fundamentais e de sua

constitucionalização no ordenamento jurídico brasileiro, a importância das dimensões de

direitos na reconfiguração das feições do direito de propriedade.

Em um primeiro momento, é necessário fazer a distinção entre “direitos humanos”

e “direitos fundamentais”. Conforme explicita Ingo Wolfgang Sarlet, embora exista uma

confusão entre os dois termos, os direitos fundamentais sempre serão direitos humanos,

uma vez que sua titularidade será sempre vinculada ao ser humano. A distinção reside no

fato “de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano

reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado

Estado” ao passo que o termo “direitos humanos” está relacionado “com os documentos de

direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser

humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem

constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e

tempos”.71

De tal forma, fica evidente que os direitos humanos tratam de questões relativas à

universalização dos direitos, ao passo que os direitos fundamentais72 envolvem a

positivação dos direitos humanos na esfera dos Estados. A abordagem do direito de

propriedade e do princípio da função social da propriedade está inserida no contexto dos

direitos fundamentais73. A par disso, faz-se necessário salientar que não se pretende

abordar a contribuição jusnaturalista e juspositivista em relação ao surgimento dos direitos

fundamentais, nem o tema da hierarquização e da colisão dos direitos fundamentais, por

71 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 33. 72 Segundo a concepção de Carl Schmitt, citado por Paulo Bonavides, há dois critérios formais de caracterização dos direitos fundamentais. “Pelo primeiro, podem ser designados por direitos fundamentais todos os direitos ou garantias nomeados e especificados no instrumento constitucional. Pelo segundo, tão formal quanto o primeiro, os direitos fundamentais são aqueles direitos que receberam da Constituição um grau mais elevado de garantia ou de segurança; ou são imutáveis (unabaenderliche) ou pelo menos de mudança dificultada (erschwert), a saber, direitos unicamente alteráveis mediante lei de emenda à Constituição”. SCHMITT apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 515. 73 Na definição de Dalmo de Abreu Dallari, os direitos fundamentais “são aqueles indispensáveis para que o ser humano possa atender a suas necessidades básicas, materiais, afetivas e espirituais, vivendo com dignidade e podendo realizar plenamente sua personalidade”. DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e constituinte. 2. ed. Saraiva: São Paulo, 1984, p. 28.

42

não serem objeto direto desse estudo.74 O que se pretende, de forma breve, é destacar as

dimensões de direitos fundamentais a fim de evidenciar os fatores desencadeantes do

surgimento da função social como princípio constitucional.

Os direitos fundamentais apresentaram-se com o surgimento do Estado

Constitucional75, no século XIX, como conseqüência da evolução da sociedade. A

historicidade demonstra que os direitos fundamentais não são resultado de um

acontecimento histórico determinado, mas de todo um processo. Em decorrência disso,

perante a doutrina tradicional, os direitos fundamentais podem ser estudados e

classificados, dividindo-os em dimensões como fazem Robert Alexy e Willis Santiago

Guerra Filho; em gerações conforme Norberto Bobbio e Paulo Bonavides, ou então

classificados conforme arrolados na Constituição Federal de 1988, como o faz José Afonso

da Silva, o que não implica uma diferenciação de valores entre os direitos fundamentais.76

É importante destacar o entendimento de Norberto Bobbio, de que os direitos

fundamentais surgem e se modificam conforme as condições históricas, ou seja, são

fenômenos sociais, por isso não se pode lhes atribuir fundamento absoluto, pois são

historicamente relativos. A prova de que os direitos fundamentais surgiram em decorrência

de fenômenos sociais históricos e sucessivos fica evidente no momento em que se observa

que somente, em uma sociedade em constante transformação, podem surgir exigências de

novos direitos, antes inimagináveis.77

Os direitos fundamentais de primeira dimensão foram produto do pensamento

liberal do século XVIII. Tiveram por fundamento a hipótese do estado de natureza, que foi, 74 Para pesquisa detalhada desses temas ver: ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 3. ed. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2002. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002. LOPES, Ana Maria D’Ávila. Democracia hoje: para uma leitura crítica dos direitos fundamentais. Passo Fundo: UPF, 2001. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 75 Para Canotilho o Estado Constitucional é caracterizado como o Estado que é constituído ou organizado segundo uma constituição. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002, p. 81-83. 76 Em relação à terminologia empregada, critica-se a expressão geração por implicar o entendimento de uma sucessão cronológica, de alternância de uma geração para outra, preferindo-se o termo dimensão, já que o reconhecimento de novos direitos fundamentais apresenta-se como um processo cumulativo e de complementariedade. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 50. O mesmo entendimento consta em: GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 40. 77 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 18-19.

43

na verdade, a tentativa racional de uma ficção doutrinária, para justificar as novas

exigências da sociedade burguesa. Esses direitos decorreram da necessidade de defesa

contra os poderes do Estado, em busca dos direitos de liberdade. São direitos de cunho

individualista, pois pautam pela não-intervenção estatal na esfera privada. Em decorrência

disso, são considerados direitos de cunho “negativo”, devido à necessidade de abstenção

por parte do poder público.78 A característica desses direitos é terem como titular o

indivíduo, refletindo a subjetividade como traço característico. Foram os primeiros direitos

fundamentais a serem positivados. Frente a isso, fica evidente uma clara separação entre

sociedade e Estado, valorizando-se o homem singular, o homem das liberdades abstratas.79

Compreende os direitos individuais ou civis e políticos da primeira dimensão o direito de

propriedade privada.

Em contrapartida, os direitos fundamentais de segunda dimensão são cingidos pelo

princípio da igualdade, em um processo de socializar o Estado, criando consciência da

necessidade de proteção da sociedade e não apenas do indivíduo. Isso se deve,

historicamente, à superação da visão liberalista, em função do desenvolvimento industrial e

de novas relações intersubjetivas no século XIX, de caráter social e econômico. Surgiram,

em decorrência da constatação de que a liberdade, por si só, não dava garantia de gozo aos

direitos de primeira dimensão. Com isso, atribuiu-se comportamento ativo ao Estado na

busca de justiça social, passando esse a ter uma dimensão “positiva”, visto que há

liberdade, mas por intermédio do Estado.80 São os conhecidos direitos econômicos, sociais

e culturais, nos quais se insere a função social da propriedade como direito fundamental e

princípio da ordem econômica e financeira.

Os direitos fundamentais de terceira dimensão, também conhecidos como direitos

de solidariedade ou de fraternidade, têm como traço característico o desprendimento da

titularidade de direitos por parte do homem-indivíduo, passando a considerar e a proteger o

gênero humano, cujos direitos passam a ter titularidade coletiva ou difusa. O direito ao

meio ambiente saudável e ecologicamente equilibrado constitui um dos direitos de terceira

dimensão, resultado de novas reivindicações do ser humano e de grandes transformações

78 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 51-52. 79 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 517-518. 80 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 52-53.

44

no Estado Social.81 Dessa maneira, com o advento do Estado Democrático de Direito, há a

reformulação das idéias liberais e a construção do direito à solidariedade, que não depende

apenas de um Estado ativo, mas que depende igual e fundamentalmente da participação da

sociedade civil.82

Assim, os direitos de primeira dimensão ganham novas feições quando do

surgimento de novos direitos fundamentais. Nesse caso, “[...] o direito individual de

propriedade, num contexto em que se reconhece a segunda dimensão dos direitos

fundamentais, só pode ser exercido observando-se sua função social, e com o aparecimento

da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função ambiental”.83 Dessa afirmação,

depreende-se que o direito de propriedade absoluta como era entendida, não pode mais

assim ser tratada em função do surgimento de novas dimensões de direitos. Deve-se, para

tanto, conjugar o direito de propriedade com as novas dimensões que lhes são atribuídas,

ou seja, a propriedade individualista e ilimitada passa a estar vinculada a uma função social

e incorpora valores ambientais que passam a integrar seu conteúdo.

Cabe salientar que parte da doutrina constitucional entende que, enquanto os

direitos de primeira dimensão possuem aplicabilidade imediata, os direitos de segunda e

terceira dimensões estão sujeitos a uma progressividade, traduzida em normas

programáticas.84 Nesse sentido, a aplicação desses direitos fica condicionada ao

desenvolvimento de políticas que lhes viabilizem materialmente. Nas palavras de Ana

Maria D’Ávila Lopes, “do ponto de vista conceitual e histórico, tal distinção parece válida,

pois, se, para vigência concreta dos direitos individuais e políticos, apenas se requer a

abstenção do Estado” para que haja a concretização dos direitos sociais e dos direitos

81 Ibidem, p. 53-54. 82 José Alcebíades de Oliveira Junior destaca ainda, o surgimento de novos direitos, de quarta e quinta geração. Para ele, são direitos de quarta geração “os direitos de manipulação genética, relacionados à biotecnologia e bioengenharia, e que tratam de questões sobre a vida e a morte, e que requerem uma discussão ética prévia”. Já os direitos de quinta geração apresentam-se “com a chamada realidade virtual, que compreendem o grande desenvolvimento da cibernética na atualidade, implicando o rompimento de fronteiras, estabelecendo conflitos entre países com realidades distintas, via internet”. OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p.86. 83 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999, p. 40. 84 Para Ingo Wolfgang Sarlet, as normas programáticas são aquelas “que apresentam a característica comum de uma (em maior ou menor grau) baixa densidade normativa, ou, se preferirmos, uma normatividade insuficiente para alcançarem plena eficácia, porquanto se trata de normas que estabelecem programas, finalidades e tarefas a serem implementados pelo Estado, ou que contêm determinadas imposições de maior ou menor concretude dirigidas ao Legislador”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 280.

45

difusos “impõe-se ao Estado uma certa obrigação de fazer, consistente em criar e propiciar

as condições materiais de tais direitos”.85

No entanto, em que pese essa diferenciação, quanto à classificação das normas

constitucionais, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), no art. 5°, §1°, estatui que as

normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, de tal

forma, que basta estarem vigentes para que possam produzir efeitos. Entretanto, o fato de

alguns direitos fundamentais necessitarem de ato legislativo posterior, que lhes configure

exigibilidade, tem provocado controvérsias.

Em verdade, o argumento da função social da propriedade como norma

constitucional programática serve apenas para justificar a não-aplicação do princípio. É

possível defluir das disposições constitucionais referentes ao princípio, que o mesmo se faz

eficaz simplesmente por fazer parte do texto constitucional. Para Liana Portilho Mattos,

não é característica dos direitos fundamentais a necessidade de regulamentação. Em seu

entendimento, uma coisa é um princípio ter conteúdo determinado e preciso, outra, é o

texto constitucional conter princípios carecedores de preenchimento pelo intérprete. Para a

referida autora, esse é o caso do princípio da função social da propriedade. Mesmo

ocorrendo uma profunda identidade entre os conceitos jurídicos indeterminados e as

normas programáticas, a função social da propriedade não é uma norma programática.

Relegar a função social à norma programática é atribuir o mesmo perfil ao direito de

propriedade.86

Cabe ainda destacar que o significado de “aplicação imediata”, a que se refere o art.

5°, §1° da CF/88, envolve os conceitos de eficácia (eficácia jurídica e eficácia social) e de

efetividade. Para José Afonso da Silva, a eficácia consiste na aptidão do ato jurídico para

produzir efeitos e irradiar suas conseqüências. Já a eficácia jurídica da norma assinala a sua

qualidade em produzir efeitos jurídicos ao regular as situações indicadas por ela. Nesse

caso, basta a possibilidade de produzir efeitos jurídicos, não sendo necessária a efetividade

dos efeitos para que ocorra a eficácia jurídica da norma, ou seja, diz respeito à

aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma. A eficácia jurídica é inerente a

85 LOPES, Ana Maria D’Ávila. Democracia hoje: para uma leitura crítica dos direitos fundamentais. Passo Fundo: UPF, 2001, p. 70. 86 MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003, p. 100-101.

46

todas as normas constitucionais aplicáveis. No entanto, a eficácia social, diferentemente da

eficácia jurídica, aponta para uma efetiva conduta, de acordo com o que está previsto na

norma. Traduz-se no fato de a norma ser verdadeiramente aplicada e obedecida. Dessa

forma, a eficácia social somente será revelada, ou não, após a aplicação da norma.87

No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso vislumbra na eficácia social os

mecanismos para a aplicação da norma, para sua efetividade. Para ele, efetividade e

eficácia social são tomadas por sinônimos. No trabalho ora proposto, quando se fala em

possibilidade de concretização da função social da propriedade urbana à luz do Estatuto da

Cidade, remete-se à noção de efetividade proposta por Barroso.

[...] a efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social.88

Para Eros Roberto Grau, a norma que define direito ou garantia constitucional é

dotada de eficácia jurídica e tem aplicabilidade imediata, cabendo aos particulares o dever

de cumpri-la, e ao Estado o dever de torná-la exeqüível e impor seu cumprimento, razão

pela qual estará compelido a conferir-lhe efetividade. “Por essa razão é que tais normas já

não têm mais caráter meramente programático, assumindo a configuração de preceitos

auto-executáveis [...]”.89 Imbuído do mesmo entendimento, acrescenta Lênio Luiz Streck:

[...] se a doutrina constitucional trabalhara, durante as ordens constitucionais anteriores, com uma classificação de normas constitucionais, onde as normas programáticas ficavam relegadas a um plano secundário, parece lógico que, na presença de um novo texto constitucional, que buscou inspiração no contemporâneo constitucionalismo europeu, seria necessário que fosse elaborada uma nova teoria acerca da eficácia das normas. Recorde-se que essa discussão acerca da (des)classificação das normas constitucionais já estava superada desde há muito no direito contemporâneo [...].90

Além do exposto, cumpre referir que o Estatuto da Cidade, ao positivar o princípio

da função social da propriedade, retirou-lhe a condição de princípio exclusivamente

87 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 55-56. 88 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 85. 89 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 278-279. 90 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.29.

47

constitucional, transformando-o em norma jurídica ordinária, passível de plena

concretização.

Por fim, uma vez averiguada a importância das dimensões de direitos fundamentais

na reconfiguração das feições do direito de propriedade, parte-se para a investigação da

flexibilização do direito de propriedade no Brasil.

1.4 A flexibilização do direito de propriedade no Brasil: do individual ao socioambiental

O direito de propriedade tem passado por profundas alterações, visando a adequar-

se aos novos direitos tutelados pela ordem jurídica, dentre os quais, destacam-se os direitos

difusos de ordem ambiental. As transformações do direito de propriedade fazem-no um

direito renovado, por adquirir contornos socioambientais conforme dispõe a Constituição

Federal de 1988 e o Código Civil de 2002.91 Com isso, a noção de função social92 evoluiu

gradativamente até se incorporar ao próprio conceito de propriedade. Nesse contexto, com

o surgimento do Estatuto da Cidade, há o rompimento definitivo do paradigma civilista da

91 Com base na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002, por propriedade, entende-se a relação entre um bem imóvel e aquele que o possui como proprietário, tendo direitos e obrigações referentes ao bem, garantidos e exigíveis por meio de normas positivas. Assim sendo, é preciso considerar que, com base no ordenamento jurídico, a propriedade tem dois sentidos. Conforme o Código Civil de 2002, no artigo 1.128, pode ser considerada a faculdade pertencente ao proprietário de usar, gozar e dispor do bem, com presunção de plenitude e exclusividade. Considerando-se o disposto na Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, incisos XXII e XXIII e no artigo 170, incisos II e III, a propriedade constitui-se em um poder-dever. Ao proprietário se estende o poder de usufruir seu bem no limite do dever para com a coletividade, devendo estar atento ao cumprimento da função social. Considerando-se ainda o artigo 225 da CF/88 e lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade), deve-se atentar ao uso ordenado e ecológico da propriedade, visando à proteção e à manutenção de recursos naturais e artificiais nela existentes, que se traduz na necessidade de observação da função ambiental da propriedade. 92 Conforme o entendimento de Antônio Herman Benjamin, função é “a atividade finalística dirigida à tutela de interesse de outrem, caracterizando-se pela relevância global, homogeneidade de regime e manifestação através de um dever-poder”. BENJAMIN, Antônio Herman. Reflexões sobre a hipertrofia do direito de propriedade na tutela da reserva legal e das áreas de preservação permanente. In: Anais do 2° Congresso Internacional de Direito Ambiental – 5 anos da Eco 92. São Paulo: Imprensa Oficial, 1997, p. 28. Com base nessa definição, a função social da propriedade indica o dever do proprietário com a satisfação de interesses da sociedade, cujo exercício de poder é condicionado ao cumprimento de um dever. Nas palavras de François Ost: “é notório que a relação com as coisas não se afasta nunca, neste contexto, da relação com os homens: o uso acompanha-se de obrigações para com os outros membros da comunidade.” OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 58. Importa ainda destacar que, no ordenamento jurídico brasileiro, o conceito de função social da propriedade urbana tem sua matriz na Constituição Federal de 1988 e seu conteúdo mínimo é dado pelo Estatuto da Cidade, devendo ser complementado de acordo com as peculiaridades locais pelo Plano Diretor de cada município.

48

propriedade, vinculando-a ao cumprimento de uma função social e ambiental no interesse

da coletividade.

Há dois tipos de normas constitucionais que dispõem sobre propriedade e função

social: as normas do Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais e as normas do

Título VII, Da Ordem Econômica e Financeira. Entre os Direitos e Garantias

Fundamentais do artigo 5°, encontra-se o direito de propriedade no inciso XXII, como um

direito subjetivo individual, e o princípio da função social no inciso XXIII, como um

direito subjetivo público. De outro modo, a propriedade privada e a função social da

propriedade constam como princípios gerais da atividade econômica, no artigo 170,

respectivamente nos incisos II e III da Constituição Federal de 1988. Nesse mesmo título,

Da Ordem Econômica e Financeira, no artigo 170, inciso VI, encontra-se a defesa do meio

ambiente como princípio, bem como, no artigo 182 e 183, encontram-se as disposições

referentes à Política Urbana, ora disciplinadas pela Lei Federal n.° 10.257/2001 (Estatuto

da Cidade). São essas normas, em conjunto com o artigo 225, que imprimem uma nova

leitura às regras do Código Civil, fazendo com que a função social e ambiental sejam

atributo do direito de propriedade.

O constituinte reconhece na propriedade uma tríplice finalidade: individual, social e

ambiental. Há uma função pessoal, na qual a propriedade é um direito com o fim de servir

à pessoa. Há uma função social, em que a propriedade é bem comum da sociedade. Há

também uma função ambiental, pela qual todos os cidadãos têm o dever de contribuir com

a preservação do ambiente natural e artificial, para as presentes e futuras gerações.

Da conjunção da proteção legal conferida ao Direito de Propriedade e ao Meio Ambiente no Ordenamento Jurídico Brasileiro, origina-se a Função Ambiental da Propriedade. A partir do momento em que o Direito de Propriedade passa a ser objeto de limitações derivadas da proteção legal do Meio Ambiente, a Propriedade adquire uma nova Função, de caráter ambiental, pela qual o seu uso, gozo e fruição deverá garantir a integridade do patrimônio ambiental nela existente.93

Ao se referir à função social e ambiental da propriedade urbana, não se pode deixar

de mencionar que a função social e ambiental não impõe ao proprietário somente condutas

93 CAVEDON, Fernanda de Salles et al. Função ambiental da propriedade urbana e áreas de preservação permanente: a proteção das águas no ambiente urbano. In: BENJAMIN, Antônio Herman (Org.). Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. v. 2., p. 181.

49

negativas, ou seja, de abstenção, mas impõem igualmente condutas positivas, verdadeiras

obrigações de fazer (diferentes das obrigações do Direito Civil). Antônio Herman

Benjamin esclarece que, inicialmente, por influência da concepção individualista da

propriedade, entendia-se que a função social da propriedade operava somente através de

imposições negativas. Entretanto, percebeu-se que o instituto da função social demanda

prestações positivas por parte do proprietário. De tal forma, a função social requer regras

impositivas, que estabeleçam obrigações e comportamentos ativos em prol da sociedade.94

No que tange à ligação da propriedade à função social e ambiental, deve-se

considerar uma outra faceta dessa relação. Ivan Chemeris, ao abordar a superação da

distinção entre função social e propriedade, entende que a função social é um imperativo

dos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Contudo, comenta ele que

parte da doutrina caracteriza a função social como elemento externo à propriedade, de tal

forma que “a função social seria um dado absolutamente heterogêneo relativamente à idéia

de propriedade como direito subjetivo, e a sua presença na Constituição explicar-se-ia

como uma concessão feita pelo constituinte às forças políticas e sociais de esquerda”. Em

outros termos, “a função social não opera no interior da propriedade, não é a propriedade

que é disciplinada de forma a realizar a função social; ao contrário, a função social é

realizada pela lei; não é a propriedade que é dirigida para a realização da função social, é a

lei que atua na função social”.95

Em sentido semelhante, Orlando Gomes afirma que “a propriedade chamada a

absorver a função social não é a propriedade direito-subjetivo, mas a propriedade instituto-

jurídico”.96 Segundo esse entendimento,

[...] a função social seria uma atribuição legislativa entre o sujeito e o objeto do direito real, que resultaria na função social prevista no inciso III, do art. 170, da Constituição Federal, como um dos princípios gerais da atividade econômica. Difere da garantia assegurada no inciso XXIII, do art. 5°, da mesma Carta. Aquela, prevista no inciso III do art. 170 da Constituição Federal, é um elemento do direito de propriedade, cuja finalidade é, pois, a de assegurar a todos uma existência digna. Por outro lado, a garantia de que a propriedade

94 BENJAMIN, Antônio Herman. Reflexões sobre a hipertrofia do direito de propriedade na tutela da reserva legal e das áreas de preservação permanente. In: Anais do 2° Congresso Internacional de Direito Ambiental – 5 anos da Eco 92. São Paulo: Imprensa Oficial, 1997, p. 14. 95 PRATA apud CHEMERIS, Ivan. A função social da propriedade: o papel do Judiciário diante das invasões de terras. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 64. 96 GOMES, Orlando. Direitos reais. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 108.

50

atenderá a sua função social, assegurada no inciso XXIII, do art. 5°, da Constituição Federal seria um interesse transindividual de natureza difusa.97

Seguindo esse entendimento, e considerando as condutas positivas atinentes ao

proprietário como verdadeiras obrigações de fazer, tem-se que, em face do princípio da

função social, o não-atendimento aos interesses difusos da coletividade pode levar o

proprietário à perda do bem. Se não há o cumprimento da função social, não há o direito

legítimo de propriedade.

Note-se que, embora confrontada a posição que considera a função social como

dado externo ao direito de propriedade, o entendimento tido no presente trabalho é que a

função social é elemento integrante do direito de propriedade. A função social é parte do

conteúdo do direito de propriedade, mas não conteúdo exclusivo, ou seja, o direito

subjetivo de propriedade tem seu exercício condicionado ao atendimento da função social.

“O direito de propriedade é direito subjetivo mais função social. O direito subjetivo não se

transformou em função, continua a ser subjetivo, sujeito, porém, a condicionamentos que

têm se alargado no tempo”.98

Frente a isso, o direito de propriedade apresenta-se como um direito-dever. O

princípio da função social e ambiental da propriedade passa a condicionar o

reconhecimento e também a proteção do direito de propriedade (poder), direcionando sua

utilização no atendimento dos interesses sociais e ambientais (dever). Dessa forma, a

propriedade deixa de ser somente direito para conjugar-se também em função.

Nessa linha de idéias, portanto, a função social é que garante a legitimidade da propriedade e da posse, não merecendo tutela aquela que não esteja vinculada à busca da dignidade humana e à solidariedade social. Não se cuida aqui apenas de um princípio programático, como querem alguns, ou de uma derrogação da propriedade privada como insinuam outros. Trata-se, sim, de uma reconceitualização do direito de propriedade, inserindo-se um novo elemento em sua estrutura e no seu regime jurídico. O proprietário ou possuidor, portanto, recebe do ordenamento jurídico não apenas um direito fundamental, mas também um dever fundamental, já que seu direito se afigura legítimo e, pois, tutelável apenas e na medida em que realize a função a que está destinado constitucionalmente.99

97 CHEMERIS, Ivan. A função social da propriedade: o papel do Judiciário diante das invasões de terras. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003, p. 66. 98 ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação no Direito Agrário. São Paulo: Atlas, 1992, p. 30. 99 SENTENÇAS E DECISÕES DE PRIMEIRO GRAU. Porto Alegre: Poder Judiciário e AJURIS, v. 7/8, jun./dez. 2002, p. 153.

51

No que diz respeito ao regime jurídico da propriedade urbana, destaca-se que, com

o advento da Constituição Federal de 1988 e o surgimento da função social da propriedade

como princípio fundamental, não há mais como conceber o regime jurídico da propriedade

subordinado às normas de Direito Civil. Isso se deve à constitucionalização do regime

jurídico da propriedade privada e à sua regulamentação sob o regime da função social, que

modificou profundamente as disposições privatistas de Direito Civil. Com isso, ao Direito

Civil cabe a regulamentação das relações civis decorrentes do direito de propriedade, mas

não seu regime jurídico, que é constitucional e tem fundamento em normas de direito

público.

O Código Civil é, por excelência, o conjunto de normas que visa a regular as relações privadas entre particulares. Por muito tempo, foi considerado a base para o entendimento e regulação da Propriedade. Com o advento da expansão da regulação da Propriedade no âmbito constitucional, o entendimento da Propriedade no Ordenamento Jurídico Brasileiro requer uma análise conjunta das normas de Direito Civil e dos dispositivos constitucionais, buscando a integração dos mesmos.100

Outro ponto importante a ser salientado é o de que a função social e ambiental da

propriedade não se confunde com restrições administrativas ou limitações ao exercício do

direito de propriedade. O princípio da função social da propriedade, para José Afonso da

Silva, “[...] tem sido mal definido na doutrina brasileira, obscurecido, não raro, pela

confusão que dele se faz com os sistemas de limitação da propriedade. Não se confundem

porém. Limitações dizem respeito ao exercício do direito, ao proprietário, enquanto a

função social interfere com a estrutura do direito [...]”.101

A concepção contemporânea do direito de propriedade une direito subjetivo à

função social e ambiental, de tal sorte que, ao direito de propriedade, conjugam-se direito e

dever. Assim, o direito de propriedade se vê regulamentado sobre o regime da função

social, em que a sistematização normativa concilia perfeitamente o direito subjetivo do

proprietário e a função social e ambiental, sem que haja contradição entre ambos.

Conforme já dito anteriormente, houve uma reformulação do direito de propriedade a fim

de adequá-lo aos contornos constitucionais, clareando ainda mais a transmutação do caráter

individual para o socioambiental da propriedade.

100 CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Visualbooks, 2003, p.176. 101 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 65-66.

2 O MEIO AMBIENTE ENQUANTO DIREITO - DEVER FUNDAMEN TAL: PROPRIEDADE,

ESPAÇO URBANO E SUSTENTABILIDADE

A análise, o diagnóstico e as possíveis soluções para os problemas urbano-

ambientais da atualidade requerem um posicionamento crítico, inovador, ético e

participativo por parte da sociedade e do Estado. Desse prisma, o meio ambiente

ecologicamente equilibrado (natural e artificial) não pode mais ser percebido apenas como

um direito fundamental, tornando-se imprescindível a revisão da relação predatória e de

superioridade do homem perante a natureza. Ademais, fazem-se necessário visualizar o

espaço urbano e a propriedade privada como bens ambientais de caráter socioambiental.

Considerando os graves problemas enfrentados no cenário urbano, pretendem-se,

neste capítulo, abordar as origens e as principais diretrizes do Estatuto da Cidade com o

propósito de verificar a sua aplicação frente à instrumentalização da função socioambiental

da propriedade urbana, assim como, possibilitar a implementação de um espaço urbano

sustentável.

2.1 O direito – dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado

Embora a questão ambiental seja um problema antigo, a preocupação com o meio

ambiente é recente. Pode-se afirmar que a degradação ambiental é histórica, pois é com o

surgimento do homem que se inicia o processo de transformação da natureza.102 Nesse

sentido, a degradação ambiental se confunde com a própria origem do ser humano.

Entretanto, esse processo de modificação das condições naturais só está sendo percebido e

temido recentemente.

102 É importante ressaltar que a natureza está em constante transformação desde muito antes da aparição do homem. A diferença entre a transformação natural e a promovida pelo homem reside no fato de que o homem tem consciência (razão – faculdade cognitiva) de que pode se utilizar e moldar a natureza conforme suas necessidades e interesses. Assim, o homem promove processos (transformações) artificiais na natureza. Cabe lembrar que todos os animais (seres senscientes não-humanos) podem alterar a natureza, mas, apenas o homem tem condições de fazê-lo de forma tão ameaçadora e não-natural. Sobre as transformações naturais e o surgimento do homem ver: COSMOS. Produção de Carl Sagan. São Paulo: Editora Abril, [S.a]. 1 DVD.

53

Nem sempre a relação homem e natureza foi determinada pela ação humana. Por

muito tempo, essa relação foi de temor e de total dependência, posto que a natureza

subjugava e aterrorizava os primeiros seres humanos. O homem das cavernas possuía

poucas condições de modificar seu habitat. Esse fato, não obstante, não o impediu de

provocar mudanças no ambiente.103 “O ser humano não foi capaz de se adaptar à ordem

natural das coisas, necessitando intervir na natureza, para modificar o ecossistema, a fim de

moldá-lo às suas necessidades”.104

O conflito do homem com a natureza sempre existiu. Nesse sentido, não se pode

imputar somente ao homem contemporâneo a responsabilidade pelos problemas

ambientais. Para a arqueologia científica, a relação do homem primitivo com a natureza,

pautada pelo determinismo, representada pela idéia pós-darwiniana do humano enquanto

produto da seleção natural, subordinado às leis biológicas, é uma tese que não se sustenta

mais. Os homens, ao atuarem sobre o meio e ao transformá-lo, deixam de ser vistos como

meros objetos e passam a ser agentes geográficos. Essa influência do homem sobre o meio

chama-se possibilismo.105

O que se vivencia atualmente é um colapso ambiental, conseqüência de um longo e

crescente processo de intervenção humana. Embora os impactos ambientais causados

estejam surtindo conseqüências em um ritmo alarmante, a preocupação e a ação humana na

tentativa de minorar os efeitos desses impactos não parecem estar na mesma intensidade. O

homem pensa se distinguir da natureza pela racionalidade, o que, em tese, o torna superior.

Acredita que a tecnologia pode amenizar ou até mesmo resolver os problemas ambientais

vindouros. Ao não se considerar parte da natureza, dependente e determinado por ela, não

tem sensibilidade para perceber que ao agredi-la está a se auto-destruir.106

103 A afirmação de que a degradação ambiental é um processo histórico, tem por base relatos da civilização primitiva, que descrevem a passagem do homem habitante das cavernas para a condição de caçador; da condição de caçador para a de pastor e, por conseguinte, para a de agricultor. Foi com a técnica da cultura, do desgaste do solo pelas queimadas e da rotatividade na utilização de terras, que o homem intensificou as transformações drásticas no ambiente. É evidente que o processo de intervenção humana nos domínios naturais iniciou com o homem primitivo, contudo, esse processo vem aumentando ao passo que aumentam as necessidades humanas. 104 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de; GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, Meio Ambiente e Cidadania: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Madras, 2004, p. 14. 105 NALINI, Renato. Ética Ambiental. 2. ed. São Paulo: Millennium Editora, 2003, p. 3-4. 106 Esse mesmo entendimento é colocado pelo paleontólogo Peter Ward, em sua obra “O fim da evolução”. Ao trabalhar os três grandes eventos de extinção em massa, procura enfatizar na relação homem-natureza as causas de uma possível terceira extinção e evidencia que essa extinção já está ocorrendo. O autor demonstra a

54

Em um retrospecto histórico, podem-se destacar alguns acontecimentos que

influenciaram a conscientização acerca da crise ambiental. Em um primeiro momento,

houve a constatação de que os ecossistemas107 não se reconstituem automaticamente,

levam muito tempo para se recompor, colocando em risco a própria sobrevivência humana.

Por conseguinte, constatou-se também, que a forma de organização e de gestão da

sociedade conflita com o ideal de qualidade de vida. A par disso, um marco significativo

para a conscientização foi o desastre nuclear ocorrido em Hiroxima e Nagasaki, deixando

evidentes os riscos que o conhecimento científico e o capitalismo podem causar.108

De igual forma, cabe destacar que as duas principais formas assumidas pelo Estado

Moderno: o Estado liberal e o Estado social não foram capazes de propiciar o bem-estar

desejado e protelaram hipóteses de solução da problemática ambiental para momento

posterior, dissociando-a das demais demandas da sociedade. Nesse sentido, a consciência

da crise ambiental também se deu em virtude da crise do Estado socialista. Foi em função

da despreocupação estatal com a questão ambiental que, a partir de 1950, a sociedade civil

começou a se articular por meio de Organizações Não-Governamentais. Entretanto,

somente a partir de 1970, a preocupação torna-se mais explícita, culminando com a

Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, realizada em 1972 em

Estocolmo.109

No Brasil, observam-se três fases em relação à evolução legislativa sobre meio

ambiente. A primeira, que se iniciou com o descobrimento do Brasil e persistiu até os anos

60, foi uma fase de exploração desregrada (laissez-faire), de normas isoladas referentes a

recursos naturais específicos. No período de 1982 a 1985, constituiu-se uma segunda fase,

considerada fragmentária, na qual somente eram tutelados os recursos naturais que

apresentassem interesse econômico. A terceira fase, conhecida como holística, inicia-se

com a Lei n° 6.938, de 31 de agosto de 1981, que instituiu a Política Nacional do Meio

Ambiente. Nessa fase, o meio ambiente passa a ser protegido de maneira integral, como

necessidade de preservarmos a vida antes que nada mais possa ser feito. WARD, Peter. O fim da evolução: extinções em massa e a preservação da biodiversidade. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 107 Por ecossistema entende-se “a comunidade total de organismos, junto com o ambiente físico e químico no qual vivem. É composto por seres vivos (biocenose) e pelo meio físico (biótipo)”. RICARDO, Beto; CAMPANILI, Maura. Brasil socioambiental: desenvolvimento, sim. De qualquer jeito, não. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, p. 452. 108 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de; GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, Meio Ambiente e Cidadania: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Madras, 2004, p. 20 – 21. 109 Ibidem, p. 21-22.

55

bem jurídico. O ponto culminante foi a Constituição Federal de 1988, que dedicou um

capítulo inteiro ao meio ambiente.110

A expressão meio ambiente foi inserida no meio científico pelo naturalista francês

Geoffroy de Saint-Hilaire, que a empregou, pela primeira vez, em sua obra Éstudes

progressives d’un naturaliste, em 1835.111 A utilização da expressão na legislação

brasileira, em um primeiro momento, causou divergências. Para Edis Milaré,

tanto a palavra meio como o vocábulo ambiente passam por conotações diferentes, quer na linguagem científica quer na vulgar. Nenhum destes termos é unívoco (detentor de um significado único), mas ambos são equívocos (mesma palavra com significados diferentes). Meio pode significar: aritmeticamente, a metade de um inteiro; um dado contexto físico ou social; um recurso ou insumo para se alcançar ou produzir algo. Já ambiente pode representar um espaço geográfico ou social, físico ou psicológico, natural ou artificial. Não chega, pois, a ser redundante a expressão meio ambiente, embora no sentido vulgar da palavra ambiente indique o lugar, o sítio, o recinto, o espaço que envolve os seres vivos e as coisas. De qualquer forma, trata-se de expressão consagrada na língua portuguesa, pacificamente usada pela doutrina, lei e jurisprudência de nosso país, que, amiúde, falam em meio ambiente, em vez de ambiente apenas.112

Com entendimento contrário, advertem José Rubens Morato Leite e Paulo Affonso

Leme Machado, que os termos meio e ambiente são equivalentes, e a expressão meio

ambiente é um pleonasmo.113 No entanto, no que pese o conflito de entendimento, o fato é

que a expressão foi consagrada e incorporada pelo ordenamento jurídico brasileiro. Por ser

uma expressão ampla, pode abrigar inúmeras realidades ligadas à proteção ambiental. Se

houvesse uma definição precisa e restrita de meio ambiente, muitas situações inseridas na

órbita do conceito atual deixariam de estar amparadas.

110 Ibidem, p. 23-25. 111 Em francês, a expressão milieu ambiant (meio ambiente) é compreendida com base no significado atribuído aos termos meio e ambiente. A palavra milieu (meio) significa contexto, espaço ou lugar, ao passo que o termo ambiant (ambiente), significa “o que rodeia por todos os lados”. Nesse sentido, meio ambiente é todo o espaço ou contexto que circunda o homem. PRIEUR, Michel apud MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 63. 112 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 63. 113 LEITE, José Rubens Morato. Introdução ao conceito jurídico de meio ambiente. In: VARELLA, Marcelo Dias; BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro (Org.). O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1988, p. 51. Ver também MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 69: “O que acontece é que ambiente e meio são sinônimos, porque meio é precisamente aquilo que envolve, ou seja, ambiente”.

56

Em linguagem técnica, o meio ambiente pode ser compreendido como a

combinação de todas as coisas e fatores, externos aos indivíduos, que se constitui por seres

bióticos e abióticos e suas relações.114 Em outros termos, “[...] é o conjunto dos elementos

físico-químicos, ecossistemas naturais e sociais em que se insere o Homem, individual e

socialmente, num processo de interação que atenda ao desenvolvimento das atividades

humanas, à preservação dos recursos naturais e das características essenciais do entorno,

dentro de padrões de qualidade definidos”.115 Em linguagem jurídica, em um contexto que

contempla implicações da relação humana com o que está a sua volta, pode-se

compreender por meio ambiente “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais

e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas

formas”.116

Na legislação brasileira, o conceito operacional de meio ambiente é encontrado na

Lei n° 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente) que, no artigo 3º, inciso I,

preceitua o meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de

ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas

formas”. O conceito legal supera a visão de meio ambiente apenas como o conjunto de

recursos naturais, levando em consideração a interação do homem com a natureza. Assim,

o homem passa a estar integrado ao conceito de meio ambiente e à vida, humana e não-

humana (animal e vegetal) encontra-se protegida no mesmo patamar de importância.

No mesmo sentido, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, caput,

refere: “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso

comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à

coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Dessa forma, pode-se dizer que o constituinte, além de reforçar a relação de interação e

interdependência entre homem e natureza, buscou acentuar a necessidade de preservação

do meio ambiente em suas diversas manifestações (meio ambiente natural, artificial,

cultural), bem como, procurou atribuir essa responsabilidade à coletividade e ao Poder

Público.

114 MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 64. 115 COIMBRA, José de Ávila Aguiar. O outro lado do meio ambiente. São Paulo: CETESB, 1985, p. 29. 116 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 20.

57

Questão que tem causado controvérsias por parte da doutrina é a utilização da

expressão “futuras gerações”. Alguns doutrinadores questionam a possibilidade de ser

sujeito ativo de um direito quem ainda não existe. Frente a isso, Patzig argumenta que não

há princípio moral que obrigue as presentes gerações a garantir um meio ambiente

ecologicamente equilibrado às gerações futuras.117Contudo, grande parte da doutrina

entende viável falar em direitos e deveres entre gerações. Nessa linha de pensamento, Jesús

Ballesteros afirma “que é possível falar – não somente do ponto de vista ético, mas

também jurídico – de direitos das futuras gerações. E de direitos e obrigações de gerações

presentes para com as futuras”.118 O meio ambiente é um bem pertencente à coletividade, a

sua degradação afeta todos os seres humanos, tornando-se irrelevante a discussão acerca da

validade ou não de se atribuir direitos às futuras gerações. Acima de tudo, a preservação do

meio ambiente para as presentes e futuras gerações é uma questão moral.

Fica evidente, pelo conceito de meio ambiente, a incontestável interdependência

apresentada pela relação homem-natureza. Não há como dissociar a existência humana do

convívio com o natural, pois é condição imperativa para sua sobrevivência. Essa relação de

interdependência é bem exemplificada por Samuel Murgel Branco ao expor:

O homem pertence à natureza tanto quanto – numa imagem que me parece apropriada – o embrião pertence ao ventre materno: originou-se dela e canaliza todos os seus recursos para as próprias funções e para o desenvolvimento, não lhe dando nada em troca. É seu dependente, mas não participa (pelo contrário, interfere) de sua estrutura e função normais. Será um simples embrião se conseguir sugar a natureza, permanentemente, de forma compatível, isto é, sem produzir desgastes significativos e irreversíveis; caso contrário, será um câncer, o qual se extinguirá com a extinção do hospedeiro.119

Não é possível conceituar o meio ambiente fora de uma visão antropocêntrica. A

proteção ambiental depende do homem, uma vez que o direito é construção humana,

elaborada para servir os propósitos humanos. A evolução do direito para uma posição de

reconhecimento e respeito às formas de vida não-humanas “não é suficiente para deslocar

117 PATZIG, G. apud FERNÁNDEZ – LARGO, Antonio Osuna. Los Derechos Humanos: ámbitos y desarrollo. Salamanca: San Esteban; Madrid: Edibesa, 2002, p. 295. 118 BALLESTEROS, Jésus. Los derechos de las futuras geraciones. In: BALLESTEROS, Jésus (Ed.). Derechos Humanos: concepto, fundamentos, sujetos. Madrid: Tecnos, 1992, p. 209. 119 BRANCO, Samuel Murgel. Conflitos conceituais nos estudos sobre meio ambiente. Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, nº 23, 1995, p. 217.

58

o eixo ao redor do qual a ordem jurídica circula”.120 Paulo de Bessa Antunes faz referência

à evolução antropocentista ao mencionar que

a questão que se coloca, contudo, é a de não confundir a pretensa superação do antropocentrismo com uma modalidade de irracionalismo, muito em voga atualmente, que, colocando em pé de igualdade o Homem e os demais seres vivos, de fato, rebaixa o valor da vida humana e transforma-a em algo sem valor em si próprio, em perigoso movimento de relativização de valores. O que o DA busca é o reconhecimento do Ser Humano como parte integrante da Natureza. Reconhece, também, como é evidente, que a ação do Homem é, fundamentalmente, modificadora da Natureza, culturalizando-a. O DA estabelece a normatividade da harmonização entre todos os componentes do mundo natural culturalizado, no qual, a todas as luzes, o Ser Humano desempenha o papel essencial.121

Assim, torna-se imprescindível superar a visão do antropocentrismo clássico122 e

progredir em direção à construção de um modelo de antropocentrismo alargado,123 no qual,

o homem seja considerado parte da natureza. Nesse sentido, “pela visão antropocêntrica

alargada, tutela-se o meio ambiente pelo seu valor intrínseco e não apenas pela utilidade

que os recursos naturais podem ter para o homem. O homem passa a figurar como o

guardião da biosfera e não mais como o seu dono”.124 Essa superação do antropocentrismo

clássico, pela inclusão de valores ligados à proteção da vida não-humana, não indica a

120 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 20. 121 Ibidem, p. 20. 122 “Antropocêntrico vem a ser o pensamento ou a organização que faz do homem o centro de um determinado universo, ou do Universo todo, em cujo redor (ou órbita) gravitam os demais seres, em papel meramente subalterno e condicionado. É a consideração do homem como eixo principal de um determinado sistema, ou ainda, do mundo conhecido”. A corrente do “antropocentrismo clássico” teve força no mundo ocidental em função do pressuposto de que a razão é atributo exclusivo do homem, valor maior e determinante. Somando-se a essa influência (do atributo da razão), a expansão da cultura religiosa judaico-cristã contribuiu para solidificar a situação de dominação do homem sobre os demais seres vivos. Esse cenário de dominação, de natureza-objeto, se sustentou até o momento em que o homem começou a sentir os reflexos da sua exploração ilimitada. MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x Ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 36, p. 9-41, out.- dez. 2004, p. 10-12. 123 A expressão “antropocentrismo alargado” atribuída a José Rubens Morato Leite, é utilizada para designar o novo panorama da interação homem-natureza. A novidade dessa concepção encontra-se na ruptura da existência de dois mundos distintos: o humano e o natural, avançando no sentido da interação de ambos. “Abandonam-se as idéias de separação, domínio, submissão e busca-se uma interação entre os universos distintos e a ação humana”. Para Leite, “[...] a perspectiva antropocêntrica alargada propõe não uma restritiva visão de que o homem tutela o meio ambiente única e exclusivamente para proteger a capacidade de aproveitamento deste, considerando precipuamente satisfazer as necessidades individuais dos consumidores, em uma definição economicocêntrica. Com efeito, esta proposta visa, de maneira adversa, a abranger também a tutela do meio ambiente, independentemente da sua utilidade direta, e busca a preservação da capacidade funcional do patrimônio natural, com ideais éticos de colaboração e interação”. LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 76. 124 LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 78-79.

59

adoção de um modelo pautado no biocentrismo.125 O que se postula é a superação de um

modelo no qual o homem se afigura como detentor da natureza, abrindo caminho ao

entendimento do homem como parte do natural e principal responsável pela sua

preservação.

Para José Rubens Morato Leite, a tutela jurídico-ambiental brasileira (Lei nº

6.938/81 e artigo 225, caput, da CF/88), adota o regime por ele determinado misto,

denominado antropocentrismo alargado. Esse entendimento se baseia no fato de o

ordenamento jurídico brasileiro conjugar meio ambiente ecologicamente equilibrado e sua

essencialidade para a qualidade de vida, com a tutela dos interesses das futuras gerações.

Assim,

não há como refutar, desta forma, que no sistema jurídico brasileiro, além da proteção à capacidade de aproveitamento do meio ambiente, simultaneamente, visa-se a tutelar o mesmo, para se manter o equilíbrio ecológico e sua capacidade funcional, como proteção específica e autônoma, independente do benefício direto que advenha ao homem.126

A adoção do antropocentrismo alargado pela legislação brasileira também é

comentada por Álvaro Luiz Valery Mirra ao afirmar que tal concepção representa uma

proteção ambiental que visa, simultaneamente, a garantir a integridade do ambiente em si

mesmo considerado, o equilíbrio ecológico, enquanto condição indispensável a todas as

formas de vida, e a satisfação das necessidades imediatas do homem.127 Nicolau Dino de

Castro e Costa Neto, também referencia o mesmo entendimento ao salientar a postura de

equilíbrio da legislação entre os extremos do “antropocentrismo excludente” e do

“biocentrismo exacerbado”. Para ele, o processo de evolução pelo qual passa o Direito

Ambiental, deve ter por fundamento a ética ambiental e o reconhecimento do valor do

meio ambiente para além da satisfação dos interesses do homem. Assim, “[...] enquanto

atores de um mesmo cenário biótico, cabe aos seres humanos a adoção de uma 125 O biocentrismo almeja fazer da natureza não mais um objeto, mas um próprio sujeito. Há, para tanto, uma inversão de perspectiva, não é mais o planeta que pertence ao homem, mas sim, o homem que pertence ao planeta. Alimenta-se um impulso de retorno à natureza. O limiar dessa posição tem origem na preocupação do homem com a proteção do meio ambiente. Assim, com o foco voltado para todos os aspectos da vida, surgiu o biocentrismo. “A ampliação da consciência sobre a situação do planeta Terra, somada às preocupações criadas pelo processo da globalização, impulsionou rapidamente a idéia de uma ética global ou ética planetária”. MILARÉ, Edis; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x Ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 36, p. 9-41, out.- dez. 2004, p. 14-16. 126 LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 77. 127 MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação Civil Pública e a reparação do dano ao meio ambiente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 61.

60

interpretação ecológica e uma postura ética que ultrapassem a posição egoística de que a

natureza se presta apenas à satisfação de suas necessidades”.128

Ademais, a análise interpretativa do disposto no artigo 225 da Constituição Federal

de 1988 permite afirmar que a proteção do meio ambiente, além de um direito fundamental

de o homem usufruir um meio ambiente saudável, é também um dever essencial.129

Intrinsecamente vinculado ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, existe

um dever fundamental, que se caracteriza pela obrigação incumbida ao Poder Público e a

cada um dos indivíduos partícipes da sociedade.

Para José Casalta Nabais, o tema dos deveres fundamentais constitui um dos mais

esquecidos da doutrina contemporânea. Pode-se dizer que se priorizou a liberdade

individual em detrimento da responsabilidade comunitária. Apesar disso, comenta ele, que

na medida em que os direitos fundamentais deixam de ser apenas os clássicos direitos de

liberdade para se constituírem também em direitos de participação política, direitos (a

prestações) sociais e direitos ecológicos, passam a exprimir exigências do indivíduo face

ao Estado, alargando a esfera jurídica do cidadão e, por outro lado, também limitando essa

mesma esfera através de deveres que lhes andam associados ou coligados.130

Dessa forma, os deveres fundamentais “são deveres jurídicos do homem e do

cidadão que, por determinarem a posição jurídica fundamental do indivíduo, têm especial

significado para a comunidade e podem por esta ser exigidos”.131 Caracterizam-se por não

se traduzirem em meras situações de inércia, ao contrário, os deveres fundamentais são

situações ativas, já que implicam um comportamento positivo dos seus titulares. Assim, os

deveres fundamentais constituem posições universais e permanentes, ou seja, de um lado,

são encargos ou sacrifícios para a comunidade, que valem relativamente a todos os

indivíduos e não apenas a alguns deles. De outro, os deveres fundamentais também se

128 COSTA NETO, Nicolau Dino de Castro e. Proteção jurídica do meio ambiente – I Florestas. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 31. 129 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. A proteção ambiental diante da necessária formação de uma nova concepção de um Estado democraticamente ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman (Org.). Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. v. 2, p. 201. 130 NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 49-50. 131 Ibidem, p. 64-65.

61

configuram como posições duradouras (característica da irrenunciabilidade). Por fim, são

posições essenciais, do mais elevado significado para a comunidade.132

Todos os deveres fundamentais são, em certo sentido, deveres com a comunidade.

Estão diretamente a serviço da realização de valores assumidos pela coletividade. A defesa

do meio ambiente, nesse cenário, constitui-se como um dever fundamental de conteúdo

econômico, social ou cultural. Entretanto, não é apenas um dever decorrente do convívio

em sociedade, que se pauta na solidariedade. O dever ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado vai mais além, é um dever ético, que deve se pautar também na fraternidade.

Nesse sentido, o meio ambiente é para o homem um direito - dever fundamental.

Não há direitos sem deveres, nem deveres sem direitos, “porque não há garantia jurídica ou

fáctica dos direitos fundamentais sem o cumprimento dos deveres do homem e do cidadão,

indispensáveis à existência e funcionamento da comunidade [...]”.133 Cabe lembrar que o

dever ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não representa apenas um dever

negativo, ou seja, um dever de abstenção, por meio de comportamento passivo (não

degradar, não poluir, não desmatar). Acima disso, é um dever positivo, que implica

comportamento ativo por parte do cidadão (arborizar as cidades, cumprir com a função

socioambiental da propriedade urbana, separar o lixo doméstico, utilizar racionalmente a

água potável, atentar ao consumo sustentável de bens e serviços, dentre outros) e se traduz

na necessidade de se visualizar o gênero humano como parte da natureza.

De tal forma, é muito mais econômico o agir ambiental. É menos dispendioso

prevenir antes que o dano ocorra do que sofrer prejuízos posteriores, pois há perdas que

são irreparáveis. Assim, todos são igualmente titularizados no direito e no dever de zelar

pelo meio ambiente equilibrado.134 Em função disso, a construção de um espaço

participativo nas questões ambientais, não tem de ser visto como uma possibilidade, mas

como uma necessidade. “O melhor modo de tratar as questões do meio ambiente é

assegurando a participação de todos os cidadãos interessados. Nesse sentido, o direito

132 Ibidem, p. 67-73. 133 Ibidem, p. 118-119. 134 NALINI, José Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas: Millennium Editora, 2003, p. XXX – XXXI.

62

ambiental faz os cidadãos saírem de um estatuto passivo de beneficiários, fazendo-os

partilhar da responsabilidade na gestão dos interesses da coletividade inteira”.135

É importante ressaltar que a inserção da proteção ambiental na Constituição Federal

de 1988, enquanto direito-dever fundamental, ocasionou profundas alterações em todos os

ramos do Direito, que passaram a incorporar as normas de Direito Ambiental na

caracterização de seus institutos. Embora a tutela constitucional-ambiental seja

eminentemente coletiva, regula também condutas privadas. Essa ingerência do Direito

Ambiental nas condutas individuais acarreta implicações, sobretudo para o Direito Privado,

representadas pelas restrições ambientais à propriedade e, principalmente, pelo dever de

cumprimento da função socioambiental da propriedade privada. Frente a isso, convém

analisar a (im)possibilidade de visualizar a propriedade privada e o espaço urbano como

bens ambientais, suscetíveis à apropriação privada e ao cumprimento da função

socioambiental e as implicações decorrentes disso.

2.2 O espaço urbano e a propriedade privada como bens ambientais

Embora, em um primeiro momento, a compreensão do ambiental relacionado às

cidades tenha restado limitada ao imaginário do espaço urbano dissociado do meio

ambiente (em função da percepção do ambiental apenas como o conjunto de elementos

naturais), atualmente, há uma inversão, na qual, se busca evidenciar que o ambiental

contempla o social, sobretudo representado pelo ambiente cultural e artificial. A expressão

meio ambiente não se restringe apenas ao conjunto de processos naturais, estende-se às

relações entre esses e as dinâmicas sociais. Assim, em uma primeira análise, o ambiente

urbano é a síntese do embate entre o natural e o social.

O espaço urbano, forma singular de patrimônio ambiental artificial, é, dessa forma,

o resultado maior da capacidade social de adaptar e transformar o espaço natural, sem

deixar de ser parte e de estar submetido aos processos da natureza. Em função do caráter

holístico do meio ambiente, produto das interações sociais com o ambiente natural, o

135 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. A proteção ambiental diante da necessária formação de uma nova concepção de um Estado democraticamente ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman (Org.). Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. v. 2, p. 203.

63

ambiente construído também é objeto de proteção ambiental. O desenvolvimento urbano

torna-se indissociável de uma gestão urbano-ambiental, uma vez que há evidente interação

entre o desenvolvimento humano artificial e o meio ambiente natural.

O processo de artificialização do ambiente inicia com o homem pré-histórico. Para

Elida Séguin, o homem primitivo, para fugir da vastidão dos espaços abertos, ao aprisionar

determinado volume espacial das cavernas como abrigo, acarreta a primeira adaptação da

natureza às necessidades humanas. Em função disso, produz-se o meio ambiente artificial,

compreendido como “[...] o espaço ocupado e transformado pelo ser humano, de forma

continuada, onde ele desenvolve suas relações sociais. É o produto da interação do homem

com o Meio Ambiente Natural”.136

Milton Santos refere que a paisagem urbana compreende dois elementos: os objetos

naturais (que independem do homem) e os objetos sociais (que são obras do homem). Os

processos de mudança pelos quais passa a sociedade são determinantes para a configuração

da paisagem, que nada tem de fixo ou imóvel. O espaço se transforma “para se adaptar às

novas necessidades da sociedade”. Dessa forma, a paisagem urbana representa os diversos

momentos do desenvolvimento social, “é o resultado de uma acumulação de tempos”.137

“É por isso que a sociedade não se distribui uniformemente no espaço: essa distribuição

não é obra do acaso. Ela é o resultado de uma seletividade histórica e geográfica, que é

sinônimo de necessidade. Essa necessidade decorre de determinações sociais fruto das

necessidades e das possibilidades da sociedade em um dado momento”.138

Nessa perspectiva, é importante salientar que se entende por meio ambiente

artificial o conjunto de edificações particulares ou públicas, principalmente urbanas,

formado por construções realizadas exclusivamente pela ação do homem, uma vez que sua

principal característica é o meio ambiente urbano.139 Nesse mesmo sentido, José Afonso da

Silva conceitua meio ambiente artificial como o meio “constituído pelo espaço urbano

construído, consubstanciado no conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos

136 SÉGUIN, Elida. Direito ambiental: nossa casa planetária. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 21. 137 SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Edusp, 2004, p. 54. 138 Ibidem, p. 61. 139 CAPOLA, Gina. O meio ambiente artificial. Prática Jurídica, Ano III, n. 28, p. 46-50, jul. 2004, p. 47.

64

equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes, espaços livres em geral: espaço urbano

aberto)”, 140 sendo as cidades exemplo bastante significativo.

Conforme o disposto no caput do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, o

meio ambiente é classificado como um bem de uso comum do povo, incorpóreo e

imaterial, não podendo ser utilizado economicamente de forma privada, nem apropriado

pelo indivíduo particular. “[...] o uso do meio ambiente não é bem do Estado nem é bem

privado – é bem pertencente a toda coletividade, pelo que não pode ser apropriado”.141

Assim, o meio ambiente142 configura-se como um bem de interesse público, contrapondo-

se ao interesse individual. Entretanto, perante a doutrina clássica e o Código Civil, bem de

uso comum do povo é uma espécie de bem público que, embora utilizado coletivamente,

cabe ao Poder Público sua titularidade.

Frente a isso, procurando esclarecer o meio ambiente como bem de uso comum do

povo, diverge a doutrina acerca da natureza jurídica dos bens ambientais.143 Para Celso

Antônio Pacheco Fiorillo e Marcelo Abelha Rodrigues, existem três categorias de bens no

ordenamento jurídico: os bens públicos, os bens privados e os bens difusos. Afirmam eles

que o meio ambiente está inserido no ordenamento jurídico como um bem difuso,144 cuja

titularidade difere da titularidade dos bens públicos.145 Com esse mesmo entendimento,

Rui Carvalho Piva refere o meio ambiente como um bem ambiental de natureza difusa,

uma vez que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Se o uso do

140 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 21. 141 MUKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 36. 142 O meio ambiente, no contexto de bem de uso comum do povo, deve ser considerado em todos os seus aspectos: meio ambiente natural ou físico, cultural e artificial, classificação adotada por José Afonso da Silva. 143 Patrimônio ambiental ou bem ambiental não é bem público nem privado, é um bem jurídico de valor material ou imaterial, que antes de ser valor jurídico está atrelado a um valor humano, um bem de vida. Para Rui Carvalho Piva, o bem ambiental é um bem jurídico de direito coletivo em sentido amplo-metaindividual (gênero), caracterizando-se como um interesse difuso (espécie). PIVA, Rui Carvalho. Bem ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 97. 144 Os bens, direitos ou interesses difusos são aqueles que tem por característica a transindividualidade (que transcende o indivíduo, ultrapassando o limite da esfera dos direitos e obrigações de cunho individual, ou seja, resulta da qualidade do indivíduo como ser humano), a natureza indivisível (há a indivisibilidade do objeto, ou seja, o meio ambiente na concepção de macrobem não comporta fracionamento para apropriação exclusiva individual), a intensa litigiosidade interna, a transição ou mutação no tempo e no espaço e a titularidade indeterminada (ausência de individualidade ou titularidade plena), ligada por circunstâncias de fato. Sobre direitos difusos ver: MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 66-70; OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de; GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, Meio Ambiente e Cidadania: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Madras, 2004, p. 54; PIVA, Rui Carvalho. Bem ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 31-34. 145 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental e legislação aplicável. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 94.

65

bem ambiental é assegurado a todos, certamente se está diante de um bem vinculado ao

gênero dos interesses coletivos metaindividuais, cuja espécie são os direitos ou interesses

difusos.146

Posicionamento diverso adotam José Afonso da Silva e Paulo Affonso Leme

Machado, por entenderem os bens ambientais como bens de interesse público. Para ambos,

a compreensão do meio ambiente como bem de interesse público supera a dicotomia entre

bens públicos e bens particulares, permitindo uma proteção mais abrangente dos bens

ambientais. Assim, o patrimônio ambiental pertence a todos e não pode ser apropriado

individualmente, nem mesmo pelo Estado. Nesse sentido, patrimônio ambiental e

patrimônio público não se confundem.147 Quando o texto constitucional se refere a

patrimônio público, está indicando os bens de propriedade do Estado, ou seja, os bens

públicos, dos quais o meio ambiente não faz parte, pois tem como titular a coletividade.

Essa distinção fica bem evidente no artigo 5°, inciso LXXIII da Constituição Federal de

1988, que trata da ação popular: “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação

popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado

participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e

cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da

sucumbência” (grifo nosso).

Para José Rubens Morato Leite, “não resta dúvida que o bem ambiental de interesse

público deve ser separado da definição de bens públicos e privados do Código Civil

Brasileiro. Outrossim, a concepção da lei civil é destoante do estipulado na Constituição

Federal, que trata do meio ambiente como bem da coletividade, e não como res nullius”.

Para ele, o meio ambiente, bem de uso comum do povo, é um “bem jurídico autônomo de

interesse público”, tratado pelo legislador constitucional como res communes omnium.148

Nesse mesmo sentido, salienta José Afonso da Silva que os “atributos do meio

ambiente [a qualidade satisfatória, o equilíbrio ecológico] não podem ser de apropriação

privada, mesmo quando seus elementos constitutivos pertençam a particulares”. Para ele,

146 PIVA, Rui Carvalho. Bem ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 33. 147 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 667. 148 LEITE, José Rubens Morato. Introdução ao conceito jurídico de meio ambiente. In: VARELLA, Marcelo Dias; BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro (Org.). O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1988, p. 62.

66

“significa que o proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da

qualidade do meio ambiente a seu bel-prazer, porque ela não integra sua

disponibilidade”.149 Em função disso, o meio ambiente não é patrimônio público nem

particular, por ser essencial à qualidade de vida, está intimamente vinculado a um fim de

interesse coletivo.

É importante referir o entendimento de Flávia de Paiva Medeiros de Oliveira e

Flávio Romero Guimarães, para os quais, “não se configura incompatível a caracterização

do meio ambiente como bem de interesse público e como interesse difuso”.150 Não se pode

negar o caráter difuso e o interesse público que caracteriza o meio ambiente. Dessa forma,

para eles, há que se tecerem algumas distinções ao se atribuir interesse público e interesse

difuso ao meio ambiente. Assim, “quando se diz que o meio ambiente é um bem de

interesse público, pretende-se afirmar que não apenas o Poder Público tem legitimidade

para promover sua tutela jurisdicional, como também o cidadão”. De outro modo, quando

se afirma que o meio ambiente é um interesse difuso, “quer-se afirmar que dele advém uma

situação de vantagem ou utilidade para todo o gênero humano, o que legitima todo e

qualquer cidadão a promover a sua defesa na esfera processual”.151 Dessa forma, o meio

ambiente é um bem de uso comum do povo, de interesse público e difuso.

Além de bem de uso comum do povo, de interesse público e difuso, o meio

ambiente apresenta-se como um macrobem, considerado na sua integralidade como o

conjunto de influências e interações que abriga e rege a vida em todas as suas formas.152

O meio ambiente, representado no seu todo (complexo ou universalidade de bens

agregados), é um bem imaterial e incorpóreo, não se confundindo com os bens materiais e

imateriais que o compõem (microbens). Nesse mesmo sentido, o espaço urbano, forma

singular de patrimônio ambiental artificial, constitui um macrobem ambiental, peculiar e

diferenciado. O ambiente urbano, na concepção de macrobem, também se caracteriza como

um bem de uso comum do povo, de interesse público e difuso. Dessa forma, o espaço

urbano, ou seja, a cidade, pertence a todos, não podendo ser objeto de apropriação privada.

149 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 56. 150 OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de; GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, Meio Ambiente e Cidadania: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Madras, 2004, p. 58. 151 Ibidem, p. 57. 152 Os alicerces para a definição do meio ambiente como macrobem encontram-se no artigo 3°, inciso I, da Lei n° 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), bem como, nos artigos 225, caput e 170, inciso VI da Constituição Federal de 1988.

67

De outro modo, os elementos que compõem o complexo ambiental, sejam bens

materiais (um rio ou um lago, uma variedade de planta, uma espécie de animal, um imóvel

de valor histórico, dentre outros) ou imateriais (como o ar puro, sonoridade do ambiente,

gases emitidos pelas plantas, dentre outros), são considerados microbens ambientais. Os

microbens podem ter regime de propriedade variado entre pública e privada e áreas e/ou

bens de interesse público, ao contrário dos macrobens que sempre serão qualificados como

bens de interesse público. Os elementos que compõem o meio ambiente, que estejam sob o

regime de uso privado, devem atender ao interesse público inerente aos bens ambientais e

atentar aos critérios estabelecidos pela legislação ambiental.

O solo urbano, fracionado em propriedades privadas, públicas e áreas de interesse

público ou difuso, também é um microbem ambiental. Nesse sentido, a propriedade como

um elemento ambiental individualmente considerado, é apropriável pública ou

privadamente. Entretanto, em que pese a possibilidade de retenção privada, como bem

ambiental que representa, deve cumprir a função socioambiental, observando-se o disposto

no artigo 225 e também o princípio da proteção ambiental conforme estatui o artigo 170,

inciso VI, da Constituição Federal de 1988.

Para atingir os fins propostos da análise da função socioambiental da propriedade

urbana, interessa verificar somente a propriedade em sua forma privada, inserida na

categoria dos microbens ambientais. De tal modo, em um contexto de preservação urbano-

ambiental e qualidade de vida nas cidades, a propriedade, em sua forma privada, à frente e

antes de sê-la, é um microbem ambiental. Incumbe ao proprietário do bem privado um

dever fundamental com a coletividade, de utilização não apenas em seu favor, mas no

interesse de toda a sociedade, representado pelo atendimento à função socioambiental,

condição que integra o direito-dever pertencente ao proprietário.

A propriedade privada, em um panorama de inserção das normas de direito

ambiental na caracterização dos institutos de Direito Privado, deixa de ser um vínculo

jurídico individual e absoluto estabelecido entre uma pessoa e um bem, para apresentar-se

como um vínculo jurídico coletivo, difuso na sua espécie, que se estabelece entre pessoas

indeterminadas e um bem de uso comum, sem deixar de ser um bem de titularidade

privada.

68

Em outras palavras, a caracterização da propriedade privada urbana como um bem

ambiental (microbem) se dá em função da interação e dependência existente do meio

artificial com o meio natural, que compõe o complexo ambiental. É com base nessa relação

de interação que advém a necessidade de pensar o solo urbano de forma não fracionada,

mas em sua totalidade, relacionado e determinante para o ambiente urbano e

principalmente para o meio ambiente como um todo. O meio ambiente é o complexo de

bens, dos quais todas as frações do solo urbano e o próprio ambiente urbano fazem parte.

Sua inadequada utilização traz conseqüências não apenas para o proprietário do imóvel,

mas reflete de forma global no meio ambiente.

Dessa forma, o que caracteriza a propriedade privada como um microbem

ambiental é a percepção de que o uso do solo, com vistas a garantir o meio ambiente

ecologicamente equilibrado, é determinante para a qualidade de vida nas cidades e implica

a preservação e a manutenção do meio ambiente para as presentes e as futuras gerações.

Nesse sentido, a conseqüência de visualizar a propriedade privada como uma espécie de

bem ambiental é a obrigação que se estende ao proprietário do bem em realizar a função

socioambiental de sua propriedade.

Em razão desse entendimento, a função socioambiental a ser cumprida pelo

proprietário do imóvel urbano, exprime o dever de utilização da propriedade, embora de

forma privada, em proveito de toda sociedade, uma vez que a justa titularidade de tal

direito depende do equilíbrio entre o interesse individual e o interesse da coletividade,

caracterizando a função social a ser cumprida. De outra parte, essa mesma obrigação que

se estende ao proprietário, além de ser social, estabelece uma outra faceta, característica da

própria condição humana (do homem como parte integrante do meio ambiente),

representada pelo dever de proteção e preservação ambiental. A funcionalização da

propriedade é envolta de especificidades de natureza social e ambiental, donde falar em

perspectiva socioambiental não explicita uma “posição de concorrência das duas

dimensões da realidade, mas sim de complementariedade das mesmas, afinal, quando as

questões ambientais afloram torna-se muito difícil excluir suas repercussões sociais”.153

153 MENDONÇA, Francisco. S.A.U. – Sistema Ambiental Urbano: uma abordagem dos problemas socioambientais da cidade. In: MENDONÇA, Francisco (Org.). Impactos socioambientais urbanos. Curitiba: UFPR, 2004, p. 188.

69

É importante referir a necessidade de equilíbrio entre o ambiente natural e o

ambiente artificial, bem como entre os elementos que os compõem. A inexistência de

equilíbrio pode acarretar modificações irreversíveis como a destruição de espécies animais

e vegetais. Na cidade, o desequilíbrio entre o artificial e o natural pode levar a grandes

problemas de difícil solução, tais quais, a impermeabilização do solo, a ocorrência de

grandes enchentes, a disseminação de doenças, as mudanças climáticas em função da

destruição da vegetação, formando ilhas de calor, dentre outras. Entretanto, ao contrário

dos ambientes naturais, o equilíbrio na cidade é conservado artificialmente, assegurado

mediante o planejamento urbano.154

Frente ao exposto, observa-se que o parcelamento e a apropriação privada do solo

urbano representam uma das muitas causas das desigualdades sociais e dos problemas

urbano-ambientais. Os embates causados pelo não-acesso à propriedade urbana (a

especulação imobiliária, o déficit habitacional, a ocupação predatória de áreas

inadequadas, dentre outros) evidenciam a necessidade de organização e de planejamento

do espaço urbano. Diante da emergência de Reforma Urbana, foi aprovada a Lei Federal nº

10.257, em julho de 2001, denominada de Estatuto da Cidade.

2.3 O Estatuto da Cidade e suas diretrizes

As preocupações com o ambiente urbano e o seu planejamento remontam ao final

do século XIX e início do século XX, com as intervenções sanitaristas e o surgimento do

direito urbanístico como disciplina autônoma. No final dos anos 70, o planejamento

urbano, nos moldes tradicionais, começa a ser questionado em função da emergência de

movimentos sociais urbanos,155 que pretendiam uma Reforma Urbana. A Emenda Popular

da Reforma Urbana, encaminhada à Constituinte de 1988, resultou no capítulo da Política

Urbana na Constituição Federal de 1988. Com isso, viabilizaram-se novos instrumentos de

154 BRANCO, Samuel Murgel. Ecologia da cidade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2003, p. 7. 155 “Por movimento social urbano podemos designar toda atitude, revestida do caráter coletivo, cujo objetivo é modificar as condições de vida referentes a um determinado grupo, utilizando-se de uma linguagem própria para atingir o objetivo comum. Como exemplo, podemos citar: a) os grupos de pessoas sem-terra ou sem-teto, que procuram “resolver” seus problemas de moradia ocupando áreas em aparente desuso; b) associações de bairros que reivindicam redes de água, de esgotos, mudanças no atendimento por ônibus urbanos, a exigência de vagas nas escolas públicas, as manifestações contra aumentos de tarifas e impostos, etc”. SPÓSITO, Eliseu Savério. A vida nas cidades. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1996, p. 63.

70

controle do uso adequado do solo, trazendo o conceito fundamental de “Direito à Cidade”,

como direito fundamental difuso,156 propiciando o surgimento do Estatuto da Cidade.

Não seria conveniente abordar o capítulo constitucional da Política Urbana e sua

regulamentação através do Estatuto da Cidade, sem antes proceder a um breve resgate de

suas origens. Para uma adequada compreensão da evolução do planejamento urbano no

Brasil, há a necessidade de uma linha histórica do passado ao presente, que proporcione

refletir sobre os acontecimentos que contribuíram para a passagem de uma gênesis

sanitarista para o Estatuto da Cidade como trajetória do direito urbanístico no Brasil.

A legislação urbanística brasileira tem sua origem na tentativa de solucionar os

problemas resultantes do acelerado processo de urbanização. Foi o aumento do crescimento

urbano durante o século XIX, decorrente do processo de industrialização e do modelo

capitalista, que forçou o direito a acompanhar essa “evolução” através do aprimoramento

da legislação. Mesmo com o advento da República, por volta de 1889, as cidades

continuaram a ser pensadas apenas como o local de moradia, ou seja, não havia qualquer

preocupação associada ao planejamento urbano. Nesse cenário, considera-se o Código de

Posturas do Município de São Paulo, de 1886, como uma das primeiras legislações de

caráter urbanístico que procurava estabelecer um padrão a ser seguido para os novos

arruamentos e as novas construções urbanas, além de adotar o zoneamento como um de

seus instrumentos.157

A principal preocupação da época, por parte do poder público, era o

disciplinamento do espaço urbano a fim de estabelecer regras para conter o avanço dos

cortiços para as áreas centrais da cidade. As preocupações eram por higiene e

embelezamento das cidades, dando origem à fase denominada de urbanismo sanitarista.158

De tal forma, durante o período da Primeira República (1889-1930), o foco da ação pública

era o controle da ordem social. A inquietação com a saúde pública, parte do discurso

156 RICARDO, Beto; CAMPANILI, Maura (Orgs.). Brasil socioambiental: desenvolvimento, sim: de qualquer jeito, não. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, p.303-305. 157 SOUZA, Luiz Alberto. A função social da propriedade e da cidade: entre a cidade do direito e o direito à cidade. 2005. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p. 31-32. 158 VILLAÇA apud SOUZA, Luiz Alberto. A função social da propriedade e da cidade: entre a cidade do direito e o direito à cidade. 2005. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p. 32.

71

hegemônico do poder público, serviu apenas de pretexto para fomentar ações de resultados

insuficientes, acelerando ainda mais o processo de segregação espacial.159

É importante salientar que o Código Civil de 1916 foi pioneiro ao introduzir

dispositivos disciplinadores do uso do solo urbano e do direito de construir. Outro marco

importante para o desenvolvimento da legislação urbanística foi a promulgação do Decreto-

Lei nº 25, em 1937, pelo então presidente Getúlio Vargas, tratando do tombamento de bens

e imóveis de interesse público. Também a aprovação da Lei Federal nº 6.766/79 (Lei de

Parcelamento do Solo Urbano)160 constituiu um avanço significativo ao disciplinar às

relações de uso do solo urbano.161

Salienta Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro que os problemas urbanos das décadas de

1960 e 1970 fizeram parte da questão distributiva da sociedade, integrando o programa de

“reformas de base”,162 fundamentais para o desenvolvimento econômico do país. Para ele,

o posicionamento dos teóricos desenvolvimentistas ficou adormecido durante o período do

regime autoritário, que abandonou os temas das reformas urbana e rural e impulsionou a

consolidação da concentração de renda e de poder. Frente a esse cenário, as primeiras

notícias do que hoje se conhece por Estatuto da Cidade datam de 1976 com o “anteprojeto

de desenvolvimento urbano”, elaborado pelo Conselho Nacional de Política Urbana, com o

auxílio de técnicos progressistas. Esse fato suscitou manchetes alarmistas nos jornais,

alertando para o fato de uma possível “socialização do solo urbano” pretendida pelo

governo militar.163

O clima de desconfiança instaurado fez com que o anteprojeto fosse abandonado,

não se transformando em proposição de lei. Em momento posterior, a Conferência

159 RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Da cidade à nação: gênese e evolução do urbanismo no Brasil. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; PECHMAN, Robert (Orgs.). Cidade, povo e nação: gênese do urbanismo moderno. São Paulo: Civilização Brasileira, 1996, p. 58. 160 A Lei Federal de parcelamento do solo urbano, Lei nº 6.766/79, teve sua redação alterada pela Lei nº 9.785/99, visando estabelecer requisitos urbanísticos a serem observados em projetos de loteamentos e desmembramentos, com a finalidade de combater a especulação imobiliária e assegurar ao Poder Público o controle e a gestão do solo urbano. 161 SOUZA, Luiz Alberto. A função social da propriedade e da cidade: entre a cidade do direito e o direito à cidade. 2005. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p. 33. 162 A abordagem acerca das reformas de base iniciou-se com a realização do seminário “Habitação e Reforma Urbana” em 1964. 163 RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003, p. 11-12.

72

Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou o “solo urbano” como tema da Campanha

da Fraternidade, defendendo o enfrentamento da pobreza urbana através do controle

público sobre o mercado imobiliário. Essa iniciativa fez com que houvesse a retomada de

mobilização dos movimentos sociais, ativando o debate acerca da necessidade de uma

política nacional de desenvolvimento urbano.164

Com a democratização do país, entre as décadas de 1970 e 1980, passou-se a

questionar o direito de todos à cidade. As conseqüências da rápida urbanização acarretaram

precárias condições de vida nas grandes cidades, que vão desde a formação de favelas, ao

caos urbano nos serviços de transporte e saneamento básico até a degradação ambiental em

função da ocupação predatória de áreas inadequadas, gerando uma crise urbano-ambiental

sem precedentes. Essa crise faz emergir o movimento pela Reforma Urbana (retomando os

ideais reformistas dos anos 60), que se firmou nas décadas seguintes com o Projeto de Lei

do Desenvolvimento Urbano, o PL 775/83, culminando com a incorporação de um capítulo

tratando exclusivamente das diretrizes nacionais da Política Urbana, consolidado nos

artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988.

O principal objetivo da reforma urbana foi o estabelecimento de novos padrões de

política pública, pautados na instituição da gestão democrática da cidade. Sua finalidade

era ampliar o espaço de exercício da cidadania, primando pela regulação pública do uso do

solo urbano, com vistas a garantir que a propriedade imobiliária atendesse ao princípio da

função social da propriedade. De igual forma, buscava assegurar a justa distribuição dos

ônus e dos benefícios da urbanização.

A Constituição Federal, através dos artigos 182 e 183, reconhece o direito à cidade,

à qualidade de vida e ao bem-estar como direitos fundamentais. São fixados, pela primeira

vez na história constitucional brasileira, princípios referentes à política urbana, à

sustentabilidade, à função social da cidade e da propriedade e à democratização da gestão

urbana. Atribui-se ao município a responsabilidade na promoção da política urbana,

estabelecendo-se o plano diretor como instrumento básico para o desenvolvimento urbano

sustentável e para a implementação da efetivação da função socioambiental da propriedade

e da cidade.

164 Ibidem, p. 12.

73

Com a aprovação da Constituição Federal em 1988, a luta passa a ser pela

regulamentação dos instrumentos da Política Urbana, em função da necessidade de controle

e ordenamento das cidades. Surge então, como projeto de lei em 1989, o PL nº 5.788,

intitulado Estatuto da Cidade, apresentado ao Senado através do nº 171/89, pelo senador

Pompeu de Souza (PSDB/DF).

Embora aprovado e encaminhado à Câmara dos Deputados em 1990, o projeto de

lei foi alvo de campanhas contra sua aprovação, articuladas principalmente pelos sindicatos

da construção civil, com o argumento de que a propriedade não poderia sofrer limitações,

uma vez que tem caráter absoluto. Em função disso, na época, trinta e dois parlamentares

assinaram emendas defendendo o direito de propriedade. Tramitando lentamente até 1997,

o projeto de lei assegura sua primeira aprovação e, em dezembro de 1998, segue para a

última análise de mérito pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI) que,

após aprová-lo, encaminhou-o à Comissão de Constituição, Justiça e Redação, onde foi

aprovado em novembro de 2000. Após toda a tramitação, o projeto retornou ao Senado,

sendo aprovado por unanimidade.165 A trajetória do Estatuto da Cidade foi longa e

demorada, com mais de 11 anos de negociação até ser aprovado em 10 de julho de 2001

como Lei Federal nº 10.257. A lentidão entre a propositura do projeto de lei à sua

aprovação evidencia os conflitos de interesse em jogo no cenário urbano.

Com o intuito de disciplinar o ambiente urbano, o Estatuto da Cidade encontra

amparo constitucional não apenas nos artigos da Política Urbana, mas também no artigo

225 da Constituição Federal de 1988, que trata do meio ambiente. Também conhecido

como “lei do meio ambiente artificial”, traz contribuição essencial à caracterização e à

efetivação da função social e ambiental da cidade e da propriedade urbana. Estabelece

interfaces entre a política urbana e a política ambiental, especialmente ao regular o uso da

propriedade urbana em prol do equilíbrio ambiental e ao garantir o direito às cidades

sustentáveis. Com base no Estatuto da Cidade, para que a sociedade possa usufruir desse

“direito à cidade”, há a necessidade de que a cidade e a propriedade cumpram sua função

social. A função social da cidade e da propriedade passa a ser objetivo da Política Urbana,

165 FELICIO, Bruna da Cunha; FOSCHINI, Regina Célia. A função social e ambiental da propriedade urbana: contribuições do Estatuto da Cidade. In: CONGRESSO DE DIREITO URBANO-AMBIENTAL: 5 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS, 1, 2006, Porto Alegre. Anais. Porto Alegre: CORAG, 2006, p. 619.

74

uma vez que o fundamento da lei do meio ambiente artificial gira em torno da adequada

utilização do solo.

O Estatuto da Cidade estabelece normas de ordem pública e de interesse social que

regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do bem-estar

dos cidadãos e do equilíbrio ambiental. São suas principais diretrizes, a garantia de cidades

sustentáveis, do direito à terra urbana e da cooperação entre governo e sociedade. Para

atingir os objetivos e alcançar as diretrizes apontadas, o Estatuto estabelece uma série de

instrumentos (Parcelamento, edificação e utilização compulsórios, IPTU Progressivo no

Tempo, Desapropriação, dentre outros) e aponta o Plano Diretor como meio de

regulamentar e adequar a lei do meio ambiente artificial à realidade de cada município.

Como o principal elemento de concretização do Estatuto da Cidade e de seus objetivos,

surge a gestão democrática da cidade, que coloca na participação da população o elemento

basilar de legitimação de políticas públicas locais.

Cabe destacar que não poderia ser outro o ponto de partida do Estatuto da Cidade se

não fosse a propriedade urbana. Historicamente, é através da inacessibilidade à propriedade

que se revelou o crescimento das desigualdades sociais. É em função dela que se verifica a

ocupação desordenada e predatória do solo urbano e a tão crescente especulação

imobiliária. Nesse cenário, com base no Estatuto da Cidade, só interessam dois tipos de

propriedade, analisadas conforme a sua utilização de acordo com o artigo 225 da

Constituição Federal de 1988. A primeira propriedade é aquela que atende a função

socioambiental, tem tutela no art. 5° da Constituição e no capítulo da propriedade do

Código Civil. Apresenta-se, de regra, como sustentável e revela-se como objetivo a ser

alcançado em todas as propriedades. A segunda, é a propriedade que não atende a função

socioambiental, caracterizando-se por ser insustentável, na qual deverão incidir os

instrumentos do Estatuto da Cidade.

Convém referir ainda, que o Estatuto da Cidade, contém dois modelos de políticas

urbanas: o redistributivo-regulatório e o distributivo. O modelo redistributivo pretende ser

um instrumento propício a fomentar condições de “financiar a ação pública que igualize as

condições habitacionais e urbanas da cidade”, através da captura de parte da renda gerada

pela expansão urbana, evidenciando-se regulatório “por pretender submeter o uso e a

ocupação do solo urbano, vale dizer, a valorização da terra aos imperativos das

75

necessidades coletivas”. O segundo modelo adotado, o distributivo, está relacionado ao

fornecimento de serviços, direta ou indiretamente pelo Poder Público, tais quais: a

urbanização de favelas, a regularização fundiária, a rede de saneamento básico, dentre

outros.166

O Estatuto da Cidade instaurou um novo cenário para o planejamento urbano,

trazendo a necessidade de revisão das práticas de gestão das cidades. A regulamentação do

Estatuto da Cidade, em nível local, através do Plano Diretor, assume relevante papel no

processo transformador do cenário urbano. Entretanto, somente a aprovação do Estatuto

não é o suficiente para acarretar a redução dos impactos socioambientais, é imprescindível

a revisão das políticas públicas até então adotadas e a efetiva participação da sociedade na

gestão do ambiente urbano.

Nas palavras de Edésio Fernandes,

a aprovação do Estatuto da Cidade consolidou a ordem constitucional quanto ao controle jurídico do desenvolvimento urbano, visando a reorientar a ação do Poder Público, do mercado imobiliário e da sociedade de acordo com novos critérios urbanísticos, econômicos, sociais e ambientais. Sua efetiva materialização em leis e sobretudo políticas públicas, contudo, depende fundamentalmente da ampla mobilização da sociedade brasileira, dentro e fora do aparato estatal.167

De outro lado, é forçoso referir que o espaço urbano, principalmente nas últimas

décadas, vem-se caracterizando por aprofundar as diferenças sociais, ocasionando um

movimento paradoxal: o espaço que une é o mesmo que separa os homens. No entender de

Milton Santos, ao passo que as cidades crescem, aumenta a distância entre os homens. A

proximidade física proporcionada pelo convívio nas cidades, não elimina o distanciamento

social, que reflete uma falsa unidade. “Os progressos de nossa infeliz civilização conduzem

mais e mais a uma sociedade atomizada por um espaço que dá impressão de reunir”.168

Frente a essa realidade, o Estatuto da Cidade permite um modo de percepção global dos

problemas urbano-ambientais, possibilitando e instrumentalizando uma possível resolução

166 RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003, p. 15. 167 FERNANDES, Edésio. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a trajetória do Direito Urbanístico no Brasil. In: MATTOS, Liana Portilho (Org.). Estatuto da Cidade Comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 62. 168 SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Edusp, 2004, p.34.

76

desses problemas em âmbito local, através da aproximação social, por meio da

participação.

De certa forma, o planejamento urbano é reflexo das relações sociais, pois reproduz

essas relações mesmo que indiretamente. É impossível esperar que uma sociedade

caracterizada pela desigualdade possa produzir cidades que não estejam pautadas por essa

característica. O espaço urbano “se constrói e se reproduz de forma desigual e

contraditória. A desigualdade espacial é produto da desigualdade social”.169 O homem

urbano é individualista, apesar de conviver, não interage socialmente, o que acaba por

propiciar a violência urbana e o desvinculamento do valor da solidariedade. “Criar, nas

cidades, espaços de convivência solidária é tarefa difícil, posto que se defronta com uma

concepção privatista de propriedade própria do nosso Direito Civil e, culturalmente, muito

bem assimilada e estratificada”.170

Nesse mesmo sentido, salienta Milton Santos que as desigualdades sociais e a

reprodução do espaço desigual também têm origem no fato de que o espaço urbano

transforma o homem em mero instrumento de trabalho, desvinculando-o de sua

característica principal, de ser sujeito modificador da realidade. Em outra perspectiva, da

cidade como o ambiente de consumo, retrata Milton Santos que “quando se confundem

cidadão e consumidor, a educação, a moradia, a saúde, o lazer aparecem como conquistas

pessoais e não como direitos sociais. [...] o lugar do cidadão vai ficando menor, e até

mesmo a vontade de se tornar um cidadão por inteiro se reduz”.171

Para Ana Fani, a cidade é a representação da materialização do trabalho social, é o

instrumento da criação da mais-valia. Assim, a cidade é vista como um bem material, uma

mercadoria a ser consumida de acordo com as determinações de reprodução do capital, em

que a terra urbana é a principal mercadoria.172 De tal forma, “[...] no centro da crise urbana,

está o poder conferido pela propriedade privada da terra que cria as atuais normas de acesso

à cidade, tanto no que se refere à moradia, como às condições de vida [...]”.173 Assim, para

os não consumidores a realidade é bem mais significativa, pois representada pela exclusão

169 CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1999, p. 23. 170 ROSA, Elianne M. Meira. A cidade antiga e a nova cidade. In: GARCIA, Maria (Coord.). A cidade e seu Estatuto. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 13-14. 171 SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987, p. 127. 172 CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1999, p. 27-28. 173 Ibidem, p. 33.

77

social. De outro modo, em face do espaço coletivo que a cidade representa, Rogério Gesta

Leal destaca:

[...] pensar as possibilidades de uma Cidade Democrática de Direito só é possível a partir de uma Sociedade Democrática de Direito, concebida como resultado de um novo projeto de racionalidade e de civilidade social não meramente instrumental. Tal projeto diz respeito a uma também nova concepção de sociabilidade calcada em valores e objetivos humanitários e solidários, forjado não pela lógica da exclusão social, mas pela premissa de que todos somos cidadãos e merecemos tratamento e consideração iguais”.174

As cidades, em uma análise contemporânea, pertencem ao capital, subjugando os

homens à satisfação das necessidades de consumo e lazer, condicionando as relações

humanas à coisificação na medida em que as relações sociais tendem a aparecer como

relações entre coisas. A forma de vida nas cidades faz com que as pessoas percam a

identificação com o ambiente urbano, com o seu local de moradia e de trabalho, e,

principalmente, percam a identificação com as outras pessoas, diluindo os contatos e

tornando as relações fragmentadas.175

Frente a essa realidade, as desigualdades sociais passam a ser vistas como naturais,

como características da cidade, fomentando a segregação. “A propagação deste sentimento

de não-cidadania e não-solidariedade como algo incontrolável acaba por espalhar uma

sensação de conformismo e o convívio começa a se desintegrar, conduzindo a uma

apartação social [...]”.176 É justamente esse processo de exclusão social e territorial uma

das principais causas da degradação ambiental, pois, não tendo as mesmas condições de

moradia e de acesso a produtos e serviços, a maior parte da população de baixa renda é

ejetada para a periferia e para áreas de risco, como os morros por exemplo, invadem áreas

públicas ou áreas de preservação permanente, acarretando danos para o ambiente natural e

artificial.

Ressalta-se novamente que a forma de apropriação e utilização do solo urbano

representa uma das muitas causas das desigualdades sociais e dos problemas urbano-

ambientais. É inegável que os percalços causados pelo não-acesso à propriedade urbana

174 LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 44. 175 Ibidem, p. 14-15. 176 RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes. Uma cidade para todos. In: GARCIA, Maria (Coord.). A cidade e seu Estatuto. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005, p. 180.

78

evidenciam urgência na promoção de reformas urbanas, voltadas, principalmente, para a

sustentabilidade urbana. Por evidente que o Estatuto da Cidade é aparato legislativo

indispensável na busca de justiça social, de equilíbrio ambiental e do bem-estar coletivo.

Frente a isso, questiona-se: quais instrumentos presentes no Estatuto da Cidade

possibilitam a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana?

Com o propósito de buscar respostas ao questionamento proposto e com base nos

apontamentos subscritos, procurar-se-á verificar quais os instrumentos abarcados na lei do

meio ambiente artificial são aptos a efetivar a função socioambiental da propriedade

urbana. De tal forma, uma vez examinada as origens do Estatuto da Cidade e suas

principais diretrizes, convém analisar a importância da sustentabilidade no espaço urbano.

2.4 Sustentabilidade urbana

A temática urbano-ambiental passou a ocupar relevante papel na sociedade

contemporânea, uma vez que a regulamentação dos dispositivos constitucionais da política

urbana e o conseqüente surgimento do Estatuto da Cidade propiciaram uma progressiva

atenção ao meio ambiente. Em um espaço cada vez mais urbanizado, tornam-se

indispensáveis a instituição e a implementação de políticas públicas177 voltadas para a

sustentabilidade urbana.

177 O significado da expressão políticas públicas de certa forma encerra uma redundância, uma vez que se pode interpretá-las como sendo a arte de lidar com um público que é público. Quando se fala em políticas públicas está se fazendo uma distinção entre aquilo que é público, do ponto de vista orçamentário, e aquilo que é privado, ou seja, fala-se em recursos públicos advindos do Estado. Assim, o significado da expressão toma corpo, designando o conjunto de ações políticas voltadas ao atendimento de demandas sociais, ou seja, é o resultado da atividade política. BONETTI, Lindomar Wessler. Políticas públicas por dentro. Ijuí: Unijuí, 2006, p. 9. Norberto Bobbio salienta que a palavra política está associada a tudo que se relaciona à cidade, sociável ou social. Em suas origens o significado possuiria a designação de pólis, tendo-se assim a possível razão de sua associação ao termo “pública” (comum a todos) para evidenciar ligação ao planejamento, aplicação e execução de medidas necessárias à sociedade. BOBBIO, Norberto. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 159. Por sua vez, Alessandra Gotti Bontempo entende que as políticas públicas estão ligadas a implementação dos direitos sociais, uma vez que a constitucionalização de tais direitos exige do Estado uma postura ativa, a fim de promover condições para que os direitos sociais sejam realmente efetivados. Dessa forma, as políticas públicas representam instrumentos para o cumprimento das normas constitucionais. BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos sociais: eficácia e acionabilidade à luz da Constituição de 1988. Curitiba: Juruá, 2005, p. 210. Por fim, é importante destacar que para Maria Paula Dallari Bucci as políticas públicas são “[...] programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. Políticas públicas são “metas

79

Nas últimas décadas, os meios de comunicação passaram a veicular notícias a

respeito de: aquecimento global, aumento do nível de água nos oceanos, escassez de água

potável, chuva ácida, poluição do ar, questão dos resíduos e lixo urbano, agrotóxicos,

esgotos a céu aberto, grandes enchentes, entre outros. Todas essas questões são reflexos do

impacto das ações humanas sobre o ambiente, colocando a proteção ambiental como

problema de repercussão global.178 Frente a isso, torna-se evidente que a aplicação dos

princípios do desenvolvimento sustentável se impõe, principalmente, no ambiente urbano.

O desenvolvimento sustentável é tema recente, tem origem nas transformações da

ordem internacional e, principalmente, na emergência do movimento ambientalista global.

Com a intensificação dos problemas socioambientais globais, a preocupação com o meio

ambiente aflorou na década de 1960 com a revolução ambiental estadunidense,

expandindo-se para o Canadá, Europa Ocidental, Japão, Nova Zelândia e Austrália na

década de 1970 e atingindo a América Latina, a Europa Oriental, a União Soviética, o Sul

e o Leste da Ásia na década de 1980.179 Assim, o ambientalismo, surgido como um

movimento reduzido de pessoas preocupadas com o meio ambiente, transformou-se em um

movimento multissetorial. 180

coletivas conscientes” e, como tais, um problema de direito público, em sentido lato”. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 241. 178 Por muito tempo no Brasil tivemos (ou ainda temos) um “[...] modelo de desenvolvimento ecologicamente predatório, economicamente concentrador, socialmente empobrecedor e culturalmente alienante. Devastamos mais da metade de nosso país acreditando que era preciso deixar a natureza para entrar na história, pois eis agora que esta última, com sua costumeira predileção pela ironia, exige-nos como passaporte justamente a natureza”. RICARDO, Beto; CAMPANILI, Maura (Orgs.). Brasil socioambiental: desenvolvimento, sim: de qualquer jeito, não. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, [s.p]. 179 Para Maria de Assunção Ribeiro Franco, “o conceito de desenvolvimento sustentável surgiu da Estratégia Mundial para a Conservação (World Conservation Strategy) lançada pela União Mundial para a Conservação (IUCN) e pelo Fundo Mundial para a Conservação (WWF), apoiados pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), embora já tivesse aparecido com o nome de “ecodesenvolvimento” na Reunião de Founeux em 1971 [...]. Explica que a sustentabilidade tem origem no conceito ecológico do “comportamento prudente” do predador em não explorar demasiadamente sua presa, tendo em vista assegurar uma “produção ótima sustentável”, em outras palavras, a sustentabilidade quer passar a idéia de o quanto se pode consumir sem empobrecer. FRANCO, Maria de Assunção Ribeiro. Planejamento ambiental para a cidade sustentável. 2. ed. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001, p. 26. 180 Salientam Eduardo Viola e Hector Leis, que a preocupação pública com a deterioração ambiental fez emergir e desenvolver: 1) organizações não-governamentais e grupos comunitários de proteção ambiental; 2) agências estatais incumbidas de proteger o ambiente; 3) grupos e instituições científicas de pesquisa dos problemas ambientais; 4) a implementação de um paradigma de gestão dos processos produtivos por parte de administradores e gerentes, buscando a redução da poluição, a conservação da energia e o controle de qualidade; 5) um mercado consumidor verde, demandando alimentos orgânicos, papel reciclado e produtos com tecnologias limpas, entre outros; 6) agências e tratados internacionais. VIOLA, Eduardo J.; LEIS, Hector R. A evolução das políticas ambientais no Brasil, 1971-1991: do bissetorialismo preservacionista para o multissetorialismo orientado para o desenvolvimento sustentável. In: HOGAN, Daniel Joseph; VIEIRA, Paulo Freire (Orgs.). Dilemas socioambientais e desenvolvimento sustentável. 2.ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 75-76.

80

É importante referir que, no início da década de 1970, o ambientalismo contava

com dois posicionamentos: a minoria catastrofista e a maioria gradualista. A minoria

catastrofista (noticiada pelo relatório “Os limites de Crescimento”, elaborado para o Clube

de Roma) acreditava ser necessário parar de imediato o crescimento econômico e

populacional. Por sua vez, a maioria gradualista (evidenciada com a declaração da

Conferência de Estocolmo em 1972) defendia a necessidade do estabelecimento de

mecanismos de proteção ambiental voltados à reversão da dinâmica demográfica e

populacional, visando a corrigir ou, pelo menos, atenuar os problemas ocasionados pelo

desenvolvimento econômico.181

De outro modo, com a consolidação do ambientalismo como movimento

internacional, ao final da década de 1980, passam a distinguir-se duas posições

relacionadas à política: uma minoritária e outra majoritária. A posição minoritária não

assume características de dimensão política, apenas enfatiza a necessidade de atitudes

éticas e espirituais de tendência biocêntrica. Já a posição majoritária admite uma dimensão

política, subdividindo-se em duas outras posições: uma minoritária radical, considerando a

necessidade de disseminação de valores ecológicos e a redistribuição do poder político e

econômico; e outra majoritária reformista, defendendo a urgência na adoção de um modelo

de desenvolvimento centrado na sustentabilidade social e ambiental, assim como a

necessidade de incentivo ao planejamento familiar.182

Frente às particularidades do cenário ambientalista internacional, o conceito de

desenvolvimento sustentável passa a ocupar posição central, sobretudo após a publicação

do relatório da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1987

(“Nosso Futuro Comum”, também conhecido como Relatório “Brundtland”).183 Em face

181 Ibidem, p. 76. 182 Ibidem, p. 77. 183 No campo do desenvolvimento sustentável, existem muitas dimensões de sustentabilidade com valores ético-sociais muito diversos. Nesse sentido, Eduardo Viola e Hector Leis classificam as versões de desenvolvimento sustentável em três categorias: estatista, comunitária e de mercado. Para eles, “o enfoque estatista considera que a qualidade ambiental é essencialmente um bem público que somente pode ser resguardado eficientemente através de uma incisiva intervenção normativa, reguladora e promotora do Estado”, esse enfoque baseia-se exclusivamente em mecanismos de comando e controle. Já o enfoque comunitário considera que as organizações de base da sociedade têm papel predominante na transição para uma sociedade sustentável, valorizando “as possibilidades de avanços em nível local e regional nos lugares em que as mudanças nos valores da população tenham sido mais significativas”, priorizando o princípio da equidade social. De outro lado, o enfoque de mercado, “afirma que através da lógica intrínseca do mercado, com significativa apropriação privada dos recursos naturais e da qualidade ambiental e expansão dos consumidores verdes, pode-se avançar eficientemente na direção de uma sociedade sustentável”. Esse

81

disso, o debate dos anos 70, separando as questões ambientais do tema do

desenvolvimento, é substituído pela preocupação em atingir um desenvolvimento

sustentável, buscando harmonizar desenvolvimento econômico e proteção ambiental.

O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: 1 – o conceito de “necessidades”, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; 2 – a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras [...]. Em seu sentido mais amplo, a estratégia do desenvolvimento sustentável visa a promover a harmonia entre os seres humanos e entre a humanidade e a natureza. No contexto específico das crises do desenvolvimento e do meio ambiente surgidas nos anos 80 – que as atuais instituições políticas e econômicas nacionais e internacionais ainda não conseguiram e talvez não consigam superar - , a busca do desenvolvimento sustentável requer: um sistema político que assegure a efetiva participação dos cidadãos no processo decisório; um sistema econômico capaz de gerar excedentes e know-how técnico em bases confiáveis e constantes; um sistema social que possa resolver as tensões causadas por um desenvolvimento não equilibrado; um sistema de produção que respeite a obrigação de preservar a base ecológica do desenvolvimento; um sistema tecnológico que busque constantemente novas soluções; um sistema internacional qu estimule padrões sustentáveis de comércio e financiamento; e, um sistema administrativo flexível e capaz de autocorrigir-se.184

No Brasil, os primeiros antecedentes do ambientalismo remontam ao ano de 1958,

em razão da criação da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza. Entretanto, o

processo de criação do ambientalismo brasileiro se dá efetivamente na década de 1970,

quando começam a aflorar propostas de preservação ambiental por parte do Estado e da

sociedade civil, estruturando um movimento bissetorial constituído por associações

ambientalistas e agências estatais de meio ambiente.185 Na década de 1980, com a

disseminação da preocupação ambiental, o ambientalismo brasileiro transforma-se em um

movimento multissetorial.

enfoque considera necessária a existência de mecanismos reguladores estatais e a atuação da sociedade organizada, subordinados aos mecanismos de mercado. Ibidem, p. 79-80. 184 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso Futuro Comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 46. 185 É importante lembrar que na época da realização da Conferência de Estocolmo, em 1972, o governo brasileiro assumia posição de resistência ao reconhecimento dos problemas ambientais. A principal justificativa para tal atitude focava-se no argumento de que a poluição existente era a miséria, negando-se ao reconhecimento da questão da explosão demográfica no Brasil. Os fundamentos desse posicionamento estão ligados à política interna da época, que procurava atrair indústrias (mesmo que poluentes), baseando-se na idéia de desenvolvimento a qualquer custo. Assim, de certa forma, a criação da Secretaria Especial do Meio Ambiente, em 1973, foi uma tentativa de diminuir a imagem negativa causada pelo Brasil em Estocolmo. VIOLA, Eduardo J.; LEIS, Hector R. A evolução das políticas ambientais no Brasil, 1971-1991: do bissetorialismo preservacionista para o multissetorialismo orientado para o desenvolvimento sustentável. In: HOGAN, Daniel Joseph; VIEIRA, Paulo Freire (Orgs.). Dilemas socioambientais e desenvolvimento sustentável. 2. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995, p. 81-82.

82

Cabe ressaltar ainda, que o ano de 1990 foi importante para a definição da

problemática ambiental brasileira. Com a decisão de sediar a Conferência das Nações

Unidas sobre Meio ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD – 92), houve uma mudança

qualitativa nos debates ambientais, não se falando mais em proteção ambiental e

desenvolvimento econômico dissociados. Alterou-se o eixo do debate para o enfoque de

um novo estilo de desenvolvimento, permeado pela proteção ambiental.

Essa nova relação “sociedade - meio ambiente” foi expressa, mesmo que de forma

parcial, na Resolução 44/228, de 22 de dezembro de 1989, na Assembléia Geral das

Nações Unidas, quando convocada a Conferência sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992. Assim, com a ECO 92,

como ficou conhecida, o desenvolvimento sustentável foi adotado na Declaração do Rio186

e na Agenda 21187 como objetivo a ser alcançado. De tal forma, superou-se o antagonismo

entre desenvolvimento socioeconômico e proteção ao meio ambiente. A propósito, cabe

referir que a Agenda 21 destaca ainda, como indispensáveis ao desenvolvimento

sustentável, o estabelecimento de novos padrões de consumo, alinhando-se ao exposto no

Princípio 8 da Declaração do Rio,188 o que significa

186 Princípio 4: “Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste”. Declaração do Rio. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007. 187 No preâmbulo da Agenda 21 consta: “A humanidade se encontra em um momento de definição histórica. Defrontamos-nos com a perpetuação das disparidades existentes entre as nações e no interior delas, o agravamento da pobreza, da fome, das doenças e do analfabetismo, e com a deterioração contínua dos ecossistemas de que depende nosso bem-estar. Não obstante, caso se integrem as preocupações relativas a meio ambiente e desenvolvimento e a elas se dedique mais atenção, será possível satisfazer às necessidades básicas, elevar o nível da vida de todos, obter ecossistemas melhor protegidos e gerenciados e construir um futuro mais próspero e seguro. São metas que nação alguma pode atingir sozinha; juntos, porém, podemos - em uma associação mundial em prol do desenvolvimento sustentável”. Agenda 21. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007. 188 Princípio 8: “Para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de vida mais elevada para todos, os Estados devem reduzir e eliminar os padrões insustentáveis de produção e consumo, e promover políticas demográficas adequadas”. Declaração do Rio. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007.

83

[...] advogar um novo estilo de desenvolvimento que seja ambientalmente sustentável no acesso e no uso dos recursos naturais e na preservação da biodiversidade; socialmente sustentável na redução da pobreza e das desigualdades sociais e promotor da justiça e da eqüidade; culturalmente sustentável na conservação do sistema de valores, práticas e símbolos de identidade [...]; politicamente sustentável ao aprofundar a democracia e garantir o acesso a e a participação de todos nas decisões de ordem pública. Este novo estilo de desenvolvimento tem por norte uma nova ética do desenvolvimento, ética na qual os objetivos econômicos do progresso estão subordinados às leis de funcionamento dos sistemas naturais e aos critérios de respeito à dignidade humana e de melhoria da qualidade de vida das pessoas.189

Desse modo, a Agenda 21 global, como um projeto audacioso pautado em um pacto

ético, prevê a elaboração e a implementação de Agenda 21 nacional e de Agenda 21 local

pelos países signatários. A versão brasileira da Agenda 21 nacional representa um processo

e um instrumento de planejamento participativo para o desenvolvimento sustentável. A

construção da Agenda 21 brasileira iniciou em 1996 e foi finalizada em 2002, sendo que a

partir de 2003, entrou em fase de implementação. De outro lado, a agenda 21 local

representa a criação e a implementação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento

sustentável. Com a Agenda 21 local há o reconhecimento da importância do nível local na

concretização de políticas públicas uma vez que as estratégias de sustentabilidade se

evidenciam mais eficientes quando concebidas com o apoio da população.

Nesse sentido, sendo estabelecida a Agenda 21 local pelo município e

implementadas as diretrizes do Estatuto da Cidade através do Plano Diretor municipal, a

possibilidade de efetivação da função socioambiental da propriedade urbana aumenta

consideravelmente. A propriedade urbana, quando atende a função socioambiental,

promove o desenvolvimento racional, adequado e sustentável do solo urbano. A função

socioambiental da propriedade urbana está intimamente ligada ao princípio do

desenvolvimento sustentável, pois ambas são objetivos e diretrizes gerais da lei do meio

ambiente artificial.

No entanto, fazendo um breve recorte, é impossível não referir, como bem lembra

Renato Nalini, que a sociedade egoísta não crê na preservação do ambiente para as futuras

gerações. Importa usufruir, ocupar todos os terrenos e cortar todas as árvores. Interessa

traduzir tudo em pecúnia. Não se observa que a natureza e o ambiente artificial

189 GUIMARÃES, Roberto P. A ética da sustentabilidade e a formulação de políticas de desenvolvimento. In: VIANA, Gilney; SILVA, Marina; DINIZ, Nilo (Orgs.). O desafio da sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 55.

84

equilibrados não estão dissociados do progresso, de tal maneira que a degradação a todas

as formas de meio ambiente vem assumindo proporções catastróficas. Nas cidades, a

problemática agrava-se ainda mais em decorrência de uma falsa idéia de urbanização. Em

nome do desenvolvimento, justifica-se a destruição do ambiente, invocando-se

incompatibilidade entre progresso e preservação.190

Considerável parcela das agressões ao ambiente deriva do desconhecimento. O ser humano desconhece - ou se comporta como se o desconhecesse - a interação entre homem e Natureza. [...] Não satisfeita, a ignorância conseguiu uma eficiente aliada: a cupidez. Acreditando-se eterno, o ser humano apenas se preocupa com amealhar mais e mais matéria, como se lhe fosse possível dela usufruir durante a eternidade. O dinheiro anestesia a consciência. Em nome dele tudo se legitima. As pessoas acostumaram-se a ver a natureza como um supermercado gratuito. Dali tudo se extrai, nada se devolve.191

As sociedades contemporâneas têm-se mostrado complexas sociedades de risco,

baseadas num modelo de exploração econômica dos recursos ambientais, cujo efeito são

danos ambientais sistemáticos, acabando por vitimizar as gerações presentes e futuras.

Nessa seara, José Rubens Morato Leite investiga a possibilidade de instaurar um Estado de

Direito Ambiental. Contudo, salienta que a construção desse Estado parece um tanto

utópica se, levado em conta que nele deve haver um estado de direito democrático, de

justiça social e ambiental para sua concretização.192

Nas palavras de Boaventura de Sousa Santos,

sua realização pressupõe a transformação global, não só dos modos de produção, mas também do conhecimento científico, dos quadros de vida, das formas de sociabilidade e pressupõe, acima de tudo, uma nova relação paradigmática com a natureza, que substitua a relação paradigmática moderna. É uma utopia democrática porque a transformação a que aspira pressupõe a repolitização da realidade e o exercício radical da cidadania individual e coletiva.193

Para edificação do Estado de Direito Ambiental, surgem obstáculos, tendo em vista

que as exigências para sua implementação dizem respeito a uma dimensão transfronteiriça,

de modo que são necessários instrumentos que atinjam nível global. Contudo, ao ver de

190 NALINI, Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas, SP: Millennium Editora, 2003, p. XV-XXVI. 191 Ibidem, p. XXVII. 192 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Transdisciplinaridade e a Proteção Jurídico-ambiental em Sociedades de Risco: Direito, Ciência e Participação. In: LEITE, José Rubens Morato; BELLO FILHO, Ney de Barros (Org.). Direito Ambiental Contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2004, p.104. 193 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000, p. 43-44.

85

José Rubens Morato Leite, submeter a proteção ambiental a uma internacionalização

poderia ocasionar a transferência de soberania dos Estados. Deve-se atentar ao fato de que

os verdadeiros implementadores das políticas ambientais são os órgãos locais e a

comunidade.194

Objetivando alcançar o Estado de Direito Ambiental, propõe-se a superação da

crise de percepção pela qual passa a sociedade, através de instrumentos que busquem

produzir a informação, por meio de soluções transdisciplinares, possibilitando a construção

do consenso democrático e modificação da compreensão do futuro, atribuindo-se

obrigações e responsabilidades a todos os membros da sociedade. Nesse cenário de

mudanças, a participação popular é fundamental, uma vez que possibilita o exercício da

democracia ambiental, de tal forma que a transdisciplinaridade das questões ambientais

sejam alternativas para a organização de um modelo de Estado sustentável para o futuro.

Para que esse modelo de Estado se materialize, em primeiro lugar, deverá haver

uma nova cultura ambiental capaz de coibir a reiteração de práticas lesivas. Isso, no

entanto, não depende do governo, pois a crise não é do ambiente, a crise é de valores. É

uma crise ética.195

Em relação à proposta desenvolvimentista de um Estado Ambiental, José Joaquim

Gomes Canotilho refere-se a um "Estado Constitucional Ecológico" conjugado à idéia de

democracia sustentada, definindo, para tanto, que

[...] o Estado constitucional, além de ser e dever ser um Estado de Direito democrático e social, deve ser também um Estado regido por princípios ecológicos; [...] o Estado ecológico aponta para formas novas de participação política sugestivamente condensadas na expressão democracia sustentada.196

A democracia do Estado moderno precisa se adequar ao desenvolvimento

ambientalmente justo. A proposta de Canotilho é de que se possibilite a percepção dos

problemas jurídico-ambientais e a tutela ambiental como responsabilidade global. Ao

194 LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Transdisciplinaridade e a Proteção Jurídico-ambiental em Sociedades de Risco: Direito, Ciência e Participação. In: LEITE, José Rubens Morato; BELLO FILHO, Ney de Barros (Org.). Direito Ambiental Contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2004, p.106. 195 NALINI, Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas, SP: Millennium Editora, 2003, p. XXXIII. 196 CANOTILHO apud NALINI, Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas, SP: Millennium Editora, 2003, p. 31.

86

direito de cada um corresponde o dever de cidadania na defesa do meio ambiente, de tal

sorte que o meio ambiente é considerado um bem ambiental difuso.197 Contudo, deve-se ter

uma perspectiva associativa que estimule a democracia participativa no suprimento das

deficiências do Estado.

Canotilho propõe alcançar o nível de Estado Constitucional Ecológico, concebendo,

de forma integrada, o ambiente, através de uma proteção global e sistemática;

institucionalizando os deveres fundamentais ecológicos, criando uma comunidade com

responsabilidade ambiental, ou seja, a tarefa cidadã de zelar pelo meio ambiente, o agir

interativo da administração. Menciona que a tutela sistemática e global do meio ambiente

não é tarefa solitária dos agentes públicos; é também dever dos cidadãos. Como

conseqüência dessa nova concepção de Estado Constitucional Ecológico, haverá na

participação popular uma maior responsabilização de todos e será incutida a idéia de

sustentabilidade.198

Diante da realidade de um período de intensos contrastes, a proteção ambiental

indica urgência na formação de uma nova concepção de Estado, um Estado

Democraticamente Ambiental. Há necessidade de repensar a teoria jurídica tradicional e

buscar uma transdisciplinaridade, relacionando as ciências sociais, humanas e jurídicas na

busca do bem comum. Cumpre salientar que o homem está inserido no meio ambiente, ou

seja, faz parte dele, não estando desvinculado ou apartado. Diante de tal assertiva,

depreende-se que, para a proteção efetiva ao meio ambiente, deve haver o deslocamento da

posição do homem como centro, desvinculando-se da teoria antropocêntrica clássica, para

conceber o homem como parte do meio ambiente.199

Contudo, conforme explica Fernanda Luiza Fontoura de Medeiros, diante da

realidade, apesar da grandiosidade da proteção ambiental como um direito fundamental e

com todas as conseqüências que emanam disso, não se tem mostrado suficientemente

eficaz. Torna-se necessário o reconhecimento da vinculação jurídica da sociedade, em seu

197 Ibidem, 32-33. 198 Ibidem, p. 33-34. 199 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. A proteção ambiental diante da necessária formação de uma nova concepção de um estado democraticamente ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman (Org.). Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, v. 2, p. 197-198.

87

aspecto coletivo e individual, e do próprio poder público, para que se torne possível a

efetivação das normas constitucionais e infraconstitucionais de proteção ambiental.200

Outra questão que se coloca frente à irreversível urbanização em todo planeta é a

ecologia urbana. As relações entre o ambiente natural e o artificial, num primeiro

momento, são vistas de forma conflituosa, aos poucos, percebe-se que as cidades não

constituem um ente em separado da natureza. Em relação às cidades, há um intenso desafio

ecológico, intimamente ligado à questão da função socioambiental da propriedade e do

desenvolvimento das funções sociais da cidade.

Deve-se perceber que a cidade de concreto, de asfalto e de vidro constituem uma

natureza transformada, um novo ecossistema, diferente do ambiente natural, mas não fora

dele. “A criação do homem interage incessantemente, para o bem ou para o mal, com o

ambiente natural que o rodeia e o envolve. No ambiente construído, a natureza não chega a

desaparecer”.201 O meio ambiente natural reage, se a ação do homem tende ao

desequilíbrio, trazendo efeitos inesperados ao meio ambiente construído. Para Alfredo

Sirkis, “a ecologia urbana não se confunde com simples conservação do verde e de

amenidades paisagísticas”, envolve, acima de tudo, a “sustentabilidade econômica, social,

energética das relações humanas e daquelas entre o meio ambiente natural e o

construído”.202

Os modelos urbanísticos, uma vez implementados, têm vida longa, e suas

conseqüências sobrevivem a gerações, sendo difícil reverter os males causados. Ao

contrário do que se pensa, a urbanização dos últimos anos, não é simples produto de uma

estrutura rural injusta. Tampouco da redução de mão-de-obra, conseqüente da mecanização

dos meios de produção. É "movida pelo desejo da juventude rural de acesso a

oportunidades, bens materiais, conhecimentos, vivências que só a urbe tem como oferecer,

precisamente pela sua imensa gama de oportunidades de contato".203

200 Ibidem, p. 200. 201 SIRKIS, Alfredo. O desafio ecológico das cidades. In: TRIGUEIRO, André (Coord.). Meio ambiente no século 21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 215. 202 Ibidem, p. 218. 203 Ibidem, p. 219.

88

De tal forma, o principal obstáculo, no desenvolvimento das diretrizes trazidas pelo

Estatuto da Cidade e no estabelecimento de um espaço urbano sustentável, é que a maioria

das cidades possui, em sua parte informal, ou seja, nas "favelas", desequilíbrios que

comprometem um possível espaço urbano sadio. Para que se possa desenvolver uma

ecologia urbana, devem-se estabelecer políticas públicas que integrem as "favelas" à

cidade formal, propiciando-lhes condições adequadas de urbanização e de uma maior

atuação do poder público nas questões de interesse local.

Ao contrário do que afirma Boaventura de Sousa Santos, Alfredo Sirkis entende

que "o objetivo de uma cidade sustentável não é uma meta utópica, ela depende de uma

série de ações perfeitamente alcançáveis, conquanto, algumas difíceis por fortes injunções

culturais, políticas e econômicas".204

O termo “cidade sustentável” surgiu logo após a difusão do princípio do

desenvolvimento sustentável, na década de 1970. Foi nessa época que se pôde perceber a

degradação da qualidade de vida, principalmente no espaço urbano, causada pelo consumo

exacerbado de recursos naturais. Entretanto, o conceito de cidade sustentável somente

apareceu no cenário internacional a partir da década de 1990, tendo papel relevante para o

desenvolvimento do conceito a promoção de conferências do Habitat promovidas pela

Organização das Nações Unidas nos anos de 1976 (Habitat I – Vancouver, Canadá), 1996

(Habitat II – Istambul, Turquia) e 2001 (Istambul+5 - Nova Iorque, EUA).205

No ordenamento jurídico brasileiro, o conceito de cidade sustentável surgiu com o

Estatuto da Cidade, que prevê, no art. 2°, inciso I, o que vem a ser uma cidade sustentável:

Art. 2° A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;206

204 Ibidem, p. 228. 205 A conferência Habitat I, foi concomitante à criação do Centro das Nações Unidas para os Estabelecimentos Humanos, em Nairobi, no Quênia. Em seqüência, a conferência Habitat II possibilitou a produção de dois documentos internacionais: a Declaração de Istambul (sobre os Estabelecimentos Humanos) e a Agenda Habitat. SILVA, José Antônio Tietzmann e. As perspectivas das cidades sustentáveis: entre a teoria e a prática. In: Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 1, n. 43, p. 133-176, jul./set. 2006, p. 140-141. 206 BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial [da] República

89

Desse conceito legal, entende-se que cidade sustentável é aquela que atende ao

disposto no art. 2°, inciso I. No entanto, não basta a forma como a lei tentou conceituar o

que seja a sustentabilidade da cidade, eis que, atualmente, a construção de comunidades

sustentáveis tem sido um dos maiores desafios.

Em verdade, conforme leciona Fritjof Capra, as definições de sustentabilidade são

"conselhos" morais, que advertem sobre a responsabilidade de propiciar às futuras

gerações um mundo com tamanhas oportunidades, tais quais existem hoje. Lembra ele, que

a sustentabilidade está ligada ao movimento da ecologia profunda, uma vez que não se

separa o homem do ambiente como objeto isolado, mas sim, visualiza-se o mundo como

uma rede de fenômenos interligados, no qual o homem é apenas um dos filamentos da teia

da vida. Nessa nova forma de perceber as interconexões, desenvolve-se um pensamento

sistêmico, em que as cidades, embora figurem como ecossistemas diferenciados dos

ecossistemas naturais, são também um sistema vivo e interligado, fazendo parte do todo.207

De outro modo, tomando-se a teoria dos sistemas vivos, discutida de forma

instigante por Fritjof Capra, pode-se dizer que existe um elo entre as comunidades

ecológicas e as comunidades humanas. As comunidades ecológicas (ecossistemas) têm se

organizado, durante bilhões de anos de evolução, de maneira sutil e complexa, com a

finalidade da sustentabilidade. Para ele, as comunidades humanas deveriam aprender a

viver de maneira sustentável, adotando o princípio da “interdependência”, no qual, todos

os membros da comunidade ecológica estão interligados em uma rede de relações - a teia

da vida – onde o comportamento de cada membro depende do comportamento dos outros.

Dessa forma, “o sucesso da comunidade depende do sucesso de cada um de seus membros,

enquanto que o sucesso de cada membro depende do sucesso da comunidade como um

todo”.208

Nessa seara, as preocupações com o meio ambiente adquirem importância, uma vez

que as conseqüências da irresponsabilidade humana têm-se mostrado cada vez mais

alarmantes. Quanto a isso, refere que os problemas tanto em relação ao meio ambiente

Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 de jul. 2001. Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007. 207 CAPRA, Fritjof. Alfabetização ecológica: o desafio para a educação do século 21. In: TRIGUEIRO, André (Coord.). Meio ambiente no século 21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003, p. 19-22. 208 CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 232.

90

natural como ao artificial, não podem ser entendidos isoladamente. Os problemas são

sistêmicos. "Esses problemas precisam ser vistos, exatamente, como diferentes facetas de

uma única crise, que é, em grande medida, uma crise de percepção". Algumas das soluções

para os principais problemas urbanos são simples. Como refere Fritjof Capra, "requerem

uma mudança radical em nossas percepções, no nosso pensamento e nos nossos

valores".209

Nas palavras de Leonardo Boff, "todos nós somos reféns de um paradigma que nos

coloca contra o sentido do universo, sobre as coisas ao invés de estar com elas". Nesse

aspecto, "a ecologia representa um novo paradigma civilizacional, uma forma de organizar

os seres humanos, a natureza e todo o universo". "Há que se criar uma nova espiritualidade

nas pessoas para que se evoque cuidado e respeito com o Planeta Terra".210

Incutido um ponto de vista sistêmico em relação às cidades, as soluções viáveis são

as sustentáveis. Para que o ideal de sustentabilidade se viabilize, há que ocorrer uma

considerável mudança de paradigmas. Isso significa "uma maneira organizada, sistemática

e coerente de nos relacionarmos com nós mesmos e com todo o resto à nossa volta. Trata-

se de modelos e padrões de apreciação, de explicação e de ação sobre a realidade

circundante".211

Ou o desenvolvimento é sustentável, ou não é desenvolvimento. O “preço” que temos de pagar é o de melhorar o ambiente, aprender a evoluir em sintonia com ele, pois não há verdadeiro avanço da civilização que não seja ao mesmo tempo um melhoramento das condições ambientais propícias a nossa espécie. [...] é preciso fazer uma revisão drástica do paradigma do crescimento indefinido e a qualquer custo [...], pois o futuro nos desafia a uma nova síntese: a sustentabilidade socioambiental.212

A crise urbana pode ter ido longe demais para que se possa voltar. Contudo, a

construção de uma sociedade sustentável pode ser uma alternativa viável no presente e no

futuro. Mas para que as cidades se tornem sustentáveis, necessita-se, por primeiro,

despertar para novos valores. Como um grande passo urbanístico, a lei do meio ambiente

artificial surge para adequar o meio urbano a um efetivo espaço urbano sustentável,

209 Ibidem, p. 23. 210 BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004. 211 KUHN apud BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 25. 212 RICARDO, Beto; CAMPANILI, Maura (Orgs.). Brasil socioambiental: desenvolvimento, sim: de qualquer jeito, não. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004, [s.p].

91

possibilitando a compreensão e o respeito por todas as formas de vida. Numa primeira

análise, as contribuições de Capra e Boff podem parecer utópicas, se relacionadas ao meio

ambiente artificial, ainda que, indiquem solução singular. Aliando-se educação ambiental e

participação popular de forma interdisciplinar, pode-se alcançar uma gestão ambiental

compartilhada, que efetive as funções sociais das cidades e das propriedades urbanas, em

prol do bem comum e em benefício das presentes e futuras gerações.

3 A CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPR IEDADE URBANA SOB A

ÓTICA DO ESTATUTO DA CIDADE

O século XX foi marcado pela emergência de uma nova racionalidade em relação

ao planejamento e à gestão urbano-ambiental das cidades brasileiras. A criação e a

aprovação do Estatuto da Cidade foi e ainda é considerada uma grande conquista dos

movimentos sociais pela reforma urbana e de toda sociedade. A lei do meio ambiente

artificial, como também é conhecido, trouxe consigo o debate sobre a(s) possibilidade(s) de

efetivação da função socioambiental da propriedade urbana a partir de um enfoque

democrático, participativo e sustentável de gestão das cidades. Com isso, passou-se a

questionar: quais instrumentos presentes no Estatuto da Cidade possibilitam a efetivação da

função socioambiental da propriedade urbana?

Procurando responder a esse questionamento, pretende-se, nesse capítulo, verificar

quais instrumentos do Estatuto da Cidade viabilizam a concretização da função

socioambiental da propriedade urbana. Para tanto, buscar-se-ão analisar o plano diretor

enquanto instrumento público, o IPTU Progressivo no Tempo como instrumento tributário-

financeiro, a desapropriação como instrumento jurídico-político, a gestão compartilhada, as

audiências públicas e os conselhos municipais como instrumentos democrático-

participativos.

3.1 O Plano Diretor enquanto instrumento público

No Brasil, a ausência de diálogo entre a população e o poder público desencadeou,

ao longo da história, a produção de planos e de leis urbanístico-ambientais com parâmetros

excludentes, refletindo apenas os interesses de uma pequena parcela da população. O

Estatuto da Cidade, nesse cenário, representa um grande avanço nas políticas urbano-

ambientais ao instituir instrumentos que visam a garantir a participação da população no

processo decisório de planejamento e de gestão do espaço urbano. Dessa forma, o Plano

Diretor surge como o principal instrumento à disposição do ente federativo municipal para

alcançar os objetivos da política urbana e garantir condições dignas de vida aos cidadãos.

93

O Plano Diretor é tratado pelo constituinte no título da ordem econômica e

financeira, capítulo da política urbana, artigo 182 da Constituição Federal de 1988, onde se

encontram as atribuições e as diretrizes gerais do Plano Diretor. No Estatuto da Cidade,

está previsto como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão

urbana no artigo 4º, inciso III, alínea “a”. É especificado, em capítulo próprio, dos artigos

39 a 42, nos quais o legislador ratifica as funções constitucionais do Plano Diretor.

Antes de adentrar ao estudo do Plano Diretor com base nos dispositivos do Estatuto

da Cidade, cabe tecer comentários, relacionando a concepção tradicional de planejamento à

concepção de Plano Diretor contida na lei do meio ambiente artificial. Na concepção

tradicional, a cidade era tratada como objeto puramente técnico, em que a função da lei

seria apenas estabelecer padrões satisfatórios de qualidade para o funcionamento das

cidades. Ignorava-se qualquer dimensão de reconhecimento de conflitos ou da realidade da

desigualdade de condições de renda e sua influência sobre o funcionamento dos mercados

imobiliários. Naquele momento, com as limitações do poder legislativo e a desarticulação

da sociedade civil, o planejamento urbano foi produzido no gabinete, enquadrado e

limitado por uma visão centralizadora e tecnocrática que dominava o sistema de

planejamento do país. A partir do final dos anos 70, os parâmetros tradicionais do

planejamento urbano começam a ser fortemente questionados, devido à emergência dos

movimentos sociais. Esses movimentos impulsionaram o tema reforma urbana, politizando

o debate sobre a legalidade urbanística e influenciando fortemente a formulação de

instrumentos urbanísticos. Foi tema de debate a relação da legislação com a cidade real e

sua responsabilidade com a cidade irregular, informal e clandestina. A necessidade de

reconhecer e legalizar a cidade real resulta na proposta de reformulação da legislação.

Diferentemente da concepção tradicional (que praticava a separação total entre

planejamento e gestão), o novo paradigma parte do pressuposto de que a cidade é

produzida por uma multiplicidade de agentes que devem ter sua ação coordenada, não em

função de um modelo produzido em escritórios, mas, a partir de um pacto social, que

corresponda ao interesse público da cidade e dos cidadãos.213 Essa nova concepção de

planejamento exige a construção de novos princípios, instrumentos e formas de

intervenção pública.

213 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 40-42.

94

Para Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Adauto Lucio Cardoso, o período de reformas

e de reconstrução do espaço urbano iniciou com o desenvolvimento do capitalismo e a

necessidade de adaptação das cidades às exigências da economia industrial. A preocupação

dos planejadores da época era a higiene pública. Os problemas urbanos confundiam-se

com os problemas sociais, caracterizando as intervenções como mera reforma social

através da transformação do espaço de vida da população de baixa renda. Posteriormente,

sob a influência dos planejadores urbanistas americanos, surgiram, na década de 1920, os

“urbanistas” brasileiros, firmando-se nos anos 30 em função da experiência do Plano

Agache no Rio de Janeiro e dos estudos do arquiteto Le Corbusier. A cidade passou a ser

vista a partir de princípios da filosofia social e da racionalidade técnica, consagrando a

visão corbuseana, introduzida na Carta de Atenas, da obrigação de “adequar o crescimento

da cidade às necessidades humanas, definidas a partir de 4 funções básicas e universais:

habitar, trabalhar, recrear-se e circular.” 214

Esse cenário se transformou, no final dos anos 60, em virtude do surgimento dos

problemas urbanos (principalmente o do crescimento populacional), supostamente

resultado da migração do campo para a cidade. Admitiu-se o despreparo dos governos

municipais na promoção do desenvolvimento urbano e passaram-se a realizar programas

de integração da população de baixa renda através da construção de conjuntos

habitacionais. Na época, em pleno período do “milagre econômico” o planejamento urbano

era pensado como um projeto desenvolvimentista, perdendo o caráter político e ganhando

ênfase tecnicista. Contudo, ao final da década de 1970, com a crise do “milagre

econômico”, o surgimento do movimento de resistência à ditadura militar e o fracasso dos

modelos de planejamento desenvolvidos pelo governo federal, surgiram inúmeras críticas

baseadas no argumento de que os problemas urbanos eram conseqüência da concentração

de renda e de investimentos e que a solução residiria na reformulação dos padrões de

crescimento do país. De outro lado, travou-se um intenso combate ao tecnocratismo,

fazendo com que os planejadores, para defender sua sobrevivência enquanto corporação,

fabricassem a idéia de planejamento participativo.215 É nesse contexto, que, no período

seguinte à falência dos modelos de planejamento, institui-se o processo constituinte e

passa-se a discutir a formulação da emenda popular de reforma urbana.

214 RIBEIRO, Luiz Cesar de; CARDOSO, Adauto Lucio. Plano diretor e gestão democrática da cidade. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003, p.104-105. 215 Ibidem, p. 106-107.

95

Com base em uma nova concepção de planejamento, contida no Estatuto da Cidade,

o Plano Diretor pode ser definido como um conjunto de princípios e regras que orientam a

ação dos agentes construtores e utilizadores do espaço urbano. Nesse sentido, o objetivo do

Plano Diretor não é resolver todos os problemas da cidade, mas sim, ser instrumento para a

definição de estratégias, servindo também de base para uma gestão pactuada da cidade.

Assim, mais do que um documento técnico, distante dos conflitos reais que caracterizam a

cidade, o Plano Diretor passa a significar espaço de debate para os cidadãos e de definição

de políticas públicas. Trata-se de um processo de construção coletiva da cidade.216 Cabe

lembrar que o Plano Diretor não é instrumento pronto e acabado, deverá estar sempre em

transformação, procurando adequar-se às demandas sociais. Ressalta-se ainda que falar em

Plano Diretor não significa falar em igualdade, mas sim, em desenvolvimento de políticas

públicas participativas que visam à inclusão social.

Hely Lopes Meirelles, em sua obra Direito Municipal Brasileiro, define o que vem

a ser o Plano Diretor da seguinte forma:

O plano diretor ou plano diretor de desenvolvimento integrado, como modernamente se diz, é o complexo de normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do Município, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo, desejado pela comunidade local. Deve ser a expressão das aspirações dos munícipes quanto ao progresso do território municipal no seu conjunto cidade/campo. É o instrumento técnico-legal definidor dos objetivos de cada Municipalidade, e por isso mesmo com supremacia sobre os outros, para orientar toda atividade da Administração e dos administrados nas realizações públicas e particulares que interessem ou afetem a coletividade. 217

Ao Plano Diretor, como plano urbanístico e ambiental, incumbe a tarefa de

estabelecer metas e diretrizes da política urbana municipal. Também lhe incumbe

estabelecer critérios para verificar se a propriedade atende sua função socioambiental, bem

como, fixar normas condicionadoras do exercício do direito de propriedade, a fim de

alcançar os objetivos da política urbana: garantia de condições dignas de vida, pleno

desenvolvimento das funções sociais da cidade e cumprimento da função socioambiental

da propriedade (artigo 39). Cabe salientar que o município também deve observar os

princípios constitucionais fundamentais que norteiam o Plano Diretor: a função

socioambiental da propriedade, as funções sociais da cidade, os princípios da igualdade e

216 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 42. 217 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 518.

96

da justiça social, da participação popular e do desenvolvimento sustentável. De tal forma,

seus instrumentos e diretrizes se impõem à coletividade, ficando os particulares obrigados

a respeitar quaisquer normas de conduta.

Para que haja aprovação e aplicação do Plano Diretor, existem alguns requisitos no

artigo 40 do Estatuto da Cidade a serem observados. Como instrumento social e ambiental,

o Plano Diretor tem de obedecer a pressupostos. Nesse sentido, deve ser aprovado por lei

Municipal, ou seja, é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo ser

integrado ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias e ao orçamento anual (artigo 40,

§1°). Outro pressuposto é a promoção de debates, audiências e consultas públicas como

condição obrigatória para aprovação das leis orçamentárias e conseqüente aprovação do

Plano Diretor pela Câmara Municipal. Logo, deve haver uma gestão orçamentária

participativa (artigo 40, §4°, I).

É importante referir que os requisitos mínimos para a elaboração do Plano Diretor

constam, em parte, no Estatuto da Cidade, que refere objetivos, diretrizes e instrumentos a

serem observados. No entanto, o Ministério das Cidades, através do Conselho das Cidades,

por meio da Resolução nº 34, de 01 de julho de 2005, emitiu orientações e recomendações

sobre a aplicação do Estatuto da Cidade e o conteúdo mínimo para a elaboração do Plano

Diretor. Nas considerações iniciais, a resolução é incisiva ao afirmar, de forma categórica

que

[...] o objetivo fundamental do Plano Diretor é definir o conteúdo da função social da cidade e da propriedade urbana, de forma a garantir o acesso a terra urbanizada e regularizada, o direito à moradia, ao saneamento básico, aos serviços urbanos a todos os cidadãos, e implementar uma gestão democrática e participativa;218

A resolução observa ainda que “a efetividade dos instrumentos previstos no

Estatuto da Cidade, destinados a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da

cidade e da propriedade [...] dependem em grande medida da elaboração dos planos

diretores municipais”,219 indicando o Plano Diretor como principal instrumento na

concretização da função socioambiental da propriedade urbana.

218 BRASIL. Ministério das Cidades. Resolução n. 34, de 01 de julho de 2005. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2007. 219 Ibidem.

97

Em relação às etapas de construção do Plano Diretor, há divergência doutrinária

quanto ao estabelecimento de quatro, cinco ou mais etapas para a elaboração. Nesse

sentido, José Afonso da Silva destaca quatro fases para o processo de elaboração do Plano

Diretor: a) Estudos preliminares (levantamento da situação e dos problemas); b)

Diagnóstico (aprofundamento da análise dos problemas e identificação de prováveis

soluções); c) Plano de diretrizes (apontamento de soluções, fixação de objetivos e de

diretrizes); e, d) Instrumentação do plano (elaboração dos meios de atuação através de

medidas capazes de atingir os objetivos).220

Por sua vez, Jorge Luiz Bernardi propõe dividir o processo de elaboração do Plano

Diretor em duas fases distintas. A primeira inicia-se com a decisão política de elaboração

do anteprojeto do Plano Diretor por iniciativa do Executivo Municipal, culminando na

elaboração de um projeto de lei encaminhado à Câmara Municipal. Na segunda etapa,

ocorre o processo de análise do projeto pelo Legislativo Municipal e a deliberação pelo

Plenário da Câmara. Destaca o autor que, na primeira etapa, o projeto subdivide-se em

mais sete fases: 1) Diagnóstico da realidade municipal; 2) Prognóstico; 3) Deficiências

(pontos fracos); 4) Tendências positivas; 5) Estratégias; 6) Custos; 7) Prioridades. Já na

segunda etapa, a tramitação do projeto deverá ter, no mínimo, três fases: a) análise técnica;

b) análise nas comissões; c) discussão e votação.221

Retornando à análise do disposto no Estatuto da Cidade, o §2° do artigo 40

estabelece que o Plano Diretor deverá englobar o território do Município como um todo.

Quanto a esse dispositivo, o Estatuto da Cidade "define a abrangência territorial do Plano

Diretor de forma a contemplar as zonas rurais com respaldo no texto constitucional". A

política urbana, de acordo com a diretriz prevista no inciso VII do artigo 2° do Estatuto da

220 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 138-139. O Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, em guia para elaboração do Plano Diretor, desenvolvido em parceria com o Ministério das Cidades também prevê quatro fases na elaboração do Plano Diretor. Na primeira fase, são desenvolvidas leituras técnicas e comunitárias para identificar a situação socioeconômica, ambiental e de infra-estrutura do município. Em uma segunda etapa, são formuladas propostas prioritárias, definidas estratégias e instrumentos para atingir a implementação das prioridades. Em um terceiro momento, são definidas as ferramentas que constarão no Plano Diretor, de acordo com os objetivos e estratégias prioritárias. Por fim, na quarta etapa, é estabelecido o sistema de gestão e de planejamento do município como um processo participativo, onde são previstas instâncias de monitoramento, como por exemplo, o conselho da cidade. BRASIL. Ministério das Cidades. CONFEA. Plano Diretor Participativo: guia para elaboração pelos municípios e cidadãos. Brasília: CONFEA, 2005. 221 BERNARDI, Jorge Luiz. Funções sociais da cidade: conceitos e instrumentos. 2006. Dissertação (Mestrado em Gestão Urbana) – Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006, p. 107.

98

Cidade, deve promover a integração e a complementaridade entre as atividades urbanas e

rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob

sua área de influência. A Constituição Federal de 1988, ao prescrever os objetivos da

política de desenvolvimento urbano, não diferencia os habitantes situados na zona rural dos

que estão situados na zona urbana.222

Como requisito e também condição de validade, a lei que instituir o Plano Diretor

deverá ser revista, pelo menos, a cada dez anos (artigo 40, § 3°). Nesse contexto, e por

considerar que o Estatuto da Cidade visa a um desenvolvimento social, econômico e

ambiental sincronizado, é imperioso que se revise e atualize o Plano Diretor, para que o

mesmo seja condizente com a realidade urbana, tendo sempre como foco o crescimento

constante das cidades.

Nesse processo de elaboração, fiscalização e implementação do Plano Diretor, os

Poderes Legislativo e Executivo municipais devem garantir a publicidade e o acesso de

qualquer interessado aos documentos e às informações produzidas (artigo 40, § 4°, II e III).

Contudo, como principal garantia, senão a mais importante, tem-se a participação da

população, assegurada no inciso I, do § 4°, do artigo 40 do Estatuto da Cidade.223 Nas

palavras de Rogério Gesta Leal, para terem eficácia, as “políticas públicas não podem ser

elaboradas e aplicadas à revelia da sociedade civil, ao contrário, devem contar com ela de

forma ativa e deliberativa [...]”.224

O direito à participação popular, como requisito constitucional do Plano Diretor,

tem base no parágrafo único do artigo 1°, combinado com o artigo 29, inciso XII da

Constituição Federal de 1988. Essa participação da população nas questões de interesse

local se transforma de requisito constitucional à condição obrigatória de validade e de

legitimidade do Plano Diretor, configurando-se em condição basilar no processo de

222 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 50. 223 Interessante notar que a participação da população na fase do processo legislativo é recomendada pela Resolução n. 25 do Conselho das Cidades, no artigo 3º, parágrafo 1º: “A coordenação do processo participativo de elaboração do Plano Diretor deve ser compartilhada, por meio da efetiva participação de poder público e da sociedade civil, em todas as etapas do processo, desde a elaboração até a definição dos mecanismos para a tomada de decisão.” BRASIL. Ministério das Cidades. Resolução n. 25, de 18 de março de 2005. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2007. 224 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul, RS: Edunisc, 1998, p. 132.

99

discussão, elaboração e implementação. O planejamento participativo tem como elemento

obrigatório a participação popular em todas suas fases, "o que pressupõe a adoção de

mecanismos de controle popular para ações do Executivo e do Legislativo, devendo ser

compreendido como um processo resultante de práticas de cidadania, voltadas para

eliminar as desigualdades sociais." 225

Ao enfrentar o estudo do Plano Diretor enquanto elemento jurídico-político,

ordenador da ocupação da propriedade urbana e da cidade, Rogério Gesta Leal refere que,

nos termos da Constituição Federal de 1988, a regulamentação de matéria urbanística da

qual trata o Plano Diretor é de competência de todos os entes federativos. Há, portanto,

uma competência concorrente. Salienta ele, que "a preponderância do Município nessa

matéria, não diminui nem isenta de responsabilidade a União e os Estados." 226

Mesmo que, ao Plano Diretor seja atribuída matéria urbanística, tanto a

Constituição Federal de 1988 no artigo 182 quanto a lei do meio ambiente artificial,

referem que a política de desenvolvimento urbano é de competência municipal. Valoriza-

se, pois, o "poder local".227 A exemplo do Plano Diretor, ocorre uma descentralização das

225 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 51. 226 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul, RS: Edunisc, 1998, p.133. 227 Para Ladislau Dowbor Poder Local significa o espaço de vida e de participação social. Destaca ele que “[...] o município está despontando como um grande agente de justiça social. É no nível local que se podem realmente identificar com clareza as principais ações redistributivas. Essas ações dependem vitalmente de soluções locais e momentos políticos, e as propostas demasiadamente globais simplesmente não funcionam, na medida em que enfrentam interesses dominantes organizados e complexidades políticas que inviabilizam projetos. Enfim, o município permite uma democratização das decisões, na medida em que o cidadão pode intervir com muito mais clareza e facilidade em assuntos da sua própria vizinhança, dos quais tem conhecimento direto, sem a mediação de grandes estruturas políticas. Com o volume de problemas que se apresenta, o poder local já não pode mais ser visto, portanto, como um nível de decisão que se limita à construção de praças, recolhimento de lixo e outras atividades de cosmética urbana. Trata-se de um eixo estratégico de transformação do modo como tomamos as decisões que concernem ao nosso desenvolvimento econômico e social.” DOWBOR, Ladislau. O que é poder local. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 35-36. Complementando tal entendimento, Janaína Rigo Santin acrescenta que a noção histórica de Poder Local no Brasil esteve vinculada ao coronelismo, ao patrimonialismo e ao personalismo no exercício do poder político. No entanto, em um regime democrático, o Poder Local “[...] apresenta-se como um novo paradigma de exercício do poder político capaz de aliar descentralização e participação. Está fundado na emancipação de uma nova cidadania, rompendo as fronteiras burocráticas que separam o Estado do cidadão e recuperando o controle do cidadão no seu município mediante a reconstrução de uma esfera pública comunitária e democrática. Visa a conjugar práticas de democracia participativa à representação tradicional, em que os cidadãos, agindo de forma conjunta com o poder público, passarão a ser responsáveis pelo seu destino e pelo destino de toda a sociedade.” Nesse sentido, trata-se “da reconstituição de espaços comunitários, capazes de recuperar a cidadania a partir do espaço local, reproduzindo identidades fora do Estado, mas legitimados por ele, os quais desencadeiam um processo de combinação e articulação permanente entre a democracia direta de participação voluntária dos cidadãos e a democracia representativa.” SANTIN, Janaína Rigo. O poder local e o meio ambiente urbano: um novo paradigma democrático de gestão a partir do Estatuto da Cidade.

100

decisões, tendo em vista que é mais fácil descentralizar funções administrativas para ente

menor, pois estão mais próximos de quem sofre as conseqüências da gestão pública: os

cidadãos. Na elaboração do Estatuto da Cidade, o legislador buscou privilegiar o espaço

local (Município), pois, por ser o ente federativo mais próximo, poderá proceder a uma

gestão compartilhada, criando canais de acesso para efetiva participação popular nas

decisões da administração, propiciando, dessa forma, aliar democracia participativa à

democracia representativa.

Significa entender e construir o Plano Diretor na esfera local com a clara compreensão de que ele é um importante documento do governo, portanto, a principal referência para a ação governamental e, ao ser legitimado por todos, estabelece-se, entre os diferentes agentes do desenvolvimento, um pacto. Dessa forma, suas orientações são, ao mesmo tempo, resultado de uma construção pactuada coletivamente e base para o controle social sobre a ação do poder público no território municipal.228

Nesse entendimento, "o Plano Diretor deixa de ser o plano de alguns para ser de

todos, construído a partir da participação dos diferentes setores sociais". Para tanto, o

Plano Diretor configura-se num pacto legitimado por todos e para todos.229

Conforme estabelece o Estatuto da Cidade no artigo 41, o Plano Diretor é

instrumento obrigatório para Municípios com população acima de vinte mil habitantes. A

lei também estabeleceu essa obrigatoriedade para aqueles Municípios situados em regiões

metropolitanas ou aglomerações urbanas, em áreas de interesse urbanístico ou em áreas

sob influência de empreendimentos de grande impacto ambiental.230 Municípios que não se

In: SCHONARDIE, Elenise Felzke; PILAU SOBRINHO, Liton Lanes (Orgs.). Ambiente, saúde e comunicação. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007, p. 59-60. 228OLIVEIRA, Isabel Cristina Eiras de. Estatuto da Cidade: para compreender. Rio de Janeiro: IBAM/DUMA, 2001, p. 20. 229 Ibidem, p. 18. 230 É interessante destacar a pesquisa realizada pela Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (FAMURS) acerca da situação dos Planos Diretores nos Municípios gaúchos ao final do mês de dezembro de 2006. Os dados estatísticos de tal investigação apontaram a obrigatoriedade do Plano Diretor para 121 dos 496 Municípios gaúchos existentes. A pesquisa revelou ainda que desse universo de 121 Municípios, no mês de dezembro de 2006, havia: a) 12 Municípios em fase de elaboração do Plano Diretor; b) outros 12 já possuíam o Plano Diretor e estavam realizando revisões; c) da mesma forma, 26 desses Municípios também já possuíam o Plano Diretor e estavam atualizando o mesmo; d) em outros 22 Municípios o Plano Diretor estava tramitando na Câmara de Vereadores; e) os outros 49 Municípios restantes já haviam aprovado o Plano Diretor. Dessa forma, constatou-se, que ao final do ano de 2006, 75 Municípios já haviam concluído (aprovado ou atualizado) seu Plano Diretor, o que representou o total de 61,99% dos 121 Municípios. Outros 46 Municípios encontravam-se com o Plano Diretor em andamento (licitação, elaboração, revisão ou na Câmara de Vereadores), representando a margem de 38,01% dos 121 Municípios com a obrigatoriedade do Plano Diretor. FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES DE MUNICÍPIOS DO RIO GRANDE DO SUL. Área de Tecnologia da Informação. Re: Plano Diretor [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected]> em 16 out. 2007.

101

incluem em qualquer dessas categorias, precisam dispor de Plano Diretor, se houver

pretensão de aplicar os instrumentos da política urbana.

No que diz respeito ao artigo 42, a base para aplicação de todos os instrumentos da

lei do meio ambiente artificial é o projeto da cidade, ou seja, o que se encontra explicitado

no Plano Diretor. "Cabe ao Plano Diretor cumprir a premissa constitucional de garantia da

função social da cidade e da propriedade urbanas". Em outras palavras, é justamente o

Plano Diretor o instrumento legal que vai definir, em nível municipal, os limites, as

faculdades e as obrigações envolvendo a propriedade urbana. É através dele que se

estabelecerá o destino específico às diferentes regiões do município. Salienta-se que essa

divisão do território municipal, em unidades territoriais, se dá através do

macrozoneamento, instrumento imprescindível na definição da destinação das áreas da

cidade.231

Por fim, cabe frisar que o Plano Diretor é um dos instrumentos mais importantes do

Estatuto da Cidade, no desenvolvimento de políticas públicas participativas, na busca da

efetivação da função socioambiental da cidade e das propriedades urbanas. Também se

caracteriza por ser instrumento viabilizador da concretização de uma distribuição espacial

eqüitativa, capaz de satisfazer os interesses locais e de proporcionar um desenvolvimento

sustentável pautado na justiça social, com vista ao bem comum.

O legislador e o administrador municipal, para exteriorizarem legalmente a política

de desenvolvimento urbano do Município, deverão utilizar-se do Plano Diretor. O que não

constar no Plano Diretor, não poderá integrar a política urbana. Nesse caso, a função

socioambiental da propriedade somente estará sendo cumprida, se a propriedade estiver de

acordo com o que estabelece o Plano Diretor. Se a propriedade estiver em desacordo com

os princípios expostos para o desenvolvimento da política urbana, que constam no Plano

Diretor, haverá então, a aplicação dos instrumentos posteriores, objetos do Estatuto da

Cidade, quais sejam: parcelamento e utilização compulsórios, com as penalidades do IPTU

progressivo e desapropriação com pagamento de títulos da dívida pública.

231 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 43.

102

3.2 Do IPTU Progressivo no Tempo como instrumento tributário-financeiro à

Desapropriação como instrumento jurídico-político

Cada cidade é um caso particular e único, todavia, na maioria das cidades, há uma

expressiva e inaceitável quantidade de terrenos ociosos, com fins especulativos. Os

proprietários retêm o imóvel aguardando a valorização do local, que se dá devido à

intervenção exclusiva do poder público, com a instalação de infra-estrutura básica e a

implementação de equipamentos urbanos essenciais. Essas terras oneram o poder público,

além de interferirem de forma negativa no mercado imobiliário. O Município, na obrigação

de atender às reivindicações dos moradores de áreas desprovidas de equipamentos

públicos, dota de serviços também os terrenos ociosos que se encontram no caminho.232

A retenção especulativa de imóvel urbano ocorre quando o respectivo proprietário não investe em seu terreno e também não o vende, esperando que seu valor de mercado aumente ao longo do tempo, em virtude dos investimentos feitos na vizinhança pelo poder público e, também, por agentes privados.233

No artigo 182, §4° da Constituição Federal de 1988, encontra-se estabelecida a

faculdade incumbida ao poder público municipal, mediante lei específica, para área

incluída no Plano Diretor, de exigir do proprietário do solo urbano não edificado,

subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento. Se o

proprietário não o promover, seu imóvel estará sujeito ao parcelamento, edificação ou

utilização compulsórios, imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo e

igualmente sujeito à desapropriação. Salienta-se que esses instrumentos, de aplicação

sucessiva, têm, por principal objetivo, combater a retenção de terrenos ociosos, para que se

evite a expansão desnecessária das áreas urbanas.

O Estatuto da Cidade, em seu artigo 5°, determina a criação de lei municipal

específica para reger o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórios do solo

urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que estejam incluídos no Plano

Diretor. A essa lei incumbe fixar condições e prazos para implementação da obrigação.

232 OLIVEIRA, Isabel Cristina Eiras de. Estatuto da Cidade: para compreender. Rio de Janeiro: IBAM/DUMA, 2001, p. 25. 233 Ibidem, p. 25.

103

Essa medida possibilita ampliar o acesso à terra urbana e materializar a função

socioambiental da propriedade.234

Com a aplicação deste primeiro instrumento, procura-se otimizar os investimentos públicos realizados e penalizar o uso inadequado, fazendo com que a propriedade urbana cumpra a sua função social. Além disso, poderá ser ampliada a oferta de imóveis no mercado imobiliário e promovido o uso e a ocupação de imóveis em situação de abandono, especialmente aqueles localizados na área central das grandes cidades, que poderão abrigar, por exemplo, o uso habitacional como forma de revitalização do centro urbano.235

Por sua vez, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) Progressivo no Tempo,

como instrumento tributário e financeiro da política urbana, está previsto no artigo 4º,

inciso IV, alínea “a”, e detalhado no artigo 7º do Estatuto da Cidade. Trata-se de imposto

progressivo no tempo sobre imóveis urbanos que, de acordo com o artigo 182, § 4º, inciso

II, incumbe ao Poder Público municipal. Poucos instrumentos são tão necessários na

promoção do desenvolvimento urbano sustentável quanto o IPTU Progressivo no Tempo.

Este é um instrumento capaz de contribuir decisivamente para a efetividade da função

socioambiental da propriedade urbana e da cidade, evitando a formação de vazios urbanos,

da urbanização em “saltos” e inibindo a especulação imobiliária.

Para a aplicação do IPTU Progressivo no Tempo, previsto no Estatuto da Cidade,

deve-se ter um imóvel em desacordo com a legislação ambiental e urbanística,

confrontando-se com o estabelecido no Plano Diretor, ou seja, não cumprindo a função

socioambiental. Por conseguinte, deve o proprietário ser notificado, para, no prazo de um

ano, apresentar projeto de parcelamento ou edificação do imóvel. Apresentado o projeto,

abre-se prazo de dois anos para edificação ou parcelamento. Contudo, caso não cumprido

nenhum ou algum dos prazos, incide o IPTU Progressivo, mediante majoração da alíquota

pelo prazo de cinco anos consecutivos, tendo como limite máximo 15% do valor do

lançamento fiscal do imóvel. A finalidade desse instituto é punir os proprietários que não

atenderam à notificação, com tributo de valor crescente, ano a ano. Assim sendo, objetiva-

se estimular a utilização justa e adequada dos imóveis ociosos ou sua venda. No caso de

venda do imóvel, o novo proprietário será responsabilizado pela adequação.

234 Ibidem, p. 27. 235 Ibidem, p. 27.

104

A razão de existir desse instrumento, também reside no fato de que, se toda a

coletividade custeia a infra-estrutura urbana e, aqui salientando os graves problemas de

escassez de moradias e os grandes vazios urbanos em decorrência da especulação

imobiliária, seria razoável exercer “pressão” sobre esses proprietários, que se beneficiam

ao valorizarem seus imóveis quando a região é dotada de equipamentos públicos (rede de

esgoto, iluminação, sistema de abastecimento de água, coleta de lixo, entre outros).

Entretanto, para evitar fornecer aos grandes proprietários urbanos um argumento que lhes

seja favorável, o Estado deve cumprir sua parte, ou seja, dotar de infra-estrutura aquelas

áreas que se destinem à expansão urbana. Em área desprovida de infra-estrutura e sem

loteamento aprovado, fica comprometida a legitimidade, e mesmo, a legalidade da

cobrança do IPTU, bem como, de sua progressividade. Uma vez dotada a área de infra-

estrutura necessária, se o proprietário não tomar alguma atitude em relação a sua

propriedade, surge o fato gerador da progressividade do imposto.236

Da forma como está previsto no Estatuto da Cidade, o IPTU Progressivo no Tempo

não traz risco de uma “expropriação a prazo”, como uma leitura superficial poderia

induzir. Mesmo que assim fosse, não seria de todo ilegítimo, uma vez que o proprietário do

imóvel pode ter sua propriedade questionada em razão do não-cumprimento da função

socioambiental, e ainda, porque o que está em jogo é a punição de uma situação

evidentemente especulativa, essa sim, ilegítima. Contudo, é necessário que o Plano Diretor

municipal estabeleça parâmetros de conteúdo concreto, levando em conta a realidade local,

a fim de evitar equívocos ou mesmo injustiças a pretexto de promover justiça social.

No cenário municipal, destaca-se a existência de duas “espécies” de Imposto

Predial e Territorial Urbano. De um lado, o IPTU estabelecido no artigo 156, inciso I da

Constituição Federal de 1988 e no artigo 32 do Código Tributário Nacional, um tributo

fiscal, de função arrecadatória. De outro, o IPTU Progressivo no Tempo, estabelecido no

artigo 182, § 4º, inciso II da Constituição Federal de 1988, regulamentado no artigo 7° do

Estatuto da Cidade, com parâmetros a serem definidos conforme a realidade local, em cada

Plano Diretor municipal. O IPTU Progressivo no Tempo, objeto deste trabalho e

instrumento da política urbana, caracteriza-se pelo seu caráter punitivo e pela sua natureza

extrafiscal.

236 SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 231-232.

105

Em relação à progressividade do Imposto Predial Territorial Urbano, esse pode ser

fiscal ou extrafiscal. "A progressividade fiscal se fundamenta no artigo 145, §1°, artigo

150, inciso II e no artigo 156, § 1°, de modo a promover a distribuição justa da riqueza

inerente à propriedade, como instrumento de realização da justiça social". Nesse caso, de

caráter fiscal, sua aplicação independe dos pressupostos do artigo 182, §4°. Sem prejuízo

da progressividade no tempo a que se refere o artigo 182, §4°, o imposto sobre a

propriedade predial e territorial urbana poderá ser progressivo em razão do valor do imóvel

e ter alíquotas diferentes de acordo com a localização do bem.237

O enfoque da fiscalidade é o enfoque da receita. Portanto, tem finalidade, por meio da arrecadação, de construir receita para o Estado promover suas atividades e funções em benefício da coletividade. O enfoque extrafiscal não tem a natureza arrecadatória de tributos. A utilização da extrafiscalidade visa permitir a regulagem de condutas, fazendo com que, no interesse da coletividade, esta ou aquela atividade, este ou aquele comportamento seja estimulado ou desestimulado.238

Salienta-se, entretanto, que ao se tratar de políticas públicas, no sentido da

intervenção estatal na ordem social, é por meio da extrafiscalidade que o Estado intervêm

na economia. No caso dos impostos, em que é vedada a vinculação de receita por expressa

vedação no artigo 167, IV da Constituição Federal de 1988, a extrafiscalidade é a única

possibilidade de utilização do imposto para o implemento de políticas públicas

direcionadas ao meio ambiente urbano sustentável.

O IPTU Progressivo no Tempo, como sanção ao proprietário que não destinou sua

propriedade a uma função socioambiental, tem natureza extrafiscal. Seu objetivo é motivar

a utilização devida da propriedade urbana, de modo a garantir o cumprimento da função

socioambiental da propriedade. A finalidade dessa espécie de IPTU progressivo no tempo

não é a arrecadação fiscal, mas a indução do proprietário do imóvel urbano ao

cumprimento da obrigação que consta no Plano Diretor. Nas palavras de Luís Portella

Pereira, o objetivo específico do IPTU Progressivo no Tempo é o de motivar a utilização

da propriedade urbana, de modo a garantir a função socioambiental, não caracterizando

arrecadação fiscal, tendo assim, caráter nitidamente sancionatório.239

237 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 103. 238 Ibidem, p. 104. 239 PEREIRA, Luís Portella. A função social da propriedade urbana. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 121.

106

Cabe referir ainda, que o §3° do artigo 7° do Estatuto da Cidade veda a concessão

de isenções ou anistia, relativas à tributação progressiva, para os proprietários de imóveis

que não estejam cumprindo com a obrigação de destinação social e ambiental da

propriedade urbana. Essa medida é fundamental, para evitar o benefício do proprietário de

imóvel urbano que não esteja cumprindo a função socioambiental. "Por se tratar de um

imposto, não é cabível a possibilidade de isenções e anistias". A única hipótese em que o

proprietário deixará de pagar IPTU Progressivo no Tempo será pelo adimplemento da

obrigação que lhe foi determinada pelo Poder Público municipal.240

Entretanto, se não é permitida nenhuma forma de isenção ao proprietário de imóvel

que descumpre a função socioambiental da propriedade urbana, o Estatuto da Cidade nada

refere quanto à possibilidade de o município instituir programas como o “IPTU

Regressivo” para os imóveis que comprovadamente participem de programas de

preservação de recursos naturais e cujos proprietários estejam cumprindo a função

socioambiental de seus imóveis. Na medida em que o proprietário faz uso correto e

sustentável do imóvel, poderia haver a concessão de um benefício fiscal, como por

exemplo, a redução do valor do IPTU fiscal241 (art. 156, I da CF/88). Um programa

municipal nesses moldes, poderia incentivar o cumprimento da função socioambiental da

propriedade urbana, bem como, representar uma ferramenta para a conscientização ou a

sensibilização dos munícipes com as questões urbano-ambientais. Sabe-se que o município

não pode recusar receita, a fim de evitar a caracterização de crime de responsabilidade

fiscal. De outro giro, também se sabe que é competência comum da União, dos Estados e

dos Municípios a proteção ao meio ambiente (artigo 23 da CF/88), assim como, é

competência dos municípios legislar sobre assuntos de interesse local (artigo 30 CF/88).

Dessa forma, ao instituir um programa de “Regressividade do IPTU”, ao mesmo tempo em

que não se está abdicando de receita, o município está possibilitando o implemento de

políticas públicas.

240 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p.106. 241 Nesse caso, o IPTU embora tenha caráter arrecadatório, será fiscal e extrafiscal ao mesmo tempo. A fiscalidade e a extrafiscalidade estão sempre e necessariamente juntas, separam-se apenas hipoteticamente. A extrafiscalidade está presente em função da “regressividade do IPTU” que visa a estimular o comportamento sustentável por parte do proprietário do imóvel urbano. Quanto à indissociabilidade do caráter fiscal e extrafiscal, ver GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 46-48.

107

Assim, com base no exposto, o IPTU Progressivo no Tempo enquanto instrumento

tributário-financeiro, deixa de ser apenas um instrumento jurídico para abastecer os “cofres

públicos”, assumindo caráter ambiental ao viabilizar a função social e ambiental da cidade

e da propriedade urbana. Quando descumpridas as condições ou os prazos definidos no

artigo 5.º do Estatuto da Cidade, incide o tributo a ser cobrado de forma progressiva,

salientando que essa progressividade vai até um limite para que não haja caráter

confiscatório, demonstrando ser mais um instrumento para que a municipalidade possa

concretizar a função socioambiental da propriedade urbana.

De outro lado, torna-se relevante destacar a função extrafiscal do IPTU Progressivo

no Tempo como instrumento de intervenção do Estado para efetivação de políticas

públicas. Nesse sentido, o IPTU Progressivo no Tempo, como instrumento da política

urbana, tem caráter exclusivamente extrafiscal. Por esse motivo, sua receita não segue a

regra da vedação constitucional do artigo 167, inciso IV da Constituição Federal de 1988,

de tal forma que a receita deve ser aplicada de acordo com o estabelecido no orçamento

municipal, atendendo ao disposto no Plano Diretor. Assim, compreende-se que:

Em planejamento e gestão urbanos, os tributos não interessam sob o ângulo estritamente fiscal, vale dizer, de seu potencial de arrecadação. Tão ou mais importante é, na verdade, a extrafiscalidade dos tributos, isto é, a sua capacidade de permitirem que outros objetivos que não somente o de arrecadação sejam perseguidos – seja o desestímulo de práticas que atentem contra o interesse coletivo (minimamente salvaguardado, na Constituição de 1988, por meio do princípio da “função social da propriedade”), seja a promoção de redistribuição indireta e renda, sejam a orientação e o disciplinamento da expansão urbana, seja, ainda, o incentivo a determinadas atividades.242

Nas palavras de Marcus de Freitas Gouvêa, a extrafiscalidade é princípio que

decorre da outra face do corolário da supremacia do interesse público, que fundamenta

juridicamente a tributação com fins diversos do puramente arrecadatório. Para ele, o tributo

é instrumento a ser utilizado na busca de valores constitucionais, ou ainda, são os objetivos

constitucionais que preenchem o conteúdo da extrafiscalidade, dando caráter extrafiscal à

norma tributária.243

242 SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 226. 243 GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 43.

108

Assim sendo, pode-se destacar o IPTU Progressivo no Tempo como instrumento

tributário capaz de concretizar políticas públicas voltadas a atingir os fins e os valores

estabelecidos na Constituição Federal de 1988, evidenciando ser um importante

instrumento de mudança social e de viabilização da sustentabilidade urbana. “[...] não

podemos ver a tributação apenas como técnica arrecadatória ou de proteção ao patrimônio;

devemos vê-la também da perspectiva da viabilização da dimensão social do ser

humano”.244

Em suma, a tributação extrafiscal, como instrumento de intervenção estatal no

domínio econômico, constitui um instrumento a serviço de políticas públicas específicas e

direcionadas. Dessa forma, o IPTU Progressivo no Tempo, como instrumento tributário

extrafiscal da política urbana, se utilizado adequadamente pelo poder público municipal,

tem o condão de ser meio para efetivação de políticas públicas com a finalidade de garantia

de desenvolvimento urbano sustentável.

Retomando a distinção entre o IPTU Fiscal e o IPTU Extrafiscal, pode-se dizer que

em relação à progressividade do Imposto Predial e Territorial Urbano, muito já se discutiu

e ainda se discute acerca da progressividade fiscal e da progressividade extrafiscal. Na

Constituição Federal de 1988, em sua redação original, no artigo 156, §1°, os municípios

estavam autorizados a instituir IPTU Progressivo “nos termos da lei municipal, de forma a

assegurar o cumprimento da função social da propriedade”. Com a Emenda Constitucional

n° 29/2000, alterou-se o §1° do artigo 156, que atualmente prevê que sem prejuízo da

progressividade no tempo a que se refere o artigo 182, §4°, inciso II, o IPTU poderá ser

progressivo em razão do valor do imóvel e ter alíquotas diferentes de acordo com a

localização e o uso do imóvel. Em 24 de setembro de 2003, o Supremo Tribunal Federal

(STF) editou a Súmula 668: “É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido,

antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se

destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana”.245

São várias as jurisprudências que confirmam tal entendimento, dentre elas destaca-

se:

244 GRECO, Marco Aurélio. Solidariedade social e tributação. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (Coords). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005, p. 179. 245 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n.° 668. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 20 abr. 2007.

109

IPTU – IMPOSTO DE CARÁTER REAL – REDAÇÃO ORIGINAL DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – PROGRESSIVIDADE – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – O STF firmou entendimento de que, na forma da redação original da CF/88, é vedada a progressividade fiscal nos impostos de caráter real. Restou decidido nos autos do RE 153771-0, que a única progressividade admitida para o IPTU é a progressividade extrafiscal, a ser utilizada como instrumento de pressão para obrigar o proprietário a dar ao imóvel sua função social, conforme definido no art. 182, § 2° e 4°, da CF/88. (TJMG – APCV 000.325.682-3/00 – 7ª C.Civ. – Rel. Des. Edivaldo George dos Santos – J. 31.03.2003)

Verifica-se, com isso, que o STF entende que o IPTU Progressivo no Tempo, do

artigo 156, §1° combinado com o art. 182 § 4° da Constituição Federal de 1988, é o único

admitido pelo Poder Constituinte Originário. A ampliação das hipóteses de progressividade

se deu em razão da EC 29/2000. A regra é a da proporcionalidade dos tributos uma vez que

a progressividade se admite apenas em casos expressamente autorizados na Constituição

Federal de 1988. Nenhuma Emenda Constitucional pode suprimir direitos e garantias

individuais conforme expressa o artigo 60, §4° da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, entende-se que a progressividade do IPTU somente pode ser

aplicada com a finalidade de assegurar o cumprimento da função socioambiental da

propriedade urbana. O Poder Constituinte Originário é o único que poderia prever

exceções para a progressividade em impostos reais. A partir disso, entende-se que a EC

29/2000 violou cláusulas pétreas, sendo portanto, inconstitucional.246

A constitucionalidade da EC 29/2000 está sendo apreciada no Recuso

Extraordinário 423768-7, pelo Supremo Tribunal Federal. O ministro Marco Aurélio, em

seu voto, admitiu a progressividade tratada na Emenda Constitucional, entretanto, o

julgamento foi interrompido em 2006 em razão do pedido de vistas feito pelo Ministro

Carlos Ayres Britto.247 Esse Recurso Extraordinário tem como objeto um acórdão que

declarou a inconstitucionalidade da Lei Municipal 13.250/01, que estabeleceu alíquota

progressiva para o IPTU com base no valor venal do imóvel. Cabe salientar que mesmo

antes da EC 29/2000, o Ministro Marco Aurélio já admitia que a progressividade, em

observância ao princípio da capacidade contributiva, restringia-se aos impostos pessoais,

246 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Direito Ambiental Tributário. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 93-94. 247 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ ler.asp?CODIGO=199913&tip+UN&param=progressivo>. Acesso em: 22 abr. 2007.

110

podendo também ser aplicada aos impostos reais como o IPTU conforme voto proferido no

RE 234.105-3/SP.248

É importante destacar que o entendimento do Ministro Marco Aurélio é contrário

ao que se defende neste trabalho. Com vistas ao tratamento dado ao IPTU Progressivo no

Tempo, como tributo extrafiscal, defende-se o mesmo ponto de vista de Ives Gandra da

Silva Martins, para quem, a Emenda Constitucional 29/2000 é inconstitucional, dentre

outros argumentos, por afrontar cláusulas pétreas.249 Ressalta-se que é vedada a criação de

novas hipóteses de progressividade, uma vez que, somente se admite a progressividade em

casos autorizados pelo Poder Constituinte Originário.

Frente ao exposto, é importante salientar ainda que, depois de decorridos cinco

anos da cobrança do IPTU Progressivo no Tempo sem que o proprietário do imóvel

tenha cumprido com a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização do solo o

município deverá proceder à desapropriação do imóvel.

A desapropriação tem previsão no artigo 4º, inciso V, alínea "a" da lei do meio

ambiente artificial e encontra-se pormenorizada no artigo 8º do Estatuto da Cidade. De

origem constitucional, tal qual o IPTU Progressivo no Tempo, também tem amparo no

artigo 182, §4°, inciso III da Constituição Federal de 1988.

Por desapropriação, Hely Lopes Meirelles entende ser

a transferência compulsória da propriedade particular (ou pública, de entidade de grau inferior para superior) para o Poder Público ou seus delegados, por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, e, ainda, por desatendimento a normas do Plano Diretor (desapropriação-sanção–art. 182, § 4.º, III, da cf), neste caso com pagamento em títulos da dívida pública municipal.250

Num primeiro momento, o poder público poderá exigir do proprietário

parcelamento, edificação ou utilização do solo de forma compulsória. Caso não atendida

248 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em http: <//www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/frame.asp? classe=RE&processo=234105&origem=IT&cod_classe=437>. Acesso em: 22 abr. 2007. 249 MARTINS, Ives Gandra da Silva; BARRETO, Ayres F. IPTU: por ofensa a Cláusulas Pétreas, a Progressividade prevista na Emenda n.° 29/2000 é inconstitucional. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, n.° 80, p. 105-126, mai. 2002. 250 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 408.

111

essa exigência, o Município procederá à cobrança do IPTU Progressivo no Tempo. Após

cinco anos da cobrança do tributo sancionatório, sem que o proprietário do imóvel tenha

cumprido com a obrigação, proceder-se-á à desapropriação. Essa desapropriação de cunho

urbanístico será paga com títulos da dívida pública, de emissão previamente aprovada pelo

Senado Federal. A lei estabelece prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais,

iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais de seis por

cento ao ano conforme § 1° do artigo 8° da lei do meio ambiente artificial. Cabe salientar

que a lei estipula juros legais de seis por cento ao ano, contudo, não pode mais ser

considerada essa estipulação, em virtude da Emenda Constitucional n° 40, posterior à lei

ordinária federal. Nesse caso, possibilita-se a discussão, em razão da revogação do § 3°, do

artigo 192 da Constituição Federal de 1988.

A desapropriação, na forma como está prevista no Estatuto da Cidade, caracteriza-

se como mais uma penalidade para o proprietário de imóvel em desacordo com as normas

previstas no Plano Diretor.251 Essa penalidade tem causado controvérsias, como bem

salienta Luís Portella Pereira. Por sua vez, essas divergências decorrem das dificuldades

em relação à autorização pelo Senado Federal, bem como para estipular o valor real da

indenização, uma vez que, no artigo 8º, §2°, incisos I e II da lei, o legislador procurou

definir o valor real da indenização pelo valor de base de cálculo para o lançamento do

IPTU, desprezando o valor real do imóvel. Haveria uma violência ao direito fundamental à

propriedade e à desapropriação constitucionalmente prevista, pois, conforme interpretação

constitucional, não poderá haver desapropriação sem justa e prévia indenização em

dinheiro. Contudo, o que se verifica no Estatuto da Cidade, é que as desapropriações-

sanção serão pagas em títulos da dívida pública, que não poderão ser compensados com

impostos e serão resgatados no prazo de até 10 anos. Para Luís Portella Pereira, essa

desapropriação, da forma como está prevista, dá margem a uma possível

inconstitucionalidade, já que a Constituição Federal de 1988, no seu artigo 50, inciso

251 Para Victor Carvalho Pinto essa modalidade de desapropriação tem por finalidade exclusiva o parcelamento ou a edificação do imóvel, nos termos do Plano Diretor. Em seu entendimento, não pode ser utilizada para fins de manutenção do imóvel em definitivo no domínio público. PINTO, Victor de Carvalho. Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. In: MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto da Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 146. Contudo, Nelson Saule Júnior defende posição adversa ao afirmar a admissão dessa modalidade de desapropriação para fins de regularização fundiária, criação de espaços públicos de lazer e de preservação ambiental. SAULE JÚNIOR, Nelson. Aplicabilidade do parcelamento ou edificação compulsórios e da desapropriação para fins de reforma urbana. In: MOREIRA, Mariana (Coord.). Estatuto da Cidade. São Paulo: CEPAM, 2001, 233.

112

XXIV, bem como no artigo 182, § 3.º, vinculam o instituto da desapropriação à prévia e

justa indenização em dinheiro, ou seja, moeda corrente nacional.252

Em sentido contrário, no entendimento de Celso Antônio Bandeira de Mello, para o

direito brasileiro, há dois tipos de desapropriação. Uma delas é a desapropriação em nome

da política urbana, de competência do município, que será pago em títulos da dívida

pública, e a outra, é a desapropriação para fins de reforma agrária, no qual só compete à

União realizá-la.253

O instituto da desapropriação, previsto no inciso III do § 4° do artigo 182 da

política urbana, é caso de exceção ao artigo 5°, inciso XXIV da Constituição Federal de

1988. Nessa exceção, a desapropriação será efetuada mediante pagamento em títulos da

dívida pública, caracterizando-se como sanção, devido ao critério definido para fins de

pagamento.

Pela forma como está prevista no texto constitucional, essa desapropriação é um instrumento urbanístico que possibilita ao poder público aplicar uma sanção ao proprietário de imóvel urbano, por não respeitar o princípio da função social da propriedade, nos termos do plano diretor e do plano urbanístico local.254

Por ser mais um instrumento destinado a garantir o cumprimento da função

socioambiental da propriedade urbana, a desapropriação caracteriza-se também como

instrumento capaz de promover a reforma urbana. Em outras palavras, a desapropriação-

sanção é apta a promover transformações profundas no espaço urbano, merecendo,

portanto, tratamento especial.

Considerando a utilização indevida dos títulos da dívida pública como uma

realidade, o Estatuto da Cidade antecipou-se ao impor restrições ao uso dos títulos, objeto

de restituição em face da desapropriação. Estabelece, no §3° do artigo 8°, que os títulos da

dívida pública, decorrentes do pagamento da desapropriação da política urbana, não

poderão ser utilizados para pagamento de tributos.

252 PEREIRA, Luís Portella. A função social da propriedade urbana. Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 124. 253 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. 254 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002, p. 106.

113

Outro ponto fundamental relacionado à desapropriação é o valor da indenização,

que recebe tratamento diferenciado por se tratar de desapropriação-sanção. Pela análise

contextual da lei e dos objetivos a que ela se propõe, percebe-se a necessidade de critérios

diferenciadores na apuração do valor da desapropriação para fins de reforma urbana. De

acordo com o §2° do artigo 8° do Estatuto da Cidade, para definir o valor real da

indenização, o poder público refletirá o valor da base de cálculo do IPTU, descontando o

montante incorporado em função de obras realizadas pela municipalidade na área onde o

imóvel se localiza. Na definição do valor real, não serão computadas expectativas de

ganho, lucros cessantes nem juros compensatórios. Visando a atendimento ao texto

constitucional e levando em conta a destinação do imóvel, o Estatuto da Cidade estabelece

critérios diferenciadores para aferir o valor da indenização. Ao contrário do que salienta

Luís Portella Pereira (quando se refere a uma possível violência ao direito e conseqüente

inconstitucionalidade), da lei do meio ambiente artificial, depreende-se o entendimento de

que o tratamento igualitário caracterizaria o desrespeito ao princípio da igualdade, pois os

proprietários que respeitam a função socioambiental estariam recebendo o mesmo

tratamento destinado aos proprietários de imóveis especulativos.255

A regulamentação da desapropriação pelo Estatuto da Cidade atende ao objetivo de

não considerar, na apuração do valor da indenização, a valorização imobiliária decorrente

de investimentos públicos. A introdução desse critério evita que o Município destine

parcela de seus recursos para pagamento de indenizações de imóveis urbanos, sem que tais

imóveis tenham um uso social e ambiental que atenda aos interesses da coletividade. A

natureza de desapropriação sanção significa, nitidamente, que a indenização com valor

abaixo de mercado é uma forma de respeitar o princípio da igualdade e de promover a justa

distribuição dos benefícios e ônus da convivência urbana.

Com o escopo de reforçar o objetivo a que se destina a desapropriação, a lei do

meio ambiente artificial atribuiu dever ao Município de dar aproveitamento ao imóvel

desapropriado (artigo 8º, §4º). Com base nisso, terá o poder público municipal prazo de

cinco anos para dar o adequado aproveitamento ao imóvel, contados a partir da sua

incorporação ao patrimônio público. Dessa forma, verifica-se que, destinado o imóvel,

255 Ibidem, p. 108.

114

conforme estabelece o Plano Diretor Municipal, a propriedade estará cumprindo com sua

função socioambiental.256

Por fim, após a investigação dos principais instrumentos trazidos pelo Estatuto da

Cidade, percebe-se que as ferramentas da política urbana são alternativas viáveis para a

concretização da função socioambiental da propriedade urbana. Contudo, por si só, não são

capazes de implementar uma política urbana eficiente. Nesse contexto, para garantia de

uma gestão adequada dos recursos urbanos, a lei trouxe mais um instrumento: a

participação popular como forma de gestão democrática da cidade.

3.3 A Gestão Compartilhada: poder público e participação popular

Um dos grandes avanços da legislação brasileira foi a incorporação da participação

dos cidadãos nas decisões de interesse público mediante a gestão democrática,257 disposta

no Estatuto da Cidade. A participação popular abordada na lei do meio ambiente artificial

não está expressa em nenhum dispositivo constitucional, mas pode ser subentendida em

razão do parágrafo único do artigo 1° da Constituição Federal de 1988, que estatui que

"todo o poder emana do povo". De tal forma, o princípio democrático está inserido na

Constituição Brasileira, pois emanado o poder do povo, será exercido de forma direta ou

indireta por meio de representantes eleitos, acolhendo, assim, postulados da democracia

256 Salienta Victor Carvalho Pinto que “o destino a ser dado ao imóvel será aquele indicado no plano diretor e na lei específica, quando a hipótese for de parcelamento. As unidades finais – lotes, edificações ou unidades autônomas de condomínio – deverão retornar ao mercado, uma vez que o pressuposto do instituto é a existência de ‘demanda para utilização’ (artigo 42, I) da infra-estrutura existente. Presume-se, portanto, que esta seja uma operação economicamente rentável, que não deverá onerar o orçamento público, uma vez que Município poderá se auferir de recursos com a venda das unidades finais ou do próprio imóvel durante o período de dez anos de resgate dos títulos emitidos. Trata-se, a rigor, de uma ‘exploração direta de atividade econômica’, justificada por ‘imperativo de relevante interesse coletivo’, nos termos do artigo 173 da Constituição.” PINTO, Victor de Carvalho. Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. In: MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto da Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 146-147. 257 Para Maria Paula Dallari Bucci, “deve-se frisar o sentido da palavra ‘gestão’, que difere do mero ‘gerenciamento’, na medida em que a primeira compreende grande amplitude de responsabilidades de coordenação e planejamento, enquanto a segunda, mais usual na tradição das cidades brasileiras, diz respeito à simples execução cotidiana de tarefas e serviços de administração. Assim, a gestão democrática das cidades implica a participação dos seus cidadãos e habitantes nas funções de direção, planejamento, controle e avaliação das políticas urbanas.” BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão democrática da cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 323.

115

representativa e participativa, uma vez que possibilita aos cidadãos liberdade de

participação no processo político.258

A idéia de Estado Democrático de Direito [...], está associada, necessariamente, à existência de uma Sociedade Democrática de Direito, o que de uma certa forma resgata a tese de que o conteúdo do conceito de democracia aqui se assenta na soberania popular (poder emanado do povo) e na participação popular, tanto na sua forma direta como indireta, configurando o que podemos chamar de princípio participativo, ou, em outras palavras: democratizar a democracia através da participação significa em termos gerais, intensificar a optimização das participações dos homens no processo de decisão.259

Respeitando os pressupostos constitucionais da democracia participativa, o Estatuto

da Cidade incorpora a gestão democrática como uma diretriz geral da política urbana, por

meio do inciso II do artigo 2°. Por sua vez, o capítulo IV, da lei do meio ambiente

artificial, é dedicado inteiramente à gestão democrática da cidade, de tal forma que a

participação popular assume papel de destaque e de extrema relevância na gestão dos

recursos urbanos. Essa participação encontra lugar em todas as dimensões da política

urbana, desde a formulação do Plano Diretor, sua instituição e suas revisões periódicas.

Também é garantida a gestão democrática, a partir da constituição de órgãos colegiados de

política urbana, debates, audiências, consultas públicas, conferências sobre assuntos de

interesse urbano e iniciativa popular em projetos de lei, planos e programas que visem ao

desenvolvimento urbano (artigo 43).260 A plena realização da gestão democrática é a

garantia de que os instrumentos da política urbana serão verdadeiros mecanismos de

promoção do desenvolvimento urbano-ambiental justo e sustentável. Assim,

258 É interessante referir que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, considera a participação política um direito fundamental. Em seu artigo XXI diz: “todo homem tem o direito de tomar parte do governo de seu país diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos”. Também a Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos (Habitat II – realizada em Istambul em junho de 1996), já fazia previsão da institucionalização da participação social na gestão pública como fator de democracia e da busca pelo desenvolvimento sustentável. 259 LEAL, Rogério Gesta. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 149. 260 Deve-se ressaltar que o artigo 43 do Estatuto da Cidade enfatiza quatro mecanismos principais: órgãos colegiados, debates, audiências e consultas públicas, conferências temáticas e iniciativa popular. Trata-se de rol meramente exemplificativo uma vez que o legislador deixou abertura para o desenvolvimento de novas possibilidades de participação popular ao utilizar-se da expressão “entre outros” no caput do artigo 43 da lei do meio ambiente artificial.

116

[...] a inserção de mecanismos de participação na esfera local permite o desenvolvimento de uma prática participativa constante e regular, o que denota o caráter pedagógico dos instrumentos de participação. Esta nova estratégia de legitimação das decisões públicas, ao contemplar a participação da cidadania como elemento de validade das decisões públicas, de fato, rompe com a idéia de cidadão destinatário das políticas públicas, para uma cidadania efetiva e emancipatória que se constrói a partir de uma permanente interação entre espaço público estatal e sociedade.261

É importante frisar que, diante das dificuldades do Estado em enfrentar as questões

locais, a lei do meio ambiente artificial privilegiou o poder local, acarretando a

descentralização de algumas decisões Federais e Estaduais para o Município. A lei

privilegiou a co-participação do ente público aliado à sociedade, primando por uma co-

responsabilidade na criação do Plano Diretor e na aplicação dos instrumentos capazes de

efetivar a função socioambiental da cidade e da propriedade.262 “É na ampliação de

possibilidades de apropriação do espaço público pela sociedade” que se consolida a idéia

de democratização das decisões públicas e a idéia de controle social, “superando a

concepção tradicional de que o Estado, representado no espaço local pelo Município, deva

suprir e resolver integralmente as demandas da sociedade, enquanto esta permanece numa

posição de sujeito passivo das políticas públicas”.263

Com o Estatuto da Cidade e sua adaptação à realidade local, através do Plano

Diretor, de um lado, configura-se um novo padrão de relação entre Estado e sociedade

(pautado na sinergia Estado-sociedade), cujo alicerce está na participação dos cidadãos, de

suas comunidades e de suas organizações, em parceria com múltiplos atores sociais

articulados. A esse novo protótipo combinam-se descentralização e integração, atribuindo-

se a idéia de responsabilidade social.264 De outro lado, remete-se à idéia de um novo e

diferenciado “pacto social urbano”, pautado na busca de um espaço urbano para todos e de

todos, onde cada cidadão possua iguais condições de desenvolver suas potencialidades.

A democratização das ações públicas, principalmente na esfera municipal,

incorpora uma nova dimensão à gestão urbana. A população ganhou espaço para intervir

diretamente na organização do seu espaço de vida, o que significa uma integração entre

261 HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: IPR, 2007, p. 297. 262 OLIVEIRA, Isabel Cristina Eiras de. Estatuto da cidade: para compreender. Rio de Janeiro: IBAM/DUMA, 2001, p.16. 263 HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: IPR, 2007, p. 295-296. 264 FRANCO, Augusto de. Pobreza e desenvolvimento local. São Paulo: A e D, 2002, p.61.

117

gestão da cidade e democracia participativa. Os instrumentos previstos no capítulo da

gestão democrática da cidade dão passagem a uma nova cultura na complementaridade da

democracia participativa e representativa. Assim, todos têm o direito de participar

ativamente na gestão da cidade, na qual, de um lado, o poder público vincula-se aos

dispositivos legais e, de outro, os cidadãos tomam parte ativamente das decisões,

demonstrando a importância da participação popular como meio de aproximar o ente

político da população.

Dessa forma, na implementação das diretrizes gerais e dos instrumentos da política

urbana, o poder público municipal tem o dever jurídico de agir. A esse dever jurídico do

ente público corresponde uma obrigação que se estende aos cidadãos, ou seja, no momento

em que a proteção ao ambiente urbano e a concretização dos instrumentos de indução ao

desenvolvimento socialmente justo se impõem ao poder público e à coletividade, fica

estabelecida uma co-responsabilidade que se reflete no papel que o cidadão tem frente à

aplicação das políticas públicas locais. Não incumbe apenas ao poder público a

legitimidade para cobrar do proprietário do imóvel ocioso o racional e adequado

aproveitamento da propriedade. Também o particular está legitimado a exigir a utilização

social e ambiental do bem.

A responsabilidade não é só do poder público, a democracia pressupõe direitos e deveres, portanto, uma gestão democrática será aquela que apresentar a co-participação de todos os agentes e atores responsáveis pelo desenvolvimento envolvidos diretamente nas variadas e permanentes questões apresentadas no quotidiano da cidade.265

André Franco Montoro visualiza a participação popular de um ponto de vista

diferenciado, relacionando-a com a descentralização. Segundo ele, a descentralização e a

participação são formas de denotar a importância do município na democracia. O destino

da democracia no Brasil está estreitamente ligado à descentralização do poder e à

participação da sociedade. Nesse contexto, a descentralização de responsabilidades revela

ser o melhor caminho para a solução dos problemas socioambientais, tendo em vista que as

iniciativas e as atividades locais estão mais perto da população e, por isso, são mais

265 Ibidem, p.17.

118

realistas e eficientes. A seu ver, "descentralizar é colocar o governo mais perto do povo e,

por isso, torná-lo mais participativo, mais eficiente e mais democrático".266

A participação organizada e progressiva da população é o caminho insubstituível para a formação de uma sociedade realmente democrática, em que a pessoa humana como fundamento e fim da vida social tenha sua dignidade respeitada. O homem contemporâneo começa a tomar consciência de que não é apenas um espectador passivo da história, mas seu agente. [...]. O sentimento de participação é um dos mais poderosos elementos propulsores da atividade humana. É ele que entusiasma e anima a ação dos construtores de uma obra coletiva, seja ela uma casa, uma estrada, uma catedral ou uma cidade mais humana.267

Para Bernardo Kliksberg, o avanço em direção à democracia requer um profundo

redesenho do Estado, que substitua o modelo burocrático alheio aos cidadãos. Há a

necessidade de abrir o Estado à participação cidadã, de descentralizar, de favorecer formas

de co-gestão social. O caminho rumo à descentralização está cada vez mais claro, uma vez

que, em muitos casos, os municípios apresentam melhores condições de ajustar a

administração às necessidades dos cidadãos.268

A sociedade é a maior interessada na solução dos problemas urbanos e é também a

que melhor conhece e sente a dimensão de tais problemas. Nesse espírito de gestão

democrática, proposto pelo Estatuto da Cidade, a participação popular representa um novo

conceito de governo e de democracia. Após o surgimento da lei do meio ambiente

artificial, a participação da sociedade não se restringe apenas a eleger seus representantes,

mas igualmente assegurar, na medida do possível, a conjunção de democracia

representativa e participativa na busca do bem coletivo.

Ao tratar dos construtos epistemológicos da gestão pública compartilhada no Brasil,

empregando uma abordagem habermasiana do agir comunicativo, Rogério Gesta Leal

condiciona a legitimidade da administração pública no Estado Democrático de Direito à

existência de um processo democrático de comunicação política, que institui espaço de

permanente construção de entendimentos racionais, a partir de instrumentos e mecanismos

de co-gestão que garantam a visibilidade, a compreensão e o debate das questões

266 MONTORO, André Franco. Descentralização e participação: importância do município na democracia. In: FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA - Cepam. O município no século XXI: cenários e perspectivas. Edição especial. São Paulo, 1999, p.298. 267 Ibidem, p.298. 268 KLIKSBERG, Bernardo. O desafio da exclusão: para uma gestão social eficiente. São Paulo: Fundap, 1997, p.63.

119

comunitárias relevantes. Assim, para ele, a participação da população na gestão dos

interesses públicos não é formal ou circunstancial, mas fundacional, pois “[...] na ação de

gestar a cidade, o cidadão a constitui enquanto lugar de civilização, comunhão e existência

digna; é nesta cidade que o homem se torna ser no mundo, porque co-responsável pela sua

criação e desenvolvimento, e tudo que diz respeito à cidade diz respeito a ele”.269 Dessa

forma,

[...] a partir do espaço da cidade, constituída na cidadania, as responsabilidades de gestão dos interesses comunitários que lhes são particulares, uma vez compartilhadas, devem ser o resultado direto de políticas públicas integradoras e de inclusão social, fruto da capacidade de articulação entre interesses públicos e privados.270

Em um breve recorte, cumpre destacar a gestão democrática participativa como um

possível instrumento de inclusão social e de cidadania. No entanto, embora a participação

da população seja uma possibilidade de inclusão social, deve-se destacar que a inclusão

também depende de outros fatores como o desenvolvimento do capital humano e do capital

social.

Com base em João Pedro Schmidt, pode-se dizer que os conceitos de inclusão e

exclusão social são recentes, uma vez que se tornaram usuais nas últimas décadas do

século XX. A exclusão social é um conceito que abarca muitos significados, por isso,

muitas vezes, considerado polissêmico, mas que é muito importante para a compreensão de

fenômenos relacionados às desiguldades sociais. A principal relação que se pode

estabelecer com o termo exclusão é a de privação de direitos ou benesses a que a sociedade

deveria ter acesso. Em contrapartida, oposta à exclusão, encontra-se a inclusão social,

numa acepção de inserção e integração na sociedade.271 Nesse sentido, pode-se destacar na

gestão democrática participativa, proposta no Estatuto da Cidade, um grande potencial de

inclusão social, uma vez que a participação da sociedade nas decisões de interesse local

possibilita a criação de redes sociais de mobilização e de integração da sociedade em prol

de objetivos comuns.

269 LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 56. 270 Ibidem, p. 56. 271 SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social. Mimeo, 2006, p. 5-6.

120

De tal forma, igualmente ligados aos conceitos de inclusão e exclusão social,

encontram-se os temas do capital humano e do capital social. Pode-se dizer que o capital

humano está intimamente ligado às ações voltadas ao indivíduo, como o acesso à

educação, à saúde, entre outros. Para Augusto de Franco, o principal elemento do capital

humano não é o nível de escolaridade ou expectativa de vida da população, mas o

empreendedorismo, uma vez que,

[...] do ponto de vista do desenvolvimento, o principal elemento do capital humano, o que distingue e caracteriza o humano como ente construtor do futuro e, portanto, gerador de inovação, é a capacidade das pessoas de fazer coisas novas, exercitando a sua imaginação criadora – o seu desejo, sonho e visão – e se mobilizando para desenvolver as atitudes e adquirir os conhecimentos necessários capazes de permitir a materialização do desejo, a realização do sonho e a viabilização da visão.272

Já o capital social relaciona-se a aspectos do ambiente em sociedade. Para João

Pedro Schmidt, destacam-se duas vertentes da conceituação de capital social. A primeira

entende o capital social “como recurso que os indivíduos possuem para acessarem recursos

socialmente valorizados em virtude de suas relações com outras pessoas”.273 Nessa

perspectiva, o recurso (conhecimentos, informações) é o capital, e é social porque acessível

apenas em um circuito de relações. A outra vertente entende o capital social como

“variadas formas de interação social dos membros de uma comunidade, [...] e dos

componentes psico-sociais a elas subjacentes, como os sentimentos de confiança e

reciprocidade”.274 Assim, pode-se definir capital social como o “conjunto de redes,

relações e normas que facilitam ações coordenadas na resolução de problemas coletivos e

que proporcionam recursos que habilitam os participantes a acessarem bens, serviços e

outras formas de capital”.275

Nesse sentido, o capital social indica a possibilidade de efetivação da participação

popular e de inclusão social, pois contribui para a constituição de vínculos sociais de

cooperação em prol de interesses coletivos, cujas atividades são coordenadas com

propósitos comuns entre as pessoas de uma mesma cidade ou região. Há que se referir

também, que o caminho para alcançar uma participação social ativa nas decisões de

272 FRANCO, Augusto de. Pobreza e desenvolvimento local. São Paulo: A e D, 2002, p. 63-64. 273 SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, Inclusão e capital social. Mimeo, 2006, p. 8. 274 Ibidem, p. 8. 275 Ibidem, p. 9.

121

interesse local, passa indiscutivelmente pela interlocução entre Estado e Sociedade e

principalmente pela mobilização do capital social comunitário.

Corroborando esse entendimento, Augusto de Franco diz que “o fortalecimento do

capital humano e do capital social é, portanto, ingrediente sem o qual as políticas públicas

e as ofertas de serviços governamentais não serão eficientes nem suficientes”.276 Para ele,

combater a pobreza e a exclusão social não é transformar pessoas e comunidades em beneficiários passivos e permanentes de programas assistenciais, mas significa, isto sim, fortalecer as capacidades de pessoas e comunidades de satisfazer necessidades, resolver problemas e melhorar sua qualidade de vida.277

Uma política pública realmente eficiente e eficaz tem como centro a pessoa

humana. Para o desenvolvimento da pessoa humana, ou seja, da vida, há a necessidade de

um ambiente saudável. Nesse sentido, as políticas públicas também devem ser voltadas

para a proteção do que cerca o homem e essa proteção, conforme ressaltado anteriormente,

não é apenas dever do ente público, mas um direito-dever da sociedade. A Constituição

Federal de 1988 propiciou a criação de instrumentos que permitem a participação cada vez

mais ampla da população na defesa e na promoção dos interesses coletivos. Por sua vez, o

Estatuto da Cidade amplia essa participação para todos os atos da política pública

municipal. Cabe agora aos cidadãos a tarefa de exercer esses direitos e abrir caminho para

a prática de uma democracia participativa.

A lei do meio ambiente artificial impõe normas, indica diretrizes e oferece

dispositivos para sua adoção, contudo, por si só, não garante uma justa e adequada

aplicação. O caminho para a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana

está traçado pelo Estatuto da Cidade, por meio dos instrumentos de indução ao

desenvolvimento urbano (parcelamento, utilização ou edificação compulsórios, IPTU

Progressivo no Tempo e desapropriação), mas, para que haja um real estabelecimento da

função socioambiental da propriedade urbana, deve haver uma gestão compartilhada, na

qual o poder público municipal disponibilize canais de acesso à democracia participativa

como forma de inclusão social. Possibilita-se, assim, uma nova forma de pensar a cidade,

criando uma nova racionalidade, abrindo espaço para a conscientização de que todos fazem

276 FRANCO, Augusto de. Pobreza e desenvolvimento local. São Paulo: A e D, 2002, p.60. 277 Ibidem, p. 60.

122

parte do meio ambiente artificial e são co-responsáveis pela sua preservação para o futuro

das novas gerações.

3.4 As Audiências Públicas e os Conselhos Municipais

A constituição e a efetivação de uma gestão urbano-ambiental sustentável e da

função socioambiental da propriedade urbana, como já se destacou nos tópicos anteriores,

passam indiscutivelmente pela aplicação sucessiva dos instrumentos de indução ao

desenvolvimento urbano e pela democratização do espaço urbano através de mecanismos

que possibilitem a participação ativa dos cidadãos nas demandas de interesse local.

Contudo, embora tais instrumentos sejam imprescindíveis à funcionalização

socioambiental da propriedade, torna-se necessário ainda, referir a importância dos

instrumentos de gestão democrática da cidade, contidos nos incisos do artigo 43 do

Estatuto da Cidade (órgãos colegiados de política urbana; debates, audiências e consultas

públicas; conferências sobre assuntos de interesse urbano; iniciativa popular de projeto de

lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano). Em especial, procurar-

se-ão salientar as audiências públicas e os conselhos municipais como espaços públicos de

interlocução política e administrativa entre o governo local e a sociedade, viabilizadores da

efetiva materialização socioambiental da propriedade urbana.

Iniciando a abordagem pelos conselhos municipais,278 é importante destacar que os

últimos anos, precisamente os anos 90, foram marcados pela institucionalização279 e

difusão dos conselhos municipais como canais de democratização da gestão pública local e

de aumento da eficiência e da eficácia das políticas públicas. A participação da sociedade

na formulação e na gestão de políticas públicas foi legitimada institucionalmente com a

278 Para Liana Portilho Mattos, os conselhos são esferas mistas, não totalmente estatais nem somente comunitárias, caracterizando-se por serem canais de interação entre Estado e sociedade que contribuem significativamente para a inserção de novos temas e demandas na agenda pública. MATTOS, Liana Portilho. Da gestão democrática da cidade. In: MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto da Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 307. 279 A institucionalização dos conselhos municipais é referida por Maria da Glória Gohn, com o significado de inclusão da participação cidadã no “arcabouço jurídico institucional, a partir da criação de estruturas de representação novas, em termos de objetivos, finalidades, práticas e composição social.” Pressupõe a existência de uma nova cultura política fundada na interlocução permanente entre Estado e sociedade. GOHN, Maria da Glória. Os conselhos municipais e a gestão urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 59.

123

Constituição Federal de 1988, quando foram estabelecidas a soberania e a cidadania como

fundamentos do Estado Democrático de Direito e combinados os procedimentos de

democracia representativa e democracia direta.280

A dimensão e o significado desta mudança são enormes porque não se trata apenas de “inserir o povo” em práticas de gestão pública, como ingenuamente preconizavam as propostas da democracia com participação comunitária nos anos 80, quando a idéia da participação vinculava-se à apropriação simples de espaços físicos. Trata-se agora de mudar a ótica do olhar, do pensar e do fazer; alterar os valores e os referenciais que balizam o planejamento e o exercício das práticas democráticas. Partir das necessidades sociais significa adotar posturas que têm como meta práticas de inclusão social [...]. Partir das demandas reais implica adotar um outro ponto de partida: o da necessidade de inclusão social dos que estão fora do acesso dos direitos fundamentais e do mercado de bens, produtos e serviços necessários à sobrevivência condigna, e não de favorecimento aos que já participam, ou dominam, esse mercado.281

A par disso, acredita-se que o funcionamento efetivo dos conselhos municipais

significa uma gestão mais transparente do poder público, ao permitir que a sociedade

acompanhe suas ações de maneira mais próxima. O sentimento de pertencimento, a ser

estimulado no espaço local, permite a aproximação social dos munícipes em prol de

interesses comuns, favorecendo a construção da responsabilidade e do controle social,

contribuindo para o implemento de políticas públicas adequadas às demandas locais,282

assim como, propiciando uma gestão sustentável do meio ambiente artificial. A inserção

desse mecanismo de participação, na esfera local, possibilita a prática da democracia

participativa de forma constante e regular. É através desses instrumentos

institucionalizados de gestão democrática urbana que se torna possível realizar os

princípios constitucionais, ou seja, a sociedade, quando decide, acaba por concretizar

alguns dos preceitos fundamentais da Constituição Federal.

280 SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; AZEVEDO, Sergio de; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Democracia e gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 21. 281 GOHN, Maria da Glória. Os conselhos municipais e a gestão urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 61. 282 Destaca Maria da Glória Gohn que é o princípio ético que orienta a participação da sociedade, cujo foco central está na relação entre a sociedade civil e a sociedade política. Em função disso, as políticas públicas ganham destaque como ponto de contato entre Estado e sociedade. GOHN, Maria da Glória. Os conselhos municipais e a gestão urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 59.

124

É necessário o reconhecimento de que esse processo de mudanças e de

democratização da participação da sociedade não foi gerado espontaneamente. Existem, no

mínimo, dois fatores que foram determinantes para a adoção dos conselhos municipais

como instrumentos de gestão democrática. Como um primeiro fator, podem-se destacar as

experiências de participação desenvolvidas pelos movimentos sociais, que abriram

caminho para a instauração de canais de participação direta da sociedade na gestão dos

interesses públicos. De outro lado, como um segundo fator, pode-se referir que houve

vontade política para que pudesse ser implantado um novo espaço público, de caráter não-

estatal. “Este espaço surgiu como um agente de mudança, de decisão, e exigiu a construção

de regras de institucionalidade bem claras para que os mecanismos de participação, de

caráter democrático, viessem a operar.”283

Nesse sentido, evidencia-se a importância dos conselhos municipais para estimular

a participação e proporcionar a inclusão social dos munícipes. Os conselhos podem ser

considerados os “[...] canais de participação mais expressivos da emergência de um novo

regime de ação pública no plano local, caracterizados pela abertura de novos padrões de

interação do governo com a sociedade em torno da definição de políticas sociais.”284 Esses

canais de intermediação governo – sociedade têm a capacidade de deliberar e influir na

gestão das secretarias municipais, acarretando assim o comprometimento desses órgãos

com as decisões dos conselhos. Nessa perspectiva, os conselhos municipais podem

constituir instrumentos efetivos de aprofundamento da democracia. Frente a isso,

destacam-se quatro categorias de competências atribuídas aos conselhos:

a) competências decisórias, consideradas as que estão relacionadas à formulação de políticas e à regulação das atividades na área de atuação do conselho; b) competências monitórias, consideradas as que estão relacionadas à fiscalização, monitoramento e à avaliação de ações nas quais o Conselho não tem execução direta; c) competências exclusivas, consideradas aquelas relativas à execução direta de atividades pelo Conselho; e d) competências de autogestão, relativas às atividades de organização e funcionamento do próprio Conselho. Acrescente-se, ainda, a bem da precisão, uma e) competência de assessoria, ou seja, aquela competência em que o conselho sugere ou estimula determinadas políticas a outros órgãos da Administração.285

283 Ibidem, p. 60. 284 SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; AZEVEDO, Sergio de; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Democracia e gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 25. 285 GONZÁLEZ, Rodrigo Stumpf apud HERMANY, Ricardo; RECK, Janriê Rodrigues; STEIN, Leandro Konzen. A gestão local/compartida do meio ambiente por meio dos conselhos: fundamentação, explicitação e

125

Nesse particular, é importante referir que os conselhos municipais, como canais

institucionais de participação da sociedade, possuem algumas características importantes,

tais quais: são temáticos, ou seja, ligados a políticas sociais específicas (transporte, saúde,

educação, entre outros); são de caráter semi-representativo e com mandatos geralmente não

remunerados, prevendo a participação voluntária de representantes da sociedade civil e de

organizações sociais; são deliberativos, abrangentes e permanentes uma vez que não estão

restritos apenas à formulação de sugestões; são de composição paritária entre governo e

sociedade, ou seja, metade dos representantes pertence a organizações da sociedade civil e

outra metade aos órgãos governamentais; são autônomos ou semi-autônomos em relação

ao governo (embora vinculados aos órgãos do poder público, têm autonomia para definir

suas regras e seu funcionamento).286

Em uma perspectiva histórica, torna-se interessante a contribuição de Rogério

Gesta Leal ao abordar a criação dos conselhos municipais na cidade de Porto Alegre.

Como órgãos auxiliares da Administração Pública porto-alegrense, os conselhos

municipais foram instituídos no auge do governo militar no Brasil através da Lei

Municipal nº 3.607, de 27 de março de 1972. Naquele momento histórico, os conselhos

não tiveram autonomia nem independência, tampouco conseguiram mobilizar a sociedade

para a participação na gestão pública. Isso se deu, por um lado, em razão do autoritarismo

vigente que não permitia o envolvimento da sociedade em questões políticas e

administrativas; por outro, ao fato de que os conselhos eram nomeados através de ato do

prefeito municipal, inviabilizando ações contrárias às práticas oficiais de gestão. Todavia,

em 20 de janeiro de 1992, através da Lei Complementar nº 267, ocorreu a regulamentação

dos conselhos municipais concebendo-os, “[...] não mais como instâncias de assessoria do

Poder Público, mas como órgãos de participação direta da comunidade na administração

pública, tendo por finalidade propor, fiscalizar e deliberar matérias referentes a cada setor

da administração.”287 De tal forma, a partir desse período, a escolha dos membros do

questões pontuais. In: RODRIGUES, Hugo Thamir (Org.). Direito Constitucional e Políticas Públicas. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005, p. 122. 286 SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; AZEVEDO, Sergio de; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Democracia e gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 22-24. 287 LEAL, Rogério Gesta. Estado, administração pública e sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 160-161.

126

conselho passou a ocorrer por eleição em Assembléia própria, não ficando mais a encargo

do prefeito, assegurando a legitimidade do processo de administração da cidade.

Complementando o exposto, cabe lembrar a necessidade de se fixarem diretrizes

para criação, composição e funcionamento dos conselhos municipais uma vez que o

potencial de efetividade desse instrumento implica um considerável comprometimento da

sociedade. De outro modo, torna-se imprescindível reconhecer que muitas vezes esses

espaços de participação são imbuídos de caráter meramente formal, com o intento de

possibilitar o repasse de verbas Federais ou Estaduais, demonstrando uma participação

vinculada a uma lógica de legitimação fundada em um interesse público forjado.288 Frente

a isso,

[...] a simples existência de um conselho, objetivando atender a requisito legal para a liberação de recursos federais ou estaduais, [...] se desacompanhada de uma ampla reformulação do espaço público local, com a conseqüente atuação da sociedade como sujeito ativo no processo de formulação das decisões administrativas e legislativas [...] pode servir para consolidar equívocos do processo de deliberação pela maioria, a partir de simples juízos de homologação de projetos elaborados pelo corpo técnico das Administrações.289

Diante desse panorama, deve-se estimular o potencial criativo do poder local para a

constituição de conselhos inovadores, pautados em demandas específicas e necessárias,

procurando ampliar a relação dos conselhos já previstos na legislação vigente e adequá-los

à realidade local. Uma maior democratização do espaço local indica uma

reconceitualização da participação dos cidadãos. Há a necessidade de liberdade e de

capacidade de engajamento da sociedade no processo de gestão da cidade, buscando 288 No debate teórico acerca dos desafios e dos obstáculos à participação cabe destacar a contribuição pontual de Rebeca Abers, citada por Marcelo Lopes de Souza, ao indicar três problemáticas referentes à participação popular nos conselhos. Para ela, uma primeira problemática diz respeito à implementação dos instrumentos de gestão democrática, que se traduz nas dificuldades enfrentadas pela administração pública na instituição das políticas participativas. Essa dificuldade se revela através de boicotes, da escassez de recursos devido ao desperdício, da incompetência ou da corrupção das administrações anteriores, dos conflitos ideológicos entre grupos da administração, da resistência corporativa dos técnicos e dos planejadores, entre outros. A solução para esse impasse não é fácil, implica quase sempre em uma solução política de negociação. A cooptação é uma segunda problemática, relacionada à deformação da participação, gerando muitas vezes uma falsa participação. Por último, há a problemática da desigualdade, que não depende apenas do Estado para a sua superação. Essa problemática indica as dificuldades de participação voluntária da população, geralmente em função de sua condição de vida e dos poucos recursos dos quais dispõem. “Com tantos obstáculos, fica fácil perceber que a participação popular no planejamento e na gestão urbanos não é algo trivial. A retórica da participação é simpática mas, não raro, vazia e enganosa, exatamente quando se subestimam os vários obstáculos ou quando se tenta ‘vender gato por lebre’.” ABERS, Rebeca apud SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 387-388. 289 HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: IPR, 2007, p. 301-302.

127

romper com a cultura centralizadora que subordina os cidadãos ao invés de integrá-los ao

debate público.

Dessa forma, os canais institucionais de participação da sociedade, criados na

esfera pública local - a exemplo dos conselhos municipais e de outros instrumentos

trazidos pelo Estatuto Cidade, como as audiências públicas, o orçamento participativo,

entre outros - podem fazer da política um campo de exercício e de consolidação da

democracia.290 Os conselhos municipais, principalmente os conselhos municipais do meio

ambiente, são canais institucionais com potencialidade expressiva na constituição da

interação entre o governo e a sociedade. Em primeiro lugar, isso se deve ao contato dos

atores locais entre si e com os representantes governamentais, o que propicia ao indivíduo

o aprofundamento sobre a realidade dos problemas urbano-ambientais da cidade, como

também estabelece alianças e parcerias entre esses atores sociais na busca de soluções.

Assim sendo, acredita-se que, através dos conselhos municipais do meio ambiente, seja

possível buscar a implementação de uma gestão urbano-ambiental sustentável e viabilizar a

função socioambiental da propriedade urbana. Os conselhos municipais, nesse sentido,

representam locais de solidarização, conscientização e sensibilização ambiental.

Por conseguinte, outro importante mecanismo de democratização da gestão e da

fiscalização e controle da efetivação da função socioambiental da propriedade urbana é

representado pelas audiências públicas. Para Liana Portilho Mattos, as audiências públicas,

além de estarem direcionadas à discussão dos assuntos de interesse da população e à

veiculação de informação (artigo 5°, XXXIII da CF/88) sobre as decisões e/ou projetos do

poder público, também são dirigidas ao implemento da co-gestão entre o governo e a

população, proporcionando um acompanhamento mais próximo das ações a serem

implementadas pelo poder público.291

As audiências públicas, além de estarem previstas no Estatuto da Cidade (artigo 40,

§ 4º, artigo 43, inciso II e artigo 44), também se encontram estabelecidas na Lei de

Licitações e na Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 48). Na Constituição Federal de

290 GOHN, Maria da Glória. Os conselhos municipais e a gestão urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004, p. 87. 291 MATTOS, Liana Portilho. Da gestão democrática da cidade. In: MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto da Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 310.

128

1988, está prevista, no artigo 58, § 2º, inciso II, de modo a garantir a gestão compartilhada

e a consolidar o disposto no artigo 29, inciso XII do mesmo diploma legal.

Assim, também as audiências públicas permitem a abertura do espaço público para

a participação da sociedade, imbuindo o cidadão de um sentimento de pertencimento e de

responsabilidade na gestão do seu ambiente de vida. “Com a participação traduzindo-se em

fator permanente, temáticas que eram desconhecidas pela população passam a integrar a

prática cotidiana, incorporando-se ao vocabulário dos cidadãos [...]. O exercício constante

e permanente contribui de forma definitiva para uma nova construção da cidadania.”292

Frente a isso, a obrigatoriedade das audiências públicas colabora para a ampliação do

processo de publicização das necessidades coletivas e para a efetivação de uma gestão

partilhada entre Estado e sociedade. Em outros termos,

deve-se aproveitar a esfera local como estratégia capaz de manter canais permanentes e simplificados de discussão sobre políticas públicas, definindo-as e, principalmente, possibilitando o controle de sua execução. É o espaço local que permite uma discussão mais pormenorizada, com critérios factíveis para que o cidadão realmente esteja inserido no processo de democratização da gestão [...].293

Diante disso, tem-se que a resposta acerca da possibilidade de efetivação da função

socioambiental da propriedade urbana e do implemento de uma gestão urbano-ambiental

sustentável, não se relaciona apenas aos instrumentos de indução do desenvolvimento

urbano (parcelamento, utilização ou edificação compulsórios, IPTU Progressivo no Tempo

e desapropriação), tampouco somente à gestão compartilhada exposta na lei do meio

ambiente artificial. Complementando a aplicação dos instrumentos de indução ao

desenvolvimento, encontram-se os conselhos municipais e as audiências públicas como

ferramentas importantes para a efetivação da função socioambiental da propriedade

urbana.

292 HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: IPR, 2007, p. 305-306. 293 Ibidem, p. 308.

CONCLUSÃO

As demandas sociais evidenciam-se cada vez mais complexas e desafiadoras aos

aplicadores do direito. Nesse cenário, o Programa de Mestrado em Direito da UNISC, com

área de concentração em Direitos Sociais e Políticas Públicas, especificamente na linha de

pesquisa de Políticas Públicas e Inclusão Social, busca compreender e investigar as

condições e possibilidades de gestão dos interesses públicos a partir da construção de

políticas públicas de inclusão social e da participação política da cidadania. Dessa forma, o

presente trabalho buscou demonstrar que a efetivação da função socioambiental da

propriedade urbana é um demanda social contemporânea, relacionada diretamente aos

temas da inclusão social e das políticas públicas no espaço local.

Nesse sentido, eleger abordagem teórica que busque encerrar um trabalho voltado

para a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana não é tarefa das mais

fáceis. Primeiro, em razão da riqueza e da abrangência do tema enfrentado, sempre

fomentador de novos questionamentos; segundo, porque muitas outras questões foram

suscitadas, e grande parte de suas respostas acabam por instigar novas problemáticas,

abrindo caminho para investigações futuras.

Respeitando a proposta originária da presente investigação, procuraram-se buscar

as respostas das indagações entre os instrumentos elencados no Estatuto da Cidade. Nesse

contexto, pôde-se perceber que o direito de propriedade, com o surgimento da lei do meio

ambiente artificial, apresenta-se como um direito renovado, que passa por um processo de

publicização a fim de se adequar às demandas sociais e ambientais da coletividade. Essa

propriedade, agora vinculada ao cumprimento de uma função socioambiental, torna-se um

instituto que contempla a proteção dos interesses públicos e privados que lhes são

inerentes. É essa proporcionalidade, trazida pelo Estatuto da Cidade, que caracteriza a

justiça social e a realização do bem comum tão esperadas no contexto urbano e

proporciona o implemento de políticas públicas includentes.

As novas necessidades e exigências da sociedade contemporânea, dentre as quais,

as de ordem ambiental, requeriam uma adequação do direito. Essa reorientação deveria

priorizar um direito de caráter social e ambiental, propiciando, dessa forma, a

130

concretização da função socioambiental da propriedade urbana. Contudo, é importante

destacar que as respostas ao questionamento não se encontram apenas no âmbito do direito,

mas relacionam-se com outras áreas do conhecimento, tais quais, Ciências, Filosofia,

Sociologia, Biologia, dentre outras.

Na busca de respostas, iniciou-se o estudo tendo por base os preceitos da

Constituição Federal de 1988. Percorreu-se o caminho da demarcação histórica e do

surgimento da propriedade como direito. Analisaram-se as diferentes formas de

propriedade ao longo do tempo. Em virtude disso, houve a necessidade de fragmentação da

análise em períodos distintos: Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade

Contemporânea, onde se verificaram os traços característicos do direito de propriedade em

cada período da história da humanidade.

Nos primórdios da existência humana, especificamente no período pré-histórico, o

homem era nômade e de comportamento similar às outras espécies de animais. Embora

vivendo em um estado selvagem já tinha a noção de propriedade. Com a invenção da

escrita e a passagem do homem ao estado de civilização, iniciou-se o período da Idade

Antiga, onde a noção de propriedade aparece regulamentada sob normas de estrutura

codificada. De outro modo, destacou-se, através da passagem do traço familiar para a

propriedade individualista e absoluta, característica da concepção romana, que a concepção

inicial de propriedade foi cedendo vez aos direitos do indivíduo e não aos da coletividade.

Na Idade Média, com o surgimento do feudalismo como organização econômica,

política e social, os donos de terras passaram a submeter suas propriedades ao domínio do

soberano em troca de proteção. Essa situação acarretou a inquietação dos proprietários e o

retorno da discussão acerca da propriedade privada. Por outro lado, o período moderno foi

marcado pelas grandes navegações, pela Revolução Comercial e pelo renascimento,

fortemente influenciado pelos ideais iluministas, que permitiram a passagem do Estado

Absolutista ao Estado Liberal. O direito moderno teve seu marco na Revolução Francesa,

caracterizada por uma concepção individualista, favorecendo os ideais de propriedade

absoluta e individualista. Frente a isso, em contraponto à doutrina liberal, em um período

marcado por profundas desigualdades sociais, surgiu o pensamento socialista, decisivo

para o rompimento do paradigma de propriedade absoluta. Foi na contemporaneidade que

se tornou evidente o caráter dinâmico do direito de propriedade, passando a assimilar

131

interesses sociais e ambientais. Assim, constatou-se que não há um conceito universal e

imutável de propriedade, uma vez que esta tem seu conteúdo modificado em virtude de

necessidades sociais e ambientais.

Com isso, passou-se a investigar a contribuição de doutrinadores e filósofos para a

caracterização da propriedade e da função social, buscando demonstrar que as alterações

na concepção da propriedade privada, além de produto histórico, também tiveram origem

no pensamento e nas teorias de diversos estudiosos. Nesse sentido, destacaram-se três

correntes de pensamento: os que contestavam a propriedade privada e defendiam sua

abolição, os que afirmavam ser a propriedade um direito natural do homem e os que a

defendiam como criação do Estado e conseqüência do Estado Civil.

O primeiro a contribuir com o rompimento da idéia de direito absoluto e individual

de propriedade foi Aristóteles. Para Aristóteles, a propriedade privada deveria,

necessariamente, estar vinculada a uma destinação social, compreendendo a harmonização

das feições individuais e comuns. Buscou ele, através de suas obras, criticar a apropriação

coletiva dos bens, argumentando a falta de cuidado com o que é de todos. Em função dessa

crítica, no que tange à propriedade privada, destacou a necessidade de ponderação entre o

interesse público e o interesse privado, tornando-se justo o meio-termo. Com conotação

diversificada, Santo Agostinho configurava os bens como obras divinas. Em seu

entendimento a propriedade privada era providência dos homens, com a finalidade de

atendimento das necessidades sociais e não apenas individuais. Destacava ele que a função

da terra era a produtividade e que o homem que a descumprisse ausentava-se de

exclusividade em seu interesse individual. Em São Tomás de Aquino, observou-se o

entendimento de um direito natural à posse de bens materiais, provisoriamente destinados

ao domínio individual. Nesse sentido, para ele, admitia-se o direito de propriedade privada,

condicionada ao interesse individual e ao interesse social. Entretanto, é com a Doutrina

Social da Igreja que a propriedade privada passou a estar imbuída de um compromisso

social. Com isso, tornou-se evidente a necessidade de conscientização do homem em

relação a sua natureza social e ao seu compromisso com o bem comum, a ser realizado por

intermédio da propriedade privada.

Com Thomas Hobbes a propriedade privada passou a ser entendida como efeito do

Estado, através de ato do soberano. Para ele, a passagem do Estado Natural ao Estado Civil

132

se deu com a renúncia dos direitos naturais em favor do soberano. Dessa forma, a liberdade

civil do detentor da propriedade privada estava condicionada às obrigações da vida em

sociedade. De outro modo, para John Locke, na passagem do Estado Natural para o Estado

Civil, a propriedade, como direito inerente à natureza do homem, absoluta, exclusiva e

ilimitada, compreende essas características apenas quando legitimada pelo trabalho. Em

contrapartida, em Jean-Jacques Rousseau, se observou a renúncia dos direitos naturais em

favor de toda coletividade, como prerrogativa da liberdade civil. Assim, para ele, a

propriedade originou-se como direito somente com a instituição do Estado. A partir disso,

reconheceu na instituição da propriedade como direito, através das leis, a destruição da

igualdade e da liberdade do Estado de Natureza, o que causou inúmeras desigualdades.

Com Thomas More, discutiu-se que o Estado ideal deveria priorizar a igualdade e a justiça.

Baseando-se nisso, criticou-se a apropriação privada do solo e procurou-se incentivar o uso

comum dos bens. Por fim, foi com Léon Duguit a contribuição mais expressiva no

desenvolvimento da noção de função social da propriedade. Para Duguit, a propriedade

deixou de ser o direito subjetivo de caráter individual e passou a ser uma função social do

detentor do bem. Dessa forma, o direito de propriedade se traduz na idéia de um poder-

dever, ou seja, o proprietário não tem um direito subjetivo, mas uma situação jurídica

objetiva, de realização da função social.

Verificados os contextos históricos que marcaram o direito de propriedade e o

surgimento da noção de função social, partiu-se para a investigação da influência da

evolução histórica e da constitucionalização dos direitos fundamentais no direito de

propriedade a fim de se esclarecer o momento histórico e os fatores que contribuíram para

a consagração da função social da propriedade como princípio jurídico.

Em um primeiro momento, procurou-se demonstrar que os direitos fundamentais

não foram resultado de um acontecimento histórico determinado, mas de todo um

processo. Em decorrência disso, os direitos fundamentais são estudados e classificados em

dimensões. Não se pode lhes atribuir fundamento absoluto pois são historicamente

relativos uma vez que surgem e se modificam influenciados por fenômenos sociais

sucessivos. Frente a isso se concluiu que os direitos de primeira dimensão ganharam novas

feições quando do surgimento de novos direitos fundamentais. Nesse caso, o direito de

propriedade privada, num contexto de reconhecimento da segunda dimensão de direitos,

133

passou a estar condicionado ao exercício de uma função social, e com o aparecimento da

terceira dimensão, observando-se igualmente uma função ambiental.

Por fim, uma vez averiguada a importância das dimensões de direitos fundamentais

na reconfiguração das feições do direito de propriedade, partiu-se para a investigação da

flexibilização do direito de propriedade no Brasil. Salientou-se que a concepção

contemporânea do direito de propriedade une o direito subjetivo à função socioambiental,

de tal sorte que ao direito de propriedade se conjugam direito e dever. Com isso, de um

lado, objetivou-se demonstrar que as transformações do direito de propriedade fizeram-no

um direito renovado, por adquirir contornos socioambientais. De outro, procurou-se

salientar a evolução gradativa da noção de função socioambiental até sua incorporação ao

conceito de propriedade privada. Nesse contexto, com o surgimento do Estatuto da Cidade,

houve o rompimento definitivo do paradigma civilista de propriedade absoluta,

vinculando-a ao cumprimento de uma função social e ambiental no interesse da

coletividade. Assim, no contexto da lei do meio ambiente artificial, a propriedade não pode

mais ser vista como uma instituição de direito privado. Com o advento da Constituição

Federal de 1988 e a posterior adequação do Código Civil de 2002, a propriedade assume

uma feição renovada, assimilando, com o Estatuto da Cidade, contornos sociais e

ambientais. Há uma flexibilização do direito de propriedade que perpassa o individual ao

socioambiental na busca da igualdade de condições dignas de vida nas cidades.

Em um segundo momento do trabalho, priorizou-se a visualização do meio

ambiente enquanto direito-dever fundamental. Verificou-se que os problemas ambientais

no espaço urbano são antigos, embora a preocupação com o meio ambiente artificial seja

recente. Procurou-se abordar a necessidade de superação do modelo antropocêntrico

clássico, no qual o homem se afigura como detentor da natureza, abrindo caminho ao

entendimento do homem como parte do ambiente e principal responsável pela sua

conservação e preservação (antropocentrismo alargado). Restou evidente, pelo conceito de

meio ambiente, a incontestável interdependência apresentada pela relação homem-

natureza. De tal forma, confirmou-se pela análise interpretativa do disposto no artigo 225

da Constituição Federal de 1988, a afirmação de que a proteção do meio ambiente, além de

um direito fundamental de o homem usufruir um meio ambiente saudável, é também um

dever essencial, que se caracteriza pela obrigação incumbida ao Poder Público e a cada um

dos indivíduos partícipes da sociedade. Assim, embora em um primeiro momento a

134

compreensão do ambiental relacionado às cidades tenha restado limitada ao imaginário do

espaço urbano dissociado do meio ambiente, atualmente houve uma inversão, na qual se

buscou evidenciar que o ambiental contempla o social, sobretudo representado pelo

ambiente cultural e artificial.

Nesse sentido, buscou-se enfatizar e justificar o espaço urbano e a propriedade

privada como categorias de bens ambientais de interesse público e interesse difuso,

indicando, com isso, que a propriedade em sua forma privada, à frente e antes de sê-la, é

um microbem ambiental, acarretando ao proprietário o dever fundamental de utilizá-la não

apenas em seu favor, mas no interesse de toda coletividade. Em outras palavras, a

propriedade privada, em um panorama de inserção das normas de direito ambiental na

caracterização dos institutos de Direito Privado, deixou de ser um vínculo jurídico

individual e absoluto estabelecido entre uma pessoa e um bem, para apresentar-se como

um vínculo jurídico coletivo, difuso na sua espécie, que se estabelece entre pessoas

indeterminadas e um bem de uso comum, sem deixar de ser um bem de titularidade

privada.

Em razão desse entendimento, destacou-se que o parcelamento e a apropriação

privada do solo urbano representam uma das muitas causas das desigualdades sociais e dos

problemas urbano-ambientais. Os embates causados pelo não-acesso à propriedade urbana

evidenciam a necessidade de organização e de planejamento do espaço urbano. Assim,

enfatizou-se a viabilização de novos instrumentos de indução ao desenvolvimento através

da aprovação do Estatuto da Cidade. Analisou-se, ainda, a emergência da instituição e da

implementação de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento urbano sustentável,

concluindo-se que ou o desenvolvimento é sustentável ou não é desenvolvimento. Nesse

sentido, a meta de uma cidade sustentável depende de uma considerável mudança de

paradigmas, tornando-se necessário o despertar para valores solidários e fraternos.

Pensar o direito à cidade e à propriedade urbana, nesse particular, é ampliar ao

máximo as condições e as possibilidades de eficácia dos instrumentos da política urbana,

na busca da materialização da função socioambiental da propriedade. Isso implica uma

nova forma de entender a relação do homem com o seu ambiente.

135

Na última parte do trabalho, procuraram-se identificar os possíveis caminhos para

alcançar a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana. Para isso,

investigaram-se alguns dos instrumentos da política urbana, trazidos pelo Estatuto da

Cidade. De início, salientou-se que, no Brasil, a ausência de diálogo entre a população e o

Poder Público desencadeou, ao longo da história, a produção de planos e de leis

urbanístico-ambientais com parâmetros excludentes, refletindo apenas os interesses de uma

pequena parcela da população. O Estatuto da Cidade, nesse cenário, representou um grande

avanço nas políticas urbano-ambientais ao instituir instrumentos garantidores da

participação popular no processo decisório e de gestão do espaço urbano. Dessa forma, o

Plano Diretor surgiu como o principal instrumento à disposição do ente federativo

municipal para alcançar os objetivos da política urbana e garantir condições dignas de vida

aos cidadãos. Nesse contexto, o Plano Diretor é um primeiro passo para que seja possível a

aplicação dos demais mecanismos sociais e ambientais da lei do meio ambiente artificial.

Destacou-se ainda, que o legislador e o administrador municipal, para

exteriorizarem legalmente a política de desenvolvimento urbano do Município, deverão

utilizar-se do Plano Diretor. O que não constar no Plano Diretor, não poderá integrar a

política urbana. Ademais, ressaltou-se que, o direito à participação popular e a efetiva

participação, como requisitos constitucionais, são condição obrigatória de validade e de

legitimidade do Plano Diretor.

Em seqüência, havendo imóvel em desacordo com a função social e ambiental, é

exigido do proprietário o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsória, para só

depois de descumpridas as exigências, incidir a cobrança do IPTU Progressivo no Tempo.

Por sua vez, o IPTU Progressivo no Tempo, como instrumento tributário e financeiro da

política urbana, visa a punição de uma situação evidentemente especulativa,

caracterizando-se pelo seu caráter punitivo e pela sua natureza extrafiscal. Seu objetivo é

motivar a utilização devida da propriedade urbana, de modo a garantir o cumprimento da

função socioambiental da propriedade. Por fim, como instrumento jurídico-político, a

desapropriação evidencia-se como mais um penalidade para o proprietário de imóvel em

desacordo com as normas previstas no Plano Diretor. Buscou-se referir que a

desapropriação, prevista na política urbana, é efetuada mediante pagamento em títulos da

dívida pública, o que a caracteriza como uma sanção, devido ao critério definido para fins

de pagamento. Por ser mais um instrumento destinado a garantir o cumprimento da função

136

socioambiental da propriedade urbana, a desapropriação caracteriza-se, também, como

instrumento capaz de promover a reforma urbana.

A utilização desses instrumentos de indução ao desenvolvimento urbano,

defendidos nesse trabalho, afiguraram-se como apenas alguns dos mecanismos aptos ao

desiderato. Sem dúvida, tais instrumentos, por si só, não garantem a efetivação da função

socioambiental, eis que fatores políticos, econômicos e principalmente sociais influenciam

diretamente no tema. Nessa perspectiva, o Estatuto da Cidade assegurou meios para buscar

a implementação de políticas públicas, dentre eles, a participação popular como fator

indispensável para a validade das propostas da lei do meio ambiente artificial.

Um dos grandes avanços da legislação foi, sem dúvida, a incorporação da

participação dos cidadãos nas decisões de interesse público, através da gestão democrática,

por meio de audiências públicas e dos conselhos municipais, entre outros. A lei privilegiou

o poder local, entendendo ser o ente municipal o mais próximo, capaz de satisfazer as

necessidades dos munícipes. Com base no artigo 225 da Constituição Federal de 1988,

estabeleceu-se uma responsabilidade compartilhada na gestão urbano-ambiental, aliando-se

poder público municipal e participação popular. A sociedade é a maior interessada na

solução dos problemas urbanos e é também a que melhor conhece a dimensão desses

problemas. Na proposta do Estatuto da Cidade, a gestão democrática representa uma nova

forma de interação da comunidade, não-restrita a apenas eleger seus representantes, mas a

assegurar, na medida do possível, a conjunção de democracia representativa e participativa

na busca da materialização das funções socioambientais das cidades e das propriedades.

Assim, as audiências públicas e os conselhos municipais, como instrumentos da gestão

democrática, representam canais institucionais de participação da sociedade, criados na

esfera pública local, capazes de despertar nos cidadãos o sentimento de pertencimento e de

responsabilidade na gestão do seu ambiente de vida. Por isso, também considerados

mecanismos de inclusão social, imprescindíveis à efetivação da função socioambiental da

propriedade urbana.

Diante do exposto, conclui-se que a resposta acerca da possibilidade de efetivação

da função socioambiental da propriedade urbana e do implemento de uma gestão urbano-

ambiental sustentável não se relaciona apenas aos instrumentos de indução do

desenvolvimento urbano (parcelamento, utilização ou edificação compulsórios, IPTU

137

Progressivo no Tempo e desapropriação), tampouco somente à gestão compartilhada

exposta na lei do meio ambiente artificial. Complementando a aplicação dos instrumentos

da política urbana, encontram-se os conselhos municipais e as audiências públicas como

ferramentas importantes para a efetivação da função socioambiental da propriedade urbana

e para a conscientização de que todos fazem parte do meio ambiente artificial e são co-

responsáveis pela sua preservação para as presentes e as futuras gerações.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. 356 p. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. 3. ed. Madrid: Centro de estudios políticos y constitucionales, 2002. 607 p. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 9. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 988 p. AQUINO, Tomas de. Suma teológica. Porto Alegre: Sulina, 1980. ARISTÓTELES. Política. Tradução de Mário da Gama Kury. 3. ed. Brasília: UnB, 1997. 317 p. BALLESTEROS, Jésus. Los derechos de las futuras geraciones. In: BALLESTEROS, Jésus (Ed.). Derechos Humanos: concepto, fundamentos, sujetos. Madrid: Tecnos, 1992. 242 p. BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 363 p. BENJAMIN, Antônio Herman. Reflexões sobre a hipertrofia do direito de propriedade na tutela da reserva legal e das áreas de preservação permanente. In: Anais do 2° Congresso Internacional de Direito Ambiental – 5 anos da Eco 92. São Paulo: Imprensa Oficial, 1997. 628 p. BERNARDI, Jorge Luiz. Funções sociais da cidade: conceitos e instrumentos. 2006. Dissertação (Mestrado em Gestão Urbana) – Programa de Pós-Graduação em Gestão Urbana, Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006. 136 p. BERTAN, José Neure. Propriedade privada & função social. Curitiba: Juruá, 2005. 155 p. BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: Paulus, 1990. 1631 p. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 217 p. ______. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant. 4. ed. Brasília: UnB, 1997. 168 p. ______. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de Janeiro: Campus, 2000. 717 p. BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004. 319 p.

139

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. 755 p. BONETTI, Lindomar Wessler. Políticas públicas por dentro. Ijuí: Unijuí, 2006. 96 p. BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos sociais: eficácia e acionabilidade à luz da Constituição de 1988. Curitiba: Juruá, 2005. 336 p. BRANCO, Samuel Murgel. Conflitos conceituais nos estudos sobre meio ambiente. Estudos Avançados, São Paulo, v. 9, nº 23, 1995. ______. Ecologia da cidade. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2003. 64 p. BRASIL. Agenda 21. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007. BRASIL. Declaração do Rio. Disponível em: <http://www.mma.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007. BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 11 de jul. 2001. Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007. BRASIL. Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 de dez. 1979. Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007. BRASIL. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 02 de set. 1981. Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007. BRASIL. Lei 9.785, de 29 de janeiro de 1999. Altera o Decreto-lei 3.365, de 21 de junho de 1941 (desapropriação por utilidade pública) e as leis 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (registros públicos) e 6.766, de 19 de dezembro de 1979 (parcelamento do solo urbano). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 01 de fev. 1999. Disponível em: <www.senado.gov.br>. Acesso em: 11 set. 2007. BRASIL. Ministério das Cidades. CONFEA. Plano Diretor Participativo: guia para elaboração pelos municípios e cidadãos. Brasília: CONFEA, 2005. BRASIL. Ministério das Cidades. Resolução n. 25, de 18 de março de 2005. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2007. BRASIL. Ministério das Cidades. Resolução n. 34, de 01 de julho de 2005. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2007.

140

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em <http://www.stf.gov.br/noticias/imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=199913&tip+UN&param=progressivo>. Acesso em: 22 abr. 2007. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em <http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/IT/frame.asp?classe=RE&processo=234105&origem=IT&cod_classe=437>. Acesso em: 22 abr. 2007. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n.° 668. Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 20 abr. 2007. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002. 344 p. ______. Gestão democrática da cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. 322-341 p. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Cidade: guia para a implementação pelos municípios e cidadãos. 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002. 273 p. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002. 1504 p. CAPOLA, Gina. O meio ambiente artificial. Prática Jurídica, Ano III, n. 28, p. 46-50, jul. 2004. 46-50 p. CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1999. 256 p. ______. Alfabetização ecológica: o desafio para a educação do século 21. In: TRIGUEIRO, André (Coord.). Meio ambiente no século 21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. 20-34 p. CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 4. ed. São Paulo: Contexto, 1999. 98 p. CAVEDON, Fernanda de Salles et al. Função ambiental da propriedade urbana e áreas de preservação permanente: a proteção das águas no ambiente urbano. In: BENJAMIN, Antônio Herman (Org.). Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003. v. 2., p. 181. 173-196 p. ______. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Visualbooks, 2003. 190 p. CHEMERIS, Ivan. A função social da propriedade: o papel do Judiciário diante das invasões de terras. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. 141 p. COIMBRA, José de Ávila Aguiar. O outro lado do meio ambiente. São Paulo: CETESB, 1985. 204 p.

141

COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso Futuro Comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. COMTE, Augusto. Opúsculos de filosofia social. Tradução de Ivan Lins e João Francisco de Souza. São Paulo: Editora Globo, 1972. 233 p. COSMOS. Produção de Carl Sagan. São Paulo: Editora Abril, [S.a]. 1 DVD. COSTA NETO, Nicolau Dino de Castro e. Proteção jurídica do meio ambiente – I Florestas. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. 408 p. COULANGES, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2005. 421 p. CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1973. 425 p. DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição e constituinte. 2. ed. Saraiva: São Paulo, 1984. 89 p. DOWBOR, Ladislau. O que é poder local. São Paulo: Brasiliense, 1999. 85 p. DUGUIT, Leon. Manuel de droit constitutionnel. 2. ed. Paris: Fontemoing, 1911. 469 p. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. 215 p. FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES DE MUNICÍPIOS DO RIO GRANDE DO SUL. Área de Tecnologia da Informação. Re: Plano Diretor [Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <[email protected]> em 16 out. 2007. FELICIO, Bruna da Cunha; FOSCHINI, Regina Célia. A função social e ambiental da propriedade urbana: contribuições do Estatuto da Cidade. In: CONGRESSO DE DIREITO URBANO-AMBIENTAL: 5 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS, 1, 2006, Porto Alegre. Anais. Porto Alegre: CORAG, 2006. 617-625 p. FERNANDES, Edésio. Direito de propriedade e direito à propriedade. Jornal O Tempo, Belo Horizonte, 14 dez. 1996. ______. Do Código Civil de 1916 ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a trajetória do Direito Urbanístico no Brasil. In: MATTOS, Liana Portilho (Org.). Estatuto da Cidade Comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 31-64 p. FERNÁNDEZ – LARGO, Antonio Osuna. Los Derechos Humanos: ámbitos y desarrollo. Salamanca: San Esteban; Madrid: Edibesa, 2002. 339 p. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; FERREIRA, Renata Marques. Direito Ambiental Tributário. São Paulo: Saraiva, 2005. 155 p.

142

FIORILLO, Celso Antônio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental e legislação aplicável. São Paulo: Max Limonad, 1997. 577 p. FRANCO, Augusto de. Pobreza e desenvolvimento local. São Paulo: A e D, 2002. 335 p. FRANCO, Maria de Assunção Ribeiro. Planejamento ambiental para a cidade sustentável. 2. ed. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2001. 296 p. GOHN, Maria da Glória. Os conselhos municipais e a gestão urbana. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004. 57-93 p. GOMES, Orlando. Direitos reais. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. 436 p. GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no Direito Tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 298 p. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. 327 p.

______. Direito Urbano: regiões metropolitanas, solo criado, zoneamento e controle ambiental, projeto de lei de desenvolvimento urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983. 151 p. GRECO, Marco Aurélio. Solidariedade social e tributação. In: GRECO, Marco Aurélio; GODOI, Marciano Seabra de (Coords). Solidariedade social e tributação. São Paulo: Dialética, 2005. 168-189 p. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999. 172 p. GUIMARÃES, Roberto P. A ética da sustentabilidade e a formulação de políticas de desenvolvimento. In: VIANA, Gilney; SILVA, Marina; DINIZ, Nilo (Orgs.). O desafio da sustentabilidade: um debate socioambiental no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. 43-71 p. HERMANY, Ricardo. (Re) Discutindo o espaço local: uma abordagem a partir do direito social de Gurvitch. Santa Cruz do Sul: EDUNISC: IPR, 2007. 399 p. ______; RECK, Janriê Rodrigues; STEIN, Leandro Konzen. A gestão local/compartida do meio ambiente por meio dos conselhos: fundamentação, explicitação e questões pontuais. In: RODRIGUES, Hugo Thamir (Org.). Direito Constitucional e Políticas Públicas. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005. 113-130 p. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 419 p.

143

KLIKSBERG, Bernardo. O desafio da exclusão: para uma gestão social eficiente. São Paulo: Fundap, 1997. 210 p. LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil: aspectos jurídicos e políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul, RS: Edunisc, 1998. 174 p. ______. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 334 p. ______. Estado, Administração Pública e Sociedade: novos paradigmas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 206 p. LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 344 p. ______. Introdução ao conceito jurídico de meio ambiente. In: VARELLA, Marcelo Dias; BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro (Org.). O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1988. 51-70 p. ______; AYALA, Patryck de Araújo. Transdisciplinaridade e a Proteção Jurídico-ambiental em Sociedades de Risco: Direito, Ciência e Participação. In: LEITE, José Rubens Morato; BELLO FILHO, Ney de Barros (Org.). Direito Ambiental Contemporâneo. Barueri, SP: Manole, 2004. 99-125 p. LOCKE, John. Carta acerca da tolerância; Segundo tratado sobre o governo; Ensaio acerca do entendimento humano. Tradução de Anoar Aiex e E. Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 344 p. LOPES, Ana Maria D’Ávila. Democracia hoje: para uma leitura crítica dos direitos fundamentais. Passo Fundo: UPF, 2001. 128 p. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 1094 p. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 277 p. MARTINS, Ives Gandra da Silva; BARRETO, Ayres F. IPTU: por ofensa a Cláusulas Pétreas, a Progressividade prevista na Emenda n.° 29/2000 é inconstitucional. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo, n.° 80, p. 105-126, mai. 2002. 105-126 p. MATTOS, Liana Portilho. A efetividade da função social da propriedade urbana à luz do estatuto da cidade. Rio de Janeiro: Temas & Idéias, 2003. 177 p. ______. Da gestão democrática da cidade. In: MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto da Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 295-332 p.

144

MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. A proteção ambiental diante da necessária formação de uma nova concepção de um estado democraticamente ambiental. In: BENJAMIN, Antonio Herman (Org.). Direito, água e vida. São Paulo: Imprensa Oficial, 2003, v. 2. 197-213 p. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 882 p. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. 918 p. MENDONÇA, Francisco. S.A.U. – Sistema Ambiental Urbano: uma abordagem dos problemas socioambientais da cidade. In: MENDONÇA, Francisco (Org.). Impactos socioambientais urbanos. Curitiba: UFPR, 2004. 185-207 p. MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. 783 p. ______; COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Antropocentrismo x Ecocentrismo na ciência jurídica. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, n. 36, p. 9-41, out.- dez. 2004. 9-41 p. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação Civil Pública e a reparação do dano ao meio ambiente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. 428 p. MONTORO, André Franco. Descentralização e participação: importância do município na democracia. In: FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA - Cepam. O município no século XXI: cenários e perspectivas. Edição especial. São Paulo, 1999. 387 p. MORE, Thomas. A utopia. Tradução de Jeferson Luiz Camargo e Marcelo Brandão Cipolla. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 224 p. MUKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. 191 p. NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. 747 p. NALINI, José Renato. Ética ambiental. 2. ed. Campinas: Millennium Editora, 2003. 376 p. OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000. 205 p. OLIVEIRA, Flávia de Paiva Medeiros de; GUIMARÃES, Flávio Romero. Direito, Meio Ambiente e Cidadania: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Madras, 2004. 141 p. OLIVEIRA, Isabel Cristina Eiras de. Estatuto da Cidade: para compreender. Rio de Janeiro: IBAM/DUMA, 2001. 129 p. ORRUTEA, Rogério Moreira. Da propriedade e a sua função social no direito constitucional moderno. Londrina: UEL, 1998. 346 p.

145

OST, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. 399 p. PASOLD, César Luiz. Função Social do Estado Contemporâneo. 2. ed. Florianópolis: Estudantil, 1988. 104 p. PEREIRA, Luís Portella. A função social da propriedade urbana. Porto Alegre: Síntese, 2003. 271 p. PETTA, Nicolina Luiza de; OJEDA, Eduardo Aparicio Baez. História: uma abordagem integrada. 1. ed. São Paulo: Moderna, 1999. 290 p. PINTO, Victor de Carvalho. Do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. In: MATTOS, Liana Portilho (org.). Estatuto da Cidade comentado: lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 131-140 p. PIPES, Richard. Tradução de Luiz Guilherme B. Chaves e Carlos Humberto Pimentel Duarte da Fonseca. Propriedade e liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001. 387 p. PIVA, Rui Carvalho. Bem ambiental. São Paulo: Max Limonad, 2000. 179 p. PROUDHON, Pierre-Joseph. O que é a propriedade? Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 1988. 246 p. RIBEIRO, Lauro Luiz Gomes. Uma cidade para todos. In: GARCIA, Maria (Coord.). A cidade e seu Estatuto. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005. 165-204 p. RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. O Estatuto da Cidade e a questão urbana brasileira. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003. 11-26 p. ______; CARDOSO, Adauto Lucio. Da cidade à nação: gênese e evolução do urbanismo no Brasil. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; PECHMAN, Robert (Orgs.). Cidade, povo e nação: gênese do urbanismo moderno. São Paulo: Civilização Brasileira, 1996. 447 p. ______; CARDOSO, Adauto Lucio. Plano diretor e gestão democrática da cidade. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lucio. Reforma urbana e gestão democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Revan: FASE, 2003. 103-118 p. RICARDO, Beto; CAMPANILI, Maura (Orgs.). Brasil socioambiental: desenvolvimento, sim: de qualquer jeito, não. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004. 479 p. ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação no Direito Agrário. São Paulo: Atlas, 1992. 289 p. ROSA, Elianne M. Meira. A cidade antiga e a nova cidade. In: GARCIA, Maria (Coord.). A cidade e seu Estatuto. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005. 1-26 p.

146

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 440 p. ______. Do contrato social. Tradução de Lourdes Santos Machado. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. 440 p. SANTIN, Janaína Rigo. O poder local e o meio ambiente urbano: um novo paradigma democrático de gestão a partir do Estatuto da Cidade. In: SCHONARDIE, Elenise Felzke; PILAU SOBRINHO, Liton Lanes (Orgs.). Ambiente, saúde e comunicação. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. 59-72 p. SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; AZEVEDO, Sergio de; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. Democracia e gestão local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. In: SANTOS JUNIOR, Orlando Alves dos; RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de (Orgs.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan: Fase, 2004. 11-56 p. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000. 348 p. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1987. 142 p. ______. Pensando o espaço do homem. 5. ed. São Paulo: Edusp, 2004. 96 p. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 416 p. SAULE JÚNIOR, Nelson. Aplicabilidade do parcelamento ou edificação compulsórios e da desapropriação para fins de reforma urbana. In: MOREIRA, Mariana (Coord.). Estatuto da Cidade. São Paulo: CEPAM, 2001. SCHMIDT, João Pedro. Exclusão, inclusão e capital social. Mimeo, 2006. 1-40 p. SÉGUIN, Elida. Direito ambiental: nossa casa planetária. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 480 p. SENTENÇAS E DECISÕES DE PRIMEIRO GRAU. Porto Alegre: Poder Judiciário e AJURIS, v. 7/8, jun./dez. 2002. 151-159 p. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. 270 p. ______. Direito ambiental constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. 249 p. ______. Direito urbanístico brasileiro. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. 421 p. SILVA, José Antônio Tietzmann e. As perspectivas das cidades sustentáveis: entre a teoria e a prática. In: Revista de Direito Ambiental, São Paulo, v. 1, n. 43, p. 133-176, jul./set. 2006. 133-176 p.

147

SIRKIS, Alfredo. O desafio ecológico das cidades. In: TRIGUEIRO, André (Coord.). Meio ambiente no século 21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. 215-229 p. SOUZA, Luiz Alberto. A função social da propriedade e da cidade: entre a cidade do direito e o direito à cidade. 2005. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. 183 p. SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 556 p. SPÓSITO, Eliseu Savério. A vida nas cidades. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1996. 90 p.

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 919 p. VATICANO. Carta Encíclica: Mater et Magistra. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_xxiii/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_ 15051961_mater_po.html>. Acesso em: 18 mai. 2007. VATICANO. Carta Encíclica: Quadragesimo Anno. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515 _quadragesimo-anno_po.html>. Acesso em: 18 mai. 2007. VATICANO. Carta Encíclica: Rerum Novarum. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_ 15051891_rerum-novarum_po.html>. Acesso em: 18 mai. 2007. VATICANO. Constituição Pastoral Gaudium et Spes: sobre a Igreja no mundo actual. Disponível em: <http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_Const _19651207_gaudium-et-spes_po.html>. Acesso em: 18 mai. 2007. VIOLA, Eduardo J.; LEIS, Hector R. A evolução das políticas ambientais no Brasil, 1971-1991: do bissetorialismo preservacionista para o multissetorialismo orientado para o desenvolvimento sustentável. In: HOGAN, Daniel Joseph; VIEIRA, Paulo Freire (Orgs.). Dilemas socioambientais e desenvolvimento sustentável. 2.ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995. 73-95 p. WARD, Peter. O fim da evolução: extinções em massa e a preservação da biodiversidade. Rio de Janeiro: Campus, 1997. 323 p. WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: Fabris,1990.63p.

ANEXO A – Quadro esquemático de utilização do método hipotético-dedutivo

CONHECIMENTO PRÉVIO TEORIAS EXISTENTES

Art.5° CF/1988 (direito de propriedade x função social da propriedade) = colisão de direitos Surgimento Lei 10.257/2001 – Estatuto da Cidade

(prioridade do atendimento à função social)

LACUNA, CONTRADIÇÃO OU PROBLEMA (P1) Quais instrumentos presentes no Estatuto da Cidade possibilitam a

efetivação da função socioambiental da propriedade urbana?

CONJECTURAS, SOLUÇÕES OU HIPÓTESES (TT)

Efetivação através: 1-Instrumentos e diretrizes gerais do Estatuto da Cidade 2-Plano direito municipal 3-Parcelamento, utilização ou edificação compulsórios 4-IPTU Progressivo no Tempo 5 -Desapropriação 6-Gestão compartilhada: poder público x sociedade 7-Audiências Públicas e Conselhos Municipais

TESTAGEM (EE)

Observação da probabilidade prática de (não) ocorrência/ (in)eficiência das hipóteses.

AVALIAÇÃO DAS CONJECTURAS, SOLUÇÕES OU HIPÓTESES

REFUTAÇÃO

(rejeição)

CORROBORAÇÃO (aceitação/validação)

A função socioambiental da propriedade urbana pode ser efetivada através de tais meios/ instrumentos ...

NOVA TEORIA Teoria da efetivação da função socioambiental da propriedade urbana através de instrumentos de gestão democrática da cidade.

NOVA LACUNA, CONTRADIÇÃO OU PROBLEMA (P 2) Como atingir níveis expressivos de participação popular para

possibilitar a gestão democrática e compartilhada das cidades?