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PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO DA UFMG (ORGANIZADOR) 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

I SEMINÁRIO DO NPGAU “AS TRANSFORMAÇÕES DA CIDADE”  

ANAIS 

 

Belo Horizonte, 7 a 9 de novembro de 2012. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BELO HORIZONTE 

ESCOLA DE ARQUITETURA DA UFMG 

2012 

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  S471t 

 Seminário do NPGAU (1.: 2012: Belo Horizonte) 

As  transformações da cidade  [recurso eletrônico]: anais / 1°. Seminário do NPGAU. Belo Horizonte: EA/UFMG, 2012. 

290 p.: il.  

 

ISBN: 9788598261089 Disponível online: http://www.arq.ufmg.br/pos/ 

 

1.  Planejamento  urbano.  2.  Arquitetura  paisagística.  I. Programa  de  Pós‐graduação  em  Arquitetura  e  Urbanismo.  II. Universidade  Federal  de Minas  Gerais.  Escola  de  Arquitetura.  III. Título. 

 

                                                                 CDD: 711.4 

 

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG) 

Reitor Clélio Campolina Diniz 

Vice‐Reitora Rocksane de Carvalho Norton 

Pró‐Reitor de Pós‐Graduação Ricardo Santiago Gomes 

Pró‐Reitora Adjunta de Pós‐Graduação Andréa Gazzinelli Corrêa de Oliveira 

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (FAPEMIG) 

Presidente Mário Neto Borges 

Diretor de Ciência, Tecnologia e Inovação José Policarpo Gonçalves de Abreu 

SECRETARIA ESTADUAL DE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DE MINAS GERAIS (SEMAD) 

Secretário Adriano Magalhães Chaves 

Presidente da Fundação Estadual de Meio Ambiente (FEAM) Zuleika Stela Chiacchio Torquetti 

FUNDAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA (FUNDEP) 

Presidente Marco Aurélio Crocco Afonso 

Analista de Projetos Raphael Martius Toledo Rosa Cristiane Maria Rossi Torido Natiene Doerl Gonçalves  

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ESCOLA DE ARQUITETURA DA UFMG 

Diretor Frederico de Paula Tofani 

Vice‐diretor Paulo Gustavo Von Krüger 

PROGRAMA DE PÓS‐GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO DA UFMG (NPGAU‐UFMG) 

Coordenadora Fernanda Borges de Moraes 

Sub‐Coordenadora Ana Clara Mourão Moura 

COMISSÃO ORGANIZADORA DO I SEMINÁRIO DO NPGAU 

Docentes Jupira Gomes de Mendonça (Presidente/ Coordenação Geral) Fernanda Borges de Moraes (Vice‐Presidente/Coordenação Científica) 

Discentes Danielle Stuart Fabiana Araújo Felipe Sudré Jeanne Crespo Junia Mortimer Lívia Monteiro Maria Clara M. S. Bois Patrícia Urias 

Colaboradores Carolina H. Coelho‐de‐Souza Luiz Felype Almeida Patrícia Junqueira 

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COMITÊ CIENTÍFICO DO I SEMINÁRIO DO NPGAU 

Núcleo Temático I: Cidade em movimento e movimento na cidade Profa. Dra. Silke Kapp – UFMG/ NPGAU Profa. Dra. Ana Paula Baltazar dos Santos – UFMG/ NPGAU Profa. Dra. Denise Morado Nascimento – UFMG/ NPGAU 

Núcleo Temático II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região Prof. Dr. Roberto Luís de Melo Monte‐Mór – UFMG/ NPGAU – Cedeplar Profa. Dra. Ana Clara Mourão Moura – UFMG/ NPGAU Profa. Dra. Fernanda Borges de Moraes – UFMG/ NPGAU Profa. Dra. Jupira Gomes de Mendonça – UFMG/ NPGAU 

Núcleo Temático III: Memórias e Cidades Prof. Dr. Flávio de Lemos Carsalade – UFMG/ NPGAU Prof. Dr. André Guilherme Dornelles Dangelo – UFMG/ NPGAU Profa. Dra. Celina Borges Lemos – UFMG/ NPGAU 

Núcleo Temático IV: Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva Prof. Dr. Carlos Antônio Leite Brandão – UFMG/ NPGAU Profa. Dra. Carmen Aroztegui Massera – UFMG/ NPGAU Prof. Dr. Marcelo Pinto Guimarães – UFMG/ NPGAU Prof. Dr. Otávio Curtiss Silviano Brandão – UFMG/ NPGAU 

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APRESENTAÇÃO 

O I Seminário do Programa de Pós‐Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFMG ‐ I Seminário do NPGAU ‐ partiu de uma iniciativa dos estudantes pesquisadores deste Programa de Pós‐Graduação e tem por objetivo principal a criação de uma plataforma de encontro e diálogo entre os pesquisadores desta instituição e de outras entidades de ensino e pesquisa. 

O tema desta primeira edição, As Transformações da Cidade, pretende colocar em pauta a produção de conhecimento sobre o meio urbano, bem como levantar direcionamentos e proposições que visem a tornar possível uma cidade menos desigual e mais justa. Conhecer e entender as transformações desse espaço, seus vínculos com o passado, o atendimento às necessidades do presente e a expectativa por um futuro mais inclusivo são alguns dos pontos em torno dos quais se reuniram pesquisadores diversos entre os dias 07 e 09 de Novembro de 2012, na Escola de Arquitetura da UFMG, para o I Seminário do NPGAU. 

Núcleos Temáticos 

O Seminário foi organizado em quatro grandes núcleos com temáticas transversais: Cidade em movimento e movimento na cidade; Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região; Memórias e Cidades; e Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva. 

O Núcleo Temático I, Cidade em movimento e movimentos da cidade, reúne trabalhos relacionados às alterações na organização e estrutura do espaço urbano e ao papel da cidade na história, tendo a dialética socioespacial da vida urbana como eixo orientador. Este Núcleo traz discussões que tratam da produção do espaço em um dado período; o papel dos movimentos sociais, das instituições e do mercado imobiliário na conformação do território; a dicotomia existente entre as premissas contidas nas leis e planos urbanísticos e a rapidez da construção e das transformações da cidade formal e informal; observações a respeito das relações sociais que têm nas cidades palco para seu desenvolvimento e a ela modificam, entre outras ações de desconstrução e reconstrução da malha urbana. 

O Núcleo Temático II, Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região, reúne trabalhos que tratam de experiências derivadas de transformações estruturais no espaço provocadas por: operações urbanas consorciadas; planejamento ou projetos estratégicos; reabilitações de centros ou outros espaços relevantes das cidades ou regiões; implantação de grandes equipamentos polarizadores; e alterações na rede e na estrutura urbana ocorridas para realização dos megaeventos, acontecimentos não periódicos, normalmente de cunho esportivo, que têm conduzido mudanças espaciais e inversões de prioridades planejadas para as cidades que os sediam. Esta temática engloba os conflitos territoriais que vão desde a escala intraurbana até a escala regional. 

O Núcleo Temático III, Memórias e Cidades, aborda a partir de uma perspectiva transdisciplinar questões teóricas, históricas, analíticas e críticas no estudo das produções e reproduções materiais e imateriais dos diversos grupos sociais que vivenciam a cidade. Desta forma, o Núcleo enquadra estudos que problematizam objetos como memória social, memória política, 

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patrimônio cultural, festividades, espacialidades, memórias dos lugares, memórias sobre a cidade, além das relações espaço‐tempo desenvolvidas no território urbano. 

O Núcleo Temático IV, Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva, reúne trabalhos que especulam sobre o futuro das cidades, os possíveis novos rumos em direção a uma sociedade mais inclusiva. Estão aqui incluídos trabalhos com transversalidade de temas como a inclusão social e a sustentabilidade ambiental e econômica com uma visão holística sobre os mesmos, demonstrando como cada pequena parte contribui para a melhoria da sociedade como um todo. 

Em cada Núcleo Temático foram selecionados até cinco trabalhos para publicação nos anais, sendo classificados três para apresentação oral no Seminário. 

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SUMÁRIO 

Programação ......................................................................................................................................................... 10 

NÚCLEO TEMÁTICO I: CIDADE EM MOVIMENTO E MOVIMENTO NA CIDADE 

A produção do espaço não construído: reflexões sobre áreas protegidas de Belo Horizonte e sua periferia sul‐metropolitana ................................................................................................................................................. 13 Ana Carolina P. Euclydes 

O Planejamento Urbano Desejado e o Praticado: O Caso de Viçosa, MG. .................................................... 35 Ítalo I. C. Stephan 

Cidades e Afetos: segregação e alteridade ........................................................................................................ 50 Maria Luísa M. Nogueira 

Direito de propriedade e propriedade sem direito: o caso da ocupação “Dandara” em Belo Horizonte. . 61 Luiz F. G. Almeida 

Urbanização contemporânea e conflitos urbanos em Viçosa, Minas Gerais: a remoção da feira livre da Avenida Santa Rita e o novo ideal de renovação urbana local. ....................................................................... 74 Nayana Corrêa Bonamichi 

NÚCLEO TEMÁTICO II: GRANDES PROJETOS COMO ELEMENTOS TRANSFORMADORES DA CIDADE E REGIÃO 

Operações urbanas consorciadas em Belo Horizonte ‐ novo modelo em construção................................. 91 Lívia de Oliveira Monteiro 

Desnudamentos: instantâneos do alargamento da Avenida Antonio Carlos em Belo Horizonte ............ 114 Luciana Souza Bragança; Larissa Batista L. Tredezini; Frederico Canuto 

El Parque Lineal concebido y su interpretación espacial desde lo vivido ..................................................... 132 Coppelia H. Cuartas; Juan J. C. Calle 

Jeceaba, uma cidade na encruzilhada.............................................................................................................. 155 Reginaldo Luiz Cardoso 

Grandes reformas urbanas e seu impacto no direito à cidade ..................................................................... 169 Vyrna Jacomo de A. Nunes 

 

 

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NÚCLEO TEMÁTICO III: MEMÓRIAS E CIDADES 

Transportes e transformações no Rio de Janeiro de Machado de Assis ...................................................... 182 Cinthia Tragante 

Suportes de memória da Comarca do Rio das Mortes: a encruzilhada de rotas e caminhos luso‐brasileiros ............................................................................................................................................................ 195 Marília Fátima Dutra de Ávila Carvalho; Fernanda Borges de Moraes 

Patrimônio + Educação: derrubando barreiras e construindo novas pontes .............................................. 206 Paula Gomes Cury 

Patrimônio em ruínas: desafios para preservação ......................................................................................... 220 Maria da Graça Andrade Dias 

Modernidade e tradição: A dialética na dinâmica urbana das cidades de pequeno porte ....................... 230 Tamyres Virgínia L. Silveira; Josélia Godoy Portugal 

NÚCLEO TEMÁTICO IV: NOVO PERFIL DE CIDADE E NOVOS RUMOS EM DIREÇÃO A UMA SOCIEDADE INCLUSIVA 

O uso das tecnologias digitais no espaço: as telas urbanas ........................................................................... 240 Lorena Melgaço  

Quando Rousseau visitou Alphaville: status, desigualdade e uma certa ideia de comunidade ................ 256 Lucas Veloso de Menezes 

O cooperativismo na construção civil: uma outra cultura produtiva com sentido social .......................... 273 Cristiano Gurgel Bickel 

 

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Programação 

07/11/2012 ‐ QUARTA‐FEIRA 

Noite – 19h00 

Palestra de Abertura ‐ Ícones arquitetônicos e espaços públicos na cidade contemporânea 

Roberto Segre – UFRJ/ PROURB  

08/11/2012 ‐ QUINTA‐FEIRA 

Manhã – 10h00 às 12h30 

Núcleo Temático II ‐ Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região 

Palestrante: Mariana Fix – Unicamp/ Instituto de Economia 

Mesa Redonda 

Mediadora: Jupira Gomes Mendonça ‐ UFMG/NPGAU 

Trabalhos apresentados: 

Operações urbanas consorciadas em Belo Horizonte ‐ Novo modelo em construção Lívia de Oliveira Monteiro – UFMG/ NPGAU 

Desnudamentos: Instantâneos do alargamento da Avenida Antonio Carlos em Belo Horizonte Luciana Souza Bragança ‐ I.M. Izabela Hendrix Larissa Batista L. Tredezini ‐ I.M. Izabela Hendrix Frederico Canuto ‐ I.M. Izabela Hendrix 

El Parque Lineal concebido y su interpretación espacial desde lo vivido Coppelia H.Cuartas ‐ Escuela de Arquitectura y Diseño de la Universidad Pontificia Bolivariana Juan J. C. Calle ‐ Escuela de Arquitectura y Diseño de la Universidad Pontificia Bolivariana 

Tarde ‐ 14h30 às 18h00 

Núcleo Temático I ‐ Cidade em movimento e movimento na cidade 

Palestrante: Cristóvão Fernandes Duarte ‐ UFRJ/ PROURB 

Mesa Redonda 

Mediadora: Silke Kapp ‐ UFMG/ NPGAU 

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Trabalhos apresentados: 

A produção do espaço não construído: Reflexões sobre áreas protegidas de Belo Horizonte e sua periferia sul‐metropolitana Ana Carolina P. Euclydes – UFMG/NPGAU 

O Planejamento urbano desejado e o praticado: O caso de Viçosa, MG Ítalo I. C. Stephan – UFV/ Departamento de Arquitetura e Urbanismo 

Cidades e afetos: Segregação e alteridade Maria Luísa M. Nogueira – UFMG/ Departamento de Psicologia 

09/11/2012 ‐ SEXTA‐FEIRA 

Manhã – 09h00 às 12h30 

Núcleo Temático III ‐ Memórias e Cidades 

Palestrante: Mário de Souza Chagas – UNIRIO/ Programa de Pós‐Graduação em Memória Social 

Mesa Redonda 

Mediador: Flávio de Lemos Carsalade ‐ UFMG/NPGAU 

Trabalhos apresentados: 

Transportes e transformações no Rio de Janeiro de Machado de Assis Cinthia Tragante – USP/ IAU 

Suportes de memória da Comarca do Rio das Mortes: A encruzilhada de rotas e caminhos luso‐brasileiros Marília Ávila Carvalho – UFMG/ NPGAU Fernanda Borges de Moraes – UFMG/ NPGAU 

Patrimônio + Educação: Derrubando barreiras e construindo novas pontes Paula Gomes Cury ‐ UFMG/ NPGAU 

Tarde – 14h30 às 18h00 

Núcleo IV ‐ Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva 

Palestrante: João Antônio de Paula ‐ UFMG/ Cedeplar 

Mesa Redonda 

Mediador: Carlos Antônio Leite Brandão ‐ UFMG/ NPGAU 

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12 

Trabalhos apresentados: 

O uso das tecnologias digitais no espaço: As telas urbanas Lorena Melgaço ‐ UFMG/ NPGAU 

Quando Rousseau visitou Alphaville: Status, desigualdade e uma certa ideia de comunidade Lucas Veloso de Menezes ‐ UFMG/ NPGAU 

O cooperativismo na construção civil: Uma outra cultura produtiva com sentido social Cristiano Gurgel Bickel ‐ UFMG/ NPGAU 

Noite – 19h00 

Palestra de Encerramento 

Maria Lúcia Malard ‐ UFMG/ NPGAU  

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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade 

A produção do espaço não construído: reflexões sobre áreas protegidas de Belo Horizonte e sua periferia sul‐metropolitana  

The production of unconstructed space: thoughts on the protected areas in Belo Horizonte's southern suburbs. 

Ana Carolina P. EUCLYDES Mestre em Geografia/UFMG; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Consultora de meio ambiente e desenvolvimento sustentável da Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. [email protected] 

RESUMO Com Henri  Lefebvre  (1991),  pode‐se  afirmar que, na  sociedade  capitalista,  tanto  a  construção  civil como a restrição à construção – ou a quaisquer outros usos – são faces da produção do espaço. Nessa perspectiva, a reflexão sobre os espaços intencionalmente não construídos, como os parques e outras áreas  protegidas,  pode  ser  considerada  um  prisma  pertinente  para  a  apreensão  de  regras, conhecimentos,  ideologias  e  simbolismos  que  pautam  o  processo  de  produção  do  espaço.  Neste artigo, combinando a história da  instituição de áreas naturais protegidas com a história da expansão da  capital  mineira  na  direção  sul,  ressalta‐se  a  relevância  do  estudo  das  áreas  verdes  e  áreas protegidas para a compreensão das dinâmicas históricas e contemporâneas da produção do espaço na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Com essa reflexão, verifica‐se que essas áreas, registros de determinados  tempo  e  espaço,  compõem  o  palimpsesto  da  construção  do  espaço  urbano, expressando diferentes representações de natureza e distintos projetos de cidade.  PALAVRAS‐CHAVE: parque, região metropolitana, produção do espaço, áreas protegidas, Belo Horizonte 

ABSTRACT Lefebvre's  (1991) work  suggests  that,  in  capitalist  society, both  the  construction and  the  restriction  to construction – or to any other uses – are aspects of space production. From that point of view, the study of the spaces that are intentionally not built, such as parks and other protected areas, can be considered an appropriate perspective  to perceive  the  rules,  the  knowledge,  the  ideologies and  the  symbols  that steer space production processes.  In this paper, compounding the history of the  institution of protected areas with the history of the expansion of state capital towards south, we highlight the relevance of the study on  green  areas  and  protected  areas  for  the  comprehension of  the  historical  and  contemporary dynamics of space production in Belo Horizonte's metropolitan region. With such contributions, we attest that these areas refer to determined space and time conditions  inhering the palimpsest of urban space construction, expressing different representations of nature and distinct city projects. KEYWORDS: parks, metropolitan region, space production, protected areas, Belo Horizonte. 

1 A PRODUÇÃO DO ESPAÇO NÃO CONSTRUÍDO 

O espaço não é um objeto científico descartado pela ideologia ou pela política; ele sempre foi político e estratégico. Se o espaço tem um aspecto neutro, indiferente em relação ao conteúdo, (…) é precisamente porque ele já está ocupado, ordenado, já foi objeto de estratégias antigas, das quais nem sempre se encontram vestígios. O espaço foi formado, modelado a partir de elementos históricos ou naturais, mas politicamente (LEFEBVRE, 2008, p. 61). 

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A crítica proposta por Henri Lefebvre na década de 1960 – direcionada aos estudiosos que tomavam o espaço como algo puro, neutro, não‐político, e consideravam que o urbanismo, enquanto uma prática científica e técnica, poderia constituir uma ciência cartesiana – é hoje amplamente aceita no âmbito da teoria social crítica. Em nossos dias, compreendemos, sem maiores dificuldades, que espaços como uma zona de expansão urbana ou um cinturão agrícola são produzidos a partir de combinações de necessidades e vantagens locacionais, mas também em razão de outros fatores, como as decisões políticas, pertinentes a espaços/tempos específicos. 

Porém, muitas vezes, quando consideramos áreas não construídas, constituídas de campos, florestas ou mesmo parques, a mesma lógica parece incerta, já que esses espaços não aparentam terem sido incorporados à dinâmica produtiva, seja na forma de matérias‐primas ou de espaço ocupado. Talvez por isso sejam comuns as referências a essas áreas como “espaços livres” ou “espaços vazios”, como se observa em discursos acadêmicos e comerciais, a exemplo de Miranda Magnoli (1982) e Caparaó e Patrimar (2011).  

Mas a produção do espaço se limita à construção (civil) do espaço? 

Com Lefebvre (1991), pode‐se afirmar que não. Para o filósofo, a produção do espaço se dá por meio das relações dialéticas que a sociedade estabelece com seus espaços percebidos, vividos e concebidos. Em breves termos, enquanto o espaço percebido compreende a leitura do mundo exterior a partir do uso do corpo, por meio da qual cada pessoa identifica sua localização particular e os conjuntos espaciais característicos de sua comunidade, o espaço vivido consiste no espaço dos usuários, que atribuem ao espaço físico imaginário e simbolismos, relacionando‐se com a experiência cultural do meio. Já o espaço concebido é o espaço dominante, a abstração por meio da qual cientistas, planejadores e tomadores de decisões mobilizam conhecimentos, ideologias e códigos para construir elaborações teóricas sobre as práticas espaciais, e a partir delas, organizar o espaço no sentido produtivo. Assim, se a construção física do meio constitui uma face do processo de produção do espaço, também o fazem os afetos, as culturas, os conhecimentos e as ideologias que concorrem para sua organização.  

Nessa perspectiva, também os espaços não construídos compreendidos pelas áreas verdes ou definidos como áreas protegidas1 seriam facetas de um processo de produção do espaço mais amplo, que demanda a reserva de “áreas naturais” com determinadas motivações. Tendo isso em conta, cabe buscar compreender as origens e a história dessas áreas, e, com isso, sua relação com a produção do espaço da/na região.  

Foi esse o intuito da dissertação intitulada “Proteção da natureza e produção da natureza: política, ideologias e diversidade na criação de unidades de conservação na periferia sul da metrópole belo‐horizontina” (EUCLYDES, 2012), apresentada ao Programa de Pós‐Graduação em Geografia da UFMG. Nesse trabalho, as quase 30 áreas protegidas no/do Eixo Sul2 da Região Metropolitana de Belo Horizonte – RMBH –, foram objeto de um estudo que contou com revisão bibliográfica, entrevistas a agentes públicos e pessoas envolvidas em associações ambientalistas, além de interpretação de mapas e de discursos proferidos em reuniões públicas pelos principais agentes relacionados à produção do espaço na região.  

Dessa dissertação se origina o presente artigo, que pretende refletir sobre a relevância da reflexão das áreas protegidas para a compreensão da produção do espaço, a partir de exemplos 

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das áreas verdes e áreas protegidas de Belo Horizonte e de sua extensão sul. Para tanto, o trabalho se compõe de mais seis seções: origens, em que se apresenta a raiz comum do planejamento urbano e da instituição de áreas protegidas; áreas verdes/áreas protegidas de Belo Horizonte, que remonta a geohistória da capital a partir de cinco áreas protegidas e um projeto de parque; considerações finais, em que a metáfora do palimpsesto, recorrente em estudos do urbanismo, é aplicada às áreas protegidas, salientando a imbricação dos dois temas; referências; e notas. 

2 ORIGENS: CIDADES INDUSTRIAIS, URBANISMO E ÁREAS VERDES/PROTEGIDAS 

“Esta audiência poderia ter sido realizada lá, na Serra da Moeda, que tem lugares maravilhosos. Vocês poderiam ver de perto o natural próximo a Belo Horizonte”. 

A fala do vice‐presidente da ONG Associação de Meio Ambiente de Moeda, proferida em numa audiência pública promovida pela Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais – ALMG –, para debater os usos do solo na Serra da Moeda, em 18/11/2008, sistematiza a representação do espaço urbano como o espaço artificial, do qual a natureza foi completamente excluída/ destruída , onde não mais haveria processos ecológicos.  

Trata‐se de uma representação recorrente, que figura também com frequência em material publicitário de empreendimentos imobiliários situados no Eixo Sul destinados a classes de média e alta renda da zona sul de Belo Horizonte, como no caso do Loteamento Gran Royalle Casa Branca, que anuncia que “a natureza nunca esteve tão perto de você”. 

Embora essa oposição cidade x natureza – variação da oposição homem x natureza, em que a sociedade (Sujeito) é vista como o agente externo de destruição do meio (objeto) – possa parecer contemporânea, ela remete às transformações socioespaciais vivenciadas na Inglaterra a partir do século XVII. 

Segundo Keith Thomas (1988 apud DIEGUES, 1996; CAMARGOS, 2006), as atitudes cada vez mais afetuosas dos ingleses com os animais, as plantas e os espaços abertos e silvestres estiveram relacionadas ao intenso processo de urbanização associado à Revolução Industrial, que promovera sensíveis alterações no uso e na ocupação do solo, escassez de recursos naturais e modificações no padrão de consumo3. Como que em repúdio a essas transformações, na medida em que as fábricas se dispersavam pelo país e as cidades cresciam em número e em densidade populacional, instensificava‐se a afinidade da sociedade com o meio rural, o que se traduzia na criação de jardins e na busca por casas de campo – sobretudo pelas classes sociais não diretamente envolvidas na produção agrícola, como a aristocracia e as classes médias burguesas (THOMAS apud CAMARGOS, 2006, p. 11). 

Contribuíram também para a valorização do mundo selvagem o avanço da História Natural e a divulgação dos relatos dos “viajantes pitorescos”, em especial daqueles que buscavam a singularidade das praias isoladas, dos costões e das ilhas. Esses dois fatores – a admiração pelo ambiente natural exótico e a negação da cidade – se refletiram na literatura romântica do século XIX, que aproximava “o que restava” de natureza selvagem na Europa do imaginário do paraíso perdido, do refúgio, da inocência, da beleza e do sublime, exercendo grande influência sobre as elites norte‐americanas, que, mais tarde, se valeriam da constituição de grandes parques como estratégia para a construção da identidade da nova nação (DIEGUES, 1996b, CAMARGOS, 2006). 

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Ao mesmo tempo, nos núcleos transformados pela indústria inglesa, o repúdio a questões como a falta de infraestrutura geral, as condições sanitárias precárias, a altíssima densidade populacional dos bairros operários e o arruamento inapto a comportar o trânsito que vinha se constituindo forneceu elementos à construção do urbanismo moderno (BERMAN, 1989, p.147). Este primava pela ordem e pela hierarquia, pela eficiência da circulação e pelo higienismo, contribuindo para a disseminação dos novos conceitos de cidade e natureza resultantes relacionados ao modo de vida urbano‐industrial (BARROS, 2005).  

Desse modo, a concepção social de natureza se transformava: tanto ela se afastava progressivamente do homem, na medida em que passava a ser vista como “recurso” para as fábricas e como o “selvagem“ contraposto à civilização, como se enobrecia e se aproximava da sociedade, na medida em que se acentuavam seus sentidos de “refúgio” e de “saúde”, com a delimitação de áreas “verdes” destinadas ao descanso dos cidadãos urbanos e à purificação dos ares da cidade (DIEGUES, 1996; BARROS, 2005). 

Foi esse o contexto histórico do planejamento e da construção de Belo Horizonte, a capital mineira concebida para representar os novos tempos republicanos, no final do século XIX. Seu projeto, marcado pelas linhas retas, pelas grandes avenidas diagonais e pelos limites impostos por seu anel de contorno, tinha no Parque Municipal, nas praças e nos jardins encaixados em seu traçado os símbolos da natureza domesticada, e, ao mesmo tempo, os “pulmões da cidade”, pensados para facilitar a circulação e purificação do ar, de modo a controlar os males endêmicos da observados nas cidades industriais europeias (BARROS, 2005). 

3 ÁREAS VERDES/ PROTEGIDAS DE BELO HORIZONTE (E SUA REGIÃO METROPOLITANA) 

3.1 Parque Municipal 

Será este Parque o mais importante e grandioso de quantos há na América, e, por si só, merecerá a visita de nacionais e estrangeiros e elevará a nova cidade acima de quantas ora attrahem no Brazil (Relatório da Comissão Construtora da Nova Capital apud CVRD, 1992, s/p.)  

Projetado para ser um parque inglês4, uma ilha de romantismo e sinuosidade em meio à geometria retilínea da cidade planejada, o Parque Municipal registra a história de Belo Horizonte desde a sua construção.  

Como ocorreu com todo o arraial do Curral d´El Rey, feito tábula rasa para receber a capital símbolo da nova época, os terrenos que compuseram o parque constituíam a Chácara Guilherme Vaz de Mello, conhecida como Chácara do Sapo, que foi desapropriada e posta abaixo para recebê‐lo. Seu projeto foi elaborado pelo arquiteto‐paisagista francês Paul Villon, e previa, em meio aos jardins, equipamentos como um cassino, um restaurante, um observatório meteorológico, uma ponte artística, lagos e gramados.  

O parque foi inaugurado três meses antes que a cidade, mas, mesmo antes disso, já sediava os mais importantes eventos relacionados à construção da capital. Além de ter sido residência do engenheiro‐chefe da Comissão Construtora da Nova Capital, Aarão Reis, em seus terrenos foram realizadas as cerimônias de inauguração do ramal férreo, que cumpriu relevante papel no transporte dos materiais para a construção da cidade, em 1895, e o banquete oferecido pela Comissão Construtora na noite da inauguração da cidade (CVRD, 1992).  

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Inicialmente, o parque tinha como limites as importantes avenidas Mantiqueira (atual Alfredo Balena), Araguaia (atual Francisco Sales) e Tocantins (atual Assis Chateaubriand), abrindo‐se para o eixo monumental da cidade, a Afonso Pena. Situava‐se, portanto, na zona reservada aos funcionários da burocracia estatal, aos representantes do poder e à elite local da nova capital, devendo servir de palco a suas atividades de lazer.  

Já nas primeiras décadas do século XX, assumiu‐se a impossibilidade de se levar adiante o projeto completo de Villon, e, entre as décadas de 1910 e 1930, iniciou‐se a cessão de áreas para outros equipamentos públicos, o que, ao longo do século, levou à expressiva redução dos limites do parque, de 55ha aos atuais 8ha. Nesse período, foi desligada definitivamente a porção a norte do Ribeirão Arrudas, bem como entregue ao estado a porção a sudoeste do córrego Acaba‐Mundo que se abria para a atual Avenida Alfredo Balena, principiando a configuração de uma área hospitalar a sudoeste do parque. Remontam também a esse período a instalação de uma quadra de tênis, uma pista de patinação e um pequeno zoológico no interior do parque (GÓIS, 2003; GUIMARÃES, 2005).  

Na década de 1930 foi implantada a Cidade Industrial, na cidade de Betim – fora do centro urbano de Belo Horizonte, conforme os preceitos do urbanismo moderno –, constituindo o movimento de produção de um espaço de produção da cidade, impulsionado pelo estado (COSTA, 1994). O desenvolvimento do setor industrial, em especial após a 1ª Guerra, fortaleceu o papel da capital como o centro político‐econômico de Minas Gerais. Essas transformações se refletiram na intensa expansão urbana, principalmente nos subúrbios, não apenas com direção à Cidade Industrial e a seus bairros operários, como também na forma de novas áreas residenciais e de lazer para as elites (MONTE‐MÓR, 1994a).  

A partir da década de 1950, com o impulso à industrialização substitutiva conferido pela criação das Centrais Hidrelétricas de Minas Gerais – Cemig – e pelo significativo investimento em rodovias – debelando as principais deficiências que continham o desenvolvimento industrial mineiro –, a cidade foi transformada de várias formas, desde a expansão urbana de bairros afastados e cidades‐satélite até o embelezamento do centro da capital e de suas periferias imediatas (Ibid.).  

No Parque Municipal, as transformações iniciadas nessa década se refletiram em dois aspectos principais. Primeiramente, em decorrência da intensificação das ligações regionais, do deslocamento do lazer das elites para a Pampulha, do estímulo aos transportes de massa e da apropriação da região central da capital pela população de baixa renda, o público do parque foi significativamente diversificado, popularizando‐se (GOIS, 2003). Além disso, a área recebeu importantes obras de reestruturação, promovidas pela administração do Prefeito Américo Renné Gianetti – motivo pelo qual, mais tarde, o parque viria a receber seu nome.  

A reestruturação contou com os estudos do paisagista Burle Marx, que concluiu que o parque se encontrava ofuscado por edificações públicas que não condiziam com ele e lhe tiravam a beleza. As sugestões do paisagista foram apenas parcialmente pela prefeitura, resultando em benfeitorias pontuais e no tratamento das águas que drenavam área. Contudo, não se interrompeu a cessão de áreas e a construção de prédios públicos, sendo então implantadas a Escola Técnica de Comércio Municipal e a polêmica Concha Acústica5 (CVRD, 1992). 

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Em, 1975, expressando a reação pública diante da descaracterização da área, o conjunto paisagístico e arquitetônico do Parque Municipal foi tombado pelo Instituto de Preservação do Patrimônio do Estado – hoje IEPHA‐MG. A iniciativa, contudo, não motivou ações para reverter a má conservação da área, que só ao final da década de 1980 viria a receber novos investimentos. 

3.2 Tombamento da Serra do Curral 

A Serra do Curral é o marco geográfico mais representativo da região metropolitana de Belo Horizonte, com expressivo significado simbólico, evidenciando múltiplos conjuntos paisagísticos, registros geológicos de milhões de anos e uma vegetação que comunga com o clima e a ambiência da região. (...) O tombamento inclui o conjunto paisagístico do pico [de Belo Horizonte] da parte mais alcantilada, ou seja, a parte mais nobre da serra, resguardando apenas um trecho desta (SPHAN, 1960, p. 8 apud BATISTA, 2004, p. 102). 

Como se observa, o tombamento do Parque Municipal não foi o primeiro instrumento dessa natureza aplicado – e ignorado – ao patrimônio cultural e paisagístico da capital. Já na década de 1960, o tombamento da Serra do Curral, limite sul entre Belo Horizonte e Nova Lima, instituído pelo Sistema de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan –, no ano de 1960, vinha sendo negligenciado.  

Exemplo dessa negligência foi a participação da própria prefeitura da capital numa sociedade de economia mista criada para explorar o minério de ferro na serra. Tratou‐se da Ferro Belo Horizonte S.A. – Ferrobel –, que atuou nas regiões do Barreiro, do Cercadinho e do Bairro Mangabeiras6, sob a justificativa de gerar as divisas necessárias à realização de obras de urbanização na cidade, então em franco processo de expansão (BATISTA, 2004). 

A expansão a que se referia a prefeitura, observada a partir do final da década de 1960, estava relacionada ao expressivo crescimento da população metropolitana e ao surto industrial que culminou com a instalação da Fiat Automóveis na Cidade Industrial, manifestando‐se no aprofundamento da segregação espacial da região. Nesse período, enquanto as periferias se expandiam por meio, principalmente, de loteamentos populares e de recreio – do tipo condomínio –, os espaços centrais e mais bem estruturados passaram por um processo de elitização (COSTA, 1994).  

Roberto Monte‐Mór (1994a) associa esse momento ao coroamento da metrópole fordista belo‐horizontina: enquanto o centro histórico se fechava sobre si mesmo, excluindo a população trabalhadora do espaço do poder, o tecido urbano explodia para além das cidades, estendendo a forma urbano‐industrial dominante pelos subúrbios, por meio de espaços industriais, serviços, condomínios, conjuntos habitacionais, favelas, loteamentos, linhas de ônibus e serviços de eletricidade. Oficialmente, a Região Metropolitana foi instituída em 1973, por meio de lei complementar federal, abrangendo 14 municípios. 

Assim, ocupado em acompanhar a expansão urbana, o poder público ignorou o tombamento da Serra do Curral também ao criar a Companhia Urbanizadora da Serra do Curral – Ciurbe –, e, mais tarde, a Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado – Codeurb –, que conduziram a ocupação da zona sul da capital. Seus projetos não foram submetidos à análise do Sphan, que só se manifestaria novamente sobre a áreas em meados dos anos 1970, propondo medidas para mitigar os impactos sobre a área tombada e retificando os termos do tombamento, por meio da definição de seis marcos instalados em pontos da serra7 (BATISTA, 2004). 

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Os novos bairros ao sul da capital se caracterizavam pela combinação de zonas residenciais nobres e favelas adjacentes, reproduzindo um modelo comum às cidades pré‐industriais brasileiras (MONTE‐MÓR, 1994a). Na direção da Serra do Curral, o Bairro Serra já convivia com o Morro do Cafezal, como viria a ocorrer com o novo Bairro Mangabeiras. 

Para além das fronteiras municipais, as características de elitização e segregação características da zona sul de Belo Horizonte se estendiam a municípios como Nova Lima e Brumadinho, que se constituíam como local preferencial para a instalação dos condomínios em função das belas paisagens e da manutenção da baixa densidade da ocupação – relacionada a restrições como a pronunciada concentração fundiária por parte das mineradoras, as limitadas alternativas de acesso viário e alguns condicionantes ambientais, como o relevo acidentado das serras e as áreas de matas (COSTA, 2006). 

3.3 Parque das Mangabeiras 

Art. 1º ‐ Fica o Executivo autorizado a realizar as obras necessárias à implantação do Parque das Mangabeiras, em terrenos de propriedade do Município, situados na Serra do Curral. 

(...) 

Art. 2º ‐ Fica o Prefeito autorizado a urbanizar e lotear uma área de terrenos, com aproximadamente 397.000,00 m2 (trezentos e noventa e sete mil metros quadrados) de propriedade do Município, situada entre o "Bairro das Mangabeiras” e gleba destinada à implantação do "Parque das Mangabeiras". (Lei Municipal nº 2.403, de 30 de dezembro de 1974) 

Em meados da década de 1970, como parte da referida estratégia de expansão do tecido urbano belo‐horizontino no sentido sul, a prefeitura da capital empreendeu um grande projeto de urbanização na Serra do Curral, combinando a instalação do Parque das Mangabeiras – criado por um decreto‐lei em 1969, mas não implantado até então – com o loteamento dos terrenos públicos em suas imediações. Assim, os loteamentos, voltados para camadas de alta renda da sociedade belo‐horizontina, se valeriam da infraestrutura de acesso ao parque e, ao mesmo tempo, custeariam as obras e equipamentos necessários à implantação da reserva (BATISTA, 2004). 

A Figura 1 situa o Parque das Mangabeiras com relação ao Parque Municipal e ao Tombamento da Serra do Curral, sobre uma imagem de satélite atual. 

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Figura 1: Parque Municipal, Tombamento da Serra do Curral e Parque das Mangabeiras 

 

Diferentemente do Parque Municipal, a concepção de parque que orientou a criação do das Mangabeiras, em 1969, estava relacionada à preservação de atributos excepcionais da natureza, bem como à proteção da fauna e da flora, e à utilização com fins educacionais, científicos e recreativos, conforme consolidara o Novo Código Florestal, de 1965, que reviu o Código de 1934. As categorias de áreas protegidas definidas pelo código – parque nacional, reserva biológica e floresta nacional –, expressaram a concentrada tutela dos recursos naturais pelo Estado, que selecionava as áreas a serem protegidas e as desapropriava, além de funcionarem como resposta/contenção aos/dos ânimos dos naturalistas, que viriam a constituir o movimento ecologista no país (GONÇALVES, 2006). 

Porém, no caso do Parque das Mangabeiras, ao longo da década de 1970, a finalidade de proteção da natureza se tornou secundária à recreativa. Com a criação da Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte – Belotur –, o projeto do parque foi alterado para constituir um grande empreendimento turístico, dotado de equipamentos como: conjunto alpino (teleférico e tobogã), restaurante, pistas de patinação, minifazenda, áreas para quadras e parques infantis (BATISTA, 2004).  

E, embora o discurso oficial fosse de que o parque atenderia a toda população da capital, os custos pertinentes a sua utilização, como o pagamento de ingressos, os custos com alugueis de equipamentos de lazer, além das dificuldades de acesso – a exemplo da localização de sua portaria, no Bairro Mangabeiras –, restringiriam seu uso às elites8. O parque foi inaugurado em 1982, atraindo grande quantidade de pessoas e eventos, embora a maior parte das obras e atividades planejadas não tivesse sido implementada – já que seu projeto previa que melhoramentos seriam financiados com os lucros advindos do próprio parque (Ibid.). 

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Esses melhoramentos, que incluíam a implantação dos grandes equipamentos, nunca se efetivaram, pois, além de se mostrarem superdimensionados, revelaram‐se incompatíveis com as novas posturas de proteção da natureza esperadas do poder público. Isso porque, na década de 1990, já se discutia a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – Snuc9 –, que distinguia as categorias que deveriam primar pela proteção da biodiversidade, com usos rigidamente controlados, como os parques, daquelas onde quais poderia haver uso extensivo das áreas, como as Áreas de Proteção Ambiental – APAs. 

A categoria APA, instituída oficialmente em 1981 a partir da influência dos parques naturais portugueses, teve como principal diferencial a permissão da manutenção da propriedade privada da terra e das atividades econômicas, que deveriam ser pactuadas de modo a assegurar funções ecológicas como a conectividade e o amortecimento. Essas características levaram à escolha da categoria por um conjunto de associações de moradores de condomínios de Nova Lima e Brumadinho, que no final da década de 1980 e início da de 1990, propôs ao poder público a criação de uma unidade de conservação para tentar conter o avanço da mineração na região. 

3.4 APA Sul da RMBH 

“Era uma proposta que (...) ia causar um certo alvoroço, porque pegava toda a área de mineração. (...) E realmente o IBRAM [Instituto Brasileiro de Mineração] achou que aquilo seria um empecilho às atividades mineradoras. Nesse momento, as várias associações de condomínios se uniram para abarcar a proposta que inicialmente era técnica e mais ampla. O processo ficou em debate por aproximadamente dois anos” (Relato de uma técnica da Fundação Estadual de Meio Ambiente – Feam –, referindo‐se ao momento da criação da área protegida)

10. 

Nos anos 1980, fatores como os grandes projetos do Estado desenvolvimentista, a implantação de uma complexa estrutura industrial no país, a recuperação dos preços internacionais do aço, a melhora das condições financeiras das siderúrgicas, a saída de mercado de importantes empresas internacionais, além de eventos que diminuíram a oferta do produto, culminaram num momento muito favorável à indústria do minério de ferro (FERREIRA, 2001). Ao sul da capital, no Quadrilátero Ferrífero, esse momento provocou a notável expansão da mineração, exemplificada a partir da produção da empresa Minerações Brasileiras Reunidas – MBR –, que, entre os anos de 1989 e 1999, cresceu 70% para atender ao mercado interno e 25% para a exportação11 (PINHEIRO, 2000 apud FREITAS, 2004, p. 59).  

Então, enquanto nos bairros situados nos limites entre Belo Horizonte e Nova Lima tinha início o processo de verticalização, ao longo dos vales das Serras do Rola Moça e da Moeda principiava o processo de conversão dos sítios de recreio em residências principais, ocorrendo também um importante aumento na produção de condomínios, em especial os com apelos relacionados ao “contato com a natureza”, à “qualidade de vida” e à fuga da metrópole. Entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, preocupados com o perceptível avanço da mineração – em especial com a ampliação das atividades da MBR no vale do Córrego Mutuca –, esses novos moradores da região começaram a se articular para reivindicar medidas normatizadoras do uso e da ocupação do solo. 

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À época, representantes de nove condomínios e dois clubes da região criaram a Associação para Proteção Ambiental do Vale do Mutuca – ProMutuca –, que participou de fóruns de discussão sobre temas ambientais da região, como o Conselho de Desenvolvimento Ambiental – Codema – de Nova Lima, tendo apresentado representações à Feam com relação a atividades da MBR (FREITAS, 2004). A entidade uniu forças com a Associação de Meio Ambiente de Macacos – AMA Macacos – e com o Conselho Comunitário de São Sebastião das Águas Claras, que tentavam fazer frente às atividades impactantes das mineradoras, tais como o assoreamento e a poluição de cursos d´água.  

Desse conselho partiu a ideia da criação de uma unidade de conservação na região, que foi protocolada junto à Feam em junho de 1991, na forma de requerimento solicitando providências para declarar como APA “a região denominada Vale dos Macacos”. A justificativa do requerimento se baseava nos impactos causados pela extração mineral sobre a flora, os recursos hídricos e o solo, e na necessidade de conter a produção de loteamentos “desconformes com as características da região e agressivos ao patrimônio que a integra” e o “turismo predatório e desordenado” (FEAM, 1992 apud FREITAS, 2004, p. 98‐99).  

Nos estudos realizados pela Feam, concluiu‐se que a área requerida para a APA deveria extrapolar o perímetro proposto pelos moradores de São Sebastião das Águas Claras, protegendo o “cinturão” de vegetação ao sul da RMBH – daí a denominação APA Sul. Em discussões posteriores, o perímetro da UC foi sendo detalhado, com a participação das associações. Esses debates se estenderam por mais de dois anos, ocorrendo grande polêmica sobre a aprovação da UC sem zoneamento ecológico‐econômico – ZEE (FREITAS, 2004).  

A APA Sul foi criada em junho de 1994, sem ZEE previamente aprovado, abrangendo 165.000ha, em 17 municípios da região central do estado. Passados 18 anos de sua criação, a APA ainda não teve seu ZEE aprovado, o que tem se refletido em novos projetos de unidades de conservação para a região (EUCLYDES, 2012). 

Ao longo dessas duas décadas, permanecendo a intensa ação dos agentes imobiliários, o Eixo Sul se consolidou como uma área de valorização acentuada, onde o preço da terra, a escassez de áreas de expansão e a crescente busca pela moradia próxima a “amenidades ambientais” criam pressões sobre o padrão de ocupação existente no sentido da segregação espacial (UFMG/PUCMINAS/UEMG, 2010). 

Tendo em vista essa valorização e a possibilidade de auferimento de rendas diferenciais e de monopólio em negociações imobiliárias envolvendo essas glebas, algumas mineradoras incursionaram no setor, lançando, no final dos anos 1990, dois grandes empreendimentos – com área superior a 2.000.000m2, dimensão superior a toda área parcelada nos 19 loteamentos empreendidos na década de 1960 (COSTA, 2006). Essas iniciativas, que tendem a se tornar mais freqüentes, em decorrência da grande concentração fundiária por parte dessas empresas, têm sido apontadas como “a nova” ou a “terceira safra” do ouro, numa referência ao novo momento de obtenção de lucros por parte dessas empresas a partir dos mesmos terrenos no Quadrilátero Ferrífero. 

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Nesse contexto teve origem o empreendimento imobiliário Vale dos Cristais que, à semelhança do Condomínio Alphaville Lagoa dos Ingleses, lançado em 1998, configurou um novo conceito de loteamentos na RMBH, no qual são ocupadas áreas extensas, com usos variados – residencial, comercial e de serviços – e tipologias arquitetônicas diversas. Nesse caso, a produção do espaço se baseou em discursos de segurança, combinação de trabalho e moradia e proteção ambiental, expressos na ocupação de menores proporções da gleba (COSTA; MENDONÇA, 2009). 

O Vale dos Cristais é resultado de uma articulação entre a mineradora AngloGold, proprietária dos terrenos, e a construtora Odebrecht Engenharia e Construções, responsável pelo projeto arquitetônico‐urbanístico e pela venda das unidades, remunerando a mineradora com um percentual das vendas (FREITAS, 2004). O empreendimento, em implantação desde o início dos anos 2000, se destaca por ter incorporado o discurso ambientalista como elemento estruturador do projeto, que prevê a constituição de uma Reserva Particular do Patrimônio Natural em seu interior.  

3.5 RPPN Vale dos Cristais 

uma proposta “para responder a diferentes demandas e aspectos que dizem respeito ao empreendimento como um todo, com destaque para a questão da sustentabilidade e dos benefícios ambientais, paisagísticos e comerciais gerados pela preservação de uma parcela significativa da propriedade” (Relatório de Impacto Ambiental – Rima – do empreendimento Vale dos Cristais, 2002) 

A década de 1990 foi marcada pela disseminação da máxima do desenvolvimento sustentável12, que permitiu a incorporação do debate ecológico por Estados e empresas e a despolitização do tema, caracterizando o que Martin O´Connor (1993 apud ESCOBAR, 1996) caracterizou como a fase ecológica do capitalismo13. O período coincide com a redemocratização brasileira – e com a elevação da proteção ambiental a obrigação constitucional –, com a transição neoliberal do Estado e com os debates sobre o Snuc no âmbito do Congresso Nacional. Antes da aprovação do sistema, contudo, foi instituída a categoria RPPN, que representou o avanço de permitir e estimular a criação voluntária de áreas protegidas pela sociedade (MEDEIROS, 2006). 

As RPPNs são áreas privadas, gravadas com perpetuidade para fins de conservação da diversidade biológica. No interior das unidades dessa categoria só podem se realizar pesquisas científicas e visitação com objetivos turísticos, recreativos e educacionais, conforme previsão no termo de compromisso e no plano de manejo.  

A instituição de uma RPPN traz alguns benefícios ao proprietário, dentre os quais se destacam a exclusão da unidade de conservação da área tributável do imóvel para fins de cálculo do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR –, a prioridade em programas federais de crédito rural – para RPPNs maiores que 50% da área de reserva legal exigida por lei, com plano de manejo aprovado –, e as restrições à desapropriação para fins de reforma agrária, dado que a proteção ambiental constitui função social da propriedade (BRASIL, 2006). Além disso, as RPPNs têm sido utilizadas como instrumentos de marketing por empresas que buscam se fortalecer no mercado “verde”, expressando “responsabilidade ambiental” em suas atividades. 

A RPPN Vale dos Cristais integra o empreendimento – que, originalmente14, abrangia 587,5ha – composto por conjuntos de condomínios, prédios, lotes, centro empresarial e área de comércio e serviços, projetados para conferir certa autossuficiência ao conjunto, de modo que os moradores pudessem realizar trabalho e consumo no interior do empreendimento. 

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No Rima do Vale dos Cristais, apresentado para fins de obtenção de licença ambiental, a RPPN é apresentada como medida para atender às demandas referentes à “questão da sustentabilidade”, além de proporcionar “benefícios ambientais, paisagísticos e comerciais”. Assim, a “preservação da RPPN e das demais áreas de APP [áreas de preservação permanente, previstas pelo Código Florestal Brasileiro] é a garantia de se gerar um espaço de qualidade, no qual é a convivência entre as áreas loteadas e estas de preservação que constitui o grande diferencial deste projeto” (SETE/ODEBRECHT, 2002, p. 40‐41). 

Além disso, na seção do Rima pertinente à avaliação dos impactos ambientais, a RPPN é proposta como medida de controle e/ou compensação decorrente de dos seguintes impactos ambientais: alteração da paisagem, redução de habitats levando a fuga e/ou perda de indivíduos da fauna dos biótopos capoeira e capoeirinha, perda de indivíduos da flora do bioma capoeira, interrupção do corredor florestal com isolamento de algumas populações de fauna na área do aterro‐dique, caça e coletas predatórias em função do aumento da pressão antrópica, e fuga e/ou perda de indivíduos da fauna em função da maior presença humana na área (Ibid., p. 62‐63). 

Assim, a unidade de conservação é apresentada como atributo diferencial do Vale dos Cristais – que repercutiria em benefícios à paisagem, à natureza e às vendas das unidades –, além de operar antecipando a compensação ambiental dos impactos do empreendimento, que seria definida pelo poder público após a análise dos documentos demandados para a concessão da licença ambiental. 

O empreendimento Vale dos Cristais foi, de certa maneira, pioneiro na incorporação das áreas protegidas como diferenciais imobiliários no Eixo Sul. Desde a divulgação de seu projeto, contudo, esse tipo de estratégia se expandiu sensivelmente. É possível dizer que a RPPN Vale dos Cristais representa o momento atual dos debates internacionais, em que o discurso ambientalista é utilizado por diferentes atores, com propósitos inclusive divergentes. Esse momento é descrito com precisão por Laurent Thévenot e Claudette Lafaye (1993 apud ACSELRAD, 2004, p. 19): “ao contrário de uma causa universal ecológica que se manifestaria através de atores particulares, como sugere com frequência o debate corrente, observa‐se uma busca pela universalização de causas parcelares através de valores [ecológicos] compartilháveis que tornam os atos justificáveis”.   

Nessa perspectiva, a conservação da natureza tem se tornado objetivo secundário de algumas áreas protegidas, que podem ter por finalidade maior a constituição de atributos capazes de agregar valor ao empreendimento imediatamente. Tratar‐se‐ia da produção da natureza, ou, nos termos de Lefebvre (1991), da produção de “substitutos medíocres da natureza” – já que tais UCs constituem fragmentos exíguos de áreas não construídas, representantes simbólicos da natureza destruída para dar lugar aos empreendimentos.  

Esses objetivos diversos, encobertos por discursos ambientalistas e áreas protegidas, têm se disseminado, sendo possível identificar um exemplo recente na proposta de criação do Parque Águas Claras, situado entre Belo Horizonte e Nova Lima. 

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3.6 Proposta de criação do Parque Águas Claras (Parque José Alencar Gomes da Silva)  

“... o objetivo é oferecer um espaço de convívio entre os moradores, garantir mais qualidade de vida e frear o desenvolvimento de Nova Lima naquele local” (Texto extraído de matéria do Jornal Belvedere & Condomínios de Nova Lima). 

Segundo a reportagem de 5 de agosto de 2011, uma proposta da Prefeitura de Belo Horizonte de transformar o ramal ferroviário da mina desativada de Águas Claras (Nova Lima) em rota de Veículo Leve sobre Trilhos – VLT –, ligando o Bairro Belvedere à região do Barreiro, teria desagradado moradores da zona sul da capital. Como reação à proposta, a Associação dos Amigos do Bairro Belvedere – AABB – e a Frente de Associações de Condomínios do Vetor Sul teriam se mobilizado para criar “um espaço de convívio entre os moradores, garantir mais qualidade de vida e frear o desenvolvimento de Nova Lima naquele local”, por meio da criação do “Parque Águas Claras” ou da incorporação da área à Estação Ecológica do Cercadinho (PARQUE ÁGUAS CLARAS..., 2011). 

Para o presidente da AABB, a utilização do ramal com fins de transporte, “com a construção de mais lojas comerciais e mais adensamento para a região preocupa os moradores”, o que poderia ser evitado com a institucionalização da proteção ambiental da área – teoricamente impeditiva aos usos considerados “preocupantes”. Também rejeitando a proposta da prefeitura, o presidente da Frente de Associações de Condomínios do Vetor Sul argumenta que não haveria demanda por transporte de massa entre Belvedere e Barreiro, além do que a implantação do VLT não solucionaria o principal problema do trânsito da região: a ligação entre Nova Lima e a capital. 

Destacam‐se, em falas como essas, o paradoxo das posturas de entidades pleiteiam a criação de uma área de proteção ambiental – que, se imaginaria, relacionada a preocupações ambientais –, ao mesmo tempo em que rejeitam o transporte público em prol do particular, que, além de contribuir para a emissão de poluentes, provoca o trânsito tão questionado.  

Apoiando a demanda dos moradores da zona sul, em agosto de 2011, foi apresentado à ALMG o Projeto de Lei nº 2.290, requerendo a criação do Parque Estadual José Alencar Gomes da Silva, no referido trecho do ramal ferroviário. Conforme o projeto, o parque teria por finalidade a proteção à biodiversidade e a conservação da “paisagem natural, sua fauna e flora, como elementos promotores do ecoturismo e da recreação em contato com a natureza” (MINAS GERAIS, 2011). Contudo, há que se questionar a instituição de um parque estadual, e não uma praça ou parque municipal, em uma área tão limitada, confinada entre loteamentos numa região densamente ocupada do Eixo Sul.  

Observa‐se, no caso desse parque, o deliberado uso das áreas protegidas com fins diversos da proteção ambiental. Mais que isso, nota‐se como a conservação da natureza é utilizada como argumento de medidas que acentuam a segregação socioespacial do Eixo Sul, a exemplo do que verificou Eliano Freitas (2004) com relação à APA Sul. 

 

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: PALIMPSESTO DE REPRESENTAÇÕES DE ÁREAS PROTEGIDAS 

A partir da reflexão sobre esses espaços não‐construídos, ou de uso restrito, verifica‐se que, em nossa sociedade, apesar da forte presença do imaginário que concebe as áreas protegidas como redutos de uma natureza‐original a serem mantidos “intocados” com relação às dinâmicas produtivas de seu entorno, essas áreas vêm se constituindo como “protocolos de intenções” de proteção de paisagens e recursos, instrumentos localizados de planejamento com objetivos de assegurar determinada conformação do espaço urbano15. Assim, os conceitos de áreas protegidas e espaço urbano se reaproximam – como em suas origens inglesas –, revelando a manutenção intencional de certos espaços com aspectos naturais originais como parte integrante do processo de produção do espaço urbano.  

Considerando o momento histórico em que cada uma das áreas citadas foi instituída, e observando, nas figuras apresentadas, a situação dessas áreas no espaço urbano da capital e de sua região metropolitana, verifica‐se que esse conjunto de áreas protegidas vem sendo constituído – por meio de ampliações, supressões, sobreposições e substituições – desde a criação da capital mineira, e, de forma mais pronunciada, ao longo das últimas décadas.  

A Figura 2 situa as áreas protegidas a que se refere a seção 3. Entre outras coisas, ela permite observar a grande desproporção entre a UC e as áreas protegidas criadas até então. 

Figura 2: Conjunto das áreas protegidas a que se refere a Seção 3. 

 

A dinâmica espacial da criação dessas áreas remete à reflexão de Milton Santos (1996) sobre a composição da paisagem: 

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A paisagem não se cria de uma só vez, mas por acréscimos, substituições; a lógica pela qual se fez um objeto no passado era a lógica da produção daquele momento. Uma paisagem é uma escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos que têm idades diferentes, é uma herança de muitos diferentes momentos (SANTOS, 1996, p. 66). 

O autor compara a paisagem a um palimpsesto – um manuscrito cuja grafia foi removida para dar lugar a novo texto, conservando marcas da escrita passada –, explicitando que a leitura dessa paisagem deve considerar as condições políticas, econômicas e culturais da sociedade que a produz(iu). Nessa perspectiva, sopesando as sucessivas medidas que criam, sobrepõem, ignoram e valorizam as áreas protegidas da região, faz‐se pertinente a utilização da metáfora do palimpsesto para pensar esse conjunto de áreas protegidas16, como se propõe a seguir. 

Enquanto a criação e o desenho original do Parque Municipal de Belo Horizonte refletem a intenção das elites políticas mineiras de constituir uma capital própria dos novos tempos republicanos – a “síntese entre Paris e Washington, Haussmann e L´Enfant (LEMOS, 1988 apud MONTE‐MÓR, 1994) –, suas transformações ao longo do século constituem expressões de diferentes momentos da história belo‐horizontina. Nos primeiros anos de vida da nova capital, a área foi sede de importantes eventos e do lazer das elites, e, ao mesmo tempo, fragmentada para receber novos prédios públicos; quando Belo Horizonte fortaleceu suas ligações viárias com as periferias e os municípios vizinhos, seu público foi alterado e benfeitorias foram realizadas; mas, quando a industrialização e o milagre econômico fizeram explodir o espaço urbano, a área se afastou das prioridades do poder público, que voltou suas atenções para a paisagem das periferias.  

O mesmo afastamento das áreas protegidas das prioridades do poder público se expressa no histórico do tombamento federal da Serra do Curral, que não representou mais que um título de reconhecimento da importância da serra na paisagem da capital – embora sinalize alguma preocupação pública, ainda que apenas na esfera federal, com a permanência dessa paisagem, que se alterava com o avanço do tecido urbano em direção às periferias, nas décadas de 1960 e 1970. O entendimento de que o tombamento tenha correspondido apenas a um título se fortalece com a criação do Parque das Mangabeiras, contido na área tombada. Isso porque, se o tombamento fosse suficiente para preservar a paisagem – e seu conteúdo –, a criação do parque, com essa finalidade, não se faria necessária. 

As décadas de 1980 e 1990 foram de grandes transformações na capital, como no país e em todo o mundo capitalista. Os reflexos da “crise do petróleo”, a difusão do Estado mínimo neoliberal, a queda de barreiras econômicas internacionais, o fim do regime militar e a redemocratização alteraram não só o modo como a população se relacionava com o Estado, mas também o comportamento das grandes empresas do setor primário brasileiro. No Eixo Sul da RMBH, enquanto a mineração se expandia por todo o Quadrilátero Ferrífero, inclusive na direção da zona sul da capital, os loteamentos populares e de alto padrão avançavam no sentido sul, acercando‐se dos sítios de recreio de  Brumadinho e Nova Lima, que vinham se convertendo em residências principais.   

Desses choques de formas de uso e apropriação do solo – que compreendem o receio de que o abastecimento de água da capital pudesse se comprometido, o desejo de preservação da natureza e das belas paisagens da região, e as estratégias de controle dos loteamentos populares na zona nobre – são registros as vinte áreas protegidas criadas nesse período na 

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região. Entre elas se destacam sete áreas de proteção de mananciais, o Parque Estadual da Baleia, o Parque Estadual da Serra do Rola Moça e a APA Sul. Repetindo a sobreposição de área protegidas da Serra do Curral, as novas UCs foram criadas umas sobre as outras. 

Essa dinâmica permaneceu ao longo dos anos 2000, quando a temática ambiental já se consolidara nos discursos e ações do Estado e de empresas e a mineração no Quadrilátero Ferrífero alcançava dimensões nunca antes registradas – o que se exemplifica com o notável crescimento da mineradora Vale que, privatizada, incorporava empresas como a MBR e caminhava rumo ao seleto grupo das 40 maiores companhias do mundo. Nesse período, em que já se podia contar com o novo leque de modalidades de áreas protegidas instituído pelo Snuc, e no qual a APA Sul completava seu primeiro decênio sem interferir expressivamente no controle do uso do solo, tiveram destaque as RPPNs – em especial, as pertencentes a mineradoras – e as UCs de proteção integral nos municípios mais afetados pela mineração. Essas áreas foram criadas, notadamente, na forma de sobreposições e justaposições.  

A Figura 3, que apresenta o palimpsesto regional, agrupando as áreas conforme a década em que foram criadas, permite observar as tendências de localização dessas áreas protegidas, além de revelar o progressivo aumento de suas dimensões. A figura não representa o Parque Municipal de Belo Horizonte, por não se tratar de área voltada para a proteção ambiental, nem as RPPNs, por falta de informações precisas sobre essas áreas particulares. 

Nessa ilustração, explicitam‐se as justaposições e sobreposições de UCs na região, havendo pontos em que se pode contar até quatro “camadas17” de áreas protegidas – entre as reconhecidas como existentes e as consideradas revogadas –, o que ratifica a perspectiva do palimpsesto urbano. A representação permite identificar também a repetição do padrão centro‐periferia da expansão metropolitana no avanço das UCs nos sentidos sul, sobre a Serra da Moeda, e oeste, sobre a Serra do Rola Moça, ao longo da Serra dos Três Irmãos. 

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Figura 3 – A criação de áreas protegidas no Eixo Sul, por década. 

 

Sobre esse avanço, cumpre notar que essas são justamente as paisagens montanhosas mais procuradas por empreendedores imobiliários na RMBH, onde se tem verificado expressiva valorização dos imóveis, mas também importantes reservas minerais do Quadrilátero Ferrífero. Tendo isso em conta, e considerando que as motivações que levaram à criação de UCs no Eixo Sul têm por característica a proposta de controle do uso do solo no que se refere a empreendimentos minerários e loteamentos populares, essas áreas protegidas podem ser interpretadas como indicadores dos conflitos entre esses diferentes tipos de uso. Nessa medida, avaliando os tempos a que se referem e suas crescentes dimensões, pode‐se 

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apreender que, ao longo dos últimos 30 anos, tais conflitos têm afetado áreas cada vez maiores. Desse modo, se persiste a tendência, cabe inferir que, em pouco tempo, toda a RMBH será cenário de conflitos de uso relacionados à proteção ambiental ou justificados sob o argumento ambientalista. 

Diante do exposto, confirma‐se a pertinência da reflexão sobre as áreas protegidas enquanto expressões históricas da produção do espaço metropolitano, seja na forma de registros não construídos de ideologias e políticas de determinadas épocas, seja na forma de representações do espaço protegido necessárias à reprodução da valorização de mercadorias (minerais, imobiliárias...) e da segregação socioespacial. 

5 REFERÊNCIAS 

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6 NOTAS 

 

1 A expressão “área verde” é utilizada neste artigo para fazer referência a jardins e pequenos parques urbanos, onde o principal objetivo não é a proteção da natureza em, mas compor a paisagem urbana e constituir áreas de lazer. Já a expressão “área protegida” é empregada para fazer referência aos espaços destinados à conservação da natureza.  

2 Considera‐se Eixo Sul da RMBH o recorte, determinado por dinâmicas socioespaciais particulares de expansão metropolitana, que se estende a partir da zona sul da cidade de Belo Horizonte, abarcando municípios vizinhos como Nova Lima e Brumadinho, e alcançando outros não considerados como componentes da RMBH oficial, na mesma direção, como Moeda e Itabirito (COSTA, 2006). 

3 Conforme aponta Keith Thomas (1988 apud DIEGUES, 1996; CAMARGOS, 2006), naquele país, até o século XVIII, predominava um ideário de valorização da domesticação do mundo natural, sendo a criação de animais considerada o ponto mais alto da humanização, motivo pelo qual a entrega de gado aos povos indígenas do Novo Mundo 

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constituía a mais simbólica representação de sua introdução à civilização. A transformação desse ideário, que levaria à convivência entre as antigas sensibilidades e as novas percepções relacionadas à valorização do mundo selvagem, teve início no século XIX. 

4 Na virada do século XX, entre os paisagistas europeus, o geométrico jardim francês perdia espaço para o jardim romântico inglês, que intervinha na natureza, removendo seus “aspectos desordenados”. Nos termos do importante paisagista francês Jules Vacheront: “Um jardim romântico é uma obra de arte lançada na própria natureza, não ao acaso caprichoso de exemplos que esta coloca sob nossos olhos, mas com discernimento e seguindo regras” (CVRD, 1992, p. 19).   

5 Dizia‐se que a estrutura não possuía atributos que lhe conferissem acústica satisfatória e que sua posição, voltada para a área hospitalar, comprometia sua utilização (CVRD, 1992, p.96). 

6 A Ferrobel atuou na área que viria a constituir o Parque das Mangabeiras ao longo das décadas de 1960 e 1970, tendo suas atividades encerradas antes da abertura da área ao público. A mineradora ocupava os locais onde atualmente se situam o estacionamento Sul e as Praças do Britador e das Águas (HISTÓRICO..., 2011).  

7 Contudo, esses marcos não abarcaram a escarpa sul da serra, situada em Nova Lima, atrás do que viria a ser o Parque das Mangabeiras. Assim, permitiu‐se a exploração mineral em parte da serra, o que, em meados dos anos 1980, veio a implicar no rebaixamento de mais de 100 metros da crista original, descaracterizando a paisagem – e levando à perda de um dos marcos do tombamento, em função de desmoronamentos (BATISTA, 2004, p.138). 

8 É preciso destacar, além disso, que corria entre os belo‐horizontinos a notícia de que uma das funções do parque seria fortalecer as fronteiras entre o Bairro Mangabeiras e a Vila Cafezal. 

9 A lei do Snuc definiu 12 categorias de unidades de conservação ‐ UCs –, divididas em dois grupos: o de proteção integral e o de uso sustentável. Nas UCs das categorias de proteção integral devem predominar os usos indiretos, como a pesquisa científica e a visitação controlada, não sendo admitidos “consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais” (BRASIL, 2000, art. 2º). As categorias de proteção integral são parque, estação ecológica e reserva biológica, cujos terrenos devem ser de posse e domínio públicos, e monumento natural e refúgio da vida silvestre, que poderiam manter áreas particulares, “desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a utilização da terra e dos recursos naturais do local pelos proprietários” (Ibid., art. 12). Já nas UCs das categorias de uso sustentável, a exploração dos recursos é permitida, desde que observada a premissa da garantia da “perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável” (Ibid., art. 7º). São categorias de uso sustentável: APA e área de relevante interesse ecológico – ARIE, em que é admitida a propriedade privada dos terrenos; floresta nacional – Flona –, reserva extrativista – Resex – e reserva de desenvolvimento sustentável – Redes –, onde os terrenos são públicos, com uso concedido a comunidades tradicionais; reserva de fauna, de posse e domínio públicos; e reserva particular do patrimônio natural – RPPN.  

10 Em entrevista concedida a Eliano Freitas (2004). 

11 Trata‐se de um aumento de 2,3Mt, em 1989, para 3,9Mt, em 1999, para o mercado interno, e de 16,3Mt, em 1989, para 20,7Mt, em 1999, para exportação, sendo os destinos divididos da seguinte forma: 29% para a Europa, 21% para a Ásia, 18% para o Japão, 16 para o mercado interno e 16% para outros países.  

12 O termo se difundiu mundialmente a partir do Relatório Nosso Futuro Comum, publicado pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1987. Para Wolfgand Sachs (1992 apud ESCOBAR, 1996), a máxima do desenvolvimento sustentável contribuiu para a operação ideológica segundo a qual o termo meio ambiente substituiu as referências à natureza. Para o autor, a transformação da natureza em meio ambiente tem por função retirar da primeira seu caráter de instância superior, fonte de vida (como na recorrente construção “Mãe Natureza”), desmistificando‐a e limitando‐a um papel passivo, um apêndice do meio ambiente, que, por seu turno, se refere apenas a quantidades de matéria e energia. Essa transformação discursiva – que para o autor equivale à morte simbólica da natureza em paralelo à sua deterioração física – torna o homem o sujeito da ação sobre a natureza, coroando a visão do mundo como um recurso, construção indispensável para o funcionamento do sistema capitalista.  

13 Para o autor, a produção capitalista tem internalizado a natureza, por exemplo, quando age em prol da 

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conservação da biodiversidade por ver nos genes das espécies protegidas da extinção uma utilidade que pode ser convertida em lucro através da engenharia genética. A natureza, assim, é vista como matéria para produção futura, ainda mais rentável, de mercadorias de maior valor, como os produtos farmacêuticos. 

14 Após obter essa licença ambiental estadual – com base no referido Rima, que previa a construção de casas e prédios de até quatro andares – o empreendedor buscou o licenciamento em âmbito municipal, junto ao Conselho Municipal de Desenvolvimento Ambiental de Nova Lima, para expandir o projeto e construir edificações de mais de 15 andares, no condomínio integrante denominado “Vistas do Vale”. Em reação a essas alterações, associações de moradores de outros condomínios da região fizeram manifestações e apresentaram representações junto ao Ministério Público Estadual. Em maio de 2011, uma decisão judicial acatou a liminar do MPE, determinando: a imediata suspensão do processo de licenciamento ambiental municipal para implantação do Vistas do Vale, a abstenção do município da concessão de qualquer espécie de licença ou autorização ao condomínio; e a suspensão imediata das vendas de imóveis do referido condomínio (MORADORES..., 2010; ODEBRECHT PROIBIDA..., 2011).  

15 Aqui entendido como "zona urbana", no sentido que lhe atribui Henri Lefebvre, referindo‐se ao “estágio de organização espacial no qual o capitalismo industrial, firmemente estabelecido dentro da cidade e controlando toda sua região de influência, provoca a ruptura da cidade” em centro urbano (core) e tecido urbano, correspondendo este às trama de relações socioespaciais urbanas que se expande regionalmente – por todo o espaço (MONTE‐MÓR, 1994b, p. 170; LEFEBVRE, 2008). 

16 Considerando que algumas dessas áreas não apresentam limites perceptíveis em campo, confundindo‐se com terrenos não utilizados pertencentes a mineradoras ou ao poder público, como no caso do tombamento da Serra do Curral e da APA Sul, sugere‐se que esse conjunto seja compreendido mais como um palimpsesto de representações espaciais – espaço concebido – que de objetos de base material. 

17 Lefebvre (1991) alerta para os riscos da utilização de termos como “camada” para fazer referência ao espaço, considerando que esse tipo de metáfora sugere que o espaço se limite aos objetos, não refletindo sua natureza dialética. Considerando que os lugares se interpõem, se compõem, se superpõem, e, às vezes, se chocam, cada fragmento selecionado para análise carrega uma multiplicidade de relações sociais. Nessa perspectiva, ao refletir sobre essas “camadas”, faz‐se necessário considerar que não se tratam de espaços homogêneos, monolíticos ou desprovidos de conflitos. 

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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade 

O Planejamento Urbano Desejado e o Praticado: O Caso de Viçosa, MG. 

Ítalo I. C. STEPHAN  Doutor em Planejamento Urbano pela FAU/USP; Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFV; Conselheiro do CAU‐MG. [email protected]

RESUMO Este texto discute a dicotomia entre as premissas do planejamento urbano e o contínuo crescimento de Viçosa.  Em  um  município  onde  se  pratica  um  planejamento,  adequado  ou  não,  existem  agentes diferentes envolvidos na sua produção. Este texto visa a analisar os doze anos de produção do espaço urbano,  uma  vez  que  Viçosa  aprovou  seu  plano  diretor  em  2000,  juntamente  com  a  legislação complementar.  Os  prefeitos  têm mantido  a  postura  de  desinteresse  na  implementação  do  plano.  A Câmara Municipal permitiu mudanças contrárias ao que defendeu o plano. O Instituto de Planejamento foi criado, instalado e administrado por técnicos não qualificados. Os construtores permaneceram a uma distância,  ausentes,  deixando  para  agir  mais  tarde,  modificando  a  legislação,  de  acordo  com  seus interesses,  através  dos  seus  representantes  na  Câmara Municipal.  A  proposta  de  revisão  do  plano, encaminhada à Câmara Municipal em 2008, permanece sem discussão e aprovação, enquanto a cidade se  expande  com  vigor,  com  forte  adensamento  na  área  central  e  com  o  espraiamento  através  de condomínios fechados e programas habitacionais de baixa renda. 

PALAVRAS‐CHAVE: Viçosa, MG: Plano Diretor Participativo; Viçosa, MG: Planejamento Urbano; Viçosa, MG: Legislação urbanística. 

ABSTRACT This paper discusses the dichotomy between the assumptions of urban planning and the ongoing growth in Viçosa, MG,  Brazil. In a city  where planning is  practiced,  appropriate  or not,  there  are different agents involved  in  its  production. This  paper  aims  to  analyze  the twelve  years  of production  of  urban space,  since Viçosa  approved its  master  plan in  2000, together  with complementary  legislation. The mayors have  maintained the  posture of  disinterest in  implementing  the master  plan.  The  City Council allowed changes contrary to  what defended  the  plan. The Planning  Institute was created, installed  and administered  by  unskilled  technicians. The  constructors remained at  a distance away,  leaving to  act later, changing  the  law,  according  to their  interests, via  their representatives at City Council. The proposed revision of the plan and  forwarded to City Council  in 2008 remains without discussion and approval while  the  city expands with force, with a high densification  in the central area and a  sprawl through  closed condominiums and the low income housing programs. 

KEYWORDS:  Viçosa, MG: Participatory Master Plan; Viçosa, MG: Urban Planning, Viçosa‐MG; urban legislation. 

APRESENTAÇÃO 

O município de Viçosa possui, desde 2000, uma ampla legislação urbanística, com Plano Diretor à frente. O município dispõe de um Instituto de Planejamento (IPLAM) atuante, embora subdimensionado em infraestrutura e recursos humanos. A análise e aprovação de projetos é a sua ocupação quase exclusiva. Em contrapartida, contrariando o Plano 

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Diretor, há um processo liderado pelo forte setor da construção civil, de uma visível verticalização na área central e de expansão em áreas não permitidas, principalmente nas margens dos cursos d’água e em regiões de nascentes. O processo é complementado com a construção de condomínios fechados em áreas próximas à infraestrutura suficiente e com a implantação de conjuntos habitacionais (do Programa federal “Minha Casa, minha vida”) em áreas periféricas, de difícil acesso e sem infraestrutura. Há inúmeros vazios urbanos em áreas centrais  e uma valorização exacerbada do custo da terra. 

Em 2006, foi iniciado o processo de revisão do plano diretor. O anteprojeto de lei foi entregue ao prefeito que o encaminhou à Câmara Municipal em 2008 e, pelo menos até meados do ano 2012, não entrou na pauta de discussão.  

Depois de doze anos com o Plano Diretor, o forte mercado da construção civil atua de acordo com os seus interesses e prega a necessidade de ajustes na legislação, para continuar a trazer o “crescimento“ e a oferta de empregos tão desejados para a cidade.  

1 INTRODUÇÃO 

Viçosa, um município da Zona da Mata mineira, possui um pouco mais de 72.000 habitantes e uma população chamada de flutuante de cerca de 15.000 estudantes universitários. A topografia acidentada espreme a cidade entre morros e vales. Suas ruas são estreitas e de pavimentação de péssima qualidade, onde circulam cerca de 40.000 veículos. Há um processo intenso de adensamento e verticalização na região central que resulta da demanda gerada pela ampliação das vagas na Universidade Federal de Viçosa e nas outras três faculdades particulares.  

Em sua história, quase sem exceção, o município não teve prefeitos interessados em um mínimo de planejamento urbano. A cidade de Viçosa cresceu em resposta às demandas geradas pela UFV. Um dos prefeitos, o folclórico e populista Antônio Chequer, que do alto de seu “castelo”, construído estrategicamente em um morro localizado em frente à área central, apontava para seus funcionários os locais onde queria que passasse o trator para abrir ruas. Foi esse o retrato do “planejamento urbano” no município até o final do século XX. Chequer uma vez afirmou: “o plano diretor sou eu”.  Até 1998, Viçosa não tinha um plano diretor, mas havia um conjunto de leis (Código de Obras, Lei 312/79) adulteradas ou reduzidas a ponto de restarem dois artigos: um que estabelecia o coeficiente de aproveitamento e outro que aprovava automaticamente um projeto de construção que não fosse analisado pela prefeitura em um mês. 

Viçosa possui, desde 2000, uma ampla legislação urbanística, encabeçada pelo Plano Diretor.  Era esse o arcabouço da legislação urbanística, no início do século XXI: Plano Diretor de Viçosa ‐ PDV (Lei 1383/2000); Instituto de Planejamento do Município de Viçosa (IPLAM) e Conselho Municipal de Planejamento (COMPLAN); Lei de Parcelamento do Solo (Lei 1469/2001); Lei de Ocupação, Uso do Solo e Zoneamento (1.420/2000); Código Ambiental (Lei 1526/2002); Código de Posturas (Lei 1574/2003) e  Código de Obras e Edificações (1633/2004). Todo esse aparato legal não tem sido suficiente para produzir espaços de qualidade na cidade.  O setor da construção civil encontra sempre meios de alterar a legislação em prol da manutenção da construção em massa para atender a uma demanda ampla e contínua. 

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2 LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA VERSUS MERCADO IMOBILIÁRIO EM VIÇOSA 

A acumulação e especulação imobiliária andam juntas. Esse fenômeno já não ocorre apenas em cidades maiores. O poder público chega sempre atrasado para se prover de instrumentos legais para tentar ordenar o uso do solo (KOWARICK, 1993, p 33‐35). Para o autor, “a ação governamental restringiu‐se (...) a seguir os núcleos de ocupação criados pelo setor privado e os investimentos públicos vieram colocar‐se a serviço da dinâmica de valorização‐especulação do sistema imobiliário‐construtor”.  Maricato (2001, p. 83) afirma que “a ocupação do solo obedece a uma estrutura informal de poder: a lei de mercado precede a lei/norma jurídica” e que “a distância entre plano e gestão se presta ainda ao papel ideológico de encobrir com palavras e conceitos modernos (...) práticas arcaicas”.   

A separação entre planejamento e gestão permanece pela relutância dos políticos de se envolverem em planos, por não perceberem sua utilidade ou duvidarem dela. (VILLAÇA, 2005). Quando eles percebem, veem o plano como empecilho para suas ações politiqueiras. 

Viçosa apresenta uma aparente prosperidade, embora produza custos ambientais e sociais desastrosos para a população e o poder público, como deterioração da qualidade de vida, degradação dos valores estéticos (RATTNER, 2009). A cidade reflete a situação do capital que mantém à distância as pessoas e as “coisas indesejáveis” (bairros afastados para habitação de baixa renda) ao mesmo tempo que se aproxima de pessoas e “coisas desejáveis” (estudantes, professores e o Campus da UFV,  Figura 1). Os que não possuem capital permanecem distantes dos bens mais raros (BORDIEU, 1997). 

Figura 1: Área Central de Viçosa em frente ao Campus da UFV. 

 

Fonte: STEPHAN, 2012. 

Cabe perfeitamente em Viçosa a afirmação de que “nenhuma legislação, mesmo que aprovada devido a circunstâncias especiais, será implantada; do mesmo modo nenhuma lei, mesmo sendo autoaplicável, garante justiça social e qualidade ambiental pela sua simples promulgação” (MARICATO, 1994). Temos, no Brasil, assim como em Viçosa, uma avançada legislação urbanística, mas carecemos de políticas e meios adequados para implementá‐la. A 

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simples adoção de instrumentos normativos não é suficiente para alterar substantivamente a dinâmica do desenvolvimento urbano. A política, como sempre, faz a diferença (GOULART, 2008). Nada mais pertinente como retrato da dinâmica da produção que ocorre na pequena cidade de Viçosa, em Minas Gerais. 

O PDV foi formulado a partir do oferecimento de amplas oportunidades para que a população se manifestasse, além de uma farta divulgação na mídia, realizada por meio de artigos de divulgação e matérias em jornais; debates nas emissoras de rádio; programas temáticos e mesas redondas na emissora de TV local (STEPHAN, 1998). Foram aplicados questionários nas ruas comerciais e na feira livre como também questionários temáticos para os setores de engenharia, de construção civil e de comércio e indústria. Os maiores conflitos, os ligados à ação do mercado imobiliário em Viçosa, permaneceram dissimulados. A participação, em nenhuma de construtores, engenheiros e arquitetos atuantes no mercado da construção civil nas reuniões públicas foi insignificante1. Evidenciou‐se que parte do setor prefere atuar junto aos seus interlocutores na Câmara Municipal, quando lhes interessa. 

O projeto do Plano Diretor tramitou na Câmara Municipal nas vésperas das eleições municipais de 1999, o que dificultou as negociações para sua aprovação. Os dois candidatos a prefeito, tanto nos comícios, como em seus programas de rádio e televisão, defendiam abertamente a aprovação do Plano Diretor e a sua aplicação, mas, nos bastidores, articulavam pela sua não aprovação. Após negociações entre os dois vereadores que defendiam a aprovação do Plano e os opositores, conseguiu‐se que fosse mantida apenas a criação do IPLAM e do COMPLAM. No entanto, as atribuições do IPLAM e a composição do COMPLAM foram retiradas da lei do Plano Diretor para serem votadas em outra oportunidade. A estratégia utilizada pelos vereadores que se opunham à aprovação era adiar ao máximo a implantação desses dois órgãos.  (STEPHAN, 2006). 

O IPLAM começou a funcionar de maneira precária e com poucos funcionários. Seus diretores não tiveram capacitação em planejamento2. O primeiro diretor foi o Secretário de Obras da época em que houve uma aprovação em massa de projetos às vésperas da entrada em vigor da Lei de Zoneamento, Uso e Ocupação do Solo.  Após alguns anos de funcionamento, o IPLAM é pouco atuante em planejamento e continua subdimensionado. A atribuição que mais o ocupa é a de análise e aprovação de centenas de projetos a cada ano (STEPHAN, 2006).  A população, quando precisa aprovar projetos, reclama da demora.  

Alguns anos depois prevaleceram os interesses do setor da construção civil, isso inundou as áreas centrais de prédios com taxa bruta de edificação sempre superior aos índices legais (Figura 2). Também, nesse período, caiu a exigência de afastamento frontal de 3 metros, estabelecido pela lei de uso do solo, ficando obrigatório apenas para novas ruas. Em desacordo com a legislação de parcelamento do solo, tentou‐se permitir a pavimentação de novos loteamentos com pedras fincadas, para baratear os custos dos construtores. 

O instrumento Transferência do Potencial Construtivo foi aplicado quatro vezes, com problemas. Os potenciais foram transferidos para dentro dos próprios terrenos e, como contrapartida, houve a preservação de partes das edificações tombadas, com resultados questionáveis. 

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Criado simultaneamente com o IPLAM, o COMPLAN3 funcionaria como órgão superior de assessoramento e consulta da administração municipal, com funções fiscalizadoras no âmbito de sua competência. O conselho se reuniu algumas vezes nos primeiros anos e ficou desativado desde 2006 (STEPHAN, 2009a). 

Figura 2: Área Central de Viçosa em processo de verticalização. 

 

Fonte: STEPHAN, 2012. 

Vários alvarás resultantes da avalanche de projetos aprovados às vésperas da entrada em vigor da lei de Ocupação, Uso, e Zoneamento do Solo Urbano de Viçosa, que teriam validade até por dois anos, foram prorrogados por até cinco anos. Essa atitude deixou graves problemas para os anos seguintes (STEPHAN, 2006 b). A paisagem urbana passou a apresentar aglomerados de edificações verticalizadas. A versão da lei do uso do solo encaminhada para votação foi alterada. A faixa non aedificandi de 15 metros ao longo das margens dos cursos d’água foi reduzida para 10 metros, em desacordo com a Lei Federal 6766. Foram alterados alguns índices urbanísticos, para valores mais permissivos, tais como número máximo de pavimentos e os coeficientes e taxas de ocupação das zonas urbanas, de forma a ficarem mais favoráveis a um maior adensamento que o inicialmente previsto. Houve posteriormente uma alteração no texto, permitindo o acréscimo de um terceiro pavimento de subsolo.  

3 O PLANO REVISTO E DEIXADO DE LADO 

No interregno entre a promulgação da Constituição e a edição da Lei no. 10257 de 10 de julho de 2001, vários municípios aprovaram seus planos diretores. Poucos inovaram no tocante ao desenho da Política Urbana local e aos instrumentos que a viabilizariam. A maioria, por sua vez, pautou‐se por criarem verdadeiras cartas de intenção, com objetivos gerais a serem atingidos, contudo sem demonstrar a forma como isto se daria (STEPHAN, 2009 a). Nesse 

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panorama, insere‐se a experiência de Viçosa que, em 25 de maio de 2000, editou seu Plano Diretor. Apesar de ser fruto da interação entre o Poder Público e os cidadãos, a referida norma filiou‐se à segunda tendência acima apontada, não inovando na matéria, mas se contentando em estabelecer normas generalíssimas, com baixa densificação normativa. Al revisão do plano ficou para se feita em cinco anos, entretanto isso só teve início no final de 2006. Além desta cláusula do plano,  

Pouco mais de um ano após a edição da lei Municipal, o Estatuto da Cidade veio a lume, tornando imperiosa a revisão do Plano Diretor de Viçosa, adequando‐o às diretrizes nacionais, bem como corrigindo falhas constantes no texto normativo, modernizando a estrutura e o aparato prescrito, de forma a atender aos reclamos da sociedade local (SPORCH, 2008). 

A base dos trabalhos foi estruturada seguindo o Estatuto da Cidade e atendendo às resoluções de número 15 e 34, ambas de 2005, do Conselho das Cidades. Desta vez, a equipe foi formada por professores da UFV e por técnicos do IPLAM.  

A revisão do Plano Diretor de Viçosa teve quatro etapas com participação popular. A primeira com a realização de 39 reuniões públicas (21 na área urbana, seis na área rural e 12 reuniões setoriais), o que resultou numa quantidade enorme de assuntos para serem tratados no plano. A segunda, com a apresentação do resultado da leitura das reuniões aos delegados eleitos em cada reunião em debates públicos. A terceira, com a realização de debate público, com a  presença dos delegados na discussão e aprovação das propostas a serem incluídas no plano. A quarta proposta constou de um Encontro da Cidade, aberto aos delegados e à população em geral, onde foi apresentado e discutido novamente o texto do plano diretor, inclusive com algumas propostas de alterações acordadas e posteriormente incluídas no texto. 

O novo plano foi feito contando com a consolidação do IPLAM, o funcionamento efetivo dos conselhos, a ampliação da fiscalização e, principalmente, abrindo canais para a participação da população na solução de problemas e na apresentação de propostas para melhorias. Para alcançar o desiderato da Política Urbana, o Município terá a oportunidade de aplicar os instrumentos previstos no plano, quais sejam: parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; IPTU progressivo no tempo; desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública; concessão de uso especial para fins de moradia; direito de preempção; outorga onerosa; operações urbanas consorciadas; transferência do direito de construir; estudo de impacto de vizinhança. Pretendeu‐se, por um lado, incentivar o comportamento dos cidadãos de forma a fazer com que o mesmo seja consoante com o Plano Diretor. Por outro lado, objetivou‐se obrigar que as normas cogentes de ordenação do espaço fossem atendidas. 

Na redação da documentação a ser encaminhada para tramitação na Câmara Municipal, ficou clara a importância de produzir um plano diretor com o máximo possível de dispositivos autoaplicáveis e identificando os agentes responsáveis pela execução e fiscalização de cada proposta de ação, obra ou programa incluído no plano e prazos para sua execução (STEPHAN, 2008). 

Outro aspecto desenvolvido foi a redução da inflação normativa. Além de proposições de nova redação para alguns artigos de leis e a inclusão de partes de leis, trata da redução da inflação normativa, através de proposições de revogação de partes de leis; exclusão de partes de leis e revogação de leis. Desta forma, 55 leis relativas à política urbana foram alteradas, sendo que 32 tiveram algum tipo de alteração em seu texto, como a Lei de Parcelamento do Solo. Foram 

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revogadas 23 leis, como a de Ocupação, Uso do Solo e Zoneamento, que teve todo o seu conteúdo revisto e incluído no plano (STEPHAN, 2008).  O maior problema foi que dos 783 artigos do plano, 449 são relacionados a esta limpeza da legislação, o que assustou e intimidou vários vereadores. 

Outras características do plano são: 

Seguindo a orientação do Ministério das Cidades, as normas referentes à ordenação do solo foram inseridas no Plano Diretor, o que levou à revogação da Lei Municipal no1420, de 21 de dezembro de 2000, conforme explicitado no Título VIII. Assim, trabalhou‐se inicialmente com as normas referentes à ocupação do solo, adequando‐as ao Estatuto da Cidade e aos demais dispositivos aplicáveis a cada caso, resolvendo‐se anomias e antinomias com estas normas, com as normas de outras esferas, e até mesmo contrariedades com as normas constitucionais. Outrossim, houve a flexibilização de índices e a racionalização de parâmetros, de forma a orientar a construção civil no processo de produção da cidade, adequando‐os à realidade municipal, seja no que concerne aos investimentos do setor privado, seja no que tange às observações realizadas durante as reuniões públicas (SPORCH, 2008);  

O IPLAM passaria  a ser autarquia municipal, com personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa e financeira; 

A criação do Fundo Municipal de Política Urbana, formado, dentre outros, pelos recursos obtidos através dos valores devidos das medidas mitigadoras e/ou compensatórias determinadas pelos Estudos de Impacto de Vizinhança e contribuição de melhoria decorrente de obras públicas; 

A implantação da Sede dos Conselhos Municipais, que abrigará as reuniões de todos os órgãos colegiados de participação popular e 

A definição das regras para Produção e alterações das normas urbanísticas; da elaboração da Revisão Decenal do Plano; das adequações das normas urbanísticas às Plataformas Políticas dos Prefeitos Eleitos e do redirecionamento das Normas Urbanísticas. 

Junto com o texto do anteprojeto de lei do plano, foi encaminhada a “Lei dos Instrumentos”, redigida de forma a conter e concentrar as disposições prescritas como leis específicas e previstas no estatuto da Cidade, estabelecendo: 

O que determina o parcelamento, a edificação ou utilização compulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, com as condições e prazos para a implementação da referida obrigação (Art. 5o do Estatuto da Cidade); 

A delimitação das áreas de incidência do direito de preempção, com prazos e formas de notificação do proprietário ao Município; 

A fórmula de cálculo para cobrança da Outorga onerosa do direito de construir, os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga e as contrapartidas do beneficiário (Art. 30); 

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A regulamentação do Consórcio imobiliário e a Concessão de uso especial para fins de moradia; 

As condições a serem observadas para a Outorga onerosa do direito de construir (Art. 30); 

A delimitação das áreas para a aplicação de operações consorciadas (Art. 32); 

As condições para a aplicação da Transferência do direito de construir (Art. 35); 

A definição dos empreendimentos e atividades que dependerão de elaboração de Estudo de impacto de vizinhança (Art. 36 ). 

Os textos dos anteprojetos foram submetidos à apreciação do Ministério Público, para que se opinasse sobre as medidas e a sua correção. Esse momento apresentou caráter preventivo, além de ser meio de informação do órgão ministerial, proporcionando a sua participação e melhoria da atividade de controle da gestão pública, estreitando, ainda, os laços entre essas instituições (SPORCH, 2008). 

Os anteprojetos de lei foram entregues ao prefeito, que os encaminhou à Câmara Municipal em 2008 e, até meados  do ano de 2012, não entraram na pauta de discussão. Houve uma tentativa de aprovar o plano às pressas, no final de 2008, sem sucesso. Um dos vereadores quis retirar de dentro do plano todo o conteúdo de controle e uso do solo urbano. Posteriormente, houve eventuais tentativas de alguns dos vereadores de conhecer e entender o conteúdo do plano como também houve a instabilidade política da expectativa de cassação do mandato do prefeito eleito em 2008, o que ocorreu em maio 2010. 

4 OS INTERESSES DO MERCADO IMOBILIÁRIO 

A atuação do mercado imobiliário em Viçosa tem sido gerada principalmente pela demanda crescente em função da criação dos novos cursos na UFV4 (vinte deles começaram a funcionar a partir de 2000) e nas faculdades particulares (FDV5, Univiçosa6 e ESUV7). A maioria absoluta dos estudantes é de outras cidades.  

Doze anos depois de entrar em vigência, contrariando várias vezes o Plano Diretor, mas amparado pela atuação da Câmara Municipal, há a continuação do processo, liderado pelo setor da construção civil, de verticalização em áreas não recomendadas e da expansão da área urbana em vetores que o plano indica como não adensáveis8.  

Isso ocorre tanto com a implantação de novas áreas, quanto com a construção de condomínios fechados e novos loteamentos em áreas próximas à boa infraestrutura de serviços urbanos, vizinhas ao Campus da UFV e com a implantação de conjuntos habitacionais em áreas periféricas não dotadas de infraestrutura adequada (Figura 3). 

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Figura 3 Mapa esquemático 

 Fonte: STEPHAN, 2012. 

Há uma intensa substituição de edificações menores (casas e lojas) por edifícios de múltiplos pavimentos (Figura 4), em sua maioria com uso comercial ao nível da rua e apartamentos pequenos, cujo objetivo é atender à alta demanda por aluguéis numa cidade universitária. O conselho municipal que cuida do patrimônio histórico (CMCPCA) tem tido, como maior demanda de discussão, solicitações de pareceres pelo IPLAM, a respeito do pedido de demolições de casas inventariadas.  O conselho é mantido apenas consultivo, o que o torna frágil e ineficaz. 

Figura Área Central de Viçosa, onde prédios altos substituem casas ecléticas 

 

Fonte: STEPHAN, 2012. 

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A degradação ambiental é visível na cidade. O alto preço da terra retirou casas com quintais às margens dos rios e provocou a construção de prédios nas margens dos cursos d’água. Vários novos prédios têm sido autorizados a ser construídos às margens dos cursos d’água, dentro da faixa dos quinze a trinta metros, sob o pagamento em dinheiro, de compensações ambientais irrisórias9. 

Três casos ilustrativos 

A seguir, apresentaremos três casos que ilustram a atuação do setor imobiliário, respectivamente ao burlar a legislação; ignorar as diretrizes do plano diretor e alterar os parâmetros urbanísticos quando o que existe não mais os satisfaz. 

No primeiro caso, o “Condomínio Ecolife” será formado por duas torres de treze pavimentos encravadas em uma mata, numa região da cidade em que o zoneamento ‐ ZR310 ‐ permitiria, no máximo, quatro pavimentos, incluindo o térreo. Trata‐se também de uma região da cidade onde se encontram as nascentes do ribeirão São Bartolomeu, responsável pelo abastecimento de 50% da população urbana.  Num artifício bem planejado, a Câmara Municipal aprovou um projeto de Lei (1848/2007) que denominou de Avenida Prefeito Geraldo Eustáquio Reis o trecho entre a Rua Carmita Pacheco e o término do trevo que dá acesso ao Bairro Acamari.  

Alguns meses depois, a Lei 1865/200811 a substituiu, prolongando a avenida por uns 500 metros até o trevo de acesso ao bairro Romão dos Reis e a incluiu como Corredor Secundário, como definido pela Lei 1420/2000. Essa lei, portanto, alterou duas outras e não uma como está no seu caput. Isso significou que o que era ZR3, passou a ser Corredor Urbano ‐ CS. Passou a ter como características a predominância de uso comercial e ser área adensável. O Coeficiente de Aproveitamento máximo passou de 1,5 para 2,8. Sua Taxa de Ocupação máxima passou de 50% para  80%. A Taxa de Permeabilização mínima passou de 30% para 10%. Por fim, o gabarito máximo das edificações passou de 4 para 10 pavimentos (figura 4).  Uma vez legalizada a possibilidade de construir torres no lugar, o projeto foi aprovado pelo CODEMA local, sob a garantia de que o empreendimento compensaria com a reposição de árvores, obteria e trataria sua água para se tornar potável e trataria seu esgoto. Com o parecer do CODEMA e sem consulta ao COMPLAN, o projeto foi aprovado (STEPHAN, 2009b). 

Figura 4: Uma das duas torres de 13 pavimentos em construção em área de zoneamento alterado 

 

Fonte: STEPHAN, 2012. 

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No segundo caso, a presença do Programa Federal “Minha Casa, Minha Vida” em Viçosa revelou uma fragilidade do programa no município, que não possui terras públicas nem sequer estabeleceu nenhuma Zona de Especial Interesse Social para receber programas de habitação de interesse social. O programa foi atendido por um projeto de uma construtora proprietária de um terreno em uma área urbana, em uma ZR3, em local (Coelhas) de difícil acesso e longe do tecido e da infraestrutura urbana. O terreno está localizado em um vale separado do resto da cidade por uma cadeia de morros, o que acrescenta esforços extras para caminhada, dificuldades para o uso de bicicletas ou percorrer trechos mais longos  com uma declividade razoável .  No local foi construído um conjunto de 132 casas de 37 metros quadrados em lotes de 120 metros quadrados, um “pombal” característico como os que se produziram há pelo menos quarenta anos atrás (figura 5). Depois mais um conjunto de 123 foi construído na mesma região. Outro está em fase de construção. Criou‐se menos autonomia, mais exclusão social, menos mobilidade, enquanto os terrenos centrais vazios chegam a preços elevados12, sem atender à função social da propriedade urbana13. 

O terceiro caso foi a aprovação pela Câmara Municipal de Viçosa de uma lei alterando a Lei 1420/2000, de Zoneamento e Uso do Solo. Estabeleceu‐se que, nas vias com caixa de rua inferior a 7 metros, seria concedida uma compensação de 20%  do potencial construtivo da edificação, desde que constasse no projeto um recuo de 2 metros ao longo da frente do lote. Tal recuo seria transferido ao Poder Municipal, possibilitando o alargamento da rua. Com a medida, poderiam ser acrescidos até dois pavimentos. O objetivo era “promover o alargamento das vias centrais do Município, onde o trânsito vem se tornando cada vez mais caótico; sendo certo que, com o recuo [...] a Zona Central da cidade tornar‐se‐á viável [...]”. Acrescentava que: “Deste modo, em troca de uma mobilidade nas vias centrais [...] , o Poder Público Municipal possibilitará uma compensação ao empreendedor, no intuito de melhorar não só a fluidez do trânsito nas vias centrais, como também a própria estrutura da região central do Município.” 

Figura 5: Conjunto habitacional do programa Minha casa Minha Vida, na localidade Coelhas, Viçosa, MG 

 

Fonte: STEPHAN, 2011. 

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Uma interpretação desta proposta leva a constatar que: 

A compensação de 20% a mais do potencial construtivo (o que permite que o proprietário construa 20% a mais no lote) é muito mais vantajosa para o empreendedor. Por exemplo, em um terreno de 20x30 metros, o proprietário perderia 40 m2 multiplicados pelo Coeficiente de Aproveitamento ‐ CA (área do lote multiplicado por um número específico para cada zona urbana), mas ganharia 120m2  multiplicados pelo o CA, ou seja, 3 vezes mais; 

Consegue‐se criar na via duas vagas de estacionamento, mas se  cria, com a compensação, no mínimo, uns quatro apartamentos, o que geraria pelo menos 4 automóveis a mais circulando na via; 

O alargamento de 2 metros seria apenas na frente do lote e, para se tornar um alargamento em toda a extensão da via, seriam necessárias décadas para acontecer, uma vez que não haveria substituição dos prédios já construídos e nem para prédios tombados. Portanto, teríamos algumas vagas esparsas e não o alargamento da via, sem melhoria alguma na fluidez do trânsito. 

É pertinente lembrar que o Plano Diretor de 2000 e a Lei 1420/2000 previam um recuo de três metros com o objetivo de obter‐se, em longo prazo,  o alargamento das vias. O recuo foi retirado das leis  e os proprietários ganharam 3 metros a mais para construírem nos lotes. Atualmente, há prédios na cidade que alargaram a calçada, sem nenhuma compensação. 

5 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Em um município, exista nele a prática de um bom planejamento ou não, há vários agentes envolvidos, cada grupo de uma forma, mais ou menos explícita. Neste texto foi feito um balanço dos doze anos de produção do espaço urbano, desde que Viçosa aprovou seu plano diretor, em 2000, juntamente com a legislação complementar referente à política urbana. O resultado do balanço entre as ações efetivadas e as regras aprovadas é claramente negativo. 

Os prefeitos mantiveram certa distância, sem muito interesse e esforço na aplicação do plano. A população, quando convidada a participar, esteve presente. Os prefeitos, assim como os vereadores são despreparados, sem noção da amplitude da legislação. Os vereadores apoiaram os prefeitos, por razões políticas. Parte deles atuou permitindo a utilização de brechas na legislação ou de alterações contrárias ao que prega o plano diretor, a partir da defesa de argumentos contraditórios.  

O IPLAM foi criado, instalado precariamente e dirigido por técnicos sem formação em planejamento urbano. Em alguns casos, ligados diretamente ao setor da construção civil. O órgão passou todo o tempo sob pressão da população descontente com as regras e com a demora da aprovação dos projetos. O IPLAM vem sendo efusivamente criticado pelos setores da construção civil, com raras exceções, que discordam da sua atuação, uma vez que, no órgão, busca‐se aplicar a legislação e tentam‐se impedir ações irregulares14.   

Os construtores também se mantiveram à distância, deixando para atuar posteriormente junto a seus representantes na Câmara Municipal, quando lhes aprouvessem. O setor atua fortemente para derrubar ou adequar leis que não condizem com os interesses daqueles a 

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quem representam. As leis prevalecem na base do “tudo pode desde que não afronte as áreas valorizadas pelo mercado”. Construtores cinicamente ameaçam ir embora da cidade e espalham, nas pessoas menos esclarecidas, o medo de que a imposição de regras poderá gerar desemprego. Tal ameaça não se concretizará porque a demanda persistirá e os lucros são enormes. 

Com a certeza de que a população continuará a crescer, há de se ocupar, dentro da legislação e de forma sustentável, os muitos vazios urbanos, muitos próximos à área central, cercados de infraestrutura. Essas propriedades não cumprem sua função social e se destinam à especulação imobiliária. Não houve prefeito com coragem de cobrar de muitos proprietários o cumprimento da função social da propriedade. A construção civil pode, como felizmente é comprovada por alguns empresários, conviver com o respeito às leis, continuar a lucrar muito e empregar muita gente. A cidade pode crescer de forma mais harmoniosa, não como um tumor maligno.  

Houve poucas melhorias como resultado da legislação, pois elas só começaram a surgir há uns cinco anos nas tipologias das edificações. A produção e reprodução de espaços urbanos continuam dominadas pela forte ação do setor imobiliário. O meio ambiente foi fortemente agredido e moldado de acordo com interesses do setor. Há um grande estrago já feito por conta da invasão das margens dos cursos d’água e das irregularidades espalhas pelo tecido urbano, inclusive nas periferias.  

Há, no entanto, alguns sinais de que algo pode estar mudando na cidade de Viçosa. Embora tarde, mas não tarde demais, a firmeza do Ministério Público na cobrança pela aplicação da legislação ambiental vem confirmar que Viçosa está crescendo de forma errada e ilegal e que algo precisa ser feito. As últimas decisões quanto à negação da permissão para se construir dentro das áreas não edificantes provarão estar corretas e contribuirão decisivamente para alterar o destino da insustentável forma de crescimento que a cidade tomou nas últimas décadas. Agora, a preocupação com o destino do meio ambiente parece encontrar decisivamente o seu amparo legal.  

Este texto é um alerta. Tem‐se de pensar num futuro em que não persistirão as aberrações permitidas e construídas em cima de interesse, privilégio, irresponsabilidade, ameaça e impunidade.  Um dia, não importa em quantas décadas ou qual geração que nos sucederá, os erros deverão ser reparados. É certo que nossa atual geração poderá ser lembrada como mesquinha e inconsequente, mas a nós poderá também ser atribuído o reconhecimento dos erros e o crédito do marco inicial da mudança. 

6 REFERÊNCIAS  

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CONSELHO DAS CIDADES. Resolução nº. 15, de 3 de setembro de 2004. Realizar uma Campanha Nacional de Sensibilização e Mobilização visando à elaboração e à implementação dos Planos Diretores Participativos, com o objetivo de criar cidades includentes, democráticas e sustentáveis. Disponível em: <http://cidades.gov.br/> Acesso em 03 set. 2007. 

CONSELHO DAS CIDADES. Resolução nº. 34, de 1º julho de 2005. Emitir orientações e recomendações ao conteúdo mínimo do Plano Diretor, tendo por base o Estatuto da Cidade. Disponível em: <http://cidades.gov.br/> Acesso em 03 set. 2007. 

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MARICATO, Ermínia. ______. “Reforma Urbana: Limites e Possibilidades. Uma Trajetória Incompleta”. In: RIBEIRO, L. C. Q. e SANTOS JR. O. A. dos (orgs.). In: Globalização e Fragmentação e Reforma Urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de janeiro: Civilização Brasileira. 1994. p. 309‐23. 

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VIÇOSA, Prefeitura Municipal de. Institui o Plano Diretor de Viçosa. Lei Complementar de 1383/ 2000. 

VILLAÇA, Flávio. As ilusões do Plano Diretor. São Paulo: 2005,  94 p. Disponível em: <http://www.flaviovillaca.arq.br/pdf/ilusao_pd.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2010. 

VIÇOSA, Prefeitura Municipal. Lei n.º.  1383/2000. Institui a Ocupação, Uso do Solo e Zoneamento do Município de Viçosa e dá outras providências. 25 mai. 2000. 

______ . Lei n.º.  1420/2000. Institui a Ocupação, Uso do Solo e Zoneamento do Município de Viçosa e dá outras providências. 21 dez. 2000. 

______ . Lei n.º. 1.469/2001. Institui o Parcelamento do Solo do Município de Viçosa e dá outras providências. 20 dez. 2001. 

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7 NOTAS 

 

1 Foi feita uma reunião específica para o setor de construtores e agentes imobiliários. Foram apenas cinco os presentes. Foi realizada uma segunda reunião, com seis presentes. Nenhum deles era de alguma grande construtora, nenhum arquiteto.   

2  Um dos diretores era um construtor de conhecimento prático em obras. Foi escolhido pelo prefeito com a justificativa de que, se o IPLAM não funcionava direito com diretores com formação em nível superior, deveria funcionar com uma pessoa de vivência prática.  

3  O Conselho Municipal de Planejamento de Viçosa (COMPLAN) tem, dentre outras as seguintes atribuições: ‐ monitorar, fiscalizar e avaliar a implementação do Plano diretor; sugerir alterações das normas contidas no Plano Diretor e demais leis municipais correlatas, além de promover a compatibilização com as demais leis municipais, sugerindo modificações em seus dispositivos;  opinar sobre a compatibilidade das propostas de programas e projetos contidos nos planos plurianuais, leis de diretrizes orçamentárias e nos orçamentos anuais;  analisar e emitir parecer sobre as propostas de alteração do Plano Diretor e da legislação municipal correlata. 

4  Cursos de Dança, Engenharia Ambiental, Engenharia Agrícola e Ambiental e de Produção, 1999; Bioquímica, Geografia, História e Engenharia Elétrica, 2000; Educação Infantil em 2006; Comunicação Social em 2005; Enfermagem, Engenharias Mecânica e Química, Ciências Sociais, Licenciaturas em Ciências Biológicas, Química, Física, Matemática, em 2007 e Medicina em 2010. 

5  Fundada em 1999, possuía em 2010 cerca de 550 alunos matriculados em sete cursos de graduação e seis de pós‐graduação. 

6  Fundada em 2005, possuía em 2010 cerca de 1800 alunos matriculados em treze cursos de graduação e doze de pós‐graduação. 

7  Criada em 2001, possuía em 2010 cerca de setecentos alunos matriculados em quatro cursos de graduação e dois em pós‐graduação.  

8  O setor sudoeste da cidade, como região das nascentes do Ribeirão São Bartolomeu, que é juntamente  com seu  receptor Rio Turvo, o responsável pelo abastecimento de água . 

9 O último caso, para a construção de um prédio às margens do Ribeirão São Bartolomeu, foi paga quantia de R$ 26.000,00, o que permitiria a construção de mais de vinte apartamentos dentro da faixa dos 15 a 30metros.   

10  A ZR3 tem o Coeficiente de Aproveitamento máximo de 1,5 (um inteiro e cinco décimos).  A ZR3 tem como índices de ocupação do solo: ‐ Taxa de Ocupação máxima de 50% (cinqüenta por cento) e Taxa de Permeabilização mínima de 30% (trinta por cento). Para a ZR3, o gabarito máximo das edificações será de 4 (quatro) pavimentos. 

11  Art. 1º ‐ O artigo 1º da Lei nº. 1.848, de 26.09.2007, passa a vigorar com a seguinte redação:  “Art. 1º ‐ Fica denominada Avenida Prefeito Geraldo Eustáquio Reis a via pública que tem início depois do número 419 da Rua Carmita Pacheco e término no trevo que dá acesso ao bairro Romão dos Reis.”    Art. 2º ‐ A Avenida Prefeito Geraldo Eustáquio Reis fica assim incluída como Corredor Secundário do Anexo V da Lei nº 1.420/2000.    Art. 3º ‐ Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. 

12 O custo por metro quadrado de um apartamento na área central chegou aos R$4.500,00 no início de 2012.  

13 Em 2002, em  monografia de especialização em Planejamento Municipal, Sérgio Cardoso Pinheiro levantou todos os terrenos vazios  na área urbana de Viçosa e concluiu que a cidade não necessitaria se expandir pelos próximos trinta anos. 

14 Em adição a estes aspectos a demora na aprovação dos projetos, na maioria dos casos normal pela tramitação exigida, irrita aos construtores que não levam em consideração esse tempo em seus cronogramas.

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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade 

Cidades e Afetos: segregação e alteridade  Cities and affections: segregation and otherness  

Maria Luísa M. NOGUEIRA Mestre em Psicologia Social/UFMG; Doutoranda em Geografia/UFMG; Professora do Departamento de Psicologia/UFMG. [email protected] 

RESUMO A partir de uma discussão sobre fragmentação urbana, discute‐se neste texto a questão da segregação, sobretudo em seu caráter simbólico. Pela via da dimensão psicossocial, é possível perceber os aspectos negativos destes processos. Para  tanto, usa‐se não apenas  referências a  casos específicos das  cidades brasileiras,  como  também  a presença deste  tipo de  arranjo urbano  em obras  literárias. Deste modo: Jurerê  Internacional,  em  Florianópolis;  Complexo  Cidade  Jardim,  em  São  Paulo;  Alphavilles;  e  as paisagens  literárias de Altos de  La Cascada,  extraída do  livro As  viúvas das quintas‐feiras, de Cláudia Piñeiro e o Centro, da obra A Caverna, de José Saramago. Objetiva‐se estabelecer uma reflexão sobre a dimensão simbólica das cidades, tendo como base as imagens colhidas nas paisagens citadas acima e a ideia de que o espaço é político, conforme pensam Henri Lefebvre e Milton Santos. Admitir a dimensão política do espaço é reconhecer a importância da diferença, o que nos encaminha a refletir sobre como a vivência da alteridade hoje resvala na produção do que aqui foi denominado como alteridade cosmética. PALAVRAS‐CHAVE: cidade, segregação, alteridade, subjetividade, imaginário. 

ABSTRACT  Questioning  the  urban  fragmentation  issue,  this  paper  discuss  the  symbolic  matter  of  segregation. Through psychosocial dimension it is possible to apprehend the negative aspects of these proposals. For this purpose we   borrow not only  specific  cases of Brazilian  cities, as urban arrangements on  literary works. Thus: Jurerê Internacional in Florianopolis, Complexo Cidade Jardim in São Paulo; Alphavilles, and the  literary  landscapes  such as Altos de  la Cascada,  from Claudia Piñeiro book As viúvas das quintas‐feiras and the Center, from the book A Caverna of Jose Saramago. The goal is to establish a reflection on the symbolic dimension of cities, based on images taken in the landscapes mentioned above. As a way to dive  into  this  problematic  field, we  discuss  and  raise  reflections  from  the Henri  Lefebvre  and Milton Santos works,  such  as  the  idea of  space  as  political. Acknowledge  the political  dimension of  space  is recognize the importance of difference, leading us to think about how today the experience of otherness became,  as this paper calls, a cosmetic otherness. KEYWORDS: city, segregation, alterity, subjectivity, imaginary 

Diversos autores já apontaram para as consequências negativas dos processos de fragmentação da trama do tecido urbano, evidentes na autossegregação das elites, não apenas na produção dos enclaves fortificados – como denominou Teresa Caldeira (CALDEIRA, 2003.) ou urbanizações privadas (SVAMPA, 2004). Eles também se fazem presentes em estratégias variadas como a inserção de guaritas e cancelas nas ruas da cidade (privatização branca1); marcam também, de acordo com Marcelo Lopes de Souza, a territorialização de favelas pela questão do tráfico” (SOUZA, 2008, p. 58). Exclusões e autoexclusões participam, pela via do medo, na conformação de um tipo de experiência urbana2, marcada por uma alteridade cosmética.  

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Há muito tempo a teoria urbana já fala de segregação. Em publicação recente, Lúcia Maria Bógus dedica um texto inteiro à discussão desse léxico e suas diversas análises, ao longo da conformação das várias vertentes da teoria urbana, desde os últimos cem anos e passando por várias disciplinas. A autora faz um trabalho interessante e aponta a seguinte conclusão, informando a necessidade do aprofundamento da questão e sua consequente ação, em termos de políticas públicas: 

[...] os estudos sobre segregação espacial acabam invariavelmente apontando para as consequências negativas do isolamento involuntário de grupos sociais em determinados espaços das cidades, quaisquer que sejam as causas desse tipo de isolamento. Mesmo nos casos de isolamento voluntário dos grupos de alta renda em condomínios residenciais, as desvantagens podem ser apontadas em relação às limitações impostas às formas de sociabilidade, que em muitos casos se restringem às áreas intramuros (Caldeira, 2000) ou a elas contíguas, como reação de defesa a outro tipo de sociabilidade que vem se instalando nas cidades do terceiro mundo, a sociabilidade violenta, maior em áreas segregadas de baixa renda, que se apresenta como uma ameaça aos habitantes dessas cidades, como um todo.  (BÓGUS, 2009, p. 123). 

O importante a colocar em relevo no pensamento de Lúcia Maria Bógus, a meu ver, é justamente a multiplicação das consequências negativas dos processos de segregação que engenhamos. Contudo, há duas ressalvas importantes a marcar: em primeiro lugar, parece pouco afirmar que a segregação voluntária expressa‐se apenas como “reação de defesa” a uma possível “sociabilidade violenta”. Ainda que esse desejo de defesa seja um elemento inegável na escolha das famílias de renda média e alta pela moradia isolada, isto é, o desejo de se afastar da violência da e na cidade, penso que seja preciso reconhecer que é justamente esse movimento (de segregação) um eixo fundamental da própria violência – o que só pode ser compreendido se tomamos a violência numa compreensão mais ampla do fenômeno. Portanto, me parece importante sublinhar que, se querem dela se afastar, não deixam de participar de seu fomento. Em segundo lugar, no mesmo raciocínio, o que a autora chama de sociabilidade violenta não é exclusividade das cidades dos países chamados de terceiro mundo (se é que podemos ainda manter essa nomenclatura).  

No livro A Caverna, José Saramago conta os efeitos da opacidade da vida vivida no Centro, mesmo para  aqueles que (ainda) lá não vivem. 

Creio que a melhor explicação do Centro ainda seria considerá‐lo como uma cidade dentro de outra cidade, Não sei se será a melhor explicação, de qualquer modo não é suficiente para que eu perceba o que há dentro do Centro, O que há é o mesmo que se encontra numa cidade qualquer, lojas, pessoas que passam, que compram, que conversam, que comem, que se distraem, que trabalham, [...] é curioso que cada vez que olho cá de fora para o Centro tenho a impressão de que ele é maior do que a própria cidade, isto é, o Centro está dentro da cidade, mas é maior do que a cidade, sendo uma parte é maior que o todo, provavelmente será porque é mais alto que os prédios que o cercam, mais alto que qualquer prédio da cidade, provavelmente porque desde o princípio tem estado a engolir ruas, praças, quarteirões inteiros. (SARAMAGO, 2000, p. 258)  

Ruas, praças e quarteirões inteiros podem desaparecer num instante. Foram engolidos? Crescer, crescer, crescer. Crescer para desenvolver. Para Henri Lefebvre: “Sabemos (e repito insistentemente) que o desenvolvimento e o crescimento não coincidem, que o crescimento não conduz automaticamente ao desenvolvimento” (LEFEBVRE, 2008, p. 161). É ao gosto (e gozo) feroz da especulação imobiliária que o cenário urbano muda sempre e rapidamente. Morrem casas todos os dias. Enterra‐se o rio, mais ou menos lentamente. A qualidade da vida urbana muda em vários sentidos – forma, conteúdo, escala, sentido. Inventam‐se e 

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reinventam‐se arranjos de moradia, trabalho, lazer. Nascem cidades dentro da cidade, cidades fora da cidade, pseudo‐cidades maiores que a cidade, indiferentes a ela. O Centro cresce todos os dias (SARAMAGO, 2000, p. 281.) transporta para seu interior os usos antes próprios da vida urbana – cinemas e teatros, discotecas, jardins, igreja, praia, zoológico, cascata (SARAMAGO, 2000, p. 277), entre diversos outros componentes observados pelos personagens de José Saramago. Trata‐se de eliminar da cidade o que não pode ser previsto e controlado. Trata‐se de um simulacro3 de cidade. Uma cidade falsa? 

Nuances desse tipo de proposta aparecem e desaparecem em ofertas diversas de tudo um pouco, moradia, transporte, intimidade, privacidade, segurança, controle, anestesia. Instituir protocolos de contato. Fixar memórias em imagens estáticas. Pesar o tempo. Controlar, vigiar, militarizar. Nada disso é novidade, já faz parte da esfera imaginária desde, pelo menos, Admirável Mundo Novo, 1984, Alphaville4. Talvez seja relativamente novo5 encontrar condições materiais à mão para fabricar esses modos de viver. Não ser afetado: morar, trabalhar, consumir sem estabelecer contato com a cidade. Fazer do shopping, a rua. Obrigar a rua a ceder à estética do shopping.  

São arranjos urbanos chamados, por exemplo, de “condomínio do tipo cidade”, amparados na proposta de “ter tempo” para viver a cidade, sem precisar dela – afinal, trata‐se, talvez, de uma “cidade própria”6, uma “minicidade”7. Em São Paulo, o complexo Parque Cidade Jardim parece oferecer justamente esse modelo de desconexão à cidade. Seu slogan é previsível: isto é inédito, ainda que não seja efetivamente nada tão novo ou original8. Praça particular. Bosque particular. Rua particular. “Sustentabilidade” e “personal shopper”9. Vista para o rio, ou o que um dia foi um rio. Shopping ao ar livre, “de frente para um jardim”, o jardim dos outros – aquele mesmo, que é sempre mais bonito. Em 2 anos, todos os luxuosos apartamentos (325 unidades) das torres residenciais estavam vendidos, um terço do tempo previsto pela incorporadora10; o consumo das torres comerciais também foi recorde.  

Cidades de tantas torres. Torre: topo do mundo. Observar sem ser visto. Ser forte e pronto para a guerra. Uma torre deve ser alta, fortificada. Se há de fato uma verticalidade considerável, pensando na escala da cidade, talvez o preponderante na proliferação do uso desta denominação seja a dimensão simbólica que sustenta o léxico: lugar protegido, fortificado, enclausurado, pronto ao combate. Este modelo de arranjo urbano prolifera‐se, radicaliza a ideia de Henri Lefebvre sobre a sociedade urbana, sobre como o urbano corrói os tecidos da vida agrária (LEFEBVRE, 2008). Parece que os tecidos urbanos veem‐se, eles mesmos, cada vez mais esgarçados por um arranjo que nega a própria cidade.  

Não estamos apenas nos domínios do medo, estamos no reino do conforto. O conforto é da família da ordem, já o acaso é companheiro da desordem. E para Beatriz Sarlo a cidade é território aberto (SARLO, 2009, p. 21)11, disponível a vivências múltiplas; um artefato delicado, resistente e complexo que carrega em si um potencial diabólico de desordem.  

A desordem, característica tão evidente de nossos movimentos no tecido urbano, do próprio movimento das cidades ao longo da história, vem sendo vivida como indesejável. Contra ela vem sendo desenvolvido um mundo de tecnologias de controle e previsibilidades vigilantes. Repelir a desordem, ou dominá‐la, significa o esvaziamento dos encontros, bem como a eliminação discreta da cidade. Com uma tipologia que persegue a “perfeita adequação entre 

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finalidade e disposição do espaço” (SARLO, 2009, p. 13)12, a ambição do shopping, por sua vez, ainda segundo Beatriz Sarlo, é justamente substituir a cidade: mais do que se contrapor a ela, ele transpõe em seu interior, de forma revista e selecionada, usos e serviços, sempre tangenciados pelo consumo e pelo conforto. Prolonga‐se, assim, ad nauseam, uma superfície de homogeneidade, na qual a posição do sujeito diferente é sempre modificada para a de inimigo, aquele que ameaça. Porém, é claro, o outro é e sempre será, de fato, uma forma de ameaça. Há uma ameaça necessária. É pelo encontro com o olhar do outro que saímos de um equilíbrio psíquico postiço, do mesmo de nós mesmos. O outro é capaz de nos convidar ao devir, à saída da manutenção identitária. O outro, que nos convida à vivência da diferença, base da experiência de alteridade, tão importante à produção subjetiva.  

Está claro que a semelhança e homogeneização são bases do conceito que estrutura este tipo de arranjo urbano, ainda que, contraditoriamente, venda exclusividade, diferença. “É o paradoxo de nosso mundo: ser igual quando tudo aponta para (ou facilita) singularizações e singularizar‐se quando tudo se encaminha para grandes formações homogêneas” (BRANDÃO, 2002, p. 138). Assistimos a um deslocamento abrupto ente singularidade e homogeneização, conforme sugere a cartografia feita por Ludmila de Lima Brandão no livro A Casa Subjetiva: “Casas querendo ser iguais a..., fazendo parte de tribos. Casas querendo ser diferentes de..., o sonho de ser famoso, único” (BRANDÃO, 2002, p. 27). Nada mais igual que um shopping. Quer ser inédito, mas é sempre mais uma reedição. Para Teresa Caldeira: 

Essas tecnologias incluem a ubiquidade dos muros, sua inserção em complexos sistemas de vigilância e distinção, privatização e comoditização da segurança e a naturalização de mecanismos de controle. Essas novas tecnologias do público tornaram a desigualdade e a segregação naturais. O público que elas criaram, inerentemente desigual, não apenas distancia grupos sociais, mas trata essa separação como desejável” (CALDEIRA, 2011, p. 217). 

Os enclaves fortificados segundo Teresa Caldeira carregam a segregação social como um valor. Nesse tipo de ordenamento socioespacial, em que são facilmente enquadrados condomínios fechados e shoppings, a marca é a da seletividade e separação; ali, reduzem‐se substancialmente as “interações cotidianas entre habitantes de diferentes grupos sociais.” (CALDEIRA, 1997, p. 174).  

Na cidade de Florianópolis, em Jurerê Internacional, os muros são proibidos. Entretanto, estão ali, ocupando outra materialidade – eles simplesmente não são necessários pois o bloqueio à diferença já está inscrito socioespacialmente. Trata‐se da produção de um espaço reservado às camadas de alta renda do Brasil (não só de Florianópolis) aparentemente aberto, mas pouco acessível. Essa localidade, de forte carga imagética, parece ter muito a dizer sobre o universo privado. Chama atenção o sobrenome recentemente agregado: internacional – sugerindo a transposição de limites e fronteiras, a ida ao exterior, a entrada em uma cultura distinta. A formalidade impressa no nome torna o outro um estrangeiro ali – Internacional. Entretanto, o uso do termo não respeita a ideia de exterioridade implícita na noção, antes, seu emprego não diz respeito ao fora, mas sim à produção de uma distinção que, mesmo na ausência de muros, busca o mais dentro: o fechamento, a seleção, a particularidade. 

Os lugares possuem uma força singular na espacialização social. O mundo dos lugares é um mundo de elementos que parecem intangíveis: o cotidiano, o simbólico, a 

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subjetivação. É justamente nos lugares que a experiência subjetiva acontece como produção de sentido, movimento e diferenciação – um processo que exige o mergulho permanente no conflito, no encontro com o outro, com os lugares dos outros. Por isso, os lugares são permeados de dissenso, permitindo a emergência das contradições e fazendo conviver dialeticamente os elementos de que se tece a vida. 

Milton Santos fundamenta a ideia de que partimos sempre de um lugar, de onde vemos o mundo, como parece testemunhar o livro As Viúvas das quintas‐feiras de Claudia Piñeiro. O cotidiano de seus personagens revela‐se profundamente marcado pelo lugar, Altos de la Cascada, ele mesmo um personagem de destaque na história.  Entretanto, os moradores de La Cascada parecem apenas existir sob a condição de pertencerem àquele lugar, onde aparentemente a cidade emerge pelo seu avesso, sua negação:  

Todos os que viemos morar em Altos de la Cascada dizemos ter feito isso buscando ‘o verde’, a vida saudável, o esporte, a segurança. Com essa desculpa, inclusive diante de nós mesmos, acabamos por não confessar por que viemos. E, com o tempo, já nem nos lembramos. A vinda para La Cascada produz um certo esquecimento mágico do passado. O passado que resta é a semana passada, o mês passado, o ano passado, “quando jogamos o intercountry e ganhamos”. Vão‐se apagando os amigos da vida inteira, os lugares que antes pareciam imprescindíveis, alguns parentes, as recordações, os erros. Como se fosse possível, em certa idade, arrancar as folhas de um diário e começar a escrever um novo. (PIÑEIRO, 2007, p. 25)  

As desculpas se sustentam em justificativas frágeis e terminam por substantivarem‐se em modos de vida. Com o tempo, esquecemos as origens deles, naturalizamos modos de morar, de ver o mundo, de passar o tempo. O modo de viver é um modo de significar o mundo, de simbolizar a vida, de subjetivar. É sentir, pensar, organizar a vida, as memórias, os afetos, os encontros. Por que, atualmente, as pessoas parecem gostar tanto de passarem suas vidas em idas e vindas a shoppings? Por que o desejo tão disseminado pelos condomínios fechados? Não parece ser apenas a questão da segurança, ainda que ela não seja desprezível. Parece haver uma conotação de adequação neste modelo, é isso que que se deve desejar. O que reitera uma questão central: por que a escolha parece ser primariamente dirigida pela dimensão do privado? Mais do que pensar o shopping e o condomínio, cabe refletir sobre o que os sustenta.  

O livro de Claudia Piñeiro termina como uma interrogação, a mesma que este texto persegue: “Está com medo de sair?” (PIÑEIRO, 2007, p. 252). Interrogação que leva a outras tantas: podemos viver uma alteridade cosmética? Isto é, podemos nos relacionar com o outro, com a diferença, com a política, de modo controlado, segregacionista, previsível, narcisista? Temos medo do outro? O que o outro nos diz sobre nós mesmos? Será possível pensar que determinadas políticas de espacialidade contemporâneas são capazes de recusar o conflito?  

Em Altos de la Cascada, a cidade emerge como sua negação. Na extinção de lembranças, a radicalização da fragmentação da cidade. Vive‐se o ausência do acaso – esse elemento que integra a cidade e seus encontros –, nutre‐se a elisão do imprevisível e a conversão do risco em regularidade, ainda que submersas numa aura de naturalidade e espontaneidade: 

Não há cercas retas cortadas com precisão para imitar paredes verdes. Nem arbustos arredondados. As cercas são cortadas desigualmente, como que descabeladas, para que pareçam naturais, embora a poda tenha sido meticulosamente estudada. À primeira vista, essas plantas mais parecem um casual acidente geográfico entre vizinhos do que barreiras colocadas de propósito para marcar um limite. Ainda que o sejam e que esse limite só possa ser insinuado por 

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plantas. Não são permitidos alambrados, grades e muito menos paredes. Exceto o alambrado perimetral de dois metros de altura que corre por conta da administração do bairro, e que logo será substituído por um muro que satisfaça as novas normas de segurança. [...], anda‐se em qualquer hora, por qualquer lugar, com absoluta tranquilidade porque nada de ruim pode acontecer. (PIÑEIRO, 2007, p. 22)  

Estética feita para parecer, minuciosamente, espontânea e casual. A marcação de limites é propositalmente disfarçada. Os muros são para o lado “de fora”, para o outro, diferente. Antes, por causa dele. O que se passa entre os muros? Recusa da cidade? É possível afirmar que haja ali a negação da experiência urbana? Certamente, há a redução dos encontros, o empobrecimento da experiência social no assoreamento das trocas, na tirania da regulamentação, tributária do medo da cidade e do medo na cidade13 (SARLO, 2009, p. 23), preocupação central que alimenta as espacialidades urbanas contemporâneas, segundo Beatriz Sarlo.  

O tempo, uma das novas raridades, sugere Henri Lefebvre (LEFEBVRE, 2008). É justamente tempo o maior atrativo e o melhor produto do complexo Parque Cidade Jardim, ele vende tempo. Para Henri Lefebvre, o espaço envolve o tempo (LEFEBVRE, 2008). É isso que a incorporadora parece perceber e fazer muito bem: quando se compra um espaço, compra‐se igualmente uma distância, um emprego do tempo: 

O tempo, bem supremo, mercadoria suprema, se vende e se compra: tempo de trabalho, tempo de consumo, de lazer, de percurso, etc. Ele se organiza em função do trabalho produtivo e da reprodução das relações de produção na cotidianidade. O tempo “perdido” não o é para todo mundo, pois é preciso pagar caro por ele. (LEFEBVRE, 2008, p. 50) 

Portanto, parece haver aquele que pode comprar tempo. Espaço‐tempo que vincula‐se à reprodução das relações sociais de produção, ainda de acordo com Henri Lefebvre. Não se trata, portanto, de demonizar esse determinado modo de vida, afinal, ele não existe desvinculado da sociedade como um todo, dos modos de vida possíveis. É apenas uma questão de escala. As mesmas substâncias que conformam o cotidiano no Parque Cidade Jardim, ou Alphaville, ou Jurerê Internacional, ou Altos de la Cascada estão presentes no meu cotidiano. Aquele que faz, efetivamente, essa opção de vida responde ao imaginário construído por todos (KEHL, 2008, p. 294 )14. Todos nós contribuímos em maior ou menor medida à existência de espaços‐tempos de segregação, ainda que seja na posição de impossibilitados de obtê‐los, o que é a essência de sua valorização, nossa impossibilidade é o que os torna tão desejáveis. Deste modo, cabe lembrar que algumas condições socioespaciais foram necessárias para essa opção nascer como arranjo urbano. Elas estão presentes na cidade como um todo. A condição de possibilidade deste arranjo foi fundada em gestos e signos que dizem respeito à nossa relação com o mundo. 

As imagens urbanas são tecidas de elementos diversos – política, história, poética, memória, uso sucessivo e contínuo que transformam espaços. A cidade é preenchida por um imaginário, compartilhado por habitantes e visitantes. Esse imaginário é permeado pelos diversos usos do espaço urbano. Ele nunca é constituído abruptamente, mas sim pelos modos de olhar a cidade que vão se configurando ao longo dos tempos, em horizontes de enunciação, na co‐habitação de conceitos, na proliferação de imagens mais ou menos similares. 

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O corpo da cidade é feito de aderência, colagem incessante das imagens colecionadas na órbita tempo‐espaço: o que se vê, o que se esconde, o modo de olhar. Essas imagens são produzidas a partir do que o olhar encontra, não apenas pelo que ele constrói. Toda imagem é construída no jogo do olhar: o que se emoldura em suas urgências; a ação das forças do mundo sobre minha história; o ângulo e o lugar de onde se vê; o instante fixado na memória, no papel, da câmera fotográfica, no corpo. O imaginário, justamente o que compartilhamos na cidade, é uma dimensão afetiva do mundo. Constrói‐se por sensações e sentimentos, pelas curiosidades do corpo. Essa dimensão simbólica, que constituí o imaginário, não se decreta, pois ele é constituído nas condições de encontro. Ele é feito dos diferentes usos do espaço da cidade, a partir de nossas perspectivas e experiências singulares, tecidas por nosso olhar.  

O imaginário urbano hoje parece ceder à primazia de imagens negativas: a cidade do medo, da paranóia, da vigilância, dos muros. Esses elementos, somados a outras substâncias, alimentam a produção desses arranjos urbanos que voltam para si mesmos, onde conectam‐se shoppings, condomínios fechados, arquitetura do medo, indústria da segurança, conforto constante e anestésico, o medo do outro. Parece ser difícil deixar marcas na cidade, participar de sua vida, produzir memória, fazer cidade. Parece que ela já está pronta, a memória já está dada (substituída), os caminhos já estão traçados – e tomados – e temos apenas que responder, adequadamente, a isso. Para tanto, multiplicam‐se regras, polícias, dispositivos de controle, segregação e vigilância. Imagens prontas, editadas. Se a cidade nos habita, ela é, ao mesmo tempo, produtora da vida, marcando cotidianamente suas possibilidades, seus trajetos e, ainda, os modos de subjetivação que aí se tecem. Se as subjetividades são construções sociais, composições, elas se arranjam a cada meio‐fio da cidade, às suas guias, às pedras que a modelam; integram cada intervalo socioespacial, irrompendo em corpo. Uma noção mais radical de alteridade se obtém deste modo, aquela em que a subjetividade ressoa imóvel, indisposta, hermética. 

Nessa cidade, queremos um pouco de cada coisa, queremos apenas um pouco do outro – a porção dele que se encaixa explicitamente às minhas necessidades – de satisfação, reconhecimento e afirmação de quem sou, dada por contraste, por desqualificação. Queremos do outro, e dessa cidade, aquilo que se ajusta a mim sem grandes desgastes, sem maiores conflitos. Eu preciso que o outro exista, mas na medida certa. Eu desejo a cidade, mas não tudo que ela contém. A cidade inteira é impossível e insuportável.  

Maria Rita Kehl discute o empobrecimento da experiência subjetiva, presente na emergência da depressão como um sintoma social, por esse que entendemos como um temor da heterogeneidade – radicalização da clássica definição do que Freud denominou narcisismo das pequenas diferenças15. Em seu último livro O tempo e o cão (KEHL, 2009) a autora discute a depressão como um sintoma social contemporâneo. Um sintoma social é um modo de comportamento, de pensamento, de estilo subjetivo que vai à contramão da norma social de seu tempo, por isso, a tristeza é uma anomalia. A depressão seria um sintoma por ser estranha ao modo de funcionamento de nossa sociedade, que é o do gozo imperativo, cuja regra é a euforia e o conforto permanentes. Não basta, ainda, nessa sociedade, ser único: há que se ser especial. A autora indica como diversas propagandas que evidenciam a produção de gozo, por meio da produção de si como um sujeito especial. O mesmo processo que podemos ler no 

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espaço urbano, em que prevalece a desqualificação de determinadas regiões da cidade para a produção de lugares valorizados. A desqualificação se dá por vias diversas, tais como a dificuldade e/ou precariedade de acesso a bens e equipamentos públicos e a distância às centralidades urbanas, mas ela se efetiva também por dispositivos simbólicos, na afirmação midiática de determinadas parcelas que adquirem estatuto nobre, seja pela invenção de imagens seguras (mesmo que não o sejam) e, sobretudo, como locais conexos ao sistema urbano (novamente, mesmo que não sejam, já que regiões valorizadas também apresentam problemas de trânsito e afins). Interessa sublinhar que a valorização de uma parcela do solo costuma se dar em detrimento de outras. Seja como for, a especulação urbana desempenha papel importante neste movimento. Ela é produtora de imagens importantes das cidades, nomes e palavras que circulam e se multiplicam em propagandas de moradias, matérias de jornais e revistas de grande circulação enaltecendo memórias e futuros, deliberando onde é, de verdade, o coração da cidade, onde se deve desejar morar.  

As contradições do urbano, já apontadas por Henri Lefebvre (LEFEBVRE, 2008; 2006), os possíveis‐impossíveis da cidade, podem ser encontrados na pluralidade da cidade. São diversas as cidades da cidade e elas se atravessam, conformando aquele imaginário da cidade, cujo tecido também é feito de pluralidade, compartilhado por seus habitantes e visitantes. 

(…) a cidade não se faz na sua inteireza, a um tempo só, mas ela se faz anacronicamente, nos lugares da inteireza idealizada, presente nas cartografias ideais que preenchem os imaginários e os desejos de ter o mundo nas mãos ou nos mapas. Assim, como não há a cidade inteira, também não há a cidade que se faz completa e a um tempo só. A cidade é sempre incompleta, e vai se resolvendo no ritmo dos fazeres distintos, tal como são compreendidos, em sua distinção, desde que eles estejam subordinados à prevalência da racionalidade cartesiana em detrimento das subjetividades. (HISSA & WSTANE, 2009, p. 89) 

Os ideais de cidade, os sonhos, os medos, os pertencimentos. As subjetividades e as racionalidades. As cartografias sensíveis e as cartografias cartesianas. A cidade existe em processo inacabado, tramado nas diversas ações do cotidiano, feito também do que rezam os especialistas. Os usos, a despeito das racionalidades, preenchem os espaços e produzem subjetividades. Contudo, as teorias sobre cidade – teorias que, em sua maioria, se pautam no cartesianismo – não costumam dar conta disso, da incompletude da cidade, de sua pluralidade. Em geral, as teorias não sabem ver as cidades da cidade. Talvez lhes falte reintegrar a utopia a seu corpo, perceber os ausentes e os outros possíveis – a imaginação, matéria prima da arte. Incorporar a utopia é o que os Situacionistas chamaram de imaginação da ausência: 

A pavorosa falta de idéias que possa se reconhecer em todos os atos da cultura, da política, da organização da vida e de tudo mais, se explica por esta mesma razão, e a debilidade dos construtores modernistas de cidades funcionais não é mais que um exemplo particularmente visível. Os especialistas inteligentes só têm inteligência para jogar o jogo dos especialistas: daí o conformismo medroso e a falta fundamental de imaginação que os fazem admitir que tal qual a produção é útil, boa, necessária. Na realidade, a raiz da falta de imaginação reinante não pode compreender‐se se não unir‐se à imaginação da falta; quer dizer, conceber o que está ausente, proibido e oculto, e é por tanto possível na vida moderna. (I.S., 1962, p. 10, grifo meu)16  

Onde moram as utopias de hoje? As utopias desabam quando se conformam em objetos de consumo. Não é a utopia que os condomínios fechados querem vender? De acordo com o pensamento de Carlos Fortuna: “O colapso da utopia impede‐nos, assim, de concretizar alternativas que não sejam as propaladas pelas fantasias tecnológicas da cultura do consumo e da lógica da acumulação” (FORTUNA, 2008, p. 18). 

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O privado se insinua não apenas no que diz respeito ao capital, tão evidente na cidade – de acordo com Carlos Vainer, o interesse privado dos capitalistas (VAINER, 2002, p. 88)  – mas, também, no que parece se colocar como elemento compositor de um modo hegemônico da experiência subjetiva: privar‐se do outro, do risco da alteridade; da política, como possibilidade do dissenso; viver o temor da heterogeneidade, a busca pelo gozo constante e pela segurança (KEHL, 2003; 2009), na sociedade de consumo imperativo; privar o outro de movimentar‐se nessa sociedade; deixar enrijecida a dinâmica social. Carregamos em nós a privatização, não a sofremos simplesmente. O processo de privatização é trivialmente legível nesses territórios que produzem arranjos urbanos alisados, limpos, previsíveis e controláveis, feitos de conforto e semelhança. Porém, ficarmos restritos a esse tipo de arranjo espacial é insuficiente. Antes do muro, está o projeto, gravado nas formas de viver, marcado por propostas de segregação. O muro talvez seja apenas o índice. 

Recusar a homogeneização sutil mas despótica em que incorremos às vezes, sem querer, nos dispositivos que montamos quando os subordinamos a um modelo único, ou a uma dimensão predominante. Aceitar esse paradoxo de que quando um dispositivo está dando certo demais é que ele já não serve mais, que quando um grupo está demasiadamente bem sucedido alguma processualidade foi emperrada, que quando entendemos muito bem é porque deixamos de entender um bocado, que quando estamos muito sãos é porque já estamos muito é neuróticos. (PELBART, 1993, p. 23) 

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PELBART, Peter Pál. A nau do tempo‐rei: 7 ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 

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NOTAS 

1 O autor afirma perceber que “vários tipos de interação diminuem (e até tendem a desaparecer) ou tornam‐se (muito) mais seletivos.” (SOUZA, 2008, p. 58) 

2 Seria possível incluir diversos outros itens presentes na conformação das espacialidades urbanas (como o urbanismo, por exemplo, na leitura de Robert Pechman (PECHMAN, 2002), entre outros (FISHMAN, 2004). Porém, construir uma lista exaustiva de tais elementos não parece enriquecedor. A opção, no momento, é por uma aproximação sensível a uma determinada nuance da questão, de caráter simbólico e material. 

3 A ideia é emprestada de Jean Baudrillard (BAUDRILLARD, 2008), para quem simulacro é um engodo que traz a presença da coisa na forma de representação. O autor usa o termo, portanto, com forte conotação negativa. 

4 Respectivamente: Aldous Huxley, 1932; George Orwell, 1949; Jean‐Luc Godard, 1965. 

5Copan/SP, Edifício JK/Belo Horizonte são projetos que, originalmente, esboçaram matizes deste modelo, ainda que inseridos em outros projetos ideológicos. 

6 Referência ao Complexo Cidade Jardim, em São Paulo. De acordo com depoimento de moradores, do incorporador e da fala do repórter da Rede Globo no Programa Mundo S/A sobre esse tipo de arranjo urbano. Exibido em 2012. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=8‐‐MiyHzdYA&feature=related. Acessado em 4 de maio de 2012. 

7 Matéria Eles vão morar no shopping. Revista da Folha. Folha de São Paulo, 6 de julho de 2008. 

8 São diversos os empreendimentos, espalhados pelo mundo, que se baseiam neste modelo: Roppongi Hills/Tóquio; Kuala Lampur City Center; Time Warner Center/NY. Ainda em São Paulo o Parque Villa Lobos possui as mesmas características do Complexo Cidade Jarim. Na Flórida, Celebration (Celebration Community Development District,) cidade lançada pela Corporação Disney com notório sucesso nos anos 90 , viveu, cabe registrar, acontecimentos recentes que  mancharam a imagem fantasiosa de perfeição, segurança e controle criada pela estética Disney, a saber: um suicídio e um assassinato. Informação disponível em:http://www.guardian.co.uk/world/2010/dec/13/celebration‐death‐of‐a‐dream. Acessado em 10 de Maio de 2012. 

9 Propaganda do Parque Cidade Jardim. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=V57fB9i0ivA&feature=related. Acessado em 4 de maio de 2012. 

10 Depoimento de José Auriemo Neto, presidente da Incorporadora JHSF, ao Programa Mundo S/A – Rede Globo, 2010. Cabe registrar que um dos próximos lançamentos da Incorporadora é o Dona Catarina, o projeto de uma cidade para 60 mil habitantes, em São Roque, a km de São Paulo (Os inovadores do boom imobiliário. Revista Época Negócios, junho de 2008, p. 94; O senhor do luxo Dinheiro 23/11/2011, p. 74). 

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11 “[...] la ciudad es un território abierto a la exploración por desplazamiento dinámico, visual, de ruidos y de olores: es un espacio de experienciais corporales e intelectuales; está medianamente regulado pero también vive de las transgresiones menores a las reglas [...].” (SARLO, 2009, p. 21) 

12 “Sólo una tipología, la del shopping center, resiste ao principio diabólico del desorden, exorcizado por la perfecta adecuación entre finalidad y disposición del espacio” (SARLO, 2009, p.13). 

13 “[...] la inseguridad, que fue siempre um tema urbano (...), se convertió en uma preocupación central: el miedo de la ciudad y el miedo en la ciudad, el exódo a barrios cerrados, a enclaves que simulan aldeas, a suburbios bajo control, el abandono de los espacios abiertos a causa de sus acechanzas.” (SARLO, 2009, p. 23) 

14 “O que faz de São Paulo, por exemplo, uma cidade compartilhada, com características comuns entre todos os seus 12 milhões de habitantes? É o imaginário urbano.” (KEHL, 2008, p. 294) 

15 Sobre narcisismo das pequenas diferenças: “... unir uns aos outros pelos vínculos do amor, uma imensa massa de homens, com a única condição de que alguns fiquem de fora para serem alvo de ataques.” (Cf. Freud, S.‐ E.S.B.‐ Vol. XI ‐ Pág.184). 

16 “This explains the astonishing lack of ideas evident in all the acts of culture, of politics, of the organization of life, and in everything else — the lameness of the modernist builders of functionalist cities is only a particularly glaring example. The intelligent specialists are intelligent only in playing the game of specialists; hence the timid conformity and fundamental lack of imagination that make them grant that this or that product is useful, or good, or necessary. The root of the prevailing lack of imagination cannot be grasped unless one is able to imagine what is lacking — that is, what is missing, hidden, forbidden, and yet possible, in modern life.” (I.S., 1962, p. 10) 

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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade 

Direito de propriedade e propriedade sem direito: o caso da ocupação “Dandara” em Belo Horizonte. 

Property rights and property without law: the case of informal settlement movement “Dandara” in Belo Horizonte. 

Luiz F. G. ALMEIDA Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Servidor da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional e Política Urbana de Minas Gerais. [email protected] 

RESUMO O presente  trabalho  tem  como objetivo  traçar e  sugerir  reflexões a  respeito do  conceito de direito à propriedade e os rebatimentos e implicâncias de tal compreensão no que concerne ao acesso á moradia dita  formal.  Para  isso,  o  recorre‐se  no  ensaio  à  observação  e  relato  das motivações,  organização  e perspectivas do assentamento informal “Dandara” localizado na Região Norte Belo Horizonte. Observa‐se que os participantes do movimento por meio da adequação da forma de organização do espaço físico da ocupação ás normas  formais do município presentes em seu Plano Diretor, têm como objetivo não apenas o Direito (acesso) à propriedade, mas também, à propriedade com “direito”. 

PALAVRAS‐CHAVE: direito à propriedade; propriedade privada; Dandara. 

ABSTRACT This paper aims to outline and suggest reflections on the concept of property rights and the repercussions and implications of such an understanding with regard to access to housing formal dictates. For this, the test relies on the  observation  and  reporting  of motivations,  organization  and  prospects  in  informal  settlement  "Dandara" located  in  the  North  Belo  Horizonte.  It  is  observed  that  the  participants  of  the  movement  through  the appropriateness of the form of organization of physical space occupation ace formal standards present in the city Master Plan, are aimed not only the law (access) to the property but also the property with "right". 

KEYWORDS: property rights, private property; Dandara. 

1 INTRODUÇÃO: 

O presente trabalho tem como objetivo traçar e sugerir reflexões a respeito do conceito de direito à propriedade no qual se baseia o planejamento urbano de forma geral e os rebatimentos e implicâncias de tal compreensão no que concerne ao acesso á moradia dita formal.  

Ao discutirmos a noção de direito, percebemos que a mesma distingui‐se, sobretudo em duas formas principais. A primeira, a qual revela o direito como reconhecimento da necessidade dos indivíduos para sua sobrevivência e a segunda, correlata à primeira, a qual toma o direito em seu sentido legal, como o instrumento que garante e legitima o acesso a dado bem ou recurso. Tais conceituações necessariamente deveriam caminhar de forma conjunta como meio de produzir uma plena realização do indivíduo no espaço de sua sobrevivência. Em palavras, é preciso mais que do que o reconhecimento de determinada necessidade1, mas também a formulação de práticas e especificações que regulem o acesso imperativo a tais provisões. 

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Embora a aglutinação das noções acima referidas demonstre‐se como indispensáveis na construção de um cenário ideal e sustentável de vida, nem sempre a mesma acontece. O caso dos assentamentos precários e informais é exemplar nesse sentido, configurando‐se naquilo que denominamos no presente trabalho como Direito de propriedade em meio a uma propriedade sem direito. Nas chamadas terras irregulares ‐ propriedades à margem da regulação do direito ‐ reconhece‐se, por motivos lógicos, a necessidade do indivíduo ao acesso à propriedade para fins de moradia e habitação no espaço físico urbano, ao mesmo tempo em que não se manifesta de imediato o reconhecimento do direito, como prática legal, da posse de determinado terreno. 

Nas seções que se seguem a esta introdução, a discussão acima apresentada será realizada tendo como objeto empírico de análise a ocupação informal “Dandara”, localizada na região norte do município de Belo Horizonte. Por meio de entrevistas realizadas com moradores da ocupação e técnicos que auxiliaram em sua formação busca‐se entender as formas de organização do movimento, suas iniciais motivações, a vinculação do mesmo ao planejamento urbano dito formal e suas perspectivas repercussões no espaço que está inserido. Antes da apresentação do caso é realizada uma rediscussão da problemática habitacional brasileira, com ênfase sobretudo, nas incoerências, implicações e perversidades advindas da instituição da propriedade privada. A quarta e última seção traz as considerações finais do trabalho. 

2 A PROPRIEDADE PRIVADA E PROPRIEDADE SEM DIREITO 

Em uma das mais interessantes e esclarecedoras declarações de Karl Marx em O Capital, o autor aponta para uma grave incoerência observável ao considerar‐se a terra como um bem mercantilizável assim como todos os demais produtos frutos do trabalho humano. Marx sugere que: 

A circunstância de a renda fundiária capitalizada se configurar no preço ou no valor da terra, e de a terra por isso ser comprada e vendida como qualquer outra mercadoria, é, para alguns apologistas motivo para justificar a propriedade fundiária, pois o comprador teria pago por ela, como por qualquer outra mercadoria, um equivalente, e a maior parte das propriedade fundiárias teria assim mudado de mãos. A mesma argumentação legitimaria assim a escravatura, pois, para o senhor que pagou dinheiro pelo escravo, o rendimento do trabalho deste representa apenas juro de capital que empregou para comprá‐lo. Justificar que a renda fundiária existe por ser ela comprada e vendida significa justificar sua existência com a própria existência. (MARX, K., O Capital: crítica á economia política, p.716, grifo nosso). 

Sendo assim, não há problemas na constituição da propriedade privada em contraposição ao regime comunal ou de concessão, na medida em que o solo não passa de mais outro produto existente na esfera de circulação das mercadorias. Contudo, como a força de trabalho humana, a terra é um “bem” não reprodutível e monopolizável. Desse ponto advém comparação de Marx entre a renda fundiária e a escravidão.  

Em palavras, não há possibilidade de criação de novas terras seja pelo trabalhador mais eficiente que exista. Complementarmente, ao ocupar uma gleba de terra – posse financeira ‐ determinado agente torna impossível que algum outro possa ocupá‐la ou dela fazer uso simultaneamente (monopólio). Nesse sentido, o reconhecimento formal por parte do Estado da propriedade privada ou, nas palavras de Marx, da suposição “que certas pessoas têm o monopólio de dispor de determinadas porções do globo terrestre como esferas privativas de 

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sua vontade particular” (Idem, p. 707, grifo nosso), significa consequentemente o reconhecimento de que certos indivíduos não terão acesso a tal recurso. De forma mais explícita, a instituição da propriedade privada aponta, no limite, para a aniquilação do acesso a terra como Direito e sua constituição como componente do mercado. Ter acesso á propriedade em qualquer forma contrária a tal modelo, significa assim obter propriedade sem direito. 

As implicações disso mostram‐se problemáticas. Em termos teóricos, na instituição da propriedade privada, observamos o germinar de determinada lógica orientadora do comportamento humano no seu ambiente de vida, a saber, a lógica do conflito por espaço. Na promoção e consolidação de tal forma como a mais adequada e justa de acesso a terra, a lógica estabelece‐se e consolida‐se. A total mercantilização do acesso ao solo via sua inserção na esfera de circulação das mercadorias e sua plena realização como valor de troca conduzem a um tipo de acesso ao urbano necessariamente orientado por uma perspectiva de conflito monetário pelas terras melhor “localizadas”. 

Ao longo dos anos e com formação e consolidação dos grandes centros e metrópoles urbanas a lógica intensifica‐se. Os movimentos e disputas por espaço tornam‐se mais freqüentes e dinâmicos. Das vagas de estacionamento ao acesso à moradia a lógica do conflito/luta/conquista nos forma e (con)forma. Sua expansão, contudo encontra um limite físico e natural. Nesse ponto, a cidade explode do formal para o informal, do estruturado para o precário, do urbano para o quase‐urbano. Com isso, reproduzem‐se e multiplicam‐se os problemas decorrentes dos conflitos: exclusão, revolta, violência.  

A ação do capital imobiliário tem papel fundamental nesse processo. Atua de diversas maneiras. Na retenção de terras para especulação move‐se pela luta por espaço para novas construções; na delimitação e estruturação de grandes condomínios fechados acirra a exclusão e a separação de classes; na depreciação fictícia do estoque existente estimula a novas lutas por espaço pelos agentes e assim por diante.  

Aglutina‐se à lógica dos conflitos, o papel e poder centralizador da cidade e do urbano que aglomera múltiplos caracteres e formações individuais. Instala‐se um cenário de caos formado e formador do espaço o qual resulta, em ato ou potência, em renovadas formas de conflitos e violências (LEFEBVRE, 1999). 

A formação urbana no Brasil, acompanhada das sucessivas políticas habitacionais promovidas pelos diferentes governos evidenciam tal realidade. Não há possibilidade de acesso ao Direito de propriedade (formal e consolidada) àqueles que, no conflito por espaço, não possuem suficientes recursos financeiros para a ela ter acesso. SOUZA (2004), tratando a respeito dos anos finais do século XIX e primeiros do XX aponta que: 

Mesmo havendo uma crescente demanda e uma significativa oferta de lotes, grande parte da população não tinha condições de acesso à habitação formal. Assim intensificam‐se as favelas e os loteamentos clandestinos, o que acaba por pressionar o poder público a tomar novas atitudes. (pg. 169) 

Cabe a ressalva que, conforme destaca o mesmo autor, as soluções em termos de planejamento e construções urbanas por parte do poder público para essa situação materializaram‐se na construção das chamadas vilas higiênicas e operárias, de qualidade e acesso bastante precários. 

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AZEVEDO (2004) traçando um panorama da política habitacional brasileira nas últimas décadas apresenta um cenário verdadeiramente desanimador no que concerne á capacidade do Estado em lidar com a mediação e resolução dos conflitos por espaço existentes no território. Todas as iniciativas desde o BNH até os programas pontuais dos governos como o Habitar Brasil, Programa de Ação Imediata para a Habitação – PAIH, Cred‐Casa, dentre outros, mostraram‐se fadados em determinados momento ao fracasso, por não atingirem, dada a baixa lucratividade ao setor construtivo, ás camadas de menores rendas e, por conseguinte, de maior necessidade de acesso á moradia. Como ressalta o autor: 

Entre as diversas carências da população de baixa renda vinculadas ao ‘habitat’ (saneamento, abastecimento de água, energia elétrica, transporte, etc), a que apareceu com mais evidência e centralidade foi o déficit de moradia. Esse contexto se explica, em parte, não só pelo fato de o poder público, em termos de política urbana, ter priorizado historicamente a questão habitacional, com também pela pouca amplitude e o fracasso da maior parte dessas intervenções governamentais. (pg. 105) 

Contudo, como causa mais elementar para a ineficácia de tais medidas estava o fato das mesmas preocuparem‐se na tentativa de ampliação do Direito, deixando intacta, contudo a concepção de propriedade adotada para determinado programa. Dava‐se assim um verdadeiro contra senso, pois, objetivava‐se dirimir o problema habitacional mantendo‐se, contudo o cerne motivador do mesmo em sua essência, a saber, a instituição incontestável da propriedade como sendo de uso privado. 

O planejamento urbano, materializado de forma mais evidente nas políticas habitacionais, mostra‐se assim sempre a mercê de tal categoria constituinte da cidade a qual para abrigar alguns deve necessariamente excluir a outros. Com a Constituição Federal de 1988 que melhor esclarece no País o princípio da função social da propriedade e da cidade e, sobretudo com a promulgação em 2001 do Estatuto das Cidades observa‐se uma tentativa mais acurada por parte do poder em modificar a realidade até então vigente. Ao tocar na questão central do acesso à terra, a saber, sua própria concepção, há, mesmo que teoricamente, uma recondução da noção da terra como Direito, não mais como mercadoria condicionada aos interesses individuais. 

Entretanto, as primeiras avaliações de tais medidas têm revelado que, ao contrário do que se esperava, há a continuidade do acirramento das incoerências das disfunções causadas pela manutenção da propriedade privada, dado que o reconhecimento do Direito ainda não se mostra totalmente legitimado e esclarecido na legislação. Conforme aponta Fernandes (2008:126): 

De fato, um aspecto fundamental a ser considerado para o avanço das políticas urbanas no Brasil diz respeito à necessidade de uma maior compreensão da tensa relação entre, por um lado, a natureza jurídica dos direitos de propriedade imobiliária e, por outro, a definição dos limites da intervenção do poder público no domínio da propriedade – e do mercado imobiliário – através das atividades e políticas de planejamento e legislação urbanística. Há várias décadas tem se verificado um embate entre dois paradigmas jurídicos distintos: o paradigma ainda hegemônico do legalismo liberal, baseado no ideário do Código Civil e na concepção individualista, mercantilista e patrimonialista da propriedade, e uma tentativa de ruptura dessa visão civilista tradicional através da afirmação do princípio constitucional, da ordem do direito público, da função socioambiental da propriedade e da cidade. 

Infelizmente os instrumentos de planejamento até então existentes no Estatuto das Cidades em sua materialização municipal através dos planos diretores ainda não tem dado conta de prover de forma eficaz uma solução ao embate apontado pelo autor. 

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Relatório produzido pelo Ministério das Cidades em parceria com o Observatório das Metrópoles no ano de 2011 destaca que:  

As dificuldades políticas de regulamentação dos instrumentos com potencial de intervenção no mercado de terras urbano sempre foram bastante conhecidas – afinal, nem todos ganham quando há mais justiça nas formas de apropriação social dos bens e serviços urbanos ‐, mas a possibilidade de regulamentação do Estatuto [da Cidade] no sentido da construção de uma cidade menos desigual exigia que o campo de elaboração dos planos diretores – a quem cabia a construção das condições de implementação dos instrumentos – fosse disputado. A leitura dos relatórios estaduais indica, contudo, que o potencial dos instrumentos de intervenção do mercado de terras, de redistribuição da renda gerada pelo desenvolvimento urbanos e de promoção da redução das desigualdades sociais no acesso à terra urbanizada e à cidade praticamente não foi aproveitado. (OLIVEIRA & BIASOTTO, 2011:59) 

Corrobora ainda para tal cenário a adoção cada vez maior por parte do poder público das diretrizes e práticas de planejamento estratégico, as quais tomam a cidade como mercadoria e imagem a ser vendida aos interesses dos capitais financeiros e internacionais. Sob essa orientação de planejamento, não há espaço para uma propriedade de função social, ao contrário, a cada vez maior mercantilização é condição sine qua non para a execução do projeto de cidade pensado.  

Por fim, somam‐se a tais fatores, conforme observa QUEIROZ (2004), a falta de vontade política ainda existente em nossas Câmaras legislativas em propor e promover verdadeiras práticas de redistribuição e reforma fundiária. Ao contrário, apresenta o autor, observa‐se nas cidades brasileiras a formação de um poder urbano corporativo, no qual grandes interesses mercantis mostram‐se ligados às políticas de desenvolvimento urbano. 

Na perpetuação de tais empecilhos à total realização da propriedade como instrumento de inclusão e não como de exclusão social, não restam alternativas para determinada classe dominada pela lógica de produção do espaço capitalista, intrinsecamente conflituosa e desigual, que não o acesso ao Direito de propriedade sem direito. Essas experiências, por sua vez, não necessariamente serão executadas de forma desordenada ou resultarão em assentamentos degradados, dada a própria aspiração e desejo de seus moradores em pertencer à cidade legal, se não pela via do direito, ao menos pelos traços de sua forma. O caso da ocupação Dandara apresentado a seguir é exemplar nesse sentido. 

3 A OCUPAÇÃO DANDARA 

Sob a perspectiva colocada na primeira seção do trabalho, o espaço urbano apresenta‐se como uma arena de conflitos e exclusão devido, sobretudo, à instituição da propriedade privada e a inexistência de instrumentos jurídicos e de planejamento urbano verdadeiramente eficazes na prática para o tratamento de suas implicações.  

A FIG. 1 abaixo, extraída do relatório para plano de mobilidade da prefeitura de Belo Horizonte, relaciona o nível de renda das famílias á 26 regiões delimitadas no plano para análise. Conforme pode ser observado, a ocupação do espaço e sua configuração mostram‐se diretamente relacionadas ao nível de renda das famílias. Na disputa e conflito por espaço, a renda monetária tem assim papel determinante promovendo uma verdadeira homogeneidade de classes em cada recorte territorial que compõem os bairros do município. É pela posse da renda que se permite ao morador ter acesso á moradia, sua realização no espaço urbano e o acesso a serviços das mais variadas naturezas bem como o convívio com outros indivíduos. 

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Figura 1 – Nível de renda média individual por região de Belo Horizonte 

Fonte: PBH, 2011 

Dessa condição desigual de disputa apresenta‐se, por sua vez, uma realidade perversa de segregação e isolamento ‐ por demais óbvias ‐ e que claramente pode ser visualizada nos grandes aglomerados de pobrezas denominados como vilas e favelas e nas outras inúmeras formas de assentamento informal originadas da busca por acesso ao dinamismo e aos acontecimentos do urbano. As manchas claras nos espaços escuros da figura são exemplos dessas manifestações.  

A ocupação Dandara, assim denominada por seus próprios moradores, nasce devido a um processo de exclusão social e espacial característico do modo de produção capitalista inerentemente conflituoso, como já destacado, o qual impede que tais indivíduos tenham acesso á moradia considerada formal e legal. No conflito que toma como suas armas a capacidade monetária das pessoas para o pagamento do aluguel ou da compra, via financiamento, de uma moradia, determinada classe mostra‐se plenamente desarmada. A própria ausência de um comprovante formal de localização no espaço urbano impede o acesso aos serviços básicos necessários à sobrevivência e realização plena da cidade, da cidadania, dos relacionamentos. 

A verdadeira diferença é que aqui eu não vou pagar o aluguel o porque o problema maior é que você loca um lugar pequeno, você não tem liberdade pra nem se quer receber a  sua parentela dependendo do lugar que você aluga, porque a gente não é rico, não tem condições de alugar uma casa grande sozinho em um lote. A maioria dos valores do aluguel ultrapassam meio salário mínimo, ai já vai sobrar uma migalha pra gente. Diante disso como é que eu vou sustentar essa moradia pagando essa quantidade? E ainda por cima eu preciso de um fiador. 

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Não há respostas formais para a pergunta da Sra. Maria de Fátima, moradora da ocupação.  

Dada tal realidade, a solução encontrada por grande parcela da população, utilizando‐se de outras armas de luta e conflito que não a sua renda e na maior parte das vezes seu próprio corpo, é a de a ocupação de terras privadas que estejam ociosas. Ainda assim, a instituição da propriedade privada, motivadora da luta por espaço e elementar à lógica do conflito, mostra‐se por vezes tão arraigada à nossa cultura e formação e tida como justa e normal que, apesar das inegáveis privações e miseráveis condições de vida e sobrevivência, as próprias pessoas vítimas de tal condição consideram inicialmente a ocupação como uma medida errada e inadequada. Faz‐se necessário um tempo para a adaptação e compreensão das incoerências engendradas pela forma atual de organização do espaço urbano para que assim o desejo por “uma única oportunidade” – Sra. Maria de Fátima – possa superar as inseguranças que uma atitude como a apropriação de uma terra não comprada monetariamente podem levar. Como relata a Sra. Wagna, moradora e liderança local sobre sua inserção no movimento:  

Meu filho foi comprar pão de manhã e disse: ‘mãe, o povo está invadindo o pasto vamos lá?’ Não vou não, não é nosso. ‘Se a senhora não for, eu vou sozinho porque não agüento ver mais a senhora chorar de morar na casa da mãe do Felter (...) Vivia numa casa muito boa, mas que não era minha, agüentava humilhação da minha sogra, meu marido não quis ir, disse ele que não ia (...) Depois de 6 meses meu marido resolveu por o pés a primeira vez na ocupação. Ele levava comida pra mim, mas esperava na esquina porque tinha vergonha de entrar na comunidade (...) Com 6 meses eu consegui levar ele pra o primeiro manifesto. Hoje é um militante de mão cheia e assim, a nossa família toda engajou na luta. 

Na organização de tais movimentos no espaço, contudo, existem significativas diferenças. O caso da Dandara é exemplar nesse sentido, apresentando características que a distinguem de outras ocupações. Como regra inicial, a comunidade então constituída de aproximadamente 100 famílias optou pela eliminação do mercado informal na região. Na comunidade “perde quem compra e perde quem vende” como aponta uma entre as 13 regulamentações básicas instituídas em conjunto com a comunidade. O cancelamento e proibição das trocas comerciais tanto entre moradores como externa tem como objetivo garantir que a utilização do solo seja exclusivamente para moradia. Mais ainda, a “concessão” do lote obrigatoriamente deve ser acompanhada tanto pela construção como pela habitação no local a fim de evitar a retenção de terras por famílias que já possuam outro local para residência. 

Na resolução de pequenas disputas que ocorrem no interior da ocupação, apenas em casos extremos recorre‐se ao poder de regulação e coesão formal, a saber a polícia. Há uma busca pela construção do consenso entre os moradores até mesmo pelo fato de que a ação policial foi marcada na região pela violência, retenção e proibição da ocupação.  

“A policia entrou assim: derrubando tudo” afirma a Sra Wagna. “Conflito que a gente teve por aqui foi só com a polícia, (...) as mulheres sentaram em cima dos tijolos com as crianças e disseram: ‘vocês podem dar tiros, fazer o que quiserem, mas nós não vamos sair daqui”, relata o Sr. Fernando, outro morador da ocupação. 

Nesse cenário de exclusão e conflitos, é na informalidade que se abre uma brecha à realização de uma utopia do convívio coletivo que por mais que não tenha como objetivo estar totalmente desconectada e isolada numa ilha, cria regras próprias e práticas de 

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regulação interna. Sobretudo, tenta lidar com a questão do uso e propriedade do espaço urbano via eliminação do mercado e consequente eliminação da lógica de qual são fruto que regula a ocupação e realização humana no espaço pela capacidade de pagamento ao invés de pela necessidade.  

As relações de produção do espaço urbano no que concerne ás edificações das casas, construção dos espaços coletivos e conservação da ordem são orientadas pelo cooperativismo e auxílio mútuo: 

“Para construir, eu não paguei pedreiro não, foi no sistema de mutirão (...) cada um dos companheiros deu uma mãozinha e eu fiz meu barracão, e to aí, pelejando aí”; “A gente trabalha no coletivo, é um ajudando o outro... é assim que funciona a organização dentro da comunidade” afirmam respectivamente o Sr. Fernando e a líder Wagna.  

Obviamente, distorções e relações de opressão certamente ocorrem na ocupação, até mesmo como fruto das condições de exclusão que muitos dos lá residentes passaram e viveram. Contudo, observa‐se ao mesmo tempo um projeto de regulação interno que objetiva a mediação do conflito principal existente em suas realidades, o conflito por espaço. Complementarmente, há uma proposta de organização espacial encaixada nos padrões legais e o interesse pela maior parte da população residente em manter tal proposta como meio de atingir dois objetivos principais, quais sejam, primeiramente a consolidação da ocupação como parte integrante e ao mesmo tempo desconectada do restante da cidade e em segundo lugar a não transformação do território em algo semelhante ás vilas e favelas, cenário passivo de repulsa por todos os entrevistados para o trabalho. 

Nesse contexto, caber‐nos‐ia dizer que a ocupação pode ainda ser caracterizada como uma “informalidade legal”, na medida em que as regras de ocupação no que concerne ao tipo de edificação, tamanho dos lotes, áreas de conservação e escoamento, largura das vias, dentre outros aspectos estão todos de acordo com as diretrizes para a região dispostas no Plano Diretor de Belo Horizonte. Essa estrutura foi organizada dessa forma não por acaso, ao contrário, desde o início da ocupação o movimento foi acompanhado por diferentes profissionais que alinhando o conhecimento dito técnico às aspirações da população formularam uma proposta urbanística para a região.  

A FIG. 2 abaixo aponta para a proposta que direcionou a forma em que os lotes seriam divididos, o número de ruas, áreas de uso coletivo, etc. 

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Figura 2 – Proposta urbanística para ocupação Dandara 

Fonte: Arquivo da comunidade 

Dado o crescimento exponencial do número de famílias presentes (100 para 887) assim como da área ocupada foi necessária a divisão da comunidade em nove grupos, a qual foi acompanhada da eleição de coordenadores para cada um deles, sendo esses, responsáveis pela participação nas assembléias semanais e repasse das informações ao restante da população assim como da realização de reuniões periódicas com as famílias presentes em seu grupo. No início da ocupação e à medida que a mesma crescia era realizado um cadastro familiar que conduziria a instalação das famílias até que a capacidade total do terreno fosse atingida. 

A cada um dos grupos foi instituída uma cor de identificação e através de sorteios foi delimitada a área em que cada um passaria a ocupar. Em seguida, cada agrupamento internamente sorteava ou deixava a livre escolha dos habitantes para ocupação de seu lote. Em determinadas ocasiões, foi dada preferência de escolha a famílias específicas que de alguma forma (presença nas reuniões, doações, etc.) mostravam‐se mais envolvidas no projeto da ocupação conforme relatado pela Sra. Wagna.  

Anteriormente à tal proposta (FIG. 2), contudo, foi elaborada uma primeira a qual caracterizava‐se pela pureza da técnica arquitetônica em conformidade a legislação municipal vigente. Sendo quase que totalmente formulada por profissionais da área da arquitetura e urbanismo, a proposta levava em conta, sobretudo a necessidade de instalação da maior parte de famílias possível2. Assim, propunha a divisão da área em lotes coletivos, divididos conforme a topografia da região, compensando‐se assim com uma maior área aqueles terrenos com menor possibilidade de construção devida á inclinação. 

Nas palavras de Tiago Castelo Branco, arquiteto que esteve à frente do planejamento do projeto para instalação da comunidade, assim como desde o início do processo auxiliou a população para que as normas urbanísticas do município pudessem ser seguidas: 

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A gente elaborou um primeiro plano pra área. Por que os lotes coletivos? Para a gente ter o mínimo possível de ruas e não perder espaço com ruas, porque a gente tinha cerca de 1300 famílias, então a gente precisava criar uma solução que atendesse essas 1300 famílias. 

Nem por isso o processo era realizado de forma autoritária ou tecnocrática. Ao contrário, conforme destaca o arquiteto: 

Durante todo esse período havia todo um processo de discussão com as lideranças e com a população para ver se eles iam aprovar essa proposta, se essa proposta era interessante pra eles ou não. (...) Essa proposta começa a ser implantada e você tem uma pressão muito forte da polícia, o processo de demarcação demora muito, ele poderia ter acontecido muito rápido, mas você não consegue devida a essa pressão. 

Tal participação popular apresenta‐se em determinado momento tão massiva que toda a proposta tem de ser reformulada dada a insatisfação da população residente, sobretudo com um aspecto específico do projeto em pauta, a saber, a vida em coletividade: 

Um problema, porém começa a surgir que é a questão da vida coletiva. Morar nos lotes coletivos, eles não conseguem resolver bem isso, eles começam a achar que isso vai gerar uma favela, que tudo aquilo que eles estavam insistindo ia se perder com a proposta do lote coletivo, e eles tinham um receio muito grande porque com o lote coletivo era necessário você criar um condomínio de cada lote coletivo e isso eles não estavam aceitando bem. 

Como discutido anteriormente no ensaio, duas inquietações principais permeavam a vida dos moradores, a saber a preocupação na manutenção da ordem urbanística implementada e de forma mais evidente o medo e completa aversão dos moradores por uma taxa de utilização da terra como o aluguel ou aqui entendido como o condomínio. A proposta do lote coletivo, ao menos aparentemente, ia de encontro exatamente a tais questões. Nesse ínterim, ao mesmo tempo em que se observa a tentativa de uma construção de comunidade de ajuda e parceria mútua, de auxílio e construção do espaço de forma compartilhada, quando o tema volta‐se para a questão da moradia, o convívio coletivo mostra‐se indesejado.  

O confronto e inquietação tornam‐se tão expressivos que a população decide por si mesma reavaliar o caminho até então percorrido e sugerir uma nova proposta, que em sua perspectiva teria como intuito o impedir a transformação da ocupação em uma vila, mas, sobretudo evitar conflitos futuros que pudessem vir a acontecer provenientes da vida coletiva. A descrição abaixo, apresentada pelo arquiteto mesmo que extensa, explicita bem as impressões e iniciativas tomadas nesse momento. 

Então eles, a população, eles apresentam uma proposta (...) Eles apresentam a proposta a partir de um dos moradores da região, ele apresenta aquele desenho ali [Figura 2 rascunhada] para mim e ele vai, ele desqualifica o desenho com o lote coletivo (...) Ele fala que o lote coletivo era uma besteira que não era necessário e o ideal eram lotes individuais e todos os lotes iguais. Ai a gente, eu argumento com ele que ao fazer isso a gente ia perder área porque a gente ia perder áreas abrindo ruas (...) Só que a população prefere fazer isso aqui, prefere fazer o lote individual e todos os lotes iguais; era uma exigência extremamente importante para eles. Nessa proposta do lote individual, trabalhamos com todos os lotes iguais, de 126 metros quadrados (...) Então essa proposta é apresentada e imediatamente a população vai se apropriar dessa proposta e vai implantar isso aqui tudo, e nesse momento sem nenhum acompanhamento técnico (...) Eles conseguem absorver muito bem a idéia porque a proposta, ela é muito fácil de ser implantada. Eles conseguem ir medindo e demarcam todo o terreno, aquilo que na proposta do lote coletivo eles ficavam assim 20 dias tentando desenvolver uma coisa dentro do terreno, com essa proposta aqui em uma semana eles tinham demarcado tudo. 

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Nesse contexto destacam‐se dois aspectos principais. O primeiro deles relacionado às contradições e até mesmo embate por vezes existente entre o conhecimento técnico e o popular (FRIEDMAN, 1987), sobretudo no que concerne à ocupação e construção do espaço urbano. Apesar da “simplicidade” da segunda proposta, era nela que se refletia a aspiração se não de toda, ao menos de grande parte da população que se instalava na Região. Na medida em que toda a execução dos trabalhos seria necessariamente executada pelos próprios moradores, uma proposta que se encaixasse mais ás suas aspirações, anseios e desejos de realização no espaço seria implementada de forma mais eficaz, como ocorre. Ao mesmo tempo, ao descaracterizar a primeira proposta alguns elementos essenciais do planejamento ordenado para a região como o tamanho ideal das áreas de recarga tem de ser suplantados devida a instituição de novos lotes assim como necessariamente diminui‐se o espaço no território para a instalação de novas famílias.  

Esse segundo aspecto merece um pouco mais de atenção. Ao optarem pelo lotes individuais e demarcados em mesmo formato e tamanho como meio de contenção de conflitos há em certo sentido a opção pela manutenção da lógica da qual a própria ocupação é fruto, a saber, a individualização da posse e das necessidades. A ocupação, resultado de uma lógica de conflito e exclusão e tendo como herança dessa lógica o constante receio de exclusão sócio‐espacial o território é organizado de forma repartida e individualizada. O desejo intenso pela individualização do lote em oposição ao projeto coletivo reflete e reproduz essa herança perversa. 

A escolha por tal projeto, contudo é também composta pela crença que é pela individualização que se evitariam os conflitos futuros de convivência, a qual, manchada pelas marcas da marginalidade e da exclusão é por vezes conflituosa funcionando à base da ameaça e da coerção. 

Viver individualmente, homogeneizando fisicamente o espaço, a despeito das limitações topográficas, significa assim fugir e evitar o conflito tanto de preferenciais como de relacionamentos. Ao mesmo tempo, tal opção se adéqua totalmente ao padrão da cidade formal e em certo sentido da perversidade de que o próprio movimento é fruto. Tal fator, associado ao desejo presente nos moradores de uma regularização que lhes garanta não apenas o uso, mas à posse da terra pode levar futuramente à manifestação e reprodução do papel excludente da propriedade. 

Enquanto não ocorre, na ocupação manifesta‐se de forma literal um verdadeiro espaço de anseios e desejos de realização. O lema, “ocupar, resistir, construir”, manifestado pela líder Wagna, de forma resumida apresenta a ação, consequências e esperanças por parte dos moradores da Região. Em um formato de organização do espaço que tendo como base os princípios orientadores do modo de produção capitalista, possivelmente serão nesses espaços informais e socialmente construídos, por mais que não legalmente reconhecidos – propriedade sem direito ‐, que realmente poder‐se‐ia falar em real Direito de propriedade bem como em novas possibilidades e novos arranjos para a plena realização do urbano. 

 

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Conforme apresentado de forma sugestiva no presente ensaio, a instituição da propriedade privada tem atuado na consolidação de um dilema jurídico e urbano, na medida em que se reconhece o Direito de propriedade como indispensável á sobrevivência, ao mesmo tempo em que um significativo número de pessoas necessita recorrer ao uso da terra sem direito. Nessa sociedade manifestam‐se de forma cada vez mais constante conflitos e contradições que resultam de e em um cenário de dominação e exclusão.  

Nesse cenário de conflito que toma como principal e única arma a posse de renda monetária pelos indivíduos, determinada classe fica a margem de tal arena dada sua impossibilidade de nela adentrar por meio de tal armamento. Como alternativa, tais indivíduos, utilizando‐se de seu próprio corpo e voz na disputa por espaço urbano passam a ocupá‐lo e nele implementar, ao menos em determinados aspectos, diferentes formas de planejamento e uso do solo. A ocupação informal Dandara, no momento presente, apresenta uma dessas novas possibilidades.  

Na conclusão de sua obra, A Revolução Urbana, Lefebvre aponta para “um dos problemas mais perturbadores” da construção e realização do urbano, a saber, “a extraordinária passividade das pessoas diretamente interessadas, concernidas pelos projetos, postas em questões pelas estratégias. Por que esse silêncio dos usuários?” (pg. 163), pergunta o autor. Como uma das razões apresentadas por Lefebvre, está o costume, ou mais do que isso, o “hábito” de tais usuários delegarem seus interesses aos seus representantes formais. 

O caso aqui apresentado em certo sentido mostra‐se em certo sentido como uma tentativa de enfrentamento de tal hábito maléfico. Através do embate, promovido pelo fim da espera por uma resposta formal e pelo convencimento de determinadas incoerências, os usuários promovem e articulam seus movimentos na busca por um pleno pertencimento sócio‐espacial. Absolutamente, a questão da ocupação não pode ser aqui esgotada e possivelmente apresente aspectos e incoerências que não estiveram presentes e fogem ao escopo deste trabalho. Contudo, abordá‐la e analisá‐la segundo a perspectiva da economia política marxista e das práticas de planejamento urbano mostra‐se como eficaz meio de compreensão das lógicas que atuam sobre o espaço em que a ocupação materializa‐se bem como da maneira que elas na prática se manifestam. 

5 REFERÊNCIAS 

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BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Plano de Mobilidade de Belo Horizonte. Diagnóstico e Prognóstico Preliminar. Belo Horizonte, 2011. Disponível em: http://www.bhtrans.pbh.gov.br/portal/page/portal/portalpublico/BHTRANS/publicacoes. Acesso em: 25 julho 2001 

CASTELO BRANCO, T. Depoimento [6 de julho, 2011] Belo Horizonte. Entrevista concedida ao autor. 

CRUZ, M. F. Depoimento. [4 de julho, 2011]. Belo Horizonte. Entrevista concedida ao autor. 

FERNANDES, Edésio. Reforma urbana e reforma jurídica no Brasil: duas questões para reflexão. In: COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes (Orgs.). Planejamento Urbano no Brasil: trajetórias, avanços e perspectivas. Belo Horizonte, 2008, p. 123‐135. 

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FERNANDO. Depoimento. [4 de julho, 2011]. Belo Horizonte. Entrevista concedida ao autor. 

FRIEDMANN, J. (1987) Planning in the Public Domain: From Knowledge to Action. Princeton: Princeton University Press. 

LEFEBVRE, H. 1999. A Revolução Urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG. 

MARX, Karl. O capital. Livro 3, v. 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. 

QUEIROZ, Luiz Cesar. o Estatuto da Cidade na Questão Urbana Brasileira. In: FERNANDES, Ana & SOUZA, Ângela Gordilho(Orgs.). Habitação no Brasil: reflexões, avaliações e propostas. Salvador: FAUFBA/PPGAU, 2004, p. 69‐82. 

OLIVEIRA, Fabrício Leal de; BIASOTTO, Rosane. O Acesso à Terra Urbanizada nos Planos Diretores Municipais. In: Orlando Alves dos Santos Junior; Daniela Todtmann (Org.). Os Planos Diretores Municipais pós Estatuto das Cidades: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital: Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ, 2011.  

SOUZA, Angela Gordilho. Viver Melhor: mudanças e permanências no habitar. In: FERNANDES, Ana & SOUZA, Ângela Gordilho(Orgs.). Habitação no Brasil: reflexões, avaliações e propostas. Salvador: FAUFBA/PPGAU, 2004, p. 167‐190 

WAGNA. Depoimento [4 de julho, 2011]. Belo Horizonte. Entrevista concedida ao autor 

6 NOTAS 

1 Para fins de distinção, passaremos a grafar a palavra Direito em letra maiúscula quando referir‐se ao sentido de necessidade/condição de sobrevivência e em letra minúscula ao a considerá‐la como instrumento legal. 

2 Na ocasião, a ocupação contava com mais de 1000 famílias. 

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NÚCLEO TEMÁTICO I: Cidade em movimento e movimento na cidade 

Urbanização contemporânea e conflitos urbanos em Viçosa, Minas Gerais: a remoção da feira livre da Avenida Santa Rita e o 

novo ideal de renovação urbana local. Contemporary urbanization and urban conflicts in Viçosa, Minas Gerais: the removal of 

Santa Rita Avenue’s street fair and the new local urban renovation pattern. 

Nayana Corrêa BONAMICHI Arquiteta e Urbanista; Pós Graduanda do curso de Especialização em Política e Planejamento Urbano e Regional do IPPUR/UFRJ. [email protected] 

RESUMO Ler  o  processo  de  produção  do  espaço  urbano  através  de  seus  conflitos  é  partir  da  leitura  do espaço como campo de lutas; Por meio destes conflitos enxergamos um espaço vivo e não neutro, um cenário de divergências, uma cidade em constante movimento. A partir desta leitura se torna mais  rica  a  compreensão  dos  processos  de  produção  do  espaço.  O  objetivo  deste  artigo  é apresentar os resultados de um trabalho de pesquisa desenvolvido entre os anos de 2009 e 2010 que acompanhou uma real situação de conflito urbano travada sobre o gozo do direito de uso do espaço público e os  interesses privados da  indústria da construção civil, em Viçosa, MG; Trata‐se do conflito entre retirada/manutenção da feira  livre da Avenida Santa Rita (tradicional feira  livre de  rua do município),  em  um momento  em que  esta Avenida  passava  por  intenso  processo  de valorização  imobiliária. O trabalho de pesquisa teve como objeto de estudo a dinâmica  interna e os desdobramentos de  tal  situação de conflito, desde a proposta até a efetiva  remoção da  feira livre, em  janeiro de 2010. Através de uma abordagem predominantemente qualitativa buscamos entender como esta parcela do urbano em questão foi/é produzida e apropriada, como as partes envolvidas exerceram/exercem seu domínio ou são dominadas através do espaço. 

PALAVRAS‐CHAVE: Urbanização Contemporânea, Conflitos Urbanos, Feiras Livres. 

ABSTRACT Reading the urban space production process between  its conflicts  is equal to pull out the reading of the urban space like a field of struggles; By these conflicts we can see an alive and non‐neutral space,  a  scenario  of  differences,  a  city  in  constant  movement.  Starting  from  this  reading,  it becomes richer the comprehension of the space production process. The purpose of this article  is to present the results of a research work developed between 2009 and 2010 that had monitored a real urban  conflict  situation among  the  enjoyment of  the  right  to use  the public  space and  the privates  interests  of  the  construction  industry,  in  Viçosa,  MG;  It’s  the  conflict  among  the removal/maintenance of the Santa Rita Avenue’s street  fair  (a municipality  traditional street  fair in that city), while this Avenue was going through a strong process of property appreciation. The research work had as  its study object  the  internal dynamic and  the developments of  this conflict situation,  since  the  proposal  until  the  effective  removal  of  the  street  fair,  in  January  2010. Through a predominantly qualitative approach we  tried  to understand how  this urban portion  in question was/is  produced  and  appropriated,  how  the  involved  portions  had  exercised/exercises their domain through the space. 

KEYWORDS: Contemporary urbanization, Urban Conflicts, Street Fairs. 

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1 INTRODUÇÃO 

Entre as décadas de 1960 e 1970, o município de Viçosa, Minas Gerais, passou por uma intensificação no seu processo de urbanização em função da expansão das atividades da atual Universidade Federal de Viçosa. A então ESAV (Escola Superior de Agronomia e Veterinária) passou a ser reconhecida como Universidade Federal, aumentando significantemente os recursos federais nela investidos e alterando drasticamente a dinâmica social, cultural, política e econômica do município. A cidade passou a se desenvolver em razão da própria Universidade, tendo na expansão da Academia a alavanca para o desenvolvimento econômico do município e passando a ter no setor de serviços e na construção civil as bases de sua economia. O crescimento da demanda habitacional gerada principalmente pelo inchaço da comunidade ligada à Universidade fez com que a região central do município rapidamente se adensasse, novos vetores de crescimento/adensamento fossem formados e a renovação urbana atingisse índices muito altos. 

Atualmente, a ação feroz do seguimento de indústria da construção civil se soma a cada vez maior raridade de solo urbano central intensificando situações latentes de conflitos e lutas pelo direito de consumo e de (re)produção do espaço urbano. Diante da raridade e do esgotamento da centralidade, novos vetores de crescimento e investimento imobiliários vêm sendo formados em áreas vizinhas às já intensamente ocupadas e verticalizadas. Neste contexto, nos últimos seis anos, a Avenida Santa Rita e Rua Gomes Barbosa, no centro do município vêm se configurando como uma dessas novas áreas de intensa valorização imobiliária.  

Coincidentemente, uma proposta de remoção da popular feira livre de rua que funcionava há quatro décadas na Avenida Santa Rita veio à tona pela Secretaria de Agricultura do Município no ano de 2006. Através de uma manobra política, em uma reunião pouco esclarecedora foi votada e aprovada pelos poucos feirantes presentes a construção de um novo local para a feira livre. Em janeiro de 2010, após manifestos tardios contra a mudança, organizados por parte dos feirantes e parte da população,e,  após incessantes discussões públicas sobre o destino da feira livre, a mesma teve suas atividades relocadas para área às costas do Colégio Viçosa, ao final da Rua Gomes Barbosa (área menos central e até então menos visada pelo mercado imobiliário), em um notável processo de marginalização. O ato significou a perda de parte da força da feira livre, em nossas leituras, um rico lugar de sociabilidade, de trocas econômicas e principalmente sociais e de saberes; Uma possibilidade de manutenção de uma cultura da “vida de rua”, que perdurou por mais de quatro décadas na Avenida Santa Rita.  

A remoção significou, também, uma possibilidade importante para a leitura e a análise do processo de exercício de domínio de determinados segmentos sociais locais sobre outros através da disputa pelo espaço urbano; Tal processo de exercício de domínio e de disputa é colocado aqui como objeto de pesquisa deste trabalho. Assim, com o objetivo de analisar os desdobramentos desta situação de conflito e traçar considerações que ajudem a entender seus significados, este artigo transita entre observações feitas a partir da analise de fatos empíricos e considerações teóricas baseadas na revisão de obras que discorrem sobre as populares feiras livres de rua e o processo de produção do espaço urbano a partir de seus conflitos. Entrelaçando tais considerações teóricas e observações empíricas, acredito ser mais rica a compreensão do processo de renovação urbana e valorização imobiliária local e seus efetivos papéis na remoção da feira livre. 

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2 METODOLOGIA 

Os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa reuniram técnicas quantitativas e qualitativas, entre elas: revisão teórica sobre a temática das populares feiras livres de rua, levantamento documental sobre a antiga e popular feira livre da Avenida Santa Rita, levantamento documental e mapeamento dos principais empreendimentos imobiliários lançados entre os anos de 2006 e 2010 para a região central de Viçosa1, aplicação de questionários a feirante e frequentadores/não frequentadores da feira livre2, observações diretas e registros fotográficos das atividades da feira, entrevistas e acompanhamento das discussões públicas sobre a remoção/manutenção da feira livre3. 

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS FEIRAS LIVRES COMO LUGARES DE SOCIABILIDADE4  

Segundo Mascarenhas (2008,p.75):  

A feira livre no Brasil constitui modalidade de mercado varejista ao ar livre, de periodicidade semanal, organizada como serviço de utilidade pública pela municipalidade e voltada para a distribuição local de gêneros alimentícios e produtos básicos. Herança em certa medida da tradição ibérica (também de raiz mourisca), posteriormente mesclada com práticas africanas [...]. Desempenham ainda hoje papel relativamente importante no abastecimento urbano. 

Ainda segundo este autor (ibidem, p.74):  

Como resultado de longa evolução dos mercados a céu aberto, de remota origem ibérica, redefinidos no contexto urbanístico da racionalidade higienista da Belle Époque, a feira livre representa uma experiência peculiar de sociabilidade e de uso da rua, que há décadas sofre acusações de obsolescência, pela difusão ilimitada da automobilidade e das modernas formas de varejo (sobretudo os supermercados). 

As feiras livres, em suas diversas configurações, aglomeram multidões e se configuram como importantes espaços de sociabilidade. São atividades de base econômica, mas que muito transcendem a esfera comercial; Se constituem em espaços de mobilidades comerciais e sociais onde erguem‐se redes de sociabilidades (ARAÚJO E MORAIS, 2006, p.247).Em uma ambiência de informalidade, as frias relações existentes na troca moeda‐mercadoria das modernas formas de varejo alimentar sedem espaço a relações informais mais próximas, que envolvem a troca não só de mercadorias mas social e de saberes. As feiras livres se configuram como locais de estadia e de lazer, sua ambiência informal ganha força nos ambientes públicos de livre permanência.5  

A tradição do “dia de feira” ganha a amplitude de um festejo para aqueles que têm nesta atividade um importante momento de lazer e intensa sociabilidade. Para essas pessoas, a tradição do “ir à feira” vira um ritual carregado de valor simbólico e afetivo;  “A presença de elementos populares no cotidiano de uma feira livre [...] mostra também a possibilidade destes elementos realizarem encontros festivos no interior da feira, exercendo espontaneamente formas de sociabilidade” (MASCARENHAS, 2008, p.77). Para Guimarães (2010, p.03), o evento da feira livre se insere como “possibilidade de integração social, celebração de costumes e força instauradora dentro da rotina, possuindo inclusive diversos aspectos semelhantes ao de uma festividade”. 

Mascarenhas ainda defende as feiras livres não só como lugares de anônima aglomeração periódica, mas como espaços de sociabilidades específicas. Na feira livre se instala o uso, 

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impresso pela dinâmica da vida e estimula o uso coletivo dos espaços públicos, ajuda a manter viva a cultura da vida de rua no que seria uma via contrária ao processo de expansão da agorafobia, dos condomínios fechados e shoppings centers. Quando fala da perda do significado tradicional da rua, afirma que: 

A sociabilidade confinada e o temor da violência urbana crescente inauguram nas ultimas décadas um estilo de vida onde a rua perde seu significado tradicional de local privilegiado da convivência tranquila, do lazer infanto‐juvenil e de diversas possibilidades de interação na vida comunitária, para tornar‐se árida via monopolizada pelo automóvel. A “morte” da rua (HOLSTON, 1993; CHOAY, 1982) e todo seu folclore engloba a “morte” das feiras livres, literalmente ausentes nos bairros e cidades pautados pelo urbanismo progressista.(2005, p. __) 

A atividade da feira livre, no momento da apropriação da rua, volta a afirmar este espaço como o local do encontro e nega a sua condição de local de passagem, da não permanência. O uso está ligado à formação de um valor simbólico sobre o lugar na memória do indivíduo, assim, fortalecendo os vínculos para com as áreas de domínio público e as reconhecendo como espaços que são de todos, e não como o que não é de ninguém. Trata‐se de um forte exercício do direito a estes espaços.6 

4 A ANTIGA FEIRA LIVRE DA AVENIDA SANTA RITA, VIÇOSA – MG 7 

Funcionando há mais de quatro décadas, a antiga Feira Livre da Avenida Santa Rita iniciou suas atividades antes na Praça Silviano Brandão, principal praça publica do município, no centro de Viçosa, passando já no ano seguinte a funcionar na Avenida Santa Rita. A partir de extenso levantamento realizado por esta pesquisa sobre a origem dos feirantes e frequentadores desta feira livre, constatou‐se que suas atividades atingiam uma amplitude “microrregional”. Tal constatação é, em parte, explicada pelo fato desta ser a única feira livre de gêneros alimentícios e produtos básicos do município de Viçosa e a maior dentre seus municípios vizinhos, o que atraía feirantes de cerca de doze outros municípios próximos a Viçosa (Teixeiras, Guaraciaba, Cajuri, Coimbra, Amparo da Serra, Ubá, Ponte Nova, Guiricema, Visconde do Rio Branco, São Miguel do Anta, Tocantins e Ervália). Reunia desde pequenos a grandes produtores e comerciantes de produtos agrícolas, revendedores, artesãos, produtores de derivados do leite ou grãos e comerciantes de produtos industrializados. 

Constituía importante atividade de utilidade pública, pois possibilitava o comércio direto entre pequenos produtores rurais e consumidores. Em Viçosa, as vendas na feira livre ainda representavam a única fonte de renda para grande parte destes produtores (ver Figura 1). 

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Figura 1: A Feira Livre da Avenida Santa Rita 

 Fonte: Foto Documentário Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional feira livre de Santa Rita, 12/11/2008. 

As relações sociais de familiaridade entre trabalhadores da feira livre foi uma das características mais fortes observadas. O trabalho manual no campo que envolvia toda a família dita patriarcal era tradicionalmente passado de pai para filhos. Na feira livre da Avenida Santa Rita, resquícios deste antigo tipo de organização refletiam nas formas de distribuição do trabalho no momento da feira e até na “herança” do “ponto comercial” 8, vários deles passados pelos pais ou outros parentes em graus próximos. Estes tipos de relações de familiaridade foram notados com grande intensidade, principalmente no grande número de crianças que ajudavam no “trabalho” e na garantia da renda familiar através da feira. Na atmosfera de informalidade desta atividade, frequentemente se transitava entre o trabalho e o não trabalho. 

A ambiência informal de que fala Mascarenhas (2008, p.82) somada à ausência de uma fiscalização rigorosa por parte do poder público local contribuiu para formação de um “ponto de trocas” de fácil acesso em Viçosa, que pode significar a inserção das classes populares neste segmento de mercado ou uma possibilidade ainda melhor para aqueles que já possuem pontos comerciais fixos. Em outras palavras, a falta de leis e fiscalização vinha transformando a feira livre da Avenida Santa Rita em uma grande possibilidade de reprodução do capital comercial varejista e de muito fácil acesso. 

Por outro lado, a força desta atividade a mantinha como uma forma de festejo. No ambiente da feira livre transitava‐se entre a formalidade da esfera comercial, do trabalho, do lucro e a informalidade do momento da feira como momento de lazer, do sábado pela manhã como tempo do não trabalho.  

A feira livre da Avenida Santa Rita se apresentava como uma das atividades reunidoras de consumidores e usuários de maior heterogeneidade do município; Por isso, uma atividade de grande riqueza social e importante para a manutenção da diversidade no espaço urbano local (ver figuras 2 a 6). 

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Figura 2: Fortes relações familiares na Feira Livre da Avenida Santa Rita 

 Fonte: Acervo pessoal da autora, 09/05/2009. 

 

Figura 3: O passeio na feira livre  Figura 4: O passeio na feira livre 

Fonte: Ambas Foto Documentário Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional feira livre de Santa Rita, 12/11/2008. 

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Figura 5: A feira livre na Avenida Santa Rita. 

 Fonte: Foto Documentário Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional feira livre de Santa Rita, 12/11/2008. 

Figura 6: A feira livre na Av. Santa Rita. Fortes relações de amizade. 

 Fonte: Foto Documentário Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional feira livre de Santa Rita, 12/11/2008. 

5 AS POPULARES FEIRAS LIVRES DE RUA COMO O ARCAICO E O DISTANTE9 

A modernização do varejo alimentar, a popularização dos super e hipermercados, somados ao enrijecimento das leis higienistas contribuíram para a formação de um constante olhar preconceituoso sobre as populares feiras livres de rua como forma de abastecimento alimentar. Esta popularização veio revestida por uma ideologia de modernização, de higiene e de praticidade a todo instante, enquanto a feira livre passou a ser considerada como o arcaico e o anti‐higiênico. 

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O elevado nível de capitalização destes modernos estabelecimentos comerciais, mesmo nas cidades de pequeno e médio porte, o alto investimento midiático, a expansão de grandes redes hegemônicas fortemente contrastam com a ambiência informal e a falta de capital da popular feira livre de rua.  

Para Mascarenhas (2008, p.79):  

No plano do imaginário, recriam‐se as feiras livres como territórios do desconforto, do informal, do transtorno, do atraso, do barulho e sujeira das ruas, enquanto os supermercados são massivamente apresentados como portadores do novo, do belo, do conforto, do “american way of life”.  

Como consequência de um longo período de evolução, as feiras livres passaram de uma tentativa de modernizar o arcaico comércio ambulante ao que Mascarenhas (2005, p.__) chama de “estratégias informais de sobrevivência”, formadas por um “conjunto de práticas alheias ao projeto civilizatório das modernas cidades norte‐americanas, por isso uma anomalia, uma patologia social, [...] o folk sector está dentro da cidade sem fazer parte dela” (FRIEDMANN apud MASCARENHAS, 2005, p.__, grifos no original); Por isso, as feiras livres são tidas como “transgressões” (SILVA apud MASCARENHAS,2005, p.__).  

A atividade da feira livre passou a ser tachada como um fenômeno da informalidade urbana, consequência da expansão de parte pouco capitalizada do setor terciário e da busca de novas formas de sobrevivência material pelas classes populares. As feiras livres passaram a ser reconhecidas pela sua condição de expressiva atividade econômica para as camadas sociais populares. 

Sem qualquer tipo de fiscalização, as feiras livres mergulham na economia informal e cada vez mais passam a serem vistas como uma forma distante e atrasada de comércio. Porém, como forma de sobrevivência para milhares de famílias de baixa renda, a feira livre persiste e resiste ao “processo acentuado de negação da rua, do espaço público de franco acesso, que vem marcando a urbanização brasileira nas últimas décadas” (MASCARENHAS, 2008, p.79).  

Em Viçosa, a inserção das cidades de pequeno e médio porte na lógica das grandes metrópoles, dada a popularização das modernas formas de varejo também nos pequenos e médios municípios brasileiros, a facilidade de escoamento de mercadorias somada a cada vez maior raridade de tempo que impõe a lógica dos grandes mercados de auto serviço de amplo horário de funcionamento ao indivíduo moderno colocam a feira livre cada vez mais como uma forma alternativa de abastecimento alimentar; E, principalmente, como uma forma distante da modernidade e da necessidade de modernização do moderno de que fala Bauman (2005, p.35). 

6 O ARCAICO X UM PROJETO DE MODERNIZAÇÃO E RENOVAÇÃO URBANA LOCAL10   

Segundo Lefebvre (1999, p.45):  

Denominamos iso‐topia um lugar (topos) e o que o envolve (vizinhança, arredores imediatos), isto é, o que faz um mesmo lugar. Se noutra parte existe um lugar homólogo ou análogo, ele entra na isotopia. Entretanto, ao lado do “lugar mesmo”, há o lugar outro, ou o outro lugar. O que o torna outro? Uma diferença que o caracteriza, situando‐o (situando‐se) em relação ao lugar inicialmente considerado. Trata‐se da hetero‐topia.  

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Henri Lefebvre defende que o espaço urbano é formado por “lugares outros” e “lugares mesmos”, que são relacionais. Os “lugares mesmos” seriam territórios do espaço urbano que possuem na sua configuração grandes semelhanças sociais, econômicas e até mesmo físicas. Os “lugares mesmos” são áreas “homogêneas” na produção do espaço, embora não completamente. Os lugares se tornam “lugares outros” se comparados a outros territórios que reúnem características físicas, políticas e sociais diversas e muitas vezes contrárias às suas. 

A existência dos lugares relativos no conjunto urbano, segundo Lefebvre, supõe a existência também de um elemento neutro que consiste na ruptura‐sutura dos lugares justapostos; Este elemento neutro seria, por exemplo, a rua, a praça ou um cruzamento. O espaço da rua representa um espaço “neutro”, não pertencente a uma iso ou hetero‐topia, pela sua constante negação como lugar, pela não apropriação, pela mera função de passagem. 

As populares feiras livres de rua, em geral, no momento em que se apropriam deste espaço, o afirmam como lugar. A rua deixa de ter a função de passagem para se transformar em lugar de permanência. O espaço passa de neutro a territorialidade popular, apropriado popularmente como o local do encontro, do festejo, da troca de mercadorias e da troca social.  

Como atividade reunidora de público de grande heterogeneidade econômica e social, as atividades da antiga feira livre da Avenida Santa Rita se constituíam como uma forma de apropriação ricamente heterogênea; Tomamos então como hipótese que a feira livre se configurava como a materialização de um “lugar outro” dentro de um lugar com um forte projeto de homogeneização, veiculado pelos grandes incorporadores imobiliários locais. Tal hipótese ajudaria a compreender a intensificação da iminência de conflitos. Para Lefebvre (1999,p.45) “Desde que se considere os ocupantes dos lugares, a diferença pode ir até o contraste fortemente caracterizado, e mesmo até o conflito” [grifo nosso].  

A consolidação da Avenida Santa Rita como um novo vetor de intensa valorização imobiliária, principalmente após o ano de 2006, é tomada por nós como reflexo da crescente demanda habitacional gerada principalmente pelo aumento da comunidade ligada à Universidade Federal de Viçosa, pela raridade de solo urbano central não edificado e pelas características físicas desta Avenida11.   

Nos últimos seis anos, a Avenida vem se configurando como um banquete para os empreendedores da construção civil12 (nas figuras 7 a 11, alguns exemplos de parte destes grandes empreendimentos). 

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Figura 7: Avenida Santa Rita n85. Alvará de construção emitido 

em novembro de 2006. Figura 8: Avenida Santa Rita n06. Alvará de construção emitido 

em agosto de 2006. 

 

Fonte: Acervo pessoal da autora, 06/05/2009.  Fonte: Acervo pessoal da autora, 06/05/2009. 

Figura 9: Avenida Santa Rita n184. Alvará de construção emitido em dezembro de 2008. 

 

Fonte: Acervo pessoal da autora, 06/05/2009. 

Figura 10: Avenida Santa Rita n132.  

 Fonte: Acervo pessoal da autora, 19/10/2009. 

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Figura 11: Avenida Santa Rita n159 e 171. Antigos sobrados em processo final de demolição. 

 Fonte: Acervo pessoal da autora, 19/10/2009. 

Ainda segundo a hipótese defendida acima, a antiga feira livre da Avenida Santa Rita, como forte representante da heterogeneidade do espaço urbano, significava uma ameaça à homogeneidade local por estar inserida em um visível novo vetor de investimento imobiliário de caráter fortemente homogenizador. A resistência dos segmentos sociais que se colocaram a favor da permanência desta atividade na Avenida Santa Rita, mesmo diante dos interesses da reprodução do capital imobiliário, resultou em uma situação latente de conflito. 

Esta latente situação de conflito, travada em torno do gozo do direito de uso do espaço público versus a apropriação privada da centralidade pelos negócios do segmento de indústria da construção civil refletiu o grande contraste existente entre o novo ideal de modernização urbana local e a atividade da feira livre como territorialidade popular e “arcaica”. 

A cidade se reproduz na contradição entre a eliminação substancial e manutenção persistente dos lugares de encontros e reencontros, da festa, da apropriação do público para a vida. Há resíduos e resistências nos subterrâneos que fogem ao processo homogeneizador e terrificante do capital.(CARLOS,2007,p.91) 

Neste processo inconstante, os resíduos e resistências deste subterrâneo muitas vezes são “lavados”, pois  

a modernidade de impõe como atmosfera portadora não apenas de todo um conjunto de novas expectativas e práticas sociais, mas também de decisivas transformações na espacialidade urbana, destruindo velhas urbanidades (LEFEBVRE,1991) e as substituindo por novos formatos. (MASCARENHAS,2008,p.79‐80).  

Nos novos empreendimentos imobiliários na Avenida Santa Rita, a venda do imóvel, unidade habitacional/comercial implicava também na venda da paisagem, da extensão da casa, da rua, onde os estrangeiros (BAUMAN, 2005, p.56)  circulavam, mas não permaneciam. Igualmente, a venda da paisagem da Avenida Santa Rita no ato da venda do imóvel envolvia a “limpeza” local, implicava em “varrer” qualquer tipo de apropriação estrangeira existente. Para o mercado, promover a retirada de qualquer fator considerado de desvalorização local fazia parte da estratégia de marketing, na tentativa de garantir a máxima reprodução do capital. 

Na busca por estes interesses econômicos do segmento de indústria da construção civil, a retirada da feira livre representava abrir as portas para uma transformação urbana que vinha revestida por uma ideologia de modernização e que se contrapunha ao “arcaísmo” da feira livre. Não permitir que a feira, como territorialidade popular arcaica e ultrapassada, continuasse se apropriando daquele espaço significava o primeiro passo para a promoção da Avenida Santa Rita como um novo vetor de renovação e modernização urbana e, consequentemente, de intensa valorização imobiliária. Tornou‐se necessária a remoção do que estivesse distante disto, o que incluía a feira livre. 

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7 FOCOS DE RESISTÊNCIA E A REMOÇÃO DA FEIRA LIVRE 

A proposta de relocação da feira livre veio à tona através da Secretaria de Agricultura do Município no ano de 2006. Através de uma aparente manobra política, em uma reunião pouco esclarecedora foi votada e aprovada pelos poucos feirantes presentes13 a construção de um novo local para a feira livre. No ano de 2008, tal proposta foi retomada pelo Poder Público que iniciou a estruturação de um novo espaço para a feira. Tardiamente, em meados do ano de 2009, sob a iminência da remoção efetiva, manifestações contra esta mudança foram organizadas por parte dos feirantes e defensores da permanência desta atividade na Avenida Santa Rita. Os sujeitos sociais envolvidos nesta defesa resistiram se organizando para reivindicar as suas condições de sobrevivência material e o exercício da cidadania.  

Parte dos feirantes acessou a Defensoria Pública do município, no Fórum Presidente Arthur Bernardes, na tarde do dia 28 de maio de 2009 com o intuito de buscar alguma forma de apoio legal que impedisse a mudança da feira (JORNAL FOLHA DA MATA, 29/05/2009, p.01) (ver figuras 12 a 14). O ato antecedeu dois momentos de uso do espaço da Câmara Municipal de Viçosa para discussão do futuro da feira livre14, sendo um deles uma Assembleia Pública organizada exclusivamente para a discussão do assunto. Esta assembleia reuniu cerca de 100 pessoas entre feirantes, moradores da Avenida Santa Rita, Prefeito Municipal em exercício (Raimundo Nonato Cardoso), Secretário de Agricultura e Meio Ambiente em exercício (Geraldo Deusdedit Cardoso) e representantes da sociedade civil. Todos os encontros foram registrados, publicados e divulgados pela mídia impressa local.15  

A amplitude que tomou as discussões sobre o direito de apropriação coletiva da centralidade da Avenida Santa Rita pela feira livre reflete a dinâmica de um espaço urbano em constante choque de interesses e a notoriedade que tal atividade (da feira livre) havia no município. Somado a isto, tais discussões reafirmam a condição de um espaço vivo e não neutro. As formas de organização em defesa da cidadania evidenciadas aqui são importantes indicativas de resistência contra o poder hegemônico. No entanto, apesar da força da resistência, a feira livre teve suas atividades transferidas para área às costas do Colégio Viçosa, na Rua Gomes Barbosa, no mês de janeiro de 2010.  

A remoção foi justificada principalmente pela existência prévia de uma votação16 na qual os próprios feirantes teriam aprovado a mudança. Somado a isto, a necessidade de uma melhor infraestrutura que supriria necessidades básicas da feira livre (como acesso a pontos de água e sanitários) também foi um dos argumentos utilizados pelo poder publico na tentativa de justificar tal remoção. Para a grande maioria dos feirantes contrários a saída, tal votação usada como argumento não passou de uma manobra política dados os motivos já mencionados anteriormente e, ainda, por terem recebido a proposta da construção de um pavilhão coberto para a realização das atividades da feira, proposta esta que não foi cumprida pelo poder público municipal. 

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Figura 12: Capa do jornal Folha da Mata  

 Fonte: Jornal Folha da Mata, Edição 2100 de 29/05/2009. Ano XLVI p.01. 

Figura 13: Capa do jornal Tribuna Livre 

 

Fonte: Jornal Tribuna Livre, Edição 936 de 29/05/2009. p.01. 

Figura 14: Jornal Folha da Mata 

 Fonte: Jornal Folha da Mata. Edição número 2103 de 19junho2009. Ano XLVI. p.03  

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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Os conflitos urbanos se configuram como formas de luta pelo direito ao consumo e construção/reconstrução do espaço urbano. A leitura do urbano através de seus conflitos nos mostra uma cidade sendo construída através de jogos de forças, domínio e dominação; Possibilita‐nos enxergar o movimento inerente à forma urbana que nunca é estática e muito menos acabada. Ao contrário, é uma construção artificial humana que ganha forma a partir de suas relações de poder. 

O Estado possui um papel fundamental na construção do espaço urbano, pois ao mesmo tempo em que atua como mediador de conflitos atua também na garantia da consolidação de relações de domínio do poder hegemônico quando age em função deste e ajuda a promover de maneira desigual o acesso à cidade. 

A remoção da feira livre da Avenida Santa Rita foi parte integrante de um novo ideal de modernização urbana local e afirmação desta Avenida como novo vetor de grandes investimentos imobiliários do qual o poder público de Viçosa compartilha e é peça chave para sua consolidação. A proposta de remoção da feira livre ao mesmo tempo impulsionou e foi impulsionada pela ação do mercado imobiliário e teve papel fundamental na promoção da valorização urbana local.  

A constante imagem formada sobre a tradicional feira livre da Avenida Santa Rita como forma arcaica, ultrapassada e anti‐higiênica de varejo alimentar deveu‐se também pela própria ausência do poder publico na fiscalização e promoção de tal atividade como importante forma de abastecimento alimentar, fonte de renda e sociabilidade urbana. A remoção foi então impulsionada de um lado pela ausência do Estado no fortalecimento e defesa da feira livre e de outro na presença do mesmo como peça chave para a consolidação da hegemonia do poder do segmento de indústria da construção civil local. 

A relocação da feira livre para área às costas do Colégio Viçosa, na Rua Gomes Barbosa, resultou em uma rápida perda de parte da força da feira, pois comprometeu sua antiga e rica forma linear de organização espacial17 e, principalmente, sua visibilidade e centralidade18 (ver figura 15). 

Figura 15: Jornal Tribuna Livre. Núcleo Central do novo espaço da feira livre. Sua nova organização espacial a fragmenta em duas vias ortogonais em torno deste núcleo. 

 Fonte: Jornal Tribuna Livre, Edição 936 de 29/05/2009. p.05. 

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Se de um lado a remoção da feira livre significou sua marginalização e perda de parte da sua força, por outro, significou o passo que faltava para a consolidação de mais um novo vetor de intensa valorização imobiliária no município de Viçosa, pautado por um ideal de modernização e renovação urbana local. 

9 REFERÊNCIAS 

BAUMAN, Zygmund. Confiança e medo na cidade. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009 [2005]. 

BONAMICHI, Nayana Corrêa. Feiras Livres: Lugares de Sociabilidade. Possibilidades de vida urbana contra a morte da rua em Viçosa, Minas Gerais. Viçosa, MG: UFV, 2009. 

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Cidade. 8.ed. 1ª.reimp. São Paulo: Contexto, 2007 [1992] (Repensando a Geografia). 

FOLHA DA MATA. Edição número 2100 de 29maio2009. Ano XLVI. p.01. 

_______________. Edição número 2102 de 12junho2009. Ano XLVI. p.01 e 03. 

_______________. Edição número 2103 de 19junho2009. Ano XLVI. p.01‐03. 

GUIMARÃES, Camila Aude. A feira livre na celebração da cultura popular. 2010. USP. São Paulo. Disponível em <http://www.usp.br/celacc/ojs/index.php/blacc/article/viewFile/140/174> Acesso em: 21maio2012. 

LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Tradução Sérgio Martins. – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999 [1970]. 

MASCARENHAS, Gilmar. Feiras Livres: Informalidade e espaços de sociabilidade. In: Colóquio Internacional Comércio, Cultura e Políticas Públicas em tempos de globalização, 2005, Rio de Janeiro. Anais do Colóquio Internacional Comércio, Cultura e Políticas Públicas em tempos de globalização, 2005. V.1; Disponível em <http://www.ess.ufrj.br/site_coloquio/mesa2_05.pdf > Acesso em: 16abril2009. 

MASCARENHAS, Gilmar; DOLZANI. Miriam C. S. Feira Livre: Territorialidade Popular e Cultura na Metrópole Contemporânea. Revista Eletrônica Ateliê Geográfico – UFG – IESA. V.2, n.4. ago2008. P.72‐87. Disponível em <http://www.revistas.ufg.br/index.php/atelie/article/view/4710> Acesso em: 16abril2009. 

MORAIS, I. R. D.; ARAÚJO, M. A. A. de. Territorialidades e Sociabilidades na Feira Livre da Cidade de Caicó (RN). In: Caminhos de Geografia 23 (17) 244 ‐ 249, fev/2006. Disponível em < http://www.ig.ufu.br/revista/caminhos.html>. Acesso em: 22maio2012. 

OBSERVATÓRIO dos Conflitos Urbanos na Cidade do Rio de Janeiro. Conflitos urbanos: retratos da vida na e da cidade. 11maio2007. Disponível em : <http://www.cidades.gov.br/secretarias‐nacionais/programas‐urbanos/biblioteca/reabilitacao‐de‐areas‐urbanas‐centrais/textos‐diversos/conflitos‐urbanos‐retratos‐da‐vida‐na‐e‐da‐cidade/> Acesso em: 06junho2009. 

SERPA, Angelo. A ampliação do consumo e os conflitos entre o público e o privado na cidade contemporânea: questões para debate. In CARLOS, Ana Fani Alessandri; LEMOS, Amália Inês Geraiges (orgs.). Dilemas Urbanos: novas abordagens sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2003, p. 413‐417. 

TRIBUNA LIVRE. Edição nº. 936, de 29/maio/2009. p.01 e 05. 

______________. Edição nº. 939, de 19/junho/2009. p.01. 

UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA. [Foto documentário] Sábado‐Feira, um registro fotográfico sobre a tradicional Feira de Santa Rita, em Viçosa, Minas Gerais. Viçosa, novembro2008. 

VILLAÇA, Flávio. Espaço intra‐urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP: Lincoln Institute, 2001. 

 

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10 NOTAS 

 

1 Tomamos como “principais empreendimentos imobiliários” os grandes empreendimentos caracterizados como condomínios verticais ou edifícios residenciais multifamiliares de mais de cinco pavimentos. O levantamento e mapeamento foram feitos com base nos Alvarás de Construção emitidos pelo Instituto de Planejamento Urbano Municipal (IPLAM) da Prefeitura Municipal de Viçosa para o período referido. Como resultado deste mapeamento, constatou‐se a efetiva formação de um novo forte vetor de grandes investimentos imobiliários em direção ao antigo local de funcionamento da feira livre (Avenida Santa Rita), na região central de Viçosa. 

2 Os questionários direcionados aos feirantes abrangiam questões como origem e tempo como feirante, gênero e faixa etária, produtos comercializados e local de produção, grau de escolaridade e profissão, assim como questões semi estruturadas para levantamento de subjetividades sobre a feira livre. Os questionários direcionados aos frequentadores da feira também abrangeram questões como origem, faixa etária, grau de escolaridade e questões semi estruturadas que permitiram capturar subjetividades sobre a feira livre e a Avenida Santa Rita. 

3 Por “acompanhamento das discussões públicas” entende‐se a participação nas assembleias destinadas a discussão da remoção/manutenção da feira livre e o acompanhamento dos registros da mídia impressa local sobre o assunto. 

4 Os apontamentos feitos neste tópico se apoiam nas ideias de Mascarenhas (2005 e 2008), Morais e Araújo (2006), Guimarães (2010) e em análises feitas a partir de observações empíricas sobre as populares feiras livres de rua como territórios de sociabilidade. 

5 Para Mascarenhas: “Em contraposição ao ambiente frio e formal dos supermercados, as feiras constituirão um verdadeiro reduto comunitário dentro da cidade de concreto” (2008, p.81). 

6 As feiras livres têm um “papel social e cultural associado ao usufruto da cidadania” (MASCARENHAS, 2005, p.__) e possuem um “papel histórico e crucial de lugar do encontro, do espontâneo, do provisório, da diversidade cultural” (Ibid., p.__). 

7 As considerações feitas aqui neste tópico são baseadas em levantamentos realizados quando esta feira livre ainda funcionava na Avenida Santa Rita, centro de Viçosa, MG. Tais afirmações não podem ser tomadas para descrever a feira após sua remoção desta Avenida e relocação para área próxima ao Colégio Viçosa já que tal relocação resultou em visíveis alterações na sua dinâmica e composição interna que não foram estudadas a fundo por este trabalho. 

8 Como “ponto comercial” entende‐se a barraca ou o modulo de barraca utilizado como unidade base constituinte da feira livre. Para controle da Prefeitura Municipal de Viçosa, cada feirante tinha direito de um a quatro módulos de dimensões 2x2m cada. O controle e a fiscalização das atividades da feira livre era feito através da numeração de cada um destes módulos. 

9 Sobre a imagem arcaica frequentemente atribuida às populares feiras livres de rua, Mascarenhas (2005 e 2008) faz uma rica discussão questionando o lugar da feira livre na metrópole contemporânea. É principalmente nas suas observações e nos resultados das análises dos dados empíricos coletados sobre a dinâmica da antiga Feira Livre da Avenida Santa Rita no município de Viçosa, Minas Gerais, que se baseiam as idéias contidas neste tópico.  

10 Neste ponto, é traçado um paralelo entre as ideias sobre iso, heterotopias e conflitos urbanos levantadas por Lefebvre (1999), as ideias sobre o caráter homogeneizador do capital imobiliário levantadas por Carlos (2007) e Mascarenhas (2008) e, observações feitas a partir da análise de dados empíricos registrados sobre o processo de renovação urbana da Avenida Santa Rita. Tal paralelo objetiva construir uma hipótese que se baseia tanto em fatos empíricos quanto em colocações teóricas, enriquecendo a discussão. 

11 A forma do tipo boulevard da Avenida Santa Rita é tida como importante fator de valorização fundiária local quando comparada à maior parte da estrutura viária do município, caraterizada por vias estreitas e pouco arborizadas. 

12 O mapeamento dos principais empreendimentos imobiliários realizados entre os anos de 2006 e 2010 na região central de Viçosa mostrou sete demolições e cinco novos grandes empreendimentos sendo construídos ou em início de construção somente na Avenida Santa Rita, que possui menos de um quilômetro de extensão total. 

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13 Segundo o representante dos trabalhadores da feira livre, Fernando Antônio Mota, os poucos feirantes convocados para tal votação eram tidos como aliados do então Secretário de Agricultura do município, o que comprometeu uma votação realmente democrática. 

14 Nos dias 9 e 17 de junho de 2009. 

15 Jornal Tribuna Livre. Edição nº. 939, de 19/junho/2009. p.01; Jornal Folha da Mata. Edição número 2102 de                    12junho2009. Ano XLVI. p.01 e 03; e Edição nº 2103 de 19junho2009. Ano XLVI. p.01‐03. 

16 Votação descrita aqui na nota de numero XIV como pouco democrática e como parte de uma possível manobra política. 

17 O antigo espaço utilizado pela feira livre na Avenida Santa Rita permitia sua organização de forma linear e contínua por conta da grande extensão e desenho retilíneo desta Avenida. Tal fato estimulava o fluxo de forma ininterrupta em toda a feira livre. Sua nova forma de organização no novo espaço construído pelo poder publico a fragmentou, pois estipulou uma nova forma de organização espacial que a subdividiu em duas ruas ortogonais e um núcleo central; Isto comprometeu a continuidade dos fluxos internos criando áreas residuais e promovendo “desencontros de fluxos”. 

18 A Avenida Santa Rita se localiza no centro do município de Viçosa, em área importante e de intensa convergência de fluxos proporcionados tanto pelo seu traçado quanto por suas conexões com o restante da malha urbana. Tal fato ajudava a promover de forma muito mais rica o encontro e a visibilidade da feira livre. No novo espaço, a nova forma de implantação  da feira a tira da rua e do fluxo pois a transfere para vias sem saída atrás do Colégio Viçosa e que, portanto, não se configuram como vias de passagem e fluxo intenso. 

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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região 

Operações urbanas consorciadas em Belo Horizonte ‐ novo modelo em construção 

Consortium urban operations in Belo Horizonte ‐ building a new model 

Lívia de Oliveira MONTEIRO Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG. [email protected].  

RESUMO O  Plano Diretor  de  Belo Horizonte,  promulgado  em  1996,  inseriu  as Operações Urbanas  como instrumentos  de  política  urbana  no  município.  A  aplicação  desta  ferramenta,  que  deveria, principalmente, servir para auxiliar na repartição de custos e benefícios originários dos processos de  urbanização  acabou  ganhando  a  conotação  de  troca  em  que  o  poder  público  concedia flexibilizações  em  parâmetros  urbanísticos  vigentes  e  o  setor  privado  efetuava  transformações pontuais no espaço, nem sempre, prioritárias. As decisões  tomadas na  III Conferência Municipal de  Política  Urbana  basearam  revisão  da  legislação  urbanística  em  2010,  pela  qual  foram incorporados  instrumentos  originários  do  Estatuto  da  Cidade,  como  as  Operações  Urbanas Consorciadas  e  o  Estudo  de  Impacto  de  Vizinhança,  que  inserem  novos  conceitos  para  a elaboração de operações no território belorizontino. Por meio do Plano Diretor,  foram marcadas áreas  para  operações  urbanas  consorciadas  em  espaços  considerados  estratégicos  para  se promover transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. Está em  curso  a  elaboração  da  Operação  Urbana  Consorciada  Estação  Barreiro  e  Adjacências,  que retrata a construção de uma metodologia para consolidação de operações urbanas no município sob  novos  princípios.  O  novo  modelo  se  aproxima  de  uma  forma  de  planejamento  local  e demonstra desafios. 

PALAVRAS‐CHAVE: operações urbanas consorciadas, aplicação, desafios 

ABSTRACT The Belo Horizonte Master Plan, which was promulgated  in 1996,  inserted  the Urban Operations as  instruments of urban policy  in  the municipality. This  tool application  should mainly assist  the cost and benefits distribution for the urbanization process, but  it ended up getting a connotation of  an  exchange  in which  the  public  power  granted  flexibility  in  already  exist  urban  parameters whereas the private sector performed punctual changes  in the space which not always presented as  priorities.  The  decisions  taken  at  the  III Urban  Policy Municipal  Conference  based  the  urban land  legislation  review  in  2010  which  incorporated  instruments  from  the  City  Statute,  e.g. Consortium Urban Operation and Neighborhood  Impact Study,  that  include new concepts  for  the operation development  in Belo Horizonte.  Through  the Master Plan, areas were marked  for  the Consortium  Urban  Operations  in  spaces  considered  strategic,  in  order  to  promote  structural urbane  changes,  social  improvement and environmental enhancement. The Barreiro Station and its  vicinity  Consortium  Urban  Operation  is  being  elaborated  and  depicts  a  new  methodology building  to  consolidate  the  urban  operation  in  the municipality  under  new  principles.  The  new model resembles a way of local planning and displays challenges. 

KEYWORDS: urban consortium operations, application, challenges 

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1 INTRODUÇÃO 

As operações urbanas estão previstas no Plano Diretor (PD) de Belo Horizonte desde 1996. A Lei n° 7.165/96, que contém o Plano Diretor municipal, foi um marco importante na política urbana da capital mineira. Ela foi promulgada na mesma data da Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo (LPOUS), Lei n° 7.166/96, que a rege e complementa. Este conjunto regulatório, elaborado depois da aprovação da Constituição Federal de 1988, trouxe avanços na forma de organizar o espaço citadino, abrangendo as responsabilidades da municipalização presentes na carta magna, conjuntamente à adoção do Plano Diretor como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, sob o preceito da garantia da função social da propriedade. 

Muitas das diretrizes contidas nas leis municipais referenciadas haviam sido enunciadas pela Lei Orgânica do Município. Esta regulamentação, aprovada em 1990, fora elaborada em um momento em que estavam ainda latentes as discussões feitas para a inserção de algumas reivindicações do Movimento pela Reforma Urbana na Constituição Federal, presentes, sobretudo, em seus artigos 182 e 183.  

Somada à conjuntura de mudanças trazidas pela lei constitucional, o contexto de formatação do Plano Diretor e da Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo em Belo Horizonte foi marcado por uma alteração no quadro político do governo municipal. O Partido dos Trabalhadores ‐ PT assumiu a Prefeitura em 1993, quando Patrus Ananias ganhou as eleições, colocando um partido de esquerda pela primeira vez no governo da capital mineira1. Uma das metas mais importantes da administração Ananias foi a elaboração destas leis urbanísticas2.  

No primeiro ano de seu mandato, foi organizada uma estrutura técnico‐administrativa para a concepção dos projetos de lei que dariam origem às novas normas urbanas. O Executivo montou um grupo de trabalho que congregava especialistas de várias áreas para consolidarem estudos acerca da estrutura urbana da cidade. A publicação, denominada “Plano Diretor de Belo Horizonte: lei de uso e ocupação do solo, estudos básicos”, demonstrou uma cidade com crescimento desigual; concentração de riquezas; diferentes padrões de urbanização; densidades construtivas diversas, sobretudo, concentradas na área central e sua periferia imediata; fragilidades ambientais e deficiências no cuidado ao patrimônio e à paisagem, dentre outros aspectos. Tais problemas, típicos das capitais brasileiras, fruto do rápido processo de urbanização que viveu o país, foram espacializados no território para que as deficiências fossem identificadas e analisadas com mais clareza e se pudesse delinear os condicionantes legais para ordenar o desenvolvimento urbano do município.  

O discurso que justificava a consolidação do novo aparato legal era fundamentado na necessidade de “inversão de prioridades”, na conformação de modelos de construção participativa de planejamento e gestão urbanos e na mitigação dos processos de exclusão e segregação espacial observados no território belorizontino. As legislações urbanísticas promulgadas em 1996, segundo seus elaboradores, buscavam contemplar as omissões e corrigir os erros contidos nas leis de 1976 e 19853, que regulavam o uso e a ocupação do solo até então. Visavam também introduzir conceitos e pensamentos que norteassem uma ocupação do solo mais adequada às condições de cada região e promover desenvolvimento urbano de qualidade com melhor distribuição dos bens de consumo, infra estrutura, serviços e produção no território.  

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As principais alterações feitas pelas leis urbanísticas promulgadas em meados da década de 1990 tentaram amenizar a concepção extremamente funcionalista de regulação do uso e ocupação do solo adotada até então. As leis introduziram o conceito de macrozoneamento, mitigando alguns efeitos decorrentes do zoneamento adotado nas leis anteriores. As normas urbanísticas precedentes determinavam modelos de assentamento para as edificações, bem como quais usos eram admitidos em cada zona. O macrozoneamento possibilitou a adoção de índices construtivos mais ou menos permissivos, de acordo com potenciais de adensamento determinados a partir da completude da infra estrutura de cada área e das demandas por preservação e proteção ambiental, cultural, arqueológica ou paisagística. A instalação de usos não residenciais passou a ocorrer em conformidade com a hierarquia das vias no sistema de circulação, classificadas dentro das categorias de vias de ligação regional, arteriais, coletoras e locais4, respeitadas as áreas de relevância ambiental e cultural.  

Em áreas onde aspectos ambientais, paisagísticos, patrimoniais ou urbanísticos conferiam especificidades aos lugares, foi proposto um "sobrezoneamento" que deveria predominar sobre a mancha do macrozoneamento existente no local, com a denominação de Área de Diretrizes Especiais (ADE). Foram, também, instituídos na nova legislação instrumentos específicos de política urbana, como a transferência do direito de construir, a operação urbana e o convênio urbanístico de interesse social. 

No contexto de reformulação das leis urbanísticas, as operações urbanas deveriam ser inseridas como mecanismos redistributivistas, de modo a promover a repartição mais justa de cargas e benefícios originados do processo de urbanização, e viabilizar intervenções urbanísticas mais inclusivas ou vinculadas à promoção de habitação de interesse social (COTA, 2010). O texto legal que regulamenta o instrumento, entretanto, não explicitou, como obrigatórios, os preceitos redistributivistas das operações, apenas conferindo ao Executivo a coordenação das intervenções, com liberdades amplas para conduzir as parcerias.  

Art. 65 – Operação urbana é o conjunto integrado de intervenções, com prazo determinado, coordenadas pelo Executivo, com a participação de entidades da iniciativa privada, objetivando viabilizar projetos urbanísticos especiais em áreas previamente delimitadas. 

Parágrafo único – A operação urbana pode ser proposta ao Executivo por qualquer cidadão ou entidade que nela tenha interesse (BELO HORIZONTE, 2000a). 

As poucas amarras do texto legal davam ao Executivo possibilidade para, facilmente, justificarem a operação e ao investidor muitas alternativas para solicitar a flexibilização de parâmetros construtivos e negociar contrapartidas. Da criação do instrumento no município até 2010, foram aprovadas pela Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) 12 operações urbanas. As mesmas não demonstraram o caráter de inversão de prioridades, de redistribuição da valorização fundiária e nem sempre serviram de forma eficiente à promoção de projetos estruturantes, função que o setor técnico passou a depositar no instrumento, mas que não se viabilizou da forma esperada. Tais operações acabaram sendo utilizadas para a flexibilização de parâmetros construtivos, sobretudo no que concerne ao aumento de coeficiente de aproveitamento, em troca de intervenções, em sua maioria, pontuais de requalificação urbanística. Passou a haver uma conotação de “trocas”, nas quais os benefícios privados, utilizando‐se dos princípios do “solo criado”, eram revertidos em obras, nem sempre, prioritárias. O trabalho de Cota (2010) reflete o histórico da criação do instrumento e analisa as operações viabilizadas no município. A autora conclui, a partir de suas análises, que:  

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Apesar de ser instituída como um meio de viabilizar o direito à cidade, ao propor uma nova lógica de participação da iniciativa privada na produção do espaço – qual seja, a repartição de custos e benefícios do processo de urbanização com o poder público –, na prática, as experiências revelam que o instrumento é utilizado para viabilizar demandas específicas, a maioria, empreendimentos pontuais, que, em geral, exigem flexibilizações nas normas da legislação de uso e ocupação do solo. Com isto, as operações urbanas, em Belo Horizonte, acabaram sendo apropriadas para viabilizar, por intermédio do Estado, interesses particulares e/ou privados. Na maioria das propostas analisadas o interesse público ficou a reboque das demandas privadas ou específicas (COTA, 2010, p: 383). 

Alterações na forma de se desenvolver operações urbanas no município de Belo Horizonte foram possíveis com a inserção das Operações Urbanas Consorciadas (OUC) como instrumento de política urbana no Plano Diretor municipal, em sua alteração promulgada pela Lei n° 9.959 em 20 de julho de 2010. O Executivo, sobretudo por meio da Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano (SMAPU), vem construindo uma nova forma de se pensar as operações urbanas, levando em conta tanto os exemplos de aplicação do instrumento realizados no próprio município como também experiências de São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro, no que concerne às razões dos sucessos e problemas verificados na aplicação desta ferramenta. A SMAPU busca um novo método de elaborar operações urbanas com o objetivo de garantir seu papel como instrumento de parceria para promoção do planejamento, desenvolvimento e gestão do solo citadino. 

As alterações na conjuntura legal e política em Belo Horizonte que possibilitam essa nova conformação ao instrumento – disposto sob premissas do Estatuto da Cidade, Lei n° 10.257/01 ‐ serão explicitadas na sequência, bem como a metodologia para a elaboração da primeira operação urbana consorciada em desenvolvimento sob os novos preceitos: a Operação Urbana Consorciada Estação Barreiro e Adjacências (OUC‐EBA). Mesmo tratando‐se de processos recentes e em curso, é possível identificar avanços e desafios para se incorporar às operações urbanas em Belo Horizonte as funções de melhor aproveitamento da terra urbana, inclusão social, divisão dos custos de urbanização e viabilização das intervenções prioritárias.  

2 A CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE POLÍTICA URBANA E A ALTERAÇÃO DE PRINCÍPIOS LEGAIS 

A III Conferência Municipal de Política Urbana foi realizada pelo Executivo no primeiro ano de mandato do Prefeito Márcio Lacerda, 2009. A então Secretaria Municipal de Política Urbana (SMURBE)5, coordenada pelo Secretário Murilo Valadares, ficou incumbida de organizar o corpo técnico da Prefeitura e convocar a população para discussões acerca dos resultados que o Plano Diretor e a Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo, vigentes no território há mais de 10 anos, haviam gerado na cidade. O evento teve como objetivo redesenhar o que fosse preciso entre os artigos das leis organizadoras do território em busca de adequações, modernizações e construções de novos rumos para o desenvolvimento do município. Os técnicos do núcleo de planejamento urbano da SMURBE haviam preparado um diagnóstico publicado sob o título “Estudos urbanos: transformações recentes na estrutura de Belo Horizonte”, com a compilação de pesquisas multidisciplinares que demonstraram os resultados da ocupação do solo e da distribuição de atividades econômicas no município. Estes estudos balizaram todas as discussões da Conferência. 

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O evento contou com a participação de 243 delegados, que representavam os setores técnico, empresarial e popular, eleitos em assembléias organizadas para cada um desses setores6. A metodologia de discussão foi baseada, fundamentalmente, na organização dos delegados e técnicos do Executivo em sete grupos de debate que trabalharam a partir de material que continha as propostas iniciais de alteração das diretrizes legais. Grande parte do conteúdo levado para discussão era proveniente da II Conferência Municipal de Política Urbana7, alterado pelo diagnóstico técnico organizado previamente e pela intenção do poder público municipal em incorporar à legislação as premissas do Estatuto da Cidade. Foram debatidos nos grupos os seguintes temas: ocupação do solo; licenciamento e localização de atividades econômicas; parcelamento do solo; posturas municipais; áreas de diretrizes especiais; áreas de interesse social e instrumentos de política urbana. As propostas aprovadas em cada grupo foram votadas pela plenária geral, formada por todos os participantes, de modo a legitimar o conteúdo a ser redigido pelo Executivo em um Projeto de Lei para alteração das normas urbanísticas.  

Mesmo tendo sofrido diversas emendas, o Projeto de Lei enviado para a Câmara Municipal foi aprovado na forma da Lei n° 9.959 em 20 em julho de 2010. As principais alterações contidas no texto legal, que imprimiram um novo formato às operações urbanas no município foram: a inserção das Operações Urbanas Consorciadas (OUC); a demarcação de perímetros para operações urbanas consorciadas no território pelo Plano Diretor e a regulamentação do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV).   

Belo Horizonte, depois da alteração feita ao PD e à LPOUS, passou a contar com dois tipos de operações urbanas, diferenciadas entre operações urbanas simplificadas, baseadas em diretrizes das operações urbanas vigentes no município desde 1996, e as operações urbanas consorciadas, reguladas pelas diretrizes impostas pelo Estatuto da Cidade para o instrumento. O conceito geral de operações urbanas passou a vigorar com a seguinte redação:  

Art. 65 ‐ Operação Urbana é o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Executivo Municipal, com a participação de agentes públicos ou privados, com o objetivo de viabilizar projetos urbanos de interesse público, podendo ocorrer em qualquer área do Município (BELO HORIZONTE, 2010). 

As operações urbanas simplificadas não foram explicitamente conceituadas na lei municipal. O caput do artigo 66 do PD dispõe apenas que as mesmas devem ser sempre motivadas por interesse público. Quanto às operações urbanas consorciadas, o Plano Diretor traz, no artigo 69, definição análoga ao conceito expresso no Estatuto da Cidade para o instrumento: 

Art. 69 ‐ Operação Urbana Consorciada é o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Executivo Municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental, podendo ocorrer em qualquer área do Município (BELO HORIZONTE, 2010).  

A diferença fundamental entre os dois tipos de operações urbanas são seus objetivos: as simplificadas viabilizam intervenções pontuais e continuam com a noção de “troca” da primeira geração de operações urbanas, inserindo poucos parceiros e tendo alcance específico e limitado, enquanto as consorciadas visam intervenções mais estruturantes, de maior amplitude e que abarcam maior gama de participantes e tipos de parcerias. Organizando os preceitos legais que resguardam as finalidades de cada tipo de operação em um quadro, pode‐se comparar o alcance destas ferramentas. 

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Quadro 1: Quadro comparativo entre os tipos de operação urbana em Belo Horizonte 

(Art. 66 e art. 69 da Lei n° 7.165/96, alterada pela Lei n° 9.959/10) 

Operação Urbana Simplificada8  Operação Urbana Consorciada

tratamento urbanístico de áreas públicas;  

reurbanização; 

otimização de áreas envolvidas em intervenções urbanísticas de porte e reciclagem de áreas consideradas subutilizadas; 

dinamização de áreas visando à geração de empregos; 

abertura de vias ou melhorias no sistema viário;  ampliação e melhoria da Rede Estrutural de Transporte Público Coletivo; 

melhoria e ampliação da infra estrutura e da Rede Viária Estrutural; 

implantação de programa habitacional de interesse social;  implantação de Programas de Habitação de Interesse Social; 

implantação de equipamentos públicos;  implantação de equipamentos estratégicos para o desenvolvimento urbano; 

recuperação do patrimônio cultural; 

proteção ambiental; 

amenização dos efeitos negativos das ilhas de calor sobre a qualidade de vida; 

valorização e criação de patrimônio ambiental, histórico, arquitetônico, cultural e paisagístico; 

regularização de edificações e de usos;  regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente; 

requalificação de áreas públicas.  implantação de espaços públicos. 

Fonte: Monteiro, Lívia, com base em BELO HORIZONTE, 2010. 

As operações urbanas consorciadas delimitadas no Plano Diretor Municipal são (ver FIG. 1 e 2): Áreas em Reestruturação no Vetor Norte de Belo Horizonte; entorno de Corredores Viários Prioritários; entorno de Corredores de Transporte Coletivo Prioritários; Áreas Centrais, indicadas como preferenciais para Operação Urbana nos termos do Plano de Reabilitação do Hipercentro; áreas localizadas em um raio de 600m das estações de transporte coletivo existentes ou das que vierem a ser implantadas (BELO HORIZONTE, 2010: art. 69A). 

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Figura 1: Áreas para operações urbanas consorciadas 

Fonte: – Anexo III ‐ Inclui o Anexo IV da Lei 7.165/1996. BELO HORIZONTE, 2010. 

Figura 2: Operação urbana consorciada das áreas em reestruturação do vetor norte de belo horizonte 

 Fonte: – Anexo IV ‐ Inclui o Anexo IV‐A da Lei 7.165/1996. BELO HORIZONTE, 2010 

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As demarcações de áreas de operação urbana consorciada indicadas nos anexo III e IV do PD são preliminares e passíveis de serem alteradas de acordo com estudos específicos, quando da regulamentação de cada uma delas. São limites submetidos a regras transitórias, com o intuito de controlar a valorização da terra nos principais setores de crescimento da cidade para onde esta prevista a aplicação do instrumento por meio, principalmente, do controle do potencial construtivo atribuído aos terrenos. Dentro das áreas demarcadas como OUC e nos terrenos limítrofes a elas, o coeficiente de aproveitamento fica limitado a 1,0 ou a 0,5, exceto para a construção de empreendimentos públicos ou de comprovado interesse público, os quais, em determinadas áreas, podem praticar o potencial construtivo original do macrozoneamento. As áreas dentro destes perímetros não podem receber potencial construtivo derivado de transferência de direito de construir e a lei também regulamenta que não pode haver operações urbanas simplificadas nas áreas de operações urbanas consorciadas, a menos que objetivem viabilizar a construção de empreendimentos destinados a incrementar a estrutura urbana para a Copa de Futebol FIFA 2014.  

A limitação prévia do coeficiente de aproveitamento para as áreas de operação urbana consorciada é fundamental para a sua viabilidade. Os coeficientes de aproveitamento praticados em Belo Horizonte são bastante altos em decorrência não só dos próprios índices, mas também dos descontos atribuídos a áreas de estacionamento, pilotis, cobertura e uma porcentagem das áreas destinadas à circulação vertical e horizontal, varandas, caixa d’água, casa de máquinas, dentre outros elementos construtivos. Dependendo da tipologia da edificação, a soma dos descontos feitos à área computável pode fazer dobrar o coeficiente de aproveitamento regulamentado para o macrozoneamento. O rebaixamento do potencial construtivo nas áreas de operação urbana indica maior pertinência em se praticar as premissas de “solo criado” agregadas a outras ferramentas, com as quais o poder público, por meio de lei específica para cada OUC, poderá conceder onerosamente o direito de construir, de modo a promover um maior controle de adensamento e uma distribuição, mesmo que parcial, dos encargos gerados pelo uso intensivo da terra.  

As regras transitórias para as áreas de operação urbana consorciada ainda prevêem a aplicação de Direito de Preempção sobre todos os lotes nelas incluídos. Este instrumento, entretanto, não foi regulamentado no município para seu efetivo emprego.  

Ressalta‐se ainda que tais regras transitórias sobrepõem‐se a qualquer diretriz legal menos restritiva dada pelo macrozoneamento ou pelo sobrezoneamento e são soberanas até que a lei específica da operação urbana seja aprovada. O PD dispõe, entretanto, diferentes objetivos e regras para os perímetros demarcados para cada OUC.  

A Operação Urbana nas Áreas em Reestruturação no Vetor Norte de Belo Horizonte foi criada, especificamente, com a finalidade de ordenar a ocupação do solo, visando estruturar nova centralidade no entorno da Cidade Administrativa do Estado de Minas Gerais (CAMG). Ela é dividida em subáreas que visam organizar o entorno deste grande equipamento para expansão do uso institucional de interesse público complementar a suas atividades, ordenar o crescimento urbano na região, ampliar e melhorar a rede viária estrutural e local, entre outros objetivos. 

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As Operações Urbanas Consorciadas das Áreas Centrais, por sua vez, são originárias de um plano urbano local concluído em 2007. O “Plano de Reabilitação do Hipercentro”10 indicou perímetros que merecem ser requalificados por seu potencial de atendimento por comércio e serviços, pela sua importância na malha urbana, por seus atributos culturais e históricos e pela própria quantidade de visitas que recebem cotidianamente.  

As operações urbanas consorciadas Corredores Viários Prioritários e Corredores de Transporte Coletivo Prioritários têm finalidades semelhantes. A Área Central de Belo Horizonte é o núcleo polarizador das atividades urbanas. A região, projetada para ser o ponto nodal da capital do estado, congrega atividades tradicionais e modernas, grande diversidade de usos, sedes de empresas, órgãos públicos e é o principal locus da festa e da cultura da metrópole mineira. Ao longo dos anos, vários tipos de atividades se instalaram nas vias radiais à Área Central, espaços alternativos à visibilidade do centro principal por cortarem o território ligando o núcleo primeiro de Belo Horizonte às periferias e municípios da Região Metropolitana (RMBH). 

Os eixos radiais agregam condições que lhes conferem altos preços da terra: são geralmente áreas com declividades amenas que se destacam em uma cidade com grandes áreas de relevo acidentado; reúnem identidade histórica como reconhecidos eixos de ligação entre comunidades; servem ao tráfego de grande quantidade de linhas de transporte coletivo; têm permissividade legal para a implantação de atividades não residenciais de variados tipos; possuem coeficientes de aproveitamento do solo predominantemente maiores ou iguais a 1,0; são atendidos por infra estrutura completa comparativamente à instalada na cidade, além de receberem obras de manutenção com maior freqüência.  

A execução de obras de grande porte – em curso em avenidas como Cristiano Machado, Antônio Carlos e Pedro I, com vistas a qualificar e aumentar a capacidade do sistema de transporte por meio da implantação do sistema de Bus Rapid Transit (BRT) – apesar de gerar perda de valor de uso para algumas atividades, agrega valor de troca, sobretudo, aos imóveis imediatamente lindeiros a estas vias. 

As operações urbanas Corredores Viários Prioritários e Corredores de Transporte Coletivo Prioritários visam, fundamentalmente, organizar os perímetros das áreas adjacentes a importantes eixos de ligação urbana como expansões qualificadas do centro principal da cidade, dissipando qualidade de centro regional aos mesmos, promovendo o incremento de áreas economicamente atraentes a investimentos do setor imobiliário e a atividades econômicas que possam expandir a função da metrópole em oferecer comércio e serviços. Os eixos devem ser planejados para servirem à função de morar, incluindo população de baixa renda, e agregarem intervenções para equilíbrio ambiental, oferecendo áreas verdes e espaços públicos. A idéia que vem sendo discutida entre a equipe técnica da SMAPU e levada ao Conselho Municipal de Política Urbana (COMPUR)11 é a qualificação desses percursos para a formação de unidades territoriais que privilegiem deslocamentos por modos de transporte coletivo e não motorizados com a finalidade de se criar alternativas que promovam menor uso do automóvel.  

As OUCs demarcadas em torno das estações de transporte coletivo têm muitas das funções determinadas para as áreas de operações urbanas lindeiras a corredores viários prioritários, até mesmo por terem, muitas vezes, seus perímetros coincidentes com partes destas. Elas, 

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entretanto, agregam com mais força a motivação em se aproveitar espaços subutilizados e aumentar a capacidade de suporte do solo urbanizado para conter maior adensamento construtivo e populacional. A idéia em discussão é que o entorno das estações de transporte coletivo, sobretudo das que servem ou servirão ao sistema de trens, agregue equipamentos de grande porte e seja local de moradia de uma população que faça uso intensivo de transporte coletivo e do modo a pé de deslocamento. O objetivo, além maximizar a estrutura de transporte de massa implantada, é trazer uma população socialmente diversificada para residir e trabalhar em locais centrais e acessíveis, a partir do alcance dos objetivos definidos no artigo 69‐M da Lei n° 7.165/96 (BELO HORIZONTE, 2010). 

Art. 69‐M ‐ A Operação Urbana nas áreas localizadas em um raio de 600 m (seiscentos metros) das estações de transporte coletivo tem as seguintes finalidades: 

I ‐ permitir a implantação de equipamentos estratégicos para o desenvolvimento urbano e para o sistema de transporte; 

II ‐ ampliar e melhorar a rede viária local, melhorando o acesso às estações; 

III ‐ otimizar as áreas envolvidas em intervenções urbanísticas de porte e proporcionar a reciclagem de áreas consideradas subutilizadas; 

IV ‐ rever os adensamentos, dada a maior capacidade de suporte do sistema de transporte. 

As áreas definidas para operações urbanas consorciadas no Plano Diretor recebem regras especiais, como afirmado anteriormente, que podem ser revisadas quando elaborado plano específico para formatação do texto legal que lhe dará viabilidade e regerá seu funcionamento. Baseado no conteúdo do Estatuto da Cidade, o § 4° do artigo 69 da Lei n° 7.165/96 (BELO HORIZONTE, 2010), regulamenta:  

§ 4º ‐ A lei específica que aprovar ou regulamentar a Operação Urbana Consorciada deverá conter, no mínimo: 

I ‐ a definição da área a ser atingida; 

II ‐ o programa básico de ocupação da área; 

III ‐ o programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela Operação; 

IV ‐ as finalidades da Operação; 

V ‐ o estudo prévio de impacto de vizinhança; 

VI ‐ a contrapartida a ser exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores privados, nos termos do disposto no inciso VI do art. 33 da Lei nº 10.257/01; 

VII ‐ a forma de controle da Operação, obrigatoriamente compartilhado com representação da sociedade civil. 

Especificamente sobre o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), citado no inciso V do § 4° do artigo 69 do PD, acima referenciado, Belo Horizonte regulamentou um sistema bastante particular para desenvolvimento e avaliação, o qual serve à concepção das operações urbanas consorciadas de uma forma especial, como será retratado com o caso da Operação Urbana Consorciada Estação Barreiro e Adjacências. 

As alterações ao Plano Diretor trouxeram a incorporação do instrumento como ferramenta para análise de empreendimentos considerados potencialmente geradores de impactos preponderantemente urbanísticos, seja pelo porte das edificações ou pelas atividades que 

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desempenham12. O EIV foi regulamentado pelos artigos 74‐A a 74‐E da LPOUS e pelo Decreto n° 14.479 em 13 de julho de 2011, alterado pelo Decreto n° 14.594 em 30 de setembro do mesmo ano. O segundo decreto manteve as disposições do primeiro, mas foi necessário para adequar a tramitação e desenvolvimento dos processos de licenciamento urbanístico especial à criação da Comissão de Interface para Orientação e Acompanhamento do Processo de Licenciamento de Empreendimentos de Impacto13. 

A regulamentação do EIV14 no município imprimiu ao COMPUR uma importância ainda maior do que a que apresentava antes da promulgação da alteração das normas urbanísticas em 2010. As operações urbanas ou os empreendimentos que possuem a obrigatoriedade de desenvolverem este estudo para sua implantação, construção, ampliação ou funcionamento devem passar por reuniões públicas do Conselho, pelo menos, duas vezes, salvo alguns casos para os quais os conselheiros deliberaram que sua Gerência Executiva deve levar para apreciação em plenária apenas a decisão de diretrizes. 

A operação urbana consorciada disposta em torno da Estação de Integração do BHBUS Barreiro, localizada na Avenida Afonso Vaz de Melo no bairro Barreiro de Baixo, denominada Operação Urbana Consorciada Estação Barreiro e Adjacências (OUC‐EBA) e discutida a seguir, é a primeira operação a ser desenvolvida sob os novos preceitos legais.  A construção desta operação, ainda em curso, deve ser levada à comunidade acadêmica e descrita a maior parte da população para debates e aperfeiçoamento. Provavelmente será a partir de sua metodologia, com revisões e adequações, que as demais operações urbanas consorciadas, de porte muito maior, deverão ser formuladas pelo poder público municipal.  

3 A OPERAÇÃO URBANA CONSORCIADA ESTAÇÃO BARREIRO E ADJACÊNCIAS (OUC‐EBA) 

Belo Horizonte, diferentemente de outras capitais como Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo, considerou que o fato do Estatuto da Cidade e do Plano Diretor municipal exigirem estudo de impacto de vizinhança prévio para as operações urbanas, cria a obrigação de desenvolvê‐lo para a concepção do Projeto de Lei referente à OUC a ser regulamentada. As outras capitais, conforme pesquisado, procedem, na maioria das vezes, a realização do estudo de impacto de vizinhança ou estudo de impacto ambiental anteriormente à implementação da operação, mas depois que a lei que a rege foi aprovada pela Câmara Municipal.  

Entendeu‐se que o EIV deve ser o instrumento básico para que a operação urbana consorciada adquira seu equilíbrio urbanístico e econômico‐financeiro. É por meio desta ferramenta que se buscará desenvolver diagnóstico sobre a região abrangida pela operação de modo a: avaliar a capacidade de suporte ao adensamento construtivo e populacional da área; dimensionar as áreas verdes, espaços públicos e equipamentos urbanos e comunitários; decidir sobre intervenções estruturadoras do espaço e priorizar obras; formular novos desenhos urbanos; conceber regras e padrões de parcelamento, ocupação e uso do solo que incidam especificamente sobre a área delimitada para a operação; apurar informações sobre a dinâmica imobiliária e o valor da terra; estabelecer as formas de contrapartida, entre outras condições para qualificação do espaço e solução de problemas nele diagnosticados.  

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O EIV é o instrumento que garantirá o equilíbrio da operação dentro da área que abrange e para seu entorno. Parte‐se da premissa que um plano urbanístico com a complexidade de uma OUC só pode existir se forem previamente equacionados os impactos negativos que as alterações espaciais que promova possam ocasionar e potencializados os impactos positivos a ordenarem o desenvolvimento do território. As diretrizes, normas legais e obras intrínsecas às operações devem ser escolhidas como medidas mitigadoras dos problemas e possíveis impactos negativos e potencializadoras das vocações e qualidades locacionais, a partir do equacionamento de repercussões identificadas por meio da análise de conflitos, escopo do estudo de impacto de vizinhança para operações urbanas consorciadas.  

A metodologia para elaboração da Operação Urbana Consorciada Estação Barreiro e Adjacências foi proposta com os princípios enunciados. O contexto de formatação desta operação incluía fatores como a vontade da SMAPU em desenvolver um estudo piloto onde poderia aplicar as discussões feitas acerca dos novos instrumentos de política urbana, antes de ter que regulamentar as grandes operações previstas para os corredores viários principais da cidade, e a pressão que os proprietários de terra no Barreiro faziam para terem direito aos coeficientes do macrozoneamento original da área, predominantemente classificada como Zona Central do Barreiro (ZCBA) e Zona de Adensamento Preferencial (ZAP). 

A Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano organizou uma metodologia para desenvolvimento da OUC‐EBA baseada, fundamentalmente, em dois estudos: o Estudo de Impacto de Vizinhança e o Estudo de Viabilidade Econômico‐financeira (EVEF).  

O EIV foi formatado pelo levantamento das características da região, especificando‐se os pontos positivos e as deficiências identificados entre os diversos elementos e dinâmicas que a compõem. A primeira constatação da equipe foi a necessidade de revisão do perímetro da operação, ajustando o limite legal, contido no Plano Diretor, a uma área de abrangência com real adequação às funções que a OUC deveria agregar para requalificação do espaço e aplicação dos fundamentos que a originou. O novo perímetro, ampliado em relação ao limite original, foi definido com base em limites administrativos, barreiras topográficas, áreas industriais e outras características do tecido local adequadas à intenção desta operação em ampliar o aproveitamento da estrutura urbana em torno da estação de transporte coletivo e incrementar a importância do lugar como centro regional.  

Foram feitas consultas a dados secundários, sobretudo ao Censo Demográfico, para a caracterização da realidade econômica e social. A dimensão relativamente pequena da área abrangida pela OUC, aproximadamente, 1,34 Km², permitiu que a equipe técnica a percorresse facilmente, afim de: reconhecer todas as áreas verdes disponíveis e verificar a condição da arborização; qualificar os espaços públicos; caracterizar as tipologias construtivas em seu porte e padrão; levantar e caracterizar os grandes equipamentos da região; hierarquizar o conjunto de atividades não residenciais internamente e em relação à cidade; avaliar as alternativas de trânsito e transportes e de estacionamentos da região; aferir o valor do solo e conhecer a dinâmica imobiliária; estudar a qualidade da infra estrutura, além de elaborar diagnóstico concernente a outros temas. O debate constante da equipe sobre as observações feitas em campo cuidava que fossem enumerados criteriosamente os conflitos de uso, ocupação e apropriação do espaço.  

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Conforme o EIV, a região pode ser dividida em pelo menos cinco subáreas em decorrência de suas características sociais, econômicas, de organização territorial e de uso e ocupação do solo, assim sintetizadas:  

Subárea 1: definida a leste ao longo do corredor da Avenida Olinto Meireles, a qual possui fábrica da Vallourec e Mannesmann Tubes de um lado e a outra margem com imóveis subutilizados ou ocupados por atividades que geram menor movimento de pessoas como concessionárias, oficinas mecânicas, marmorarias, etc; 

Subárea 2: formada à norte e oeste pelos bairros Santa Margarida e Átila de Paiva, onde reside uma população de baixo a médio poder aquisitivo. A área, separada do centro principal do Barreiro pela linha férrea, apresenta predominância de residências unifamiliares, muitas delas, inseridas em lotes menores que 300m² com alta taxa de ocupação. É provável que a conclusão das obras na avenida Tereza Cristina seja acompanhada da valorização imobiliária do local.   

Subárea 3: faixa de grandes equipamentos de abrangência intermediária e regional situada paralelamente à linha de trem: instituição da rede Pitágoras; um grande atacadista; campus da Pontifícia Universidade Católica (PUC‐Minas); batalhão da Polícia Militar; estação de transporte coletivo e Shopping Center; Restaurante Popular; Hipermercado; Campus da UNA, entre outras atividades; 

Subárea 4: determinada como a porção centro‐oeste e sul do perímetro da operação urbana. Esta é a área onde os imóveis são mais qualificados e predominam residências de melhor condição construtiva, comparativamente à região, e alguns edifícios multifamiliares; 

Subárea 5: localizada a centro‐leste e ao longo da avenida Sinfrônio Brochado, onde concentram‐se atividades de comércio e serviços locais e intermediários que recebem maior visitação cotidiana de pessoas. Este espaço é o que mais sofre com o intenso tráfego de passagem, más condições dos passeios, mobiliário urbano disposto de forma inadequada, poluição visual, entre outros problemas. Nesta área encontram‐se edifícios de maior porte, com mais de 10 andares.  

Todo o perímetro estudado é carente de áreas de lazer e equipamentos culturais e as poucas áreas verdes existentes são pequenas e mal estruturadas. Faltam salas de cinema, teatros e outros equipamentos que valorizem a memória da região.  

O tráfego de veículos possui conflitos em decorrência das principais avenidas servirem bastante ao tráfego de passagem, tanto de veículos particulares quanto de linhas de transporte coletivo municipais e metropolitanas. Este aspecto deverá ser alterado com a finalização das obras da avenida Tereza Cristina. Este elo de ligação da capital com os municípios a sul possui problemas de capacidade e interrupções que serão, provavelmente, equacionados com a conclusão das obras. Convém ressaltar que, embora a quantidade de itinerários de transporte coletivo cause conflitos no tráfego, traz também movimento e visitas à região e, portanto, sua rearticulação deve ser tratada com cautela. Ainda sobre as questões de mobilidade ressalta‐se que a área deverá receber a Linha 2 do metrô, que facilitará a ligação da região ao centro da cidade.  

Verificou‐se que a área demarcada para operação tem a possibilidade de tornar‐se um centro regional qualificado. A constituição do bairro Barreiro de Baixo antecedeu a construção da capital mineira e o local, historicamente, atende demandas de um entorno carente em termos do atendimento às necessidades da população que abriga. A área, que sempre foi polarizadora de sua vizinhança pela própria carência de serviços urbanos nela observada, passa, atualmente, por um processo de aumento real da capacidade de atendimento ao modo de vida urbano em muitos aspectos. 

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A região do Bairro Barreiro de Baixo congrega, predominantemente, atividades de cunho local – como mercearias, farmácias, salões de beleza, entre outras – e de função intermediária – como lojas de cama, mesa e banho, supermercados, consultórios médicos e odontológicos, entre outras. A região, entretanto vem recebendo atividades de maior porte e especialização, que servem a um raio de abrangência cada vez maior. A própria estação de integração de transporte coletivo interligada ao shopping center é um exemplo. A construção de um campus da PUC‐Minas, bem como de unidades de ensino da rede Pitágoras e do Centro Universitário UNA, têm atraído mais pessoas e aumentado o poder de polarização da área. No perímetro estudado, surgiram, ao longo dos últimos anos, cartório, atividades forenses, clínicas, agências bancárias, entre outros ramos mais qualificados de comércio e serviço.   

O diagnóstico apontou, entretanto, que, mesmo com novos empreendimentos, ainda predomina baixa utilização do solo comparativamente ao potencial construtivo legal vigente até 2010. São poucos os lotes vagos, mas a região dispõe de grande possibilidade de substituição de edificações, pois os imóveis são predominantemente horizontais. Os estudos concluíram que, caso tivessem sido consolidadas na área alterações na dinâmica imobiliária que explorassem os coeficientes permitidos para os macrozoneamentos predominantes – ZCBA e ZAP, com os parâmetros construtivos legais, determinados lote a lote, sem uma reestruturação da infra estrutura local – teria se configurado uma situação de saturação de difícil solução.  

O estudo de viabilidade econômico‐financeira, parcialmente incorporado ao EIV, considerou os preços dos terrenos, tomando como bases principais o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis por Ato Oneroso Inter Vivos (ITBI). Foram também realizadas pesquisas com corretores imobiliários na área, que informaram altos valores no preço do metro quadrado construído, sobretudo na porção do centro intermediário, onde os valores imobiliários podem ser comparados aos praticados na Área Central de Belo Horizonte. Os corretores apontaram preços que chegavam a R$7.000,00 /m2. Verificou‐se, ainda, altos preços das “luvas” pagas pelos pontos comerciais. As pesquisas organizadas no EVEF demonstraram também, por outro lado, a baixa dinâmica imobiliária da região, sendo os edifícios que exploraram o coeficiente de aproveitamento do zoneamento aqueles construídos antes da promulgação da lei de 1996 e alguns poucos que surgiram recentemente a sul da área demarcada para OUC, os quais aproveitaram o potencial construtivo dos quarteirões classificados como ZAP. As principais carências de produtos imobiliários são prédios de salas, apartamentos pequenos – um ou dois quartos – hotéis e outras alternativas comerciais.  

Os estudos técnicos foram complementados por pesquisa de percepção ambiental. A metodologia contemplou a aplicação de questionários a pessoas residentes e trabalhadoras na área e entrevistas com informantes qualificados: lideranças comunitárias e religiosas, empresários que atuam na região, diretores de instituições de ensino, entre outros atores. As opiniões são, obviamente, diversas, mas a população demonstra que gosta de residir ou trabalhar no Barreiro, ressaltam problemas como intenso tráfego de veículos e violência e exaltam as características da região como um núcleo comercial “quase independente do centro principal de Belo Horizonte”.  

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A caracterização da operação urbana para início do processo de Estudo de Impacto de Vizinhança provocou um primeiro momento de debate público sobre o assunto. O tema foi levado para a 168° Reunião Ordinária do COMPUR, ocorrida em 15 de dezembro de 201115. Na ocasião, o presidente do Conselho, também Secretário de Desenvolvimento Urbano, Marcello Faulhaber e a Vice Presidente do Conselho, também Secretária Municipal Adjunta de Planejamento Urbano, Gina Rende, apresentaram os primeiros resultados do diagnóstico acerca da área pesquisada, bem como as principais premissas que regeriam o plano de adensamento e o plano de obras e intervenções da operação urbana.  

Os Conselheiros e demais presentes tiveram a oportunidade de tirarem suas dúvidas quanto aos objetivos e a aplicação do instrumento. A reunião foi tomada, principalmente, pelo discurso de um grupo de proprietários de terreno e empresários locais. Eles concordavam com a avaliação sobre as carências e problemas que a área possuía e que a verticalização desacompanhada da qualificação da estrutura urbana poderia ocasionar piora à região. Seus depoimentos em prol da liberação da área da restrição causada pela demarcação da OUC‐EBA pelo Plano Diretor, entretanto, convergiam para argumentos tais como: o rebaixamento do coeficiente causa prejuízo a comerciantes e contribuintes, que exigem uma “solução” rápida a este problema; a adoção de coeficiente 1,0 “atrapalha” a dinâmica imobiliária; o dinheiro pago por cada empresário para a obtenção de potencial construtivo é insignificante para a Prefeitura e bastante impactante para o investidor da região, entre outras falas que demonstraram a crença de que o Executivo estaria “banindo um direito” àquela população.  

As discussões da equipe técnica decorrentes do diagnóstico e do contato com a população avançaram para o cruzamento de dados setoriais e a pontuação de conflitos e potencialidades existentes na área. A equação dos impactos e características levantadas deu origem ao que se chamou de Plano Urbanístico da operação urbana que sintetiza um “plano de intervenções” e um “plano de adensamento” elaborados para a área.  

É interessante observar que o Plano Urbanístico foi consolidado como uma ação de planejamento local que apontou para a região estudada unidades de vizinhança específicas quanto ao padrão de urbanização com funções determinadas e complementares entre si. A OUC‐EBA ganhou um formato muito semelhante a um plano local, para o qual foram propostos parâmetros urbanísticos e foram elencadas intervenções específicas. A conformação deste plano como uma operação urbana consorciada, entretanto, avançou em comparação a outros planos locais desenvolvidos em Belo Horizonte por esclarecer a priorização das obras, dimensionar seus impactos e formatar os meios pelos quais serão financiadas.  

O plano de intervenções contemplou, fundamentalmente, um conjunto de ações para qualificação ambiental da área, alterações no sistema de mobilidade, qualificação das principais centralidades, implantação de equipamentos urbanos e comunitários e produção de habitação de interesse social. As intervenções urbanísticas e ambientais têm como princípio servir à solução de problemas diagnosticados e preparar a região para aumentar a capacidade de suporte para receber adensamento construtivo e populacional, premissas de áreas em torno de estações de transporte coletivo destinadas a operações urbanas, como explicitado. 

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As intervenções de cunho ambiental prevêem o resgate e a criação de áreas verdes públicas contemplando medidas como: a melhoria da arborização e das praças; criação de uma praça com equipamento cultural na área da antiga estação de trem; implementação de um complexo esportivo junto à pedreira desativada; construção de uma praça central próxima à estação de transporte coletivo; requalificação da praça contígua à PUC‐Minas e dotação de espaço público de lazer adjacente ao clube existente em terreno municipal.   

A qualificação do sistema de mobilidade e a valorização das áreas comerciais abrangem ações como: melhoria da infra estrutura das vias, com a solução de pontos de estrangulamento, sobretudo nas avenidas principais; adequação dos sentidos de fluxo do tráfego; revisão do sistema de drenagem disposto nos logradouros; melhoria da iluminação pública; adoção de medidas de desenho urbano que privilegiem o transporte coletivo e o modo não motorizado de circulação – ciclistas e pedestres. Convém ressaltar que as intervenções no sistema de mobilidade também buscam preparar a região para as alterações do tráfego que serão decorrentes da finalização das obras da avenida Tereza Cristina. Um terminal de embarque e desembarque de linhas metropolitanas foi proposto para o bairro Santa Margarida com a finalidade de organizar o fluxo intermunicipal, retirando itinerários da Área Central do Barreiro. Devem ser mantidas as linhas municipais neste local. Há a previsão de intervenções no viaduto existente junto à avenida citada para melhorar o fluxo dos movimentos que recebe e para viabilizar uma ligação mais adequada e ágil entre a Estação Barreiro e a Estação Diamante, parada de transporte coletivo situada mais a sul da Região Administrativa Barreiro. 

A implantação de equipamentos públicos está prevista para ampliar o atendimento da rede existente à medida que o adensamento populacional ocorrer. Estão planejadas unidades municipais de ensino infantil (UMEI), escola de ensino médio, centro de saúde e uma sede mais adequada para a administração regional, que deverá ter central de atendimento a munícipes com mais funções integradas. A operação urbana prevê, também, a produção de 1000 unidades habitacionais destinadas a famílias com renda entre 0 a 3 salários mínimos. 

Os projetos e obras necessários à implantação das intervenções foram preliminarmente orçados levando‐se em conta valores praticados em obras de instalação de infra estrutura e equipamentos urbanos e comunitários pelos órgãos municipais competentes16. Apesar de se ter a certeza de que estes valores serão alterados com a formulação de projetos básicos e executivos, é importante verificar o montante financeiro a ser gasto para constatar a viabilidade e o equilíbrio econômico da operação. As intervenções foram priorizadas em quatro cenários de adesão à operação urbana que coincidem com o depósito de contrapartidas equivalentes a, aproximadamente, 25%, 50%, 75% e 100% do valor médio considerado para arrecadação com a venda de potencial construtivo por meio de Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC).  

Pode‐se dizer que as intervenções contidas dentro do primeiro cenário construído são aquelas essenciais para a o aumento da capacidade de suporte da região e requalificação de centros e centralidades. A segunda fase contempla obras necessárias à complementação da estrutura urbana e o aumento da capacidade de suporte para adequar a região à maior venda de potencial construtivo. Nesta fase, há expansão dos perímetros requalificados. As obras 

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referentes à terceira etapa contemplam a conclusão de alguns eixos de intervenção em um cenário em que se concretiza um adensamento populacional e construtivo aproximado da conclusão da operação. A última etapa abarca obras para finalização do Plano Urbanístico. 

O plano de adensamento, por sua vez, foi consolidado com vistas a dotar cada subárea de potencial construtivo e de densidade populacional compatíveis com a qualidade de estrutura urbana existente e com a possibilidade de aumento da capacidade de suporte da região, produzida pelas intervenções do Plano Urbanístico. Foi organizado com base em três classificações diferenciadas pela densidade construtiva e padrões de urbanização que devem ser atribuídas às quadras ou partes de quadras.  

A equipe entendeu que a proposição de uma operação urbana deve trabalhar para quebrar a lógica de construção lote a lote como condição para promover uma reestruturação qualificada da área. Este é um desafio na região central do Barreiro onde as seqüências de lotes, quase sempre, são compostas por diversos proprietários. Sob o raciocínio do arquiteto colombiano Augusto Carrillo, funcionário do Departamento Nacional de Planeación da Colômbia, Montandon e Souza (2007, p: 128) afirmam: 

É preciso romper o modelo de produção da cidade prédio por prédio, lote por lote, para se realizar um manejo do solo urbano mais adequado às questões ambientais e à paisagem, que garanta o exercício da função social e ecológica da propriedade. 

A equipe da SMAPU elaborou lógica de adensamento baseada no agrupamento de lotes, o que pode ser considerado um avanço na aplicação do princípio de Carrillo, mesmo que se tenha a consciência de que práticas mais eficientes deverão ser desenvolvidas neste sentido. Os graus de adensamento possuem uma escala de potencial construtivo admitido que varia de acordo com a área dos terrenos. Os terrenos que possuem até 360m² não estão habilitados a comprar coeficiente de aproveitamento. Os índices de aproveitamento construtivo aumentam para terrenos com dimensões maiores que 360m² e menores que 2.160m² e é admitida a aplicação dos coeficientes de maior valor aos terrenos com área superior a 2.160m²17.  

Esta alternativa foi acrescida de exigências em busca de um modelo construtivo que pressupõe a concentração de potencial de edificabilidade em parte do terreno com a finalidade de proporcionar liberação de espaço para uso público que possibilite encontro, estar, lazer e atividades urbanas compatíveis com o centro.  

A operação define taxa de ocupação18, que varia de acordo com o tamanho dos terrenos nos quais for realizado o empreendimento. Os beneficiários pela maior utilização de potencial construtivo devem cumprir taxa de permeabilidade vegetada em terreno natural e construir caixa de captação de água pluvial, com vistas a melhorar a qualidade ambiental e paisagística e conter a sobrecarga do sistema de drenagem urbana19. A proposta de qualificação urbanística é incrementada pela exigência de implantação de uma faixa livre de uso público interna a todos os terrenos que aderirem à operação urbana consorciada, com largura mínima de seis metros. Esta faixa busca garantir a permeabilidade visual e de transito entre os terrenos. Estas devem passeio voltado ao livre fluxo de pedestres e pode ter área destinada à instalação de mobiliário urbano, acesso de veículos às edificações ou ampliação das atividades econômicas para o 

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logradouro. Também, as regras da lei de uso e ocupação do solo referentes à altura na divisa e à relação entre afastamento lateral e de fundos e altura dos edifícios podem ser flexibilizadas, chegando‐se à construção sobre até 50% da extensão das divisas entre os lotes. 

A Tabela 1 é parte do quadro do Relatório de Estudo de Impacto de Vizinhança da OUC‐EBA, que contém os parâmetros urbanísticos que subsidia o Parecer de Licenciamento Urbanístico desta operação e, portanto, embasa a concepção do Projeto de Lei que a regulamentará. 

Tabela 1: Parâmetros Urbanísticos – OUC‐EBA 

A) Coeficiente de Aproveitamento:  

Grau de adensamento Área do terreno <=

360 m²Área do terreno <360m² <= 2.160m²

Área do terreno <2.160m² 

G1 1,0 

2,0 3,0 G2  3,0 4,0 G2  4,0 5,0 

B) Área permeável:    Grau de adensamento 

Área do terreno <= 360 m² 

Área do terreno <360m² <= 2.160m² 

Área do terreno < 2.160m² 

G1, G2 e G3  10%  20%  25% 

C) Caixa de Captação  Dimensionamento compatível com a retenção de água para amortecimento do escoamento para o sistema de drenagem pública, calculada para cada caso. 

D) Taxa de ocupação  Grau de adensamento  Área do terreno <=360 m²

Área do terreno <360m² <= 2.160m²

Área do terreno <2.160m² 

G1, G2 e G3  80%  60%  50% 

Fonte: Monteiro, Lívia com base em Diário Oficial do Município (DOM)20, alterado após a 172° Reunião Ordinária do COMPUR, 

ocorrida em 26 de abril de 2012 . 

Esta OUC deverá ser monitorada pela SMAPU que subsidiará tecnicamente as ações do Grupo Gestor desta operação. O grupo citado deverá ser formado por representantes do Executivo e da sociedade e terá entre suas atribuições: escolher dentre as etapas de prioridades das obras aquelas que deverão se executadas primeiro; publicizar os efeitos da operação urbana; coordenar a elaboração do Programa de Atendimento Econômico e Social à População Diretamente Afetada pela Operação Urbana; gerir o fundo financeiro próprio configurado para esta operação. Este grupo será responsável, também, pela aprovação da implantação das edificações, zelando pela interligação das áreas livres de uso público, visibilidade das áreas verdes, composição paisagística, entre outros fatores.  

A OUC‐EBA será a primeira experiência do município na utilização da outorga onerosa do direito de construir como contrapartida ao aumento do potencial construtivo. Há na fórmula, além de fatores que condicionam o preço da contrapartida aos valores de coeficiente de aproveitamento básico, coeficiente aproveitamento máximo e área do terreno, outros fatores que amenizam o preço final pelo coeficiente construtivo adicionado. Estes servem para incentivar a diversidade de usos, obras de interesse público – como equipamentos urbanos e comunitários e habitações de interesse social – bem como para estimular a instalação de mecanismos que confiram conceitos de sustentabilidade aos edifícios. Além destes fatores, deverá ser facultado que a contrapartida seja paga ou tenha seu valor amortecido pela transferência de imóveis ao poder público e pela execução de obras previstas no Plano Urbanístico. A forma de pagamento da contrapartida deverá ser determinada pelo Grupo Gestor desta operação.  

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O Executivo deverá concluir o Projeto de Lei em regulamentação à OUC‐EBA, detalhando as premissas aprovadas pelo Conselho para a operação, muitas delas, parte do processo de EIV, trazidas para discussão neste texto.  

4 CONCLUSÕES PRELIMINARES SOBRE DE UM RECOMEÇO 

É inegável o efeito perverso, ou a própria “falta de efeito”, que operações urbanas formatadas em Belo Horizonte e São Paulo, casos mais conhecidos pela autora, provocaram. As pesquisas em curso, sobretudo a partir da análise dos trabalhos de Fix (2003, 2007) e Cota (2010) demonstram a utilização do instrumento para benefício do setor privado com a exploração do espaço urbano. O conhecimento das experiências urbanísticas pelo olhar das autoras demonstra a força do setor imobiliário em inverter as situações de crescimento urbano a seu favor e colocar o poder público para atuar como seu parceiro, fazendo concessões e obras que corroboram muito para os ganhos privados e pouco para a coletividade. 

O instrumento provocou, sobretudo na capital paulista, onde abrangeu áreas de maior amplitude, substituição descontrolada do tecido urbano, geração de mais valia fundiária sem correspondente divisão das cargas e benefício pela utilização intensiva do solo e concentração de intervenções em pontos específicos da cidade, onde o capital privado demandou intervenção estatal. As operações foram feitas de uma forma excludente em que o próprio mercado tinha autonomia para negociar com a população dos aglomerados urbanos e pouco foi planejado para que estas comunidades permanecessem no perímetro de aplicação do instrumento. As pesquisas de Fix (2003, 2007) relatam a destituição da favela Água Espraiada e o torturante deslocamento da população em situação de vulnerabilidade social, com ínfimas indenizações, para abrigos e outras favelas. 

Sem acreditar que as operações urbanas são a “salvação” do planejamento e da gestão do solo da cidade, compartilha‐se da idéia de Montandon (2009) de que o instrumento não deve ser completamente refutado pelas experiências mal constituídas. Pode‐se encontrar uma via possível para a construção de estratégias para implantação de projetos urbanos e de “mediação da participação privada nestes projetos, pautando‐se no controle público, nas melhorias sociais e na equidade no desenvolvimento urbano” (MONTANDON, 2009, p: 236). 

A investigação das operações urbanas consorciadas como mecanismos de planejamento urbano demonstram algumas possibilidades para planejamento e gestão do solo em sua função social: “Nota‐se o alinhamento do instrumento operações urbanas a uma estratégia de atuação urbanística voltada à obtenção de resultados relevantes em áreas de transformação prioritária estabelecidas no Plano Diretor e a partir da gestão integrada das intervenções no território” (MONTANDON, 2009, p: 12).   

Pela experiência inicial obtida com a elaboração da Operação Urbana Consorciada Estação Barreiro e Adjacências, foi possível reconhecer que a concepção deste instrumento é uma imbricada articulação entre ferramentas de política urbana, vários elementos especiais para definição de parâmetros urbanísticos, reconhecimento profundo das deficiências e potencialidades do território para elenco de obras pertinentes ao seu desenvolvimento e utilização de mecanismos para financiar as melhorias no sistema urbano. O estudo de impacto 

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de vizinhança, sob o formato constituído para esta operação, foi instrumento fundamental para análise do equilíbrio urbanístico e financeiro da aplicação da OUC neste centro em desenvolvimento.   

Os desafios para a concepção das operações urbanas de maior porte no município são os mais diversos, mas na OUC‐EBA pôde‐se explorar o instrumento como um “plano diretor local estratégico” promotor de intervenções estruturantes, determinador de parâmetros urbanísticos compatíveis com a realidade da região, indutor de melhorias sociais e distribuidor, mesmo que parcial, dos custos derivados da mais valia provocada pelo solo criado. A operação concebida para a área institui mecanismos para incremento do centro urbano com a preocupação de trazer população para as áreas onde a infra estrutura, já diferenciada, receberá melhorias pelas intervenções a serem implantadas. As premissas aprovadas para esta operação ainda serão formalizadas em um projeto de lei que lhes dêem condições reais de implementação, definindo regras claras para a gestão cotidiana do instrumento.  

O que se reflete do que “ainda se deve fazer” é, principalmente, uma aplicação mais sistêmica dos demais instrumentos de política urbana. A captura da agregação de valor à terra urbana ainda é parcial nas áreas de operação urbana consorciada. A mensuração dos ganhos imobiliários produzidos a partir do mecanismo do solo criado proporciona a cobrança pelo uso intensivo do potencial construtivo, mas não são cobrados os valores agregados à propriedade pelas benfeitorias físicas como se faz no Land Reajustment, sob suas variações vigentes, por exemplo, no Japão e na Colômbia (MONTANDON, 2010, p: 85). A contribuição de melhoria permanece inutilizada nas leis orgânicas municipais. Também não se explorou ainda a geração de divisas derivadas da participação na alteração de usos (MONTANDON, 2010, p: 123). 

Os instrumentos de política urbana contidos no Estatuto da Cidade transpostos para o Plano Diretor de Belo Horizonte adquirem pouca efetividade, pelo menos por enquanto, em sua aplicação na cidade e, obviamente, também nas áreas de OUC, seja por estarem sem regulamentação ou pelo caráter facultativo que possuem.  

A legislação do município coloca regras claras para se considerar um imóvel como vazio ou subutilizado. O inciso II do artigo 74‐D do PD estabelece, sinteticamente, que imóvel subutilizado é aquele que usa menos que 15% do potencial construtivo básico admitido pelo macrozoneamento e não possui atividade que necessite da utilização do terreno por sua natureza.  A aplicação dos instrumentos de parcelamento, edificação e ocupação compulsórios demora para ganhar efetividade no cumprimento da função social da propriedade, entretanto. Instrumentos como o consórcio urbanístico e o convênio urbanístico de interesse social possuem um caráter facultativo, limitando a atuação do poder público. A concessão urbanística, por sua vez, que seria um instrumento de caráter mais compulsório com semelhanças a algumas ações dentro do Land Reajustment, deve ser regulamentada para sua implementação.  

Enfim, há muitas outras possibilidades de aplicação de instrumentos de política urbana dentro do âmbito das operações urbanas consorciadas que lhes proporcionem maior controle do solo urbano, repartição dos custos decorrentes dos processos de uso intensivo da terra e valorização pela implantação de obras. Belo Horizonte está recomeçando.  

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5 REFERÊNCIAS  

BELO HORIZONTE (MG). Prefeitura. Lei n.º. 7165. 27 ago. 1996: Institui o Plano Diretor do município de Belo Horizonte. consolidada com as alterações feitas pela Lei n. 8.137, de 21 de dez. de 2000. Belo Horizonte, 2000a. Disponível em: www.cmbh.mg.gov.br. Acessado em 20 de fevereiro de 2012. 

BELO HORIZONTE (MG). Lei n.º. 7166. 27 ago. 1996: Estabelece normas e condições para parcelamento, ocupação e uso do solo no município de Belo Horizonte, consolidada com as alterações feitas pela Lei n. 8.137, de 21 de dez. de 2000. Belo Horizonte, 2000b. Disponível em: www.cmbh.mg.gov.br. Acessado em 20 de fevereiro de 2012. 

BELO HORIZONTE. (MG). Leis nº 7.165 e nº 7.166, ambas de 27 de agosto de 1996, consolidada com as alterações feitas pela Lei n. 9.959, de 20 de jul. de 2010. Belo Horizonte, 2010.Disponível em: www.cmbh.mg.gov.br. Acessado em 20 de fevereiro de 2012. 

BELO HORIZONTE (MG). Prefeitura Municipal. Plano Diretor de Belo Horizonte: lei de uso e ocupação do solo, estudos básicos. Belo Horizonte: São João, 1995. 

CALDAS, Maria Fernandes; MENDONÇA, Jupira Gomes de; CARMO, Lelio Nogueira do. Estudos urbanos: Belo Horizonte ‐ 2008 : transformações recentes na estrutura urbana. Belo Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte ‐ Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de BH, 2008. 

COTA, Daniela Abritta. A parceria público‐privada na política urbana brasileira recente : reflexões a partir da análise das operações urbanas em Belo Horizonte. Tese (Doutorado) – Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: edição do autor, 2010. 

FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito urbanístico: estudos brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 

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FIX, Mariana. São Paulo cidade global: fundamentos financeiros de uma miragem. 1a. ed. São Paulo: Boitempo Editorial: Anpur, 2007. 

MONTANDON, Daniel Todtmann. Operações urbanas em São Paulo: da negociação financeira ao compartilhamento equitativo de custos e benefícios. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo: edição do autor, 2009.  

MONTANDON, Daniel Todtmann (Coord.). Seminário internacional instrumentos urbanísticos de gestão da valorização da terra e de indução do desenvolvimento urbano: um diálogo Brasil – Japão‐ Colômbia. Brasília: Ministério das Cidades, 2010.  

MONTANDON, Daniel Todtmann; SOUZA, Felipe Francisco de. Land readjustment e operações urbanas consorciadas. São Paulo: Romano Guerra, 2007.  

MONTEIRO, Lívia de Oliveira. Meio urbano, suas vocações e suas regras: atividade terciárias e instrumentos de organização em busca do desenvolvimento do território de Belo Horizonte. Dissertação (mestrado) – Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: edição do autor, 2007. 

OLBERTZ, Karlin. Operação urbana consorciada. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011. 

6 NOTAS 

 

1 Belo Horizonte teve uma sucessão de governos com participação do PT que se iniciou com a gestão de Patrus Ananias (1993‐ 1996). O PT continuou no executivo municipal com o governo Célio de Castro eleito em 1997 pelo PMDB com vice petista e reeleito em 2001. Castro licenciou‐se por motivos de saúde, assumindo seu vice, Fernando Pimentel que, eleito em 2004, esteve à frente do Executivo municipal até 2008.   

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2 Desde 1989, durante o mandato do Prefeito Pimenta da Veiga, o Executivo elaborava estudos para formatar um Plano Diretor para o município. Em 1991, durante a administração do Prefeito Eduardo Azeredo foi mandado para a Câmara Municipal o Projeto de Lei (PL) que contemplava o Plano Diretor, denominado como BH 2010. O PL não foi aprovado, principalmente, por não se conseguir superar divergências sobre quais seriam as estratégias e instrumentos a serem adotados pelo poder público de modo a intervir no processo de produção e ocupação do espaço urbano belorizontino e por não atender a parâmetros da Lei Orgânica do município. 

3 A capital mineira teve aprovada, na década de 1970, sua primeira legislação urbanística, abrangendo de forma mais ampliada o território municipal. A Lei de Uso e Ocupação do Solo de Belo Horizonte, Lei n° 2.662/76, regulamentou a distribuição das funções urbanas e a forma construtiva das edificações. Foi revisada pela Lei n° 4.034/85, sem, entretanto, alterar a lógica de zoneamento funcional da cidade (MONTEIRO, 2007).  

4 A lógica de determinar a possibilidade de instalação de usos não residenciais de acordo com a classificação das vias no sistema de circulação foi modificada com a promulgação da Lei n° 9.959/10. A possibilidade de instalação de usos não residenciais é atualmente regida pela classificação dos logradouros por permissividade de usos em: via preferencialmente residencial – VR; via de caráter misto – VM e via preferencialmente não residencial – VNR.  

5 A Secretaria Municipal de Política Urbana (SMURBE) foi extinta na reforma administrativa ocorrida em fevereiro de 2011. As funções de planejamento urbano que desempenhava foram transferidas para a Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento Urbano (SMAPU), ligada à Secretaria Municipal de Desenvolvimento (SMDE).  

6 Ressalta‐se que havia 81 delegados de cada setor e seus suplentes. A eleição de delegados envolveu um número muito maior de munícipes em assembléias setoriais e realizadas em cada Região Administrativa. Dos 81 delegados populares, havia 9 representantes de cada uma das 9 Administrações Regionais em que se subdivide a cidade.  

7 A II Conferência Municipal de Política Urbana ocorreu de outubro de 2001 a agosto de 2002, período imediatamente posterior à promulgação do Estatuto da Cidade – julho de 2001. Foi feita na gestão do prefeito Fernando Pimentel e, apesar de contar com a participação de 244 delegados, não teve muitos resultados efetivos. O evento teve problemas em sua finalização e na legitimação das propostas decorrentes dos debates, sobretudo, porque o setor empresarial, prevendo alterações indesejadas ao mercado imobiliário, retirou‐se da Conferência. 

8 Artigo 66, incisos I a X, da Lei n° 7.165/96, alterada pela Lei n° 9.959/10. 

9 Artigo 69, § 2°, incisos I a VIII, e § 3° inciso II, da Lei n° 7.165/96, alterada pela Lei n° 9.959/10. 

10 O Plano de Reabilitação do Hipercentro foi uma iniciativa de planejamento local para parte da Área Central de Belo Horizonte que recebe a classificação de Zona Hipercentral – ZHIP pela Lei n° 7.165/96 e suas adjacências. Este plano foi coordenado pela SMURBE e desenvolvido em parceria com a empresa Práxis Consultoria e Projetos, vencedora de processo licitatório. O plano foi financiado pelo Ministério da Cidade e elaborado de forma participativa. O documento traz diretrizes para requalificação de espaços públicos, alternativas para atração de emprego e renda, alterações de desenho urbano, remodelação do sistema de circulação, entre outros projetos.  

11 O Conselho Municipal de Política Urbana (COMPUR) foi criado em 1996 pelo Plano Diretor. Este Conselho é formado por oito membros do executivo municipal; seis membros da sociedade – representantes dos setores técnico, empresarial e popular; dois representantes do legislativo municipal e os respectivos suplentes.  O COMPUR está ligado à SMDE, sendo o Secretário deste órgão seu presidente, e possui a Gerência Executiva do COMPUR (GCPU), ligada à SMAPU, como suporte administrativo e técnico.   

12 O Capítulo XI do Plano Diretor trata da instituição do Estudo de Impacto de Vizinhança. 

13 A Comissão de Interface para Orientação e Acompanhamento do Processo de Licenciamento de Empreendimentos de Impacto, vinculada à Gerência de Orientação e Licenciamento Integrado da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSU), é composta por todos os órgãos municipais que têm responsabilidade no processo de licenciamento para construção de grandes empreendimentos. Ela é responsável pela orientação, avaliação e acompanhamento conjunto dos expedientes referentes aos licenciamentos, que iniciam com a requisição do responsável técnico e termina com a emissão de licenças para ocupação e uso do empreendimento.  

14 O EIV tem uma tramitação que segue, sinteticamente, os procedimentos: 1‐ protocolo do formulário de 

caracterização do empreendimento ou da OUC na GCPU e comunicado em jornal de ampla divulgação deste ato; 2‐ 

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publicação de extrato da caracterização do empreendimento ou da OUC no Diário Oficial do Município (DOM), onde também é veiculada a pauta da reunião do COMPUR que contém o agendamento da apresentação do requerimento como matéria a ser apreciada; 3‐ apresentação da caracterização do empreendimento ou da OUC em plenária, quando os presentes podem interferir no roteiro de estudo que a GCPU passará ao responsável técnico (RT) para desenvolvimento do EIV; 4‐ elaboração do estudo pelo RT e protocolo do mesmo para avaliação, acompanhado de nova publicação em jornal de ampla circulação e fornecimento de cópia para consulta popular; 5 ‐ avaliações setoriais de responsabilidade de cada órgão; 6‐ conclusão do trabalho pela Comissão de Interface para Orientação e Acompanhamento do Processo de Licenciamento de Empreendimentos de Impacto em um parecer conjunto denominado Relatório de Estudo de Impacto de Vizinhança (REIV), o qual contém diretrizes para o projeto e medidas mitigadoras ou compensatórias que o empreendimento ou a OUC deve cumprir; 7‐ publicação do REIV e da pauta da reunião do COMPUR que trará o mesmo como matéria no DOM; 8‐ aberto prazo de recurso quanto ao REIV,  que pode ser feito por qualquer munícipe e será levado ao COMPUR; 9 – decisões dos Conselheiros e formatação do Parecer de Licenciamento Urbanístico (PLU), publicado no DOM. A partir das diretrizes do PLU, pode‐se continuar o licenciamento das construções e atividades ou, no caso das OUC, à formatação de seu Projeto de Lei.  

15 A autora estava presente na reunião. As informações relacionadas neste artigo tiveram como fonte a ata da 168° Reunião Ordinária do COMPUR no sítio http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk= 1074298, acessado em 14 de maio de 2012.  As falas demonstram a visão de proprietários de terreno reivindicando atitudes para melhoria na área e desconsiderando a premissa constitucional de que o direito à propriedade está desvinculado de sua função social, cabendo ao poder público regular sobre o uso e a ocupação da terra urbana.   16 Neste trabalho, grande parte dos valores foi referenciada com base em arquivos da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (SUDECAP), órgão que, entre outras atribuições, desenvolve projetos e executa obras na município.   

17 A SMAPU havia pensado em uma alternativa mais conservadora para a aplicação de coeficientes. A proposta abrangida neste trabalho foi feita pelo Conselheiro Píer Senesi, também Secretário Municipal de Serviços Urbanos, e aprovada na reunião do COMPUR, de 26 de abril de 2012, quando foi apreciado o REIV da OUC‐EBA.     

18 Convém salientar que a legislação urbanística de Belo Horizonte não prevê limites à taxa de ocupação a não ser para as áreas de proteção ambiental.   

19 A LPOUS exige o cumprimento de taxa de permeabilidade para as construções de acordo com o tamanho do lote que ocupam, sendo para as áreas de proteção e preservação ambiental, aplicadas regras mais rígidas. Em geral, deve‐se cumprir 10% de permeabilidade em terrenos com até 360 m² e 20% de permeabilidade para terrenos com área superior. É permitida a impermeabilização total do terreno desde que se compense a área impermeabilizada por caixa de captação complementarmente à dotação de área vegetada em jardineira na mesma proporção da taxa de permeabilidade exigida (BELO HORIZONTE, 1996d, art. 50).  

20  http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1075287, acessado em 14 de maio de 2012.  

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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região 

Desnudamentos: instantâneos do alargamento da Avenida Antonio Carlos em Belo Horizonte 

Nudities: snapshots about the enlargement of the Antônio Carlos avenue in Belo Horizonte  

Luciana Souza BRAGANÇA Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Professora do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix; Sócia do escritório GRAMA Arquitetura e Urbanismo. [email protected].  

Larissa Batista L. TREDEZINI Arquiteta e Urbanista; Sócia do escritório GRAMA Arquitetura e Urbanismo. [email protected].  

Frederico CANUTO Doutor em Poéticas da Modernidade pela FALE/UFMG; Professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, participando da agência Observatório do Caminhante; Trabalha ocasionalmente na GRAMA Arquitetura e Urbanismo. [email protected].  

RESUMO Ainda  que  normalmente  se  associe  as  grandes  obras  estruturadoras  relacionadas  à mobilidade  nas grandes cidades à imagem haussmaniana da Paris do século XIX e à produção de não‐lugares, dado que vidas inteiras são transformadas e a cidade tende a se redesenhar para tornar‐se cada vez mais produtiva do ponto de vista do  capital, por outro  lado, estes não‐lugares produzidos abrem possibilidade de  se imaginar outros  lugares. Em breves momentos tais  interrupções da forma da cidade e de seu cotidiano possibilitam uma redefinição das relações entre publico e privado para além de uma complementaridade dada por uma espetacularização do urbanismo. Assim, o objetivo aqui é discutir a ambivalência de tais não  lugares  tomando  como  exemplar  o  alargamento  da  avenida  Antonio  Carlos  em  Belo  Horizonte, devido a Copa do Mundo de Futebol a ocorrer em 2014. 

PALAVRAS‐CHAVE: Mobilidade – Não‐Lugares – Paisagem 

ABSTRACT Although the concept of Non‐Places and the Paris of Haussmann in the XIXth century are usually related to the structuring major projects related to mobility in large cities, given that entire lives are transformed and the city itself tends to be redesigned to become increasingly productive from the viewpoint of capital, moreover, these non‐open locations produced possible to imagine other places. In brief moments, these interruptions of  the  city and  its daily  life allow a  redefinition of  relations between public and private sectors  beyond  a  complementary  relation  given  by  a  spectacle  of  urbanism.  So,  this  article  aims  to discuss  these ambiguous Non‐Places,  taking  the example of  the extension and enlargement of Antonio Carlos avenue in Belo Horizonte due the Football World Cup 2014. 

KEYWORDS: Mobility – Non‐Places – Landscape  

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A Avenida Presidente Antonio Carlos tem papel central para a cidade de Belo Horizonte e região metropolitana porque é via que faz conexão entre o centro da cidade, sua região mais conhecida – a Pampulha – e bairros mais periféricos surgidos a partir de sua inauguração nos anos 30. Devido a isso, e com a metropolização de Belo Horizonte em processo desde metade do século XX, passou desde os anos 90 a ser motivo de debates para uma ampliação de sua largura a fim de se tornar mais produtiva do ponto de vista do capital: valorizando imobiliariamente áreas que até então tinham uma imagem de abandono; fazendo circular mais rápido e em maior quantidade tanto pessoas como produtos; reorganizando bairros que até então se mostravam a margem de qualquer relação com a cidade metropolitana que Belo Horizonte almeja desde Juscelino Kubistchek ser. 

Com a realização da copa do mundo de futebol em 2014, toda a discussão acima colocada tornou‐se pressão para que o projeto pudesse acontecer. E para tornar mais intenso tal clamor pelo alargamento, a companhia responsável pelo planejamento e gerenciamento do trânsito em BH, a BHTRANS, fez da avenida uma das linhas mestras de seu plano de mobilidade ao torná‐la corredor de circulação para o BRT (Bus Rapid Transport). É relevante citar que havia outro projeto para o alargamento do meio da década de 90 com concepções de espaços públicos incorporados ao projeto viário que foi rejeitado pela BHTRANS e novo projeto foi elaborado e implantado.  

Marc Auge em seu livro Não‐Lugares. Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade já alertava para o fato da cidade contemporânea se caracterizar pela proliferação de espacialidades e territórios caracterizados não pelas relações sociais e engajamento ou proximidade mas sim pelo distanciamento. Estes eram os chamados Não‐Lugares. Entretanto, mesmo que tal termo por ele cunhado e que usualmente é visto em publicações no campo das ciências sociais e planejamento urbano seja associado a uma negatividade, ao ler tal obra percebe‐se que existe uma possibilidade positiva. Reconhecendo que tais não‐lugares produzem nada mais que experiências de distanciamento, o autor justamente pensa também tal distanciamento como esforço de imaginação pois repele o real. Assim, os não‐lugares podem ser também lugares outros. 

Ainda com Auge, em seu recém‐lançado Por uma Antropologia da Mobilidade, tal raciocínio retorna. Ao tomar o problema da imigração francesa e fazendo um paralelo da época em que o pais recebeu em grande quantidade de pessoas vindas de colônias e outros lugares – os anos 60 e 70 – com a relação que tais movimentos estabeleceram nos dias atuais, é possível entrever como a noção de não‐lugar perdura como recorte critico.  Porém, associa a este termo a fronteira, sendo esta entendida não como linha divisória, mas como zona – ela própria não uma passagem, mas um território onde ainda está a ser decidido identidades e hábitos – ou limiar, termo caro hoje aos estudos envolvidos com o fenômeno urbano.   

Esta compreensão de Auge a respeito do não‐lugar como fronteira que, por sua vez, abre novos sentidos a respeito dos próprios lugares e situações ali a ocorrer é que interessa ao presente estudo. 

A partir do momento em que fomos contratados via o escritório GRAMA para fazer pela prefeitura de Belo Horizonte o projeto de Tratamento Paisagístico das Áreas Remanescentes às Margens da Avenida Antônio Carlos, tais possibilidades de pensamento sobre este não‐lugar 

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negativo emergiram através da categoria paisagem. Tomando o paisagismo não apenas como especialidade da disciplina arquitetura e urbanismo interessada na correta organização dos elementos vegetais entre outros naturais num espaço, foram abertos horizontes de significação para a situação a qual fomos chamados a colocar em questão. 

A primeira questão, recorte mestre para nós, diz respeito à categoria paisagem. Tal como ABALOS em seu reconhecido artigo O que é Paisagem deixa claro, esta categoria geográfica só pode ser pensada em sua dimensão arquitetônica se não for tomada como olhar formado a distância e desinteressadamente, mas sim na proximidade, comprometida com o conteúdo sócio‐espacial envolvido no próprio espaço. Desta forma, a paisagem desdobrada aos nossos olhos não foi aquela que partiu apenas de um interesse no tecido vegetal ou relativo as águas que passam ou não no lugar. Mas, principalmente, a um conhecimento dado no espaço, interessado em sua condicionantes econômicas, políticas, físicas, sociais tendo em vista os diferentes agentes. 

Desta forma, viemos nesse texto apresentar 09 imagens destes não‐lugares a partir de um olhar paisagístico interessado não apenas numa negatividade ou critica normalmente materialista de profundas raízes marxistas – como diversas escolas envolvidas com estudos urbanos intensamente fazem – mas numa positividade: potência para outros territórios, construções de fragmentos  de cidade possíveis. 

1 HORTAS DESCOLETIVAS 

Figura 01: Aboboras 

 

Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011. 

Atualmente, a agricultura urbana aparece como parte de um ideal de vida comunitário que “inocentemente” tenta ser resgatado. Uma vida bucólica inserida no cotidiano da metrópole para suavizá‐la. Ainda que diversas sejam as experiências ocorridas e documentadas desde o século XX, normalmente se atribui a esta tentativa uma imagem de descrença. 

Entretanto, se for procurado e analisado globalmente, temos experiências que colocam em questão tal imagem como, por exemplo, as ocorridas nos anos 90, em Cuba. Como relatado pelo jornal News form the Field, publicação distribuída na 27a Bienal de Arte de 

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São Paulo, o governo cubano tem um extenso projeto de ajuda a comunidades que formam uma rede de relacionamento envolvendo a produção de hortifruti para um determinado local. 

Não somente em Cuba, também temos no México práticas de agricultura organopônica nos bairros de periferia, agregando conhecimentos locais para a segurança alimentar da população local. Ou mesmo no Brasil, em Belo Horizonte, com práticas cotidianas que envolvem a negociação entre donos de lotes vagos e moradores no bairro Urucuia, como relatado pelos artistas Louise Ganz e Breno Silva no projeto Lotes Vagos, até Foz do Iguaçu. Ou ainda com a existência dos CEVAEs – Centro de Vivência Agroecológica, em Belo Horizonte com a participação de ONGs como a Rede.  

A questão se tornou a tal ponto importante e de abrangência nacional a ponto do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate e Fome ter um programa voltado a questão: Programa de Agricultura Urbana. 

Entretanto tais ações também acontecem nas margens desses movimentos de formalização públicos. No entorno da Avenida Presidente Antônio Carlos, próximo a um dos retornos construídos para os carros e ônibus, tornou‐se visível uma pequena horta plantada e cuidada por uma senhora residente nas proximidades. A margem de qualquer programa ou de pertencimento a qualquer comunidade, ela cuida da horta e chega a dividir suas abóboras com outros moradores próximos. Não há um ideal de coletividade a qual ela deve se reportar ou um programa que a leve a tal ato. A base para tal relação é uma dimensão de afeto construída com seus vizinhos. Pela localização da pequena plantação, a senhora procura esconder sua pequena obra que se desenvolve num barranco de pouco acesso. 

Se as comunidades produzidas ou requeridas neste programas estatais acabam por se tornar armadilhas identitárias pois tornam todos figuras visíveis pelos diversos poderes que controlam a vida coletiva ou o seu ideal, interessante notar como é fora desta identidade e distante de qualquer discussão sobre a alimentação mundial que a senhora constrói relações de proximidade desamparados desvinculada de qualquer “coletivo”. A senhora diz, não de uma comunidade existente ou imposta por demandas externas, mas de uma potencial – não ponto de partida, mas zona de chegada. 

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2 JARDINS MOVEDIÇOS 

Figura 02: Jardim externo plastificado 

 

Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011. 

No jardim de uma casa, a sala de visita se move.   

A casa, no fundo de um lote, é uma coleção de materiais vindos de diversos depósitos de material de construção: portas metálicas cinzas, janelas sasazaki, tijolos cerâmicos a mostra. Uma bricolagem kitsch. As janelas blindex expõem um desejo de ascensão e pertencimento social distantes do contexto onde ele realmente habita.  

Logo a frente, antigo fundo do lote exposto pela ampliação da avenida e alçado à nova categoria de importância, chama atenção um gramado e um jardim que, vistos a media distancia, parecem bem cuidados e aparados, com plantas e árvores verdes e delicadas, decorados com puffs e tapetes. O espaço externo é parte da casa, sendo decorado como tal qual uma sala de visita. 

Num rápido olhar, tudo parece o que realmente é. Aproximando‐se e de modo mais vagaroso, há algo mais ali.  

A vegetação bem cuidada e quase brilhante ganha outros contornos. O gramado verde demais e aparado de forma homogênea saiu de uma fábrica. As plantas, altas e baixas, samambaias à frente e bananeiras ao fundo, brilham. Ao se cheirar, não exalam odor algum. Ao se colocar a mão, plastificações.  

Campo de grama, plantas e flores, todos de plástico. Como se estivesse banhado no formol, tal espaço naturalizado não sente o tempo passar. Permanece incólume à ação do tempo conservando artificialmente seu frescor. 

Construído a frente, tal jardim artificial é também um dispositivo de captura. Captura de metros quadrados. Captura de propriedade. 

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Após o redesenho e alargamento da via logo à  frente da casa, motivados pela necessidade de aumentar o transporte de pessoas e mercadorias na grande cidade, foram subtraídos pedaços de diversos lotes. Muitos desses terrenos, antes retangulares, tornaram‐se trapezoidais devido a uma desapropriação parcial. Nestes cortes e recortes, portanto, o redesenho de quarteirões acabaram, por sua vez, redesenhando tamanhos de propriedades. Surgem dimensões e formas imprecisas e diferentes da geometria da cidade dita formal dada pelo traço regulador do desenho urbano. 

Com tal imprecisão, o dono desta propriedade percebe uma possibilidade de aumentar a sua casa. Com plantas e jardins moventes, captura um pedaço a mais, para além e indo além, de qualquer precisão pretensamente dada por uma cartografia planialtimétrica ou pelo foto aérea do googlearth. De tempos em tempos, aumenta seu jardim‐sala de visita, deslocando suas plantas e gramados plantados na superfície centímetros à frente.  

Cultiva‐o como aparelho de guerra. Se a prefeitura ou governo do estado retirou‐lhe um pedaço de terreno – que, aliás, lhe foi dado por usucapião, pois o terreno foi invadido e apos mais de uma década de apropriação, tornou‐se próprio – ele o tem de volta em um processo rotineiro de ocupação.  

Uma tática de guerra para conquistar o território inimigo. Ao invés de grandes planos, milhares de reais em indenizações, operações urbanas consorciadas ou parcerias público‐privadas que deixam visíveis negócios na mídia, um pequeno deslocamento de centímetros a cada dia, sem que ninguém perceba, aumenta e especula, a sua maneira, a forma, o desenho e o espaço da cidade.  

3 DA ÁFRICA  

Figura 03: Viaduto presente na avenida Antonio Carlos 

 

Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011. 

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Benedict Anderson em seu livro Comunidades Imaginadas discute a questão da nação na Modernidade. Constrói seu argumento a partir do conceito de imaginação que vem atrelado as nações surgidas a partir do século XVII nos países não‐europeus: imaginado porque muitas tornam‐se parte de ideais de nações outras que nem mesmo conhecem – e se é que elas existem. Ou seja, nações, grupos, comunidades são fundadas segundo uma noção de pertencimento a um outro que pode, em última instância, não existir ou existir enquanto produto imaginário. 

Ao passar pelos viadutos Senegal e Congo, questões emergem ligadas ao sentido e sentimento de comunidade que tais nomeações imaginam a respeito de si mesmas. Se o poder público assim nomeou, sem consulta a população ou qualquer outra entidade próxima do local, pensa‐se sobre a cooptação que tal simbolismo ou homenagem africana pode trazer. Se a escolha foi de alguma forma partilhada ou vinda exclusivamente da população local, questiona‐se porque referenciar a países que explodem em conflitos armados dados por uma influência exterior que até hoje se faz sentir junto a brigas internas que tentam explodir justamente esta unidade nacional. 

Mas tais imagens são tão passageiras como os próprios veículos em alta velocidade que pelos viadutos passam. Imagens de uma África fragilizada pela história que a explica como colônia de exploração européia que até hoje paga com seu subdesenvolvimento tal passado. 

Na verdade, pouco se sabe o que é a África. Enigma que ainda carrega imaginações passadas, hoje é lugar cinematográfico de campanhas humanitárias empreendidas por astros internacionais ou contexto de filmes sobre contrabando de pedras preciosas. A pergunta é o que significa como operador conceitual o termo “África” para o urbanismo e planejamento urbano. 

Se a África é conceito que ambiguamente implica unidade e fragmentação, ironicamente dizem dos viadutos também. Uma parte de uma rede de mobilidade que serve de passagem mas reconhecida como lugar. 

Como ligação, por outro lado, o que os viadutos ligam são justamente territorialidades vizinhas que pouco tem a ver exceto o fato de serem divididas por uma grande avenida. O viaduto como passagem o é porque não é um ou outro bairro, não é África pobre, nem África rica, mas compossibilidade de todos estes lugares ao mesmo tempo que negação de todos. Assim são limiares ou zonas de transição. 

Senegal e Congo são zonas de passagem e assim o são permanentemente, tal como os viadutos que cortam a imagem de unidade produtiva da Avenida Presidente Antônio Carlos e corroboram para seus ares de modernidade. 

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4 DO ESCRITÓRIO: APROXIMANDO‐SE DA ÁREA  

Figura 04: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2006. 

 

Fonte: Google Earth, 2011. 

Figura 05: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2009. 

 

Fonte: Google Earth, 2011. 

Figura 06: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2011. 

Fonte: Google Earth, 2011.  

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Interessante as imagens do googlearth ao longo dos dois últimos anos da avenida Antônio Carlos, via que liga o centro de Belo Horizonte a região da Pampulha, cartão postal modernista de Belo Horizonte desde os anos 30. Foi possível ver linhas se duplicando e triplicando, curvas transformando‐se  em retas, quadrados desaparecendo para que a linha cinza do asfalto pudesse ser implementada. Era possível ver nomes de ruas ali indicadas que não mais existiam no próprio mapeamento. 

Tal como as imagens do livro A Terra vista do Céu ou ainda em diversos sites especializados no tema paisagem, à distância a avenida tornava‐se composições. Pinturas onde se pode ver proporções, ritmos, simetrias quebradas, organicismos gerados por um desenho que ora se acomoda numa topografia que não é vista por este mecanismo que a desconsidera. Interessante como esta representação do real tornou‐se um efeito do mesmo: a linha recém‐inaugurada do asfalto que serpenteia por um emaranhado de quadrados com seu cinza vivaz enche os olhos com uma perfeição colorística e formal, dada pelo traçado da via. Tal como vendido pelo governo em outdoors e imagens em sites institucionais. 

Num clique, metros mais próximos, com nitidez a cidade torna‐se visível, deixando para trás esse rastro de uma possível pintura da paisagem do século XXI, a despeito do que isso foi no século XIX. Se à época, os quadros de pintores‐cientistas tinham como objetivo não dar uma visão pessoal do desconhecido, mas serem utilizados como meio de visualizar terras nunca antes vistas de modo objetivo e científico; hoje, o googlearth parece substituir qualquer subjetividade por um “choque do real”. Agora cada quadrado é uma casa, cada linha cinza uma via. Acostumados estamos a compreender esta informação como mapa do real pois é usual ver o mundo “de cima” como espectadores de ponto de vista privilegiado. 

Ainda por cima, pelo google street view, caminho foto a foto pelos lugares novos. A topografia ganha textura, assim como casas, ruas e a própria avenida. Numa tentativa de reconhecer, olho e tento lembrar se é isso mesmo que há na avenida pois de ônibus nunca dei atenção ao entorno. Uma foto parece ser igual a varias outras.  

A velocidade com que se passa por lugares associado a um grau de distração dado pela experiência típica habitual da cidade, faz com que o Google street view se torne um método de desaceleração e distanciamento do que pretende apresentar uma aproximação que se opera à distância: mediada. Como uma lente que possibilita um escrutínio maior da realidade, pretende uma profundidade cada vez maior: o que a Google e outros mecanismos de visualização querem é que as lentes penetrem cada vez mais fundo na intimidade. Mas repetir uma mesma imagem várias vezes significa torná‐la desinteressante. Assim aprendemos a ver por estes dispositivos: desaprendemos a enxergar possibilidades para ver realidades que acabam por cansar o próprio olhar sobre a cidade. 

Tornando pelo google streetview a realidade num amontoado de dados que só se interessa procurar quando necessário é uma imagem do lugar procurado, a realidade torna‐se resultado de uma percepção unicamente utilitária. Se a cidade de Paris no século XIX tem como protagonista a multidão, força empática para o flanêur, na avenida Antonio Carlos tal sensação se torna indiferença e capitalização total da cidade. 

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5 FOREVER ALONE  

Figura 07: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2006. 

 

Fonte: Google Earth, 2011. 

Figura 08: Forever Alone. 

 

Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011.  

Recortes dados por reformas viárias urbanísticas no tecido formal da cidade acontecem de forma até corriqueira. Desapropriar moradores de casas ou donos de comércios locais não é problemático visto que a prefeitura tem até suas maneiras de lidar com a questão. No entanto, o que fazer quando no rastro de tal movimento de apropriação está erguida uma torre de mais de dez pavimentos?  

Deixado na alça do viaduto pelo valor altíssimo que seria o de sua desapropriação o edifício reina absoluto, solitário, contaminando o fluxo e isento de qualquer vestígio físico da vizinhança que o circundava 

Um edifício que criou seu próprio desenho urbanístico. Tem um quarteirão próprio, ilhado do restante da cidade. Uma ilha que desconectada de tudo a volta nada tem a fazer senão pensar o pouco de contexto que lhe resta. Pintar suas fachadas da cor verde para combinar com o 

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verdor da grama – estratégia paisagística comum dada para os espaços residuais  dos grandes redesenhos.  

Quem sabe em suas fachadas, tal como nas gramas residuais, não deveriam ser plantadas árvores e plantas, imaginando uma paisagem urbana e ambientalmente responsável para o entorno – criado da avenida ou existente dos bairros lindeiros. Transformar o edifício solitário numa potencia para um redesenho da paisagem sendo esta compreendida desde a edificação até o desenho urbano.   

6 DOS CORTES 

Figura 09: Recortes domésticos  

 

Fonte: Google Earth, 2011. 

Entre os recortes gramados e os descampados à margem da avenida duplicada de pistas e quadruplicada de veículos insurgem composições arquitetônicas que fariam inveja às proposições pictóricas de Mondrian.  

Não há um critério único para que estes painéis se apresentem. Em alguns momentos foram resguardos pela estabilidade de platôs e montanhas de terra acima da avenida. Na sua grande maioria são resquícios de estabelecimentos comerciais e residências. O que antes era dividido por alvenarias agora conforma um plano com patchworks de modos de ocupação, não intencionalmente, mas para resguardar o limite físico dos vizinhos não demolidos.   

Os vestígios das ampliações estão lá impressos nas paredes que resistem como um mostruário de uma vida urbana doméstica que se exterioriza. Aos azulejos das cozinhas e banheiros gozam de uma importância e se colocam com participantes da cidade. A eles se sobrepõe os grafites, a publicidade informal, as queimaduras. Tornam‐se ruínas. 

Nas empenas desconstruídas surge um tipo de interlocução visual emudecido pelo barulho dos veículos em alta velocidade, mas nem por isso menos presentes, intercalado entre as queimaduras, pichações e grafites, os revestimentos cerâmicos e outros vestígios estão elementos de publicidade 

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informal oferecendo todos os tipos de serviços. Cartomantes, serviços exotéricos, borracharias, prestadores de serviços, motores e escapamentos. É oferecido, diga‐se em grande estilo, até o amor. 

Se aos olhos do poder público e dos higienistas é poluição visual, aos olhos concentrados de motoristas e pedestres imersos na predominância do cinza talvez sejam os únicos elementos de comunicação de resquícios de uma outra vida com o exterior.  

7 DAS ALTURAS E TOPOGRAFIAS: CAMAROTES E ILHAS  

Figura 10: Montanhas de Arrimo 

 

Fonte: Google Earth, 2011. 

No que tange o planejamento viário e a obsessão pelo encurtamento de distância para os veículos subverte  uma das noções básicas de geometria descritiva. A linha reta passa menor distância entre dois pontos para um veiculo e a maior distância altimétrica entre dois níveis de ocupação e vida urbana. 

A urgência de aumentar as pistas de tráfego colocou em segundo nível de importância os condicionantes topográficos das localidades em função da mobilidade urbana. 

Os desníveis produzidos pela ampliação não são poucos ou suaves. As ruas que cruzavam a avenida para fazer contato estão agora nos limites superiores assistindo de seu camarote imaginário a cena urbana da avenida.  

Quadras inteiras cortadas criaram ilhas remanescentes de difícil acesso e conexão. As transposições se fazem pelos viadutos, pelas escadas e rampas. Esses são os novos territórios passiveis de ocupação: as conexões. Os patamares das escadas e rampas são agora os locais de parada e de contemplação de uma paisagem pouco bucólica. 

O resultado destes recortes foi a configuração de uma paisagem de teatro de arena, com terraços descobertos e desnudos de proteção sonora, visual e auditiva. Esta desproteção permite que seus habitantes/espectadores mirem com “vista privilegiada” áquilo que foi considerado superior a suas relações e  deslocamentos naquele espaço. 

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O desnível antes acomodado pela conformação de edificações quadras e pela topografia quase natural virou filão para a confecção de um grande show room de contenções  e movimentos de terra. 

Grandes superfícies de concreto projetado, cortinas atirantadas, gabiões, muros de arrimo, taludes escalonados praticamente em pé e muitos outros métodos testados nas suas condições mais críticas para que sejam capazes de acomodar geotecnicamente novamente maciços de terra e edificações.  

8 SEIS ÁRVORES 

Figura 11: Descampado  

 

Fonte: Google Earth, 2011. 

A rua enquanto experimentação da diversidade da vida urbana é um cenário de numerosas possibilidades e práticas. Ao longo de um percurso de quatro quilômetros em uma mesma avenida cercada por vários bairros é possível que sejam feitas numerosas observações e percepções, arquitetônicas, urbanísticas, antropológicas, sociológicas, psicossociais, econômicas, climáticas e ambientais. 

Procurávamos toda e qualquer informação que dissesse respeito às áreas remanescentes de estudo. No entanto, sobressaía‐se um dado curioso e traumático dentre os muitos dados e observações vindos daquelas áreas. 

Em treze áreas distribuídas ao longo de quatro quilômetros havia seis árvores. No passeio da avenida apenas pequenas árvores recém plantadas e ainda tímidas na sua juventude. Seis pontos de sombra natural possíveis para ocupação imediata confortável sob o sol inclemente da Avenida. Mais áreas remanescentes do que árvores remanescentes. 

A distribuição dessas seis sombras não é equânime. Numa primeira área remanescente há três copas frondosas e agradáveis junto ao que sobrou de um quarteirão da Rua Fides. 

Em outra área fruto de uma quadra inteira demolida há uma pequena árvore jovem ainda em fase de crescimento também junto a Rua Fides. Na última área agraciada com sombra, junto ao viaduto São Francisco, há mais duas árvores: um eucalipto adulto e uma pequena amoreira. 

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A categorização das áreas verdes como resto urbano da área ocupada dificulta seu papel social de elemento de integração de usos e de espaço público e principalmente restringe o potencial dessas seis árvores. 

Se não houve grande problema em desapropriar quadras inteiras e retalhar o tecido urbano porque haveria pavor em retirar o único elemento natural que poderia causar melhor ambiência à toda aquela aridez? Como destemunhas desse fato restam seis árvores imponentes em sua presença improvável. 

O deserto é o ambiente em torno de um ser humano, isolado das vistas, dos sons e cheiros da atividade dos homens. Se o conhecimento humano é tão diverso, tampouco a ignorância coletiva da natureza é sem limites.  

O deserto da avenida é o inverso do deserto. Cheio de tudo humano. 

Esse deserto é concretado e impermeável, cheios de palmeiras, ou gramados que sequer suscitam o desejo da ocupação humana que não dentro de seus caros já que são margeados pela austeridade da grande via de circulação de veículos automotores. O desertos urbanos são opções normalmente dentro da ausência de opção. 

Desde os anos 70 grupos como Guerrila Gardening e Green Guerrilas em cidades como Londres e Nova Iorque tem sido foco de ações de “invasão verde”. Estes grupos tratam a ausência de áreas verdes de modo combatente propondo ações coletivas e participativas que alertam para a necessidade de jardins e áreas verdes como algo maior que um adorno ou resto urbano dentro do modo impermeável e árido como as grandes metrópoles tem ocupado seus territórios. 

A permanência de áreas verdes em corredores viários com o objetivo criar melhores ambiências urbanas para além das áreas mortas e mortais do ideal moderno, além do congelamento da especulação imobiliária e do longo processo de execução das operações urbanas é  causa de um conflito interno velado. As soluções e ações são em longo prazo e dificultadas por questões burocráticas pouco propositivas. 

Na ausência da sombra e na presença do sol a pino, ficou latente a vontade de disseminar bombas de sementes, não de sementes de girassol como fazem o Guerrila Gardening , mas de guapuruvus, patas de vaca, ipês e eritrinas  na tentativa de transformar a remanescência em novas ambiências, mesmo que ainda muito desertificada. Explodir assim as seis árvores remanescentes em essência, como os fractais, como padrões de elementos que são "auto‐similares" em diferentes escalas repetindo um padrão de “verde/sombra” equivalentes geométricamente em diversos tamanhos. 

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9 OUTDOORS 

Figura 12: Bonde na avenida Antônio Carlos, 1957. 

 

Fonte: www.observadoresocias.blogspot.com , 2011. 

Figura 13: Imagens satélite da avenida Antônio Carlos, 2011. 

 

Fonte: Google Earth, 2011.  

Interessante como o modelo de mobilidade de Belo Horizonte parece que voltou no tempo para ditar um futuro. Os transportes públicos de massa à época – bondes – que atravessavam a avenida Afonso Pena, Paraná e no caso aqui em questão, Antônio Carlos, em 1958, voltarão a compor a diretriz de intervenção da BHTRANS para a mobilidade na cidade. Por outro lado, vejamos a foto com mais cuidado: 

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Em 1958 uma parte da cidade urbanizada, com postes de iluminação em suas margens, e uma grande área quase homogeneamente verde sendo especulada para ocupações. O espaço do bonde não possui faixas de segurança, nem rampas de acessibilidade para acessar o veículo, e nem parece se mover a uma velocidade excessiva. O espaço de sua delimitação é quase de terra e no ar, onde passam os cabos de energia, não se vê outras fiações, e nem árvores para sombras.  

Inóspito. Aberto. Muitos vazios. 

Hoje, tornou‐se uma via onde ônibus e taxis por ali atravessam a velocidade muitas vezes superiores a 60 Km/h. Separação visível, mas nem por isso segura, entre veículos automotores e pedestres dados por grades laterais e passeios a centímetros mais altos, com largura para, dificilmente, duas pessoas. Acima, árvores recém‐plantadas.. Abaixo, recém‐inaugurados, passeios e asfalto vão sendo quebrados novamente para instalação do BRT. Os campos vazios dão hoje lugar a um adensamento intenso, que intraurbanamente não pára de crescer, tornando estes em áreas residuais gramadas sem sombra para ninguém. Apenas marcações de rotatórias, desvios e retornos.  

Igualmente inóspito. 

O IAPI como grande empreendimento e quase monumento regional torna‐se um amontoado de concreto próximo de outros amontoados – seja a própria via ou edifícios entorno. Entretanto, sua escala que permanece e o destaca na paisagem não pode ser vista – passamos muito rápido por ali. Agora pintados novamente, quem sabe não se tornam enormes outdoors de uma fábrica de tinta, como já o foram de uma indústria da construção civil de concreto nascente nos anos 50.  

10 CONTENÇÕES 

Figura 14: Muro Arrimo 

 

Fonte: GRAMA Arquitetura e Urbanismo, 2011. 

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Do camarote da Rua Fides avista‐se do outro lado mais uma amostra de soluções técnicas para conter movimentos de terra mais abruptos. Desta distância nada se revela mais.  Ao atravessar as pistas duplicadas da avenida e aproximar‐se da alça de retorno do viaduto, nas colméias de concreto, outros detalhes vão aparecendo além da total aridez do talude praticamente desnudo de grama. 

Duas lonas fazem as vezes de parede em dois módulos, o que cria um isolamento e individualidade de cada um daqueles módulos, controversas e camufladas unidades de habitação. Vivendo e coexistindo junto com toda a austeridade da margem de uma via arterial. 

Na 27ª Bienal de arte de São Paulo, Eliane Robert Moraes publicou um ensaio de reflexão sobre o tema da mostra “Como Viver Junto”, título extraído da obra Roland Barthes de 2003. O “como” foi afã de estudo do filósofo francês, e por sinal muito utilizado na tentativa de elucidar as variações e modalidades complexas de convivência humana em suas referências espaciais. “Viver junto implica uma demarcação, um lugar, um endereço. Mesmo que este seja flutuante” argumenta a autora ao estabelecer uma relação entre o filósofo francês com a experiência da convivência em um barco, um lugar sem lugar. 

A habitação/contenção da Avenida Antônio Carlos abre um questionamento além do como: onde e porque viver? A pergunta parece mais próxima do coexistir junto. 

A caracterização do não lugar de Marc Auge é uma possibilidade, especialmente na falta de contrapartidas e medidas mitigadoras e compensatórias para outras questões urbanas daquela região. Uma delas poderia justamente promover a habitação.   

 Em meio ao discurso que criou aquelas enormes pistas, faixas de pedestres e ao deslocamento de relações de usos, vieram áreas “residuais” sem contrapartidas que impedissem que a aquele elemento ganhasse feições de residência nem que legitimassem dignamente a apropriação e vida doméstica daquele lugar. À margem de tudo isso a vida segue seu curso e encontra seu lugar. 

11 AGRADECIMENTOS 

Agradecemos a Fernando Tourinho pela ajuda e participação no projeto como um todo. 

12 REFERÊNCIAS 

ABALOS, Iñaki. O que é Paisagem. In: Revista Eletrônica Vitruvius. Ano 05, mai. 2004. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.049/572/pt. Acessado em 26/12/2010.  

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Trad.: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.    

AUGÉ, Marc. Não‐Lugares. Por uma antropologia da Supermodernidade. Campinas: Papirus, 1995.  

AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da Mobilidade. Maceió: EDUFAL, UNESP, 2010.  

KOOLHAAS, Rem. Generic City. In: KOOLHAAS, R.; MAU, B. S,M,L,XL. New York: 010, 1997. p. 1247‐1265.   

LAGNADO, Lisette, PEDROSA, Adriano (org.). 27ª Bienal de São Paulo. Como Viver Junto. São Paulo: Fundação Bienal, 2006.  

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MORAES, Eliane Robert. O Corpo Impossível. A Decomposição Humana de Lautremont a BAtaille. São Paulo: FAPESP, Iluminuras, 2002.  

Roland Barthes, Como viver junto trad. Leyla Perrone Moysés, São Paulo, Martins Fontes 2003. 

SEDLMAYER, S.; GUIMARAES, C.; OTTE, G. Limiares e Passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: EdUFMG, 2010. p. 12‐26.

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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região 

El Parque Lineal concebido y su interpretación espacial desde lo vivido 

The designed linear park and its interpretation from the living space 

Coppelia H. CUARTAS Profesora investigadora, magister en antropología, Universidad Pontificia Bolivariana, Medellín Colombia. [email protected] 

Juan J. C. CALLE Profesor investigador, magister en Hábitat, Universidad Pontificia Bolivariana, Medellín Colombia. [email protected] 

RESÚMEN: Dentro de los múltiples proyectos urbano–arquitectónicos que adelanta actualmente la ciudad Medellín, consideramos para este artículo los Parques Lineales que se extienden a lo largo de toda la ciudad, como una nueva modalidad de  espacio público. Como  casos de  estudio  se  escogen  los parques  lineales  La Presidenta, La Bermejala, La Hueso y Bicentenario ubicados en los cuatro puntos cardinales de la ciudad para comprender mediante una exploración etnográfica y un enfoque principalmente socio espacial qué tipo  de  usos,  prácticas  y  apropiaciones  sociales  se  producen  en  estos  lugares  después  de  su implementación.  Identificando coincidencias entre las interpretaciones que los actores sociales elaboraron frente a estos lugares y las concepciones que tuvo el gobierno local cuando diseñó y construyó estos parques lineales para  el  uso  y  el  disfrute  público,  se  pudieron  identificar  las múltiples  formas  en  que  las  personas interpretan y le dan significado a esta clase de intervenciones públicas. Con un énfasis muy marcado en la prioridad  urbanística que respondía a unas necesidades físicas y estéticas en cada sector en donde se encuentran  ubicados  estos  parques,  se  vio  como  un  aspecto  secundario  el  interés  por  suplir  las necesidades del usuario real y no ideal que hace uso de este tipo de espacialidades. 

PALABRAS CLAVES: Parques lineales, espacio público, prácticas socio espaciales, apropiaciones espaciales, imaginarios urbanos.   

ABSTRACT: Among  the many  urban‐architectural  projects  currently  being  conducted  by  the  city Medellin  for  this article we consider  linear parks that extend throughout the city as a new form of public space. As case studies are chosen  linear parks La Presidenta, La Bermejala, La Hueso and Bicentenario  located  in  the four  corners of  the  city  to understand  through an ethnographic exploration and  focus primarily  social space  what  kind  of  customs,  practices  and  social  appropriation  occur  in  these  places  after implementation. Identifying  similarities between  interpretations  those  social actors developed against  these places and perceptions  when  local  government  was  designed  and  built  these  linear  parks  for  public  use  and enjoyment, were unable  to  identify  the many ways  in which people  interpret and give meaning  to this kind of public interventions. With a very marked emphasis on the priority urban responding to a physical and aesthetic needs  in each sector where  these parks are  located, was seen as a secondary  interest  in meeting the needs of the real user and not ideal that makes use of these specialties. 

KEYWORDS: park, public space, praxis, urban imaginary. 

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1 INTRODUCCIÓN 

Considerando los espacios públicos más significativos de las ciudades como son las plazas, las calles, los parques y su función dentro de la ciudad, se dirige la mirada hacia los parques lineales como obras de intervención ambiental hechas recientemente por la Municipalidad en el espacio público, ya que no solo aportan y enriquecen a la calidad ambiental de las ciudad de Medellín, sino que además son espacios en los que interactúan grupos con diversas motivaciones y necesidades espaciales, coexistiendo y conviviendo en una misma superficie de carácter urbana. 

De acuerdo a la investigación que soporta este texto, se fija la mirada en cuatro intervenciones realizadas por la Municipalidad en calidad de Parques Lineales (PL), para realizar una lectura en dichos escenarios con el objetivo de interpretar el habitar en relación con lo concebido, lo percibido y lo vivido, mientras se busca someter a discusión y evaluación, las concordancias halladas entre la visión Estatal y las apropiaciones y significados de los actores sociales que a diario utilizan sitios.  

De los catorce parques lineales construidos durante las dos últimas administraciones en Medellín se escogieron La Presidenta, La Bermejala, La Hueso y Bicentenario haciendo un estudio etnográfico a profundidad, teniendo en cuenta que algunos de estos parques se encuentran inscritos dentro de barrios que tienen un carácter más comercial que residencial como es el caso de La Presidenta y La Hueso, mientras que otros como La Bermejala y Bicentenario tienen un perfil residencial complejo con una fuerte historia de lucha entre el Estado y los grupos armados ilegales, que trae consigo en algunos casos desalojos y una superación constante reflejada en sus antiguos y actuales pobladores (Figura 1). 

Figura 1. Mapa de la ciudad de Medellín con la ubicación de los cuatro PL escogidos 

Buscando entender las distancias y aproximaciones que aparecen entre lo que estos parques lineales ofrecen y las necesidades que tiene cada comunidad, se toman en consideración los conceptos empleados por la teórica urbanística y activista político‐social Jane Jacobs (1973), y su propuesta para validar el funcionamiento y significado de los parques lineales investigados. Para este punto Jacobs propone que para que las intervenciones que se hagan en la ciudad no nazcan muertas desde su inicio, se debe tener en cuenta a partir de su concepción, aspectos como la ubicación, la dotación física apropiada para los intereses de la comunidad, las condiciones de seguridad y características referidas al diseño con respecto a un lugar y de esa forma, reconocer la dinámica vital o la muerte de los lugares. 

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Los (PL) no sólo conforman la nueva fisionomía en la urbe, sino que hacen parte de la nueva modalidad de espacio público de la ciudad, insertándose en todos los rincones de la cotidianidad de los vecinos, visitantes o transeúntes. Por ello se tiene en cuenta dentro del marco de esta investigación, las diferentes maneras en que cada comunidad responde con una serie de prácticas, costumbres y hábitos según sus particularidades e imaginarios, al tiempo que construyen su propia significación referida a estos parques. En la misma línea se busca identificar las concordancias y diferencias surgidas entre la visión estatal y los actores sociales en cuanto a las interpretaciones de cada parque lineal, para abrir una discusión sobre la manera en que las nuevas intervenciones espaciales, aportan a la construcción de ciudad. No sólo se considera aquí el fenómeno geo‐espacial sino social, político y ético que compromete el uso de estos lugares, además de establecer cuáles son las relaciones que resultan entre los actores sociales y estas nuevas realidades espaciales llamadas  PL. 

Concebidos con una misma finalidad, pero usados de diferente forma según sus propias particularidades se buscó conocer la manera en que los diferentes vecinos, visitantes y transeúntes se apropian de estos lugares, poniendo en discusión el espacio preconcebido desde la planificación, por medio de las dinámicas sociales presentes en cada lugar. De acuerdo a esto, las situaciones que aparecen en la producción de esta clase de espacios públicos, generan una serie de apropiaciones que los sujetos individuales y colectivos hacen de los mismos con recursos que provienen de sus recuerdos, necesidades y representaciones sociales, en las cuales no sólo se inscriben huellas sobre el espacio físico, sino que también disputan un nuevo lugar de reconocimiento, frente a las nuevas formas de construir espacios públicos en la ciudad.  

Haciendo énfasis en el constructo humano y cultural expresado y recreado en cada parque lineal por sus habitantes o visitantes que aceptan y/o rechazan estos lugares, se observó cómo muchas veces los cambios físicos pueden llegan a marginar, integrar, problematizar o reordenar socialmente no sólo los parques lineales, sino también a sus actores sociales. Finalmente como posibles lugares generadores de relaciones sociales, marcas, recorridos y comunicaciones que buscan promover apropiaciones individuales y colectivas en el espacio público, se busca encontrar los aciertos y diferencias que las personas que resultan de esta clase de intervenciones espaciales, frente a las necesidades que cada  comunidad manifiesta. 

En resumen, este trabajo busca responder a las siguientes preguntas:  

a. ¿Cómo se incluyeron las visiones de los usuarios en la concepción e intervención de los parques lineales como espacios públicos proyectados para la ciudad?  

b. ¿De qué manera concurren las percepciones de los usuarios de cada parque lineal, con las concepciones que tenía el gobierno local sobre éstos?  

En la búsqueda del reconocimiento y el sentido que los usuarios le dan a estos lugares que hacen parte de la ciudad, se presenta a continuación  algunas de las teorías consideradas, para explicar los fenómenos y las representaciones socioculturales que resultan de las diferentes formas de percibir y vivir estos nuevos espacios de la ciudad. 

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2 LA “TRIALÉCTICA DEL ESPACIO” COMO UNIVERSO CONCEPTUAL EN LA INVESTIGACIÓN DE LOS PARQUES LINEALES 

Para establecer qué relación existe entre las personas y los parques propuestos, se definieron algunos elementos conceptuales que ayudaron a entender el componente social que resulta de estas intervenciones espaciales llamadas parques lineales. Haciendo una lectura socio‐espacial en los parques seleccionados, se dejó de lado la idea preconcebida de que el  territorio físico es el único elemento pensado en el plano sobre el cual se traza la cartografía cultural, dando una idea de que el espacio arquitectónico no es solo producto, sino productor de lo social. A partir de la teoría de la trialéctica del espacio planteada por Henry Lefebvre (1974) en The production of the space, se hizo una lectura del espacio físico a partir de la conformación trialéctica entre lo concebido, lo percibido y lo vivido que plantean sus autores, cuya resultante es la comprensión del proceso de producción del espacio mismo. Esta teoría  retomada luego por el geógrafo y planeador urbano Edward Soja (1996), buscó interpretar las relaciones que se establecen a través de la espacialidad, asumiendo el espacio no como un simple contenedor, sino como escenario del comportamiento humano. Soja lleva a la práctica cada uno de los elementos que compone la trialéctica de Lefebvre y analiza la categoría del lugar, desde la producción social del espacio habitado para la búsqueda de un saber y una comprensión práctica del conocimiento, sobre la permeabilidad que tiene el individuo sobre éste (SOJA, 1996, 5). 

Según Lefebvre la trialéctica del espacio propone concebir de forma diferente “la espacialidad de la vida humana” (SOJA, 1996, 1), ya que su aplicación en el contexto investigativo fue pensada para aquellas disciplinas que se encuentran implicadas profesionalmente con los estudios socio‐espaciales. Por esta razón se considera la trialéctica como un referente fundamental en la elaboración de esta investigación realizada en algunos de los parques lineales, concebidos por el gobierno local de la ciudad de Medellín. 

Entendiendo la trialéctica del espacio como un conjunto de prácticas espaciales, espacios representados y espacios de representación (PIAZZINI, 2004, 154), la referencia central de esta marco teórico, que necesariamente surge a partir de una creación colectiva, es la espacialidad de la vida humana donde aparecen una serie de consecuencias sociales en la relación hombre‐espacio, otorgando como resultado un “sentido práctico a la espacialidad de la vida social” (SOJA, 1996, 5). La trialéctica en este sentido representa lo concebido como lo pensado, lo percibido como lo físico y el espacio vivido como el representado (SOJA, 1996, 154) en los parques lineales estudiados. Para ampliar mejor este concepto se recrea la trialéctica del espacio en la siguiente figura (Figura 2). 

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Figura 2. La Trialéctica del Espacio. Fuente: personal. 

De acuerdo a esta figura, el espacio concebido hace referencia a su finalidad, a los propósitos que se pretenden desde cada organización, institución, gobierno local o nacional, en donde se definen las particularidades del espacio, así como la normatividad. Desde la institucionalidad, el espacio concebido generalmente es visto como un soporte material básico que posee unas cualidades físicas, climáticas, ambientales junto con materiales funcionales y formales, y el territorio comprendido como un concepto para entender los parques como ese lugar donde se definen los procesos y los grupos sociales que lo han venido transformando y haciéndolo parte de sus aconteceres (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000, 14). En este numeral el espacio concebido no se desarrolla conceptualmente a profundidad ya que el caso de estudio que corresponde a los parques lineales de la ciudad de Medellín, es definido por la Municipalidad. 

En cuanto a la dimensión de lo percibido se consideran todos los aspectos físicos del lugar, como una espacialidad materializada junto con las actividades que desarrollan los moradores en cada espacio, teniendo en cuenta cómo las personas usan, marcan, habitan, y transforman el lugar. Considerando que es a través de los usos y las prácticas de las personas que se configura un lugar, se pensó en cómo la instauración de los PL afectan y transforman a los individuos que lo habitan, constituyéndolo como parte de su entorno. El espacio percibido también se relaciona con el concepto de territorio pensado como una “producción social del espacio” (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000, 13), donde lo espacial es presentado como producto de lo social. De acuerdo a esto, el territorio desde lo percibido, no sólo define procesos físicos tangibles de tipo cuantitativo dentro de cada espacio físico, sino que adquiere un significado cuando se usa espacial, temporal y materialmente. Por esta razón se determina aquí que lo físico y espacial puede influir sobre el aspecto social, no alrededor sino al interior de éste, permitiendo pensar que lo percibido en estos lugares puede verse como el “…producto social en relación con otros elementos materiales, entre ellos los hombres, quienes contraen determinadas relaciones sociales, y dan al espacio una forma, una función y una significación social” (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000, 13). 

En el contexto de trabajo de los PL se busca establecer la relación que existe entre el reordenamiento de estos espacios y la forma en que las personas se relacionan con ellos. Para esto el espacio físico donde se encuentran localizados estos parques, se revisa como aquel material básico que comprende unas cualidades físicas, climáticas y ambientales, acompañado de unos materiales que tienen función y forma al tiempo que son definidos por los procesos y grupos sociales que transforman el espacio, haciéndolo parte de sus aconteceres (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000, 14). De esta forma las características físicas de un espacio percibido pueden llegar a trascender por medio de unas apropiaciones, para convertir ese lugar en el sitio donde se gestan identidades y sentidos de 

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pertenencia, o como plantea Milton Santos (1996, 28) en “...la casa, el lugar de trabajo,  puntos de encuentro, caminos que unen esos puntos, que son […] pasivos que condicionan la actividad de los hombres y rigen la práctica social”.  

El espacio vivido como último componente de la Trialéctica del Espacio, tiene en cuenta las apropiaciones y representaciones que los sujetos y colectivos manifiestan en el espacio como un lugar cargado de sentidos por quienes lo practican, identifican y habitan, convirtiéndose en escenarios donde se gestan diferentes situaciones cotidianas. El espacio vivido otorga importancia a componentes históricos, permitiendo la comprensión de valoraciones y significaciones que las personas confieren a los lugares practicados, así como a las materialidades existentes en cada lugar consideradas muchas veces como producto de la cultura material que involucra todo aquello que ocupa un espacio en la memoria y el reconocimiento colectivo. 

Las prácticas territoriales son también un componente importante dentro del espacio vivido, ya que a través de éstas se expresan sentimientos, nociones y percepciones que llevan a apropiarse del territorio de diferentes formas. Según Echeverría y Rincón (2000, 17), pensar la territorialidad es pensar en la marca de un espacio y un tiempo en el que se genera o se altera un ambiente (físico, social, cultural o político), donde aparecen cambios que implican controles de transformación del territorio, adquiriendo un sentido a través de lo que la territorialidad le otorga a ese espacio. De esta forma las manifestaciones de territorialidad encontradas en el espacio vivido o representado, deben asociarse en cada espacio con las actividades y representaciones sociales que surgen de las formas de apropiación y territorialización.  

Valorando las representaciones sociales como un componente fundamental del espacio vivido, Jodelet (1984 en ARAYA 2002, 11), explica cómo las personas conocen la realidad por medio de los procesos de comunicación y pensamiento social. Para Araya existe un conocimiento específico que es determinante en la forma de pensar y actuar de las personas, apareciendo así un “...conocimiento del sentido común” el cual otorga una forma de percibir1, actuar y razonar dentro de un conocimiento social que incluye procesos cognitivos, afectivos y simbólicos en los que se pueden reconocer las conductas que responden a opiniones, normas, creencias y valores de manera positiva o negativa. Según Araya, la percepción es uno de los componentes más importantes del espacio, clasificándola según circunstancias sociales relacionadas con la cultura y la clase social a la que se pertenece. La manera en que influyen las formas en que se concibe la realidad del espacio, tiene que ver con la manera como ésta es aprendida y reproducida por los sujetos sociales que transitan, visitan o permanecen en estos lugares. Se plantea entonces que la percepción desde lo vivido pone de manifiesto el orden y la significación que la sociedad le asigna al ambiente (MELGAREJO, 1994, 49) reflejada en los usos, prácticas y apropiaciones de cada individuo. 

La antropología define la percepción como una forma de conducta que comprende el proceso de selección y elaboración simbólica de la experiencia sensible, la cual encuentra sus límites en las capacidades biológicas humanas y en el desarrollo que el hombre establece para la producción de símbolos. Según esto, la percepción a través de lo vivido, asigna características cualitativas a objetos o circunstancias que aparecen en el entorno, mediante referentes que se elaboran a partir de sistemas culturales e ideológicos construidos y reconstruidos por un grupo social, permitiendo generar evidencias, sobre una realidad determinada (VARGAS M, 1995 en MELGAREJO, 1994, 50). Desde este contexto, el espacio vivido entra en el territorio del 

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imaginario como elemento integral para la construcción del lugar. Al poner en consideración la historia humana y las diversas formas de sociedad que se conocen, se puede decir que éstas se definen esencialmente por la creación imaginaria, la cual evidentemente no puede ser catalogada como ficticia, ilusoria o especulativa, sino que son formas creadas por cada sociedad, haciendo que exista un mundo en el cual cada grupo se inscribe y configura un lugar (CASTORIADIS, 1975, 227) 

Como concepto clave para la interpretación de lo vivido en el trabajo de campo, el imaginario se asocia con la producción de creencias e imágenes colectivas generadas por los actores sociales de cada parque, a partir de las ideas que se registraron en la memoria de la comunidad que interpretó y significó de forma diferente cada intervención. Según esto, los espacios de representación que aparecen desde lo vivido, se combinan con la forma en que los parques lineales trabajados son percibidos e interpretados. Con ello se tiene en cuenta que es a través de los imaginarios, que los individuos construyen creencias compartidas que finalmente son aceptadas por una sociedad, en la que participan una serie de significaciones sociales constitutivas de una identidad colectiva. Lo deseable, lo imaginable y lo pensable de la sociedad actual, se define por la comunicación que se establece dentro de un espacio (CASTORIADIS, 1975, 227).  Las formas de comunicación creadas por cada grupo,  

(…) hacen que exista un mundo en el cual esta sociedad se inscribe y se da un lugar. Mediante ellas es como se constituye un sistema de normas, de instituciones en el sentido más amplio del término, de valores, de orientaciones, de finalidades de la vida, tanto colectivas como individuales. En el núcleo de estas formas se encuentran cada vez las significaciones imaginarias sociales, creadas por esta sociedad, y que sus instituciones encarnan (CASTORIADIS, 1990, 195). 

En la medida en que se logre comprender cómo los actores sociales perciben la importancia de esos lugares que habitan, se podrá tal vez contribuir a una comprensión del vínculo que hay entre los parques investigados y las relaciones de tipo social que se producen en los mismos, ya que éstas no sólo funcionan como componente tangible del lugar, sino como condición o límite de la acción frente al uso de los mismos, al tiempo que se tiene presente la construcción sociopolítica en la que se elaboran, imaginan y cuestionan las maneras en que se imponen las nociones de espacio público y lugar, influyendo innegablemente sobre la cultura, el tiempo, el sitio, sus habitantes y visitantes. 

3 RUTA METODOLÓGICA DEL TRABAJO EMPÍRICO 

Dentro de la ruta metodológica trazada en esta investigación, es importante señalar que la trialéctica del espacio desarrollada también guio la recolección, organización y posterior análisis de la información de esta exploración. Con la propuesta que plantea la trialéctica, se toma el espacio concebido para revisar todos los aspectos referidos a la planeación de estos parques, seguido por lo que se percibió en el trabajo de campo y por último el análisis e interpretación de los datos recopilados, expuesto en el espacio vivido de cada parque lineal. De esta forma la primera parte se enfoca en la planificación donde se identifican las entidades encargadas de la intervención y transformación de estos lugares, conociendo las consideraciones tenidas en cuenta para la planeación de estos PL. La segunda etapa se concentra en la intervención y se estudia a profundidad los cambios espaciales, amueblamiento y redistribución, así como las consideraciones para su construcción. Por último se analiza la apropiación de los diferentes 

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usuarios en estos parques entregados por la Municipalidad, buscando establecer que coincidencias hay entre las propuestas del Estado para el uso de estos lugares y las respuestas que resultan por parte de las personas que habitan, recorren, aceptan, apropian o rechazan estos espacios. Para esta última fase correspondiente a la apropiación (o lo vivido), se tuvieron en cuenta unas categorías de análisis, para ubicar este modelo reciente de espacio público a partir de la naturaleza urbana inscrita en la ciudad, seguida por la domesticación del espacio público en la que se aprecian prácticas cotidianas exclusivas de la vivienda y que son extendidas hacia el espacio público y por último, las percepciones y representaciones sociales que los diferentes usuarios de estos parques elaboran con relación al sentido y funcionamiento que deben tener esta clase de lugares,  es en lo que se concentra el interés para soportar este texto.  

Para entender qué sucedió socialmente con las transformaciones físicas convertidas en parques lineales, se emplearon una serie de variables que contribuyeron a la lectura socio‐espacial en la que los sujetos evidenciaron sus lógicas, visiones, modos de ser y estar teniendo en cuenta los siguientes aspectos:  

Tiempo: con este factor se consideran los momentos en que se ocupan y se desocupan estos parques.  

Mobiliario: se consideran dentro de esta variable todos objetos y materialidades usadas, apropiadas o alteradas dentro de cada lugar.  

Usuarios: se clasifican de acuerdo a la frecuencia de uso de los lugares en los están presentes visitantes, vecinos y transeúntes.  

Acciones y actividades: se tienen en cuenta a partir de los actos que se realizan y la frecuencia con que se desarrollan.  

Comportamientos: éstos pueden ser puntuales o generales con respecto a un individuo o grupo (impacto en cuanto al uso, magnitud de ocupación y actividad en el espacio utilizado).  

Localización: Para este caso se tiene en cuenta cada parque lineal y su relación con el entorno inmediato (proximidad al barrio o a la ciudad).  

Centralidad externa: se manifiesta en las formas de acceder al parque desde cualquier parte del barrio.  

Centralidad interna: está pensado como las líneas indicadoras de puntos físicos donde confluyen senderos y espacios dirigidos a las prácticas cotidianas de los usuarios.  

Las categorías de análisis mencionadas en párrafos anteriores, se amplían a continuación para explicar lo que se encontró en los parques investigados y considerados siempre desde las tres posturas de la trialéctica: el parque concebido, el parque percibido y por último, el parque vivido.  

 

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4 EL PARQUE LINEAL CONCEBIDO COMO NATURALEZA URBANA 

Creados dentro de la planeación urbana de Medellín, estos parques pertenecen al Plan de Desarrollo 2004‐2007, como parte 2del espacio público y del medio ambiente. De acuerdo a este plan, se proponen una serie de estrategias con las normas complementarias al POT, buscando avanzar en la recuperación del río Medellín como espacio público metropolitano, por medio de alternativas que aseguren la calidad del mismo, para el encuentro ciudadano mejorando así las condiciones para la movilidad de sus habitantes. Para esto se buscó intervenir en orden de prioridades, las quebradas en forma de parques lineales promoviendo así la articulación de los barrios, con los sistemas de movilidad y equipamientos de la ciudad3. Pensados para los cuatro puntos cardinales de la ciudad4, de acuerdo al componente urbano que hace parte del sistema estructurante de espacio público de la ciudad, la ubicación de esta clase de parques enmarca una gran diferencia frente a los parques biblioteca5, que son centros culturales inscritos dentro de modernas infraestructuras, con amplios espacios verdes públicos, senderos peatonales y mobiliario ubicados estratégicamente en las zonas más necesitadas de Medellín y concebidos por la administración municipal como lugares en los que se implementan diferentes programas socioculturales y educativos, que le apuntan al mejoramiento de la calidad de vida de los ciudadanos, que habitan las zonas más pobres y vulnerables de la ciudad6.. 

Previstos para responder a la necesidad de un espacio en particular, hay que recordar que para el caso de la Bermejala y La Hueso existieron unos requerimientos enmarcados en lo funcional, mientras que para La Presidenta y Bicentenario hubo un asunto relacionado con lo contemplativo, sumado a la recuperación ambiental. De acuerdo a esto, las intervenciones de los cuatro parques se enfocaron en recuperar y canalizar las quebradas de cada sector, al tiempo que sé que se promovió un desplazamiento agradable visualmente por medio de la contemplación del paisaje, el paseo y el encuentro cuando las personas  cruzan  algunos de estos parques. 

Medellín obedece a la de un valle estrecho y urbanizado que exige inventar nuevas formas para hacer crecer el espacio público, de acuerdo con las limitaciones y condiciones topográficas, siendo los parques lineales alrededor de las quebradas, otra forma de hacer parques en la ciudad. Debido a que la ciudad tiene muchas pendientes y fuentes hídricas, Medellín tendrá un millón de metros cuadrados en parques lineales alrededor y a lo largo de sus quebradas y del río Medellín, como un sistema de respuesta novedosa a la que nos obligan las montañas (PÉREZ, 2003,141). 

Pensados por el gobierno local como espacios abiertos para diferentes posibilidades, se tiene en cuenta que los parques lineales a partir de su diseño, fueron pensados con unos usos particulares en cuanto al ocio y esparcimiento se refiere. Teniendo en cuenta cómo el gobierno local organiza los recursos naturales para crear naturaleza urbana en forma de trayectos lineales para recuperar ciertos espacios de la ciudad, se ve cómo algunos elementos de la naturaleza como plantas, árboles y quebradas quedan organizados en forma lineal para el disfrute público.  

Vale la pena resaltar en el caso de los parques escogidos, que aparte de considerar la diferencia topográfica con que cuenta cada sector en donde se encuentran inscritos, también se 

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consideraron los antecedentes históricos, las condiciones sociales, políticas y económicas que demarcan cada lugar, estableciendo una diferencia no sólo en sus recorridos, sino por la forma en que son usados en cada sector de la ciudad. Pensando en los cuatro parques lineales escogidos como lugares de acceso, circulación y visibilidad, también se consideraron como lugares donde se gestan permanentemente las formas específicas de vida social entre desconocidos, que tienen que convivir entre sí. Transitando o habitando temporalmente en estos parques, aparece una realidad que resulta por la interacción social entre conocidos o desconocidos, se realiza dentro de un mismo espacio público. Aunque somos seres hechos para vivir en ambientes internos con límites definidos y conocidos, también somos seres sociales que compartimos vivencias y experiencias que necesitan del otro para su propia complementación (SARTRE, 1997 en SILVA, CORREA y MAGNABOSCO, 2010, 111). Por esta razón se considera pertinente pensar que las transformaciones que surgen en estos parques, aparte de estar compuestos por aspectos físicos y materiales dispuestos en un orden determinado, también se debe pensar en los fenómenos sociales que surgen dentro de estos escenarios, como resultado de las transformaciones espaciales. Los parques lineales escogidos se convierten entonces, en el lugar donde se manifiestan los diferentes usos de acuerdo a los intereses de cada parte. No se define como una simple colección de eventos y objetos observables, sino como esa porción de espacio, en donde se produce la simbiosis de los sentimientos personales con lo simbólico y lo colectivo (DALIA y ARTIOLI, 2009, 8).  

De acuerdo a lo encontrado en  espacio concebido, estos parques fueron interpretados de múltiples maneras y por diferentes individuos de acuerdo a sus necesidades particulares, otorgándole a cada lugar nuevos sentidos y significados aparte de la naturaleza urbana que se inscribe como soporte material básico que posee unas cualidades físicas, climáticas, ambientales junto con otras materiales funcionales y formales. 

5 EL PARQUE PERCIBIDO COMO ESPACIO DOMESTICADO 

Teniendo en cuenta que el espacio percibido es donde se encuentra presente todo lo físico y tangible, se busca reconocer de qué forma lo material influye sobre lo social, a partir de lo que Milton Santos define como “un conjunto indisociable, solidario y también contradictorio de sistemas de objetos y sistemas de acciones, […] no deben ser considerados aisladamente […] ya que […] los sistemas de acciones tampoco permiten el conocimiento sin los sistemas de objetos” (1999, 51 en SCHNEIDER y PERÉY, 2006, 8). De acuerdo con esto, se plantea que la disposición de las materialidades presentes en los parques concebidos, a veces influye en la manera en que éstos son usados y territorializados. Desde el reconocimiento que se hizo de los objetos que hacen parte del mobiliario de estos parques como son las bancas y los senderos, se pudo apreciar de qué forma éstos se convierten en dispositivos importantes a la hora de permanecer en cada lugar. Por ejemplo las bancas de algunos de los parques investigados, además de ser usadas para sentarse también son empleadas para acostarse, leer, esconder la basura o  transformarse  en  portería de futbol, en el momento de jugar un partido. 

Aparte de las funciones de cada parque, se encuentran otros aspectos relacionados con las percepciones sensoriales. Aunque éste no es uno de los ejes temáticos de esta investigación, sí es importante enunciar que la presencia de olores, colores, texturas, climas o ruidos de cada 

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parque también aportan en la producción de la vida social de cada lugar. Según la antropóloga Martha Cedeño Pérez, las relaciones de los seres humanos con el entorno son de naturaleza poli sensorial, haciendo que todo lo que captemos a nuestro alrededor sea a través de los sentidos. De acuerdo al antropólogo Edward T. Hall, el ser humano cuenta con dos tipos de receptores que le ayudan a captar todo a su alrededor. Como primeros receptores de distancia se encuentran los oídos, la vista y la nariz con los que se percibieron los olores fuertes y desagradables en la quebrada de La Bermejala, que comparado con La Presidenta, el fuerte olor, no es una característica del lugar. De igual forma los ruidos fuertes alrededor de La Bermejala y Bicentenario marcaron una enorme diferencia, comparado con el silencio de La Presidenta y La Hueso. En cuanto a los segundos receptores que denomina Hall como inmediatos, se encuentran la piel y los músculos que captan la temperatura y las texturas o superficies. Para este caso factores como el clima, la hora y otros aspectos sensibles que se perciben a través de la piel, pueden influir al momento de estar o rechazar este tipo lugares (HALL, 1972). En el caso de La Bermejala y Bicentenario por ejemplo, se experimentó al transitar por sus senderos, cómo la ausencia de árboles incrementaba las altas temperaturas en época de verano, produciendo una fuerte sensación de calor a la hora de caminar, sobre todo al medio día cuando el sol está más fuerte  y no hay muchas opciones de sombra ni natural, ni artificial para resguardarse. 

De acuerdo al profesor José Jairo Montoya, no tener un lugar es como habitar una temporalidad, en vez de una espacialidad (MONTOYA, 2010, 90). Por donde antes permanecíamos hoy simplemente vamos de paso, siendo la estancia prolongada un concepto más efímero todos los días dentro del espacio citadino, que da como resultado una condición de extranjeros en nuestro propio territorio. Se hace la salvedad que el término extranjero empleado en este artículo, se relaciona con los comportamientos que se producen en el espacio público y que solamente responden a contactos ligeros, transacciones móviles y encuentros pasajeros en los cuales cabe más la actitud del sujeto, que la identidad del individuo que vive en la ciudad. Partiendo de esta idea se puede decir que los usos, prácticas y actividades encontradas sobre todo en los parques La Presidenta y Bicentenario, se definieron por el registro de permanencias cortas justificadas por los mismos visitantes que reclamaron a través de las entrevistas, las limitadas opciones que ofrecían estos parques eran muy limitadas a la hora de permanecer en estos  lugares, por largo tiempo. Como espacios públicos dispuestos para el encuentro y el ocio pasivo, estos parques lineales presentan dos funciones complementarias que son la de circular para ir a alguna parte, o la de pararse para estar y existir en un lugar dentro del mismo.  

Percibiendo en tiempos muy marcados un microcosmos de prácticas citadinas, interacciones y acontecimientos de los que se desprenden diferentes formas de ser y estar, se encuentra un contraste entre los tránsitos rápidos de las personas que sólo atraviesan estos parques y que reclaman la falta de más sitios para descansar, lo que obliga a reducir el tiempo de permanencia en éstos. Para este tipo de usuarios que cruzan cada lugar para conectarse con otras estancias de manera rápida, se le asignó la categoría de turistas o extranjeros, junto con los visitantes que en su mayoría permanecían por tiempos muy cortos, dando como resultado una situación en la que se habita  una temporalidad, en vez de una espacialidad.  Por otro lado están los visitantes que a pesar de no encontrar muchas bancas o cubiertas que protejan de la intemperie, transforman, utilizan y adecúan ciertos espacios del parque, de acuerdo a sus necesidades definidas en la vida cotidiana y que van cobrando significado según los usos encontrados (Figura 3 ). 

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Figura 3. Personas comiendo en el parque lineal La Presidenta. Nota: las mesas y objetos que se aprecian en la imagen no hacen parte del mobiliario original del parque. Fuente personal, agosto de 2010. 

Se puede concluir que las personas no sólo tienen la capacidad de dar sentido a los entornos urbanos a partir de sus comportamientos, sino que también pueden transformarlos llegando incluso a cambiar su sentido original. Más que optimizar los espacios estéticos de la ciudad, se debe evidenciar un reconocimiento por parte de los sujetos respecto a los lugares que se piensan poner a su disposición, pues “aquél que tiene la sabiduría para la creación de intervenciones fantásticas, debe también ocuparse de la elaboración de sus significados.  Estos construyen la historia y con ella otra porción de otras historias” (SILVA, CORREA y MAGABOSCOSO, 2010, 119). 

6 DOMESTICANDO EL PARQUE 

Continuando con la búsqueda de aquellas manifestaciones que reflejaran la domesticación del espacio público, se encontraron algunas prácticas cotidianas en La Bermejala, que dejaron ver la forma cómo la casa logra permear el espacio urbano a partir de las dinámicas domésticas y las formas de significación expresadas por sus habitantes y vecinos, a la hora de usar este lugar. Al encontrar actividades como secar la ropa al sol, cocinar en los senderos peatonales o asolear los recién nacidos sobre las barandas de la quebrada canalizada, la extensión de la vivienda en el espacio público consolida el PL como su centro y da lugar a lo habitable y lo comprensible, que son dos factores constituyentes de lo doméstico. Comprendiendo los significados e imaginarios que se construyen hacía el interior y exterior de la casa y cómo es la relación con el umbral inmediato a la vivienda (correspondiente a lo público), se evidencia en La Bermejala, un espacio público que para algunos se remite a la utilización del esparcimiento y recreación como expresión tradicional de lo público, mientras que para otros cumple con el sentido de abrigo, donde se extiende la acepción de hogar en lo cual, la familiaridad de la casa se dilata hacia el exterior, permitiendo identificar particularidades íntimas que corresponden a las prácticas domésticas de la vivienda, con situaciones que no estaban previstas dentro del urbanismo y las formas de diseño arquitectónico del espacio público tradicional. De esta forma, los individuos dotan el exterior de sentidos, cualidades y significaciones privadas que para la Municipalidad no corresponden a las estéticas del espacio público. 

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Según Mauricio Chemás, cuando el entorno se hace próximo a la vivienda, tanto el afuera como la casa misma se convierten en el micro hábitat del individuo, a través de modos de relación particulares según el contexto que valoran estética, social y culturalmente las condiciones del macro hábitat que es el vecindario o la misma ciudad (2007, 11). Para este autor, en lo cotidiano de estos territorios aparecen unos límites mucho más flexibles y permeables que se definen como fronteras de unos imaginarios en los cuales las personas conviven de manera armónica en el espacio público. Lo que resulta de estas apropiaciones del espacio físico, se convierte en lo que él llama la “tercera zona” como nuevo espacio de afluencia. Éste proviene de la mezcla entre lo público y lo privado que no es la calle ni es la casa, sino una tercera zona que remplaza lo que antes era un espacio vacío. A esta tercera zona Fernández (2004, 20) la denomina “casa pública”: 

(…) sacar la casa al mundo, y fundar allá fuera un intercambio de perspectivas domésticas, […] implica crear un espacio comunicativo inédito, que no sea ni casa ni calle, sino otro, semiprivado y/o semipúblico, entre cuatro paredes pero con las puertas abiertas. Ni casa ni calle, por lo que se llamó ‘casa pública’. 

Situación propia de muchos sectores populares de las ciudades latinoamericanas (Figuras 4 y 5). 

Figura 4. Secando la ropa sobre el parque.   Figura 5. Cocinando en el parque lineal. 

Después de conocer este tipo de prácticas sobre el parque lineal La Bermejala, se considera el espacio público como un territorio en el cual más que su comprensión como escenario que da lugar a la vida cotidiana, sea comprendido como un territorio en el cual se deja grabada la huella de la existencia del ser humano, quien mediante su uso cotidiano lo impregna con su esencia y llega a concebirlo como un espacio de vida. Bajo esta fundamentación conceptual surgen algunos de los planteamientos teóricos más notables de esta investigación; autores como (SOJA, 1996), (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000), (LEFEBVRE, 1996), (MATA, 2005), (SANTOS, 2000) se toman como una base conceptual fundamental que define los vínculos que tiene el hombre con el espacio público y la vivienda, como resultado de la materialización y representación que contiene la esencia de quien habita. “un pedazo del mismo convertido en espacio” (BOLLNOW, 1993, 92) exteriorizando su forma de habitar. Esta fundamentación ayuda en la comprensión del espacio público desde la producción social del espacio habitado, abordando no sólo lo concebido, sino también lo percibido y lo vivido para la búsqueda de un saber y una comprensión más práctica en el conocimiento sobre la apropiación del espacio público. Más allá del espacio percibido, se encontró en la configuración del 

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territorio una serie encuentros, desencuentros, intercambios, asimilaciones, diferenciaciones y exclusiones cuando los diferentes actores sociales participaron de forma directa o indirecta, en estos parques lineales. Pensando en la función social que deben cumplir estos espacios a través de los servicios y oportunidades que prestan a las diferentes comunidades, aparece implícito el tema del diseño pensado para cada lugar.  

Se propone por lo tanto debatir la “domesticación” de lo urbano no sólo como un fenómeno geo‐espacial, sino también político, ético y estético que compromete el habitar; ya que establece una relación de dominio del ser humano sobre el espacio, con el fin último de habitarlo. De acuerdo a esto se genera la pregunta: ¿conoce la Municipalidad las prácticas y apropiaciones que gestan día a día los habitantes, en los espacios públicos que proyectan? Es importante aclarar que en este documento sólo se somete a discusión los hallazgos de los parques lineales enunciados anteriormente. En estos lugares además de dar respuesta a esta pregunta se vincula, discute y evalúa las correspondencias ente la mirada del Estado y las respuestas de los actores, que a diario utilizan estos lugares. 

7 EL PARQUE COMO ESPACIO VIVIDO O REPRESENTADO  

Recordando que en la trialéctica del espacio, lo vivido es sinónimo de lo representado, se toman en cuenta para esta última parte del artículo, las apropiaciones y representaciones que los sujetos y colectivos manifiestan en los PL, como lugares cargados de sentidos por quienes lo practican, identifican y habitan, convirtiéndose en escenarios donde se gestan diferentes situaciones cotidianas. El espacio vivido también otorga importancia a componentes históricos de cada lugar, permitiendo la comprensión de valoraciones y significaciones que las personas confieren a los sitios practicados, así como a las materialidades existentes en cada lugar, consideradas como producto de la cultura material que involucra todo aquello que ocupa un espacio en la memoria y un reconocimiento colectivo. 

Aunque los  parques tradicionales y lineales funcionan como receptáculos para el encuentro y la interacción, el sentido del PL se encuentra más orientado a promover en términos funcionales, un ejercicio de conectividad y corta permanencia. Como uno de los hallazgos sobre estos espacios de representación, se encontró que muchos de los usuarios desde su propia interpretación, no encuentran un diálogo muy fluido entre la infraestructura establecida en estos espacios y la retícula dotada de grama y árboles que muchos se imaginan, cuando se les menciona la palabra parque lineal. Transformada tanto la forma como la función, muchos sintieron que el cuadrado se remplaza por la línea y el acto de estar, por el de cruzar.  

Observando el caso del parque lineal Bicentenario, se encontró que diferentes personas entrevistadas lo definen como un parque a secas, sin la palabra lineal. De acuerdo a lo que respondieron los interlocutores, este lugar es apropiado de forma diferente por cada individuo o grupo que lo visita con actividades tan diversas como elevar cometas, montar en patineta, esconderse para desarrollar actividades ilícitas relacionadas con el consumo de alcohol o sustancias alucinógenas, vender o comprar  comida, comer, hacer deporte, acostarse a dormir  o jugar con la pantalla de agua, hacen de este tipo de parques lineales, sitios multipropósitos a pesar del poco mobiliario. 

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Como otra forma de reconocimiento de estos parques para conocer el espacio vivido, muchos de los usuarios identificaron estos lugares, a partir de lo que actualmente consideran que les hace falta. Examinando lo ausente, los entrevistados elaboraron una lista de materialidades que pensaban debían estar presentes para poder configurar cada PL de acuerdo con su imaginario. Reclamando la presencia de más mobiliario y disposición de diferentes servicios y equipamientos como tiendas, cafés, colegios y mercados o lugares para cambiarse la ropa para poder disfrutar de la pantalla de agua (como fue  el caso de Bicentenario), los interlocutores consideraron que estos elementos podían aportar de forma positiva, en el funcionamiento de los diferentes parques. Es importante señalar en este punto que cuando se inauguró el parque lineal Bicentenario, desde lo concebido con relación a la pantalla de agua, fue pensada para un uso enteramente contemplativo, aunque con el paso del tiempo se debió ajustar el funcionamiento de esta pantalla con unas instrucciones adicionales de uso para los visitantes, a los cuales se les sugiere no utilizar bronceador o protectores solares y no pararse sobre las rejillas de desagüe que hay e el suelo, debido a que muchos de sus visitantes la emplean como fuente y ducha, sobre todo en los fines de semana. (Figura 6) 

Figura 6. Personas bañándose en la pantalla de agua. Foto tomada por estudiantes al medio día en semana. 

De esta forma las lógicas de apropiación de los parques lineales varían según las representaciones sociales que tengan construidas sus vecinos, habitantes o visitantes, reflejado en las diferentes formas de habitar el territorio. Por ejemplo los senderos que determinan estos lugares y su apropiación, no siempre son los que definen el encuentro y las relaciones sociales vistas en cada lugar. A pesar de no estar acondicionados para estancias largas, estos parques no dejan de ser empleados por los jóvenes que en el día o en la noche no tienen problema para sentarse, así no haya suficiente mobiliario e incluso, acostarse en el piso de cada parque. En este caso el poco inventario material, no es un impedimento para que se relacionen algunos vecinos o visitantes, que desdibujan las marcas que recuerdan que estos lugares fueron concebidos para ser utilizados de paso. Por esta razón las acciones surgidas en cada parque lineal como caminar, hablar, comer, conversar, jugar, secar la ropa al aire libre, vender, comprar, divertirse, observar el paisaje, hacer ejercicio, descansar o tomar el sol fueron entre otras, las experiencias citadinas que sirvieron como testimonio directo en las diferentes formas de usar estos lugares, marcando y transformando el sentido de cada sitio por cuenta de sus vecinos o visitantes. Considerados como territorios que adquieren su existencia por medio de la expresión de territorialidad que se manifiesta dentro de un conjunto de prácticas, 

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expresiones materiales y simbólicas, estos parques se definen por momentos la apropiación y permanencia de un determinado territorio, por un determinado agente social (LOBATO CORREA, 1996, 252, en MONTAÑEZ y DELGADO, 1998, 124). 

Teniendo en cuenta las valoraciones y significaciones que las personas le otorgan a los lugares desde su imaginario, se pudo observar cómo en el caso de La Bermejala aparecen sentimientos relacionados con el arraigo, la identidad y un sentido de pertenencia muy fuerte hacia el barrio de Moravia y de un modo menos visceral para Laureles y El Estadio que son los barrios donde se encuentra ubicado el PL La Hueso. Esto se hizo evidente  cuando los habitantes y vecinos de Moravia expresaron que cuando salen de sus casas no lo hacen al parque lineal, sino a su barrio. 

Desde lo vivido, se ve entonces como ambos parques (La Hueso y Bermejala) además de ser entornos físicos y sociales, sirven de escenario en los que se gestan diariamente múltiples experiencias de la vida cotidiana entre los vecinos y transeúntes que reconocen que las calles, aceras, plazoletas, puentes, senderos peatonales de cada parque lineal se convierten en escenarios para el juego, el trabajo, la diversión, la reunión, el encuentro o el conflicto, otorgándole dinamismo y vida  a cada lugar.  

Más que identificarse con las intervenciones físicas en el caso de La Bermejala, lo hacen con la memoria y el recuerdo, expresando así el apego al lugar al que ellos consideran que pertenecen. A pesar de que el barrio Moravia donde se encuentra ubicado el PL La Bermejala, todavía se presentan situaciones muy criticadas en cuanto a la calidad del hábitat por los altos índices de población hacinada, la poca distancia que separa lo privado de lo público, el poco espacio público por habitante y un déficit notable en cuanto a espacio privado se refiere, aparecen continuamente manifestaciones de participación, liderazgo y alianzas solidarias entre sus habitantes como es el caso de los convites7 realizados en el barrio, que refuerzan los vínculos y reconocimientos del territorio. Para el caso de La Hueso aparece un fenómeno similar, ya que sus vecinos y visitantes consideran que la entrega de este nuevo lugar lo consideran más como un aporte para su barrio, que para el resto de la ciudad, aunque  también hay quejas de los mismos usuarios que reclaman la falta de más mobiliario y luminarias, que garanticen la seguridad dentro del lugar. 

Recordando que la extensión y diseño de los parques lineales investigados no solo tienen un trabajo de recuperación ambiental de las quebradas, sino que hacen las veces de conexión a través de sus senderos, comunicando barrios con barrios, o barrios con el resto de la ciudad como sucede con La Bermejala, La Presidenta y Bicentenario, se pudo conocer cómo los mismos senderos, funcionan diferente de día y de noche. Con la observación realizada durante el trabajo de campo, se pudo vivir de cerca la forma cómo muchas personas percibían la transformación de estos parques, cuando llegaba la noche. Convirtiéndose en una frontera para el tránsito tranquilo de muchas personas, estos parques son acogidos por muchos solo durante el día. En el caso de La Presidenta y Bicentenario por ejemplo, muchos de los visitantes que iban en el día sentían temor frente a los comportamientos y actitudes de otros individuos y grupos que visitaban estos lugares en la noche, sobre todo si estaban mal vestidos, en estado de alicoramiento o consumiendo algún tipo de sustancias alucinógenas. En cambio cuando se les preguntó qué sensación les transmitía la presencia de 

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niños o ancianos en esta clase de lugares, dijeron sentirse  tranquilos, acompañados y seguros  debido a que la presencia de este tipo de personas, sí invitaba a permanecer en estos  sitios, de acuerdo a la idea de seguridad y bienestar que consideran los usuarios con relación a este tipo de espacios públicos. 

Como una conclusión general frente al espacio vivido se considera que las percepciones positivas o negativas que resultan en estos parques, no solo están determinadas por la disposición espacial y material de los mismos, sino por el tipo de personas que lo visitan. Según esto, muchos usuarios diurnos sienten que estos parques funcionan de día como lugares abiertos, mientras que en la noche se transforman en una frontera oscura que restringe las formas de acceder al lugar. Como espacios solitarios, muchas de las personas entrevistadas expresaron que estos PL no ofrecen las condiciones adecuadas para los tránsitos ni diurnos y nocturnos, ya que por un lado los mismos senderos de los PL se convierten en barreras que sólo los más osados se atreven a pasar y por otro, la noche alimenta las sensaciones de miedo y peligro aumentada con la poca visibilidad de los lugares, dando como resultado cualquier posibilidad de robo o agresión física. Al preguntar por el tiempo de permanencia a las mujeres que visitaban estos parques, la mayoría manifestó que  estos sitios de noche cambian y se transforman en lugares de difícil acceso, llegando incluso a considerarlos como fronteras que obstaculizan cualquier tránsito u ocupación, por el riesgo de sufrir algún tipo de agresión física o robo. 

Como otro aspecto relacionado con las fronteras espaciales percibidas por muchos usuarios, se encuentra la poca iluminación y la disposición espacial que tienen estos parques y que es percibida como espacios que promueven el escondite de personas o animales que pueden en un momento determinado, llegar a agredir a los visitantes y transeúntes que van o cruzan este tipo de parques. De acuerdo a la respuesta de  muchos interlocutores entrevistados,  la percepción de miedo está relacionada con la idea de no atravesar estos parques o a permanecer en otros lugares dentro de los mismos. 

Las fronteras espaciales que se identifican en estos parques también están definidas por el tiempo que las personas consideran que se puede permanecer o no, en estos lugares. De acuerdo a esto la finalización del día es vista por muchos, como una situación que las personas asocian con la oportunidad de lo ilegal y peligroso. Pensando  que la noche promueve actividades que no se practican de día como el consumo de alcohol, sustancias alucinógenas y manifestaciones exageradas de afecto en el espacio público, hacen de estos lugares, el sitio ideal para desprenderse de prejuicios o prohibiciones para unos, o en fronteras para los que no quieren presenciar este tipo de actividades. De esta forma el espacio y el tiempo se convierten en factores que definen sus vecinos y visitantes, a la hora de llegar o permanecer en estos parques lineales. Como dicen Análida Rincón y María Clara Echeverría: 

Uno de los ámbitos donde se gesta la territorialidad es el de la memoria y el imaginario, en el que se funden inconscientemente los esquemas socioculturales frente a esos espacios (concretos o virtuales); se construyen imágenes sobre estos; se posibilitan, limitan o guían ciertas percepciones (se ama o se teme) desde las que asumen ciertas relaciones con espacios y se ocupan, desocupan, habitan o deshabitan, se frecuentan o se evaden ciertos lugares (ECHEVERRÍA y RINCÓN, 2000, 41).  

De acuerdo a esto, el sentido de referencia y la condición de permanencia se ve influenciada por las fronteras que restringen el acceso al lugar, en donde el sentido de 

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apropiación está determinado por el imaginario que construyen los diferentes actores sociales de cada parque, frente a lo que perciben espacial y socialmente, cuando utilizan algunos de sus tramos, en diferentes horas del día o de la noche. 

Como espacio vivido los parques lineales La Presidenta, La Hueso o Bicentenario pueden ser los senderos que comunican  con el resto de la  ciudad o la frontera que delimita, cuando la calidad del disfrute se restringe y emergen sentimientos relacionados con el miedo, frente al uso o permanencia en el lugar. A partir de la mirada imaginativa de los propios vecinos y usuarios que construyen fronteras espaciales y temporales en estos parques, se encuentra una variedad de percepciones que van desde un lugar bonito y agradable, hasta uno peligroso y solitario que las personas se rehúsan a cruzar.  

8 REFLEXIONES FINALES  

Partiendo de la idea de que esta clase de espacios públicos son los que hacen posible la ciudad, existe una posibilidad de que lo que se vaya encontrando en el camino es que la misma urbe, se está configurando como un espacio cada vez más independiente y difuso, donde los lugares centrales que antes servían de punto de encuentro, ahora empiezan a quedarse en el recuerdo y la añoranza de muchas personas, que buscan rescatar su propia identidad, a partir de las diferentes formas de ser y estar en la ciudad. Con la idea de permanencia en el espacio público cada día más difusa, la ciudad cosmopolita e interconectada se expande, cambiando el habitar de las casas por edificios, el entorno barrial por unidades residenciales, los parques cuadrados por lineales y las calles por avenidas y autopistas.  

Frente a lo percibido se puede decir que los parques lineales funcionan como escenarios de significado y socialización por medio de diferentes expresiones y apropiaciones de carácter social, político, económico o cultural. Es importante resaltar que las expresiones relacionadas con los usos, prácticas y apropiaciones responden a una serie de comportamientos que, aparte de relacionarse con los usos y las prácticas de cada lugar, también resultaron situaciones que fueron asociadas a los diferentes modos de apropiarse y otorgarle un sentido de pertenencia a cada parque.  

Considerando el espacio físico no como una imagen subjetiva del entorno, sino como un conglomerado de sujetos, acciones y percepciones que hicieron de estos espacios un entorno múltiple y variado sobre el que las personas tomaron decisiones espaciales para estar y/o transitar. Por lo que durante los tránsitos, las esperas, los cruces, los encuentros y las ocupaciones espaciales se pudo comprender que la utilización de estos lugares no se determinaba únicamente por los elementos físicos presentes en cada lugar, sino por el significado que tanto vecinos como visitantes le otorgaron a cada parque. Pensados como aspectos positivos para la ciudad por parte del gobierno local, pero interpretados como un riesgo o amenaza por la comunidad, estos PL fueron entendidos muchas veces como espacios generadores de sentimientos negativos en donde el miedo, la inseguridad y la desconfianza hizo que el espacio transformado para beneficio de los ciudadanos, fuera percibido de forma contraria por sus habitantes y visitantes. 

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A partir del interés que había por conocer los actores sociales presentes en cada parque se pudo entender por medio de las actividades, usos, trayectorias, qué apropiaciones aparecían de acuerdo a las representaciones sociales de cada lugar, las cuales en muchas oportunidades se alejaron de lo que el gobierno local tenía concebido, cuando construyó estos parques lineales. Por otro lado es importante reconocer desde lo concebido, que se atendieron problemas físicos relacionados al mejoramiento ambiental de las quebradas (olores, desechos, vertimientos, contaminación ambiental) y algunos aspectos relacionados con el orden social, la movilidad, la localización de venteros ambulantes y la dotación de un espacio público efectivo, respondiendo en forma positiva a las necesidades básicas de circulación y conectividad peatonal, así como la recuperación parcial de las quebradas que quedaron canalizadas para evitar riesgos de desbordamientos e inundaciones según la infraestructura establecida. 

Frente a lo vivido se puede concluir que los diferentes tipos de usos, apropiaciones y re‐significaciones encontrados en cada lugar, superpuso la visión de lo concebido por el gobierno local frente a lo vivido por los vecinos, visitantes y transeúntes en cada PL. Pensados para suplir unas necesidades ambientales, estos parques lejos de adherirse a unas políticas abiertas de uso, fueron interpretados muchas veces como una domesticación del espacio para un uso privado y/o público, a partir de la experiencia cotidiana de sus habitantes quienes reflejaron en cada lugar procesos de ocupación y apropiación, llegando a convertir cada parque en un referente simbólico de aceptación o rechazo, condicionado por las percepciones y representaciones sociales de sus actores sociales y no necesariamente por lo que sus gestores planearon. 

Mientras el gobierno local propone nuevas formas de ocio y esparcimiento en el espacio público intentando alejar el concepto de retícula en la mente de sus usuarios, no es posible ocultar la dicotomía que aparece cuando éstos pretenden que los parques lineales sean acogidos y aceptados de la misma forma que los parques tradicionales, teniendo en cuenta que las dinámicas sociales son cambiantes. Como espacios públicos pensados para el disfrute y la calidad de vida de la ciudadanía, éstos se vuelven territorios accesibles por muchos sujetos y grupos, pero al mismo tiempo pasivo cuando el gobierno local controla a través de la arquitectura y el diseño las formas de ocupación, uso y recreación. 

Frente a lo concebido por parte de la administración pública, se evidenciaron normas que no sólo responden a los soportes espaciales estructurando y comunicando diferentes partes de la ciudad en calidad de espacio público, se  enfrentan con las “políticas” de uso que establecen los actores sociales mediante su participación cotidiana en el espacio público, con las que potencializan su significado de manera diversa y continua. Con esto vale la pena resaltar que el significado de un espacio puede ser determinado por el uso y el reconocimiento que los individuos le otorguen, ya que el diseño arquitectónico, la distribución espacial y el mobiliario pueden estar sujetos a la interpretación que los usuarios le asignen, mediante sus prácticas cotidianas. Así las personas no sólo tienen la capacidad de dar sentido a los entornos urbanos a partir de sus comportamientos, sino que también pueden transformarlos llegando incluso a cambiar su sentido original, aquel que se tiene planeado desde la política pública estatal. Con esto se concluye que el espacio público no sólo se planea desde la proyección arquitectónica, 

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sino que debe ser pensado como un espacio en el que se evidencie un reconocimiento por parte de los sujetos que la viven y la interpretan, pues “…aquél que tiene la sabiduría para la creación de intervenciones fantásticas, debe también ocuparse de la elaboración de sus significados. Estos construyen la historia y con ella otra porción de otras historias” (CANALLI en SILVA, CORREA y MAGABOSOCO, 2010, 119).  

Aunque desde lo concebido, estos parques fueron entregados como espacios de reconocimiento para la interacción y el disfrute social pasivo, muchas de las prácticas socioculturales no funcionan de acuerdo su planificación. Esta disociación respecto a las prácticas socioculturales de los moradores y el resultado arquitectónico en los PL (que muchas veces son definidos por diferentes entidades del mismo gobierno local), se pudo ver por ejemplo en el PL La Bermejala, antecede un manifiesto estudio sociocultural (UNALMED, 2004) mientras que el resultado arquitectónico del parque ejecutado por la Empresa de Desarrollo Urbano (EDU), pareciera ignorar los hallazgos iniciales.  

Desde la noción urbanística institucional, aunque estos espacios fueron pensados para uso público, pueden volverse lugares de inclusión para unos y de exclusión para otros cuando son concebidos en términos funcionales para usos y usuarios específicos. Desde lo concebido, los actores sociales para los que fueron pensados estos parques, debían cumplir con unas características físicas, económicas y sociales  como si los intereses específicos por el funcionamiento y el sentido del lugar, correspondieran a una realidad inexistente de las dinámicas sociales de los actores reales como usuarios activos. 

Pensando en el reconocimiento de los espacios tampoco se encontró una concordancia entre concebido y lo vivido frente al tema del nombre parque lineal. Definidos con este término por el gobierno local, estos parques fueron identificados por la comunidad con nombres tales como camino, sendero ecológico o ruta al lado de la quebrada. Apareciendo en muy pocas oportunidades la palabra parque lineal para referenciar estos espacios, cada colectividad reconoció estos espacios de forma diferente a la concebida. Asunto que está relacionado con el imaginario de las personas al relacionar el PL con simples senderos peatonales en los cuales  la presencia de la quebrada no tiene un significado muy marcado de acuerdo al sentido que debía tener desde lo concebido. 

Teniendo en cuenta que el espacio físico a veces se aleja de la planeación que se busca en los proyectos de ciudad, se puede pensar que para mejorar la tensión entre la ciudad pensada, la ciudad vivida y la apropiada hay que orientarse por quiénes la van a ocupar y con esto orientar políticas y reformas institucionales y educativas, sobre las características que se pueden incluir para las futuras transformaciones que se piensan implementar. Para Borja (2003,118) hacer ciudad, es un desafío urbano y social que debe pensar en centralidades, monumentalidades, movilidad, accesibilidad, en la calidad y visibilidad de los barrios, como una fuerza de integración de los espacios públicos, donde el autoestima de sus habitantes y el reconocimiento exterior hagan de los espacios, unos entornos físicos y simbólicos que ayuden a construir y dar sentido a la vida cotidiana de la ciudadanía, ya que el espacio público además de constituirse como una materialidad urbana, debe responder a una necesidad del individuo como parte de un colectivo. Su participación incluyente en el diseño, mantenimiento e intervención del espacio público, se convierte en elemento fundamental para su uso efectivo (PINZÓN y ECHEVERRI, 2010,99). De acuerdo a esto, se plantea un debate en torno a los 

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criterios de diseño que fueron concebidos estos espacios, ya que la planeación misma entra en contradicción con las prácticas sociales que obedecen a otras lógicas de acción, como es el caso de la apropiación y producción del espacio público dentro de estos parques lineales. El ideal de una ciudad organizada requiere de unos espacios ordenados y controlados, pero en la ciudad real los actores sociales de estos lugares actúan con base a las lógicas de sus propias necesidades, de acuerdo a los sentidos y los imaginarios propios sobrepasando la regulación del gobierno local. De esta forma las diferentes prácticas en estos parques lineales crean resistencias representadas en la apropiación o rechazo de los mismos.  

Se puede decir que el proyecto de parques lineales como alternativa para recuperar las fuentes hídricas  y promoción de la movilidad es una contradicción. Por un lado se implementó como consecuencia de esa transformación espacial que ha venido experimentado la ciudad, pero por otro, se efectuó sin tener en cuenta  cada contexto, es decir  los diseños  fueron llevados a cabo con muy pocas alternativas de uso y recreación de acuerdo a los lugares implementados, teniendo en cuenta la escases de parques y espacios públicos destinados a la recreación que tiene actualmente la ciudad. 

Para finalizar este texto, queda la propuesta de observar en forma más detallada las distintas configuraciones que existen en la ciudad asociadas a los valores, hábitos, costumbres, imaginarios, deseos, rituales y rutinas vividos por sus habitantes, ya que no se trata solamente de diseñar y ejecutar obras con procedimientos democráticos, sino entender las diferentes circunstancias que cada grupo social necesita cuando se definen los espacios pensados y las comunidades que pretenden usar el espacio público, ya que a través de éste se teje y se relacionan los objetos que conforman lo urbano, los pensamientos de los habitantes, los sueños o las “utopías quimeras”, como las llama Alicia Lindón (2005). El espacio público habla de la organización, la función y de lo que la ciudad es. La humanización (o la domesticación) de éste es un construir constante del ser humano, es a lo que Heidegger llama “vivir” que es igual a habitar. 

(...) entender que el espacio público alcanza sentido cuando corresponde al recorrido natural de quien la usa, de quien la colma de significados porque lo recorre, y un parque no es un ‘espacio público’ sino lo contrario, el espacio donde lo público se torna íntimo en la medida en que el anciano, el niño, la pareja que los usan les confieren a esos espacios una propia dimensión (RUIZ, 2005). 

Por eso lo público en cierta medida, puede hacerse privado. 

9 REFERENCIA 

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10 NOTAS 

 

1 Aclaramos que término de percepción empleado aquí, no se debe confundir con el concepto de “espacio percibido” explicado en párrafos anteriores, la percepción a la que se alude es definida por la psicología como “el proceso cognitivo de la conciencia, el cual está encargado de otorgar el reconocimiento, la interpretación y la significación para la elaboración de juicios, en torno a las sensaciones obtenidas del ambiente físico y social, en el que intervienen otros procesos psíquicos dentro de los que se encuentra el aprendizaje, la memoria y la simbolización” (Melgarejo, 1994, 48). 

2 POT es un instrumento establecido en 1999 por Acuerdo Municipal con el cual la administración municipal establece las reglas y las condiciones con las cuales se puede utilizar el territorio. 

3 Para ampliar la información remitirse al Plan de Desarrollo 2004/2007. Municipio de Medellín.  Página 105. 

4 Para ampliar información sobre la ubicación de la ubicación de los parques lineales en Medellín, remitirse al cuadro de la página 58 del POT 2006. 

5 Según la administración municipal de Medellín, “Los Parques Biblioteca son Centros Culturales para el desarrollo social que fomentan el encuentro ciudadano, las actividades educativas y lúdicas, la construcción de colectivos, el acercamiento a los nuevos retos en cultura digital. Y también son espacios para la prestación de servicios culturales que permiten la creación cultural y el fortalecimiento de las organizaciones barriales existentes.” (EDU: parques biblioteca, Proyectos 2004‐2007) 

6 Centro Iberoamericano De Desarrollo Estratégico Urbano CIDEU http://www.cideu.org/index.php?mod=objeto&act=verObjeto&idObjeto=217 (Consultado el 15 de Octubre 2011). 

7 Definición de convite: Reunión de trabajadores que prestan sus servicios a cambio de comida. Tomado de Diccionario de la lengua española‐Vigésima segunda edición. http://buscon.rae.es/draeI/SrvltConsulta?TIPO_BUS=3&LEMA=convite. (Consultado el 12 junio 2011). 

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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região 

Jeceaba, uma cidade na encruzilhada Jeceaba, a city at the intersection 

Reginaldo Luiz CARDOSO Mestre em Ciência Políitica/UFMG; Doutorando em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ. [email protected]

RESUMO Este artigo busca compreender o processo de ocupação territorial brasileira contemporânea a partir do estudo  da  implantação  de  um  complexo  siderúrgico  na  cidade  mineira  de  Jeceaba.  Tal  análise fundamenta‐se na premissa de que o exame da economia política de um grande projeto permite‐nos constatar a forma com que os atores políticos, independente do nível escalar em que estejam operando − municipal, estadual e/ou federal −, tornaram‐se reféns da nova movimentação do capital  inaugurada com o neoliberalismo, o verdadeiro nome da globalização. Focamos nossa análise no projeto  Jeceaba porque, em se  tratando de um work  in progress, coloca‐nos diante das condições de possibilidade da representação de tal fenômeno e de sua conseqüente problematização. 

PALAVRAS‐CHAVE: planejamento urbano, globalização, território, desenvolvimento regional,  indústria siderúrgica 

ABSTRACT This article  seeks  to understand  the process of contemporary Brazilian  territorial occupation  from  the study of the implantation of a steel complex in the city of Jeceaba, Minas Gerais, Brazil. This analysis is based on the premise that the examination of the political economy of a large project allows us to verify the way political  actors,  regardless  the  scale  level  in which  they  are operating   ─  local,  state  and/or federal ─, have become hostages of the new capital movement inaugurated with the neoliberalism, the true name of globalization. We  focus our analysis on  Jeceaba project because, dealing with a "work  in progress",  it put us  in  front of the conditions of possibility of the representation of such phenomenon and its consequential problematization.  

KEYWORDS: globalization, territory, regional development, urban planning, steel industry. 

1 INTRODUÇÃO 

Milton Santos, em uma de suas últimas entrevistas1, disse que, ao olhar o território nacional brasileiro, via “um território nacional mas da economia internacional”. Para ele, o esforço dos novos mandarins − “o esforço de quem manda” − se fazia no sentido de favorecer o trabalho dos atores da economia internacional. “Não apenas as multinacionais estrangeiras, mas todas as grandes firmas estrangeiras ou brasileiras, são elas que trazem para o território uma lógica globalizante. (...) Há mais que globalização, há globalitarismo” (SANTOS, 1998). Para Vainer (2007), a história recente do planejamento territorial brasileiro poderia ser narrada como uma trajetória continuada de desconstituição. De desconstituição política, evidenciada no desaparecimento progressivo da questão regional da agenda nacional e de desconstituição operacional dos instrumentos estatais construídos a partir da década de 50 do século passado. Para o autor, hoje, após a ditadura e a adesão total ao neoliberalismo (vide Consenso de 

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Washington I e II2), “a desconstituição parece atualizar‐se (e realizar‐se) numa espécie de conformada aceitação da fragmentação territorial que consagra a acomodação subordinada às formas contemporâneas da globalização” (Ibid, p.103.). Tomando o que Vainer (Ibid, 2007) denomina de “vetores de fragmentação territorial”, no qual práticas e dinâmicas são resultados de processos decisórios (LAFER, 1987), buscaremos observá‐los no processo de implantação de uma usina siderúrgica na cidade de Jeceaba, MG. A nossa hipótese buscará corroborar a premissa lançada por Vainer de que: 

O exame da economia política de cada grande projeto permitiria identificar de que forma atores políticos e empresas nacionais e internacionais se associam e mobilizam elites locais e regionais, para exercer o controle do território, constituindo uma nova geografia física, econômica e política que decompõe o território nacional em novos fragmentos “glocalizados” (VAINER, 2007, p.5). 

2 TERRITORIALIDADES 

Partamos de uma indagação: o que é uma cidade? Difícil dizer. Lugar onde, inicialmente, os homens foram compelidos a viver juntos? Solução por demais simplista, voluntariosa e determinista. Da sua origem à sua atual composição, muitas voltas se deram. A antropologia nos diz que as primeiras aglomerações ocorreram para que os homens pudessem honrar os seus mortos. Caçadores e coletores viviam para lá e para cá, sem que dessem ou vissem algum sentido nisto. Até que, mesmo por falta de um centro qualquer, começaram a depositar os seus mortos em um só lugar, ao qual voltavam anualmente para prestar‐lhes homenagens. Voltavam para expiar suas culpas, redimir seus pecados, lembrar outros tempos, repudiar más lembranças... A cidade nasce, portanto, dentro de um sentido antitético, marcada desde o seu começo pelo seu duplo. Lugar para onde se vai e lugar para onde se esvai, se esfalece, se escapa. Maldita pelas lembranças, sagrada pelas esperanças nela depositadas. 

Contudo, não sabemos bem a que ou a quem serve. É evidente que esse aglomerado, perdido nas curvas do tempo, teve em seus princípios algumas regras. Se se tornou a norma, seguiu o desejo dos homens. Ao se racionalizar (tal finalidade), tornou‐se política. Aglomerados, os seres humanos, idiossincráticos que são, conflitam entre si. A política surge neste gap, na tentativa de fazer, como corretamente denominou Bobbio (1986), com que conflitos não terminem em banhos de sangue. 

Territórios são habitados por seres humanos, ou seja, são apropriados e usados. Se estamos no campo do humano, estamos falando em interesses, únicos, sui generis, no limite, idiossincráticos. Qualquer tentativa de ordenamento deste território esbarra necessariamente em conflitos, já que qualquer relação entre sujeitos acarreta relação ou relações de poder. O poder, a decisão a ser tomada, só ocorre ao ser exercitada. Para Raffestin (1993, p.144), “o território se apóia no espaço, mas não é o espaço, é uma produção a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder”. Dito de outra forma, o poder é práxis.  

Esta tentativa de ordenamento do território como processo de planejamento, de acordo com Lafer (1987), pode ser subdividida em três fases: a) a decisão de planejar, b) o plano em si e, c) a implementação do plano. Se o plano em si é etapa notadamente técnica, a decisão e a sua conseqüente implementação são essencialmente políticas. É nessa caldeira que a vida presente 

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e futura de gerações inteiras é forjada. Porém, em uma sociedade em que prevalece a luta de classes, quem decide, já que o conjunto de forças é repartido de forma desigual, ou naquilo denominado como jogo de “soma zero”3? Ou, em outras palavras: como uma questão se transforma em uma questão? Deixemos que o território fale por si mesmo. 

3 JECEABA 

Eu me lembro do que o presidente Roosevelt fez com a Tennessee Valley Autorithy.  O papel do Estado é planejar, estimular desenvolvimento com incentivos e, se necessário, prover fundos em parcerias com o setor privado. (Luiz Inácio Lula da Silva, The Washington Post, 31/11/2002) 

Se acionarmos a constelação de satélites que forma o Sistema de Posicionamento Global, vulgarmente conhecido como GPS (Global Positioning System), na coordenada 20° 32’ 07’’ S (latitude) e 43° 58’ 59’’ W (longitude) depararemo‐nos com um determinado ponto do Extremo Ocidente. As fotografias fornecidas pelos satélites mostram, no entorno de tal ponto, um vale verdejante entremeado por dois pequenos rios – Camapuã e Paraopeba – e um pequeno aglomerado de casas. Tudo ali em sua volta é povoado de topônimos com nomes estranhos ao mundo globalizado, escritos em uma língua extinta. O ponto perdido no planeta aparentemente não tem muita importância. Que lugar será este? Um alemão exclamará: “Iêceaba”, um francês indagará: “Geceabá?”. E um japonês redargüirá não muito distante da pronúncia do francês. Na linguagem global, “Djiciaba”. Em tupi‐guarani, quer dizer: “confluência de rios”. Jeceaba, município de Minas Gerais, Brasil, América do Sul. Estamos a apenas 124 km de Belo Horizonte, 3ª cidade em importância econômica do país, capital de um dos três Estados mais desenvolvidos do Brasil. E lá se encontra também uma pequena população de 6.500 habitantes, sendo que 3.400 deles estão na área urbana. 

Jeceaba continuaria a ser uma cidade qualquer se não fosse o fato de ter alçado às manchetes econômicas do país desde que foi escolhida para ser o lugar da instalação de uma siderúrgica de grande porte. Trata‐se de uma joint venture4 formada pelo complexo franco‐germânico Vallourec‐Mannesmann − V&M (55% do capital) e o japonês Sumitomo (45%). Juntas irão construir uma usina integrada (aciaria e fábrica de tubulares petrolíferos) com capacidade para produzir anualmente 600.000 toneladas de tubos sem costura. Previsto para começar suas operações a partir de 2010, com investimentos da ordem de US$ 1,6 bilhão, tal empreendimento tem povoado continuamente corações e mentes da população jeceabense desde que a notícia veio à tona. Em algumas publicações, Jeceaba aparece como sendo o símbolo do novo ciclo do aço em Minas Gerais. Em depoimentos tomados pela imprensa e por este autor, as expectativas da população resvalam em um misto de esperança e medo.5 Esperança no que pode ser um alavancamento da cidade e região a um suposto e melhor patamar socioeconômico – a palavra‐chave aqui é emprego para todos – e medo das consequências que este mesmo boom econômico pode trazer. Na verdade, uma vez que o que está por vir é de difícil representação, o imaginário popular vive a possibilidade de viver o absurdo, isto é, a possibilidade de tudo. 

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4 FIAT LUX6 

Na região, Vale do Paraopeba, projeto de tal porte não é novidade, pois, a cerca de 40 km dali, em Ouro Branco, foi instalada no início da década de 1980, uma siderúrgica estatal de grande porte, a Aços Minas Gerais S. A. – Açominas, que veio fazer parte mais tarde, com a política governamental das privatizações, do Grupo Gerdau. Desde meados de 2007, seguindo o aumento extraordinário da demanda externa por aço (vide China), a Gerdau encontrava‐se em processo de expansão da sua capacidade produtiva. É quase desnecessário dizer que, com a crise econômico‐financeira deflagrada em setembro de 2008, tal processo foi atropelado, sendo paralisado. 

O importante é registrar que a instalação da Açominas na região atendia, na época, a um projeto governamental de incitação de novos pólos de desenvolvimento regional, aliado à sua proximidade de fontes importantes de recursos naturais, no caso, o minério de ferro (hematita e itabirito). De lá para cá, muita coisa mudou. A ditadura findou‐se, o poder político voltou às mãos dos civis, uma nova Constituição foi elaborada e aprovada. O modelo econômico adotado, se era o autoritário‐desenvolvimentista‐centralizador, agora passa por outro, poderíamos dizer, de cunho nitidamente neoliberal. Basta ver que, de estatal, a empresa citada tornou‐se privada e, acrescente‐se, sem nenhuma discussão mais ampla sobre o que estava ou poderia acontecer em curto, médio e longo prazos7, nos níveis político, econômico e social. 

Em que pese a presença de seus rios, Jeceaba não se encontra mais em uma encruzilhada. Ao que tudo indica, segue rigorosamente o modelo vigente. No mundo globalizado, Jeceaba foi descoberta como ponto estratégico de investimentos pelos global players. Para a elite local, trata‐se de um passo enorme no incremento dos negócios, talvez até grande demais. Em janeiro de 2009, o prefeito de Jeceaba, a convite do consórcio, foi conhecer, na França e no Japão, as plantas industriais das respectivas siderúrgicas. No site de informações da cidade de Jeceaba, ficamos sabendo que o mesmo teve a oportunidade de conversar com Yasuo Imai, vice‐presidente da Sumitomo Metal Industries “sobre diversos assuntos ligados à instalação da Vallourec‐Sumitomo em Jeceaba e de sua importância para nossa (sic!) região e para as próprias empresas diante da crescente demanda mundial de tubos de aço sem costura (OCTG, na sigla em inglês)8, que será a produção de Jeceaba”9. No mais autêntico espírito de “paroquialismo mundializado” (VAINER, 2007), ficamos sabendo ainda que, além de ficar maravilhado com o espetáculo das cerejeiras em flor, o Sr. Prefeito espera “que os procedimentos para a implantação ocorram dentro da maior brevidade possível, de forma a permitir à população de Jeceaba e do Alto Paraopeba  desfrutar deste grande acontecimento em nossa região”. Para o Presidente da Câmara local, vereador José Ribeiro Maia, o “Zuinho”: “É uma graça de Deus a escolha do Brasil, de Minas Gerais e, principalmente, de nossa cidade", para a implantação do empreendimento.10 

Embora, oficialmente, tanto a Sumitomo Metals Industries quanto a Vallourec‐Mannesmann aleguem que a joint‐venture ocorra por motivos estratégicos, não é a primeira vez que as duas fazem uma parceria. Segundo a Agência de Notícias da Comunidade Européia11, em dezembro de 1999, as duas produtoras de tubos de aço e mais seis outras foram condenadas a severas multas, acusadas de formação de cartel, e, conseqüentemente, partilha de mercados. Carlo Monti, economista italiano, Comissário Europeu (1994‐99) responsável pela competição na Comunidade Econômica Européia à época, assim resumiu a situação: “trata‐se de uma violação 

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muito grave dos princípios da concorrência, que incita a uma sanção verdadeiramente dissuasiva. É o primeiro caso de cartel transfronteiras que trato e deve constituir um exemplo de práticas a evitar cuidadosamente”. O episódio, denominado “Clube Europa Japão”, foi fruto de uma investigação feita pela Comissão Européia no período 1990‐95, no qual, ao fim da investigação, ficou evidenciada a formação de cartel no qual haviam firmado um acordo de respeitar os mercados nacionais de cada produtor, isto é, os mercados alemão, britânico, francês, italiano e japonês. O resultado foi uma multa que, no conjunto, somou a quantia de 99 milhões de euros, no qual couberam à Mannesmann e à Sumitomo  13.500.000 euros cada, e à Vallourec SA, 8.100.000 euros, quantia menor, tendo em conta a sua cooperação no apuramento dos fatos pela Comissão.12 O caminho, para a livre operação na América Latina, estava a um passo do começo da sua pavimentação. 

5 GLOBALIZAÇÃO 

Procurando lançar novas luzes sobre a falta de debate que há em torno da globalização, o sociólogo Zygmunt Bauman (1999) nos adverte que, inexoravelmente, o processo de globalização, apesar de ser vendido como o aglutinador de tudo e de todos, traz uma contínua polarização: de um lado ficam os “globais” (elite extraterritorial) e, de outro, os condenados à localização, os “locais”. Para ele, a evidente compressão tempo/espacial da globalização traz em seu bojo problemas estruturais insanáveis. Assim o diz: 

Ao examinarmos as causas e as conseqüências sociais dessa compressão, ficará evidente que os processos globalizadores não têm a unidade de efeitos que se supõe comumente. Os usos do tempo e do espaço são acentuadamente diferenciados. (...) Junto com as dimensões planetárias dos negócios, das finanças, do comércio e do fluxo de informação, é colocado em movimento um processo “localizador”, de fixação de espaço. (...) Ser local num mundo globalizado é sinal de privação e degradação social. Os desconfortos da existência localizada compõem‐se do fato de que, com os espaços públicos removidos para além do alcance da vida localizada, as localidades estão perdendo a capacidade de gerar e negociar sentidos e se tornam cada vez mais dependentes de ações que dão e interpretam sentidos, ações que elas não controlam. (Ibid., pp. 6‐7.) 

E arremata: “Os centros de produção de significados e valor são hoje extraterritoriais e emancipados de restrições locais – o que não se aplica, porém, à condição humana, à qual esses valores e significados devem informar e dar sentido” (Ibid, pp. 8‐9). 

Alan Lipietz, da escola francesa regulacionista, é outro autor que pode contribuir com a nossa análise, principalmente através de seu instigante texto de 1989, excepcional pelo caráter visionário sobre o processo que começava a acontecer. Pensando em alternativas para o século vindouro, no qual estamos, Lipietz (1991) denomina este processo – liberal‐produtivismo – como sendo uma visão de mundo (Weltanschaaung) que se instalou sobre as ruínas do fordismo em crise, de cujo fracasso ela tirou o essencial de sua força. Ainda que anterior a Bauman, Lipietz nos diz que o liberal‐produtivismo induz a uma forte polarização social, a uma sociedade de dupla velocidade. Para ele, o que estava por vir era uma sociedade tipo “ampulheta”, com os de cima, os de baixo e uma erosão no “centro”. No alto, os vencedores; no meio, trabalhadores semiqualificados com estabilidade cada vez mais restrita e, por fim, embaixo, uma multidão de “solicitadores de emprego”, divididos entre empregos precários e desemprego. E como denominou este espetacular fenômeno? Processo de “latino‐americanização” ou “abrasileiramento” do mundo.13  

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Lipietz (1991) tratou ainda das conseqüências políticas do fenômeno. Se, de um lado, como previa, revoltas coletivas desestabilizadoras não aconteceram de maneira generalizada − ainda que o que se viu na Argentina entre 2000‐01 e na França entre outubro e novembro de 2005 possam conter tal embrião − de outro, a generalizada delinqüência individual realizou‐se e incrementou‐se. Como parte da solução do problema, visualizava que o medo da delinqüência faria por si só a solidarização dos dois primeiros terços da sociedade e até mesmo parte do último terço. De fato, a luta contra a insegurança tornou‐se um argumento político eficaz, já que pode isolar como “estranho”(s) o(s) promotor(es) da desordem. Não à toa, o ramo de atividade das empresas de segurança transformou‐se em um dos setores econômicos de maior rentabilidade. De quebra, dentro de um quadro de desemprego estrutural, emprega uma parte dos pobres, a fim de que defendam os ricos contra os outros pobres.14  

6 A MODELAGEM DO ESPAÇO 

Quem consultou o site oficial da Prefeitura de Jeceaba em meados de 2007, logo após a notícia de sua escolha como localização do novo empreendimento, deparou‐se com um inusitado sinal do advento dos novos tempos: uma carta aberta à população nativa, em inglês, sem nenhuma tradução para o português.15 Ficava evidente que, a partir de então, o jogo seria outro, ou que os “localizados” não precisariam de acesso a certos tipos de informações. 

Entretanto, longe do GPS e da Internet, ou seja, dentro do mundo real, o que vemos na cidade perplexa? Os equipamentos urbanos têm a precariedade e a funcionalidade de uma cidade pobre do interior. Um hospital público (municipal) com 25 leitos no qual, segundo moradores, o atendimento “depende da sorte” e um Centro de Saúde, fechado para reformas. A Cadeia Municipal, desativada, − casos graves são transferidos para Entre Rios, município fronteiriço, distante 8 km da localidade − vai ser transformada em um anexo do Centro de Saúde Municipal, já que sua localização é ao lado da mesma. Ainda no campo da saúde coletiva, há um hospital filantrópico – a Associação Hospitalar de Jeceaba – que mantém 21 leitos. Completam esta estrutura, na área urbana, duas escolas municipais e uma estadual, duas agências bancárias e um centro comunitário ligado à paróquia. A energia elétrica chega ao campo, mas não há esgoto tratado e o aterro sanitário está em implantação. Situação que não poderia ser diferente já que cerca de 90% da receita municipal sai do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) e pouco menos de metade da população – aproximadamente três mil pessoas – vive na zona rural.16  

Mas surge uma questão primordial: como Jeceaba, cidade mediterrânea, aparece como opção do grande capital? Como tal escolha foi operada? A explicação oficiosa pela escolha do local, o seu parâmetro locacional, deve‐se estritamente à sua posição estratégica. Segundo Wilson Brumer, diretor no ano de 2007 do Grupo Estratégico de Fomento (GEF) de Minas Gerais, as negociações com o governo de Minas foram iniciadas em 2006. Segundo informação dada pelo mesmo, “não haverá benefício fiscal para o projeto e o governo comprometeu‐se apenas a investir na infraestrutura viária da cidade, que fica próxima à malha ferroviária da concessionária Malha da Rede Sudeste Logística SA (MRS)17, e contribuir para o treinamento de mão‐de‐obra na região”.18  

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Antes que avancemos, vale a pena conhecermos mais de perto o operador Wilson Brumer, pois o seu papel nesta negociação exemplifica de maneira clara a natureza dos processos decisórios que dão origem aos atuais grandes projetos de investimentos (GPIs).19 Formado em administração de empresas no ano de 1975, tornou‐se uma figura emblemática de todo o processo político‐econômico que o país passa a sofrer a partir da década de 1990.20 Participou praticamente de todas as grandes negociações que resultaram na privatização do complexo mínerometalúrgico brasileiro. A década de 90 vai encontrá‐lo no Conselho Administrativo da Cia. Vale do Rio Doce (1990/92), da Usiminas (1992), da Acesita – Companhia Aços Especiais Itabira (1992/98)21, da Açominas (1995/97), da Companhia Siderúrgica Tubarão (1996/99), dentre outras do setor privado (Aços Villares, ABN‐Amro Bank, Unibanco, BHP Billiton e outras menores). Na passagem do século, depois de presidir e conduzir a privatização da Acesita, pôde ser encontrado presidindo o Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS). De lá para cá, passou pelos Conselhos da Valepar22, Cemig, Light, Localiza, Codemig, GEF e BDMG, até sentar‐se no governo de Minas Gerais na qualidade de Secretário Estadual de Desenvolvimento Econômico (2003/07). Dali só saiu para se associar ao empresário, ex‐presidente da Fiemg e ex‐presidente do BDMG, Bruno Scariolli, e presidir a Winbros Participações, Gestão e Empreendimentos, holding que, além de fusões e aquisições, especializou‐se em formar parcerias em torno de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). 

Voltando ao projeto Jeceaba, ficamos sabendo que o ex‐presidente da siderúrgica Acesita, Wilson Brumer travou uma batalha pessoal nos últimos tempos para mostrar às siderúrgicas mineiras as vantagens de investir perto das fontes de matérias primas − principalmente o minério de ferro − e não perto dos portos. “Ontem, ele comemorava mais uma vitória. A Vallourec foi apenas uma das siderúrgicas a anunciar novos investimentos em Minas. A Usiminas anunciou recentemente a expansão da produção na usina de Ipatinga”.23 

Mas há, também, outros atributos logísticos importantes para uma siderúrgica em Jeceaba: esta fica a 30 quilômetros da mina de Pau Branco, explorada pela própria V&M24 e segundo a MRS Logística, 70% de toda a carga transportada pela empresa anualmente (113 milhões de toneladas) são transportadas pela Ferrovia do Aço, que tem seu marco zero nas proximidades de Jeceaba e vai até Barra Mansa (RJ).25 Aliás, todos estes detalhes não ficaram despercebidos pelo empreendedor. Segundo documento da Vallourec, trata‐se de um empreendimento em uma “région qui présente des conditions extrêmement favorables: a) matières premières, b) énergie, c) main d’oeuvre et d) logistique…”.26 

Pelo porto de Sepetiba, em Itaguaí, no Estado do Rio de Janeiro, os produtos seriam embarcados para o exterior a custos menores. E, no porto, receberiam o carvão mineral usado no processo de fabricação do aço (embora a V&M, por exemplo, use o carvão vegetal), também com custos mais baixos. “No Brasil, só temos um insumo importado na fabricação do aço, que é o carvão mineral. Procuramos mostrar às empresas que o carvão pode ser transportado por trem do litoral até Minas e os vagões voltarem carregados com aço, produto de maior valor agregado”.27 

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7 ESTADO DA ARTE 

A nova Usina integrada representará o estado da arte da tecnologia no setor. Assim, vamos assegurar à nova Usina um avanço tecnológico de no mínimo 10 anos à frente de suas congêneres erguidas em passado recente tanto na China como na Rússia. (Marco Antonio Castello Branco, Presidente do Conselho de Administração da V&M do Brasil. Discurso proferido na assinatura do Protocolo de Intenções com o Governo de Minas, em 23 de abril de 2007) 

É difícil dizer sobre quanto tempo ainda vai perdurar no imaginário popular de Jeceaba a certeza triunfal de que a implantação da usina foi uma dádiva dos céus, um acerto na loteria global de alocações de capital. Afinal, já é um mito entre os jeceabenses que a localidade tenha vencido uma disputa contra cidades de nove países (Venezuela, Rússia, Ucrânia, Argélia, Arábia Saudita, França, Índia, China e Irã), com outras cidades brasileiras candidatas de estados litorâneos como Rio de Janeiro e Espírito Santo e outros três municípios de Minas Gerais. Contudo, a fala do presidente do conselho de administração da V&M do Brasil, Marco Antônio Castelo Branco, aponta para outro lugar: “tínhamos alternativas com custos equivalentes aos do Brasil, mas com riscos maiores”.28 Do momento em que as duas empresas iniciaram os entendimentos para construir e operar uma usina integrada e uma fábrica de tubos sem costura, em 2006, até a assinatura do Protocolo de Intenções (Memorandum of Understanding) pelo conselho de administração das duas companhias, em 28 de março de 2007, o local ainda não estava definido.29 De acordo com o superintendente de Participações da V&M do Brasil, Rubens Ferreira Filho, uma empresa de consultoria e análise de risco foi contratada para identificar o melhor local para o empreendimento: “Em princípio, foram identificados dez países. Depois, fixou‐se em três e, finalmente, no Brasil. O passo seguinte foi decidir se seria no litoral ou no interior. Batemos o martelo por Minas Gerais”.30 Menos de um mês depois, 23 de abril de 2007, o Governador Aécio Neves recebeu os dirigentes dos dois grupos no Palácio da Liberdade e anunciou a decisão. 

Em outra escala, em março de 2005, o prefeito recém‐eleito de Jeceaba, Júlio César Reis (PT), já havia batido às portas da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico, pedindo ajuda para a criação de uma cooperativa de doces. Atendido pelo então secretário de Desenvolvimento Econômico de Minas, Wilson Brumer, este informou ao prefeito sobre o investimento que seria feito pelas transnacionais Vallourec e Sumitomo Metals, mas “pediu sigilo”.31 Sigilosamente, a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais ‐ Codemig, empresa de capital misto ligada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, já fazia levantamento de uma área de quase 12 milhões de m2 para posterior desapropriação – declaração de utilidade pública – e criação do distrito industrial para instalação da usina.  

Assim, mal batido o martelo do Protocolo de Intenções em Paris, uma semana depois, a toque de caixa, Câmara dos Vereadores e Prefeito Municipal de Jeceaba iniciam os trâmites para legalizar o que “foi uma exigência dos investidores, segundo o presidente da Câmara, Sálvio de Freitas Maia”.32 Em 04 de abril, tramita na Câmara a Proposição de Lei 03/2007, fixando o perímetro da zona de expansão urbana para uso predominantemente industrial e suas atividades de apoio no município de Jeceaba (a área que já havia sido fixada pela Codemig). Em 14 de abril, o Governador do Estado de Minas Gerais, através de decreto, declara como de utilidade pública os imóveis identificados no perímetro descrito para fins de desapropriação, mediante acordo ou judicialmente. Três dias depois, o Executivo Municipal manda à Câmara o Projeto de Lei 06/2009 com a exposição de motivos sobre incentivos tributários às empresas 

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que se instalarem no Município, especialmente a que se instalará neste Município (grifo meu). Em 25 de abril é aprovado pela Comissão de Finanças e Orçamento e Tomada de Contas da Câmara Municipal o Projeto de Lei 06/2009. Finalmente, em 9 de maio, a Proposição de Lei 05/2007, que concede incentivo fiscal às empresas que se instalarem no Município – três anos sem Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), valor mínimo de Imposto sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN) permitido por lei (2%) e, após isto, 10 anos de 50% de IPTU −, é aprovada pela Câmara e sancionada imediatamente pelo prefeito.  

Seguindo o mesmo ritmo, em 7 de julho, é lançada a pedra fundamental e iniciada a terraplenagem.33 De acordo com o coordenador de engenharia civil do projeto VSB, João Márcio Vieira, “a terraplenagem, acompanhada da drenagem, constitui a principal parte das obras civis de infraestrutura necessárias à implantação de qualquer empreendimento que se deseja realizar”. A Licença de Instalação do Distrito Industrial de Jeceaba, dada pelo Conselho Estadual de Política Ambiental (COPAM), só virá em 8 de janeiro de 2008.34 Em dezembro de 2008, já com mais de 2.000 operários nas obras, a Fundação João Pinheiro, ligada à Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão, trabalhava em um diagnóstico que servirá de base para o anteprojeto do plano diretor da cidade.35 

Bem, Jeceaba, é um work in progress. Muitíssimos elementos estão em aberto à pesquisa e à análise, seja de ordem demográfica e morfológica, seja de ordem mobiliária e econômica. Várias podem ser as motivações para que uma determinada empresa se materialize em um território, este coágulo de relações sociais. Em um ponto de vista essencialmente economicista, de caráter neoclássico, no mercado de capitais, a siderurgia é comumente classificada como uma indústria cíclica. Um mecanismo de redução de exposição a tais efeitos cíclicos (crises stop‐and‐go) de um determinado mercado é a diversificação geográfica. Isto talvez explique a mobilidade espacial da siderurgia no mundo e no Brasil: seja porque empresas com atuação em inúmeros países tendem a possuir vantagens frente àquelas que operam em um único (ou poucos) países, seja por fatores macroeconômicos (evolução da renda doméstica e da taxa de câmbio), seja por questões setoriais (no caso de crise de um importante setor consumidor). Além disso, a diversificação geográfica pode resultar em outras vantagens tais como diferenças nos custos de produção e transporte (PAULA, 2007). No caso da VSB tais vantagens foram claramente obtidas. É uma explicação necessária mas não suficiente. 

Uma outra explicação, agora de caráter histórico‐estrutural, parece ser mais convincente. Com a marcha neoliberal advinda depois da crise de 1973‐74, o chamado modelo de desenvolvimento de “cima para baixo” (PERROUX, BOUDEVILLE, 1977) e que era altamente dependente do governo, é substituído pelo chamado modelo de “baixo para cima” (PIORE/SABEL e SCOTT/STORPER). Agora, o desenvolvimento irá e deverá ocorrer a partir de baixo, do poder local, lastreado de vasta polissemia: crescimento endógeno, arranjos produtivos locais (APLs), distritos industriais, clusters etc. Assim, o que era pensado de forma sistêmica passa a ser operado de forma fragmentária, focalizada, alimentado pela globalização, categoria à procura de um conceito, mas rica em mitificações como: inclusão, homogeneidade e universalização (AMIN/ROBINS, 1994, HERMES, 2001). O termo globalização, aliás, como aponta Chesnais (1994), veio das business schools americanas e ganhou mundo pelas mãos de ideólogos como Kenichi 

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Ohmae. Ligar o termo “mundialização” “ao conceito de capital significa dar‐se conta de que, graças ao seu fortalecimento e às políticas de liberalização, o capital recuperou a possibilidade de voltar a escolher, em total liberdade, quais os países e camadas que têm interesse por ele” (CHESNAIS, 1994, p. 18). O cerne da questão da reestruturação urbana e industrial no capitalismo não é outro do que a deslocalização em busca do lucro ampliado, facilidades estatais e trabalho despolitizado. Parece‐me ser esta a lógica mais perceptível no processo detectado em Jeceaba. 

Em tal circunstância, opera‐se o pós‐fordismo no qual, o que está explícito, é a “descaracterização da cidade e a transformação em valor de troca de áreas produzidas enquanto valor de uso social” (LIMONAD, 2005). Mas, se isto é verdadeiro, onde firma a sua legitimidade? No controle osmótico das contradições, criando consensos e escamoteando antagonismos. Há quem diga que, hoje, o planejamento de cidades ou de localidades constitui‐se como um movimento participativo, como um conjunto de ações no qual se engajam diversos segmentos da sociedade. Convém atentar ao fato de que a gestão participativa, na maioria das circunstâncias, pode ter nenhum efeito na vida urbana como um todo. Pode representar, sim, uma disputa dos pobres entre si, puxando um pequeno cobertor em uma ninharia de recursos que nem sempre beneficiam os mesmos. Ou seja, a gestão participativa pode representar um modelo de controle e exclusão social. 

Planejam, assim, a participação no planejamento, sem dar chance aos envolvidos de participar concretamente. Em geral o poder público tende a colocar na agenda de discussões questões táticas e não questões estratégicas. Ou seja, discute‐se questões parciais ou alternativas a determinadas intervenções, mas não: qual cidade se deseja? (LIMONAD, Idem). 

A instauração da cidade‐empresa constitui, em tudo e por tudo, uma negação radical da cidade enquanto espaço político – enquanto pólis. Na empresa reina o pragmatismo, o realismo, o sentido prático, na qual a produtividade é a única lei. Como construir política e intelectualmente as condições de legitimação de um projeto de encolhimento tão radical do espaço público, de subordinação do poder público às exigências do capital internacional e local? É preciso que reiteremos: pelo consenso, sem o qual não há qualquer possibilidade de estratégias vitoriosas. Dito de outra maneira: despertando o patriotismo cívico dos cidadãos, eternos reféns da crise. Fica assim bem mais fácil persuadi‐los a se tornarem competitivos. O problema é que o emprego, tal qual foi conhecido, não mais será realidade, devido à mudança da lógica do capital. Porém, este é um problema a ser resolvido mais tarde: por enquanto, estamos imantados, enfeitiçados pela possibilidade de que o crescimento desta fábrica consensual fará brotar rios de empregos. Basta ver que o atual prefeito, em novembro de 2008, foi reconduzido ao cargo sem nenhuma campanha eleitoral.36  

Por fim, a idéia de cidade como máquina de crescimento, pode ser assim resumida: os custos referentes às mudanças estruturais, exigidas sob pressão do capital internacional, são socializados e, aparentemente, legitimados através do poder retórico e político, através do apelo nostálgico à “comunidade” como panacéia para os males sociais, econômicos e urbanos.37 

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8 CONCLUSÃO 

Procuramos mostrar o processo que ocorre em Jeceaba dentro da dialética do espaço e do lugar, pensando o lugar como um espaço que tem uma porção de individualidade e singularidade. Assim, visualizamos a dimensão concreta e a dimensão simbólica do lugar, um lugar em que as intensidades dos vínculos permitiam pensar como um todo. Ao sofrer uma intervenção brusca e de grande impacto, surge um modelo emasculado do lugar, sem densidade histórica, abstraído de toda historicidade de um processo histórico. Trata‐se de um excelente capítulo do movimento do capital, totalmente autônomo da zona civil, não nos escapando que o que se apaga e apazigua, com este dispositivo, é a dimensão política, portanto pública, do problema de cada um. 

Traçar cenários é atentar contra esta dialética, naquilo que vai, se esvai, bate e rebate. Permito‐me concluir com Vainer (2007), quando afirma que: 

(...) o exame da economia política de cada grande projeto permitiria identificar de que forma atores políticos e empresas nacionais e internacionais se associam e mobilizam elites locais e regionais, para exercer o controle do território, constituindo uma nova geografia física, econômica e política que decompõe o território nacional em fragmentos glocalizados. 

9 REFERÊNCIAS 

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Valor Econômico. Vários números. 

VMB Notícia: Jornal interno da V&M do Brasil. Vários números. 

10 NOTAS 

 

1 Revista “Caros Amigos”, nº.  17de agosto de 1998. 

2 Cf. Fiori (2001). 

3 Eis aqui, uma faceta da teoria dos jogos. Se x tem poder, é preciso que em algum lugar haja um ou vários y que sejam desprovidos de tal poder. 

4 Joint‐venture é uma expressão em inglês que significa “união de risco” e designa o processo mediante o qual pessoas, ou, o que é mais freqüente, empresas se associam para o desenvolvimento e execução de um projeto específico no âmbito econômico e/ou financeiro. Uma joint‐venture pode ocorrer entre empresas privadas, entre empresas públicas e privadas, e entre empresas públicas e privadas nacionais e estrangeiras. Durante a vigência da joint‐venture, cada empresa participante é responsável pela totalidade do projeto. No caso brasileiro, esta modalidade foi estimulada especialmente durante os anos 70, envolvendo empresas privadas nacionais, empresas estatais e empresas estrangeiras. (SANDRONI, 2004, p. 315). 

5 “A Corrida do Aço: novos projetos trazem R$ 15 bilhões a Minas”. Estado de Minas, 8 de abril de 2007. “Jeceaba Queria Doces e Ganhou uma Siderúrgica”. Valor Econômico, 12 de junho de 2007. “Jeceaba Desconhece os Efeitos da Crise Econômica”. Gazeta Mercantil, 8 de janeiro de 2009. “Uma Cidade Presa em Gaiola de Ouro”. Estado de Minas, 7 de fevereiro de 2010. 

6 Locução latina, “Faça‐se a luz!” Palavras com que Deus, segundo o livro do Gênesis (na tradução latina da Vulgata), criou o mundo. 

7 A usina Aços Minas Gerais S.A. − Açominas −, criada e posta em funcionamento pelo Governo Federal em 1985, foi leiloada em agosto de 1993 e adquirida por um consórcio encabeçado pela Mendes Júnior. Posteriormente, em 1996, por motivos não muito claros, passou‐se o controle acionário aos Grupo Gerdau e Nat Steel (Singapura). (V. Piquet, 1998). 

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8 Iniciais para Oil Country Tubular Goods. 

9 V. Matéria: “Prefeito visita França e Japão”. www.jeceaba.mg.org.br/home.php?l=phl_noticias/act_ver&id=76. Acesso em: 20 de dez. 2009. 

10 Idem. 

11 V. (http://europa.eu/rapidpressReleasesAction.do?reference=IP/99/957&format=PDF&aged=1&language=NL&guiLanguage=en). Acesso em: 20 de dez. 2009. 

12 As multas foram assim divididas: Mannesmannröhren‐Werke AG, Sumitomo Metal Industries Limited, Nippon Steel Corporation e Kawasaki Steel Corporation multadas em 13,5 milhões euros cada, NKK Corporation em 13 milhões de euros, British Steel Limited em 12,6 milhões, Damine SpA em 10,8 milhões e, por fim, Vallourec S.A em 8,1 milhões. (http://europa.eu/rapidpressReleasesAction.do?reference=IP/99/957&format=PDF&aged=1&language=NL&guiLanguage=en). Acesso em: 20 dez. 2009. 

13 Paulo Eduardo Arantes (2004, p. 47) diz não importar o nome da coisa. Apenas lança o desafio: “o tempo dirá se terá sido uma demasia desarquivar a imagem assustadora da sociedade dual dos subdesenvolvidos, novamente na berlinda a propósito desses novos “tempos da exclusão”, como se diz a torto e a direito no debate francês”. 

14 No dia 05 de setembro de 2009, inaugurando a “nova ordem” presente em Jeceaba, o cidadão jeceabense Antonino dos Santos, 35 anos, foi assassinado por dois policiais militares (PMs) da recém criada 122ª Companhia da Polícia Militar de Jeceaba. Segundo testemunhas, a vítima, ao sair de uma festa beneficente na principal praça da cidade, ao se recusar deitar no chão para uma revista, foi baleado na virilha e no abdômen, vindo a morrer a caminho do hospital. É quase desnecessário dizer que, como tudo em Jeceaba nos últimos tempos, os dois policiais acusados do assassinato são novos na corporação. Um tem um ano e meio na PM e o outro, três. (V. “Estado de Minas”, 6 de setembro de 2009, p. 22 e “Correio da Cidade”, edição 975/2009, 12 de setembro, pp. 62 a 67). 

15 Esta página e seu conteúdo estavam disponíveis em 21 de maio de 2007. Posteriormente, o seu conteúdo foi retirado do ar, cujo título era: Seamless Tube Steel in Jeceaba. 

16 Em 7 de fevereiro último, o jornal “Estado de Minas” reporta que a situação parece não ter mudado de fato. Apesar da arrecadação da Prefeitura local ter saltado de R$ 50 mil mensais para R$ 1,5 milhão, só com a fase de implantação da VSB, por falta de projetos (e licitações), a mesma está impedida de gastar o dinheiro. (Estado de Minas, 7 de fevereiro de 2010). 

17 A MRS, como ficou conhecida, foi criada em agosto de 1996, com o objetivo estratégico de assumir a concessão no dia 1º de 

dezembro do mesmo ano, após a obtenção por cessão dos direitos adquiridos pelo Consórcio MRS Logística, através do leilão de privatização, da Malha Sudeste da Rede Ferroviária Federal S.A.. É formada pela associação da mineradora Vale e das siderúrgicas CSN, USIMINAS e Gerdau. 

18 No “Estado de Minas” de 13 de abril de 2008 há uma nota dizendo que até então o BDMG ainda não havia “equacionado” o seu investimento no projeto. 

19 Francisco Foot‐Hardman (2006), em artigo de grande acuidade analítica, denomina tais personagens como “homens‐dispositivo”, configurados pela robótica da sociedade global‐financista do espetáculo. Para ele, os homens‐dispositivo não agem sós, mas também não representam vontades particulares ou gerais. Por isso se apresentam indistintamente como emissários. São mestres da obediência devida. 

20 As informações a seguir encontram‐se em cemig.infoinvest.com.br/modulos/doc.asp?arquivo=00245010...doc. Acesso em 15 fev. 2010. 

21 Wilson Nélio Brumer assumiu a presidência da Acesita em novembro de 1993, deixando‐a em agosto de 1998. A siderúrgica Acesita, ao ser privatizada em 1992, promoveu um amplo processo de reestruturação produtiva, onde se destaca o processo de descentralização de suas atividades. Assim declarou Brumer em pesquisa realizada pelo CORECON‐MG no ano 2000: “o “negócio” é produzir “inox” e, assim, tudo o que estava fora de foco da empresa foi terceirizado ou transferido para outrem”. Além disso, a Acesita também declarou seu descompromisso em relação aos trabalhadores terceirizados e aos que já haviam sido desempregados logo após sua privatização. E assim afirmou Brumer peremptoriamente: “A empresa tem que criar valor, mas não tem o compromisso de criar empregos”. Tanto isso é verdade que, dos 8.428 trabalhadores empregados em 1991 

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somente 3.980 aí estavam em 1996, e isso muito antes de a empresa concluir o processo de reestruturação programado. (Fonte: Centro de Estudos para o Desenvolvimento –CED/CORECON‐MG). 

22 A Valepar S. A. é uma empresa formada pelos seguintes associados: Previ, Bradespar, BNDESpar, Mitsui & Co e o Oportunity. Detém 33,6% do capital total e 52,3% do capital votante da Cia Vale do Rio Doce, atual VALE, desde 2002, o que consolida a sua posição de controladora majoritária sobre a mesma. V. www.bradespar.com.br/portugues/composicao_acio_valepar.htm. Acesso em 12 set. 2008. 

23 “Valor Econômico”, 29 de março de 2007. 

24 V&M do Brasil é o nome do consórcio brasileiro firmado entre a Vallourec e a Mannesmann em 2000. O consórcio de Jeceaba, devido à Associação com os japoneses, é denominado de VSB – Vallourec & Sumitomo, Tubos do Brasil. 

25 Disponível em: www.mrs.com.br/saladeimprensa. Acesso em 12 set. 2008. 

26 Vallourec: Nouvelle tuberie au Brésil: Vallourec poursuit sa croissance et renforce sa compétitivité,28 março de 2007. Paris. Disponível em www.vallourec.fr/fr/news/presentations.asp. Acesso em: 15 mai. 2009. 

27 Entrevista do coordenador do Grupo Estratégico de Fomento (GEF), Wilson Brumer. “Agência Minas”, Notícias do Governo 

do Estado de Minas Gerais, 28 de março de 2007. 

28 “Valor Econômico”, 12 de junho de 2009. 

29 Press release Vallourec, 28 de março de 2007. 

30 “VSB: Jornal da Comunidade/Construindo o Futuro”, Ano 1, Edição 1, fevereiro de 2008, p.2. 

31 “Valor Econômico”, 26 de junho de 2007. 

32 Idem. 

33 “VMB Notícia”, Jornal interno da V&M do Brasil, Ano VII, no. 31, maio/junho de 2007, p. 10. 

34 “VSB: Jornal da Comunidade. Construindo o Futuro”, Ano 1, Edição 1, fevereiro de 2008, p. 3. 

35 “Estado de Minas”, 8 de dezembro de 2008. 

36 “Gazeta Mercantil”, 8 de janeiro de 2009. 

37 Não por acaso, um das primeiras benesses da grande empresa em Jeceaba foi criar em fevereiro de 2008, com distribuição gratuita, a publicação “Jornal da Comunidade/Construindo o Futuro”. Em papel couchet encorpado e fotos coloridas, vem ininterrumpidamente, desde então, relatando a relação osmótica entre a empresa e a comunidade. 

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NÚCLEO TEMÁTICO II: Grandes projetos como elementos transformadores da cidade e região 

Grandes reformas urbanas e seu impacto no direito à cidade Great urban reforms and their impact on the right to the city 

Vyrna Jacomo de A. NUNES Mestranda em Urbanismo pelo PROURB/UFRJ. [email protected]

RESUMO A  cidade do Rio de  Janeiro vem  sofrendo grandes  transformações em  seu  tecido,  impulsionadas pelo poder público, com vista a recepcionar os grandes eventos por vir – a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos e  Paraolímpicos  de  2016.  Contudo,  para  tanto,  tem‐se  percebido,  sob  tal  camuflagem,  um  processo silencioso de reprodução da exclusão social evidente na cidade – a retomada das remoções de favelas, aliada  à  expulsão  da  população  de  baixa  renda,  caracterizada  como  entrave  às  transformações  e  ao processo  de  embelezamento  vigente.  Esta  não  é  uma  questão  atual,  remetendo  a  um  histórico  de políticas  habitacionais  –  nacionais  e  cariocas  –  que  preconizaram  a  segregação  socioespacial  e  o isolamento de determinadas camadas da sociedade. Observando esta questão pelo viés da moradia de qualidade, este estudo tomou como referência a relação entre a produção da habitação e os elementos que devem complementá‐la, permitindo o acesso à educação, saúde, lazer e cultura, ou seja, o acesso à cidade. Analisando e compreendendo sua importância para o alcance do “direito à cidade”, demonstra‐se  como,  pelas  mãos  do  poder  público,  desenvolveu‐se  um  padrão  habitacional  que  reproduz  as desigualdades  sociais,  inviabilizando  uma  perspectiva  de  ascensão  para  as  camadas  de  baixa  renda atingidas e contribuindo para o seu sentimento de parte não integrante da cidade. 

PALAVRAS‐CHAVE: equipamentos comunitários, remoções, habitação popular, desigualdade social 

ABSTRACT The city of Rio de Janeiro has undergone major transformations in its tissue, driven by the government, in order  to welcome  the  great  events  to  come  –  the  2014 World  Cup  and  the Olympic  and  Paralympic Games  in  2016.  However,  to  do  so, we  have  seen,  under  a  certain  camouflage,  a  silent  process  of reproduction of social exclusion evident in the city – the recovery of removals of “favelas”, combined with the expulsion of  low‐income population,  seen as an obstacle  to  changes and  the ongoing beautifying effect. This  is not a current  issue,  referring  to a history of housing policies – national and  local –  that worked with  the  idea of segregation and  isolation of certain sections of society. Viewing  this question from  the  perspective  of  housing  quality,  this  study  took  as  reference  the  relationship  between  the production of housing and the elements that must complement it, allowing access to education, health, leisure and culture, in other words, the access to the city. Analyzing and understanding its importance to achieve the "right to the city", it demonstrates how, by the hands of the government, a housing standard that  reproduces  social  inequalities  has  taken  place,  making  impracticable  the  low‐income  affected population to rise. Moreover, it has increased these people that they are not an integral part of the city. 

KEYWORDS: community equipments, removals, social housing, social inequality 

1 INTRODUÇÃO 

A cidade do Rio de Janeiro, assim como outras metrópoles latino‐americanas, apresenta um alto índice de desigualdade social, ocasionado não só por um desequilíbrio na distribuição de renda, mas pelo próprio reflexo deste no espaço urbano. Isto é, expressa na tessitura urbana, 

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esta condição concentra o acesso aos recursos de seu espaço (VILLAÇA, 2001) nas mãos de uma minoria detentora do capital. Este processo por sua vez, tem se intensificado pelas mãos do poder público, uma vez que, com a premissa de resolver o déficit habitacional, acaba por lançar uma série de políticas excludentes, que vêm agravar a segregação socioespacial, limitando o “direito à cidade” (LEFEBVRE, 2001). 

Para a compreensão desta ideia, deve‐se lançar, inicialmente, um olhar sobre o espaço urbano que transcenda sua dimensão física para encontrar seu campo simbólico – um “espaço social” (BOURDIEU, 2011). Assim, pode‐se compreendê‐lo não só como produto das relações políticas, econômicas e sociais – uma vez que estas se fazem valer no território, configurando‐o de modo a atender à expectativa daqueles que o habitam –; mas, também, como agente transformador destas, condicionando a população pelo modo como promove o acesso a seus recursos, ou seja, o acesso à cidade. A partir daí, buscando‐se um equilíbrio neste processo, propõe‐se que todos os cidadãos, independentemente de sua classe social, têm direito a atuar neste espaço como formadores e transformadores de sua própria realidade. 

[...] esses direitos concretos vêm completar os direitos abstratos do homem e do cidadão [...]:direitos das idades e dos sexos [...], direitos das condições [...], direitos à instrução e à educação, direito ao trabalho, à cultura, ao repouso, à saúde, à habitação.(LEFEBVRE, 2001, p. 116). 

Entretanto, conforme inferido, tal equalização não ocorre, uma vez que há um domínio por parte dos “centros de decisão” (LEFEBVRE, 2001, p. 113) – as classes no poder –, movidos exclusivamente pelas relações econômicas. Com isto, impõe‐se ao espaço realidades presumidas, adequadas a estas camadas sociais, posicionando o cidadão como mero objeto desta dinâmica pré‐definida e alienando‐o de sua participação enquanto sujeito. Compromete‐se, portanto, o “direito à vida urbana” (LEFEBVRE, 2001, p. 118), isto é, o direito de viver a cidade. 

Assim, seguindo‐se tal raciocínio, apreende‐se uma subjetividade do espaço urbano que, segundo Bourdieu (2011), traduz‐se pela influência mútua entre físico e simbólico, atuando sobre as oportunidades da população, que sofre seus “efeitos de lugar” (BOURDIEU, 2011, p. 159) – positivos ou perniciosos. Trazendo‐se tal reflexão para o caso carioca, visualiza‐se, inicialmente, uma má distribuição da cidade, dada pela desigualdade na propriedade da terra e pela concentração de investimentos em áreas privilegiadas. Por conseguinte, intensifica‐se a segregação socioespacial, reunindo as camadas privilegiadas em locais bem equipados, nos centros, e agrupando, nas bordas da cidade – nas periferias e assentamentos informais –, as camadas mais baixas. 

Uma vez localizadas em áreas vitimadas pela má aplicação de recursos (CASTELLS, 2011), essas camadas desprivilegiadas são privadas do acesso à cidade e, assim, de sua apropriação: 

Uma asserção geral da teoria da localização e da teoria da interação espacial é a de que o preço local de um recurso ou proximidade é função de sua acessibilidade e vizinhança para o usuário [...] O domínio sobre os recursos [...] é assim função da acessibilidade e proximidade locacionais. (HARVEY, 1980, p.56). 

Tem‐se, portanto, um processo cíclico, onde o capital domina os interesses da cidade, configurando‐a de modo desigual, e esta, por sua vez, condiciona uma parcela da população a uma desqualificação – análoga àquela que atinge a área em que habita – e ao subdesenvolvimento. Em outras palavras, “o lugar tem a ver com a ideia de quem é cidadão e quem não é cidadão” (ROLNIK, 2009a). 

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Conforme observado, o poder público, ao longo do século XX e início do século XXI, devido a uma série de fatores a serem apresentados mais adiante, contribuiu para tal prejuízo através de suas políticas pontuais e clientelistas (OLIVEIRA, 2001), despreocupadas com a promoção do acesso à cidade. Determinando a moradia como uma necessidade básica que vai além da simples construção da residência em si (ROLNIK, 2009a), puderam‐se perceber lacunas não só no provimento de infraestrutura e acesso a equipamentos comunitários1 – que deveriam acompanhar a produção da habitação – mas, também, na própria inserção desta no tecido urbano, o que resultou em um agravamento da questão da segregação e da exclusão. 

Recentemente, corroborando para este quadro, o Rio de Janeiro tornou‐se palco de uma série de transformações. Inúmeras obras de infraestrutura foram lançadas, uma vez que a cidade sediará os grandes eventos esportivos por vir – a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 –, com vista a recepcionar milhares de turistas brasileiros e estrangeiros. Entretanto, para a contemplação do espaço carioca com reformulações viárias de grande porte – incluindo a implantação de novas modalidades de transporte, como o BRT2 –, bem como a implantação de diversos equipamentos públicos, uma parcela da população teve de ser removida de suas antigas moradias – formais ou informais. 

Isto ocorre devido ao curto prazo para a execução das intervenções e à manutenção de uma deficiente estrutura do poder público para garantir aos cidadãos o acesso à habitação. Assim, inúmeros moradores destes locais, destacando‐se favelas e ocupações irregulares, foram apresentados a duas únicas opções: aceitar uma unidade em um conjunto habitacional designado pela prefeitura ou receber uma indenização – sendo esta, no caso de habitação informal, irrisória. Então, concorreu‐se para a exclusão, mais uma vez, desta parcela desfavorecida que, obrigada a ir habitar em locais distantes, encontra‐se alijada do usufruto dos possíveis benefícios que tais transformações poderiam ensejar. 

Diversos autores trataram, em suas obras, da desigualdade no acesso aos benefícios do espaço urbano3, assim como outros o fizeram em relação à moradia de qualidade4. Assim, visando acrescentar nova perspectiva sobre tais questões, agregando o cenário atual de transformação intensa do espaço urbano, este estudo propõe uma convergência de tais temas.  Entender‐se‐á, para tanto, a ideia de “moradia de qualidade” a partir da percepção da consolidação do acesso à cidade – através do acesso aos elementos que vão se unir à habitação para consolidar o acesso à cidade, tais como educação, saúde, lazer e cultura. Assim, pretende‐se vislumbrar de que modo estes estiveram presentes ao longo da história da habitação, compreendendo melhor como a reprodução de seu quadro conduziu ao cenário atual, bem como quais prejuízos sociais podem resultar desta dinâmica. 

2 OS EFEITOS DE LUGAR E A ESTIGMATIZAÇÃO – A IMPORTÂNCIA DO PLANEJAMENTO 

Conforme sugerido, assim como as relações políticas, econômicas e sociais se refletem no espaço, este, igualmente, as transforma, condicionando aqueles que o habitam. Para uma melhor compreensão desta propriedade, primeiramente, compreender‐se‐á a existência no mesmo de um campo simbólico, ou seja, um “espaço social” – conceito trabalhado por Bourdieu (2011) – que transcende sua dimensão física. 

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Compreendendo‐se a existência de uma esfera simbólica na qual se relacionam as diferentes classes sociais, pode‐se perceber o citado espaço social como aquele em que se expressam os limites do domínio de cada uma delas, de acordo com seu poder. Este sítio virtual, por sua vez, vem se refletir no espaço físico, sob a capacidade destas classes de apropriação da cidade e dos bens que esta pode oferecer. Outrossim, aqueles que desfrutam de um amplo acesso à cidade se verão habilitados a uma posição de domínio do espaço social. 

Dentre tais bens sociais, têm destaque, neste estudo, aqueles para a promoção de educação, saúde, lazer e cultura – direitos sociais da população. É importante lembrar que diversos fatores condicionam seu acesso, não se tratando puramente de um quantitativo. Tem grande relevância, portanto, a questão da localização, em termos físicos – somando‐se a facilidade de deslocamentos na cidade, passando pelo tema da disponibilidade de transporte público eficiente – e, também, simbólicos – a liberdade de ir e vir para alcançar estes locais, bem como o sentimento de acolhimento pelos mesmos, a serem vistos a seguir. 

A participação efetiva na cidade  

Para agenciar a inserção social, não basta construir a habitação e/ou equipamentos comunitários, mas garantir sua integração, eliminando barreiras físicas e simbólicas do tecido urbano. Essencialmente, trata‐se de promover a facilidade de deslocamentos – através de transporte público de qualidade, acessibilidade e curtas distâncias. Entretanto, existem outros fatores que condicionam a liberdade de circulação da população, tais como a violência – que, circunda ambientes favelizados, especialmente – e o sentimento de pertencimento ao local – uma vez que se formam “guetos” de pobreza, isolados do resto da cidade. 

Em adição, retomando‐se a concepção de ilhas segregadas, é significativa a estigmatização causada pelo fato de habitar um local carente de investimentos pelo poder público. Uma vez que tal imagem se reflete mutuamente entre ambiente e morador, penetra‐se em um ciclo de degradação, o que vem comprometer a participação na cidade, bem como a perspectiva de futuro fora destes espaços. Um exemplo expressivo se dá no ambiente escolar onde, por conta das condições da população e espaço que o cercam, não se preconiza a imagem de uma realidade alternativa à já conhecida pelos jovens, bem como não se incentiva a realização de atividades que previnam o furto da infância – dado pela já citada falta de perspectiva, além das más condições financeiras. 

Assim, é importante contornar tal processo, garantindo um balanceamento no provimento do direito à cidade, aliado à inclusão social. É imperioso, por conseguinte, interferir na cidade de modo a garantir, em diferentes esferas, um acesso igualitário a seus recursos. 

3 RIO DE JANEIRO – UM HISTÓRICO DE RUPTURAS E EXCLUSÃO 

A exclusão social nas metrópoles esteve constantemente atrelada à questão habitacional. Uma vez que, prioritariamente, se abordou a habitação como mercadoria, concentrou‐se sua produção nas mãos de uma minoria capaz de alcançá‐la, “construindo‐se” a cidade 

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ao seu redor. Deste modo, uma grande parcela populacional se viu cerceada do direito à moradia em sua acepção completa, indo habitar, ora as favelas – sem condições de salubridade e/ou sem investimentos em infraestrutura e serviços – para garantir a proximidade de dinâmica social, ora as periferias, distanciando‐se fisicamente dos equipamentos urbanos. 

A partir do momento em que, a despeito dos prejuízos a essas classes, esta problemática se configura como incômodo às elites – forçadas à convivência com a pobreza, de modo geral, a ameaça de doenças, inicialmente e, em seguida, com a violência urbana – propõem‐se estudos e, por conseguinte, medidas para a promoção de alojamento destinado à camada excluída. Sendo assim, pode‐se inferir que esta questão esteve, ao longo do século XX, dentre os principais debates acerca do espaço urbano, sendo retratada por diversos autores5. 

Sugere‐se, então, uma apresentação do desenho geral de seu cenário, com vista à apreensão da relação indicada. 

Originalmente, tratava‐se da questão da salubridade, como mencionado, valorizando‐se a opinião de médicos e sanitaristas, que propunham uma transformação na cidade, favorecendo o desmonte de habitações com “más condições de higiene” – nas favelas e cortiços – que dariam lugar às grandes obras de “embelezamento” da cidade (ABREU, 2008), tais como novas vias de circulação e edificações. 

Porém, em seguida, permanecendo a hipótese de carência de educação e esclarecimento da população (BONDUKI, 2004; VALLADARES, 2005), passa‐se a pensar não só em casas, mas também em equipamentos comunitários agregados que, neste caso, trariam a inserção social, embora através da ideia de capacitação dos trabalhadores “preguiçosos” para a vida em sociedade (VALLADARES, 2005). Foi apenas com a chegada da influência modernista que se lançaram iniciativas, tais como os IAPs, passando‐se a crer na necessidade de equipamentos presentes junto à construção da habitação social, em prol de uma transformação no modo de vida de seus usuários (BONDUKI, 2004). 

Contudo, além de surgirem em número inexpressivo, frente ao déficit habitacional da época – por conta da já explanada falta de interesse dos detentores do capital e da descontinuidade entre posturas de diferentes esferas (BONDUKI, 2004) – era possível perceber um deslocamento destes conjuntos para áreas periféricas, dificultando o acesso da população que aí foi residir às demais áreas da cidade, nas quais os serviços se encontravam previamente instalados. Já existia, portanto, o gérmen do processo que viria a ocorrer em seguida – a expressiva expulsão da população de baixa renda das áreas centrais. 

A partir da década de 1960, criou‐se uma ruptura na questão social. Passou‐se à realização de projetos empobrecidos, o que Bonduki (2004) coloca como “um divórcio entre arquitetura e moradia popular, com graves repercussões na qualidade do espaço urbano”– no que se destaca o provimento de serviços –, sobretudo nos casos proponentes de remoções. Esta ideia se deu, dentre outros, pela valorização das terras urbanas centrais – que acarretavam na implantação de conjuntos habitacionais distantes, em terrenos mais baratos, onde não havia a infraestrutura necessária (ROLNIK, 2004) –, a falta de interesse público pela urbanização e a aludida incongruência entre interesses (Figura 1). 

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Figura 1: As más condições dos conjuntos da época, carentes de infraestrutura 

 

Fonte: Autor desconhecido, Panfleto, página 20, 17/02/1964. 

Optava‐se, assim, pela transferência da questão da habitação e das mazelas das favelas para fora das vistas do poder público e das elites, deixando estas de se configurarem como um incômodo. Já nas periferias não planejadas, a população sofria com a reprodução de suas carências, enquanto assistiam a reformulações nas áreas de sua origem, cujos benefícios não os alcançariam (Figura 2). 

Figura 2: Recorte de jornal mostra o cenário da transferência do Morro do Pasmado para conjuntos habitacionais em Bangu 

 

Fonte: Autor desconhecido, Panfleto, página 18, 17/02/1964. 

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No entanto, ao longo da década de 1990, após o marco dado pela Constituição de 1988 (a “Constituição Cidadã”), tem‐se um novo momento na política habitacional (BRASILEIRO, 1999). As propostas, então, buscavam romper com o ideal remocionista, compreendendo a favela como parte da cidade e sugerindo sua urbanização e incorporação ao tecido formal, como novos bairros. Previa‐se, em conjunto, dotá‐los de infraestrutura e equipamentos públicos. Assim, estaria garantido o “direito à cidade, à habitação, ao acesso a melhores serviços públicos e, por decorrência, a oportunidades de vida urbana digna para todos” (OLIVEIRA, 2001, p. 3). 

Entretanto, muitas destas medidas não tiveram prosseguimento, mantendo‐se apenas no discurso. Além disso, as remoções haviam sofrido apenas uma redução, voltando a ser postas em prática, embora de maneira camuflada, como será visto a seguir. 

4 UM NOVO DISCURSO, A MESMA PRÁTICA 

Atualmente, com a elaboração do Plano Nacional de Habitação (PlanHab), foi retomada a construção de conjuntos habitacionais em larga escala, no entanto, sob novas diretrizes. Com vista a proporcionar moradia de qualidade é trazido como inovação, além da questão do planejamento em si – não recorrente no setor habitacional (BONDUKI & ROSSETTO, 2008) –, a aplicação do conceito de “função social da propriedade”6, além do direito básico à moradia como atribuição de todas as esferas governamentais. 

Como principal alternativa, além de outras formas de crédito, este momento apresenta a facilitação no acesso à moradia, o que vem se aliar à grande oferta de unidades habitacionais em construção, com vista a atender o público de baixa renda. Associadas ao Programa Minha Casa Minha Vida, orientado pela Caixa Econômica Federal, diversas construtoras têm investido em terrenos mais baratos, realizando uma construção maciça.  

Poder‐se‐ia pensar, a princípio, que seria possível equacionar o expressivo déficit habitacional (Tabela 1), de um modo divergente das propostas anteriores, já que os terrenos disponíveis seriam mais acessíveis, porém, desta vez, encontravam‐se dentro da cidade. Isso porque haveria um diálogo entre as esferas competentes, de modo a viabilizar a construção em larga escala. Entretanto, alguns questionamentos surgiram, com o andamento das obras. 

Tabela 1: Distribuição do déficit habitacional por faixas de renda no ano de 2008 

DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DO DÉFICIT HABITACIONAL URBANO, POR FAIXAS DE RENDA MÉDIA FAMILIAR MENSAL, SEGUNDO REGIÃO GEOGRÁFICA (SUDESTE), UNIDADES DA FEDERAÇÃO E REGIÕES METROPOLITANAS (RMs) ‐ BRASIL ‐ 2008 

ESPECIFICAÇÃO FAIXAS DE RENDA MENSAL FAMILIAR (EM SALÁRIOS MÍNIMOS) 

Sem renda  até 3  mais de 3 a 6  mais de 6 a 10  mais de 10  Total (2) 

Sudeste  8,4  79,1  10,1  1,8  0,6  100,0 

Minas Gerais  8,3  84,2  6,5  0,7  0,3  100,0 

     RM Belo Horizonte  9,0  83,2  6,5  1,4  ‐  100,0 

Espírito Santo  8,6  81,5  8,0  1,2  0,6  100,0 

Rio de Janeiro  8,4  80,5  8,4  1,9  0,8  100,0 

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DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DO DÉFICIT HABITACIONAL URBANO, POR FAIXAS DE RENDA MÉDIA FAMILIAR MENSAL, SEGUNDO REGIÃO GEOGRÁFICA (SUDESTE), UNIDADES DA FEDERAÇÃO E REGIÕES METROPOLITANAS (RMs) ‐ BRASIL ‐ 2008 

ESPECIFICAÇÃO FAIXAS DE RENDA MENSAL FAMILIAR (EM SALÁRIOS MÍNIMOS) 

Sem renda  até 3  mais de 3 a 6  mais de 6 a 10  mais de 10  Total (2) 

     RM Rio de Janeiro  8,5  79,3  9,4  2,0  0,8  100,0 

São Paulo  8,3  76,2  12,6  2,3  0,6  100,0 

     RM São Paulo  8,7  75,5  13,0  2,2  0,6  100,0 

Fonte: Fundação João Pinheiro, 2008. 

Em primeiro lugar, lembra‐se que a oferta de unidades atende apenas a uma parcela da população, pois estas são, em sua maioria, destinadas à camada que possui algum capital para arcar com os custos das parcelas e taxas cobradas. Enquanto isso, àqueles que não possuem renda fixa ou baixa ou nenhuma renda – um número expressivo–, não existem opções (Figura 3). Encontram‐se, deste modo, sem perspectiva, alojados em favelas e loteamentos irregulares. Sua única oportunidade será vista mais adiante, com as remoções. 

Figura 3: Gráfico com a proporção do déficit habitacional por faixas de renda 

Fonte: Fundação João Pinheiro, 2008. 

Em segundo lugar, o processo de escolha dos terrenos em conformidade com a função social da propriedade não estaria sendo controlado pelo governo, segundo Rolnik (2009a), o que veio permitir a realização de mais construções nas periferias. Repete‐se, portanto, a segregação socioespacial pela via do planejamento. 

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Inclusive, ainda acerca do tema da falta de investimentos e dimensão dos terrenos, além dos curtos prazos para a construção, deve‐se destacar um aproveitamento máximo do espaço – refletido na alta densidade proposta para cada conjunto, além da sensação de pouca privacidade – e de projetos – traduzido na padronização excessiva das edificações, o que gera uma falta de individualidade e uma massificação dos moradores, retornando‐se à questão da estigmatização. 

Entretanto, o que se pretende salientar aqui é a problemática da falta de planejamento que englobe as diferentes demandas da população, sem se restringir à questão habitacional. Ressalta‐se, portanto, que, apesar de contar com uma unidade com provável qualidade para morar, o modo como este espaço se relaciona com o restante da cidade encontra‐se comprometido.  

Isso se deve à pouca disponibilidade de equipamentos comunitários junto à moradia. Partindo‐se de uma visão restrita da garantia aos direitos sociais – tratando‐se apenas de habitação – não se hesita em construí‐la isolada da dinâmica da cidade, onde há um baixo ou nenhum investimento público. Não se projetam ou não se concretizam os demais elementos – tais como escolas, hospitais, praças, etc. – de modo a atender o novo contingente que se desloca no território. Paralelamente, os equipamentos pré‐existentes são insuficientes – sem ter recebido as devidas ampliações antes da chegada destes novos grupos. 

Enfim, conclui‐se que sem os devidos investimentos e em locais já desprivilegiados, as camadas mais baixas da população atingidas pelos programas propostos sofrem os efeitos de lugar perversos, refletindo a degradação e permanecendo excluídas. 

A retomada das remoções – a manutenção da exclusão 

A despeito dos prejuízos gerados pela manutenção de um processo segregacionista já trabalhado neste artigo e por outros autores, um procedimento atual, concomitante e relacionado a este, atrai, então, atenção do ponto de vista da injustiça social – a retomada das remoções em prol do embelezamento da cidade. Repetindo‐se o modelo já superado do início do século XX, a cidade voltou a se tornar o cenário para novos arranjos viários – além de equipamentos comunitários de grande porte – de modo a contribuir para sua maior visibilidade. Sendo assim, considerados entraves para tais reformas, diversos moradores de favelas passaram a ter suas residências eliminadas, sendo impelidos para locais mais distantes – mais acessíveis do ponto de vista financeiro. 

A partir daí, uma vez que não se dispunha de tempo suficiente, o poder público passou a realocar esse contingente em conjuntos habitacionais já construídos ou em construção – pela lógica atual citada –, na periferia da cidade. Muitos acabaram optando por uma indenização irrisória, o que inviabilizou a moradia formal em qualquer outro lugar e ao que se sucedeu apenas uma mudança para alguma comunidade mais próxima. 

Todo este processo, além de traumático por conta do curtíssimo prazo para a mudança, falta de diálogo com os moradores e falta de perspectiva futura, tem ocorrido de forma inadequada, já que separou por grandes distâncias a população de seu local de origem – bem equipado, próximo aos vizinhos, ao trabalho e à escola. 

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É essencial ressaltar que a questão da inacessibilidade do local vem intensificar esse quadro. Ou seja, não se trata apenas do raio em que se situam os pontos de interesse para os moradores – tais como a casa de parentes ou equipamentos públicos – mas da dificuldade em acessá‐los, que se traduz em um transporte precário e caráter inóspito para a circulação no meio – seja pela falta de escala do pedestre, seja pela insegurança (Figura 4). 

Figura 4: Imagem de conjuntos à Av. Brasil, em Realengo, construído pela Caixa Econômica – um entorno abandonado 

Fonte: Acervo próprio. 

Figura 5: A implantação dos conjuntos em áreas periféricas, vazias e degradadas cria o isolamento pela descontinuidade no tecido 

Fonte: Acervo próprio. 

Dada a edificação de tais barreiras físicas e simbólicas, de acordo com entrevistas realizadas com os ex‐moradores de uma das favelas removidas – Vila das Torres, em Madureira –, e com a pesquisa realizada pelo Observatório das Metrópoles (2011) – tomada como referência – diversas pessoas tiveram de deixar seu trabalho e escola, ficando desempregados e sem estudo por um longo período de adaptação ao novo espaço de moradia. Ou seja, mais uma vez, como ao longo de um século que já se imaginava superado, não se projetou uma estrutura para recepcionar este novo contingente, pensando‐se apenas na unidade habitacional e desconsiderando‐se o conjunto que permite o acesso à cidade.  

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Além disso, agravando a problemática da localização desprivilegiada, retorna‐se à questão anteriormente comentada – os “guetos” favelizados e cercados pela violência (Figura 5). Limitando o ir e vir, bem como trazendo uma percepção limitada da cidade, tais barreiras simbólicas contribuem ainda mais para o isolamento deste contingente. Ou seja, lançando estas camadas em um local que lhes condiciona a uma baixa perspectiva de futuro e de ascensão, bem como a um limitado acesso aos meios que conduziriam a um quadro mais favorável econômica e socialmente, o poder público tem reproduzido sua exclusão social. 

Vale lembrar, ainda, que perante tal condição, bem como frente à falta de investimentos futuros à implantação dos conjuntos, diversos destes começaram a sofrer um processo de favelização semelhante ao visto no passado – como no caso da Cidade de Deus7. Deste modo, acabam por ser absorvidos pelo meio – não raramente já composto por diversas comunidades de baixa renda – assumindo suas características. Uma vez sofrendo tal processo, estes conjuntos vêm, portanto, acrescentar nova contribuição para a reprodução das condições da moradia anterior, reproduzindo‐se, igualmente, as mazelas sofridas anteriormente às remoções. 

5 CONCLUSÃO 

A partir desta análise, pôde‐se formular a ideia inicial de que, ao longo do século XX e início do século XXI, não houve uma política habitacional clara que considerasse a implantação de equipamentos comunitários junto à moradia. O que se verificou foi a existência de propostas pontuais e de baixo alcance, atreladas a políticas fragmentadas – possíveis graças à incompatibilidade de esferas do poder público e entre órgãos envolvidos. Além disso, dentre os casos em que se elaboraram projetos nos quais figuravam os referidos equipamentos, poucos os concretizaram, dadas as divergências de interesses. 

Como resultado de tais propostas, construíram‐se unicamente as unidades habitacionais em si, descoladas do entorno e, ainda, prejudicadas pelo difícil acesso, dado pelas longas distâncias e pela insuficiência dos transportes. Deste modo, não se promoveu um cenário de real inclusão social para aqueles removidos das favelas. Assim, a própria iniciativa governamental teria conduzido a uma reprodução das desigualdades sociais. 

Sendo assim, não se pode falar propriamente em “moradia”, já que esta ideia implicaria no enraizamento da população à cidade onde vive, o que se daria por meio de elementos que garantam sua cidadania – aqueles equipamentos voltados para a oferta de educação, saúde, cultura e lazer. Inversamente, ocasionou‐se, sucessivamente, a expulsão dos pobres da cidade, enviando‐os para periferias – constantes rebarbas sociais. 

A despeito de já ter sido superado – através de diversos estudos acerca do tema da habitação – este quadro permanece em vigência, mas de maneira disfarçada, sob o discurso de modernização da cidade e garantia da casa própria – o que já foi visto na década de 1960, mas sob imposição do governo autoritarista. Assim, infere‐se que estariam sendo infligidos à população de baixa renda, neste início do século XXI, os mesmos prejuízos sociais que se apresentaram ao longo do século XX. 

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Acrescentando‐se as noções de direito à cidade e efeitos de lugar, percebe‐se, portanto, como o poder público tem desconsiderado as reais necessidades da população, limitando‐se a projetos habitacionais – com, sobretudo, um baixo alcance – e promovendo seu isolamento social. A despeito de contar com um espaço salubre e legalizado para moradia, a população continua carecendo de uma série de elementos ainda exclusivos de uma minoria capaz de arcar com os custos para acessá‐los. 

Este quadro torna‐se interessante no período atual, uma vez que não se desejam fragmentos de difícil solução em meio ao tecido urbano. É de grande interesse, portanto, extirpá‐los, “empurrando‐os” para além do campo visual das elites e turistas que desfrutarão dos benefícios produzidos pelo poder público. 

Tendo em vista unicamente a promoção da cidade como espaço ideal para a recepção dos grandes eventos por vir, grandes mudanças em curso reproduzem, sucessivamente, as desigualdades sociais. Ou seja, cria‐se um cenário restrito a uma minoria e intensifica‐se a exclusão dos demais – as largas camadas de baixa renda.  

6 AGRADECIMENTOS 

A pesquisa que originou este artigo foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Agradeço a Luciana Andrade e a Eliane Bessa pela orientação e apoio. 

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VILLAÇA, Flávio. Espaço intra‐urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP, Lincoln Institute, 2001 

8 NOTAS 

1 A definição de equipamentos comunitários é dada pela Lei 6.766/79, Capítulo II, Item IV, § 2º: “Consideram‐se comunitários os equipamentos públicos de educação, cultura, saúde, lazer e similares.”. No item I do mesmo capítulo, fala‐se novamente da expressão, com redação da Lei 9.785 de 1999. Além disso, tal expressão também é encontrada na Constituição de 1988 e remarcada no Estatuto da Cidade – Lei n. 10.257. 

2 Sigla para o “Bus Rapid Transit” sistema de corredor exclusivo para ônibus, a ser implantado para conexão entre diversos pontos da cidade. Ver: <http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article‐id=1624721>. Acessado em 20 de maio de 2012. 

3 Ver, por exemplo, Harvey (2000), Bourdieu (2011) e Castells (2011). 

4 Ver, por exemplo, Bonduki (2004), Taschner (1997), Valladares (2005) e Rolnik (2009b). 

5 Dentre eles, Bonduki (2004), Burgos (2006), Perlman (1977), Rolnik (2004), Valladares (2005). 

6 A função social da propriedade é definida pela Constituição de 1988 e regulamentada pelo Estatuto da Cidade – Lei n.10.257 – com vista a atender, no parcelamento do solo, benefícios comuns à sociedade. 

7 Hoje tratada como bairro, a Cidade de Deus – originalmente construída pelo poder público para abrigar ex‐favelados – sofreu sucessivos processos de favelização, sendo, atualmente, cercada de comunidades de baixa renda, que acabaram por englobar os conjuntos originais. 

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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades 

Transportes e transformações no Rio de Janeiro de Machado de Assis  

Transportation and transformations of Rio de Janeiro in Machado de Assis  

Cinthia TRAGANTE Mestranda em História da Arquitetura e do Urbanismo pelo IAU/USP. [email protected]  

RESUMO  Durante o  século XIX, a  cidade do Rio de  Janeiro passou por diversas mudanças  sociais, econômicas, políticas  e  culturais  por  conta  de  ocorrências  históricas  marcantes  principalmente  no  período oitocentista,  como  a  vinda  da  família  real  no  início  do  século,  o  crescimento  econômico  e  as transformações políticas que  se manifestaram depois da  independência do país, o declínio do  regime escravocrata, a ascensão da economia cafeeira e o investimento no transporte e indústrias. Tais fatores contribuíram para a  transformação da  configuração urbana e  social da  cidade  carioca, emergindo, no início  do  século  XX,  uma  cidade  bastante  diferenciada  da  que  se  apresentava  no  século  anterior, particularmente  no  que  se  refere  aos  transportes  urbanos.  Diversos  destes  acontecimentos  são retratados nas obras de Machado de Assis, ambientadas nos diferenciados espaços do Rio de  Janeiro. Este trabalho busca investigar o desenvolvimento do transporte urbano na cidade do Rio de Janeiro e os impactos sociais e urbanos durante o século XIX, usando, para isso, a literatura de Machado de Assis.  

PALAVRAS‐CHAVE: Rio de Janeiro; Machado de Assis; Transportes; Século XIX.  

ABSTRACT  During the nineteenth century, the city of Rio de Janeiro has passed by several social, economic, political, cultural and historical modifications. Since 1808, when the royal family has arrived in Brasil, the city have been  radically  transformed, with  politicians  and  economic  developments  ‐like  the  independence,  the increase  of  the  economy  provided  by  the  coffee,  the  end  of  the  slave  trade  and  investments  in  the urbanism of city. Because of all these transformations, the urban  factors of Rio de  Janeiro city  in early twentieth century were very different of before, particularly  in  the  transportation. These changes have been described in the literature, especially in the novels of Machado de Assis, which had been acclimated in different contexts of Rio de Janeiro. This work investigates the increase of transportation in the city of Rio de Janeiro and the social and urban modifications during the nineteenth century, using for this the literature of Machado de Assis. 

KEYWORDS: Rio de Janeiro; Transportation; Machado de Assis; Transportation; 19th Century.  

1 INTRODUÇÃO 

Durante o século XIX a cidade do Rio de Janeiro, então capital do país e com grande importância nacional, é palco de acontecimentos históricos marcantes os quais, em parte, contribuem para que a cidade passe por várias transformações nas diversas esferas social, urbana, política e econômica.  

Até então marcada pelo cenário colonial, é a partir do século XIX – concentrando nele vários acontecimentos importantes – que a cidade começa a tomar formas mais complexas na sua apresentação urbana. A cidade carioca anterior ao desenvolvimento oitocentista mostrava‐se como aponta Abreu (1987, p. 35) como uma cidade limitada, sobretudo pelos morros, pouco expandida, 

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com a população predominantemente escrava, carente de transportes coletivo – o que implicava em habitações concentradas em um espaço limitado – e guiada política e economicamente por uma reduzida elite que se diferenciava dos demais pela forma de morar e não pela localização. Sobre a inicial dificuldade de desenvolvimento da cidade, Bruand (1981, p. 333) afirma que “[...] a cidade foi literalmente espremida entre o mar e a montanha, semeada por todos os lados de morros que constituíam terríveis obstáculos a um desenvolvimento racional!”. 

Um dos primeiros marcos do século surge com a reação em busca de desenvolver instituições de cultura e melhorar as condições materiais da cidade por conta inclusive da chegada da família real. Juntamente com a vinda dos nobres de Portugal, foi trazida grande parte de sua riqueza, incrementando a economia até então desenvolvida de forma tímida. E a partir da vinda da família real, se fez a abertura dos portos brasileiros, o que ocasionou a entrada de produtos estrangeiros aumentando o comércio nas maiores cidades, em especial o Rio de Janeiro. O constante aumento da população também contribuiu para o desenvolvimento do comércio.  

A cidade carioca era dotada de sujas e malcheirosas ruas e não contava com infraestrutura e, a partir da residência da família real, as condições urbanas da cidade recebem maior atenção. Assim, é neste momento que  

Foram feitos diversos tipos de investimentos na remodelação da cidade, entre os quais um observatório astronômico e a fundação do Jardim Botânico, junto à recém‐criada fábrica de pólvora, em uma região desabitada às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Ainda em 1808, surgiram o Banco do Brasil, a Impressão Régia, a Real Academia dos Guardas‐Marinha e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica. Dois anos depois criou‐se a Real Academia Militar (ERMAKOFF, 2006, p. 13).  

O embelezamento da cidade segundo os padrões europeus coube à Missão Francesa, chegada em 1816, trazendo artistas plásticos, arquiteto e carpinteiros, entre outros ofícios. Foram esses mesmos artistas que mais tarde, em 1826 – já com o país independente – fundaram a Academia de Belas‐Artes.  

O desenvolvimento da cidade continuou impulsionado pela transformação econômica e política guinada a partir da independência do país e da ascensão da cidade ao longo do século. Esse desenvolvimento atraiu, por sua vez “[...] numerosos capitais internacionais, cada vez mais disponíveis e à procura de novas fontes de reprodução. Grande parte deles é utilizada no setor de serviços públicos (transportes, esgoto, gás, etc.), via concessões obtidas do Estado” (ABREU, 1987, p. 35). Neste momento a cidade também atrai grande número de trabalhadores nacionais e estrangeiros aumentando progressivamente a população da cidade.  

É no século XIX, com todas estas transformações, que a cidade do Rio de Janeiro começa seu processo de estratificação social marcado na forma urbana. Ainda segundo Abreu (1987), o fator que mais contribui para tal estratificação social foi o investimento do sistema de transportes, fundamental para o seu crescimento visto que a efetiva expansão da cidade só é possibilitada a partir do momento em que esta conta com o bonde de burro e o trem a vapor.  

Os primeiros passos de expansão para além do núcleo em que se concentrava a cidade – entre os Morros do Castelo, São Bento, Santo Antônio e Conceição ‐se deu a partir do momento em que corte se instalou em São Cristóvão. Região até então afastada e separada do centro da cidade, esse bairro e seu caminho até o núcleo urbano, recebeu 

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infraestrutura como instalações de iluminação e melhoria da travessia com os aterros nas áreas de mangue. Além disso, a construção de habitações foi incentivada com a isenção de impostos, mas só para aquelas da elite. A partir de então, outras melhorias começaram a ocorrer na região entre São Cristóvão e o centro da cidade principalmente, de acordo com as necessidades locais, sendo essa região chamada então de Cidade Nova.  

Mais tarde, já impulsionada pela economia promissora do cultivo de café, os investimentos urbanos e a chegada de estrangeiros na cidade aumentando a população, além do funcionamento das primeiras diligências movidas a tração animal (1838) “a expansão da cidade ultrapassa os limites do campo de Santana e de Lapa, Catete, Glória e Botafogo, de um lado, e Cidade Nova, Catumbi, Engenho Velho e São Cristóvão, do outro” (ERMAKOFF, 2006, p. 74). A procura por estes bairros era, porém, voltada às camadas mais abastadas que tinham poder de mobilidade, isto é, podiam usufruir do transporte marítimo ou do terrestre, enquanto as pessoas menos favorecidas mantinhas suas residências no centro da cidade, mais próximas aos serviços e procura de trabalho.  

A melhoria pública em geral é vista neste contexto com a iluminação à gás instalada em algumas das ruas do centro da cidade, em 1854, com a iniciativa do Barão de Mauá, as quais no fim do século serão substituídas pelas lâmpadas elétricas; o telégrafo ligando o país à Europa em 1874; a coleta de lixo instaurada por volta de 1854; uma rede de esgotos em 1857, livrando os escravos de carregarem em barricas todo o esgoto produzido e jogarem ao mar; e obras de aterro em vários pontos da cidade possibilitando a expansão da ocupação. Vale ressaltar que a maioria destas ações se deu a partir do investimento do capital estrangeiro, muitas vezes conjugado ao Estatal.  

É também com iniciativa estrangeira, com a Botanical Garden Rail Road, que se inaugura a linha de bonde sobre trilhos puxados por animais em 1868, evento colocado por Abreu (1987) como marco divisório entre a cidade concentrada e a estratificada socialmente e com acelerada expansão. Na década de 90, inclusive, o bonde chegava até Copacabana, bairro praticamente não habitado até então. Era o início de uma fase em que o investimento do capital buscava seus lucros a partir da associação entre transporte e novos loteamentos.  

A contradição do investimento urbano na cidade aparece no fato de que ele costumavam ocorrer inicialmente no centro, local em que estava residindo a população mais pobre, causando assim a expulsão de parte da população mais empobrecida ali residente. Isto ocasiona, por sua vez, o surgimento de cortiços nesta área, já que o deslocamento para moradia no subúrbio era dispendioso. Ainda assim, outro montante populacional menos favorecido se direciona aos bairros mais longínquos e suburbanos da cidade – por conta do elevado valor imobiliário nos bairros centrais e mais nobres ‐utilizando‐se, para isso, dos trens, transporte que se instaurou ligado às camadas mais baixas.  

“Bondes e trens possibilitaram, assim, a expansão da cidade e permitiram a solidificação de uma dicotomia núcleo‐periferia que já se esboçava [...] antes de 1870” (ABREU, 1987, p. 44). Villaça também caracteriza todo este período apontado como de transição na produção do espaço urbano carioca, em que ocorre uma nova estratificação social com uma nascente burguesia e classe média. (VILLAÇA, 2001, p. 160). 

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2 LITERATURA COMO FONTE DE PESQUISA 

Este momento peculiar de transformações ocorridas no âmbito urbano carioca é bastante representado na literatura, de Machado de Assis. A relação de Machado de Assis com a sua cidade natal é um fator muitas vezes apontado – pelos seus aspectos positivos de descrição da cidade – pela crítica literária, sendo Machado considerado um dos escritores que melhor conseguiu retratar a cidade e a sociedade a que pertencia através de seus personagens. “Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil no século XIX.” (CHALHOUB, 2003, p. 17).  

Carioca nato sem praticamente nunca ter deixado a cidade do Rio de Janeiro, Machado de Assis morou e vivenciou vários espaços do Rio imperial trazendo‐os aos seus textos. Como afirma Ribeiro do Val:  

Nos livros que escreveu, Machado de Assis, escritor carioca por excelência, fixou de maneira admirável sua cidade natal. Todos os aspectos do Rio de Janeiro estão visíveis na obra machadiana. O homem e a sociedade, o meio físico e o ambiente. [...] Pelos seus romances, contos e crônicas pode‐se conhecer o que de mais característico havia no Rio de Janeiro de seu tempo. (RIBEIRO DO VAL, 1977, p. 19)  

Assim, a obra de Machado de Assis constitui uma importante fonte de estudos do ambiente carioca do século XIX, visto sua forte relação com a cidade do Rio de Janeiro e a abrangência dos contextos temporais e espaciais que são observados e narrados pelo escritor.  

Embora diversas pesquisas referentes à obra machadiana tratem da sua relação com o Rio de Janeiro, este trabalho analisa especialmente a presença do desenvolvimento da cidade, no que concerne aos transportes nela existentes, do Rio de Janeiro e as relações associadas a estas mudanças, tema pouco abordado na literatura existente.  

Como literatura, entende‐se que a obra a ser estudada se trata de uma representação da cidade carioca, isto é, a obra literária, como se sabe, não deve ser utilizada como fonte historiográfica, mas sim como base para os estudos históricos não fugindo, desta maneira, de seu caráter verossímil. A discussão sobre a verossimilhança na ficção, principalmente na prosa, é tema bastante presente na área da Literatura e é necessário levar isto em conta para a utilização da obra machadiana como estudo.  

Sabemos todos que um romance (ou um conto, ou uma novela) formula as próprias leis sob as quais se desenvolve, leis essas que cumpre ao leitor conhecer e aceitar.[...] Este [o ficcionista] inventa um mundo com base na observação, na memória e na imaginação, que o leitor deve entender como tal (MOISES, 1969, p. 90).  

Moisés (1969) ainda discute a verdade ou verossimilhança dentro do romance afirmando que não se deve entender que a ação reproduzida na obra seja literalmente ocorrências da vida real, já que assim não se trataria de ficção e perderia o caráter artístico da literatura, mas ela se organiza coerentemente como na realidade (MOISÉS, 1969, p. 90).  

Por outro lado, mesmo considerando a não obrigatoriedade do compromisso da ficção com a realidade, podemos intuir que a literatura retrata valores e acontecimentos que se passam de fato dentro do plano real  

Ou seja, a literatura busca a realidade, interpreta e enuncia verdades sobre a sociedade, sem que para isso deva ser a transparência ou o espelho da ‘matéria’ social que representa e sobre a qual interfere. A Machado de Assis, como John Gledson já sugeriu, interessava desvendar o sentido do processo histórico referido, buscar as suas causas mais profundas, não necessariamente evidentes na observação da superfície dos acontecimentos. [...] (CHALHOUB, 2003. p. 92‐93)  

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Ainda, baseando‐se no fato de Machado de Assis ser um escritor considerado pela crítica dentro dos parâmetros do movimento do Realismo, entende‐se que sua literatura tem mais aproximação com o contexto do Rio de Janeiro que outros momentos literários distintos. Sobre o Realismo, Alfredo Bosi diz que nas obras deste momento, os escritores buscam a impessoalidade diante dos objetos e das pessoas assim como procuram demonstrar de forma objetiva a verdade, ainda que esta se trate de representação. (BOSI, 2006, p. 167). O crítico literário afirma também que “O ponto mais alto e mais equilibrado da prosa realista brasileira acha‐se na ficção de Machado de Assis.” (Idem, p. 174). Desta maneira, Machado de Assis produziu textos que em grande parte se aproximam da realidade vivida na cidade, podendo então ser utilizada como ponto de partida e pesquisa – considerando‐a sempre como representação – para a compreensão dos aspectos históricos da cidade no que concerne à formação e às mudanças da cidade no século XIX.  

Para análise de um texto de caráter literário entende‐se que a obra a ser estudada se trata de uma representação da cidade carioca, isto é, a obra literária, como se sabe, não deve ser utilizada como fonte historiográfica, mas sim como base para os estudos históricos não fugindo, desta maneira, de seu caráter verossímil. Moisés (1969, p. 90) discute a verdade ou verossimilhança dentro do romance afirmando que não se deve entender que a ação reproduzida na obra seja literalmente ocorrências da vida real, já que assim não se trataria de ficção e perderia o caráter artístico da literatura, mas ela se organiza coerentemente como na realidade. Nesse sentido, a obra de Machado de Assis pode ser utilizada como ponto de partida e pesquisa para a compreensão dos aspectos históricos no que concerne à formação e às mudanças da cidade no século XIX.  

Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo a análise e compreensão de algumas das transformações ocorridas na cidade durante o século XIX, buscando inclusive compreender como a ambientação é atuante na construção do enredo dos romances machadianos. Para isso, toma‐se como base para os estudos as representações presentes nos romances de Machado de Assis, sendo eles: Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876), Iaiá Garcia (1878), Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891), Dom Casmurro (1899) e Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908)1.

 

 

A metodologia utilizada pra o trabalho se concentra na leitura minuciosa dos romances machadianos e na sistematização dos espaços descritos e suas características pelo escritor em seus romances. Tais informações, por sua vez, são analisadas em conjunção com a historiografia do tema, ou seja, sobre arquitetura urbanismo do século XIX no Brasil. Desta maneira, pode‐se compreender as transformações socioespaciais que ocorreram no Rio de Janeiro neste período e suas implicações dentro da obra literária.  

3 MOBILIDADE URBANA E DISTINÇÃO SOCIAL 

Como vimos, há uma forte relação entre o crescimento urbano da cidade e o desenvolvimento dos sistemas de transportes, uma vez que o poder de mobilidade foi um dos fatores que contribuiu para que a população se deslocasse para bairros mais afastados do centro da cidade. Durante o século XIX, houve uma intensificação do sistema de transportes coletivo, com mais bondes por exemplo, assim como a importação de veículos individuais. 

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As primeiras diligências da cidade circundavam os bairros que até então eram mais valorizados, como São Cristóvão. As gôndolas, que eram os primeiros ônibus que surgiam no ano de 1838, puxados à tração animal, também tinham linhas nesse bairro além de outros menos habitados pela população urbana, como Andaraí, Tijuca e Engenho Velho (ABREU, 1987, p. 37;41). A família de Bento Santiago, assim como seus amigos, costumavam utilizar os ônibus para se deslocar. Seu amigo Escobar o utiliza para ir embora da casa de Bento “Escobar despediu‐se logo depois de jantar; fui levá‐lo à porta, onde esperamos a passagem de um ônibus.” (DC, LXXI, p. 883), assim como o pequeno Bentinho, “[...] minha mãe achou o dia quente e não consentiu que eu fosse a pé; entramos no ônibus, à porta de casa.” (DC, XXIII, p. 833).  

A partir das últimas décadas do século XIX os sistemas de transporte vão influenciar com maior intensidade a expansão da cidade. A inauguração da Estrada de Ferro Dom Pedro II (Central do Brasil), em 1858, possibilita que áreas no subúrbio fossem habitadas, enquanto o bonde de burro surgido dez anos depois facilitava a expansão rumo às zonas norte e sul. A Botanical Garden Railroad Company foi a pioneira quanto ao funcionamento dos bondes com trajetos mais restritos ao centro da cidade, expandindo as linhas gradualmente a outros bairros no decorrer dos anos.  

O surgimento do bonde, de certa forma, propiciou a instalação de pessoas em áreas mais distantes do centro, mas que continham o mesmo conforto daquelas freguesias mais requisitadas pelas camadas abastadas. Assim, cresce a habitação urbana em bairros que até então eram tomados apenas por chácaras, mas que começam a ser atendidos pelos bondes e tinham terrenos de valor mais acessível.  

A partir de então, outras companhias de bonde começam a surgir na cidade, adentrando a vários bairros como São Cristóvão, Tijuca, Gamboa, Catumbi, Caju, Santo Cristo e Rio Comprido e com isso “a novidade nos transportes provoca a modernização desses bairros” (TRIGO, 2000, p. 197).  

O bonde é descrito nos romances de Machado de Assis sendo utilizado por alguns personagens mas somente nos últimos de seus romances. Os primeiros romances se passam antes desta grande expansão dos bondes na cidade, isto é, os enredos datam da década de 50 e meados da 60. Assim, nestes iniciais não existem passagens que mostrem seus personagens se deslocando pela cidade com bondes. À medida que este meio de transporte vai se inserindo de fato na vida urbana, Machado o descreve de forma mais incisiva em seus enredos. Deste modo, só nos dois últimos romances (Esaú e Jacó, com o enredo a partir de 1871 e Memorial de Aires, com enredo iniciado em 1888) é que, de fato, o bonde faz parte das descrições da cidade carioca. Um dos personagens adeptos ao uso do bonde é Natividade (EJ) que o utiliza para ir às compras e inclusive encontra o conselheiro Aires no veículo. Ambos estes personagens pertencem a famílias em boas condições sociais, enfatizando quem eram aqueles que utilizavam o bonde.  

Quando, às duas horas da tarde do dia seguinte, Natividade se meteu no bonde, para ir a não sei que compras na Rua do Ouvidor, levava a frase consigo. A vista da enseada não a distraiu, nem a gente que passava, nem os incidentes da rua, nada [...] (EJ, XXXVIII, p. 993).  

Fidélia tem o mesmo motivo para uso do transporte: “Quando cheguei hoje à cidade, eram duas horas, e ia a sair do bonde, chegou‐se a ele a bela Fidélia, com o seu gracioso e austero meio‐luto de viúva. Vinha de compras, naturalmente. Cumprimentamo‐nos, dei‐lhe a mão para subir” (MA, 12/09/88, p.,1149).  

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Com a articulação dos bondes de diversas companhias intensifica‐se, neste momento, a associação entre as linhas de bonde e o crescimento da cidade guiado pelo loteamento. Exemplo disso é a Companhia Ferro‐Carril de Vila Isabel, pertencente ao Barão de Drummond, que surgiu em 1872 e atendia Vila Isabel, Andaraí, Grajaú, Maracanã, São Francisco Xavier e Engenho Novo. “A associação bonde/loteamento é bem exemplificada em Vila Isabel, onde o bonde demandava o bairro do mesmo nome, criado em 1873 pela Companhia Arquitetônica, também da propriedade de Drummond, em terrenos outrora pertencentes à família imperial” (ABREU, 1987, p. 44).  

Já por volta dos anos 80, a Companhia do Jardim Botânico (ex‐Botanical Garden Railroad Company) procura expandir suas linhas até o bairro de Copacabana, até então caracterizado como um pitoresco arrabalde. Novamente funciona a associação entre transporte e loteamento, pois a chegada do bonde até lá e as melhorias que foram feitas no bairro para que isso acontecesse aumentou a procura pelos novos loteamentos do mesmo.  

Os trens, no entanto, tiveram papel diverso dos bondes. Estes atendiam a áreas suburbanas que eram marcadas pela predominância do ambiente rural. As linhas de trem então levaram a população urbana até locais como Sapopemba, Cascadura ou Nova Iguaçu. Essas regiões passaram a ter mais ocupação, assim como as áreas entre diferentes estações, passando então a transformar antigos espaços rurais em “pequenos vilarejos, e a atrair pessoas em busca de uma moradia barata, resultando daí uma elevação considerável da demanda por transporte e a consequente necessidade de aumentar o número de composições e de estações” (ABREU, 1987, p. 50).  

Bento Santiago, já morando no Engenho Novo, isto é, quando trens e bondes já faziam parte do cotidiano carioca, utiliza o trem para ir até a sua casa, como narra no capítulo de entrada do romance:  

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central uma rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou‐me, sentou‐me ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando‐me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes” (DC, I, 809).  

Em pouco tempo mais estações foram acrescidas e as viagens foram adequadas aos horários de entrada e saída dos trabalhadores em seus empregos enquanto continuava a se expandir as áreas próximas à passagem da linha de trem.  

O processo de ocupação dos subúrbios tomou, a principio, uma forma tipicamente linear, localizando‐se as casas ao longo da ferrovia e, com maior concentração, em torno das estações. Aos poucos, entretanto, ruas secundárias, perpendiculares à via férrea, foram sendo abertas pelos proprietários de terras ou por pequenas companhias loteadoras, dando inicio assim a um processo de crescimento radial, que se intensificaria cada vez mais com o passar dos anos (ABREU, 1987, p. 50).  

E assim como ocorreu com os bondes, as linhas de trem foram se multiplicando no decorrer dos anos, atingindo outros bairros e transportando mais pessoas. Mas já no fim do século, bondes e trens passavam por uma crise de superlotação pois o uso se tornava cada vez mais intenso.  

As viagens a cidades vizinhas, como Petrópolis, quando já tinham acesso por trem, eram feitas por este meio de transporte. O conselheiro Aires assim viaja com a companhia do desembargador Campos. 

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Campos achava grande prazer na viagem que íamos fazendo em trem de ferro. Eu confessava‐lhe que tivera maior gosto quando ali ia em caleças tiradas a burros, umas atrás das outras, não pelo veículo em si, mas porque ia vendo, ao longe, cá embaixo, aparecer a pouco e pouco o mar e a cidade com tantos aspectos pinturescos. O trem leva a gente de corrida, de afogadilho, desesperado, até à própria estação de Petrópolis. E mais lembrava as paradas, aqui para beber café, ali para beber água na fonte célebre, e finalmente a vista do alto da serra, onde os elegantes de Petrópolis aguardavam a gente e a acompanhavam nos seus carros e cavalos até à cidade; alguns dos passageiros de baixo passavam ali mesmo para os carros onde as famílias esperavam por eles (MA, Segunda‐Feira, p. 1106).  

Também em Niterói se intensificou a ida e permanência, constituindo local de residência alternativa, após a inauguração do serviço das barcas a vapor entre o Rio e esta cidade. A navegação era feita pela Sociedade Navegação de Nitheroy e foi implementada para suprir as necessidades comerciais entre os dois locais, mas tornou‐se transporte de passeio no decorrer do século, com barcas que saíam de hora em hora, desde as seis da manhã, até o fim da tarde.  

Mas além dos transportes coletivos, havia também o transporte particular, com diversos tipos de carros de aluguel ou de posse das famílias, disseminados principalmente a partir da chegada da corte portuguesa, em 1808. Dentre estes veículos temos várias passagens nos textos de Machado, que discorrem desde os mais antigos, como a cadeirinha e a sege, até os que na época eram os mais atuais e elegantes. Táti (1961) dedica um capítulo a esses meios de transporte, apontando a ocorrência de tais veículos nos textos machadianos.  

Vale a pena apontar as características de cada um desses veículos para compreender a diferença, inclusive socioeconômica, envolvida em cada tipo.  

Havia, desde os tempos coloniais, a cadeirinha, que constituía uma espécie de adaptação da rede e era utilizada por pessoas mais abastadas, carregados por seus escravos. Era restrita aos principais homens e, durante o XVIII, as mulheres só podiam utilizá‐las quando parte da nobreza.  

É em uma cadeirinha que Brás Cubas vê Marcela pela primeira vez, “Vi‐a sair de uma cadeirinha, airosa e vistosa, um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma coisa que nunca achara nas mulheres puras” (MP, XIV, p. 533). Também numa cadeirinha ocorre a trágica morte da avó de Quincas Borba no episódio que figura também uma sege. Pode‐se concluir, neste episódio a nobreza da avó de Quincas, o que enfatiza sua riqueza deixada para Rubião.  

— Foi no Rio de Janeiro, começou ele, defronte da Capela Imperial, que era então Real, em dia de grande festa; minha avó saiu, atravessou o adro, para ir ter à cadeirinha, que a esperava no Largo do Paço. Gente como formiga. O povo queria ver entrar as grandes senhoras nas suas ricas traquitanas. No momento em minha avó saía do adro para ir à cadeirinha, um pouco distante, aconteceu espantar‐se uma das bestas de uma sege; a besta disparou, a outra imitou‐a, confusão, tumulto, minha avó caiu, e tanto as mulas como a sege passaram‐lhe por cima (QB, VI, p. 646).  

Facilitando o deslocamento, surgem, mais adiante, os carros movidos à tração animal com constantes melhorias em termos de conforto e velocidade, surgindo o coche. Seguido dele, outros veículos vão tomando características próprias. A carruagem, por exemplo, constitui, de certa forma, um aperfeiçoamento do coche, pois, com mudanças em relação a suspensão da caixa, trazia mais conforto e estabilidade além da boleia que era onde se sentava o cocheiro, a frente, trazendo mais visibilidade e precisão de conduta a este. De maneira geral, a carruagem era associada às viaturas de luxo (MHN).  

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Ter tais veículos eram sinônimo de luxo. O pai de Brás Cubas, homem de posses, fala da compra de um coche: “Bebeu o último gole de café; repoltreou‐se, e entrou a falar de tudo, do Senado, da Câmara, da Regência, da restauração, do Evaristo, de um coche que pretendia comprar, da nossa casa de Mata‐cavalos...” (MP, XXVI, p. 548). E o Nóbrega, rico homem que queria se casar com Flora (EJ), tem uma bela carruagem, o que enfatiza sua riqueza “Um deles valia mais que todos pela carruagem, — tirada por uma bela parelha de cavalos, — capitalista do bairro.” (EJ, CII, p. 1074) assim como Dona Úrsula, viúva do conselheiro Vale: “Dona Úrsula meteu‐se na carruagem, logo depois do jantar [...]” (HE, II, p. 281).  

Também Valeria (IG), possui uma carruagem, dentre seus outros pertences, como a casa de veraneio em Santa Teresa e outras de aluguel, como a da Tijuca. Sua posição social também é alta, tanto que impede que seu filho se case com Estela, filha de um ex‐empregado de seu marido desembargador, pois a considera inferior à sua posição social e asssim não compátivel com Jorge. É com a carruagem que os três vão visitar a casa da Tijuca, local onde ocorre uma cena na história do truncado romance de Jorge e Estela.  

Um dia, vagando uma casa de Valéria no caminho da Tijuca, determinou‐se a viúva a ir examiná‐la, antes de a alugar outra vez. Foi acompanhada do filho e de Estela. Saíram cedo, e a viagem foi alegre para a moça, que pela primeira vez ia aquele arrabalde. Quando a carruagem parou, supunha Estela que mal tivera tempo de sair da Rua dos Inválidos (IG, III, p. 411).  

Semelhante à carruagem era a berlinda, veículo de origem alemã. Homens de cargos importantes – o Vice‐Rei e os funcionários mais renomados – a utilizavam. Seus custos de manutenção com os cavalos e o cocheiro eram altos, além de ser pouco adaptável as tortuosas e curvas ruas das cidades brasileiras.  

Já o coupé, citado várias vezes por Machado de Assis em seus romances era uma carruagem de origem francesa que acomodava somente um passageiro. No coupé, o condutor ia à frente separado do passageiro por um vidro. “O carro em voga entre as famílias abastadas do tempo de Rubião era o cupê, carruagem fechada de quatro rodas, com dois assentos, servida por lacaio e cocheiro na almofada, fardados, e puxada por mulas ou cavalos, conforme as condições do dia” (TÁTI, 1961, p. 68). Ainda assim, Rubião acha‐o pouco elegante para toda a cerimônia em que ele sonhava para seu belíssimo casamento  

Naquele dia e nos outros, compôs de cabeça as pompas matrimoniais, os coches, — se ainda os houvesse antigos e ricos, quais ele via gravados nos livros de usos passados. Oh! grandes e soberbos coches! Como ele gostava de ir esperar o imperador, nos dias de grande gala, à porta do paço da cidade, para ver chegar o préstito imperial, especialmente o coche de Sua Majestade, vastas proporções, fortes molas, finas e velhas pinturas, quatro ou cinco parelhas guiadas por um cocheiro grave e digno! Outros vinham, menores em grandeza, mas ainda assim tão grandes que enchiam os olhos. Um desses outros, ou ainda algum menor, podia servir‐lhe às bodas, se toda a sociedade não estivesse já nivelada pelo vulgar coupé. Mas, enfim, iria de coupé; imaginava‐o forrado magnificamente, de quê? De uma fazenda que não fosse comum, que ele mesmo não distinguia, por ora; mas que daria ao veículo o ar que não tinha. Parelha rara. Cocheiro fardado de ouro. Oh! mas um ouro nunca visto (QB, LXXXI, p. 712). 

Anteriores aos famosos coches e coupés, eram presentes as seges e cabriolés, este último teve um período curto, caindo em desuso. A sege era mais simples, podendo contar com duas ou quatro rodas com cortina na frente. É uma velha sege que a família de Bentinho mantém. 

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Em pequeno, lembra‐me que ia assim muita vez com minha mãe às visitas de amizade ou de cerimônia, e à missa, se chovia. Era uma velha sege de meu pai, que ela conservou o mais que pôde. [...]  

[...] Era uma velha sege obsoleta, de duas rodas, estreita e curta, com duas cortinas de couro na frente, que corriam para os lados quando era preciso entrar ou sair. Cada cortina tinha um óculo de vidro, por onde eu gostava de espiar para fora. (DC, LXXXVII, pp. 894/895).  

Também havia o tílburi que era um “veículo pequeno, sem boléia, com apenas dois assentos e duas rodas e puxado por um só animal” (TÁTI, 1961, p. 71). Os tílburis aparecem muitas vezes nos romances machadianos como carros de aluguel, que circundavam as ruas com seus passageiros e ficavam muitas vezes estacionados no Largo de São Francisco à espera de quem necessitasse, como Rubião que andava indeciso pela cidade: “Pensou em ir ao teatro, mas era tarde. Então dirigiu‐se ao Largo de São Francisco para meter‐se em um tílburi e ir para Botafogo” (QB, XLV, p. 677), ou Bento indo ao enterro de Escobar, “No tílburi em que andei uma ou duas horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminário, as relações de Escobar, as nossas simpatias, a nossa amizade, começada [...]” (DC, CXXII, p. 926), ou ainda as indas e vindas de Estévão à casa de Luís Alves (ML): “Meia‐noite estava a pingar; uma pessoa descia de um tílburi e batia‐lhe à porta. [...] Mas só lhe respondeu o rumor dos pés que desciam, e pouco depois o do tílburi que rolava surdamente na terra úmida da praia” (ML, XVI,  

p. 255‐259).  

Ainda havia o landau que também se caracterizava como carro de luxo com dupla capota, e a vitória, que era uma carruagem descoberta com quatro rodas.  

A família Santos, caracterizada como abastada em todo o romance (EJ) tinha toda a elegância para usar os mais luxuosos carros como a vitória, “Um vitória da Santos esperava ali os rapazes, a conselho e por ordem da mãe, que buscava todas as ocasiões e meios de os fazer andar juntos e familiares” (EJ, XC, p. 1060), ou os landaus  

No cais pharoux esperavam por eles três carruagens, — dois coupés e um landau, com três belas parelhas de cavalos. A gente Batista ficou lisonjeada com a fineza da gente Santos, e entrou no landau. Os gêmeos foram cada um no seu coupé. A primeira carruagem tinha o seu cocheiro e o seu lacaio, fardados de castanho, botões de metal branco, em que se podiam ver as armas da casa. Cada uma das outras tinha apenas o cocheiro, com igual libré. E todas três se puseram a andar, estas atrás daquela, os animais batendo rijo e compassado, a golpes certos, como se houvessem ensaiado, por longos dias, aquela recepção. De quando em quando, encontravam outros trens, outras librés, outras parelhas, a mesma beleza e o mesmo luxo. (EJ, LXXIII, p. 1041). 

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Figura 1‐ Mapeamento dos espaços citados nas obras de Machado de Assis referentes ao deslocamento e mobilidade urbana. 

 Fonte: Produção própria sobre a planta da cidade (1890), in CZAJKOWSKI (2000). 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O século XIX, no qual se passam os enredos dos romances analisados, em relação às alterações e desenvolvimento da cidade do Rio de Janeiro, foi um período em que as mudanças econômicas e políticas e também alterações na sociabilidade e costumes, acarretaram modificações na maneira como se apresentava a organização da cidade.  

Contemporâneo a estas alterações que estavam ocorrendo a seu redor e bastante observador, Machado de Assis retratava sua sociedade de forma muito bem caracterizada entrelaçando aspectos sociais, espaciais e econômicos, inclusive demonstrando isso através da descrição de seus personagens.  

Especificamente sobre a forma como se apresentam o uso dos transportes dentro da literatura machadiana, a descrição dos diferentes tipos de transportes utilizados pelas distintas classes sociais que neles aparecem, vai se modificando à medida que o sistema de transporte cresce na cidade. Também é notável, em Machado, que a ambientação faz parte da construção social e cultural dos personagens, evidenciando, através das características dos espaços e dos usos de 

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diferentes modalidades de transporte, marcos sociais e culturais que buscavam ser criados pelo narrador. Claramente se vê, através dos espaços narrados, que Machado pouco descreve a população mais empobrecida, dando prioridade à descrição da elite e os valores que a faziam soberana, o que pode ser percebido inclusive na demarcação predominante da mobilidade ao longo da orla (Figura 1), em detrimento dos espaços suburbanos para os quais avançavam os trens, por exemplo. Tratando‐se de Machado de Assis, essa preferencia pela descrição da elite talvez possa ser, na verdade, uma crítica à sociedade que estava se formando na então capital brasileira, pautada prioritariamente pelos valores guiados pela aparência – como morar em boa localização, ter posses e mostrar‐se a sociedade da melhor maneira possível ‐como muitas vezes retratado ironicamente em suas obras. Os transportes, dentro da obra machadiana, enfatizam tais aspectos, sendo nitidamente demarcadores sociais.  

Cabe ainda ressaltar que a compreensão das relações da cidade com a presença de uma fonte que não é unicamente a consagrada pela historiografia, isto é, o estudo dos aspectos relacionados ao urbanismo através da literatura, evidencia a riqueza que pode trazer a relação de troca entre diferentes objetos de estudo. 

5 REFERÊNCIAS  

ABREU, Maurício de. Evolução Urbana do Rio de Janeiro. 3 ed. Rio de Janeiro, IPLANRIO, 1987. 

AGUIAR, Luiz Antonio. Almanaque Machado de Assis: vida, obra, curiosidades e bruxarias literárias. Rio de Janeiro: Record, 2008. 

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. 

BRUAND Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. Perspectiva, São Paulo, 1981. 

CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: Historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 

COARACY, Vivaldo. Memórias da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955. 

COUTINHO, Afrânio (org.) Machado de Assis: Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2006. 

CZAJKOWSKI, Jorge. Do cosmógrafo ao satélite: mapas da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Centro de Arquitetura e Urbanismo, 2000. 

ERMAKOFF, George. Rio de Janeiro 1840‐1900 ‐Uma crônica fotográfica. Rio de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2006. 

GUIMARÃES, H.S. & SACCHETTA, V. (orgs.) A olhos vistos: uma iconografia de Machado de Assis. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2008. 

MOISES, Massaud. A Análise Literária. São Paulo: Cultrix, 1969. 

REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva,1978. 

REIS, Nestor Goulart. Evolução urbana do Brasil. São Paulo, Liv Pioneira Ed/EDUSP, 1968. 

SEVCENKO, Nicolau (Org.). Historia da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 

TÁTI, Miécio. O Mundo de Machado de Assis: o Rio de Janeiro na obra de Machado de Assis. São Paulo: São José, 1961. 

TRANSPORTE URBANO NO BRASIL. In: Museu Virtual do Transporte Urbano. Disponível em: http://www.museudantu.org.br/QBrasil.htm. Acesso em 03 fev. 2011. 

TRIGO, Luciano. O viajante imóvel: Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu tempo. Rio de Janeiro: Record, 2000. 

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VAL, Valdir Ribeiro do. Geografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: São José, 1977. 

VILLAÇA, Flávio. O espaço intra‐urbano brasileiro. São Paulo: Studio Nobel / FAPESP / Lincoln Institute, 2001 

6 NOTAS 

1 Para facilitar a compreensão, utilizou‐se, neste trabalho, as referências das citações dos romances de Machado de Assis com a seguinte sequência: sigla da obra, capítulo, página. Sendo as obras utilizadas e suas siglas: Ressurreição (RE), A Mão e a Luva (ML), Helena (HE), Iaiá Garcia (IG), Memórias Póstumas de Brás Cubas (MPBC), Quincas Borba (QB), Dom Casmurro (DC), Esaú e Jacó (EJ) e Memorial de Aires (MA); e as páginas referentes à edição organizada por Afrânio Coutinho (2006), indicada nas referências. 

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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades 

Suportes de memória da Comarca do Rio das Mortes: a encruzilhada de rotas e caminhos luso‐brasileiros 

Marília Fátima Dutra de Ávila CARVALHO Mestre em Geografia/UFMG; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Professora da Escola de Design/UEMG. [email protected] 

Fernanda Borges de MORAES Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAU/USP; Professora do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura/UFMG; Coordenadora do Programa de Pós‐graduação em Arquitetura e Urbanismo – NPGAU/UFMG. [email protected] 

RESUMO Caminhos e rotas fariam parte de um acervo operacional museal? Caminhos e rotas parecem‐nos documentos  vivos  (ou  fontes  documentais)  merecedores  de  interesse  enquanto  objeto  de preservação, pesquisa  e  comunicação por parte de um museu?  Esse  artigo  se dedica  a discutir sobre suportes de memória da antiga Comarca do Rio das Mortes  (1714‐1892), seus caminhos e rotas de abastecimento das regiões mineradoras. Julgamos que, na rede urbana e de estradas da Comarca do Rio das Mortes há paisagens, caminhos, estruturas edificadas e sítios que merecem figurar  como  acervo  operacional  de  museus  históricos,  dinamizadores  de  projetos  curatoriais interativos e atraentes à visitação ao museu. 

PALAVRAS‐CHAVE: Museu. Acervo operacional. Suportes de memória. Comarca do Rio das Mortes. 

ABSTRACT  Paths and routes would be part of operating a museum collection? Paths and routes appear to be living  documents  (or  documentary  sources)  as  an  object  of  interest  worthy  of  preservation, research and communication on the part of a museum? This article  is dedicated to discussing the storage media of the former Comarca do Rio das Mortes (1714‐1892),  its ways and supply routes of  the mining  regions. We believe  that  in  the urban network of  roads and  the County of Rio das Mortes  there are  landscapes,  roads, built  structures and  sites  that deserve  to  rank as operating museums  historic  collection,  curatorial  project  interactive  and  attractive  to  visitors  to  the museum. 

KEYWORDS: Museum. Collection operations. Storage media. Comarca do Rio das Mortes. 

1 INTRODUÇÃO 

Em março de 2012, conversando com professores da Escola de Design da Universidade Estadual de Minas Gerais‐UEMG, procurávamos algumas estratégias didáticas para provocar o interesse dos alunos, nas visitações culturais a museus históricos, previstas no curso introdutório de Museologia. A turma compunha‐se de jovens arquitetos e designers gráficos, com interesses diversos. Os primeiros detinham‐se nas edificações dos museus e na paisagem do entorno; os graduandos em Design manifestavam especial interesse por souvenirs comercializados na lojinha do museu, assim como pelos projetos museográficos, porque ali se abriria espaço para trabalhos futuros. Já os Naquela 

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ocasião, nos debruçávamos sobre pequenos objetos do acervo tradicional de museu histórico (neste caso, objetos, fotografias, textos, ícones, publicações, réplicas, maquetes, etc.). A lojinha explorava uma vertente pragmática, eivada de lugares‐comuns já por demais explorados pelo turismo e suas campanhas, sobretudo, de valorização do patrimônio cultural e da história das cidades, sobretudo as do “período do ouro”.  

No entanto, carecíamos de estratégias pedagógicas mais eficientes para a abordagem do acervo operacional, aqui entendido como o tratamento museológico de paisagens, esculturas, monumentos, equipamentos, estruturas edificadas que são tornados objetos musealizados e incorporados ao acervo. Perguntávamo‐nos: os velhos casarões, que costumam abrigar os museus visitados, são objetos passíveis de musealização? As vias urbanas e os caminhos interurbanos que dão acesso aos museus são objetos museais? As encruzilhadas onde esses caminhos tem encontro com outros poderiam ser tratadas museologicamente? Entendíamos que sim, tanto os casarões, quanto as vias, os caminhos e as encruzilhadas poderiam fazer parte do seu acervo operacional, desde que convenientemente tratados como suportes de memória.  

Mas a dificuldade residia, justamente, em qualificar tais objetos como suportes de memória, porque o mundo moderno/ contemporâneo destruiu muitos trechos daqueles antigos caminhos; hoje em dia os casarões, os caminhos de acesso e as encruzilhadas reduziram‐se a fragmentos de memória, desconectados, perdidos dentro de alguma cidade colonial mineira, inserida num contexto urbano contemporâneo, numa nova ordem econômica, num novo tipo de vida social... 

Como, então, abordar as potencialidades de acervos operacionais de museus, num contexto didático‐pedagógico – mais especificamente, no ensino introdutório da Museologia –, para que os alunos avancem em suas análises, na contramão dos lugares‐comuns contemporâneos, e agucem a sensibilidade para explorar dimensões singulares, que enunciem outras narrativas possíveis? 

Exploraremos, neste trabalho, em caráter narrativo, duas mitologias gregas: Hécate, a deusa das encruzilhadas, e as musas, filhas de Mnemósis. Entendemos, nesse contexto, museu como um lugar de memória, capaz de enunciar, dialogicamente, discussões intergeracionais, confluências e percepções de camadas enunciativas que mostram diferentes poéticas dentro de um mundo, com suas permanências mas também  em rápida transformação histórica e cultural. 1 

Caminhos poderiam fazer parte de um acervo operacional museal? Caminhos e rotas podem ser considerados documentos vivos (ou fontes documentais) merecedores de interesse enquanto objeto de preservação, pesquisa e comunicação por parte de um museu. Mais especificamente com relação aos nossos interesses de pesquisa e aos museus explorados no curso de Museologia, como isso se aplicaria à antiga Comarca do Rio das Mortes e seus caminhos e rotas 2 de abastecimento das regiões mineradoras? Na transformação das cidades da Comarca do Rio das Mortes, que paisagens, equipamentos, caminhos, sítios, estruturas edificadas merecerem figurar como acervo operacional de museus históricos? Esses são os recortes que trataremos, a seguir. 

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1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A ANTIGA COMARCA DO RIO DAS MORTES: NOTAS PARA PESQUISAS E APLICAÇÕES 

A Comarca do Rio das Mortes 3 foi uma das divisões judiciárias criadas em território mineiro nas primeiras décadas do século XVIII, hoje correspondendo, aproximadamente,  às macrorregiões da Mata, Sul de Minas, Centro‐Oeste de Minas e parte da Central do Estado. Apesar das inúmeras divisões territoriais sofridas, existiu entre 1714 e 1892. Inicialmente um extenso território, sua rede urbana destacava‐se, já em meados do século XVIII, pela presença de inúmeras trilhas, caminhos, rotas, estradas, ao longo dos quais a maior parte dos núcleos urbanos mineiros se consolidou, dando origem a importantes polos que articulavam rotas de abastecimento não só com regiões mineradoras, mas também com as demais capitanias. Muitos caminhos desapareceram, outros se tornaram leito das ferrovias, sendo que os principais constituem, hoje, parte expressiva da rede rodoviária federal e estadual. A maioria das cidades atuais, na Comarca do Rio das Mortes, nasceu dos arraiais mineradores, junto a fortificações, acampamentos militares, ao lado de registros que coibiam o contrabando de minerais e gemas, em fazendas, ao longo dos seus principais rios, nas encruzilhadas e ao longo dos caminhos... 

As rotas abertas pelos primeiros empreendedores se orientavam pelo curso dos rios mais caudalosos, mas também pelas linhas de cumeadas e meia‐encostas, no relevo suavemente amorrado da região. Cabe ressaltar que há descrições pormenorizadas, em vários documentos coevos, que também mencionam cursos d’água menores, em extensão, os quais, no entanto, não figuram nos mapas coloniais, sendo este um dificultador para a pesquisa documental contemporânea.  

Com o avanço das pesquisas documentais – no sentido de se localizar os primeiros registros dos mapas coloniais, em comparação (ou superposição) a mapeamento recente que contenha um registro preciso da orografia, da hidrografia, dos recursos minerais existentes no subsolo –, é possível reconstituir, com alguma precisão, o traçado das antigas rotas de abastecimento na Comarca do Rio das Mortes. Vê‐se que há aqui o consórcio de pesquisa de cartografia histórica, associada à documentação de base tecnológica, a partir de fontes dos séculos XX ‐XXI, cotejadas a fontes do século XVIII e XIX. Além de identificar fontes de cartografia histórica é necessário cotejar a informações urbanísticas, tais como ordenações urbanas, emanadas do poder eclesiástico e do poder cível na Comarca do Rio das Mortes. É um tipo de pesquisa que julgamos importante como suporte aos setores de pesquisa e documentação de redes de museus. 

Recontextualizar os museus históricos no tecido urbano e na rede interurbana dos quais se originaram não só as edificações antigas que os sediam, mas também seu próprio acervo significa expandir ser acervo operacional de modo a enriquecer a experiência de seus visitantes,no sentido de enunciar/ revelar novas percepções do passado e do presente. Um aparte: no caso do curso introdutório de Museologia e também da disciplina Planejamento Interpretativo, perguntas provocativas são extremamente úteis para despertar o olhar do aluno, numa visita ao museu, por exemplo: por que a Rua Direita se chama Rua Direita? Que diálogo intergeracional o museu poderia fomentar em torno desse mote? As respostas seriam, na verdade, “chaves de leitura” para orientar o diálogo: a Rua Direita ligava as fazendas ao adro da igreja principal? Ligava a entrada à saída da vila? Essa rua ficava à direita de que? Ou “direita”(directa) era um jeito de falar culto que desapareceu com os antigos colonos 

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portugueses e se corrompeu na tradição oral? Há várias explicações, ou, como queiram, várias memórias. Conforme já mencionado, entendemos museu como um lugar de memória, capaz de enunciar, dialogicamente, discussões intergeracionais, confluências e percepções de camadas enunciativas que mostram diferentes poéticas dentro de um mundo, com suas permanências mas também  em rápida transformação histórica e cultural. 

O ouro encontrado nos aluviões implicou o surgimento de assentamentos humanos ao longo de cursos de água... Mas havia a dificuldade de se vencer o leito de rios, a vau... Os tropeiros percorriam longos trechos margeando rios até que encontrassem em canal estreito onde pudesse lançar troncos de árvores, amarradas lado a lado, para atravessar as tropas em segurança. Caso os rios fossem largos demais, amarravam os animais pelo pescoço com cordas e guiavam, a nado, o “feixe de mulas” por cordames recolhidos em carretilhas, tal como manuseavam cordas ao mar... As dificuldades eram muito grandes, perdiam‐se vidas, perdiam‐se cargas, gerando a demanda por infraestrutura. A Coroa enviou engenheiros militares portugueses aptos a elaborar cartas, plantas, esboços e projetos de pontes e obras náuticas, estradas, fortificações, arruamentos... Esses engenheiros fizeram escola no Brasil, difundiram conceitos novos, ensinaram técnicas, implantaram tecnologias construtivas. Há muito que se pesquisar sobre a contribuição da engenharia militar no Brasil. 

Há muito que se pesquisar sobre o urbanismo colonial e imperial no Brasil. André Guilherme Dornelles Dângelo (2006) identificou, em extensa e minuciosa pesquisa, que houve uma translação da cultura arquitetônica religiosa, barroca, de Portugal para o Brasil colonial. Há muitas evidências por ele apontadas na cultura arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa, expressas na maneira como os arquitetos, mestres‐de‐obras e construtores produziram a arquitetura religiosa em Ouro Preto, Sabará, Mariana, São João Del Rei, Congonhas etc. Porém ainda é necessário debruçar sobre a história produção do urbanismo no Brasil. Teria havido também uma tradição urbanística passada de lá para cá? Houve cópias? Houve aprendizado em oficinas? Haveria tratadística publicada em Portugal (ou Europa) que tivesse sido aplicada ao Brasil? Há testemunhos “impressos” em documentos vivos como pontes, cavas de transporte do gado, valos para demarcação de terras para fins de agropecuária, sistemas de aquedutos, localização estratégica de fortificações em relação a divisas, etc? Tais documentos expressam a existência de planos da Coroa para o Brasil? 

Têm‐se preciosas fontes documentais na cartografia histórica. O trabalho dos cartógrafos militares – como o Capitão (da Ordenança) Caetano Luiz de Miranda, que em 1804 publica a Carta Geografica de Minas Gerais, e outros como José Joaquim da Rocha, responsável por atualizar as divisas das comarcas de Minas Gerais – mostram caminhos que evidenciam que a evolução urbana da Comarca do Rio das Mortes, com sede em São João Del Rei, cresceu por polinucleação, nos termos de Jacui, Baependi, Campanha, Barbacena, Queluz (atual Conselheiro Lafaiete), Oliveira, São José do Rio das Mortes (atual Tiradentes), São Bento do Tamanduá (atual Itapecerica). 

As cidades históricas de Minas Gerais surgidas no período do ouro (São João Del Rei, Ouro Preto, Ouro Branco, Mariana, Sabará e Caeté) geraram configurações urbanas semelhantes, no sentido de processos de urbanização que tiveram origem na colonização portuguesa, nos arraiais auríferos construídos, a princípio, para que “durassem” o tempo necessário, enquanto a mineração do ouro fosse extremamente rentável. A atividade mineradora teve tempo de vida 

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limitado, porque o minério é uma fonte de recurso que se esgota nas catas e nas lavras. Uma vez que o ouro de aluvião, nas areias e cascalhos, se extinguia, os mineradores gananciosos iam‐se embora dali e o arraial caia no declínio. O ouro das minas, no entanto, durou mais tempo e gerou estruturas urbanas mais consolidadas, cujo sentido histórico torna‐se nexo explicativo para a compreensão das permanências e das mudanças. As cidades se alteram continuamente, crescem, desenvolvem, são vivas e complexas. Se conhecermos a sua história, identificaremos que marcos históricos ainda se fazem presentes no tecido urbano e na configuração dos espaços de conexão entre as cidades, então nos tornaremos capazes de compreender como as coisas se sucederam ali... Nesse momento ganharemos “sensibilidade histórica”, ou seja, seremos capazes de entender que “tanto mais se entende o passado quanto mais se participa do presente” (IGLÉSIAS, 1976, p.13). 

A dinâmica de ascensão e queda dos arraiais auríferos suscita potencialidades e contradições a pesquisar, das quais se aponta: nas cidades históricas mineiras temos muitos museus que se dedicam a documentar e proteger acervos de monumentos e objetos raros; mas há museus abertos dedicados a proteger estradas, pontes, sítios fortificados em ruínas, acampamentos militares, vestígios de aquedutos/bicames/rodas de água, trilhas de tropeiros com seus pontos de rancharia, barreiros de onde se extraía argila para confeccionar tijolos e telhas, etc? Como tratá‐los? Como eco‐museus? Como museus abertos? Como extensões operacionais de acervo tradicional? Como musealização in situ? Não se trata de uma simples requalificação de termos, mas sim de qualificar melhor a noção de que um museu de acervo tradicional poderia ganhar uma ampliação, se associar uma proposta de acervo operacional, considerando o contexto de seu entorno como possuidor de estruturas potentes a serem conservadas e defendidas...  

Trabalhar a cidade e sua rede de conexões de acesso é um ponto que merece ser discutido visto que ajudará a reforçar o conceito que uma cidade não nascia sozinha, mas sim no bojo de uma rede de núcleos, articulados por caminhos (talvez planejados), plantados no interior brasileiro pelos planos colonizadores luso‐brasileiros. Conforme Soares (2009), “[...] o modo como se processou a concentração urbana de certas populações fornece pistas valiosas para se compreender a complexidade atual de sua rede de cidades [...]”.

2 EXPANDINDO OS MUSEUS E A NATUREZA DE SEUS ACERVOS...  

Exploraremos, aqui,em caráter narrativo, duas mitologias gregas: Hécate, a deusa das encruzilhadas, e as musas, filhas de Mnemósis.  

2.1 A deusa das encruzilhadas... e as musas 

Na mitologia grega, Hécate era a senhora de três mundos: o Céu, a Terra e os Infernos. Tinha três corpos e três rostos e concedia aos mortais os nascimentos, conservava a vida e determinava o seu término. Benfazeja e apavorante, a deusa das encruzilhadas era cultuada em estátuas em sua honra, representadas como uma mulher de três cabeças, em capelas erigidas nas encruzilhadas, onde era comum haver também culto a outros deuses, como Hermes, que guiava os homens pelos mundos subterrâneos. A encruzilhada representava, para os gregos, um ponto de parada onde se devia escolher para onde ir, faziam ali um momento de celebração, de reflexão, muitas vezes julgavam que fosse necessário um sacrifício para guiar as almas, pois não se sabia ao certo se Hécate faria uma aparição benéfica ou maléfica (CHEVALIER, GHEERBRANT, 2009). 

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Porque trazer aqui ensinamentos simbólicos de tradições da Antiguidade? Teriam essas tradições sido transportadas para a América? Teria a Grécia antiga contaminado o Brasil? De certo modo há correspondências ao considerarmos, por exemplo, que escravos africanos temiam o senhor das encruzilhadas, o protetor de todos os caminhos. Várias nações africanas prestam cultos e oferendas nas encruzilhadas, para evitar um destino nefasto. 

Quanto às musas, essa é outra história: sabemos que museu é templo dedicado às musas. Heródoto contava que musas nasceram filhas de Zeus (pai dos deuses e dos homens) e Mnemósine (Memória): Calíope (a musa da Poesia épica), Clio (musa da História), Melpômene (musa do Canto), Urania (musa da Astronomia), Terpsícore (musa da Dança), Erato (musa da Poesia lírica), Polímnia (musa da Oratória). Apolo (o deus da Música) era o deus que mais freqüentava a casa das musas, os museus, pequenos edifícios construídos ao lado dos templos gregos para guardar objetos de recordação. As musas alegravam os homens com música, poesia, dança...(COSTA, 2012). A história das musas também nos contaminou? Certamente, através de matriz ocidental erudita, o museu, tal como o conhecemos hoje, foi criado no século XVIII, na Inglaterra, quando se recuperou a mitologia das musas para adicionar certo “glamour” à reinvenção ‘moderna’ do museu. 

Que conexão há entre a deusa da encruzilhada e as musas? Na mitologia grega, nenhuma... Aqui, neste artigo, valemo‐nos das duas narrativas como arsenal para justificar que há histórias milenares a serem recuperadas nos caminhos, trilhas, atalhos, rotas abertos na Comarca do Rio das Mortes de meados dos XVIII a meados dos XIX. Ali circulou muita gente, de várias etnias (sobretudo no período do ouro) que, tal como o gregos na Antiguidade, tinham a crença de que o cruzamento de caminhos tinha algo de sagrado, de densidade oculta, de transitório, de encontros efêmeros, talvez confrontos de vida e morte, mudança de destino. Por exemplo, a atual cidade de Baependi (fundada em 1692), no dialeto indígena significa muitos caminhos dependurados. No início, havia uma clareira na mata (que talvez fosse uma “coivara” herdada de queimadas dos indígenas); no alto de um morro, onde cruzavam vários caminhos, ali as tropas faziam pouso, arranchava‐se, faziam‐se acampamentos, observava‐se a planície lá embaixo. Provavelmente as pessoas se detinham com receio de emboscadas, se preparavam para enfrentar a mata cerrada e mais outras tantas léguas, sertão adentro. Isso é indiciário da importância simbólica da encruzilhada em Minas Gerais, há muitos séculos. 

Tradições, patrimônio imaterial, indícios, são suportes de memória plausíveis a se identificar nos caminhos da Comarca do Rio das Mortes, mediante pesquisa histórica. Através de proposta de musealização in situ, pode‐se atribuir significados aos suportes de memória identificados nos caminhos, potencializados por meio de exposição itinerante, de objetos recolhidos e conservados pelo museu, conforme proposta curatorial. 

Como as histórias da encruzilhada poderiam tomar lugar no museu? Como conciliar Hécate e as filhas de Mnemósis? Pensamos que, talvez, seja adequado pensar os caminhos como lugares de memória e buscar desvendar suas camadas enunciativas. 

Mário Chagas e Víktor Chagas [2012], observando as pedras que marcam a paisagem da cidade do Rio de Janeiro apontam que “[...] ao longo do tempo, (tomaram) um lugar 

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proeminente na geografia de nossas memórias, nas nossas paisagens subjetivas. Sem elas, nós não seríamos os mesmos.” E falam de uma “educação pela pedra. As pedras, essas companheiras de viagem, podem ser boas educadoras”. Parodiando os autores, não poderíamos nós, mineiros, na Comarca do Rio das Mortes, fazer a “educação pelo caminho”? 

2.2 Caminhos como parte do acervo operacional de museu  

Caminhos seriam documentos vivos (ou fontes documentais) e os julgamos merecedores de interesse enquanto objetos de preservação, pesquisa e comunicação por parte de um museu. Citemos alguns exemplos de caminhos. Na Comarca do Rio das Mortes, figuram antigas ligações entre o caminho Novo e o Caminho Velho.  O viajante Antonil, em 1699, faz referência ao Caminho Novo, que passava por Barbacena, Ressaca e dali tomava duas variantes, uma para Tiradentes, outra para o Rio de Janeiro (OLIVEIRA, 2011). 

O Caminho Velho, segundo Geraldo Guimarães (1986, p.27‐43), partia da Vila de São Paulo e percorria o vale do Paraíba passando, entre outros pousos, por Mogi, Jacareí,Taubaté, Pindamonhangaba, Guaratinguetá. Nas alturas da Cachoeira Paulista tomava rumo ao norte, atravessando a Mantiqueira na Bocaina do Embaú. Daí seguia para Pouso Alto e Baependi. Chegava à Encruzilhada (atual Cruzília) e daí continuava para Ibituruna do Rio das Mortes que era transposto no Porto Real da Passagem, já nas paragens de São João Del Rei. Mais tarde foi feito um atalho de Encruzilhada à passagem do Rio das Mortes, deixando Ibituruna ao largo. Do Rio das Mortes o Caminho Velho rumava outra vez para o norte, passando nas proximidades de Lagoa Dourada, possivelmente pelo arraial de Catauá; dirigia‐se para nordeste, indo a Amaro Ribeiro (perto de Conselheiro Lafaiete). Daí ganhava a Serra de Itatiaia, de onde seguia para o Rio das Velhas, continuando para o norte, mais ou menos paralelo ao São Francisco até os sertões da Bahia. Na Serra de Itatiaia, uma ramificação do Caminho tomava o rumo leste para a região de Ouro Preto e Ribeirão do Carmo (Mariana), já na bacia do Rio Doce. Daí, atravessando a Serra do Mar, encontrava o caminho que vinha de São Paulo, no vale do Paraíba, primeiramente em Taubaté, posteriormente em Guaratinguetá. 

Havia também descaminhos para fugir dos registros e contrabandear ouro em pó, entre Vila Rica e Porto Estrela (CARVALHO, 2011). 

O Caminho Novo tem suas origens em uma picada indígena, quiçá uma trilha pré‐histórica4. Empreitada proposta por Garcia Paes, depois prosseguida por Bernardo Proença, que calçou a estrada do alto da Serra de Petrópolis até Magé, pela Estrada velha da Serra da Estrela até Manhumirim. Segundo Otávio Dulci (2011), D. João VI mandou calçar esta estrada, que era larga, mas tinha muitos atoleiros, era muito íngreme na subida da Mantiqueira e isso afetava os viajantes; não era carroçável, só se percorria por tropas de burros, havia pontes sobre alguns rios, porém os cursos d’água maiores eram atravessados por balsas. Era uma via importante para o abastecimento dos núcleos mineradores, por ali chegavam o sal, tecidos e vinhos europeus, bacalhaus, chapéus, azeite doce... É importante identificar e mapear os “ranchos” de tropas, que funcionavam acoplados a vendas, primitivos entrepostos comerciais à beira da estrada, que não tinham boa comida, mas vendiam aos tropeiros, de tudo um pouco: queijo, banana, fumo, aguardente, ferrarias, selarias. 

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2.3 Rotas enquanto suportes de memória na Comarca do Rio das Mortes 

Na Comarca do Rio das Mortes, as rotas diferiam de caminhos ou trajetos, uma vez que continham relações econômicas explícitas; por exemplo, os sertanistas paulistas, no século XVII praticavam rotas de apresamento aos índios, ao longo das quais fundavam capelas, não só para reforçar a imagem de católicos devotos, assim como para instituir, em volta das capelas, um patrimônio de terras para agricultura, mineração e aldeamento de índios 5. Fazendeiros da Bahia e do Alto São Francisco traçavam rotas para conduzir o gado dos currais de invernada, às margens do rio São Francisco até Salvador. Na fase da exploração (e contrabando) do ouro houve vários caminhos e descaminhos trilhados pelos mineradores, contrabandistas e faiscadores. 

Francisco Eduardo de Andrade estuda as Picadas de Goiás, que a partir de 1739 foram abertas de Minas em direção a Goiás, para execução dos contratos de cobrança de mercadorias e escravos. Aponta que as rotas entravam pelo território de Minas e Goiás controladas por cidadãos poderosos da Comarca de Vila Rica (a exemplo do Guarda‐Mór Maximiniano de Oliveira Leite, residente em Mariana), por um longo período, uma vez que o acordo em relação às reais divisas entre Minas e Goiás só se fecharia no século XIX. Contratos e acertos para a abertura de picadas seguiam instruções contra quilombolas e indígenas. As rotas , na Comarca do Rio das Mortes, começavam perto de São João Del Rei, direcionavam a noroeste rumo a Formiga, Oliveira, Bambuí, Tamanduá até Paracatu. O sertão, indo para Goiás, foi alvo de disputa da Comarca do Rio das Mortes com a Comarca Vila Rica e Carmo, envolvendo conflitos apoiados por interesses eclesiásticos, controlados pelo Bispo de Mariana, que designava os capelães para administrar a rede de capelas. Havia também rotas que ligavam o centro‐oeste à Bahia, pelo Rio São Francisco. 

As picadas dos sertões geraram transformações no lado ocidental da Comarca do Rio das Mortes, havendo ali paisagens, sítios, ruínas de estruturas edificadas que precisam ser mapeadas e estudadas para incorporar acervo operacional de museus históricos, mediante propostas de musealização in situ. 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Ao analisar o passado da Comarca do Rio das Mortes e tentar cruzar a história dos portugueses com os brasileiros, é preciso ter cuidado para não cometer anacronismos, e ter em mente que os portugueses estavam inteiramente focados na economia mineral (DULCI, 2001). Portanto, as rotas e os caminhos luso‐brasileiros da Comarca do Rio das Mortes foram instrumentos de logística precisa e determinada: colonizar, povoar, manter apenas uma única ligação com o exterior pelo litoral brasileiro, e, para o interior, instalar uma rede capilar de caminhos que se organizavam conforme a partição das terras agrícolas e mineradoras, avançando e adentrando as fronteiras e posses por sobre as terras espanholas. 

A sociedade colonial, na sede da Comarca do Rio das Mortes (em São João Del Rei, sobretudo), concentrava um grande quadro de funcionários da Coroa e da Igreja, responsáveis pelo controle das minas do Brasil. Diferindo das áreas de fronteira da Comarca, as vilas e cidades fundadas na parte central da Comarca do Rio das Mortes 

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seguiram de perto o padrão urbano lusitano: “[...] no alto do morro há uma pequena praça central (que a partir do século XIX recebeu um coreto). De um lado a igreja, do outro lado da praça a prefeitura/câmara/cadeia; [...]” o arruamento tentava se manter linear, porém acomodava‐se à topografia (ALBERGARIA, 2012). 

A ocupação nas fazendas era esparsa, talvez por conta do sistema de propriedade da terra no Brasil, ainda sob a égide das sesmarias; na Comarca do Rio das Mortes há marcos de sesmarias em Chapéu d’Uvas (DULCI, 2011). 

Os mascates, tropeiros, preferiam arranchar em lugares onde houvesse maior concentração de habitantes, para facilitar as vendas e proteger‐se de assaltantes. Onde havia registros, as tropas “passavam ao largo, desviando...” (CARVALHO, 2011). A cultura dos tropeiros deixou narrativas na tradição oral, formou vilas, instituiu hábitos. 

Proteger bens culturais de natureza fluida e volátil, imaterial, não é tarefa simples. Hoje, no Brasil, cresce a consciência de que há bens de natureza imaterial que merecem fazer parte do conjunto de bens registrados e protegidos do nosso Patrimônio Imaterial 6.  

Conforme Ulpiano Menezes (1992), a identidade não é fruto do isolamento de sociedades ou grupos mas, pelo contrário, de sua interação. A identidade da Comarca do Rio das Mortes repousa não só na cultura urbana, mas também na interação da cultura barroca, com a cultura tropeira, a cultura mineradora, a cultura lusitana, a cultura cabocla, a cultura quilombola... Há, na história da Comarca do Rio das Mortes, segmentos sociais que não se deve pensar isoladamente, mas numa totalidade. 

A musealização in situ é capaz de atribuir significados a objetos, sítios, edificações, hábitos culinários, festas, narrativas, fragmentos de memória recolhidos nos caminhos, encruzilhadas e rotas da Comarca do Rio das Mortes, resgatando a importância de entender os sinais do passado e a memória da convivência luso‐brasileira, específica da organização social naquele período entre 1714 e 1892. 

Boas propostas e bons projetos curatoriais, contendo técnicas de musealização in situ, abrirão novos campos de trabalho para aqueles que lidam com patrimônio cultural da rede de comunicação da antiga Comarca do Rio das Mortes, a exemplo de pesquisadores, profissionais do turismo, ensino, especialistas em museus, especialistas em arquivos, restauradores, técnicos de preservação e conservação e técnicos da área governamental. 

Espera‐se, como aplicações no ensino, fomentar o estímulo dos alunos, em cursos introdutórios da Museologia, explorando didaticamente as potencialidades de acervos operacionais de museus, para que, num contexto de formação acadêmica, os alunos agucem a sensibilidade para o patrimônio imaterial, explorando dimensões singulares de fontes documentais da Comarca do Rio das Mortes. 

Espera‐se, também, que se perceba o conjunto de caminhos, rotas, encruzilhadas e vias de interligação de núcleos urbanos da Comarca do Rio das Mortes como lugares de memória, passíveis de receber propostas de musealização in situ. 

 

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organizadas pelo CEFOR (por Carla FERRETTI) da PUC Minas Virtual. Projeto Museu e Escola. BH: Biblioteca Digital Multimídia da PUC Minas Virtual, julho de 2008.  

SOARES, Josarlete Magalhães. Das Minas às Gerais: um estudo sobre as origens do processo de formação da rede urbana da Zona da Mata mineira. Belo Horizonte: Biblioteca Digital da UFMG. Teses e dissertações, 2009. 

VENÂNCIO, Renato Pinto. Caminho Novo: a longa duração. Varia História. Belo Horizonte, n. 21, p. 181‐189, jul. 1999.

5 NOTAS 

1 Fernão Pessoa Ramos escreve sobre cinema documentário no Brasil, apresentando ensaios sobre a representação do popular na produção nacional contemporânea, influenciada pela obra de Humberto Mauro. Um destes ensaios intitula‐se “A cicatriz da tomada: documentário, ética e imagem‐intensa” (RAMOS, 2008, p.159‐ 226). Este texto é oportuno por tratar da singularidade das imagens, sons e mediações advindas do cinema, por sua capacidade de tratar a imagem ficcional e também a imagem documentária. Essa heterogeneidade (ficcional ou documental) nos parece conveniente como recurso didático para captar a singularidade dos caminhos de acesso ao casarão do museu (metaforicamente...). Os caminhos são cenários de movimento, trânsito de pessoas que se movimentam continuamente – a pé ou de carro – há todo um espaço mutável que circunda o museu, externamente. O interior do museu é o reino da calma, da quietude, do silêncio e do um passado. É possível filmar o lado de fora do museu e trazer a filmagem para dentro do museu, onde não é permitido filmar, sobretudo por razões de proteção e integridade da conservação do acervo. Portanto, a imagem com mediação da câmera parece‐nos um bom recurso técnico, aplicável a cursos introdutórios de Museologia, passível de possibilitar uma relação biunívoca com a mediação do museu, de tal forma que outra valoração social – a do espectador contemporâneo – seja capaz de unir o dentro e o fora do museu. 

2 Rotas e caminhos têm significado diferentes. Rotas são itinerários que se percorre para ir de um lugar a outro, repetidas vezes, para cumprir determinado objeto comercial, de inspeção, econômico, de poder. Caminhos, genericamente, são faixas de terreno que se percorre. 

3 A Capitania das Minas Gerais foi criada em 1720, desmembrada da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, criada em 1709. Em 1714, foram criadas quatro Comarcas: a Comarca do rio das Mortes, cuja sede era a Vila de São João Del Rei; a Comarca de Vila Rica, com a sede de mesmo nome, também a sede da Capitania e residência oficial de seu governo; a Comarca de Sabará cuja sede era a Vila Real do Sabará; e a Comarca do Serro Frio, com sede em Vila do Príncipe. O território mineiro experimentou, em razão do descobrimento de ouro em fins do século XVII, um processo de ocupação até então inédito na América Portuguesa, com o surgimento de inúmeros arraiais. Os núcleos de mineração foram importantes pontos para a formação de vilas e povoados, que deram origem a uma complexa rede urbana (MORAES, 2006). 

4 Vale ressaltar os estudos de Renato Pinto Venâncio (1999) a esse respeito, baseando‐se em estudos arqueológicos como os de Maria da Conceição Beltrão. Esse historiador chama a atenção, por exemplo, para a existência de indícios arqueológicos de que o chamado  Caminho Novo, ligando Minas ao Rio de Janeiro, seria uma rota indígena milenar que, curiosamente, localizada em altitudes elevadas, evitava as densas florestas e os animais ferozes que as habitavam. Também destaca locais, ao longo dos caminhos, que vieram a constituir pontos de abastecimentos – onde as expedições podiam descansar, preparar suas roças, buscar alimentos ou estabelecer postos estratégicos de apoio etc. – que possivelmente teriam sido objeto de ocupação anterior à chegada do colonizador (MORAES, 2006, nota 189). 

5 Conforme Andrade (2012): “Os descobrimentos paulistas de ouro em Cuiabá, Mato Grosso e Goiás, no final da década de 1710 e na década de 1720, acirraram o processo de exploração e povoamento do sertão. As tradicionais rotas, valendo–se dos caminhos e veredas indígenas, foram retomadas ou refeitas e atalhos novos são propostos. O interesse dos coloniais (sertanistas poderosos, senhores das minas, roceiros, faiscadores, jornaleiros pobres e escravos) ao buscarem este novo sertão era, além de encontrar descobertos lucrativos de ouro ou mesmo terras para pastoreio e plantio, apropriar–se dos ganhos, provenientes do comércio legal de gêneros e escravos, ou do contrabando, nas transações das rotas coloniais importantes”. 

6 O Decreto nº 3551, de 4 de agosto de 2000 institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro e cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. 

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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades 

Patrimônio + Educação: derrubando barreiras e construindo novas pontes 

Heritage + Education: overcoming barriers and bridging the gaps 

Paula Gomes CURY Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG; Especialista em Projetos Sociais em Áreas Urbanas FAFICH/UFMG . [email protected]

RESUMO Este  artigo  investiga possibilidades dialógicas entre os  campos do Patrimônio e da Educação. Em  seu caráter  propositivo,  explora  aproximações  conceituais  entre  tais  campos  assinalando  que  ações  de educação  patrimonial  no  Brasil,  apesar  de  virem  refinando  –  nas  últimas  décadas  –  aspectos relacionados  à  participação  de  uma  gama  variada  de  atores  sociais,  são  desenvolvidas  de maneira pontual, isolada e desigual [conceitualmente] nos diferentes espaços em que são propícias. Parte‐se, desse modo, do entendimento que a noção de patrimônio se transformou em decorrência da série  de  fatores  relacionados  à  conjuntura  forjada  nas  cidades  ao  longo  dos  séculos,  implicando  a revisão  de  seus  pressupostos  e  conceitos.  A  noção  contemporânea  de  patrimônio  –  alcançada mais precisamente  neste  último  século  –  foi  a  que  introduziu  procedimentos  de  identificação  e reconhecimento abrangentes e, portanto, mais inclusivos da diversidade sociocultural. Nota‐se, a partir daí que,  este  conceito  vem  repercutindo  especialmente na questão dos direitos  e da  cidadania  com relação à  re‐produção da  cultura, mas que, no entanto, em  função da  complexidade na dinâmica de transformação‐preservação dos espaços e das práticas na cidade contemporânea, vê‐se na necessidade de amparar estratégias de  incentivo à valorização.   Para  isso, a proposta, Patrimônio + Educação, visa trazer à tona interfaces e implicações associativas entre tais campos. 

PALAVRAS‐CHAVE: Patrimônio, Educação, Cidade Contemporânea, Cultura. 

ABSTRACT This  article  investigates  the  dialogical  possibilities  between  the  Heritage  and  Education  fields.  Propositive  in  its  character,  explores  conceptual  approaches  between  those  fields  indicating  that  the national heritage education projects, besides being under a redefinition on the aspects of participation of a  various broad group of  social actors  in  the  last decades, are developed  in a ponctual,  isolated and uneven manner [conceptually] in different places where they are favorable.  Thereby, acknowledges that the notion of heritage has expanded due to a series of factors related to the situation  forged  in  the cities  throughout  the centuries. The expanded notion –  reached more precisely over the last century – is the one which introduced comprehensive procedures of heritage identification and recognition and, so, more inclusive of the sociocultural diversity.  It can be seen from this that, this concept is getting a special repercution on the matters of rights and citizenship  with respect to the re‐production of  culture. However, due  to  the  complexity  in  the  transformation‐preservation dynamic of places and practices in the contemporary city, it is seen in the need to support strategies to encourage its appreciation. For this purpose, the proposal, Heritage + Education, aims to bring out the interfaces and associatives implications between those fields. 

KEYWORDS: Heritage, Education, Contemporary City, Culture. 

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1 INTRODUÇÃO 

A cultura, os patrimônios e as cidades são temas que vêm penetrando e interceptando muitos assuntos e debates na contemporaneidade. Não só o mundo se expandiu espaço‐territorialmente, como também se tornou mais conectado em redes de comunicação e de intercâmbio, fazendo com que reflexões sobre as cidades contemporâneas, a cultura e seus patrimônios, alcancem novas dimensões e formatos. Transformações múltiplas nas cidades – em com ela da cultura, em variadas escalas do tempo e do espaço, se acentuam e vêm sendo influenciadas por processos contemporâneos de trocas e intercâmbios diversos. Enfim, impactos de proporções abrangentes no imaginário urbano, repercutindo e revelando o tanto que processos de mudança em curso nas cidades e sociedades se encontram interligados, e até implicados reciprocamente no que tange à(s) memória(s) e laços identitários dos indivíduos e grupos sociais na relação com os lugares e sua História [materialidades e imaterialidades]. 

A maneira como nossa sociedade e o mundo se engendraram no decorrer dos séculos é, sem dúvida, reflexo do modo como toda uma vastidão de produções e criações urdidas no tempo‐espaço sedimentou‐se a cada tempo presente. As particularidades das edificações, artefatos, lugares e fatos da História foram, assim, destacados e tomados como referência, por diferentes grupos sociais, em distintos momentos da história. Falar sobre patrimônios, sobre bens culturais, tendo em vista essa dinâmica, relacionando‐a àquilo que os fez e os faz existir no(s) tempo(s), no(s) espaço(s), na(s) memória(s) – ou seja, suas condições e condicionantes de existência – é, portanto, considerar questões mais amplas que os abarcam, a cultura e sua influência na transformação das cidades e da sociedade como um todo. 

A preservação e valorização de patrimônios na sua relação com processos contemporâneos da gestão e planejamento dos espaços urbanos no Brasil nos interessam aqui, pois é a partir delas que é possível investigar o campo das ações e proposições – tão complexo e ao mesmo tempo difuso e circunstancial – do Patrimônio aliados a propostas educativas. Dois campos do conhecimento, Patrimônio e Educação – fundados em bases das Ciências Humanas e Sociais das quais compartilham matrizes teóricas – constituem‐se, assim, no foco das discussões propostas neste artigo, tendo em vista as possibilidades de troca na construção de suas práticas e nos diálogos conceituais. 

A educação patrimonial, que nasce das possibilidades de aproximação entre tais campos, é discutida, à medida que ela avança com uma série de questões a serem repensadas. Das primeiras concepções às ações empreendidas no Brasil, a educação patrimonial é questionada em função da transformação que a noção de patrimônio alcançou, ao introduzir novos procedimentos de identificação e de reconhecimento de bens relacionados à cultura. Mais abrangentes e inclusivos acerca da diversidade sociocultural, o campo da legitimação dos patrimônios vem reascendendo a questão dos direitos e da cidadania, à medida que repercute positivamente em ações de educação patrimonial. No entanto, a complexidade na dinâmica da transformação‐preservação dos espaços e práticas na cidade contemporânea incita, para este campo, a necessidade de amparar estratégias de incentivo à valorização. 

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É, diante de novas configurações no conceito e na política do campo especializado do Patrimônio, e em grande medida, no da Educação (à luz das teorias da educação construtivista, libertadora e humanizadora de Paulo Freire e seguidores), que processos mais amplos de cidadania começam a perfazer questões relacionadas ao uso, à apropriação e interação/interpretação de bens culturais de interesse patrimonial em nossas cidades contemporâneas. 

A educação patrimonial bem como as possibilidades dialógicas entre os campos que a conforma, do Patrimônio e da Educação, são discutidas com mais detalhe na sequência, tendo em vista as apropriações e contribuições que a cultura e a noção de patrimônio contemporâneos vêm projetando para suas ações. 

2 POSSIBILIDADES DIALÓGICAS ENTRE OS CAMPOS DO PATRIMÔNIO E DA EDUCAÇÃO 

O conceito de patrimônio passou por ressignificações e mudanças bastante intensas no último século. Ampliado para escalas de identificação mais abrangentes no território, ele não se estagnou prendendo‐se a consensos e contextos temporais rígidos. Em suas várias dimensões – política, econômica, social e cultural – e atrelado às concepções contemporâneas da cultura, o conceito de patrimônio se refina e expande para escalas mais amplas no território, abarcando um universo vasto de distintas naturezas e dimensões, ainda mais complexo em suas significações.  

É fato que a noção de patrimônio se encontra condicionada por “jogos de poder” e de disputa – o que é comum a qualquer dinâmica de convívio em sociedade – o que implica sua ampliação pela explicitação, assim, de um ingrediente essencial a seus processos de legitimação: o reconhecimento da diversidade sociocultural. Também, este reconhecimento passa por correlações com apropriações afetivas, da memória e identidade, construídas e expressas a partir de valores referenciados na relação mais próxima e significativa das pessoas com patrimônios e bens culturais, em seus lugares de vivência e de memória e história comum. Buscar compreender esse processo de revisão conceitual é, sobretudo, reconhecer o fato de que as pessoas formulam e reformulam, no fluxo da vida, valores e significados pautados na sua relação com/nos lugares e à conjuntura sociocultural que os envolvem, considerando o caráter dinâmico e plural que a cultura e, nela, os patrimônios, as mobiliza e as condiciona. 

Sem dúvida, pois, que esse processo é um tanto idiossincrático e subjetivo.  Todavia, tratá‐lo como possibilidade conceitual para ações educativas – que podem evidenciar o valor dos patrimônios – indica que as oportunidades que elas promovem têm o potencial de orientar, incentivar e, assim, alimentar processos de reconhecimento e valorização, tornando‐os, não só menos forjados, mas, sobretudo, mais significativos. As atitudes na identificação e valorização de bens – tangíveis ou intangíveis – que carregam uma significância cultural e social, tão almejadas por gestores do patrimônio – e, em certa escala, também pela sociedade – só poderão constituir uma estratégia eficaz, quando for reconhecido que é a partir do apoio e do suporte de iniciativas educativas de viés mais humanizador, que elas podem vingar. Ou seja, a educação patrimonial só fará sentido quando esta fizer sentido para as pessoas que dela participam.  

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Ao considerar que a questão/conjuntura da Educação, per se, constitui‐se um sistema complexo – no qual interagem inúmeras variáveis potencialmente relevantes, e que conformam seu campo de práticas, leis e teorias –, as possibilidades dialógicas que se abrem, na forma de contribuições entre outros campos do saber, são também infinitas.   

Nesse aspecto, a educação patrimonial – termo originalmente herdado da expressão inglesa Heritage Education – ramifica‐se no território brasileiro, sobretudo, pelas ações de instituições, como os museus e órgãos do patrimônio, trazendo não só novas perspectivas para a valorização‐preservação dos patrimônios, como também, fomentando o debate em torno dos princípios que pautam a educação, tanto formal quanto em seu sentido amplo e abrangente na vida dos indivíduos. Assim, inferir que o campo da Educação tem mudado e inovado é dizer que não só as teorias gestadas por pensadores proeminentes como Paulo Freire e seus seguidores foram reacendidas e retomadas nas práticas focadas no sujeito. Outros campos, e nesse caso, o do Patrimônio, deram maior fôlego e impulso aos aspectos transformadores e libertadores que o ato de educar implica. Como defende Freire, 

Educar é construir, é libertar o homem do determinismo, passando a reconhecer o papel da História e onde a questão da identidade cultural, tanto em sua dimensão individual, como em relação à classe dos educandos, é essencial à prática pedagógica (FREIRE, 1994, grifos nossos). 

Construir, libertar, enfim, transformar as crianças, jovens e adultos para uma vida mais engajada e crítica, social e culturalmente, são premissas que vêm ao encontro das práticas e das atitudes que reconhecem a importância das relações identitárias nos processos de ensino‐aprendizagem. A “questão da identidade cultural” e o reconhecimento do papel da História, destacados em Freire (1994), demonstram que a educação é, em si, um processo intrínseco à constituição da “trama cultural” de uma sociedade.  

Desse modo, analisar a escola como única e grande instituição responsável pela educação dos indivíduos é não só contradizer e reduzir seu caráter abrangente e complexo, como também sobrepujar tais instituições da responsabilidade de assumi‐la sozinha. O mundo é bastante vasto e diverso para tamanha restrição imponderada. Freire adverte, ainda nesse aspecto, que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (FREIRE,1994)  

Assim, pode‐se apontar que os maiores aprendizados são aqueles cultivados na nossa própria inserção conflituosa e engajada no mundo. As circunstâncias com que indivíduos se confrontam cotidianamente (nas cidades, em seu meio familiar, etc) seriam, no sentido dos aprendizados, os maiores guias. Ou seja, os sujeitos, nas suas relações inerentemente conflituosas e desafiadoras, acumulam – a partir delas e “mediatizadas pelo mundo”, especialmente na vivência de conteúdos que os patrimônios, em suas propriedades qualitativas de suscitar, de provocar, de gerar reflexões e atitudes – importantes aprendizados vinculados à memória, à identidade, à história e à relação com e nos lugares. 

Como as definições da Educação, assim como as do Patrimônio encontram‐se atreladas aos contextos culturais que as moldam e são por elas moldados, isto torna possível 

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pensar melhor sobre os impactos e implicações que esta relação, “Patrimônio + Educação”, vem promovendo na revisão de seus pressupostos.  

A educação, como estágio preliminar e de alicerce para a vida dos indivíduos, assume o dever de instruir as pessoas nas diversas áreas do conhecimento, apresentando‐lhes conteúdos e questionamentos necessários para a compreensão do mundo que os rodeia. A forma como esses conteúdos – que não são apenas informações, mas, sobretudo experimentações destas – são tratados constituiria o modelo/tipo que orienta suas práticas. A responsabilidade dos profissionais, docentes e educadores, na condução do processo de ensino‐aprendizagem deve, também, estar pautada no alcance dos objetivos e dos resultados esperados, para que a educação possa, assim, gerar benefícios – que não estão concentrados nos alunos e, sim, na relação professor‐aluno. É claro que essa questão não é tão linear e direta quanto parece. Tudo que acontece fora do ambiente das escolas é essencial para a compreensão do que nelas é discutido.  

Não há dúvidas que discursos ideológicos têm a capacidade de influenciar pensamentos, reflexões e, consequentemente, de contaminar, senão comprometer, a aprendizagem. A educação, em muitos aspectos do viés do modelo “tradicional”, tende a propagar e reforçar ideologias que aludem idealizações com relação aos conteúdos. Ou seja, a propagação de certo ideal de progresso e de desenvolvimento em países/nações como referencial de vida para todos os cidadãos é reflexo dessas tendências, referenciadas em ideologias de conteúdos dominantes e hegemônicos.  

Sendo assim, a pertinência e a carga de compromisso socialmente impostas à educação formal – não somente com a formação dos indivíduos, mas também com o que é capaz de (re)produzir no plano das ideologias – confirmam seu caráter duplo de responsabilizar‐se legalmente pela inclusão social e pela cidadania dos sujeitos, ao mesmo tempo em que devem promover posturas críticas e conscientes frente a conteúdos permeados por tais ideologias hegemônicas.  

A postura da educação formal “tradicional”, muitas vezes impositiva de valores construídos e consolidados no plano das ideologias hegemônicas, dificulta os alunos elaborar suas visões de mundo, uma vez que acabam sendo moldadas de forma doutrinária na transmissão dos conteúdos, porque alheia ao contexto cotidiano plural e diverso desses alunos. A visão crítica que contribui para uma postura cidadã perante do mundo é um ingrediente pouco amparado nesse modelo de educação. Por doutrinar os indivíduos com conteúdos e ideologias, ao invés de provocá‐los a tomarem posturas e interpretações críticas diante do mundo que os rodeia, acaba comprometendo o crescimento intelectual e de personalidade a uma esfera menos autêntica/ autônoma e, portanto, menos conectada com a própria identidade dos alunos.  

Muitos teóricos e filósofos abordaram essa questão, com a retomada e com o reacender do papel basilar da educação na formação das sociedades, apontando que respeitar a identidade dos educandos, levando em conta suas experiências vividas, passadas e presentes, é uma tarefa essencial que as escolas, como instituições legalmente responsáveis pela educação dos indivíduos, não deveriam se eximir de cumpri‐la. Além disso, a socialização dos indivíduos no âmbito da escola, dos alunos entre si e com os 

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professores, incentivada nos termos de relações abertas e não verticais, é outro aspecto que constitui o quadro de princípios de uma educação menos paternalista e doutrinária, e, portanto, mais humanizadora, transformadora e libertadora. 

O papel elementar e precípuo das instituições de ensino deve ser, portanto, o de romper com tais modelos “tradicionais” – e, desse modo, livre de determinismos, na medida em que tais modelos têm sido apontados como incapazes de exercerem sozinhos os seus dois enfoques fundamentais: a formação social e cultural dos alunos. (In)formar e (trans)formar os alunos é, portanto, a dinâmica que as escolas devem, assim, se pautar. 

No misto de complexidade e possibilidades, o campo da Educação, em suas contribuições e interfaces com o do Patrimônio deve buscar derrubar barreiras disciplinares, aprofundando e refinando os pressupostos para as práticas de valorização, reconhecimento e identificação de bens culturais e deles amparados por iniciativas educativas apoiadas em modelos que entende a escola,  

[...] como espaço de troca de saberes, gerando processos criativos que escapam do conhecimento formal como um modo de produzir interferências, expressões e reflexões para além das atividades pedagógicas. Neste sentido, a escola deixa de ser um foco central de difusão e formatação do conhecimento e passa a atuar como catalisador de saberes produzidos pelas comunidades... (KROEF, 2001, p. 11). 

No processo de ensino‐apredizagem, incorporar apontamentos e experiências levantados pelos alunos (ou seja, a visão de mundo que eles têm) aos conteúdos programáticos é uma estratégia de liberá‐los do medo de aprender, como aponta Jean‐Noël Luc (1997). Sem dúvida que isso os auxiliaria, assim como aos docentes, a romper com a ideia de aprendizagem como simples ato de aquisição de conhecimento. A abertura de tais processos à participação mais horizontal entre aluno e professor, impulsiona o desejo de aprender. Como sugere o mesmo autor,  

se o conhecimento do qual o aluno lhe interessa se vê necessitado de socorro a explicações encontradas em realidades mais amplas, se conseguimos passar do interesse pelo concreto a explicações abstratas, estaremos fomentando o desejo de aprender (LUC, 1997, p.39, tradução direta). 

Em outras palavras, se o conhecimento que os alunos solicitam está relacionado ao meio e à realidade que os circundam, a possibilidade de aprendizagem não só se potencializa como também os motiva a buscar mais. Uma busca que também estaria relacionada a um desejo de aprofundar nas reflexões sobre a realidade em que atuam e na qual podem transformar. 

Nesse sentido, estratégias de estímulo a aprendizados significativos encontrariam espaço na perspectiva de projetos/programas de educação – no contexto, aqui discutidos, dos patrimônios, da cidade, do meio ambiente – em propostas de estudo que partam do meio em que vivem. Propor leituras da realidade, do cotidiano que se encontra fora do espaço físico das salas de aula, nos extra‐muros da escola, têm o potencial de estimular os alunos a se aproximarem de seu entorno como fonte de conhecimento – reduzindo, assim, a dominância dos livros didáticos em tais processos de ensino‐aprendizagem. A disciplina Ciências Sociais, nas primeiras fases do ensino, e aquelas decorrentes desta, introduzidas a partir do segundo ciclo, ensejam, desse modo, potenciais ambientes para trabalhos com temáticas relacionadas ao campo do Patrimônio. 

As “possibilidades históricas do meio, a marca do passado, como fonte abundante e diversificada de conhecimento” (LUC, 1997, p. 41) instauram nas estratégias da prática de ensino articulado e relacionado ao meio, um diálogo com o universo dos patrimônios. No 

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entanto, vale a ressalva de que a “aproximação histórica ao meio indica ser mais um processo de observação, do que um meio particular distante à realidade presente” (LUC, 1997, p. 41). Ou seja, o processo de observação, uma vez motivado por mecanismos de interação e interpretação junto ao meio em que os patrimônios/bens culturais se encontram, tem o potencial de exercer nos alunos um senso do que a História e a(s) memória(s) são capazes de documentar e de registrar material e imaterialmente e de como esses registros permeiam suas vidas e influenciam suas atitudes. 

Nessa aproximação, provocativa e, quiçá, também lúdica, com o ambiente cotidiano, os patrimônios e bens culturais, presentes e definidores na/da História das cidades, são acionados como elementos que participam dos processos de aprendizado significativo na fase escolar. Por isso, as metodologias do processo de ensino‐aprendizagem são tão importantes. Promover diálogos com os patrimônios e bens culturais é uma forma de, não só potencializar os conhecimentos em relação ao meio, à História, à memória, mas, sobretudo, de realizá‐los a partir de experimentações sensorial‐cognitivas nos lugares nos quais eles se encontram inseridos.  

No entanto, promover estes diálogos na dinâmica das cidades contemporâneas – sejam motivados tanto pelas instituições de ensino quanto pelas do patrimônio – esbarra em questões práticas e objetivas. A crescente privatização dos espaços pela ocupação especulativa e segregadora do solo, seus impactos sobre a dinâmica dos espaços públicos, a insegurança nos espaços públicos e privados, a centralidade das práticas de consumo têm, nesse sentido, comprometido essas estratégias de ensino‐aprendizado via interação e interpretação junto aos patrimônios e bens culturais. Os campos da Educação e do Patrimônio são, assim, desafiados, por essas novas configurações assumidas no plano dinâmico da cultura e das cidades na contemporaneidade.  

Desse modo, nem tanto o meio e os patrimônios, como objetos a serem explorados e interpretados, mas, sobretudo, sua inserção na complexa trama das cidades vem desafiando estudiosos a referenciar a cidade como espaço privilegiado de aprendizagens múltiplas. O caráter “desumanizador”, que acreditam ter nela se agravado, os tem motivado a repensar sobre as oportunidades de vivência e, assim, de interação, interpretação com e no meio e, em especial, com aquilo que vem perdurando nos séculos, seus patrimônios. Rabinovich (2004) é bastante contundente a respeito dessas transformações que recaem sobre as oportunidades de interações entre os homens nos espaços, e deles com as cidades. 

Basicamente, de lugar do encontro tornou‐se um lugar da passagem. (...) A acessibilidade à rua foi reduzida, assim como sua atratividade, dificultando tanto familiaridade quanto apropriação, devido ao progressivo desaparecimento de espaços semi‐públicos (...). Estas áreas intermediárias estariam também associadas aos “lugares da mistura” e seu desaparecimento parece ocorrer concomitantemente à segmentação, institucionalização e programação da sociedade (RABINOVICH, 2004, p.95). 

Sem dúvida que as cidades, assim como as sociedades, se complexificaram, e com elas, as possibilidades e oportunidades de diálogo nos e entre os campos da Educação e do Patrimônio. No entanto, as revisões e ampliações conceituais são indicativos de como estes campos vêm enfrentando essas mudanças, que se revelam, em última instância, na 

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dinâmica da cultura e das cidades contemporâneas. Estar atento às suas novas configurações e desafios, é perceber que práticas educativas, assim como os próprios patrimônios, são substratos abertos e, portanto, mutáveis em nossas vivências, ou seja, susceptíveis às transformações que acontecem de maneira mais ampla nessas instâncias (cidade e cultura) e no mundo. É ainda mais evidente nos casos de vivências em grandes centros urbanos, onde as identidades neles construídas tendem a ser fortemente “reguladas” e influenciadas por processos socioculturais dominantes, em constante e ritmo mais acentuado de transformação. 

3 PATRIMÔNIO + EDUCAÇÃO: DESCONSTRUINDO BARREIRAS PARA EDIFICAR UM NOVO CAMPO. 

O conceito de educação patrimonial, discutido na década de 1980 no âmbito do “I Seminário sobre o Uso Educacional de Museus e Monumentos” no Museu de Petrópolis (RJ), e, assim divulgado por meio da publicação do “Guia Básico de Educação Patrimonial” (1999), foi definido em um contexto em que a noção de patrimônio vinha se refinando para categorias mais amplas nas escalas do território, porém, pouco, abarcando manifestações culturais que nelas se realizavam e se desenvolviam.  

O reconhecimento de tais manifestações como bens imateriais a serem salvaguardados, ou seja, dos modos peculiares de expressar – do ser e estar no mundo – só entrou para o rol dos bens representativos e significativos na política de preservação e valorização do país, nas últimas décadas do século XX e início do XXI. Desde então, a aproximação e atenção dos gestores do patrimônio para com as pessoas diretamente relacionadas às manifestações de significância cultural e social, foi a que, provavelmente, contribuiu para serem ampliadas e aprofundadas as reflexões acerca dos pressupostos que guiavam suas práticas de preservação.  A educação, aí, emergiu como um “ingrediente” que se fazia presente, talvez, sem nem tanto darem conta que ela se construía na sua relação mais próxima e aberta com as pessoas e grupos atrelados aos bens reconhecidos ou em vias de ser.  

Diante desses sinais, o salto expressivo na definição do conceito de educação patrimonial se manifestou, tendo em vista as reflexões e ações que se faziam nos processos de significação e valorização das relações identitárias dos sujeitos para com os bens culturais – muitas vezes tido por eles como patrimônios a serem salvaguardados – em comunhão com os gestores do patrimônio. À medida que se aproximavam das pessoas e comunidades para escutá‐las – e, para assim buscar compreendê‐las em suas peculiaridades e laços de identidade – as complexidades do mundo contemporâneo, que as sobrepujam, também eram reconhecidas e, por eles em conjunto, examinadas. A aproximação, mais horizontal entre gestores do patrimônio e comunidades/grupos sociais, foi, então, o que impulsionou processos mais recentes de desconstrução e, assim, desnaturalização de conceitos de educação patrimonial que reproduz uma ideia doutrinária do que deve ser identificado, reconhecido e valorizado como bem cultural de interesse patrimonial. 

É possível verificar, por tudo isso, que a relação mais próxima e associativa entre o campo do Patrimônio e da Educação sugere que é preciso não só expandir o espectro de identificação e reconhecimento de bens culturais para além de práticas circunscritas e fechadas a estudar e 

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vivenciar determinados patrimônios, mas também incluir a gama variada de atores e agentes chave no processo de ensino‐aprendizagem, formal e informal.  Além disso, o mundo contemporâneo, em sua complexidade infinita de tempos cada vez mais dinâmicos e transformadores das materialidades e imaterialidades, trouxe uma série de implicações para esses processos. Procurar entender tais processos neste contexto é também reconhecer que grupos atentos e comprometidos com essas mudanças vêm se despertando para a necessidade de explorar e promover oportunidades de vivências e aprendizados, no conjunto complexo e dinâmico que é a relação dos indivíduos com e nos lugares, edificações e fatos, e deles na totalidade das cidades e territórios contemporâneos, provocativa e desafiadora (e que também pode ser “cegante” se a centralidade é direcionada para instâncias da razão/intelecto em detrimento da sua combinação com instâncias das sensações e imaginação, aguçadas por experimentações sensoriais). 

Programas educativos como o “Ciudad Educadora” 1 e “La cittá dei Bambini” 2 ressaltam tais aspectos na medida em que, em suas propostas, a participação na vida social pública é motivada como mecanismo de incentivo às pessoas – habitantes e alunos – a se engajarem, buscando, assim, compreender as diversas questões que implicam o universo amplo da cultura, dos espaços públicos e seus patrimônios nas cidades. “Architecture and Children Environment Education” 3 particulariza essas questões, ao introduzir, exclusivamente nos ambientes escolares, o tema da Arquitetura como esfera do conhecimento, que compreende e articula as diversas temáticas relacionadas às múltiplas vivências no vasto e dinâmico universo das cidades.  

Por outro lado, programas de educação patrimonial que ainda se atém a promover experiências circunscritas a explorar determinados patrimônios e privilegiar certos grupos, sem questionar sua relação com a dinâmica e a vastidão complexa da cultura nas cidades e no mundo, podem limitar seu conceito a ideias estanques e inertes, ou seja, entendendo os patrimônios bem como a relação dos indivíduos e grupos sociais com eles, como entidades não mutáveis e forjadas, e, portanto, consolidadas e objetivadas. 

Muito embora sejam abordadas, nas definições oriundas e pautadas no “Guia Básico de Educação Patrimonial” (1999), estratégias de incentivo a processos ativos de conhecimento, apropriação e valorização dos patrimônios, pouco exploram, conceitualmente, aspectos relacionados às conjunturas das cidades, e de sua complexificação na contemporaneidade. Além disso, ao advertirem que deveriam ser permanentes, sistemáticos e contínuos, não fica explícito os locais onde tais processos poderiam se dar dessa maneira. Nas escolas, por exemplo, em função de seu status pedagógico de ensino e aprendizagem e, assim, das atividades regulares que a eles são próprias, a continuidade em tais processos encontrar‐se‐á garantida. O caráter sistemático dependeria, portanto, de um conjunto de parâmetros legais e de diretrizes que respaldassem tais processos. Em suma, o conceito de educação patrimonial, explicitado neste Guia, necessitaria de revisões que buscassem apropriar e assumir a complexidade que, não só o campo do Patrimônio alcançou a partir de abordagens mais abrangentes e inclusivas, na escala da cidade e das distintas naturezas que caracterizam os bens culturais na sua diversidade, como também o da Educação, pela fundamental contribuição com relação à abertura a processos mais horizontais e, sobretudo, mais significativos tanto social quanto culturalmente entre grupos e indivíduos da sociedade e gestores públicos. 

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Programas de educação patrimonial mais recentes, promovidos por órgãos do patrimônio em parceria com outros agentes e instituições no país, vêm indicando que o conceito vem, em certa medida, se refinando, assim como as estratégias na gestão de suas atividades, em relação às suas primeiras experiências. Contudo, não demonstram avançar a ponto de propor uma reformulação dos mecanismos de participação dos alunos/habitantes nas questões que envolvem os patrimônios e bens culturais na sua relação com a cidade contemporânea, assim como uma sistematização dos mesmos no formato de uma política pública. Ou seja, pouco repercutiram no sentido de “reverter para a cidade em modificações, em melhorias, que não só “ficticionalizar” os seus problemas”4, como bem ressaltado por uma das coordenadoras do  programa intitulado “Educação para o Patrimônio”, promovido pela Diretoria de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte (DIPC/PBH). 

Além dessas questões, a terminologia – que continua a mesma: “educação patrimonial” – sugere que o uso da palavra patrimônio na forma adjetivada junto ao substantivo educação, pode redundar em algumas contradições. O que se quer dizer é que “patrimonial” e “patrimonialidade” apresentam‐se como adjetivos categóricos e, portanto, limitadores da perspectiva ampla e circunstancial da palavra patrimônio. Igualmente, o substantivo educação apresenta‐se limitado quando associado univocamente a este adjetivo.  

Como nos lembra, Joël Candau (2011), patrimônio é  

reconhecido como uma relação que envolve mais uma afiliação do que filiação, uma materialidade que é mais reivindicada que herdada, assim como menos comunitária que conflitiva (id., 2011, grifos nossos). 

A complexidade do universo sociocultural que sobrepuja o campo do Patrimônio, ao se colocar como uma instância que participa da vida das pessoas, deveria atuar como mediadora dos processos educativos, e não como educadora de “filiações” que alunos e indivíduos deveriam se apropriar. A mutabilidade e a diversidade do mundo das coisas e das idéias influenciam processos identitários e nos advertem que a materialidade dos patrimônios também é apreendida de maneira diferenciada e particular pelas pessoas e grupos, e por isso, inerente ao caráter reivindicativo e conflituoso de suas vivências e experiências nos lugares – na escala dos espaços públicos das cidades, de suas edificações e das dinâmicas socioculturais em seu sentido amplo. 

O programa “Educação para ao Patrimônio” da Diretoria de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte (DIPC/PBH) apresentou uma perspectiva mais refinada, apreendendo essa dinâmica e o caráter circunstancial da palavra patrimônio, e sugerindo não utilizá‐la na forma adjetivada mas, sim, como um substantivo com peso equivalente ao da educação. Educação para o patrimônio é, desse modo, a expressão escolhida para definir o conceito que pauta suas propostas, onde o campo da Educação, entendido como responsável e integrado à vida dos indivíduos, é colocado como parceiro ao do Patrimônio, portanto, essencial aos processos de reflexão e experimentação sensorial/perceptivo das qualidades e complexidades que circundam o universo sociocultural de nossas cidades. Ou seja, como oportunidade de os indivíduos exercerem o espírito crítico e de juízo, assim como de experimentarem, sensorial e intelectualmente, as propriedades que se constituem na sua História e memória, e que são formadoras de suas identidades – propriedades estas percebidas, sentidas e vividas na relação com os patrimônios e bens culturais, nos tempos e espaços da cidade.  

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Educação para o patrimônio constitui‐se, nesse sentido, termo recente e que vem sendo utilizado, nos ambientes onde as contribuições da Antropologia e Sociologia são marcantes. O entendimento e a aplicação do conceito de Educação para o Patrimônio comporiam um exercício de incorporar, simultaneamente, o sentido de acesso e de oportunidade, incondicional e irrestrita, aos alunos/habitantes, e deles construírem suas próprias concepções e apreciações do que venham a ser seus patrimônios, individuais e coletivos, a partir das vivências experimentadas com e neles. 

Com efeito, o papel da Educação, aliada ao campo do Patrimônio – Patrimônio + Educação, tem sido o de fomentar a trans‐formação do sujeito, por meio da sua percepção de mundo, de seu entorno, pelos sentidos e a consequente cadeia de saberes e reflexão daí advinda. Estimulados a desenvolver suas habilidades, nas próprias oportunidades que o ensino formal e informal e a vida, em seu sentido amplo, possibilitam, os indivíduos exercitam uma série de operações de articulação de conteúdos e formas que, balizadas pelo pensamento, imaginação, emoção e sentidos, produzem e reproduzem imagens que lhes são reconhecíveis. Ou seja, uma vez presente em sua(s) memória(s) e incorporado às identidades, esse substrato (advindo dessas operações) os auxilia nos processos de identificação, reconhecimento, e valorização de bens que, por um método quase que “espontâneo”, desenvolvem associações em uma dinâmica dialética entre significante‐significado.  

Assim, a assertiva que diz que “não há possibilidade de saber‐se sujeito sem a capacidade de memória que articula o conhecimento e o tempo” (CHIOVATTO, 2010) ajuda a pensar a importância em se considerar processos de construção da memória individual, como ferramenta fundamental para a compreensão e a reflexão sobre a memória coletiva e social. Os indivíduos só poderiam, desse modo, compreender a si mesmos na memória pessoal a partir do outro, a memória coletiva e social. Decerto que o mundo, na perspectiva da alteridade, é a sua referência para se constituírem de maneira relacional e interativa.  

Sob o filtro dos cinco sentidos e não mais só do olhar e do intelecto, a percepção sensorial e emotiva dos sujeitos se agrega à essência das experiências nos e com os lugares –  e seus atributos espaciais e imateriais – percebidos como referências substanciais aos seus processos cognitivos e de personalidade.  Nesse sentido, práticas educativas deveriam atuar, garantindo aos indivíduos, em seus processos de aprendizado, experiências que resultem na formação dos substratos úteis ao exercício de seus juízos e raciocínios (CHIOVATTO, 2010). É na contemporaneidade, por sua vez que, os indivíduos consolidam sua(s) identidade(s), a partir dos dispositivos da memória, e que, apesar de sua natureza efêmera, tem grandes possibilidades de se manter viva, no fluxo das transformações, caso o contato com atividades que aliam a Patrimônio à Educação (e vice‐versa) seja constante e renovado. 

A relação entre identidades e memória(s) só poderá ganhar sentido por meio de um projeto consistente e substantivo de estudos e experiências em interação e interpretação acerca do que a História, a Arte, a Arquitetura, a Arqueologia, enfim, o que os espaços da cidade são capazes de contar, provocar e propiciar aos indivíduos, por meio de vivências e habilidades próprias da percepção, da sensação, da imaginação e dos sentimentos, ampliando, dessa maneira, a possibilidade de construção de suas relações particulares com a cidade e com territórios ainda mais amplos, diversos e dinâmicos na contemporaneidade. 

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Como visto ao longo do artigo, as possibilidades dialógicas entre o campo do Patrimônio e da Educação são expressivas. No entanto, o avanço conceitual da noção de patrimônio na contemporaneidade, assim como o da educação nos aspectos de um modelo construtivista, portanto mais humanizador e libertador, necessitam receber maiores investidas nas suas interfaces e implicações associativas.  O investimento em projetos e programas educativos que exploram diversificadas e comprometidas possibilidades de manutenção significativa dos bens culturais na cidade em estreita relação com a vida social pública que os animam deve ser, nesse sentido, a via que alimenta esta relação mais próxima e de cooperação entre o campo do Patrimônio e da Educação. 

A caminhada proposta pelo Patrimônio à Educação, e também da Educação ao Patrimônio, demonstra, assim, que o propósito final de suas ações concentra‐se no estabelecimento das bases para um “grande projeto” e de cidadania.   

As experiências rasas e rasteiras, que se destacam pela euforia mercadológica que vem abalando o âmbito das interações e interpretação junto aos lugares e bens culturais diversos na contemporaneidade, são indicativas da fugacidade e superficialidade com que versões “mais palatáveis” são privilegiadas visando atender a sociedade exclusivamente na condição de consumidores. Não há dúvidas que isso tem resvalado as experiências nos e com lugares a interações meramente imagéticas e pouco exploratórias das infinitas qualidades e possibilidades neles contidas.  

As oportunidades de experiências vivas nos lugares e, com as qualidades que o legitimam, veem‐se, por tudo isso, comprometidas por tais dinâmicas e fatores das cidades contemporâneas, que pelo simples fato de ocultarem, em muitos casos, os conflitos e contradições inerentes a ela, acabam inibindo possibilidades de contato e diálogo com os atores‐personagens – as pessoas que habitam e que participam da história e criações desses lugares.  

As questões, portanto, relacionadas diretamente ao incentivo a processos mais inclusivos no tocante ao acesso e usufruto dos/nos espaços, culturais e educativos, públicos e semi‐públicos, são, muitas vezes, mascarada por discursos e também nas legislações, demonstrando que, na prática, o fomento a tais experiências se limita a certos grupos sociais. A universalização de programas educativos relacionados à cultura em suas variadas instâncias configura‐se, por tal razão, em uma tentativa de lidar com os conflitos e contradições – que, em síntese, constituem‐se ao mesmo tempo de cunho sociocultural e político.  

É por meio do incentivo a práticas que promovem a interação dinâmica e inclusiva de usuários e habitantes das cidades, às propriedades do lugar, dos fatos/eventos e, consequentemente, das pessoas que participam e conformam sua vida social pública, que se acredita poder equilibrar tais efeitos inexoráveis da contemporaneidade. O fortalecimento de sua(s) identidade(s) e memória(s) no âmbito de ações e programas educativos aliados e alinhados à noção contemporânea de patrimônio comporia, para além disso, a grande chave deste projeto meritório de comunhão de esforços entre tais campos. Expressivos reflexos nas sensibilidades dos habitantes/alunos, com relação a seu papel como cidadãos cada vez mais conscientes da complexidade que é viver hoje em cidades cada vez mais interconectadas e, também, desiguais e competitivas, poderão ser sentidos e crescentemente aguçados a partir daí.   

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A consagração deste “grande projeto”, do campo do Patrimônio aliado reciprocamente ao da Educação (Patrimônio + Educação), dependerá, por tudo o que foi exposto, de como ambos irão lidar com estes desafios e tensões, cada vez mais implicados por movimentos decorrentes de uma tendência, a que Bauman (2001) chama de “modernidade líquida”, e como, em face disso, se associarão de maneira cooperativa a alcançar e garantir um objetivo comum, o da cidadania nos processos de significação e valorização das relações identitárias e da memória dos indivíduos na relação com o universo sociocultural dos lugares e de seus bens. 

 

O olhar sobre os patrimônios, sobre o universo descontínuo e pulsante das materialidades e da vida que nos rodeia, é feito a partir de uma visão que é antes de tudo, cultural, ou seja, oriunda do processo imaterial, de imaginar, de sentir, de guardar na memória, e de tudo que converge simultaneamente no ato de significar. A imaginação assim 

como a memória são mecanismos que os indivíduos em sociedade dispõem para se situar e entrever o mundo – em um ato que pode alcançar o que Manoel de Barros anunciou, o de “transver o mundo”. 

5 REFERÊNCIAS 

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BELO HORIZONTE (MG). Prefeitura. Fundação Municipal de Cultura. Diretoria do Patrimônio Cultural. Programa Educação para o Patrimônio – Relatório do Projeto paisagens de BH: uma descoberta. Belo Horizonte: Diretoria de Patrimônio Cultural, Fundação Municipal de Cultura, ca. 2008.  

CANDAU, J. Memória e Identidade. Tradução Maria Letícia Ferreira. – São Paulo: Contexto, 2011. 

CHIOVATTO, M. Propostas da ação educativa da Pinacoteca do estado de São Paulo, ca. 2010. Disponível em http://www.museuparatodos.com.br/ Acesso em: 13 out. 2010. 

CONSELHO NACIONAL DE INVESTIGAÇÕES (CNR). La Cittá dei Bambini. Roma, Itália. Roma: CNR, 2001?. Disponível em: http://www.lacittadeibambini.org Acesso em: 10 ago. 2011. 

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. New York: Herder & Herder, 1970 (manuscrito em português de 1968). Publicado com Prefácio de Ernani Maria Fiori. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 218 p., (23 ed., 1994(1970), 184 p.). 

GOMES, S. Entrevista concedida a Paula Gomes Cury. Belo Horizonte, 14 jul. 2011.   

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INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS. Política Estadual do Patrimônio em Minas Gerais – ICMS Patrimônio Cultural. Belo Horizonte, Minas Gerais: GDF/IEPHA, [2010?]. Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br Acesso em: 21 dez. 2010. 

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TONUCCI, F. et al. L`autonomia di movimento dei bambini italiani. Quaderni del progetto “La cittá dei Bamibini”, n. 1, Giugno (1988) 2002. 

6 NOTAS 

 

1 O programa “Ciudad Educadora” nasceu como um movimento em Barcelona (Espanha), no início da década de 1990, com a proposta de disseminar a ideia de que a cidade (em suas dinâmicas plurais) possui, tanto quanto pode fomentar, continuamente, um “impulso educador” por toda ela. Motivado, em grande medida, pelas forças e inércias da contemporaneidade (cujas transformações são avaliadas como sendo des‐educadoras), este movimento de teor abrangente e agregador, propôs o estabelecimento de uma rede de gestão urbana – sobretudo, no âmbito das instituições públicas, com ecos na totalidade da cidade –, orientada nos princípios que apregoam para a construção de uma cidade educadora. 

2 O programa “La Cittá dei Bambini”, traduzido do italiano como “A Cidade das Crianças”, nasceu de uma iniciativa do governo da cidade de Fano, localizada na região de Le Marche, porção centro‐leste da Itália, em maio de 1991. Proposto por gestores públicos que defendiam uma nova filosofia de gestão da cidade, este projeto não visava desenhar políticas específicas para crianças e jovens, mas, sobretudo tinha motivação política ao neles fomentar a participação em um amplo leque de políticas públicas que dizem respeito ao funcionamento e dinâmica cotidiana da cidade. Apresentava um viés questionador da realidade urbana que, predominantemente, privilegia as necessidades dos cidadãos adultos, fundamentalmente de homens e trabalhadores. A importância que os carros adquiriram na sociedade contemporânea demonstra claramente, segundo o grupo criador do projeto, o poder instituído pelo adulto trabalhador, condicionando todas as decisões estruturais e funcionais da cidade. 

3 O programa “Architecture and Children Environment Education”, criado pela União Internacional de Arquitetos (UIA) e concebido por uma equipe da União Internacional de Arquitetos (UIA), representada por dois países, França e Alemanha, tem como proposta versar sobre “partes” da cidade, os edifícios, espaços públicos, tanto os intersticiais quanto os ditos por excelência – as praças, vias públicas, etc. Dessa maneira, propõe a criação de uma disciplina própria, ao mesmo tempo transversal, para tratar dessas temáticas específicas do campo da Arquitetura e do ambiente construído. A inserção desta disciplina na grade curricular do ensino formal (primário e secundário/fundamental e médio) se encontra pautada, em sua proposta central, no incentivo a jovens e crianças a se apropriarem dos atributos espaciais e arquitetônicos dos lugares na cidade., diz respeito a uma política pública a ser implementada exclusivamente no âmbito da educação formal, mas que, pelo fato de propor a inclusão de conteúdos da área da Arquitetura e seus temas de interface, na grade curricular do ensino (primário e secundário/fundamental e médio), apresenta‐se igualmente interessante pelas estratégias metodológicas inovadoras no tratamento interdisciplinar dos conteúdos programáticos. 

4 GOMES, Silvana. Entrevista concedida à Paula Gomes Cury. Belo Horizonte, 14 jul. 2011. 

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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades 

Patrimônio em ruínas: desafios para preservação Heritage in ruins: challenges for conservation 

Maria da Graça Andrade DIAS Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/UFMG. [email protected] 

RESUMO Propõe‐se  nesta  pesquisa  o  estudo  de  três  monumentos  religiosos,  atualmente  em  estado  de arruinamento,  situados  no  Recôncavo  da  Bahia,  buscando  analisar  os  aspectos  arquitetônicos  e investigar os aspectos  simbólicos e do  imaginário  relacionados a esses patrimônios. Entende‐se que a atribuição  de  valores  ao  patrimônio  cultural  através  das  práticas  sociais  ultrapassa  a  esfera  objetiva, engloba os símbolos, as relações afetivas com o espaço, a identidade e a memória. Para a análise desses  fundamentos segue‐se os passos metodológicos sugeridos pela teoria das representações sociais através de abordagens qualitativa e quantitativa. Objetiva‐se, portanto, contribuir com o estudo da dimensão subjetiva desses patrimônios por  considerar que uma política de preservação patrimonial efetiva não pode  ser  implementada  sem  a  compreensão  da  perspectiva  das  comunidades  que  moram  no  seu entorno. 

PALAVRAS‐CHAVE: monumentos religiosos, identidade e memória, representações sociais, preservação 

ABSTRACT  It  is  proposed  in  this  research  study  of  three  religious monuments,  currently  in  a  state  of  ruination, located  in  the  Reconcavo  of  Bahia,  seeking  to  analyze  the  architectural  aspects  and  investigate  the symbolic and imaginary aspects related to these assets. It is understood that the assignment of values to cultural heritage through social practices beyond the objective sphere, encompassing symbols, affective relationships with space, identity and memory. For these reasons the analysis follows the methodological steps suggested by the theory of social representations through qualitative and quantitative approaches. The  objective,  therefore,  contribute  to  the  study  of  the  subjective  dimension  of  these  assets  on  the grounds that a policy of effective heritage preservation can not be implemented without understanding the perspective of communities living around it.  

KEYWORDS: religious monuments, memory and identity, social representations, preservation 

1 INTRODUÇÂO 

A região escolhida para o desenvolvimento deste trabalho, Recôncavo da Bahia, é conhecida desde o século XVI como a faixa de terra formada por mangues, baixios e tabuleiros que contornam a Baía de Todos os Santos. Sendo o Recôncavo formado por 35 municípios, totalizando uma área de 10.400 Km2 de superfície. Sua colonização é resultante da expansão da lavoura de cana‐de‐açúcar pelos portugueses. O desenvolvimento da economia deu‐se a partir do século XVIII até o início do XIX, período áureo, e nas cidades com atividade portuária houve um maior desenvolvimento urbano (AZEVEDO, 1982). 

No século XVIII, com a expansão urbana e a densidade demográfica da região estabeleceu‐se uma rede que articulava vilas, povoações e cidades. Os fluxos circulavam por vias flúvio‐

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marítimas e caminhos terrestres, tendo nos engenhos e nos pousos suas primeiras formações urbanas. A sucessão de construções, povoamentos, engenhos e capelas, ao longo dos primeiros séculos de colonização, acompanhava o curso dos rios. O Recôncavo da Bahia, conforme SANTOS (1960), formou a primeira rede urbana da colônia portuguesa nas Américas com os núcleos de povoamento integrados por formações urbanas. 

Uma igreja ou uma capela constituía o ponto em torno e em função do qual se formavam pequenos aglomerados humanos, sendo assim estabelecidos muitos dos núcleos urbanos brasileiros do período colonial. Segundo MARX (1989) em geral, o processo de formação de uma vila a partir de uma capela começava com a doação de terras para a sua construção, feita por um rico proprietário rural ou por vários vizinhos. Para estas capelas serem sacralizadas, deveriam atender às condições impostas pela legislação canônica, principalmente, serem edificadas em locais geograficamente destacados e com área livre em seu entorno para o adro e o passo das procissões. A determinação da localização da capela condicionava o parcelamento do solo inicial, onde a Igreja controlava e determinava o início da malha urbana da futura vila ou cidade. Até o momento da criação do município, esse processo de expansão era norteado pela igreja. 

Com o crescimento da população, uma capela passava para outro patamar e era transformada em paróquia ou freguesia. Como sede paroquial, a antiga capela se transformava em igreja matriz, e, dessa forma, ia ampliando tanto a sua edificação quanto a população à sua volta. Posteriormente, era elevada à categoria de vila, com a instituição de uma câmara e determinação de um solo público. A partir daí, a constituição do espaço físico das formações urbanas coloniais ficava determinada, onde a igreja matriz se destacava, no centro, e tudo irradiava a partir dela, tanto o desenvolvimento da vida quanto da paisagem desses núcleos (COSTA, 2003). 

A formação de várias cidades do Recôncavo da Bahia deu‐se, também, a partir do estabelecimento da igreja católica. Alguns autores1 destacaram esta ação no ato colonizador e, especialmente, como ela se antecipava à Coroa. A definição dos espaços nos territórios deu‐se através da criação de freguesias e o agrupamento de fiéis junto a povoações ou engenhos com capelas e, de forma mais intensa junto à matriz, onde era produzida uma "malha reticular hierárquica que tomava o espaço de ocupação e uso antes mesmo do estabelecimento do recorte político administrativo feito pela Coroa” (ANDRADE, 2009) quando esta, aliando‐se com o poder eclesiástico, dava origem a novas vilas e estabelecia termos. 

Com o fim do ciclo açucareiro no Recôncavo e a inclusão do sudeste no processo de desconcentração industrial, a região passa por transformações socioeconômicas e territoriais latentes que vão lhe conferir novas dinâmicas estruturais. Atualmente, ainda percebe‐se na região tanto a relevância da territorialidade da cana‐de‐açúcar (dominante no período colonial), quanto as suas repercussões e transformações nos períodos que sucederam o apogeu, possibilitando uma análise do espaço geográfico e sua dinâmica. A temporalidade é visível quando se destacam as modificações sociais e econômicas ocorridas do apogeu até a decadência ao longo do tempo. 

Grande parte do patrimônio histórico de várias cidades do Recôncavo da Bahia, representado, principalmente, por igrejas seculares, encontra‐se em estado de arruinamento, as causas 

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principais vão desde a expulsão dos jesuítas no século XVIII até as grandes transformações socioeconômicas.  Atualmente, existe uma nova reconfiguração espacial nesta região onde as atividades econômicas se reestruturaram possibilitando o atendimento das demandas contemporâneas da população de vários municípios, em especial, naqueles em que há produção de petróleo. 

Refletir sobre a preservação desses patrimônios históricos significa debruçar‐se sobre a lógica subjacente aos conceitos e valores conferidos a esses espaços ao longo do tempo, considerando‐os como lugares de memória. Esse sistema valorativo é coletivamente construído, como as relações com os lugares, as estruturas identitárias e a memória, tudo isso articulado no imaginário irá fundamentar a elaboração, reprodução e expressão das representações das comunidades acerca do patrimônio. 

2 PATRIMÔNIO EM RUÍNAS 

A concentração de significados simbólicos, sociais e artísticos transforma as ruínas em fontes privilegiadas para a investigação sociológica de suas representações e para a pesquisa arquitetônica da expressão formal. O conceito de patrimônio religioso em ruína possui uma composição múltipla, memorial, cultural e identitária, fundamental para qualquer sociedade. Contudo, ele também é em si próprio, um conceito “em aberto”, inter‐relacional, sujeito a debate, que passa necessariamente pela reflexão, estudo, avaliação, reconhecimento, conservação e conscientização do seu valor. 

Esta pesquisa analisará o universo simbólico referente ao patrimônio em ruínas situado em dois municípios do Recôncavo da Bahia, abaixo relacionados, subsídios para os estudos acerca do homem, do seu espaço, das suas mentalidades e da sua cultura: 

Município de São Francisco do Conde:  

Distrito de Paramirim: Capela de Nossa Senhora do Vencimento (Sec. XVIII) ‐ Figura 1   

Distrito de Monte Recôncavo: Igreja de Nossa Senhora do Monte (Sec. XVII) ‐ Figura 2  

Município de Vera Cruz:  

Distrito de Barra Grande: Capela de Nossa Senhora da Conceição (Séc. XVII) – Figura 3 

Figura 1: Capela de N. S, do Vencimento Figura 2: Igreja de N. S. do Monte 

 Fonte: Foto da autora, 2010  Fonte: http://imaginarivm‐imaginarivm.blogspot.com.br

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Figura 3: Capela de N. S. da Conceição 

 Fonte: Foto da autora, 2009 

Estes monumentos constituem‐se num dos mais importantes legados históricos e culturais dessas regiões. Sendo, efetivamente, referenciais do patrimônio brasileiro, dado que a preocupação religiosa e os respectivos estabelecimentos se encontram presentes desde as nossas origens, sempre associados a períodos fundamentais da história política, cultural ou artística do país. Estão localizados em áreas destacadas, locais marcados por singular delimitação espacial e são representativos do bem patrimonial, reconhecidos por órgãos estadual e federal. 

O patrimônio histórico em ruínas transforma‐se em espaço ritualístico que suporta a transformação da identidade dos sujeitos por meio de processos sociais. A perda da aura, ainda que possa contribuir para a destituição desses bens, segundo Fortuna (1994), isto só acontecerá parcialmente, pois eventualmente até reforçará, a sua capacidade de funcionar como instrumento a serviço de estratégicas simbólicas de autopromoção e de integração social. 

Assim, alguns fragmentos que nos são revelados na interação com os monumentos e as comunidades, possibilitam a compreensão das relações entre o passado e o presente. Quando esses patrimônios se mostram depredados e abandonados assinalam não apenas uma cidade destruída, mas a cultura arruinada. Quando o passado é um destroço, o presente fica hipotecado e, ainda seguindo o pensamento de Simmel (2005), pode‐se dizer que, para salvar o passado e respeitar o presente, será preciso uma política capaz de manter e preservar o nosso patrimônio. 

Segundo Walter Benjamin (1987), a ruína apresenta‐se como alegoria, sendo esta, representativa de um espaço fragmentado e suscetível a variadas interpretações com resquícios que rememoram o que a mesma foi um dia. Complementando esta conceituação, Paraizo afirma: 

Se a ruína, como alegoria, é algo que sobra de um suposto conjunto que desapareceu, é também uma tensão entre o efêmero e o eterno, sempre lembrando que o todo, do qual pretensamente é parte, não se pode reconstruir (2006, p:3). 

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O aspecto incompleto e fragmentado da ruína, a define. Por isso ela pode contar com diversas leituras, uma vez que aquilo que falta pode ser imaginado, bem como sua trajetória, da construção até o próprio arruinamento. Além disso, sua proximidade com a destruição nos remete à fragilidade da vida aliada à contraditória sobrevivência do monumento – que mesmo em aspecto fragilizado, permanece. 

3 IDENTIDADE E MEMÓRIA 

Segundo Françoise Choay (2007) o passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer, ele é localizado, selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar, constituindo‐se numa garantia das origens. Onde a essência do monumento é estabelecida através de sua função antropológica, ou seja, a relação do tempo vivido e com sua memória.  

O monumento constitui‐se tanto como objeto quanto como sujeito do imaginário, isto é, ao mesmo tempo em que o imaginário elabora imagens e símbolos sobre ele, os seus atributos físicos tornam‐se elementos para a constituição do imaginário. Esses símbolos funcionam como códigos que permitem a identificação do grupo. O imaginário estrutura‐se a partir das instituições sociais, da religião, da organização econômica, da estrutura jurídica do poder político e também do espaço físico, que adquire significação por meio das praticas sociais. Nesse processo, quando o espaço é representado no imaginário, a ele são atribuídos valores. Assim a percepção de parte da história da cidade em que se localizam os monumentos de importância histórico‐arquitetônica, ultrapassa a dimensão física.  

O espaço adquire significado por meio da experiência, onde há interação entre o indivíduo e o ambiente, permeado pelas relações sociais que possibilitam a estruturação de uma rede de significados e sentidos culturais (CARLOS, 1996). Passa a ser, então, um lugar com forte carga subjetiva, ligado mais às experiências, ao aspecto afetivo, à necessidade de raízes do que ao sentido geográfico do termo.  

 A apropriação envolve significados, crenças, concepções, sentimentos, atitudes, opiniões, imagens e senso comum, relativos ao patrimônio, revelados nas práticas sociais eventuais ou cotidianas. Freire (1997, p. 57) considera que a apropriação acontece quando “os objetos são incorporados ao repertório visual de seus habitantes, ligando‐se às suas experiências afetivas, momentos significativos de sua vida”. Sendo assim, o patrimônio construído é uma porção do espaço que, quando experienciado e apropriado, pode se tornar lugar. Com a apropriação, o individuo ou grupo social tanto assume determinado lugar como propriedade sua, quanto também entende que a ele pertence. Esse sentimento de pertença não se relaciona apenas à dimensão espacial: pertencer ao lugar significa também pertencer ao grupo. Como coloca Halbwachs (1990, p. 69), “há em cada época uma estreita relação entre os hábitos, o espírito de um grupo e os aspectos dos lugares onde ele vive”. Assim, a apropriação e a sensação de pertencimento estão intimamente relacionadas à formação da identidade, seja individual ou coletiva. Por basearem‐se em valores que são construídos social e historicamente, o processo de apropriação e, portanto, da estruturação de identidade, são dinâmicos. 

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A declaração identitária não existe a priori, é sempre múltipla e inacabada, algo que busca se estruturar. Ela é construída em um processo que leva em conta as questões existentes no contexto social. A identidade de um grupo, em dado momento, pode mais tarde ser esquecida, pois outro contexto e outras relações estão em jogo. A identidade se estrutura a partir de elementos que se interrelacionam, como os valores culturais vigentes no grupo social e as relações com os lugares e a memória. 

A memória é um dos elementos ligados à experiência que contribui para o processo de apropriação, pois permite a compreensão de como ocorreu a vivência naquele lugar. Não existe memória sem imaginário e não há imaginário sem memória dos indivíduos. Com relação à identidade, a memória é um fator fundamental para sua constituição, em função do sentimento de continuidade e de pertencimento que confere ao individuo ou ao grupo. A memória cria identidade para o grupo, com o que é comum a ele. Um dos pontos que permite a identificação do sujeito com o grupo é um passado de acontecimentos e experiências em comum, que possa funcionar como elo, que fomente o sentimento de pertença. Essa memória coletiva tem um caráter dinâmico: quando o grupo muda ao longo do tempo, as lembranças também se transformam. Ela só subsiste enquanto o grupo social existe; quando seus integrantes morrem, tem fim também a memória coletiva. As lembranças particulares só subsistem quando têm o respaldo das coletivas (POLLAK, 1992; HALBWACHS, 1990). 

Assim como a identidade, a memória é uma construção social, é um trabalho de organização que articula a lembrança e o esquecimento, sofrendo transformações constantes. A memória é seletiva, depende dos valores do indivíduo, do momento histórico e dos interesses do grupo social, que sempre remetem aos conflitos de definição das identidades (POLLAK, 1989). A memória coletiva é formada para dar sentido e estabelecer a maneira do individuo se relacionar com o mundo.  

Em relação ao espaço, a memória é coletiva, pois a percepção do espaço resulta do que o olhar apreende, que é trabalhado no imaginário a partir de valores e conceitos estabelecidos pelo grupo. O lugar funciona como suporte da memória coletiva e da identidade social. Assim, quando os lugares são transformados ou destruídos, há o sentimento de estranheza e perda das referências identitárias. 

O patrimônio cultural desempenha um papel fundamental na procura ou criação das novas estruturas identitárias. Ele ultrapassa o conceito de lugar, espaço físico que é apropriado por meio da experiência, para ser um “lugar de memória”, que apresenta dimensão material e funcional, mas principalmente simbólica (NORA, 1993). Esses lugares contêm elementos necessários ao sentimento de continuidade dos indivíduos e grupos sociais e contribuem para a manutenção dos valores identitários. Sendo assim, ao mesmo tempo em que fornece suporte ao pertencimento, memória e identidades dos sujeitos e grupos, o lugar “também é fragmento, resto, ilusão cambaleante em um tempo de brevidades, responsável por unir passado e presente” (BRANDIM, 2005, p. 240). 

4 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS 

A teoria das representações sociais, ligada à área de Psicologia Social, foi desenvolvida inicialmente por Moscovici em sua obra “Representação social da psicanálise”, em 1961. Entende‐se representação social como “uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2002). São conhecimentos práticos que possibilitam a compreensão do mundo e a comunicação 

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dentro do grupo social, sendo elaboradas pelos sujeitos sobre objetos socialmente valorizados. A investigação centrada nas representações sociais fundamenta‐se no fato de que, consciente ou inconscientemente, elas são utilizadas nos momentos decisórios em relação à cidade e que, por meio delas, são expressos os valores da sociedade, pois elas justificam e racionalizam comportamentos anteriores e guiam atitudes comportamentais (WAGNER, 2003). 

São as representações sociais que expressam as diversas visões de mundo dos indivíduos. Elas apresentam um caráter construtivo, criativo e autônomo, pois possibilitam a interpretação da realidade, estando intimamente ligadas às formas de expressão e produção do espaço pelo sujeito (JODELET, 2002). A representação social do patrimônio em estudo irá traduzir‐se através das percepções diferenciadas, resultantes das experiências das pessoas relativas ao monumento e ao ambiente urbano. 

Visando identificar a representação social das comunidades em relação aos seus patrimônios, será estabelecida uma premissa para determinar de que modo o estudo será realizado, delineando a representação social predominante, sem desconsiderar a diversidade de representações existentes. Sendo que o universo da pesquisa deverá ser adequado aos objetivos do estudo, de forma diversificada e exemplar da população a ser estudada, de modo a fornecer as informações necessárias para que se possa analisar o fenômeno. O grupo a ser entrevistado deverá ser composto por pessoas em diversas posições da sociedade, que enunciem representações sociais distintas: moradores de residências próximas aos monumentos; comerciantes locais; usuários do comércio e dos serviços locais; sujeitos sociais em posições chaves da sociedade (jornalistas, historiadores, professores, técnicos da prefeitura, representantes sociais e de comunidades religiosas; órgãos da esfera cultural).  

Algumas diretrizes deverão ser consideradas para definir a quantidade de indivíduos a serem entrevistados. De acordo com o IBGE (2001), aproximadamente 1% da população de um bairro pode ser considerada uma quantidade representativa, a variabilidade desse percentual poderá ser ampliada ou reduzida em decorrência da taxa de ocupação da área pesquisada. 

A utilização da teoria das representações sociais implica na adoção de procedimentos de pesquisa que privilegiam a fala, o que será obtido através da realização de entrevistas. Por meio delas, buscar‐se‐á detectar não apenas o conteúdo manifesto, mas também as oscilações, as hesitações e o contexto, que ajudam a revelar o imaginário do indivíduo. A fim de capturar a fala dos atores sociais, será procedida a pesquisa de campo, buscando adquirir informações sobre o problema, retirando dados da realidade social onde o fenômeno investigado ocorre. 

Selecionou‐se a entrevista semi‐estrutrada como instrumento de pesquisa de campo, por possibilitar o resgate de informações produtivas. Nesse modelo, as perguntas são lançadas de forma direcionada, permitindo ao entrevistado flexibilidade para discorrer mais longamente sobre os pontos que julgar relevantes, enunciando seu modo de pensar ou de agir, seus sentimentos, crenças e valores. 

Objetiva‐se que, ao final das entrevistas, seja possível identificar o sistema de valores da sociedade contemporânea local, para que seja possível inferir o que o patrimônio em ruína representa hoje, para os diversos sujeitos sociais. 

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No tratamento dos dados, será observada a necessidade de mostrar a representação social predominante, mas também levar em conta a multiplicidade de representações existentes. Considera‐se, também, o fato da pesquisa centrar‐se na fala dos indivíduos, expressivas de sentidos que revelam as representações sociais. Tendo isso em vista, julga‐se que a utilização da análise de conteúdo será mais apropriada, por permitir a identificação de um padrão com a abordagem quantitativa, bem como o tratamento qualitativo dos dados, que revele a diversidade das representações sociais. 

A análise de conteúdo segundo BARDIN (2004, p. 37), caracteriza‐se como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores quantitativos ou não”. Com o emprego desta técnica buscar‐se‐á estabelecer parâmetros mais objetivos de análise, dado o caráter subjetivo do assunto, ressaltando temas mais recorrentes, facilitando sua compreensão e adotando uma técnica mais rigorosa para que, frente à heterogeneidade do objeto, não se perca a finalidade da pesquisa. 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A noção de patrimônio cultural encontra‐se diretamente relacionada à memória e ao sentido de identidade, conforme menciona a Constituição Brasileira de 1988, em seu Art. 216. "[...] os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira." O reconhecimento do valor dos bens de caráter material é obtido por meio do Decreto de Tombamento. 

O patrimônio cultural está vinculado, portanto, à lembrança e à memória — numa categoria basal na esfera das ações patrimonialistas, uma vez que os bens culturais são preservados em função dos sentidos que despertam e dos vínculos que mantêm com as identidades culturais. Coaduna‐se com essas reflexões Mendonça (2004, p. 32), quando ressalta que “estas memórias nos fazem indivíduos e comunidade, que resgatam uma parcela da nossa cidadania, que nos permitem aspirar a categoria de povo civilizado e que nos fazem refletir na nossa caminhada para o futuro”. Nos recônditos da memória residem aspectos que a população de uma dada localidade reconhece como elementos próprios da sua história, da tipologia do espaço onde vive, das paisagens naturais ou construídas. 

A memória, do ponto de vista de Jaques Le Goff (1997, p. 138) estabelece um "vínculo" entre as gerações humanas e o "tempo histórico que as acompanha". Tal vínculo, além de constituir um "elo afetivo" que possibilita aos cidadãos perceberem‐se como "sujeitos da história", plenos de direitos e deveres, os torna cônscios dos embates sociais que envolvem a própria paisagem, os lugares onde vivem, os espaços de produção e cultura. Sob essa ótica, Le Goff destaca que a "identidade cultural de um país, estado, cidade ou comunidade se faz com a memória individual e coletiva"; a partir do momento em que a sociedade se dispõe a "preservar e divulgar os seus bens culturais" dá‐se início ao processo denominado pelo autor como a "construção do ethos cultural e de sua cidadania". Sem dúvida, a cultura apreendida como "formas de organização simbólica do gênero humano remete a um conjunto de valores, formações ideológicas e sistemas de significação" que norteiam os "estilos de vida das populações humanas no processo de assimilação e transformação da natureza". 

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O patrimônio se configura e se engendra mediante suas relações com a cultura e o meio. Sem dúvida, hoje se reconhece que a cultura é construída historicamente, de forma dinâmica e ininterrupta, alterando‐se e ampliando seu cabedal de geração em geração, a partir do contato com saberes ou grupos distintos. 

Desta maneira, o papel dos monumentos histórico‐culturais dentro de suas respectivas sociedades, mesmo que muitas vezes minimizado, é essencial para o entendimento da formação e andamento das memórias locais, sejam elas relativas a estratégias de poder ou às coletividades. E, ao se entender mais sobre tais memórias, passa‐se também, a compreender o posicionamento desta sociedade frente às influências e fenômenos sociológicos que a mesma vivenciou ao longo dos séculos, décadas ou mesmo anos – algo de grande importância para a produção de sua história local, bem como, para o planejamento e implantação de políticas culturais de defesa e manejo da cultura e do próprio patrimônio histórico‐cultural. 

Desde a década de 70 a preservação de monumentos históricos passa a associar‐se ao conceito de reabilitação (mudança de função inicial), reutilização (atribuição de novos usos a espaços que tivessem perdido a função inicial) e revitalização (animação dos espaços transformados). Neste aspecto pretende‐se abordar a recuperação dos bens patrimoniais do Recôncavo da Bahia, levando em conta o passado histórico, a identidade e a memória das comunidades com esses bens, visando uma perspectiva de intervenção no futuro, transformadora ou não, com relação às suas funcionalidades originais. 

6 REFERÊNCIAS 

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BARDIN, Lawrence. Análise de conteúdo. 3 ed. Lisboa: Edições 70, 2004. 

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FREIRE, Cristina. Além dos mapas: os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: SESC‐ Annablume, 1997. 

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértices – Editora Revista dos Tribunais Ltda, 1990. 

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7 NOTAS 

 

1 MARX (1989); COSTA (1998); FRIDMAN (2005); dentre outros. 

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NÚCLEO TEMÁTICO III: Memórias e Cidades 

Modernidade e tradição: A dialética na dinâmica urbana das cidades de pequeno porte 

Modernity and tradicion: The dialetic in the urban dinamic on the towns 

Tamyres Virgínia L. SILVEIRA Arquiteta e urbanista. [email protected]

Josélia Godoy PORTUGAL Mestre em Economia Doméstica/UFV; Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFV. 

RESUMO O  presente  trabalho  se  propõe  a  fazer  uma  consideração  sobre  a  dinâmica  urbana  das  cidades  de pequeno  porte,  que  se  desenvolve  na  dialética  entre modernidade  e  tradição.  O  estudo  passa  pela abordagem de conceitos pós‐modernos e pela análise destes na conformação urbana das cidades, num primeiro momento, da metrópole, enquanto palco do nascimento destes, e posteriormente, das cidades de  pequeno  porte,  num  momento  em  que  estes  novos  valores  e  princípios  conformadores  do comportamento  social,  extrapolam  os  limites  das metrópoles  e  se  difundem  pelas  demais  cidades, oferecendo‐as  (ou  impondo‐as)  novas  formas  de  estruturação  do  espaço  urbano  e  um  novo  perfil comportamental da sociedade. 

PALAVRAS‐CHAVE: Modernidade, Tradição, Dinâmica urbana, Metrópoles, Cidades. 

ABSTRACT: This paper supposed to be a consideration about the towns’ urban dynamic, what develop it selves in the dialectic between the modernity and the tradition. The study pass by the approach of the post modern concepts and by the analysis of its in the urban form, at the first moment, the metropolis’ form, while the birth’s  stage  of  this  concepts,  and  after,  the  towns’  form,  at  the  instant  what  this  new  values  and principles what remake the social behavior, extrapolate the metropolis’ limits and diffuse it selves by the other cities, offering to them new forms of urban space’s restructuration and a new society’s behavioral profile. 

KEYWORDS: Modernity, Tradition, Urban Dynamic, Metropolis, Towns. 

1 INTRODUÇÃO 

Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem‐se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram‐se deuses estranhos. (CALVINO, 1990: 31) 

Calvino (1990) evoca em um trecho de sua narrativa “As cidades Invisíveis” as mudanças decorrentes da inserção de novas forças na cidade, da relação modernidade e tradição na constituição do tecido urbano. “Fruto da imaginação e trabalho articulado de muitos homens, a cidade é uma obra coletiva que desafia a natureza” (ROLNIK, 1995: 7‐8). Sua dinâmica é, então, reflexo dos processos que incidem sobre ela, uma vez que estes se fazem através da ação humana. 

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Na contemporaneidade verifica‐se, segundo Rolnik (1995), uma velocidade de circulação nas cidades, em ritmo crescente, visto que se inserem em um cenário de modernização que promove a “redução das barreiras espaciais” (HARVEY, 1996: 173). Assim, os limites que continham a cidade vão se perdendo e ela torna‐se inesgotável, funde‐se a aldeia global, e ocorre gradualmente a “aniquilação do espaço através do tempo” (MARX apud HARVEY, 1996: 172). Desta forma, a cidade não pode ser entendida como um organismo fechado, “a totalidade não está presente imediatamente neste texto escrito, a cidade” (LEFEBVRE, 1991: 48), o que dela nasce e o que nela influencia, são processos advindos de uma esfera maior, dos grandes sistemas políticos, religiosos, entre outros. A tendência é que a cidade, e neste caso estamos nos referindo à metrópole, viva intensamente o processo de globalização. 

A experiência da Modernidade em sua plenitude, ou seja, na forma como foi vivida nas grandes cidades no final do século XIX e início do século XX, é bem descrita por Berman (1986) em seu livro Tudo o que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade, onde segundo ele: 

Essa atmosfera – de agitação e turbulência, aturdimento psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto‐expansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma – é a atmosfera que dá origem a sensibilidade moderna.  (BERMAN, 1986: 18) 

O cenário descrito por Berman (1986) foi uma realidade vivida na Europa a partir da “Revolução Industrial”, época em que as transformações ocorriam a uma velocidade nunca antes concebida, com grandes avanços científicos e inovações que alteraram o cotidiano das pessoas, as quais se viram aturdidas num momento em que, segundo um dos personagens de Rousseau (1712‐1778)1, “de todas as coisas que me atraem nenhuma toca meu coração embora todas juntas perturbem meus sentimentos” (ROSSEAU apud BERMAN, 1986: 18). Este momento foi marcado por uma ausência de referenciais, pelo medo do novo, o não conhecido que invadiu a vida das pessoas, oferecendo‐lhes novos caminhos e abalando certezas consolidadas pela cultura e pela tradição. 

Ao final do século XIX, as grandes cidades brasileiras também vão experimentar os processos advindos da Modernidade. No entanto, a “sensibilidade moderna” não se faz sentir no Brasil tal qual na Europa, pois, entre nós, os aspectos da modernidade, neste momento de disseminação pelo mundo, já não ocorrem de forma tão chocante. Contudo, é neste momento que cidades como, São Paulo, Rio de Janeiro (Figura1), Goiânia e Belo Horizonte vão experimentar em suas configurações urbanas, bem como, em sua arquitetura, as mudanças que já vinham ocorrendo na Europa, com as reformas urbanísticas inspiradas em Haussman (Paris, 1853‐70) e Cerdá (Barcelona, 1855‐64). No entanto também entre nós, as cidades ganham uma nova organização, e vão gradualmente se transformando em uma teia complexa de relações e lugares. Uma vez inseridas na modernidade, tudo lhes é pertinente, conforme argumenta Barki (2006), pois elas aceitam a inserção de inúmeras tipologias, e estas, por sua vez, se encaixam nessa grande teia e logo fazem parte da cidade. 

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Figura 1 ‐ Plano Agache, Rio de Janeiro 

Fonte: http://www.vivercidades.org.br/ 

Ao longo do século XX, a gama de informações se estende a ponto de tornar‐se uma disseminação de imagens, que extrapolam a condição física, são símbolos que marcam a cidade, como trata Arantes (2008). Neste contexto, a arquitetura segundo ele, é reduzida a um jogo de formas, e as metrópoles assistem o desenrolar desses sistemas simbólicos tomando o lugar dos objetos concretos, numa “dinâmica irrefreável que se desenvolve alimentando‐se de si mesma” (BARKI, 2006: 205). 

2 ENTRE MODERNIDADE E TRADIÇÃO – ALGUNS CONCEITOS 

O cenário da metrópole contemporânea, podemos dizer, já ultrapassa a realidade de pós‐modernidade2, um universo turbo acelerado do ciberespaço e da economia globalizada (BARKI, 2006: 205). As sociedades modernas que habitam este cenário são, segundo Hall (2005), sociedades em mudança constante, rápida e permanente, gerando uma mutação também no que diz respeito aos conceitos e valores, refletindo assim na cultura e na tradição, moldadas ao perfil da sociedade. 

No entanto, os processos velozes que acometem os grandes centros são sentidos mais tardiamente e de uma forma menos intensa nas cidades do interior. Simmel (1902) já ponderava sobre essa distinção em suas considerações sobre a metrópole no início do século XX. Para o autor, a metrópole apresentava tamanha multiplicidade na vida econômica, ocupacional e social que não se verificava nas cidades pequenas, pois nestas o “conjunto de imagens mentais flui mais lentamente, de modo habitual e mais uniforme”, favorecendo relações externas gradualmente abolidas nas grandes cidades (SIMMELL, 1902: 12). 

Entretanto, independente do grau com que as inovações incidem sobre a cidade, elas deixam, segundo Harvey (1996), suas marcas. O autor defende a existência de um palimpsesto urbano – uma paisagem composta de várias formas construídas, sobrepostas 

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umas às outras ao longo do tempo – da estrada de ferro e do navio à vapor, às mais recentes conquistas tecnológicas, cada grupo de inovação deixou sua marca, diferentes marcas na forma da cidade. As camadas se sobrepõem a uma velocidade crescente, reflexo dos processos de modernização cada vez mais avançados, que interferem de maneira radical na organização da cidade.  

Mas não se pode dizer que o palimpsesto urbano, as transformações ocorridas nas cidades, são decorrência apenas dos processos modernizadores, uma vez que é possível perceber outras fontes de influência, dentre estas, algo que diferencia cada cidade, ou seja, a cultura, enquanto tradição assimilada pela cidade e seus habitantes. Nas grandes cidades já se torna difícil identificar esses aspectos tradicionais que condicionam o comportamento social perante as novas situações. Temos que esta é uma realidade mais próxima das cidades menores aonde a modernidade chegou tardiamente e, não exerceu seus domínios com tanto vigor. Estas, podemos dizer que experimentam a modernidade, num tempo onde elas mesmas, e o mundo de maneira geral, já vivem em uma condição pós‐moderna. 

O domínio da globalização se entende e chega às pequenas cidades, chega mesmo ao campo, como nos coloca Lefebvre (1999). As inovações tecnológicas que permitem a troca de informação rápida levam às pequenas cidades, a realidade vivida nas metrópoles, pelo menos em partes. A intensa metamorfose da capital é vislumbrada no imaginário das pequenas cidades, fazendo com que as pessoas se encantem pelo seu modo de vida, pelo viver a metrópole, mesmo que hoje já não esperem mais, viver na metrópole, uma vez que são também conscientes de seus inúmeros problemas urbanos, problemas estes que já assolam também, salvo as devidas proporções, as cidades de menor porte. 

Ocorre então nestas cidades uma perda de identidade local, seduzidas pela gama de inovações que se colocam perante elas, as relações cultivadas pela cultura e tradição, são ameaçadas pelo fulgor das tribos globais, que através dos meios de comunicação não apenas comercializa, mas “destilam simbolismo, quer dizer, a impressão de pertencer a uma espécie comum” (MAFFESSOLI, 2006: 168). Podemos nos questionar até que ponto a globalização incide sobre as cidades de pequeno porte, e, se ela as modifica, como modifica? A mentalidade das pessoas permeia pela grande gama de informações comuns a este novo cenário, ou estariam elas ainda atreladas a algum tipo de tradição conservadora? 

3 A DINÂMICA DAS CIDADES DE PEQUENO PORTE – O UNIVERSO TURBO ACELERADO? 

O espaço urbano, composto por uma simultaneidade tamanha, um amplo convívio de funções e formas, caminha para um universo de marcas e símbolos do qual trata Arantes (2008), da submissão do concreto à imagem. O centro urbano “supõe e propõe a concentração de tudo o que existe no mundo, na natureza, no cosmos: frutos da terra, produtos da indústria, obras humanas, objetos e instrumentos, atos e situações, signos e símbolos.” (LEFEBVRE, 1999: 46). É a multiplicidade da vida metropolitana de que Simmel fala (1902), ainda no início do século XX, que culmina no “universo turbo acelerado do ciberespaço e da economia globalizada” do fim do mesmo século. (BARKI, 2006: 205) 

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“O homem urbano, considerado o mais inteligente de todos os primatas, produziu uma cidade onde a dimensão do humano se perde no cotidiano uniforme, massacrante e artificial” (CARLOS, 2008: 234). O homem se produz como estranho a si mesmo segundo Carlos (2008), pois sua identidade é deslocada (HALL, 2005), na busca pelas respostas na “caixa preta” que é o processo de consolidação do urbano. (LEFEBVRE, 1999). 

Assim temos a realidade das grandes cidades, onde o processo de globalização apesar de não ser homogêneo, como sabemos, exerce sua preponderância. A produção do espaço, segundo uma lógica do capital, produziu uma desigualdade imposta pelo fenômeno da globalização, sobre as formas, funções e agentes sociais, alterando‐os em maior ou menor grau e, no limite, substituindo‐os totalmente. (CORRÊA, 1999: 44) 

Aos grandes centros, o fenômeno atingiu alterando seus contornos, não mais expressos fisicamente, mas dissolvidos pela relação de proximidade que, doravante se verifica no cenário mundial. A “aniquilação do espaço” (MARX apud HARVEY, 1996: 172) inseriu a grande metrópole num contexto internacional de modernidade, onde sua estrutura foi modificada. As metrópoles não só viveram a ampliação de atividades, como o surgimento de novas, fato que, nas cidades menores, não se observa com tanta intensidade. 

As pequenas cidades, verdadeiras fronteiras entre processos rurais e urbanos, que absorviam pouco os processos cumulativos próprios da modernidade (DAMIANI, 2006: 136), característica própria dos países subdesenvolvidos, foram então, assimilando o processo mais lentamente, de forma a sofrer as modificações de forma mais residual como defende Damiani (2006). 

“As numerosas pequenas cidades brasileiras fazem parte do urbano que se produz com forças de dispersão que, conforme Santos constitui um fenômeno urbano assaz expressivo no país, paralelo aquele mais conhecido das grandes metrópoles” (ENDLICH, 2006: 84). Entretanto, é preciso investigar qual é o real perfil deste urbano, haja vista, a incipiente produção acadêmica sobre o tema. Muitas vezes embasadas em atividades primárias, funcionando como centros para a produção agrícola, as pequenas cidades podem ser vistas, num primeiro instante, como uma mescla de urbano e rural. Segundo Endlich (2006), constituem‐se, assim como os condomínios, as periferias e os loteamentos de entorno, como manifestações contraditórias do urbano, uma vez que tendem a negar as relações promovidas pela vivência do urbano, pela diversidade social, pela concentração e não pela dispersão, no entanto, podemos buscar entendê‐las como outra faceta do fenômeno urbano, que, devido a maneira peculiar pela qual assimilam a modernidade, produzem um espaço diferente, com suas próprias complexidades.  

As cidades de pequeno porte ainda vivem uma estreita conexão entre urbano e rural, carregam fortes relações tradicionais, favorecem o que Maffesoli (2006) chama de localismo, práticas comuns a “um conjunto que se apoia no parentesco, mas que também se apoia em múltiplas relações de amizade, de clientelismo, ou de serviços recíprocos”. (MAFFESOLI, 2006: 227). 

Estas pequenas cidades, segundo Santos (2006), fazem parte do urbano que se produz com forças de dispersão que “constitui um fenômeno urbano assaz expressivo no país, paralelo aquele mais conhecido das grandes metrópoles” (SANTOS apud ENDLICH, 2006: 

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84). Entretanto, é preciso investigar qual é o real perfil deste urbano, haja vista, a incipiente produção acadêmica sobre o tema. Muitas vezes embasadas em atividades primárias, funcionando como centros para a produção agrícola, as pequenas cidades podem ser vistas, num primeiro instante, como uma mescla de urbano e rural.  

De acordo, com Endlich (2006), a partir dos anos 70 e 80, a disseminação maciça dos equipamentos tecnológicos, implicou em um isolamento social, a cidade começa a perder seus pontos de encontro, a efervescência da convivência, das manifestações, começa a abrandar. A televisão e o telefone substituem o teatro e o cinema, os bancos da praça e a conversa na calçada. Ocorre, e isso é comum tanto às grandes aglomerações como às cidades de pequeno porte, uma tendência de renúncia à vida pública, que, segundo Sennett (1998), é entendida como um dos males da sociedade, causada pela impessoalidade, alienação e frieza. O cenário que se molda a partir da inserção de inovações na cidade faz com que as distâncias e o próprio tempo percam a relevância, os novos meios de comunicação possibilitam conexões, outrora inimagináveis. Desta forma, rural e urbano não podem mais serem atribuídos a determinados espaços, como coloca Endlich (2006), estes conceitos passam a não mais responder por uma condição física somente, mas à oferta da possibilidade de estar em contato com a globalização, de fazer parte, ainda que de forma branda, dos processos modernizadores. 

Mas não só a modernidade modifica a cidade, seus contornos são traçados, como já vimos anteriormente, por influências de aspectos mais específicos, os códigos e símbolos presentes na cidade, cultura e tradição, marcando o palimpsesto urbano. Segundo Silva (2010), no caso das pequenas cidades é de suma importância analisar a vida cotidiana das mesmas, uma vez que, ao serem vistas de forma superficial, tendem a serem julgadas como simples e desprovidas de dinâmica, se comparadas às metrópoles. Desta forma, a autora argumenta que “a vida cotidiana nas pequenas cidades é marcada pela regularidade dos fatos (safras, festas religiosas, etc.), que é regida pela natureza e pelas tradições, com pouca interferência externa, dando uma impressão de estagnação” (SILVA, 2010: 25) como colocado anteriormente, opondo‐se a multiplicidade da vida na metrópole, já observava Simmel (1902). 

As dinâmicas nos pequenos centros não são inexistentes, elas ocorrem de uma forma diferente se comparadas com as grandes cidades. Os processos modernizadores encontram dificuldade em penetrar profundamente na vida social da cidade pequena, uma vez que, de fato, os hábitos dessas cidades são marcados pela “pessoalidade” (SILVA, 2010), tem‐se um cenário onde todos se conhecem, no âmbito da vizinhança se vigiam, e assim, as pessoas, sem se dar conta, seguem as regras impostas por esta sociedade (SILVA, 2010), a inserção da modernidade pode ser renegada caso a mesma atinja tal pessoalidade, caso fira a relação de confiança entre as pessoas. 

Mas as modificações dos padrões sociais ocorrem sim, na medida em que os símbolos se permitem alterar de alguma forma, e as diferenças que coexistam se redesenhem, uma vez que a sociedade que habita esta cidade não é monolítica culturalmente, ela tem suas diferenças, seja étnica, religiosa, etária, entre outras. 

Segundo Corrêa (CORRÊA apud MEDEIROS, CARVALHO, 2008: 5), os pequenos centros podem exercer cinco possíveis funções: 1) prósperos lugares centrais ocorrendo em áreas submetidas à industrialização do campo; 2) pequenos centros funcionalmente especializados; 3) pequenas 

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cidades transformadas em subúrbios‐dormitórios; 4) focos de concentração de trabalhadores agrícolas; 5) núcleo dependente de recursos externos. (CORRÊA apud MEDEIROS, CARVALHO, 2008: 5). 

Pesquisa realizada em trabalho monográfico permitiu observar a cidade de Teixeiras‐MG (Figuras 2 e 3) que vive hoje uma crise de identidade, acompanhada pela estagnação da atividade cultural da cidade, que se reflete numa falta de dinamismo urbano. Verifica‐se um vazio, como aquele observado por Harvey (1999) na consolidação do capitalismo, reflexo da mudança de sensibilidade, que não mais permite ao habitante daquele lugar reconhecer, como parte de si, o espaço que habita. O palimpsesto urbano, apesar de bem delineado nas formas da cidade, que por sua dinâmica lenta, pouco se modificou em termos físicos nos últimos tempos, não é reconhecido pelo cidadão teixeirense, promovendo um esquecimento da história local e da memória coletiva, que dá sentido de ser a cidade. 

Observa‐se que a cidade ocupou uma posição de cidade dormitório, um grande contingente de pessoas trabalha ou estuda em Viçosa, cidade vizinha, com melhor infraestrutura. Pela economia mais forte e desenvolvida, é lá também que se busca por um comércio mais atraente e diversificado. A saúde é outra área que recebe apoio nos municípios vizinhos, pelos hospitais mais bem equipados e profissionais especializados. 

Figura 2 – Festa religiosa na praça da matriz, Teixeiras‐MG 

Fonte: Arquivo pessoal Aurélio Medina. 

Figura 3 – Desfile de 7 de setembro,  Teixeiras‐MG 

Fonte: Arquivo pessoal Aurélio Medina. 

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No campo cultural não seria diferente. Teixeiras sofre uma carência de lugares propícios ao lazer e entretenimento, é escassa a oferta de programações culturais, como vimos anteriormente, logo, as adjacências do município entram novamente como opção a este público.  

Como já observado, a cidade apresenta uma dinâmica lenta. Não há um movimento que atraia a população para viver a cidade, o que implica no descaso da mesma em relação ao espaço que habita. A população teixeirense não se reconhece em seu espaço e tampouco se sente no dever e direito de intervir para uma mudança, o que também foi constatado através das entrevistas. O cenário que se configura é de abandono do espaço de convívio e troca da população, que acaba por caracterizar a cidade de fato como cidade‐dormitório, uma vez que a dinâmica que as atividades poderiam promover na cidade, são transferidas à Viçosa e, em partes, a Ponte Nova.  

Analisando o palimpsesto urbano, percebemos que cultura e tradição foram aos poucos perdendo espaço, ou melhor, o espaço não mais abriga a manifestações de cultura e tradição. No entanto, essa perda se deu relativamente tarde, uma vez que a inserção dos meios de comunicação ocorreu de forma tardia no município, desta forma, as grandes mudanças aconteceram nas últimas décadas, mas já num caráter bem intenso. 

A modernidade atingiu a cidade alterando sim sua dinâmica, mas não por uma mudança drástica em sua configuração espacial como pode ser percebida em cidades de maior porte, a modernidade em Teixeiras se deu de uma forma como ocorreu em muitos locais, como observa Canclini (1999), na forma de objetos de consumo, o espetáculo da modernidade, rádio, TV, telefones, e hoje, a internet, suprimiram o encontro, a vivência do urbano, alterando uma dinâmica que não fora, em sua essência, acelerada, mas que experimentou épocas mais ativas.  

Há uma tendência a dissolução das monoidentidades em nome de uma cultural mundial, da mundialização do comportamento, segundo observa Canclini (1999), realidade que se configura na cidade de Teixeiras, com o esquecimento tradição local, em favor de “identidades partilhadas” (HALL, 2005: 74). Resguardadas as devidas proporções, observa‐se este fenômeno defendido por Hall (2005), produzindo consumidores para os mesmos bens, públicos para as mesmas mensagens, uma população que vive de buscar referências externas, em renuncia à história local, ou na melhor das hipóteses, pelo simples desconhecimento da mesma. 

Essa busca por referências externas faz com que os costumes e práticas não se baseiem nas experiências do passado, mas sobre as novidades oferecidas a cada momento, contribuindo para a crise de identidade do município. 

Outro aspecto a ser notado são as relações de pessoalidade das quais fala Silva (2010), relações intensas que se configuram como resistências a inserção da modernidade na cidade, mas que, no entanto, não são capazes de sustentar a tradição local, resultado de uma cultura fragilizada, marcada pela falta de identificação dos habitantes para com a cidade. 

Observamos a partir desses apontamentos, que a pequena cidade pode agregar mais de uma função acima citada, e poderíamos talvez dividir essas funções em dois grandes grupos, centros ativos e centros passivos. Aos ativos, primeira e segunda classificação, de acordo com proposta de Corrêa (2008), cabe uma dinâmica pautada em uma função promotora de recursos, capaz de exercer influência, ainda que pequena, em seu entorno. Ao grupo passivo, referente às três 

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últimas classificações feitas por Corrêa (2008), nota‐se uma apatia, a impossibilidade de se impor como detentor de uma função significativa, no sentido de movimentar a cidade, promovendo o progresso. Em oposição a isso, tende a ocorrer uma estagnação, proveniente da carência de complexidade que Santos (1979) defende enquanto requisito primordial para o acontecimento do fenômeno cidade. 

4 APONTAMENTOS 

Entender as cidades de pequeno porte é, sobretudo, entender como se dão as relações sociais nas mesmas. Como visto ao longo da discussão, estas cidades guardam relações estreitas de pessoalidade, o relacionar‐se com o outro e com as tradições que imperam na trajetória social é de extrema importância, e condiciona o comportamento das pessoas. Essas características dificultam a discussão das dinâmicas das cidades de pequeno como um fenômeno que permite generalizações. 

No entanto, não é menos verdade que estas localidades têm se deixado influenciar pelos processos modernizadores, e por mais que sua forma urbana não tenha sido alterada pelas inovações, seu palimpsesto sofre com o simples abandono do espaço público, em grande parte delas. Diferente das grandes cidades, que incorporam em seu tecido, em sua arquitetura, em sua infraestrutura e em sua própria estrutura social e morfológica, as tendências e necessidades impostas pela situação cultural de pós‐modernismo, as cidades de pequeno porte, em sua grande maioria, não sabem como lidar, pois não estão preparadas, com as transformações culturais advindas desse processo. A consequência mais imediata é que o espaço público vem sendo renegado de numa maneira insustentável para suas realidades locais. Assim, as novas tecnologias que cabem dentro de cada casa são exaltadas em detrimento do convívio na rua, no que Lefebvre (1999) reconhece como a desordem, que informa e surpreende a riqueza da cidade, a vida da cidade. 

As alternativas culturais adotadas pelos grandes centros, como os grandes teatros, museus, e mesmo os shopping centers, não cabem no cotidiano dessas pequenas cidades, que muitas vezes fracassam ao tentar reproduzi‐las no seu tecido urbano. É dessa forma que o grande questionamento quanto ao futuro dessas cidades se formula, pois a elas, muitas vezes mergulhadas sem ação nesse processo global, se imporia uma realidade incerta e distante de suas tradições. Detentoras de relações tradicionais e de uma cultura do próximo necessitariam lidar com os aspectos trazidos, pela modernidade, de forma a aliá‐los à construção ou renovação de experiências sociais que valorizem, principalmente, os seus espaços públicos. 

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SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental (1902). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967 

6 NOTAS 

 

1 Aqui nos referimos a Saint Preux do romance A Nova Heloisa publicado em França em 1761. 

2 Pós‐modernidade configura‐se como a mudança na sensibilidade, uma transformação cultural que rejeita a ideia de progresso, rejeita a continuidade e a memória histórica, numa, segundo Harvey (1992), ruptura da ordem temporal das coisas originando um peculiar tratamento do passado. 

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NÚCLEO TEMÁTICO IV: Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva 

O uso das tecnologias digitais no espaço: as telas urbanas The use of digital technologies in the space: the urban screens 

Lorena MELGAÇO  Mestre em Cooperação Internacional e Desenvolvimento Urbano pelo Consórcio Mundus Urbano (Université Pierre Mendès France e a Technische Universität Darmstadt); Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/ UFMG; Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/ UFMG; Pesquisadora do Lagear/UFMG.  Email: [email protected]

RESUMO Este artigo parte de estratégias atuais de requalificação do espaço de Berlim para compreender a forma como  as  chamadas  telas  urbanas  vem  se  disseminando  na  capital  alemã.  Para  isso,  discute  duas abordagens  diferentes:  as  ocupações  temporárias dos  espaços  ainda não  pressionados  pelo mercado imobiliário  —  com  foco  no  Tempelhof  Freiheit  —  e  a  requalificação  de  extensas  áreas  da  cidade impulsionadas  pelo  mercado  imobiliário  —  com  foco  no  Mediaspree  —  uma  vez  que  ambas  as abordagens  exploram,  a  partir  de  estratégias  diferenciadas,  a  vocação  cultural  da  cidade.  Dado  o enfoque tecnológico de ambas as iniciativas, discute‐se a questão do uso da tecnologia digital no espaço urbano, em especial com as chamadas  telas urbanas. Elaborando a partir das discussões realizadas no Fórum de  Inovação de  telas urbanas,  realizado em Berlim em 2011, apresenta‐se uma análise do uso destas telas, e em especial, a Nightscreen Gasometer — a maior tela da Europa — para assim, propor uma avaliação crítica do uso das tecnologias digitais no espaço público brasileiro.   

PALAVRAS‐CHAVE: tecnologias digitais, Berlim, Telas Urbanas. 

ABSTRACT This  paper  departs  from  current  requalification  strategies  carried  out  by  Berlin’s  municipality  to understand how  the  so‐called urban  screens are being displaced  in  its  territory.  In order  to do  that,  it discusses two different approaches to urban planning: temporary uses of the spaces on process of being pressured by real state and incorporated to the land stock — focusing on Tempelhof Freiheit Park — and the  requalification  of  extensive  areas  in  the  city  driven  by market  forces —  such  as  the Mediaspree project —  once  both  of  them  explore,  though  differently,  the  cultural  drive  of  the  city.  Given  their technological  approach,  the  use  of  digital  technology  in  the  urban  space  is  brought  into  question, specially  the  so‐called urban  screens. Elaborating on  the discussions held during  the  Innovationsforum Urbanscreens, which  took  place  in Berlin  in  2011,  a  preliminary  analysis  of  the  use  of  the  screens  is presented through the study of the Nightscreen Gasometer — the biggest digital screen in Europe — to, thereby, propose a further critical evaluation of the use of those technologies in our city: Belo Horizonte. 

KEYWORDS: digital technologies, Berlin, urban screens. 

1 INTRODUÇÃO 

Em The rise of the creative class, Richard Florida (2002) defende a necessidade de os planejadores urbanos pensarem em novos processos de estruturação urbana, no que chama de ‘cidades de talentos’. Esta estruturação se baseia no conceito do uso das forças criativas para o desenvolvimento econômico: pessoas com talentos variados nas áreas de ciência e pesquisa, engenharia e design, administração e organização, produção cultural e mídia, 

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responsáveis pela prosperidade de uma região. O autor apresenta uma gama tão variada de profissões que estas abarcam, ao fim, trinta porcento da força de trabalho norte‐americana. Em seu prefácio o autor anuncia 

Este livro descreve a emergência de uma nova classe social. Se você é um cientista ou engenheiro, um arquiteto ou um designer, um escritor, artista ou músico, ou se você usa a criatividade como uma fator chave de seu trabalho em negócios, educação, saúde, direito ou qualquer outra profissão, você é um membro1 (FLORIDA, 2002:XXVII).  

Sua teoria tem sido criticada por diversos autores (MALANGA, 2004; KRÄTKE, 2010). Um dos problemas que apresenta é o fato de que as medidas propostas beneficiam uma elite já estabelecida pelo modelo neoliberal e cujos resultados tendem a produzir gentrificação da região a partir da melhora socialmente seletiva das qualidades urbanas (KRÄTKE, 2010). Em segundo lugar, tais qualidades espaciais que esta classe mundial (world class) busca não são necessariamente semelhantes às demandas locais. 

Ainda assim, este livro se tornou um bestseller nos anos 2000 e diversos urbanistas em todo o mundo vêm adotando o seu método, transformando o espaço urbano e fornecendo a infraestrutura necessária para atrair as pessoas que se encaixam neste padrão. São exemplos desta abodagem Cincinatti, o estado de Iowa e Austin, nos Estados Unidos; Winnipeg no Canadá (MALANGA, 2004) assim como Berlim, capital alemã (KRÄTKE, 2004) e objeto deste artigo.  

Berlim é conhecida por práticas de resistência frente a diversas dificuldades econômicas e políticas que a assolaram no século 20, como os movimentos de agricultura urbana no Tiergarten após a Segunda Guerra Mundial, ou do mercado Polonês, estabelecido no Potsdamerplatz com a queda do Muro de Berlim (BLUMNER, 2006). A cidade também se caracterizou por práticas cotidianas de efervescência cultural não associadas à políticas urbanas e culturais, que também datam do início do século 20. Estas se valeram de grandes áreas em vacância dos antigos polos industriais em decadência e o desinteresse da indústria imobiliária durante o século passado. Uma das ocupações espontâneas mais significativas é a região do RAW‐Tempel (GROTH e CORIJN, 2005; OSWALT, MISSELVITZ e OVERMEYER, 2007) — entre os bairros de Friedrichshain e Kreuzberg. Esta região foi, por muito tempo, para diversos indivíduos e grupos “um porto seguro para as subculturas e para o ‘temporário’” (GROTH e CORIJN, 2005: 512), caracterizada por bares alternativos e boates famosas, assim como gravadoras independentes, e especialmente conhecidos no cenário de música eletrônica. A existência destas referências locais foram carros‐chefe para a criação da marca global de Berlim como uma metrópole cultural inovadora e selvagem (SCHARENBERG e BADER, 2009).  

Embora este caráter vibrante tenha tornado a cidade um pólo de atração de imigrantes específicos — entre eles, os artistas — Berlim não possui a mesma vocação econômica que a de Hamburgo, a de Munique ou a de Frankfurt (KRÄTKE, 2004). De fato, configura uma das cidades mais pobres da Alemanha com polarização sócio‐econômica crescente e declínio de população (GROTH e CORIJN, 2005). Diante da reestruturação econômica necessária, o poder público tem adotado diversas estratégias partindo desta vocação artística para criar formas de institucionalização da cultura na cidade. Estas incluem do incentivo institucional às ocupações temporárias (BBSR, 2008; BLUMNER, 2006) à grandes projetos de requalificação urbana — como o Mediaspree na última década e a atualmente, a região do Schöneberg‐Sudkreuz. Todas estas estratégias buscam a reativação de áreas abandonadas em Berlim, em diferentes escalas urbanas, mas com o objetivo final de desenvolvimento econômico2. 

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A institucionalização das ocupações temporárias de curta ou média duração visa a revitalização de regiões da cidade não pressionadas pelo mercado imobiliário a partir da ação individual ou coletiva. Os administradores locais vêem este tipo de ocupação como uma oportunidade para atrair residentes e negócios para a cidade, que passa a ser percebida como um centro de criatividade. Esta estratégia toma como partido o pressuposto apresentado por Florida da relação entre a existência de uma atmosfera tolerante, de pessoas talentosas e da tecnologia para a produção das cidades criativas, e conseqüentemente economicamente prósperas. Afinal, estratégias de usos temporários bem sucedidas exibem o potencial criativo de uma capital cultural como Berlim (BLUMNER, n.d). Esta institucionalização deve, porém, ser cautelosa. Em Liverpool, por exemplo, cidade escolhida como a capital europeia da cultura de 2008, o discurso de inclusão e diversidade cultural — base de todo o projeto — foi comprometido pelo excesso de regulamentação de uso do espaço público imposto ao longo do período de preparação.  Este fato ressaltou a inconsistência entre o conceito de cultura como produto da participação popular — explorado pelo programa como a identidade da cidade — e as políticas que acabaram por regular excessivamente as atividades culturais no espaço público e levaram, assim, à substituição das manifestações espontâneas pela ‘cultura oficial’ (JONES e WILKS‐HEEG, 2008). 

 Sharon Zukin (1995) também questiona a mudança de foco na análise de culturas como aspectos do dia‐a‐dia para a ideia de ‘Cultura’ como um coletivo de produtos fabricados de acordo com as demandas de patronos que competem para criar conjunto de símbolos e ao mesmo tempo, o espaço que os exibe. Como consequência, a Cultura — refletida em museus, galerias e arquiteturas famosas — é vista como um motor de desenvolvimento econômico e urbano e não como uma construção social que influencia e é influenciada pela produção do espaço e pelas relações sociais de produção. E quando se conforma aos padrões da cultura de massa, tais manifestações perdem qualquer reflexão estética da sociedade e da relação humana com o mundo, tornando‐se, assim, inofensivas a quaisquer questões de ordem social que devam ser tratadas, como aponta Robert Kurz (1999). Assim, passam a servir como mantenedora do status quo e não como um agente de transformação social e ainda, legitimando‐se com um discurso inclusivo. 

O Tempelhof Freiheit, situado nas antigas instalações do aeroporto de mesmo nome, fechado em 2008, é um importante exemplo da ação governamental para restruturação econômica. Desde seu fechamento, a área tem sido utilizada pela população como um parque, dada a sua extensa área livre em área central de Berlim. Como uma maneira de potencializar o uso da região, o Departamento de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (Senatsverwaltung für Stadtentwicklung und Umwelt) criou o Pioneerprojekte, iniciativa na qual indivíduos e ONGs podem propor atividades de uso temporário para o parque. Mas o plano para o Tempelhof vai além dos usos temporários (que de fato, serão permitidos até 2016). Em 2017 o local sediará o IGA 2017 (Internationalle Gartenausstellung, Exibição Internacional de Jardins), com o conceito de ‘a cidade de amanhã’ e cuja expectativa de visitação alcança três milhões de visitantes3. Este evento por sua vez, já anuncia o IGA 2020 (Internationalle Bauaustellung, Exibição Internacional de Construção) a ser sediado também em Berlim, em 2020. Cria‐se desta forma uma rede de mega eventos que garante o fluxo de investimentos (público e privado) e a atração de turistas no cenário internacional por quase uma década. 

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Futuramente, o Tempelhof Freiheit será incorporado novamente ao mercado imobiliário com o desenvolvimento de mais um novo empreendimento, que como tantos outros, explora os temas em voga no planejamento: neste caso, a mobilidade. Para isso, prevê a construção do e‐THF – Kompetenzzentrum Elektromobilität Tempelhof ( Centro de Competência de Eletromobilidade Tempelhof). Percebe‐se assim uma trajetória de re‐inserção desta porção de terra no mercado imobiliário a partir da lenta institucionalização do seu uso, que culminará com a privatização de parte de seu espaço e a consequente gentrificação da região. 

Em outra frente de atuação, o projeto Mediaspree vem transformando Berlim em uma cidade global de mídia (KRÄTKE, 2004). Fruto da negociação entre governo e grandes corporações, Mediaspree vem requalificando grande parte da região de Kreuzberg‐Friedrichshain (fig. 01) desde meados da década passada à revelia da população local. A estratégia de desenvolvimento urbano que privilegiou a instalação de grandes empresas ligadas à indústria cultural, hotéis e grandes empreendimentos habitacionais, tem causado gentrificação na região, desmobilização de seus habitantes e descaracterização das margens do rio, que cobre uma grande área da cidade de Berlim (GROTH e CORIJN, 2005), mesmo com a existência de uma frente de resistência organizada e mobilizada (fig. 02) — a Mediaspree Versenken (Afundar o Mediaspree)4. 

Figuras 1 e 2: Projeto Mediaspree e convite para a participação da marcha contra o projeto, coordenado pelo Mediaspree versenken. 

Fonte: www.stadtentwicklung.berlin.de/planen/stadtentwicklungsplanung/en/wasserlagen/raeume/spreeufer.shtml e www.who‐owns‐the‐world.org/wp/wp‐content/uploads/2008/04/plakat_ksg_2008.jpg 

A imagem criativa e alternativa da região foi explorada pelo poder público como lema do Mediaspree, anunciado como um projeto que valoriza as características locais determinadas pelas sub‐culturas e o uso já instituído do espaço público. Scharenberg e Bader (2009) apontam, porém, a prevalência do caráter econômico da iniciativa dada a escala da intervenção, público‐alvo do projeto — gigantes da indústria cultural — e a manutenção do interesse da indústria imobiliária. Esta abordagem privilegia o que Jessup e Sum (apud SCHARENBERG e BADER, 2009) denominam ‘cidade empresarial’ (entrepreneurial city), na qual a atração das indústrias criativas é vista como a solução para os problemas urbanos contemporâneos. 

A ‘cidade empresarial’ é o foco de ambas as abordagens aqui apresentadas, deixando assim, em segundo plano, o desenvolvimento social e cultural. O conceito de cultura que parece ter 

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permeado a própria formação de Berlim é transformado, e acaba por se aproximar e transitar entre os conceitos de cultura de elite e cultura de massa, obliterando elementos cotidianos que compõem a cultura local. O cenário de ocupação temporária e desenvolvimento espontâneo de diversas sub‐culturas é enfraquecido ora cedendo lugar a projetos que passam pelo crivo de curadores e processos de seleção; ora se enquadrando em políticas urbanas associadas a grandes corporações. O uso temporário do Tempelhof atualmente promove uma integração social e acesso irrestrito ao espaço, ainda público. Mas seu caráter temporário é precursor da revalorização fundiária e da sua consequente privatização. Já com o Mediaspree, a política de clusters criativos acaba por aumentar a desigualdade social, ao proporcionam poucas (se não nenhuma) oportunidades e mudanças para residentes menos favorecidos, dado o aumento do custo de vida das pessoas (PANOS apud van HEUR, 2009).  

Por causa deste grande investimento na indústria da mídia, Berlim é atualmente um dos destinos mais procurados pela ‘classe criativa’ (KRÄTKE, 2004). Acompanhando esta tendência, o setor privado vem também explorando as tecnologias digitais a partir do uso de DOOH (tecnologias digitais em ambientes de uso público, no original Digital out‐of‐home media), em especial nas chamadas telas urbanas (Urban Screens) — displays dispostos no espaço urbano e cujo uso prevê a exibição de conteúdos culturais. A proliferação destas telas está intimamente relacionada com a ideia de Berlim ser uma das cidade mundiais da mídia. Se por um lado, os displays digitais estão cada vez mais presentes no espaço público, e vem, pouco a pouco substituindo a mídia antiga de propaganda, por outro,  pouco se vê de conteúdos culturais sendo difundidos por estes meios. 

2 O ESPAÇO URBANO E O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO 

A relação entre o desenvolvimento tecnológico e a sua influência na produção e na fruição do espaço urbano é tema de diversos trabalhos (GRAHAM, 2004 e MUMFORD, 1934). Ao longo do século 20, alguns acadêmicos assumiram que o desenvolvimento das TICs (tecnologias de informação e comunicação), das tecnologias de transporte e da cultura digital poderia significar um colapso catastrófico para as cidades, isto é, a independência do homem do espaço público, das infraestruturas urbanas, dos fluxos de transporte e, em última análise, inclusive do próprio corpo (GRAHAM, 2004). Outros vislumbraram um planeta sem barreiras, como Marshall Mcluhan (1962), que previu que o mundo se tornaria uma ‘vila global’ ou, mais recentemente, Thomas Friedman (2005), que argumenta que o mundo tenha se tornado plano devido ao desenvolvimento das tecnologias de comunicação e transportes. 

Ambas as colocações se mostram extremas, pois somos ainda mais dependentes da infraestrutura urbana (SASSEN, 2004) e não vivemos em um mundo sem barreiras. De fato, Doreen Massey (2006) argumenta que o desenvolvimento das tecnologias não afeta as pessoas de maneira uniforme e a diminuição das distâncias depende de quem a pessoa é e de onde ela está. O acesso às tecnologias digitais também obedecem esta mesma lógica.  

Contudo, existe uma mudança clara de abordagem quanto ao desenvolvimento tecnológico nos últimos séculos, como aponta Andrew Feenberg (2010) e essa mudança é essencial para entendermos o desenvolvimento das próprias TICs e sua relação com a produção do espaço. Sociedades pré‐modernas se desenvolviam (e se reproduziam) de forma mais ou menos estável 

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e apresentavam uma atividade técnica compatível com tal desenvolvimento. O desenvolvimento técnico era influenciado tanto pela experiência e quanto por outros fenômenos como religião, gênero, gosto e outros. A sociedade moderna, por outro lado, “desenvolve uma tecnologia cada vez mais alienada da experiência cotidiana. Este é um efeito do capitalismo que restringe o controle do design a uma classe dominante pequena e seus servos técnicos. [...] Os novos mestres da tecnologia não estão contidos pelas lições de experiência e mudança acelerada até o ponto onde sociedade está em um constante redemoinho” (FEENBERG, 2010: XIX)5. 

Um dos exemplos mais contundentes deste desenvolvimento acelerado e uso das tecnologias de informação e comunicação no espaço é a Times Square, nos Estados Unidos. A praça se tornou um cenário‐vedete que exalta o êxito do capitalismo contemporâneo ao explorar as tecnologias digitais para criar um ambiente que estimula o consumismo e dita o estilo de vida da classe internacional, provendo um “espaço público para a classe internacional” (public space for the world class, NEVARÉZ, 2009:164). Este espaço é privatizado pelas grandes corporações ali representadas e de fato não contempla espaços para a população local. Diversos níveis de controle são estabelecidos para a manutenção do status da praça, desde estratégias de controle direto, como sistemas complexos de vigilância privada a manutenção de estratégias subjetivas de códigos sociais de pertencimento. Desta forma, a experiência cotidiana de que fala Feenberg cede lugar para a prescrição do espaço. Além da interdição de diversas interações não previstas, e por isso, não desejadas, tal estratégia pode violar direitos e a liberdade política e social dos indivíduos — agindo como um organismo artificial que interfere com a natureza da vida urbana e transformando os espaços em ‘máquinas gigantes de venda’ (vending machines, ZUSTIEGE apud STALDER, 2011).  

A abordagem presente na Times Square e o sucesso mais recente de estratégias como a Federation Square, na Austrália, suscitam a necessidade de uma reflexão crítica — estética, social, política, econômica e social — acerca das condições atuais de emprego das TICs no espaço de uso público. Da maneira como acontece atualmente, tal emprego tende a reforçar as relações de produção e a perpetuação irrefletida das contradições sociais. A discussão em relação às telas urbanas — principal estratégia usada em ambas as praças — começa a ganhar força na Europa nos últimos cinco anos, mas pouca discussão se vê em torno das questões sociais a ela pertencentes.  

O termo urban screens foi cunhado durante a primeira conferência sobre o assunto — chamada “Discovering the Potential of urban Screens for Urban Society” — cujo objetivo era explorar as oportunidades de uso cultural da infraestrutura crescente de grandes displays digitais no espaço público. Buscava‐se afastar da ideia do uso das telas para influenciar o comportamento de consumidores rumo a possibilidade de revitalização do espaço público e geração de engajamento e interação das pessoas (BOUNEGRU, 2009). Em termos técnicos, a discussão vem avançando muito nos últimos anos. Para Gernot Tscherteu e Martin Tomitch (2011) as telas urbanas são grandes telas independentes do espaço construído, mesmo quando acopladas às fachadas de edifícios, e por isso se comportam como uma camada completamente diferente. Assim, diferenciam‐se das fachadas e das arquiteturas midiáticas que são produzidas de acordo com a intenção do arquiteto durante o projeto. 

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O Fórum de Inovação Urbanscreens 

Em 2011, o Fórum de inovação Urbanscreens, que aconteceu em Berlim, focou na inserção e nas potencialidades de uso destas telas nos espaços de uso público de Berlim e Brandenburgo em cinco workshops e uma conferência final.  Cada workshop teve um tema específico e reuniu grupos diretamente envolvidos em questões relacionadas à infraestrutura, conteúdo, tecnologia, desenvolvimento urbano e Cross‐media marketing6. Uma conferência final reuniu os diferentes grupos para que compartilhassem as conclusões de cada workshop e criassem conjuntamente uma estratégia para que as telas sejam de fato catalisadoras sociais. Esta experiência despertou diversas potencialidades de uso das DOOH propiciadas pelo avanço das tecnologias digitais. Estas vem despertando o interesse de diversos atores sociais, dentre eles órgãos de governo, acadêmicos, artistas, produtores de hardware e software, empresas de publicidade e seus potenciais clientes e a população. Revelou, porém, diversas contradições sociais inerentes à inserção destas telas urbanas no espaço urbano, evidenciando a existência de pelo menos dois grupos, aparentemente antagônicos, mas que ao fim servem ao mesmo propósito, isto é, alimentam e fortalecem a Indústria Cultural: aqueles que romantizam o potencial da tecnologia de produzir bens culturais e/ou de veiculá‐los — neste caso, conteúdos relacionados principalmente às artes visuais, interativas ou não — e aqueles que exploram o seu potencial econômico — seja na produção e manutenção da infra‐estrutura ou no seu uso como veículo de marketing. Isto porque ambos contribuem para a proliferação da cultura de massa que reforça o consumismo de objetos e padrões de comportamento sem uma reflexão social mais profunda. 

O primeiro grupo: em prol do potencial cultural das DOOH 

O primeiro grupo é composto de artistas, arquitetos e produtores de conteúdos culturais que acreditam na possibilidade de explorar o caráter cultural da tecnologia para fomentar o desenvolvimento democrático do setor da indústria da mídia, atualmente concentrado nas mãos de grandes corporações. Acredita‐se que o conteúdo cultural transmitido é muito mais benéfico para a sociedade do que as mensagens tradicionalmente veiculadas nestes meios — basicamente propaganda privada — porque, de certa forma, ela possibilita um acesso cotidiano à cultura. Um olhar mais atento para o tema, porém, aponta o equívoco desta perspectiva, sobretudo por duas razões: primeiro, grande parte das estratégias exploradas atualmente propõe experiências contemplativas, reforçando o que Henri Lefebvre (1991) denomina lógica do visual; e segundo, porque nestes casos o conceito de cultura se reduz sistematicamente à manifestações artísticas, ignorando outras igualmente importantes no conjunto da produção cultural de uma comunidade. 

Para Vilém Flusser (1989), tal situação reflete o terceiro momento de relação do homem com a sociedade: o funcionário pós‐industrial e seus filhos se tornam programáveis pelas imagens a que são expostos e tem seu criticismo reduzido ao mínimo para operarem (function) de maneira pré‐determinada e se tornarem produtores e consumidores de pontos de vista estabelecidos por outrem. Desta maneira, acredita‐se que tecnologias digitais predispõem de ferramentas que por si só podem solucionar diferentes problemas sociais, porque não se tem a consciência dos processos sociais que definem a produção do espaço e de que a inserção de tecnologia se encaixa neste mesmo cenário.  

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A separação entre produção do espaço e o desenvolvimento tecnológico é fortalecida pela difusão do chamado determinismo tecnológico que, segundo Feenberg (2010: 08), “se apóia na suposição de que as tecnologias tem uma lógica funcional autônoma que pode ser explicada sem referência à sociedade” e por isso ignora o poderoso impacto social imediato. “Uma visão determinista da tecnologia é senso comum em negócios e governo, onde se assume com frequência que o progresso técnico é uma força exógena influenciando a sociedade ao invés de uma expressão das mudanças na cultura e nos valores”. 

Alguns autores tentam escapar desta abordagem determinista, mas ainda ignoram que os conteúdos são criados ainda segundo a lógica das relações sociais de produção. Mirjam Struppek (2006), figura proeminente no estudo de telas urbanas, reconhece a necessidade de se tirar o foco na tecnologia em si e propõe uma produção de conteúdos orientados socialmente, mas não questiona os possíveis problemas oriundos da predeterminação que sugere. Embora não seja ditado pela tecnologia em si e sim por uma orientação social, acaba por estabelecer o conteúdo a priori, trabalhando no mesmo registro heterônomo de produção do espaço já estabelecido pelo capitalismo7. 

O segundo grupo: produtores de hardware e software e agentes publicitários 

O segundo grupo, composto daqueles que obtêm ganho econômico direto, seja com a produção de conteúdo ou com a instalação da infraestrutura — em resumo, a indústria da mídia — legitima sua ação com o discurso de prover conteúdo informativo e cultural, mas as telas vem sendo usadas em larga escala para estimular o consumo. Tenha como exemplo a BusTV, recentemente instalada em ônibus de oito capitais brasileiras, entre elas, Belo Horizonte. O conteúdo exibido inclui notícias, temas variados e também propaganda, como se a última fosse somente mais uma atração, e não o foco principal da instalação destes equipamentos. Ainda que Jessé Souza (2009: 50) aponte que os indivíduos dessa indústria não representam uma elite propositadamente má, mobilizada para manter as pessoas em um modo de vida superficial, eles ainda representam os interesses de um grupo, e para isso, recorrem à fabricação de necessidades e de bens simbólicos que satisfazem às demandas de seus clientes em um processo heterônomo (MARCUSE, 1964 e SOUZA, 2009). Neste caso, os próprios canais de mídia se transformam em bem simbólico que  

valoriza[m] o espaço físico e o social ao adicionar singularidade, significado e autenticidade, e desta forma, intensifica[m] o status das pessoas que o experimentam. Em estratégias de marketing, arquiteturas altamente midiatizadas promovem a construção de reputação de ambas localidades (cidades e bairros) e marcas (STALDER, 2011: 05). 

Além da arquitetura midiatizada, diversos dispositivos digitais são utilizados no espaço, e incluem sistemas visuais para postar informações em telas (notícias e informação de transporte), troca de informação (sistemas de quiosque), propagandas (outdoors) ou para incrementar o design arquitetônico (fachadas midiáticas) assim como servir de meio para arte pública (usualmente denominado de telas urbanas) em diversas formas (informação textual, imagens estáticas ou dinâmicas, luz) e de escala variável” (STALDER, 2011: 04).  

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3 O USO DAS TELAS URBANAS NO ESPAÇO DE USO PÚBLICO 

Como conseqüência da ação destes dois grupos, tem‐se uma naturalização da presença das DOOH que acaba por reforçar as relações de consumo já instituídas em mídias analógicas e estimulá‐las de forma que o valor de troca prevaleça sobre o valor de uso, no que John Thackara (2001) chama de o dilema da inovação: equipamentos e seus aplicativos são produzidos pelo impulso do desenvolvimento tecnológico e não das demandas sociais, e desta forma, sua produção é ditada por aqueles que a disponibilizam8. Nesse aspecto, existe pouca reflexão — uma escassa produção acadêmica que analise criticamente o emprego das tecnologias digitais no espaço — e pouca mobilização pública para que a discussão seja feita por todos os atores sociais envolvidos. 

Figura 3: Estratégia de Marketing da Coca‐Cola durante o Campeonato Europeu de Futebol 

 

Fonte: autora, 2012 

Diversos usos podem ser atribuídos às grandes telas digitais dispostas no espaço público, como por exemplo, transmitir informações em relação ao trânsito ou notícias, porém Ursula Stalder (2011: 03) aponta a hegemonia da transmissão de propaganda na infraestrutura de mídia digital já instalada no espaço urbano: “Na percepção da indústria de marketing, o principal business case para a infraestrutura de mídia digital no espaço público se restringe à propaganda, ou mais precisamente, em como novos canais de distribuição usam a propaganda (conteúdo, mensagens)”. Em Berlim, por exemplo, na ocasião do Campeonato europeu de Futebol, juntamente com um imenso outdoor da Coca‐Cola foi instalado um grande display digital (Fig. 03). Nele pode‐se ver fotos enviadas por pessoas pela Internet torcendo, hipoteticamente, para a Alemanha. Em meio às fotos de pessoas comuns, diversos símbolos da Coca Cola podem ser vistos. Efetivamente, as pessoas param na rua para observar a tela e consciente ou inconscientemente absorvem a mensagem da gigante dos refrigerantes. Curiosamente, é difícil manter “atenção seletiva de displays”9 nessa situação. Em menor escala, porém, telas urbanas vem sendo utilizadas para de fato transmitir conteúdos não comerciais. 

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Para estes usos, pelo menos três tipos de relação entre pessoas e displays podem ser evidenciados: visualização, participação indireta e participação direta10. A maior parcela de usos não‐comerciais se encaixa na primeira categoria, porque a visualização não requer gastos extra com outros sensores, como o de presença, câmeras, entre outros.  A Big Screen (fig. 4) por exemplo,  localizada em uma praça de Nova Iorque, possui uma grade de exibição sem publicidade. Um dos objetivos da Big Screen é veicular material também produzido pela população, sendo a primeira deste tipo nos Estados Unidos.  

Além disso, algumas telas apresentam conteúdo com o qual as pessoas presentes contribuem indiretamente em alguma ação pré‐determinada. Como exemplo, tem‐se o projeto Hand from above do artista Chris O’shea, veiculado na BBC Bigscreen de Liverpool, Reino Unido (fig. 5). Embora usualmente estas telas se encaixem na primeira categoria, pois transmitem jogos de futebol, notícias entre outros, Hand from above possibilitou uma nova camada de interação. A imagem das pessoas presentes na praça era manipulada por uma mão gigante, que vinha ‘de cima’. Embora as pessoas tenham se engajado nesta experiência, e ela tenha provocado novas interações no espaço, Hand from above evidenciou a dificuldade de interação das pessoas com a BBC Bigscreen, uma vez que ela é uma imensa televisão disposta a metros de altura do observador. 

Figura 4, 5 e 6: Estratégias de visualização, participação indireta e participação direta 

Fonte: Urban Screens Association, 2010; Wooster Collective, 2010 e Culturebase.org, n.d.  

A terceira forma de interação, aqui chamada de participação direta, é a mais rica de possibilidades de interação, pois implica na troca de informações em uma forma de interação  entre pessoas e tecnologia. É importante ressaltar que hardware, software e composição urbana devem permitir tal relação. Um exemplo não realizado potencialmente promoveria essa relação. Rude architecture network propôs o Chat stops (Fig. 6), um projeto para evitar o medo nos espaço público e promover a comunicação durante o período tedioso de espera de um ônibus. Questionando a disseminação crescente das câmeras de vigilância, o grupo sugere o seu uso para a comunicação entre pessoas em diferentes pontos de ônibus.  

Pressupõe‐se, porém, que esta relação de participação direta é pouco possível nas telas urbanas de grandes dimensões, porque neste caso, a escala humana, a relação entre os diferentes sentidos, assim como escalas de intimidade não são favorecedoras de uma interação mais duradoura. Assim, a euforia observada quanto ao uso das telas no espaço urbano como possibilidade de uma comunicação ampliada devem ser analisadas com cautela. Por não contemplarem estes pontos levantados acima, as telas urbanas ainda tendem a promover interações simples que enfraquecem o potencial dialógico das tecnologias digitais e reforçam o desenvolvimento da tecnologia por si. Claus Pias (2005) alerta que “interatividade se transforma em uma promessa que, ao brincar com o computador, qualquer um pode produzir algo e então revelar sua criatividade difusa” e que, de fato, não acontece. 

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Diversos outros problemas são associados à disposição de telas urbanas nos espaços públicos11, como integração com o espaço, complexidade de conteúdo, interações sociais desejadas, valores da comunidade local, usos especificados e potencialidades, atores envolvidos no processo, altos custos de manutenção entre outros (HALSKOV, 2009). Desta maneira, diversos são os exemplos de infraestruturas instaladas que apresentaram rejeição da população ou impossibilidade de continuação de transmissão. A fachada midiática do prédio da Bayern em Leverkusen por exemplo, com mais de cem metros quadrados de LED instalados, teve que ser demolida após a finalização de instalação. O prejuízo da empresa não foi revelado. O uso da fachada do edifício KPN em Rotterdam é hoje regulado por reclamações dos vizinhos (SCHIECK, 2009). 

Além disso, grande parte da programação apresentada nas DOOH ainda conserva o caráter de transmissão de informação herdado da televisão, de natureza analógica. O processo não é repensado para explorar as novas possibilidades trazidas pelo desenvolvimento constante da tecnologia digital — entre elas a facilidade de criar canais diversos de comunicação em tempo presente, que variam desde linguagem oral à atuação remota. Além disso, a extensão desta lógica unidirecional de transmissão de informação no espaço de uso público é usado como estratégia para reforçar o papel simbólico da arquitetura. Este papel, por sua vez contribui com a perpetuação das relações sociais vigentes — exclusivas e excludentes.  

O Nightscreen Gasometer: A maior tela urbana da Europa 

Instalado na região do Schöneberg‐Sudkreuz, o Nightscreen Gasometer ilustra a associação das políticas de requalificação urbana adotadas pela administração local e a exploração das tecnologias digitais no espaço urbano. O projeto prevê um complexo de escritórios e estacionamentos, hotéis, universidade privada e, assim como o Mediaspree está sendo desenvolvido a revelia da população local. Como contrapartida à restauração do gasômetro — patrimônio alemão — a empresa Megaposter a.G. instalou a maior tela urbana da Europa em um contrato temporário de uso do gasômetro, que já deveria ter sido encerrado. Embora tenha sido anunciado pela Magaposter a.G. como um projeto excitante de mídia digital, o Nightscreen tem sido fortemente criticado pelos Berlinenses.  

Durante o Innovationsforum Urbanscreens, Gerd Henrich, diretor da empresa, afirmou que telas urbanas são parte da experiência urbana exemplificando com a Times Square e o Picadilly circus, em Londres como ‘imãs de turismo’, e assim, reafirmando a importância desta investida também em Berlim. Gerrit Reitmeyer, da secretaria da região do Tempelhof‐Schöneberg, apontou, por sua vez, a dificuldade de estratégias como estas serem aceitas pela população, e consequentemente, a permissão de instalação das telas está cada vez mais difícil.  

Contudo, Nightscreen foi instalada e ainda opera com algumas restrições, tendo sido fortemente rejeitada não só pela população que vive nas redondezas. O maior incômodo gerado é a poluição luminosa, que para os que moram na região, implica na oscilação luminosa dentro das residências. Para os outros habitantes, a tela causa  grande impacto sobre os motoristas, por poder ser vista a uma distância muito grande. Alexander Ziemann, coordenador da iniciativa civil bi‐gasometer12, afirma que grande parte do conteúdo é composto de propagandas e auto‐promoção da própria empresa. Segundo ele “toda a área parece mais clara, mais barata, e mais como um parque de diversões, e isso é sempre negativo” (Fig. 07).  

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Figura 7: Paródia da Nightscreen, na qual está escrito que ‘publicidade torna burro’ 

 

Fonte: Glockner’s Manifest, 2009 

Mesmo que tenha sido ocasionalmente usada para transmitir conteúdos culturais, como durante os eventos Media Facade Festival em 2008 e 2010, Nightscreen Gasometer reforça o alto custo das estratégias que usam DOOH no espaço público. Em primeiro lugar, existe o custo financeiro de instalação e manutenção. Mas sobretudo, existe um desgaste social com a instalação das telas urbanas, seja pela poluição luminosa, seja pelo conteúdo exposto, seja pela valorização artificial da região. Estes custos combinados são muito altos para a qualidade de interação que estas tecnologias geralmente promovem: efêmeras e com pouca (ou nenhuma) reflexão social. Desta maneira, assim como grande parte das telas urbanas instaladas nas cidades, o Nightscreen não promove o ambiente propício para o exercício da cidadania no ambiente urbano. Ele pode ser visto à distância, permitindo que a região seja reconhecida de longe, mas não promove uma identidade local. Do ponto de vista urbano, o Nightscreen não contribui com a melhora das qualidades do espaço, evidenciando o objetivo principal desta iniciativa: o lucro. Desta forma, a Berlim – cidade mundial da mídia — pouco a pouco se afasta daquela outra Berlim que inspirou a sua mudança. 

4 O USO DAS TELAS URBANAS NO CONTEXTO BELO‐HORIZONTINO 

A avaliação da realidade de Berlim não pode ser simplesmente transposta ao cenário brasileiro. Ela aponta, porém, para a necessidade de uma análise crítica no Brasil, onde a aplicação de DOOH vêm crescendo rapidamente nos espaços de uso público e poucos estudos a respeito estão sendo realizados. Esta estratégia é vista pelas classes média e alta como um passo necessário para a sua aproximação das condições de vida apreciadas nos países desenvolvidos, onde o nível de tecnologização é bem mais avançado. Em um país onde as pessoas analisam a qualidade de vida pelo PIB (SOUZA, 2009), a inserção de dispositivos que refletem um aparente crescimento econômico e remetem à ideia de progresso para as classes dominantes reforça as relações sociais de produção e acaba por contribuir com o agravamento dos problemas socioeconômicos e culturais e a desigualdade social. 

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Em uma primeira análise do uso das telas urbanas no Brasil, percebe‐se uma reprodução da lógica formal internacional sem uma reflexão social do contexto específico, que implica no uso de novos meios para a disseminação da cultura de massa. Tal abordagem contribui para o processo de alienação das pessoas quanto ao uso político do espaço público, dado que grande parte da nossa população ainda prescinde do capital cultural necessário para questionar criticamente a produção e difusão da cultura de massa. E, como aponta Souza (2009:39) “[...]toda a nossa orientação na vida e toda justificação de nossas ações e comportamentos dependem de ‘ideias’ contingentes e fortuitas, formuladas por outros, e que comandam nossas decisões e julgamentos tanto mais quanto menos temos consciência delas”. Desta maneira, a partir da pesquisa realizada em Berlim, surgem perguntas importantes que devem ser contextualizadas e podem oferecer indicativos preciosos para o estudo das telas urbanas em Belo Horizonte, cidade onde o número de displays digitais vem aumentando consideravelmente nos últimos anos. 

5 CONCLUSÃO 

Desta forma, quatro constatações preliminares podem auxiliar nesta pesquisa. Em primeiro lugar, mesmo com o desenvolvimento crescente das tecnologias digitais, grande parte dos dispositivos ainda enfoca na visualização de informação, especialmente para estimular o consumo, mesmo que a tecnologia já tenha avançado suficientemente para promover um engajamento corporal não associado ao mercado. Em segundo lugar, quando utilizadas em um contexto interativo, que pressupõe uma comunicação ampliada, as  interfaces desenvolvidas refletem uma fetichização da tecnologia que não questiona a produção do espaço; promovem, assim, interações simples e efêmeras, incapazes de fomentar questionamentos sociais. De fato, muitas vezes se tornam meio para a manutenção do campo da arquitetura a partir a produção de símbolos — arquiteturas extraordinárias, como a Times Square. Em terceiro lugar, a disseminação acrítica da tecnologia alimenta o mito de que o seu emprego é alheio à nossa vontade, e que contra isso nada pode ser feito, tanto na sua produção quanto no seu consumo. Este mito encontra eco nos meios institucionais da sociedade, que não sabem como lidar com o crescente número de telas no espaço urbano. Finalmente, como a disseminação da tecnologia no espaço urbano está se acelerando no Brasil, deve‐se adotar uma postura crítica que questione a atuação das corporações de mídia nas cidades brasileiras e seu papel na Indústria Cultural. 

6 AGRADECIMENTOS 

Este artigo é resultante da pesquisa de mestrado “Technospaces; Strategies of Urban Reconfiguration using Information and Communication Technologies in Berlin” pela Université Pierre Mendès France e orientada pela Prof. Dra. Lauren Andrés. É também base para o desenvolvimento do projeto de pesquisa de Doutorado em andamento na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais e orientada pela Prof. Dra. Ana Paula Baltazar dos Santos. Além das professoras acima citadas, agradeço também a Prof. Dra. Katharine Willis pelas contribuições ao trabalho e consequentemente a este artigo. 

 

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7 REFERÊNCIAS 

Andrés, Lauren. Crises, disruptions and temporary uses: new challenges for planning practice and research?, 2010. [email] Message to Lauren Andres ([email protected]). Sent 23 February 2011. 

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ZUKIN, Sharon. The cultures of the cities. Oxford: Willey‐Blackwell Publishing, 1995. 

8 NOTAS 

 

1 Tradução da autora. No original: This book describes the emergence of a social class, If you are a scientist or engineer, an architect or designer, a writer, artist or musician, or if you use your creativity as a key factor in your work in business, education, health care, law or some other profession, you are a member.

2 A cada dia, cinquenta hectares de terras devolutas são inventoriadas na Alemanha (BLUMNER, 2006)

3 http://www.tempelhoferfreiheit.de/ueber‐die‐tempelhofer‐freiheit/parklandschaft/iga‐2017/

4 As informações podem ser acessadas no site do grupo: http://www.ms‐versenken.org/

5 No original: the modern world develops a technology increasingly alienated from everyday experience. This is an effect of capitalism that restricts control of design to a small dominant class and its technical servants. [...] The new masters of technology are not restrained by the lessons of experience and accelerate change to a point where society is in constant turmoil.

6 Estratégias multidisciplinares para comercialização e difusão das telas urbanas.

7 Embora seja importante mencionar que durante o simpósio Remediating Urban Space, no qual estava presente, Struppek mencionou a sua descrença no potencial social das telas urbanas quando se leva em consideração todo o 

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custo involvido e os benefícios decorrentes de seu emprego.

8 Este argumento está sendo desenvolvido em pesquisas do Lagear que tem como enfoque o desenvolvimento das tecnologias digitais e seu potencial de transformação social. BALTAZAR DOS SANTOS, A. P.; et. al. Towards socially engaging and transformative urban interactive interfaces (no prelo). In: ARTECH 2012 ‐ 6th International Conference on Digital Arts, 2012, Algarve. Algarve: Universidade do Algarve, 2012. 

9 A atenção seletiva de displays (display blindness) é semelhante à atenção seletiva aos banners que aparecem nos navegadores de Internet. Como tem‐se a expectativa de o conteúdo ser desinteressante, ignora‐se o display. (MÜLLER et al 2009).

10 Estas três categorias preliminares foram estabelecidas juntamente com Susa Pop na ocasião da preparação do Innovationsforum Urbanscreens, em Berlim em 2011. 

11 A maior parte dos estudos tem como enfoque experiências europeias e norte‐americanas, uma vez que não só a instalação é mais frequente como também os estudos nestes lugares são mais constantes.

12 As atividades da iniciativa podem ser encontradas em http://www.bi‐gasometer.de/. As informações foram adquiridas com o Sr. Ziemann em entrevista realizada em 2011 para a dissertação de mestrado da autora.  

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NÚCLEO TEMÁTICO IV: Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva 

Quando Rousseau visitou Alphaville: status, desigualdade e uma certa ideia de comunidade 

When Rousseau visited Alphaville: status, inequality and a certain idea of community 

Lucas Veloso de MENEZES Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/ UFMG; Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/ UFMG. [email protected]

RESUMO Este artigo propõe reflexão sobre a opção das pessoas em residir em condomínios.  Partindo da análise de questões  ligadas  à  ideia de  status, distinção e  vida em  comunidade,  analisa os novos modelos de condomínios  fechados  no  Brasil  e,  em  especial  os  Condomínios  Alphaville  de  São  Paulo  e  de  Belo Horizonte. Utiliza elementos de análise da organização espacial dos condomínios, da solução formal das casas  e  mesmo  dos  chamados  sinais  exteriores  de  riqueza,  especialmente  dos  automóveis,  para  a  instalação de uma “comunidade” voluntariamente segregada. 

PALAVRAS‐CHAVE: Status, Condomínio, subúrbio, segregação, comunidade 

ABSTRACT This  paper  proposes  a  reflection  on  one  of  the  issues  surrounding  the  choice  of  people  living  in condominium. Based on  the analysis of  issues  related  to  the  idea of status, distinction and community life, discusses the new models of Gated Communities in Brazil and in particular the charges Alphaville São Paulo and Belo Horizonte. Uses elements of analysis of the spatial organization of the condominiums, the formal solution of houses and even the so‐called external signs of wealth, especially through the cars, the installation of a "community" voluntarily segregated. 

KEYWORDS: Status, condominium, suburbs, segregation, community 

1 INTRODUÇÃO 

Mas a filosofia hoje me auxilia  A viver indiferente assim Nesta prontidão sem fim Vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim Não me incomodo que você me diga  Que a sociedade é minha inimiga  Pois cantando neste mundo Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo Quanto a você da aristocracia  Que tem dinheiro, mas não compra alegria Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente Que cultiva hipocrisia 

Noel Rosa ‐ Filosofia1 

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Seres humanos são animais sociais. Vivem, trabalham e convivem em grupos ou comunidades, que criam características chaves e até mesmo regras para sua eficiência, produtividade e sobrevivência, entre as quais se incluem lealdade, cooperação, identificação, sanções por eventual não cooperação e preferências. Entretanto, um ser humano tem e necessita de individualidades que, especialmente nas sociedades modernas, podem fazê‐lo membro de múltiplos grupos sociais, numa rede social humana vasta e complexa. Estes grupos demandam a criação de uma estrutura hierarquizada. Matsumoto (2007, p.414) enfatiza que as sociedades ou grupos altamente hierarquizados — e, em geral, baixos em igualitarismo — tendem a enfatizar o poder e diferenças de status entre seus membros, enquanto as sociedades ou grupos com baixa hierarquização — e, em geral, de alto igualitarismo — por sua vez, tendem a minimizar algumas diferenças e a distribuir recursos de forma mais equilibrada.  

Enquanto “ente” social, o ser humano, vive uma dicotomia que é a necessidade de viver em um grupo — ou comunidade, onde que procura o equilíbrio e paridade entre seus membros, ao mesmo tempo em que busca uma afirmação de sua própria individualidade. Neste aspecto, procura afirmar a sua unicidade por meio de atos e, principalmente, símbolos que devem ser manifestadamente exteriorizados. Lembra Tocqueville (1868, p. 223) que, em sociedades onde há maior desigualdade, as disparidades individuais não atraem pouca — e até nenhuma — atenção, enquanto naquelas em que predomina o igualitarismo e equilíbrio, a menor variação ou diferenciação é percebida. Assim, membros de grupos sociais ao mesmo tempo em que procuram a unidade, o equilíbrio e a igualdade do conjunto, individualmente, buscam sua diferenciação que, num contrassenso, produz desigualdades.  

Sobre as desigualdades entre seres humanos, Rousseau (1755, p.1) distingue‐as como de dois tipos: física e social. Enquanto o desequilíbrio físico tem sua origem em fatores naturais — idade, saúde, deficiências, inteligência — o desequilíbrio social ou político consiste em privilégios de alguns homens em detrimento de outros, como ser mais rico ou mais poderoso.  

Uma posição social hierarquicamente superior ou favorável numa sociedade denomina‐se, em geral, como status2. A obtenção de status se tornou, ao longo do tempo, de extrema importância para algumas pessoas que, lembra Tiedens (2000, p.560), despendem grande parte de seu tempo e energia para atender às expectativas de sua posição hierárquica — esperadas e auto impostas — e para subir para uma posição mais elevada ou para evitar ser demovido para posições inferiores.  

Nesta busca por diferenciação, a exteriorização é elemento chave na tentativa de obtenção de um reconhecimento, preferencialmente entre seus pares, de uma distinção pessoal. Nesta “jornada”,  procuram‐se símbolos que identifiquem, no senso comum, de forma clara uma diferenciação ou novo nível hierárquico de seu detentor.   

O filósofo e aristocrata francês La Rochefoucauld (1613‐1680), que viveu durante grande parte de sua vida sob o reinado de Luis XIV (reinou entre 1643 e 1715) — um regime em que se estabeleceram alguns dos parâmetros de luxo e de valorizações pessoais exacerbados —  tinha uma visão crítica sobre a sociedade, escrevendo que “o mundo recompensa com mais frequência os sinais de mérito do que o próprio mérito” (LA ROCHEFOUCAULD, 1982 [1665], p.58). 

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Dentre os símbolos, adquirem maior significância, aqueles que, embora de primeira necessidade, e de uso comum, possam ser “impregnados” de elementos ou características que o distinguem dos demais. Entre estes símbolos comuns que, invariavelmente são magnificados, está a residência. Um casebre, um barraco de favela e um palácio têm a mesma função precípua, a de abrigo, entretanto, sua forma, dimensão e acabamento estabelecerão a “posição” hierárquica ou status de seu detentor e principalmente como fator de estima e realização, conforme lembra Veblen (1994, 1994, p.20)3 : 

Então, assim que a posse do imóvel se torna a base popular da estima, por isso, se torna também um requisito para o tipo de complacência que chamamos de autorrespeito. Em uma comunidade qualquer onde os bens são possuídos separadamente, é necessário, para sua própria paz de espírito, que um indivíduo tenha a posse de quantidade maior de bens que os outros com quem ele está acostumado a se agrupar e é extremamente gratificante possuir algo mais do que outros. Mas tão rápido como uma pessoa faz novas aquisições, e se habitua ao novo padrão resultante da riqueza, o novo padrão imediatamente deixa de proporcionar maior satisfação do que, no início, este padrão trazia. A tendência, em qualquer caso, está constantemente a fazer do atual padrão pecuniário o ponto de partida para um novo aumento da riqueza, e este, por sua vez, dará origem a um novo padrão de suficiência e uma nova classificação da própria riqueza, em comparação com a de seus vizinhos. No que se refere a presente questão, o fim pretendido pelo acúmulo é a classificação elevada em comparação com o resto da comunidade, sob aspecto de força pecuniária. 

As Figuras 01, 02, 03 e 04 enfatizam algumas das questões levantadas por Veblen, especialmente naquelas relacionadas ao destaque na comparação com sua comunidade que o proprietário desta edificação pretenderia. 

Figura 01 – “Castelo” no Condomínio Residencial Tamboré 1 — parte do complexo de condomínios de Alphaville — Barueri, próximo a São 

Paulo. 

  Figura 02 – Réplica da estátua da Liberdade ‐ “Castelo” no Condomínio Residencial Tamboré 1 

Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009.    Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009. 

Figura 03 – Condomínio Alphaville, Lagoa dos Ingleses    Figura 04 – Vênus de Milo, Alphaville 

A utilização de réplicas de obras famosas é uma recorrência em São Paulo e Belo Horizonte. Nos dois casos as réplicas são colocadas em destaque junto à entrada principal da casa. Ao visitante já se demonstra de início a distinção e “cultura” de seu anfitrião. Observa‐se que, embora estas obras sejam colocadas junto à entrada, sua colocação em uma lateral poderia ser 

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interpretada como a relativização de sua importância, pois elas são parte de um bem ainda mais importante: a casa. Embora haja, nos dois exemplos, uma tentativa de fidelidade ao original, ambas “traem” o original, na “Liberdade Paulistana” as 

dimensões e proporções estão bastante diferentes de sua original, enquanto na “Vênus Belorizontina” além das dimensões, a estátua “perdeu” a parte inferior das pernas e manto. 

 

 

 

Fonte: FOTO DO AUTOR, 2007.    Fonte: FOTO DO AUTOR, 2007. 

Sobre os incentivos à aquisição e acumulação de bens, complementa ainda Veblen (1994, p.21): 

O que acaba de ser dito não deve ser tomado no sentido de que não existam outros incentivos para a aquisição e acumulação do que este desejo de se exceder em níveis pecuniários e assim conquistar a estima e a inveja dos pares. O desejo de acrescentar conforto e segurança está presente e é a motivação em cada etapa do processo de acumulação em uma comunidade industrial moderna, embora o nível de necessidades, nestes aspectos seja, por sua vez, enormemente afetado pelo hábito da emulação pecuniária. Em grande extensão, esta emulação molda os métodos e seleciona os objetos de gastos no conforto e digno sustento pessoal. 

Esta postura acumulativa, ao mesmo tempo em que molda atos e decisões individuais, em última instância, cria “comunidades” que não têm a conotação de convencional de parceria e cooperação, desgastando e tornando vulnerável o senso comum e os elos que conformariam uma comunidade. Tönnies (2005, p.18) considera que este ato está de tal forma desgastado que o verdadeiro laço se resume à família em seu núcleo familiar mais íntimo, produzindo, na comunidade, o que qualifica como “[...] uma guerra com irrestrita liberdade de todos para destruírem e subjugarem uns aos outros, ou estarem cientes da possibilidade de maior vantagem, para concluírem acordos e fomentar novos laços”. 

Esta “guerra” mencionada por Tönnies, que poderia determinar a deterioração de uma comunidade, em certo contrassenso, acaba por reforçá‐la, pois será importante individualmente, visto que resulta em repetição — ainda que em processos de exacerbação — de símbolos de status, propiciando um sentimento de pertencimento. Mas, lembra Moura (2003) este pertencimento não significa uma efetiva participação: 

É claro que toda região moral tem seus limites de pertencimento, e é possível estar lá sem participar. No caso dos locais habitados e frequentados por membros das camadas médias urbanas brasileiras, vemos que o contato com pessoas que ocupam lugares diferenciados em nossa escala hierárquica tem sido, historicamente, bastante intenso, ainda que governado por regras de conduta específicas (MOURA, 2003, p.43). 

Será esta busca por pertencimento que, ao mesmo tempo, procura uma clarificação de sua distinção e status nesta comunidade, regerá as relações interpessoais nos condomínios fechados brasileiros. E esta designação “condomínio fechado” torna‐se, com o passar dos tempos, cada vez 

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mais adequada. São “comunidades” que cada vez mais dispõem de dispositivos de segurança como muros, acesso restrito a estranhos, sistemas privados de vigilância, câmeras, etc., fechando‐se, paulatinamente, a relações ou conexões urbanas ou selecionando‐as. Por outro lado, este fechamento do Condomínio às relações urbanas mais diretas, reproduz‐se nas relações internas entre os condôminos. As casas são isoladas, os afastamentos frontais das residências estão maiores. 

No Condomínio Alphaville Lagoa dos Ingleses, por exemplo, a legislação interna exige um recuo frontal mínimo de 5 metros; não existe passeio, os moradores utilizam‐se inclusive artifícios para evitar a circulação de pedestres defronte a sua residência (FIG. 05); a entrada de veículos é dominante na fachada e a entrada social da casa é relegada a “papel” secundário, quando, como em muitos casos, é feita através do acesso de veículos (FIG. 06). 

Figura 05 – Alphaville, São Paulo — Residencial 9. O uso de cercas vivas dificulta, e tenta impedir, o transito de 

pedestres. 

  Figura 06 ‐ Alphaville, São Paulo — Residencial 9. Na fachada principal existe apenas acesso para veículos. A entrada social 

está localizada no fundo, à direita. 

Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009.    Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009. 

Os condomínios fechados brasileiros, paulatinamente tornam‐se o que se poderia qualificar de uma maneira como anti‐comunidades. Entretanto, embora percam, em sua essência, alguns dos parâmetros que, historicamente, ocorriam na criação de comunidades, mantém outros, especialmente aqueles ligados à reunião de semelhantes, para a aquisição ou confirmação de status. Neste aspecto, os condomínios se tornam, para seus moradores, um parâmetro que é, simultaneamente, uma inequívoca confirmação de status e ascensão social e a materialização de uma sociedade ideal, ou seja, uma utopia. 

2 SUBÚRBIO: A SEGREGAÇÃO COMO SINÔNIMO 

O subúrbio, em sua origem, tinha uma conotação de privilégio, um refúgio do caos urbano no campo, destinado a poucos e associado a privilégios. O oficial romano, quando construía sua casa suburbana introduzia, no campo, várias comodidades da via urbana, procurava agregar a isto um sinal inequívoco de sua distinção. 

Morar em subúrbio, ao longo da história, assumiu duas conotações diferentes que eram ao mesmo tempo divergentes e convergentes. Divergentes quanto ao extrato social — nobre versus pobre — e convergentes, ambas as situações sociais têm princípios segregadores.  

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A casa no subúrbio percorreu uma trajetória que a levou a significações que iam da nobreza à população com menor poder aquisitivo. O caráter de enobrecedor ou de “excluído” era dado pelo extrato social que a utilizava, a aparência da casa, sua vizinhança — ou ausência —, os símbolos da sociedade. Este percurso foi frequentemente marcado por um caráter segregador. Tal processo poderia ser de auto segregação, quando os aristocratas queriam isolar‐se e mostrar sua distinção em relação a seus pares ou, em sua contrapartida, o subúrbio era visto como um local distante da região central da cidade, para onde deveriam ser deslocadas a população com menor poder aquisitivo, a mão‐de‐obra menos qualificada e as camadas sociais consideradas párias, ou seja, uma segregação imposta pelas classes detentoras do poder na sociedade. 

Numa fase inicial estabeleceram‐se os parâmetros das primeiras habitações em subúrbio — a Villa Suburbana romana, na qual altos dignitários romanos construíam, em regiões próximas a cidades romanas, residências no campo com todo conforto de uma habitação urbana — onde predominava o princípio da nobreza e distinção correlacionados à posse desta villa e da auto segregação. Na idade média — período no qual se estabeleceu e consolidou a conotação de subúrbio como o local fora das muralhas — reforçou‐se o entendimento de subúrbio como local das classes da base da pirâmide social e, complementarmente, símbolo de sua segregação do restante da cidade e de sua sociedade. 

Estabelecidos estes parâmetros, nos séculos seguintes, a visão do subúrbio iria se alternar entre o seu enfoque como local de enobrecimento de seus moradores ou de marginalidade social.  O enfoque seria de vinculação enobrecedora no Renascimento, com a retomada das construções de villas — inicialmente na Itália e, posteriormente, na Inglaterra — na qual apenas as pessoas com maior poder aquisitivo poderiam morar nestes locais, pois dependiam de meios de transporte privado para deslocar‐se. Em geral, estas habitações estavam situadas em pontos isolados, um pouco afastadas do núcleo urbano. Sua contraparte era o local de destinação das populações de menor poder aquisitivo, como ocorreu em Paris durante as reformas de Haussmann (1852‐1870). Comumente, tendiam a se localizar próximos às cidades, em suas franjas. Podia haver predomínio de uma ou de outra tendência ou mesmo simultâneas: enquanto na Paris Haussmanina parte da população foi removida para os subúrbios, nos Estados Unidos construía‐se o subúrbio de classe‐média alta de Riverside (1863)4. 

3 A ASCENSÃO SOCIAL E SEUS SÍMBOLOS 

Símbolos de uma ascensão social estão, em geral, correlacionados a bens domésticos, iniciando‐se na construção da residência e chegando aos utensílios de uso diário e, a partir do século XX, ao automóvel.  

O que torna um objeto um artigo de luxo e que, ao detentor de sua posse possa ser associada uma ideia de distinção? Goody (2006, p.344) relata que suas raízes podem ser encontradas na França, por volta do ano 1700, quando o Rei Luis XIV insistia que os nobres passassem a morar em Versalhes. Impõe‐se, nesta corte, o hábito de mudanças periódicas da moda de vestuário. Quando a seda se torna uma referência da moda, sua importação se torna restrita à nobreza. A posse e uso deste tipo de tecido conferiam, a seu usuário, imediata conotação nobiliárquica.  

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Os objetos, mesmo os de uso diário, como vestuário, passam a adquirir conotações subjetivas: distinção e exclusividade. A legitimação e a transformação destes objetos é um processo cultural que, lembra Bourdieu (1984, p.99), é um caso particular de competição entre bens raros e práticas. Por outro lado, em sua relação com estes objetos de desejo, lembra Gombrich (2000, p.245), o ser humano é mais maleável em questões de gosto do que gostaria de admitir. 

A residência, ao longo da história, esteve suscetível a modificações e influências decorrentes de gostos e de símbolos. Freyre (2002, p.903) lembra que, “depois da chegada do Príncipe Regente, foi a casa urbana, o sobrado burguês, que sofreu a europeização mais rápida e nem sempre no melhor sentido”.  Complementando a respeito da casa suburbana, em geral sítios, que esta europeização foi mais lenta. As modificações nas residências tendem, inicialmente, a ocorrer primeiro na fachada, que é, no contexto da busca de significação e de um status, uma exteriorização do poder ou status de seu proprietário. Lembra Holston: 

Com uma divisão seletivamente porosa, assim, a fachada constitui uma zona liminar de troca entre domínios que separa. Não apenas serve à necessidade de se fixar limites, mas também estimula nosso fascínio pela liminaridade, uma vez que seus lugares de passagem são, em geral, destinados a atrair a atenção do público. As aberturas se fazem ressaltar por meio de ornamentos como vigas trabalhadas, entablamentos, esquadrias e balaustradas; pelas placas dos lugares comerciais e outros emblemas que proclamem o status da família para o público. Como uma zona liminar, a fachada das ruas é, de um lado, a parede exterior do domínio privado e, de outro, a parede interior do âmbito público. (HOLSTON, 1993, p.125) 

Assim como a residência, o automóvel sempre foi ligado à ideia de ascensão social (FIG. 07). Sheller e Urry (2004, p. 203) afirmam que é o item de maior importância para consumo individual depois da casa. A este item, uma série de valores é associada, como velocidade, segurança, desejo sexual (FIG. 08), carreira de sucesso (FIG. 09), liberdade, família, gerando um caráter específico e sensação de dominação, masculinidade (FIG. 10) e poder (FREUND; MARTIN, 1993, p.38).  

Figura 07 – Propaganda do Cadillac LaSalle, 1929, a propaganda associa sucesso e sofisticação a um automóvel. 

  Figura 08 – Propaganda do Chevrolet Chevelle 1966: “Não é extravagante, importado ou engorda (SIC), mas um homem 

como você vai gostar dele” para completar no final do texto: “para levá‐lo diretamente ao ponto”. 

Fonte: VINTAGE ADVERTISING (1), 2009    Fonte: VINTAGE ADVERTISING (2), 2009 

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Figura 09 – Propaganda do DeSoto, década de 1930. Seu “garoto‐propaganda” é o ator de filmes de ação Tyrone Power, um dos mais populares e de maior sucesso na época. 

  Figura 10 – Propaganda do Oldsmobile Toronado, final da década de 1960. Este carro competia em uma categoria do mercado 

automobilístico norte‐americano conhecido como Muscle cars — automóveis esportivos, motores de grande cilindrada e potência e com aspecto agressivo — a propaganda procura o público específico: “Um 

rude individualista encontra um rude individualista” 

Fonte: VINTAGE ADVERTISING (4), 2009    Fonte: VINTAGE ADVERTISING (3), 2009 

Desde a chegada dos primeiros automóveis no Brasil o ato de possuir um veículo estava ligado a um símbolo de status. Numa primeira etapa havia o fato de ser um objeto importado e caro. A implantação da indústria automobilística no Brasil, a partir da década de 1950, permitiu que uma parte da classe‐média tivesse acesso à sua compra. Entretanto, apenas a partir da década de 1990, com a redução da inflação e maiores prazos para financiamento, ampliou‐se um pouco mais a possibilidade de compra de um carro por uma faixa maior da classe média. Ainda hoje, o acesso a um veículo, especialmente um veículo novo, ainda está bastante restrito. Considerando‐se, por exemplo, o preço de um veículo popular, como o Fiat Uno Mille, que, em junho de 2012 custa cerca de R$ 23.000,00, equivalia a quase 37 vezes o valor do salário mínimo5. 

Mas, não é em carros populares que se fixa um morador de condomínio. A busca é por marcas que, aos olhos de seus pares, aliam, de maneira imediata, status, prestígio e riqueza a seu proprietário. Mercedes‐Benz, BMW, Jaguar e outras, em geral importadas, são os “objetos de desejo”. Estas marcas, tradicionais símbolos de status, adquiriram um novo concorrente, em uma faixa distinta em relação às tradicionais marcas de status: as SUV (Sport Utility Vehicle). Estas foram, ao longo da década de 1990 até meados dos anos 2000, o grande sucesso de vendas na indústria automobilística norte‐americana. São grandes automóveis, com motores muito potentes e estilo agressivo. As SUV tornaram‐se o segmento de mercado de mais rápido crescimento na história da indústria automobilística. Para seus proprietários passam uma imagem de segurança e fácil manuseio e, em más condições meteorológicas, ofereceriam menores riscos que os tradicionais carros de passageiros. Inicialmente destinado à família, torna‐se paulatinamente, um veículo mais luxuoso e denotador de status. 

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A SUV Cadillac Escalade (FIG. 11), por exemplo, tem custo que pode chegar, dependendo do modelo, a U$ 85.0006, aliando luxo a um veículo concebido, inicialmente, como utilitário familiar. Este carro conseguiu um sucesso junto à classe média norte‐americana — e, atualmente, é um fenômeno similar no Brasil (FIG. 12) — por aliar luxo, conforto e status a uma clara demonstração de poder — associada à sua forma e dimensões. Estes veículos, mais altos que os demais, têm uma carroceria com aspecto agressivo. É a materialização automotiva dos princípios de poder, status e diferenciação abordados por Matsumoto (2007). 

Figura 11 – Propaganda Cadillac Escalade 2009.    Figura 12 – Alphaville São Paulo, Residencial 9, SUV. 

Fonte: CADILLAC, 2009.    Fonte: FOTO DO AUTOR, 2009. 

Uma morfologia para a distinção 

A análise do processo de ocupação de Alphaville Lagoa dos Ingleses apresenta vários dos estereótipos observados em outros condomínios brasileiros e nos subúrbios norte‐americanos, especialmente aqueles que são vinculados à ideia de status social, simbolicamente expresso em componentes de paisagem, arquitetura das edificações, artefatos, mobiliário urbano e utilitário, ornamentos, enfim, dos elementos gerais de utilização cotidiana do espaço condominial. A busca por distinção mostra‐se presente em vários aspectos morfológicos do condomínio em análise, conforme observado e relatado em relação aos ornamentos, na seção introdutória neste capítulo (Figuras 01, 02, 03 e 04) 

Nas páginas que se seguem, é realizada uma análise sistemática da morfologia do condomínio sob a perspectiva dos significados que conferem distinção e segregação, destacando‐se nas evidências apresentadas, constatações em relação a dois elementos‐chave: de um lado, aos padrões urbanos (aqui detalhados, entre outros aspectos, no que diz respeito à conformação dos arruamentos, ao controle de acesso a moradores e visitantes, ao isolamento e cercamento de áreas por muros, ao afastamento das unidades residenciais, a existência ou não de calçadas, a destinação de uso do espaço condominial) e, de outro lado, aos padrões arquitetônicos (observando‐se, nesse caso, o dimensionamento das casas; conformação das áreas destinadas a garagens, acessos de pedestres e lazer). 

Inicialmente, constata‐se a existência de padrões arruamentos sem conexão ou continuidade, com a malha viária externa (FIG. 13, 14, 15) em Alphaville Lagoa dos Ingleses. 

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Figura 13 – Alphaville, Lagoa dos Ingleses, sistema viário sem conexão. Na imagem observa‐se as vias internas do Residencial 1 (1), a avenida Wimbledon 

que faz o acesso ao Condomínio Península dos Pássaros (2) e Residência 3 (3). 

  Figura 14 – Vista do desnível entre o residencial 3 e a avenida Wimbledon e também entre o residencial 1 e a mesma avenida. Em razão desta altura eventual via de 

ligação teria declividade acima do permitido pela legislação urbana. 

Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008.    Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008. 

Na organização do sistema viário (FIG. 15), foi criado um sistema de ilhas, isto é, cada residencial (itens 1 a 5) é provido de um único acesso, controlado por portaria. No entorno do condomínio foram construídas avenidas (7 e 8) com duas faixas de rolagem em cada sentido, com largura que permitiria, em caso de necessidade ou expansão, a extensão para uma terceira faixa. Desta forma, a necessidade de interconexão entre os residenciais torna‐se desnecessária, além de tornar difícil a argumentação para a remoção dos muros para a ligação entre os sistemas viários dos residenciais. Por outro lado, a existência de lotes, no que poderia constituir‐se a passagem de uma conexão, dificulta tal implementação, como os trechos assinalados na Figura 15 e também na Figura 13. Poder‐se‐ia argumentar que em alguns trechos como os dos residenciais 2 e 4 em sua porção superior poderia ser criada uma conexão. Entretanto, neste local localiza‐se a BR‐040 (9) – no trecho de ligação Belo Horizonte‐Ouro Preto, e para a ligação segura o empreendedor criou um trevo (não visualizado nesta planta) e uma passagem subterrânea (11), tipo trincheira. Quando se observa os desníveis entre a pista de rolagem das avenidas externas e os residenciais (FIG. 292), constata‐se a impossibilidade de abertura de vias de conexão. Utilizando‐se a altura do muro externo, cerca de 2,80 m, pode‐se estimar os desníveis que, em h1, o desnível seria de pouco mais de 4 metros, enquanto em h2 seria em torno de 3 m, considerando‐se ainda que entre as duas pistas de rolagem da avenida, também existe um desnível, podendo se presumir que haveria desnível entre os dois residenciais de pouco mais de 7 metros. Feitas estas observações, constata‐se que a declividade de uma eventual via seria acentuada, acima dos valores permitidos por Lei. A esta dificuldade que, por si só obstaculizaria e até inviabilizaria a abertura de vias de ligação, adiciona‐se a opção de assentamento do sistema viário principal — avenida Wimbledon — e os residenciais e suas vias: esta via foi localizada em uma cumiada de morro (FIG. 13), em cota mais alta que as vias dos residenciais 1 e 3. O que significaria uma rampa ainda maior para esta eventual via transpor.

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Figura 15 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, planta geral (detalhe). Pode‐se observar os cinco residenciais, numerados sequencialmente, e o acesso para o sexto residencial, Península dos Pássaros. Os dois eixos viários de acesso aos residenciais são as avenidas Princesa Diana (7) e Wimbledon (8) que conectam a região à BR‐040 (9). Na parte superior aparece indicada a área 

reservada para a implantação de indústrias (10). Eventuais conexões entre os sistemas viários como os assinalados nos residenciais 1 e 3, são difíceis em razão da existência de lotes no que poderia ser a extensão de suas ruas internas. 

Fonte: ALPHAVILLE URBANISMO S.A., 1997 

O acesso é rigidamente controlado7. Só podem entrar pessoas cadastradas (moradores) ou seus convidados. Os sistemas de controle são automatizados através de leitores de código de barras (FIG. 16) ou através de sensores de radiofrequência (adotado no Residêncial 1). A morfologia da portaria (FIG. 17) foi organizada de maneira a facilitar o acesso de veículos de moradores, com sistemas automáticos e ágeis para reduzir ao mínimo o tempo de acesso ao condomínio. Para os visitantes ou prestadores de serviço, o acesso com veículos é feito por meio de uma entrada lateral (2), onde o processo é lento e burocrático.  

A estes procedimentos soma‐se outro, que pode‐se conjecturar como sendo excessivo, senão ilegal e humilhante: a revista diária e sistemática de empregados e operários que trabalham no condomínio e também de seus veículos. O visitante deverá ser identificado e, só depois de autorização de um morador da casa de destino, será permitido seu acesso. O acesso de pedestres é feito através de guaritas exclusivas (3), também com sistema de identificação e catraca. Na edificação principal (4) localiza‐se a portaria. Pode‐se observar que o acesso de veículos de condôminos existe uma cobertura (5), inexistente no acesso destinado a veículos de não‐condôminos (6). Assim como na entrada, existem duas saídas (7) uma destinada a moradores e outra para não‐moradores, que dão acesso à avenida externa aos residenciais (8). Estes dispositivos atendem ao que Bauman (2009, p. 13) qualifica como “forte tendência para sentir medo e a obsessão demoníaca por segurança”. 

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Figura 16 ‐ Carteira para acesso a residencial no Condomínio 

Alphaville. Com esta carteira não há necessidade de identificação ou autorização a cada acesso ao Condomínio. Entretanto, as carteiras são para acesso específico a exclusivamente a um 

residencial específico. 

  Figura 17– Alphaville, Lagoa dos Ingleses, portaria de acesso ao Residencial 1, com acessos para veículos de moradores (1) e para veículos de convidados e prestadores de serviço (2) e guaritas de controle de pedestres (3) e veículos (4), saída de veículos (7) e 

avenida externa (8). 

Fonte: DOCUMENTO DO AUTOR, 2008.    Fonte: FOTO DO AUTOR, 2007. 

 

O acesso restrito que destaca o aparato de segurança é corroborado pela presença de muros (FIG. 18). O isolamento pode ser magnificado pela possibilidade de construção de muros internos (FIG. 19 e 20), permitida pela legislação do condomínio. 

Figura 18 – Alphaville, Lagoa dos Ingleses, muro de divisa do Residencial 3 com avenida Wimbledon. 

  Figura 19 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, Residencial 3. Observa‐se dos muros divisórios do condomínio (1), a residência também é totalmente 

murada (2). 

Fonte: FOTO DO AUTOR, 2007.    Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008. 

O isolamento com o exterior é reproduzido em seu interior, com exigência de grandes recuos das construções8 e pela ausência de calçadas, dificultando a circulação de pedestres. As vias internas têm 7 metros de largura, “passeios”, 3,5 metros somados aos cinco metros de afastamento frontal de cada casa, significando uma distância mínima frontal entre casas de 29m. Embora a legislação preveja passeio, não existe, na regulamentação, exigência de que seja pavimentado. Tal situação faz com que a circulação de pedestres seja bastante perigosa, pois o desconforto de caminhar por áreas ainda não urbanizadas (terrenos não construídos) ou mesmo por lotes já edificados, que optam por transformar o passeio em uma extensão do jardim (FIG. 21). Tal situação poderá ter graves consequências, como atropelamentos. Cumpre‐se observar ainda que, ao omitir‐se a exigência de pavimentação dos passeios, não só a 

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Associação Alphaville, mas também a Prefeitura Municipal de Nova Lima, a quem cabe conceder o habite‐se a uma residência, incorrem em gestão que pode ser configurada como temerária, além de desrespeitar a Legislação Federal de Acessibilidade9. 

Figura 20 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, Residencial 3. Observa‐se o grande recuo das 

residências para a rua. 

  Figura 21 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, Residencial 1. A ausência de calçadas (1) dificulta a circulação de pedestres, que, na maioria 

das vezes, optam por circular pela via de veículos. 

Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008.    Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008. 

A legislação condominial exige área mínima construída de 150m², traduz o que a própria legislação interna qualifica como “Padrão Alphaville”. O regulamento do Uso do Espelho d’água, em seu item 1.3 qualifica Alphaville como “um empreendimento imobiliário de alto padrão” (ASSOCIAÇÃO ALPHAVILLE LAGOA DOS INGLESES, 2006, p.65)10.  Portanto, seus proprietários construirão casas neste alto padrão, significando casas de grandes dimensões (FIG. 22)11 e materiais de acabamento que mantenham este “padrão”. 

Figura 22 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, Residencial 3. Vista de três casas, observa‐se a tipologia 

predominante de 2 pavimentos, com exemplos de até 3 pavimentos. 

  Figura 23 ‐ Alphaville, Lagoa dos Ingleses, Residencial 1, o acesso de pessoas é escondido e pouco destacado, enquanto a grande 

“abertura” ou destaque é dada ao acesso de veículos. 

Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008.    Fonte: FOTO DO AUTOR, 2008. 

FIGURA 24 – Subúrbio norte‐americano. Acesso Veículos (1) X Acesso Pessoas (2). 

Fonte: BMAC, 2008 

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Reproduz‐se no Alphaville Lagoa dos Ingleses um padrão de construção que é recorrente nos subúrbios norte‐americanos (FIG. 24) e também é observado no Alphaville de São Paulo (FIG. 06): a construção de grande quantidade de vagas de garagem, “dominando” a fachada principal da casa e relegando a entrada social a um pequeno acesso lateral, quando não passa a ser feito através da garagem. Em um exemplo observado em uma casa no Residencial 1 (FIG. 23)12, as vagas de garagem são abertas e dominam a fachada (2), enquanto o acesso à área social é um pequeno portão (1), ladeado por parede cega e por muro. 

Embora a proposta destes condomínios13 seja a de se estar morando em uma comunidade ideal, as rotinas, procedimentos contradizem esta premissa. A possibilidade de interação entre os moradores é reduzida, pois simples atos como ir à padaria necessitam que se utilize um veículo. A ausência de calçadas dificulta as caminhadas. As conexões de seus moradores são, em sua maioria, externas ao condomínio e região: trabalho, escola, compras, etc.  

Considerações finais sobre uma “comunidade” “incomunal” 

Quando adotam padrões morfológicos — urbanísticos e arquitetônicos — e sócio comportamentais semelhantes aos norte americanos, os condomínios brasileiros tendem a incorrer em problemas semelhantes. Problemas que podem ser magnificados, quando se consideram as desigualdades históricas no país. A ideia de sociedade ideal parece, em princípio, muito boa e interessante para seus moradores, porém, seus valores subjacentes e sua trajetória sócio normativa e atitudinal – em se considerando suas regras explicitas e não explícitas de acesso, convívio e regulação social ‐  projetam‐se em direção a uma alienação cada vez maior com relação aos problemas brasileiros. Esta atitude pode‐se configurar ainda mais perigosa ao se pensar nos filhos desta classe‐média que cresce vinculada a uma realidade social extremamente desconectada com o restante do país. 

Embora, como lembra Moura (2003, p.53), ainda se pode pensar em termos otimistas a respeito dos condomínios brasileiros. “Os condomínios horizontais, cada vez mais presentes em nossos meios urbanos, apresentam novas formas de estar dentro e fora, formas que, tanto aqueles que estão dentro quanto os que estão fora, ainda estão aprendendo a viver”. 

Porém, o que se apresenta como sociedade ideal, um projeto utópico, contradiz seu princípio básico mais importante e recorrente: a igualdade entre os membros. Poder‐se ia argumentar que os moradores de um condomínio fechado tendem a estar em faixas de renda próximas ou iguais. Se tal fato econômico ocorre, a exteriorização de sua riqueza, status e poder será sempre exigida e a continuidade da competição, como salientado por Veblen (1994), interpõe novos patamares,  podendo, no caso dos condomínios examinados, ir de um veículo mais imponente ou caro, uma ampliação ou melhoria na residência e até a colocação de uma réplica da estátua da liberdade ou da Vênus de Milo. 

E esta sociedade ideal, que se pretende comunidade, está longe deste objetivo. O que se cria é uma “comunidade” apática e que tende a não se envolver em conflitos. Baumgartner (1988) em seu estudo sobre subúrbio norte‐americano qualificou a postura do suburbanita como “minimalismo moral” que manifesta uma aversão ao confronto e 

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conflito e apresenta uma preferência por privar‐se de eventual liberdade e aceitar estratégias de controle social em uma cultura que o autor qualifica como de prevenção.    

Observar‐se a suburbanização que se propõe sociedade ideal possibilita, de alguma forma, confirmar‐se a conclusão de Morus (2006[1516], p.154) para sua obra se aplica, quase 500 anos depois, com uma atualidade impressionante à realidade dos subúrbios e condomínios: “[...] reconheço de bom grado que há na república utopiana muitas coisas que eu desejaria ver em nossas cidades. Que desejo, mais do que espero ver”. 

4 REFERÊNCIAS 

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VINTAGE ADVERTISING (4). Vintage DeSoto advertising with Tyrone Power. Disponível em: <http://pzrservices.typepad.com/.shared/image.html?/photos/uncategorized/desoto_2.jpg>. Acesso em: 20 jan. 2011. 

5 NOTAS

1 Fonte: MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 259. 

2 Palavra de origem latina cuja designação original designava a postura ou posição, entretanto, relacionada ao ato de se 

estar em pé (FARIA, 1962, p.942). 

3 Tradução deste autor, a partir de original em inglês. 

4 Subúrbio da cidade de Chicago, projeto de Frederick Law Olmsted e Calvert Vaux. 

5 R$ 540,00 em janeiro de 2011. 

6 Valor de venda no mercado norte americano, que corresponderia a cerca de R$ 145.000,00 – valores de janeiro de 2011. Se importado, seu custo ficaria cerca de R$ 350.000,00 (custos de importação, frete e impostos). 

7  Nos Condomínios Alphaville em São Paulo observam‐se procedimentos semelhantes de controle a acesso.   

8 O Regulamento de Ocupação e Uso do Solo do Condomínio em seu item 2.12 exige afastamentos mínimos obrigatórios de 5 m (frontal), 2 m (lateral, quando testada for igual ou inferior a 18 m) e 3 m (lateral, quando testada for maior que 18 m) e 3m (fundos) (ASSOCIAÇÃO ALPHAVILLE LAGOA DOS INGLESES, 2006, p. 8).  

9 Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que no item A de seu inciso II determina que não podem existir “barreiras: qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento e a circulação” nas “nas vias públicas e nos espaços de uso público” (BRASIL, 2000). 

10 Observa‐se no estatuto da Associação Alphaville em seu inciso III do artigo 3º que deverá entre suas obrigações “preservar as características arquitetônicas e urbanísticas do empreendimento”, sem, entretanto, esclarecer a que, exatamente, tal preservação se refere (ASSOCIAÇÃO ALPHAVILLE LAGOA DOS INGLESES, 2006, p.43). 

11 O Regulamento de Ocupação e Uso do Solo do Condomínio em seu item 2.15 traz uma condição pouco usual em 

legislação urbanísticas, qual seja a exigência de área mínima de construção, no caso 150 m² (ASSOCIAÇÃO ALPHAVILLE 

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LAGOA DOS INGLESES, 2006, p. 8). 

12 O Regulamento de Ocupação e Uso do Solo do Condomínio em seu item 2.27 exige, no mínimo, duas vagas de garagem por lote (ASSOCIAÇÃO ALPHAVILLE LAGOA DOS INGLESES, 2006, p. 11). 

13 É interessante observar‐se uma particularidade com relação a condomínios no Brasil. A palavra segundo Houaiss (2001, p. 792) designa “a posse ou o direito simultâneo, por duas ou mais pessoas, sobre um mesmo objeto ainda em estado de indivisão; co‐propriedade, compropriedade”. Entretanto, é, normalmente, empregada para designar‐se os condomínios horizontais enquanto nos condomínios verticais utiliza‐se usualmente a designação “Edifício”. Entretanto, formal e legalmente o condomínio horizontal não existe, visto que, os lotes são propriedades individuais, registrados separadamente e tributados de forma independente com relação a seus vizinhos enquanto seus arruamentos (áreas de circulação) são propriedade do município. O que, de fato, existe é uma gestão comum da área com relação à segurança, manutenção de jardins, eventualmente limpeza das ruas, etc. Os “edifícios”, juridicamente, são, de fato, condomínios, visto que as áreas circulação e a propriedade do são terreno comuns a todos os proprietários de suas unidades; a cada proprietário corresponde uma fração ideal do terreno, embora, este terreno seja, juridicamente, indivisível. 

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NÚCLEO TEMÁTICO IV: Novo perfil de cidade e novos rumos em direção a uma sociedade inclusiva 

O cooperativismo na construção civil: uma outra cultura produtiva com sentido social 

Cooperativism in the civil construction: another productive culture with social meaning 

Cristiano Gurgel BICKEL Mestre em Artes Visuais/UFMG; Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pelo NPGAU/ UFMG; Professor do Departamento de Artes Plásticas da EBA/UFMG. [email protected]

RESUMO Neste  artigo,  discute‐se  a  cultura  produtiva  da  construção  civil  brasileira,  analisando‐se  as  atuais estruturas  capitalistas  dominantes  e  apontando  para  o  cooperativismo  como  alternativa  para  uma reestruturação produtiva com sentido social. Levando‐se em conta que  tal reestruturação direciona‐se para a construção de uma sociedade  inclusiva,  investigam‐se capital e  trabalho nas relações sociais de produção dominantes na  construção  civil,  visando  formular estratégias de  superação dessas  relações, notadamente  excludentes.  As  recorrentes  noções  eficazes  de  crescimento  com  base  econômica capitalista,  em  que  o  sentido  social  é mercantilizado  e  ordenado  pelo  capital,  promovem,  de  fato, relações sociais de produção, trabalho e consumo sem  justiça social, em uma dinâmica exploratória de larga  escala.  Como  uma  outra  cultura  produtiva  articulada  às  estratégias  socioeconômicas  para  a construção de uma sociedade  inclusiva, o cooperativismo é, então, analisado como possibilidade viável para  se  estabelecer  a  lógica  produtiva  autogestionária,  sem  fins  lucrativos,  eminentemente  social. Mudanças  significativas  nos  paradigmas  políticos,  sociais,  econômicos  e  culturais  imersos  nas  bases produtivas  da  construção  civil  necessitam  ocorrer  para  que  as  transformações  socioprodutivas contemporâneas  não  sejam  apenas  adequadas  às  reconfigurações  do  capital.  Mas  oportunizem, efetivamente, uma base produtiva capaz de construir cidades inclusivas, articuladas ao desenvolvimento de uma economia social e cidadã. 

PALAVRAS‐CHAVE: Associativismo. Cooperativismo. Construção Civil ‐ Trabalho. Economia ‐ Sociedade. 

ABSTRACT In  this  article,  it  is  discussed  the  productive  culture  of  the  Brazilian  civil  construction,  analyzing  the current  dominant  capitalist  structures  and  appointing  to  the  cooperativism  as  an  alternative  to  a restructuration, with  social meaning.  Considering  that  this  restructuration  is  directed  to  elaborate  an inclusive society, it is investigated capital and labor in the dominant social relations of production in the civil construction, aiming to formulate strategies to overcome these relations, visibly non  inclusive. The increasing  usual  effective  notions  based  on  capitalist  economics,  in  which  the  social  meaning  is commodified and commanded by capital;  indeed, promote, social  relations of production, employment and  consumption without  social  justice,  in  a  large‐scale  exploratory  dynamic.  As  another  productive culture articulated to the socioeconomic strategies in order to create an inclusive society, cooperativism is analyzed as a viable possibility to establish a self‐managed, non‐profit, eminently social productive logic. It  is necessary  that occur  significant  changes  in  the political,  social, economic and  cultural paradigms embedded  in  the  productive  construction  bases  in  order  to  the  social  and  productive  contemporary transformations are not only  suited  to  reconfigurations of  the capital. However,  these  transformations may  effectively  make  a  productive  base  capable  to  create  inclusive  cities  happen,  linked  to  the development of a social economy and citizenship. 

KEYWORDS: Associativism. Cooperativism. Civil Construction ‐ Labor. Economy ‐ Society. 

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1 INTRODUÇÃO 

Para promover uma outra cultura produtiva com sentido social na construção civil é fundamental atentar‐se para o estabelecimento de uma outra base socioeconômica, quer seja a economia social1, na centralidade do desenvolvimento econômico. 

A implementação de outros meios socioeconômicos que possam ultrapassar relações sociais de produção excludentes e estabelecer justiça social é um grande desafio para o desenvolvimento de uma sociedade inclusiva, cuja eficácia econômica contemple também o desenvolvimento humano e social. Isso significa, sobremaneira, o entendimento da ação econômica como uma construção social, envolvendo aspectos não‐econômicos, como a cultura, tecnologia, educação, e também as funções sociais da propriedade, trabalho, produção e consumo. 

Para Lévesque (2007 p.52), a economia social é, de fato, uma socioeconomia política que questiona as formas econômicas da sociedade, através do engajamento cidadão em uma cidadania ativa e participativa. Dessa forma, o papel da economia social pertence à reconfiguração Estado‐mercado‐sociedade. O mercado não é o antagonista, mas o elo da coesão social entre Estado e Sociedade. E a economia age sob o ponto de vista substantivo de Polanyi, envolvendo redistribuição, com as atividades não mercantis, e reciprocidade, com as atividades não monetárias. 

A orientação para uma outra cultura produtiva, atuando em uma outra economia, que é social, exige o esforço conjunto político‐social‐econômico, envolvendo outras lógicas de produção e outros ordenamentos sociais, com bases produtivas capazes de efetivar o desenvolvimento com qualidade de vida e justiça social. 

A racionalidade autodestruidora do capital oculta‐se no mito do progresso, da modernização e da eficácia do desenvolvimento e crescimento econômico. Consequentemente, aprofunda‐se a desigualdade social, diminuindo a qualidade de vida em meio ao inchaço urbano, inadequação habitacional, aumento da poluição, colapso viário e outras tantas formas de violência cotidianas. Para Dupas (2011, p.69), os custos sociais do progresso são trágicos e inevitáveis em nossos dias. 

Por sua vez, Mészáros (2009, p.79) evidencia que, diante do aprofundamento da atual crise estrutural do capital, tornam‐se necessárias mudanças institucionais. E não apenas as estruturas econômicas necessitam de outras institucionalidades que barrem o avanço do capital sobre a sociedade civil, mas toda a dinâmica política e social necessita de alternativas para estabelecer, de fato, uma sociedade inclusiva. Nesse sentido, Mészáros (2009, p.88) considera ainda que “a tarefa de reestruturar a economia torna‐se primariamente política/social, e não econômica”, e que em “tempos de crise econômica abrem sempre uma brecha razoável na ordem estabelecida". 

Para Marx (2011b, L.3 v.4, p.346), transcender o capital implica ultrapassar formas sociais modernas de exploração já cristalizadas e tornadas naturais como a concentração dos meios de produção, a organização do trabalho produtivo e o mercado econômico em escala global. 

Com relação à indústria da construção civil, esta desempenha um papel econômico central no ciclo de reprodução do capital. As relações sociais de produção desse setor ocultam formas exploratórias do trabalho humano; alta concentração de recursos financeiros; economia especulativa da terra; uso de materiais, tecnologias e recursos naturais de maneira não‐sustentável; dentre outros aspectos próprios da reprodução de capital manejada por essa indústria. 

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Os setores produtivos brasileiros carecem de uma ampla reestruturação a fim de estabelecer condições produtivas sustentáveis e inclusivas, relacionadas às trocas econômicas que valorizem o homem, a sociedade e a natureza. Nesse sentido, o cooperativismo atuando na construção civil, como será visto adiante, pode promover práticas econômicas não‐capitalistas, intrínsecas à lógica autogestionária, que perpassam pela desconcentração das riquezas e dos meios de produção, como também pela democratização e deshierarquização das relações sociais do trabalho produtivo, possibilitando redução das desigualdades socioeconômicas, fortalecimento da cidadania ativa, o que contribui para a inclusão social, reelaborando paradgimas sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais. 

O contexto atual carece de ações que efetivamente promovam as transformações políticas, econômicas e sociais que a economia social pretende para a construção de uma sociedade inclusiva, que também produza cidades inclusivas, articuladas ao desenvolvimento de uma economia social e cidadã. 

2 REDEFININDO RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA E SOCIEDADE 

A percepção crítica de que as ações econômicas não são indissociadas dos aspectos sociais envolvidos nas relações de produção, trabalho e consumo têm ganhado forte presença na discussão crítica contemporânea acerca da inclusão social. 

A discussão deste trabalho sobre uma reestruturação produtiva com sentido social na construção civil deve pautar‐se, portanto, em uma noção econômica não apenas do funcionamento econômico do capital‐produtivo, mas que também perceba a dimensão econômica dos arranjos produtivos como sociológica, cultural e política. 

Dessa forma, a noção weberiana de que a ação econômica é uma construção social evidencia o papel das práticas sociais no desenvolvimento econômico. Para Weber (2009, p.5), “a ação social é uma ação na qual o sentido pensado pelo sujeito ou sujeitos está referido à conduta dos outros e por ela se orienta no desenvolvimento da ação." Dessa forma, o que confere sentido à ação social é que ela é motivada pelos interesses e direcionada para o comportamento dos outros. 

A discussão do interesse na sociologia weberiana envolve a discussão de poder e dominação, que se manifesta nas relações sociais de luta, concorrência e seleção. Em linhas gerais, para Weber (2009, p. 16) poder significa “qualquer oportunidade de, numa relação social, impôr a própria vontade contra resistências alheias”, ou seja, ter poder é o mesmo que vencer a luta (social) ou, inversamente, entrar nessa luta já com oportunidades melhores do que os outros. A dominação é “a probabilidade de que uma ordem com um teor específico seja obedecida por um grupo de pessoas”. Weber (2009, p.18) entende a luta como a ação orientada para a imposição da própria vontade contra a resistência alheia; a concorrência corresponde à luta pacífica – sem violência física – pelo controle de oportunidades que outros também almejam; e a seleção é um tipo de luta em que o antagonismo é latente, não intencional, e as ações não se dirigem diretamente contra outros indivíduos ou grupos. 

Baseando‐se nessas definições, Swedberg (2005, p.60) compreende as organizações produtivas como sistemas de dominação, nos seguintes termos: “Todo sistema político, observa Weber, 

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baseia‐se, de alguma forma, na dominação, e como uma economia em geral faz parte do sistema político, tende a operar de acordo com o mesmo tipo de dominação política.”  

Por sua vez, Harvey (2005, p.90) propõe que o Estado deve ser visto como um “processo de exercício de poder por meio de determinados arranjos institucionais.” 

Swedberg (2005, p.61) recorrendo, ainda, à concepção apresentada acima, de que a dominação não ocorre em si mesma, mas devido à luta ante um conjunto de interesses ou de autoridades que se estabelecem em um mercado afirma: “em síntese, no mercado não existe um princípio de dominação, contudo os agentes que possuem o ‘poder de controlar e dispor’ estão numa posição vantajosa.” 

A fim de redefinir as relações entre economia e sociedade, Weber elabora um certo tipo de 

“individualismo metodológico e do sentido”, como sugere Swedberg, (2005, p.286). O individualismo metodológico de Weber possui uma natureza mais social que atomista, contrastando, portanto, com a noção de sujeito econômico fracionado e racionalizado (homo economicus) da teoria econômica neoclássica. Isso significa que, apesar de os indivíduos interagirem movidos pelos interesses materiais ou ideais, eles orientam racionalmente suas ações sociais uns para os outros, o que acaba por influenciar os próprios comportamentos sociais. 

Nesse sentido, o conceito de imersão (embeddeness)2, cunhado por Granovetter (2007), permite questionar todo tipo de concepções utilitaristas, que consideram a influência social como uma força externa ao sistema econômico e atribuem ao sujeito econômico uma racionalidade também puramente econômica. 

Granovetter (2007, p. 7‐9) entende, pelo contrário, que a dinâmica econômica de relações sociais concretas evidencia a inconsistência desses pressupostos. Os atores econômicos nem se comportam “como átomos fora de um contexto social” (subsocializado), nem tampouco “adotam de forma servil um roteiro escrito para eles” (supersocializado), em função do pertencimento a determinada categoria, classe ou grupo social. O que ocorre na realidade é que as “ações com propósito estão imersas em sistemas concretos e contínuos de relações sociais". 

Granovetter (2007) desenvolve o conceito de imersão para designar o fato de que comportamentos pessoais são influenciados pelas contínuas relações sociais em que se encontram imersos, de modo que eles se estruturam socialmente em redes favoráveis ao estabelecimento da confiança na ação econômica. As redes, por sua vez, constituem conjuntos de alianças, em várias direções e níveis, que formam uma espécie de trama para a durabilidade das relações econômicas. Nelas se estabelecem acordos cooperativos e se geram condições econômicas estratégicas. 

Dessa forma, Granovetter (2007) se contrapõe à noção de que as oportunidades econômicas estariam supostamente ligadas apenas à lógica concorrencial dos mercados e às suas hierarquias. De fato, os conceitos de imersão e redes apontam para a importância dos aspectos sociais que agem como capitais, tendo na reciprocidade e na interdependência das suas 

“moedas sociais” para a formação das alianças no estabelecimento da confiança para as relações econômicas. 

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Isso significa uma ampla redefinição para o entendimento das relações entre economia e sociedade: “o econômico cessa de ser reduzido ao mercantil para incluir o não mercantil e o não monetário [...] O social, por sua vez, deixa de ser reduzido à distribuição e aos gastos sociais para tornar‐se ‘capital social’ ” (Lévesque, 2007, p. 51). 

Em linhas gerais, esse debate de base weberiana sistematizado acima por Swedberg (2005), Granovetter (2007) e Lévesque (2007) tem ganhado forte presença na teoria social contemporânea, no momento em que o trabalho é flexibilizado, o emprego entra em franca redução no contexto mundial e as tecnologias da informação e o conhecimento favorecem a mobilidade dos capitais, circulando em tempo real e no nível mundial, reposicionando entre o global e o local, as noções de abrangência e relevância dos comportamentos sociais no protagonismo do desenvolvimento econômico. 

3 CAPITAL‐TRABALHO EM COOPERAÇÃO PRODUTIVA 

Historicamente, as transformações promovidas pelo capital não são apenas transformações no modo de produção, mas influenciam as mudanças das relações sociais de produção no seio das próprias transformações das estruturas sociais, políticas, culturais e econômicas. 

O núcleo do sistema econômico dominante, regido pelas instituições do capital, possui sua dimensão social imersa nas contradições promovidas pelo modo de produção capitalista. Assim, enfatiza Swedberg (2005, p. 165), “por meio da sua própria lógica e das conseqüências não intencionais, o capitalismo não apenas produz a riqueza individual como também a riqueza social (Smith), não apenas produz avanços para alguns como também empecilhos e dificuldades para outros (Marx, Weber)". 

Sob o modo de produção capitalista, o trabalho‐produtivo deve, essencialmente, garantir os fins lucrativos da produção. Com isso, possui a função fundamental de gerar lucro, concentrar capital e manter a continuidade da produção, permitindo tanto a acumulação de capital quanto a reprodução do sistema produtivo. 

Para Marx (2011b, L.3 v.4, p.338), “a taxa de lucro é a força propulsora da produção capitalista, e só se produz o que se pode e quando se pode produzir com lucro”. Ou seja, todas as demandas sociais não‐lucrativas não participam do sistema produtivo. E o sistema produtivo, além de necessitar a criação de novas demandas, atende apenas o que é lucrativo. 

Diante da teoria marxiana, pode‐se definir que a relação capital‐trabalho é, necessariamente, uma relação social de produção que submete as funções sociais do trabalho ao controle e lógica produtiva do capital. Nesse sentido, Marx (2011a, L.1, p.215) observa que “meio e objeto de trabalho são meios de produção e o trabalho é trabalho produtivo”. Dessa forma, o trabalho é entendido como média social de trabalho simples e uniforme, que baliza o sistema de produção mercantil capitalista nas transformações do trabalho em valor para produção de lucro. 

No regime da produção capitalista, com a divisão social do trabalho, cada trabalhador significa não a sua habilidade individual de desenvolver trabalho, mas uma quantidade média de trabalho produtivo socialmente necessário para produzir mercadorias, nas condições sociais e tecnológicas vigentes, para as necessidades sociais do mercado, e com as possibilidades do meio de circulação monetária. 

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Nessa dinâmica de exploração do trabalho, submetendo as atividades produtivas à ordenação do capital, o capitalista adquire direito sobre o lucro advindo do trabalho produtivo, como proprietário da produção. A condição proprietária permite, apropriar‐se, anteriormente, da força de trabalho como uma mercadoria, um bem de produção como outro qualquer, e não como o próprio bem que gera valor na produção. Isso permite, posteriormente, apropriar‐se do mais valor ou sobrevalor da produção, através da diferença entre o valor concretizado com o trabalho produtivo e a não‐remuneração da força de trabalho sob a condição do trabalho assalariado. 

Por outro lado, trabalho‐produtivo é, necessariamente, trabalho coletivo atuando em um regime de cooperação. 

A cooperação corresponde a uma característica própria do trabalho coletivo, a solidariedade. Dessa forma, não corresponde a um determinado modo de produção, podendo ser encontrada em todas as relações sociais de produção, sejam elas capitalistas ou cooperativistas. 

Marx (2011a, L.1, p.393) enfatiza que “a divisão manufatureira do trabalho é uma espécie particular de cooperação, e muitas de suas vantagens decorrem não dessa forma particular, mas da natureza geral da cooperação”. 

Na história social do trabalho, a cooperação é recorrente na produção intensiva e uniforme, por exemplo, na produção agrícola, mineral e nas obras de construção civil. Em um regime de cooperação, os trabalhadores atuam coletivamente e ativamente, sem haver, necessariamente, divisão social do trabalho. 

A cooperação como força social própria do trabalho coletivo tornada cooperação capitalista envolve a concentração das forças sociais do trabalho com a consequente subordinação e alienação da própria classe trabalhadora. 

A divisão social do trabalho e a organização da produção em regime de cooperação constituem a combinação necessária para garantir a continuidade da produção organizada pelo capital. Por essa via, a divisão técnica do trabalho e a interação das forças parciais do trabalho‐coletivo parcelado em cooperação adquirem um papel fundamental na cultura produtiva e na racionalidade econômica capitalista. 

Assim, Marx parte da noção de cooperação simples, própria do trabalho coletivo realizado em escala, para conceber a noção de cooperação complexa, que é a forma típica do modo de produção capitalista. 

A cooperação simples, forma típica do cooperativismo, converge as forças solidárias de trabalhos parciais em uma força maior que a soma das partes individuais coordenadas. 

Já a cooperação complexa, forma típica do capitalismo, transforma a cooperação simples, introduzindo a divisão social à divisão técnica do trabalho, especializando e controlando a produção, possibilitando integrar os resultados parciais em um regime conexo da produção. Segundo Marx (2011a, L.1, p.378), corresponde a “forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos”. 

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Dessa forma, a cooperação complexa acaba por tornar‐se a forma específica do processo de produção capitalista. Isso condiciona as relações sociais de produção ao regime de trabalho coletivo, por meio da cooperação de esforços parcelados e centralizados pela força do capital.  

Gorz (2001, p.117) define o trabalho produtivo submetido ao regime capitalista de produção nas dimensões econômicas e políticas: “assim, para os dirigentes da produção capitalista, a organização do trabalho responde, conceitualmente, a uma necessidade econômica (obter a melhor produtividade possível) e a uma necessidade política (manter os produtores diretos numa posição subordinada em relação ao capital)”.  

Essa análise da cooperação como condição do trabalho moderno é fundamental para o entendimento do modo de produção capitalista vigente, uma vez que, através do planejamento da produção, da conexão e concentração dos meios de produção em um mesmo local, os meios produtivos (dimensão econômica) em regime de cooperação subjugam as forças de trabalho (dimensão política). 

Com relação ao papel da objetivação do trabalho produtivo para a alienação do trabalhador, Gorz (2001, p.177) ressalta que na produção capitalista “a objetivação, não visa somente a limitar o campo de trabalho, mas também a impedir que qualquer trabalhador compreenda os laços e a dialética do conjunto e, por conseguinte, a política da empresa”. 

Para Napoleoni (1981, p.114), “a objetivação do trabalho se torna a base da alienação”. Como dito anteriormente, a cooperação é qualidade própria do trabalho coletivo, não promovendo a alienação propriamente dita do trabalhador. Entretanto, com a divisão do trabalho, atuando em uma estrutura centralizada e hierarquizada para o regime cooperativo da produção capitalista, criam‐se as condições necessárias para a alienação, por meio da relação apartada entre as operações parceladas, a totalidade do trabalho e a função social do trabalho. Dessa forma, o trabalhador não consegue discernir a parte do trabalho que lhe pertence no processo produtivo, nem seu lugar na inserção social com igualdade de condições e de direitos. 

O particionamento das etapas de produção, o controle da distribuição de tarefas e a conferência sistemática do andamento do processo de produção constituem a cultura produtiva capitalista envolvendo uma racionalidade técnica própria com a divisão do trabalho‐produtivo, submetido à cooperação complexa. A força produtiva do trabalho social em cooperação complexa torna‐se, dessa forma, força produtiva ampliada para o capital e não para os próprios trabalhadores. 

Nesse sentido, o modo de produção capitalista faz com que a subsunção formal do trabalho produtivo se torne uma subsunção real, com a divisão social do trabalho e sua conexão produtiva, pela divisão técnica e social do trabalho, tornada alienada. 

O trabalhador é mais um dos bens de produção, direcionado à ampliação e reprodução do capital e consequentemente, consumido. Para Miglioli (1987, p.135), o trabalho produtivo objetivado retira a autonomia do trabalhador, assim como atrofia a sua vida, tornando‐o objeto de consumo da produção. Disso decorre também a redução da presença de pequenos produtores autônomos atuando no sistema econômico, além de se configurar um ambiente social de menor mobilidade entre operários e patrões. 

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A ampliação das forças produtivas capitalistas, que poderia libertar o homem do trabalho, torna o homem trabalhador “compulsório” do capital. O nefasto funcionamento da racionalização técnica capitalista reduz as relações sociais de produção e trabalho ao regime mercantil, o que aliena o trabalho das dimensões políticas e sociais, restringindo‐se ao funcionamento econômico para concentração e reprodução do capital. 

4 OUTRA CULTURA PRODUTIVA PARA A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL 

Como alternativa de superação das desigualdades e exclusões sociais, que se aprofundam com os avanços do modo de produção capitalista, o cooperativismo surge com as lutas operárias do século XIX e se desenvolve sob os princípios democráticos, solidários, participativos e autogestionários. 

O cooperativismo atua nas transformações sociais relacionadas ao trabalho‐produtivo reconhecendo que a inclusão social requer mudanças estruturais na lógica do ordenamento socioeconômico, sobretudo, no âmbito da reordenação das bases produtivas e das relações sociais de produção, trabalho e consumo. Para Rios (1987), Souza Santos (2002) e Bucci (2003), o cooperativismo conjuga nas dimensões sociais do trabalho cooperativo, a reordenação da própria sociedade civil. 

A eficácia dos processos produtivos cooperativistas encontra‐se nas características do trabalho coletivo em cooperação e na forte vinculação social das ações econômicas, conforme comentadas anteriormente. Assim, a força social do trabalho coletivo alia‐se à força econômica dos meios de produção socializados, configuram‐se relações de trabalho indissociadas nas dimensões econômicas, políticas e sociais. 

Para Bucci (2003, p.37), as cooperativas caracterizam‐se por adotar como fundamento a “lei da cooperação e não da concorrência”, tendo como finalidade a melhoria das condições econômicas através da criação de uma empresa de interesse comum, afastando exploradores do trabalho, intermediários e atravessadores. 

Assim, o objetivo do cooperativismo é viabilizar processos produtivos em que trabalho e valor sejam repartidos, colocando‐se em prática atividades econômicas que retornam o valor criado pelo trabalho para os próprios trabalhadores cooperados. 

Isso, segundo Singer e Souza (2000, p.13), implica formas sociais avançadas em que a democracia participativa na gestão empresarial, oportuniza igualdade e transparência, deshierarquizando relações sociais de produção e trabalho, propiciando, por conseguinte, acesso e disponibilização de informações táticas e estratégias, bem como a participação nas decisões coletivas das ações dos grupos cooperados. 

Dessa forma, Singer (2002) define a cooperativa como unidade típica da economia social, levando‐se em conta a finalidade econômica orientada para práticas sociais que viabilizam processos produtivos sem fins lucrativos. Uma empresa social com características tanto econômicas quanto sociais, movida por formas inclusivas para a gestão empresarial das atividades produtivas com fins sociais e econômicos não‐lucrativos. 

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É importante frisar que o horizonte mais amplo das ações socioeconômicas cooperativistas pretende a transformação social que supere o capital e suas relações exploratórias da produção, trabalho e consumo. Através da repactuação entre capital e trabalho, uma outra cultura produtiva com sentido social torna‐se meio para ultrapassar formas exploratórias econômicas do modo de produção capitalista dominante. 

Dessa forma, o cooperativismo não tem um caráter complementar à produção capitalista, correspondendo a uma outra lógica para a cultura produtiva, no interior do funcionamento da economia dominante, que é capitalista. A periferia do sistema econômico, na qual o cooperativismo se situa hoje, não significa a localização ideal desse sistema produtivo, nem uma impossibilidade de se tornar parte central do desenvolvimento econômico. 

É recorrente a suposta noção de que as cooperativas sejam atividades produtivas complementares, realizando trabalhos secundários pelos desempregados do capital e ocupando o lugar social dos trabalhos que as empresas capitalistas não se interessam por fazer, seja pela complexidade, risco ou baixa lucratividade das atividades econômicas. 

Trata‐se de uma outra economia do trabalho, com uma outra perspectiva de produção, trabalho e consumo, na direção de uma sociedade inclusiva, em uma ampla concepção dos termos solidariedade, sustentabilidade e responsabilidade social, que estão correlacionados às práticas econômicas e sociais cooperativistas. 

No entanto, cabe ressaltar que as práticas não‐capitalistas podem ter a sua lógica subvertida aos interesses do capital, pois não são as formas não‐capitalistas em si que garantem práticas sociais inclusivas, mas, antes, o estabelecimento dos interesses econômicos e das relações de dominação, conforme discutido anteriormente. 

A dinâmica da terceirização, por exemplo, com a flexibilização do trabalho, pode subverter as atividades cooperativas em instrumentos para a precarização do trabalho coletivo, retirando garantias sociais do emprego formal legalmente estabelecidas. 

Singer e Souza (2000) apontam para essa subversão do cooperativismo para fins da precarização coletiva do trabalho, viabilizando a terceirização de mão‐de‐obra e a monopolização de segmentos de mercado, com a formação de falsos grupos cooperativos com fins lucrativos e sem os fins sociais. 

Singer (2002, p.13) enfatiza que o cooperativismo carece de instrumentos de regulação que consigam, efetivamente, coibir as chamadas “cooperativas de mão‐de‐obra”, que buscam no modelo cooperativista saídas econômicas para a exploração do trabalho e redução de custos de produção, por meio da precarização coletiva do trabalho terceirizado. 

Para a atuação efetiva de sociedades cooperativas no Brasil, relacionadas aos vários segmentos econômicos da construção civil, é necessária uma ampla reordenação socioeconômica do sistema produtivo cooperativo. Assim, é fundamental promover um autêntico sistema produtivo cooperativista, e não apenas um conjunto de atividades cooperativas isoladas, ou mesmo agrupadas em ramos segmentados, em uma efetiva intercooperação produtiva das práticas autogestionárias, constituindo o funcionamento de uma economia social de base cooperativista. 

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Isso significa a necessidade de se constituir um sistema de produção baseado nos princípios da economia social e integrá‐lo à construção civil, interligando diversas atividades cooperativas de produção, trabalho, consumo e crédito, em um sistema de redes de intercooperação com atividades autogestionárias na construção civil. Dessa forma, redes solidárias podem ativar a dinâmica geral da economia pela centralidade econômica da construção civil, estabelendo várias cadeias produtivas não‐capitalistas correlacionadas. 

Com efeito, a ordenação jurídica e as políticas públicas brasileiras com relação ao cooperativismo necessitam de aprimoramentos e do estabelecimento de normas que regulamentem as diferentes atuações cooperativas, conectando setores econômicos e cadeias produtivas por atos cooperativos autogestionários relacionados. 

Entretanto, o marco legal do cooperativismo brasileiro já conta com as disposições da Constituição da República, que estabelece a criação de associações e cooperativas sem a interferência estatal, apoiando e estimulando atividades econômicas de cooperativas e outras formas de livre associação. Como também com a lei geral do cooperativismo, lei nº 5.764/1971, que define a política nacional do cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas configuradas pelo Código Civil brasileiro. 

Além disso, o desenvolvimento urbano inclusivo, com base no sistema produtivo cooperativista, pode ser acionado através de um conjunto de instrumentos legais disponíveis para ações socioeconômicas relacionadas à construção civil brasileira: na lei que trata do Sistema Financeiro da Habitação ‐ lei federal nº 4380/64; nas diretrizes do Estatuto da Cidade para a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano ‐ lei federal nº 10.257/2001; nas diretrizes da Política Nacional de Habitação ‐ lei federal nº 11.124/2005, que institui o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS; na lei federal nº 11.888/2008, que garante assistência técnica às famílias de baixa renda para fins da construção de interesse social; na lei federal nº 11.977/2009, que institui o Programa Minha Casa Minha Vida; e outros atos normativos do governo federal. 

Diante disso, pode‐se afirmar o interesse público nas formas produtivas autogestionárias, através das associações e cooperativas, para a transformação social com inclusão e justiça urbana. 

Apesar da amplitude do conjunto legal apresentado, a cultura produtiva brasileira da construção civil não corresponde aos avanços sociais que a lei determina. A inserção do cooperativismo nas atividades produtivas da construção civil brasileira ainda é muito pequena, estando relacionadas às cooperativas de trabalho e, principalmente, às cooperativas habitacionais.3 

Em suma, as cooperativas de trabalho fornecem mão‐de‐obra para a indústria capitalista da construção civil, de maneira dispersa entre os vários ofícios e em diversas atividades produtivas. Por sua vez, as cooperativas habitacionais conformam grupos em regime autogestionário para o provimento de moradias de interesse social. 

Esses âmbitos de atuação do cooperativismo na construção civil brasileira são ainda muito incipientes, se comparados à amplitude formal e informal da atuação socioeconômica da construção civil. 

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De fato, as atividades sociais e econômicas relacionadas à construção civil perpassam por qualquer tipo de construção humana de permanência contínua ou temporária, em qualquer escala, para fins individuais ou coletivos, privados ou públicos, desenvolvendo materiais, tecnologias e processos construtivos diversos; movimentando solos; pavimentando ruas e estradas; constituindo sistemas de energia, esgoto, drenagem e abastecimento de água; gerenciando resíduos sólidos; promovendo instalações prediais e de equipamentos, urbanizando bairros, vilas e favelas, dentre outras ações e trabalhos relacionados às atividades produtivas e produtos desenvolvidos pela construção civil. 4 

Seja para habitar, trabalhar, transitar, prover melhorias de recursos urbanos ou rurais, dentre outros, a construção civil tem uma importante função social com relação ao atendimento das demandas construtivas dos indivíduos e da sociedade, como construir casas, edifícios, ruas, avenidas, viadutos, pontes, praças, aeroportos, portos, instalações industriais, barragens e usinas de geração de energia. 

Diante disso, a premissa aqui estabelecida é que as sociedades cooperativas de construção civil podem atuar não apenas no setor econômico habitacional voltado, principalmente, ao interesse social, mas nas demandas gerais por construção e infraestrutura, em várias escalas produtivas. 

Nesse horizonte de atuação do cooperativismo na construção civil, pode‐se subverter a lógica capitalista, que institui grandes canteiros de obras para concentrar os meios de produção, investindo na verticalização para multiplicar ganhos de capital, desinteressando‐se pelo atendimento a pequenos empreendimentos dispersos no território. 

Pela lógica da autogestão, descartando‐se os fins lucrativos da produção, sociedades cooperativas de construção podem também atuar diretamente na recuperação urbana pontual e dispersa, que não constitui grande interesse para práticas industriais da construção civil, movida pela lucratividade em larga escala, e que são muito importantes para a revitalização de espaços urbanos e patrimônios históricos prediais. 

Requalificar edificações insalubres e abandonadas, como também recuperar áreas degradadas, dotar infraestrutura urbana, condições de acesso e mobilidade aos espaços são ações sociais e econômicas que cooperativas de construção podem realizar. 

Considerando o envolvimento do poder público na autogestão urbana e a mobilização social intrínseca às cooperativas, o ordenamento territorial pode ter um ator econômico, que exerça limites aos avanços do capital, desestruturadores de qualidades, ambientais, culturais ou históricas. 

Assim, os atos cooperativos podem influenciar a vida das pessoas, promovendo inclusão social nos âmbitos da produção, trabalho e consumo, como também da gestão urbana, o que representa uma outra dinâmica na economia, com relação ao acesso ao trabalho, geração de renda, aliado ao uso e à ocupação do solo nas cidades, sem os fins lucrativos. 

Com isso, as cooperativas de construção, nessa concepção prospectiva, colocam em questão o modo como a interação e a representação social podem acontecer diretamente no trabalho construtivo, influenciando estratégias solidárias de produção e trabalho, e indiretamente em formas de inserção social no território, redefinindo relações entre Estado‐mercado‐sociedade. 

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A condição autogestionária cooperativista ampliada à autogestão urbana e à ativação da cidadania implicam maior coesão social para a gestão urbana com maior poder de decisão sobre o espaço urbano por parte dos cidadãos autogestionários. Isso implica melhorias gerais nas condições de vida dos espaços cotidianos, como também a potencialização de reordenações locais e regionais, capazes de intervir na dinâmica de expansão urbana e suas práticas territoriais excludentes. 

Cadeias produtivas não‐capitalistas podem ser acionadas e vários empreendimentos autogeridos podem ser organizados em diversos ramos econômicos. Com isso, a incubação de empreendimentos autogestionários e a transferência tecnológica apropriada para os fins sociais são fundamentais para a viabilidade desse sistema, bem como os princípios orientadores da Economia Social. 

A constituição de uma outra cultura produtiva pode ser efetivada, desenvolvendo‐se tecnologias e materiais com fins sociais, envolvendo a abertura de frentes solidárias de produção e trabalho, com preservação de identidades e diversidades locais, além da utilização responsável de energia e recursos naturais. 

5 CONSTRUÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO 

O grande desafio da reestruturação produtiva com sentido social na construção civil, descrita acima, está na ruptura da cultura produtiva dominante, que exerce um papel estrutural na dinâmica geral da economia capitalista brasileira. 

A indústria da construção civil é evidenciada na centralidade do atual desenvolvimento econômico brasileiro, tendo como suposta função social contribuir para o crescimento econômico e a geração de emprego e renda, através das atividades de construção de edifícios, obras de infraestrutura e serviços especializados para construção.5 

Dados recentes desse setor, publicados pelo IBGE, com base na Pesquisa Anual da Indústria da construção, referente ao ano de 20106, demonstram que a construção civil contribui em 5,7% do PIB do país em um montante de R$ 250 bilhões, ocupando cerca de 2,5 milhões de pessoas e pagando em média 2,6 salários mínimos mensais. Os gastos do setor formal da construção civil com salários, retiradas e outras remunerações7 são de R$ 41,9 bilhões, o que representa um salário médio mensal de R$ 1 300, 00. Ressalta‐se ainda que os custos e despesas da construção são de R$ 205,6 bilhões, e os gastos com pessoal ocupado8 são cerca de 30,7% desse total, compreendendo R$ 63,1 bilhões. 

A análise conjuntural elaborada pelo DIEESE, no Estudo Setorial da Construção de 2011, informa que o saldo de empregos do setor no ano de referência é de 300 mil postos de trabalho, uma vez que dos 2,5 milhões de pessoas ocupadas; 2,2 milhões foram demitidas em 2010. O argumento da geração de emprego do setor não leva em conta a imensa rotatividade dos arranjos produtivos que instituem uma política de alta rotatividade.9 

Segundo informa a análise conjuntural realizada pelo DIEESE, o contexto do aquecimento econômico do mercado da construção é movido, em grande parte, pelas atividades produtivas fomentadas pelas políticas públicas do Programa de Aceleração do Crescimento, Programa Minha Casa Minha Vida, Copa 2014 e Olimpíada 2016.10 

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Desde 2009, a política habitacional brasileira foi alterada de uma política de interesse social para tornar‐se um programa econômico de industrialização capitalista. O objetivo principal Programa Minha Casa Minha Vida, por exemplo, é “criar um ambiente econômico confiável que estimule o crescimento do mercado formal de habitação e crédito, bem como a geração de emprego.” O Plano Nacional de Habitação destaca ainda essa perspectiva econômica como medida anticíclica, referindo‐se à estratégia de fortalecimento do mercado interno para o enfrentamento da crise econômica mundial de 2008.11 

Entretanto, com base nos estudos do DIEESE, pode‐se afirmar que as relações sociais de produção permanecem, atualmente, inalteradas, mantendo‐se a cultura produtiva da construção civil capitalista, em processos semi‐industriais, fundamentalmente, associados à exploração intensiva de mão‐de‐obra, trabalho manual e informal, alta rotatividade dos trabalhadores de níveis hierárquicos mais baixos (serventes) e fraca representação sindical da classe trabalhadora da construção civil. 

Embora o cenário tecnológico da construção civil tenha‐se alterado na atualidade com o incremento da pré‐fabricação industrial e da modernização do setor, movida por interesses empresariais aliados aos interesses governamentais presentes nas políticas públicas para o desenvolvimento econômico nacional, a modernização industrial do setor mantém os princípios da manufatura, cuja base são os ofícios manuais. 

Para Farrah (1996. p.104), o atraso tecnológico típico da construção civil significa a forma específica de acumulação de capital por esse setor econômico, baseado na baixa composição orgânica do capital, movendo‐se à base de mão‐de‐obra intensiva, não‐qualificada, em processos artesanais e manufatureiros com elevadas perdas de recursos materiais e frágil presença de máquinas e de equipamentos mecânicos. 

De fato, a suposta eficácia do modelo econômico da indústria da construção civil, em curso no país, não tem correspondido à prometida inclusão social nos moldes capitalistas. O aumento do número de empregos formais não rompe com a rotatividade e imensa informalidade do trabalho na construção. Além disso, o modelo econômico não tem sido seguido por significativos aumentos no rendimento mensal dos trabalhadores da construção, não promove incremento de saúde e segurança no trabalho, mantendo‐se condições muito precárias de trabalho nos canteiros de obras. 

Por outro lado, o crescimento do mercado formal de habitação industrializada significa a escala necessária para manter a rotatividade do capital e a viabilidade financeira ao setor bancário no médio e longo prazo. Os estudos do DIEESE apontam para a importância de 33% do financiamento total do PAC 1, R$ 216,9 milhões, contou com recursos do financiamento habitacional para pessoa física.12 

Para Harvey (2005, p.48), para que seja viável a elaboração de um novo patamar para configurar uma demanda efetiva com capacidade de absorção do mercado consumidor, é preciso atender a quatro pressupostos: penetração do capital em novas esferas produtivas; criação de novas necessidades de consumo; crescimento populacional; e expansão geográfica. 

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Esses pressupostos são elementos conhecidos da teoria marxiana em uma releitura, que articula a base populacional necessária para prover execedente de mão de obra; mercado para a produção de bens de produção; mercado de consumo para absorver mercadorias crescentes e base territorial para reprodução e ampliação do capital. 

Os quatro pressupostos podem ser verificados no cenário econômico atual brasileiro, em que a habitação tem‐se tornado uma demanda efetiva, considerando‐se que a penetração do capital em novas esferas produtivas tem sido fomentada pela presença das políticas e programas governamentais como PAC, Minha Casa Minha Vida, Copa 2014, Olimpíadas 2016. Além disso são incentivadas a criação de novas necessidades de consumo com a viabilização do “sonho da casa própria”, e esta recheada com móveis, eletrodomésticos, carros, roupas e telefones novos, todos financiados a longo curto, médio e longo prazo, principalmente, para a nova classe trabalhadora brasileira. Com relação ao crescimento populacional e expansão geográfica, o país tem mantido o crescimento populacional das classes pobres e incentivado a expansão das zonas urbanas consolidadas, periféricas e rururbanas, pelas atividades da indústria da construção civil. 

Sem reformular capital e trabalho no sentido social inclusivo e mantendo‐se ou até mesmo aprofundando formas cristalizadas de expropriação do trabalho e da terra, pergunta‐se que tipo de inclusão social está sendo gestada pela governança brasileira ao fomentar políticas de desenvolvimento favoráveis à exploração do trabalhador brasileiro e ao rentismo imobiliário da terra? 

Muitos outros impactos inclusivos na produção social do espaço podem ser gerados com a cidadania ativada pela lógica da autogestão cooperativista. Ao constituir outras formas para ações econômicas com sentido social, modificam‐se os comportamentos, as técnicas, os instrumentos, os materiais e as formas sociais do trabalho produtivo e de ocupação territorial. Portanto, o trabalho produtivo alienado pode tornar‐se trabalho com consciência crítica e responsabilidade social, o que reposiciona a produção e o trabalho para a sustentabilidade e o desenvolvimento social, redefinindo num sentido amplo relações entre economia e sociedade, que perpassam a construção civil. 

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7 NOTAS

1 O termo economia social não possui consenso acadêmico no Brasil, sendo encontrado principalmente como sinônimos: economia solidária, economia popular e economia do trabalho. Adoto o termo economia social neste trabalho, abarcando a perspectiva global da sua história pregressa conectada às iniciativas alternativas ao capitalismo, como o mutualismo, o cooperativismo, o associativismo e o ativismo político relacionado aos movimentos sociais urbanos e às lutas operárias dos séculos XIX e XX. 

2 O  conceito de embeddedness, de Mark Granovetter, é  traduzido para a  língua portuguesa  como  imbricação ou imersão. Na tradução do texto de Swedberg (2005), adota‐se o termo imbricação. Entretanto, a tradução do texto de Granoveter (2007) adota o termo imersão. Considerando que a discussão crítica de Swedberg aponta para a noção weberiana de  comportamento para o outro, o  termo  imbricação parece‐me  adequado pela  sugestão de estreita ligação em que os elementos se confundem ou se mesclam. Entretanto, o sentido do ato de imbricar configura uma 

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programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da ufmg (org.)

isbn: 978-85-98261-08-9

 

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imersão, especialmente imersão nos comportamentos sociais. Neste artigo, adoto o termo imersão. 

3 Dados relacionados aos ramos econômicos da Organização das Cooperativas Brasileiras – OCB. 

4 Produtos da construção relacionados pelo IBGE ‐ Pesquisa anual da Indústria da Construção, 2010. p.33. 

5 Construção de edifícios, obras de infraestrutura e serviços especializados para construção são respectivamente os agrupamentos das atividades do setor, segundo a metodologia proposta pelo IBGE ‐ Pesquisa anual da Indústria da Construção, 2010. 

6 IBGE ‐ Pesquisa anual da Indústria da Construção, 2010. p. 27 

7 A variável salários, retiradas e outras remunerações corresponde à soma das importâncias pagas no ano a título de salários fixos, pró‐labore, retiradas, honorários, comissões, ajudas de custo, 13o salário, abono financeiro de 1/3 e venda de parcela de férias, etc., sem dedução das parcelas correspondentes às cotas de Previdência e Assistência Social (IAPAS). Excluem‐se os pagamentos a trabalhadores em domicílio e, ainda, as participações pagas a profissionais autônomos. Segundo a metodologia proposta pelo IBGE ‐ Pesquisa anual da Indústria da Construção, 2010.p. 18. 

8 A variável pessoal ocupado corresponde ao registro do número de pessoas ocupadas que, em 31/12 do ano de referência, exerciam efetivamente ocupação na empresa de acordo com as categorias funcionais descritas no questionário do PAIC. Inclui as pessoas que em 31/12 encontravam‐se afastadas por motivo de férias, de licença, seguros por acidentes etc., desde que estes afastamentos não tenham sido superiores a 30 (trinta) dias. Não considera‐se o pessoal sem vínculo empregatício, pessoal dos serviços prestados por terceiros e locação de mão‐de‐obra. O pessoal ocupado é discriminado, segundo os seguintes grupos: proprietários ou sócios com atividade na empresa, presidentes e diretores; pessoal não ligado à construção; e pessoal ligado à construção, tais como: pessoal de nível superior (gerentes, chefes e supervisores), mestres e encarregados, operários, armadores, carpinteiros, pedreiros, serventes, etc., com atividade na empresa. Segundo a metodologia proposta pelo IBGE ‐ Pesquisa anual da Indústria da Construção, 2010.p. 16. 

9 DIEESE, Estudo Setorial da Construção de 2011. p. 14. 

10 DIEESE, Estudo Setorial da Construção de 2011. p. 23. 

11 Ministério das Cidades. Plano Nacional de Habitação. 2009, p. 192. 

12 DIEESE, Estudo Setorial da Construção de 2011. p. 24. 

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