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Projeto Arara-azul Sandro Menezes Silva Wikipédia. Arara-azul. A extinção de uma espécie é um processo natural na história e ciclos de ex- tinção têm sido registrados normalmente na natureza ao longo dos últimos milhões de anos. Estima-se que tenha havido grandes ondas de extinção de espécies ao final da era Paleozóica1 – há cerca de 250 milhões de anos –, no período Cretáceo 2 – 90 milhões de anos atrás – e mais recentemente no Pleistoce- no 3 – há aproximadamente um milhão de anos. Existem evidências de que esses eventos de “megaextinção” tenham ocorrido por causas naturais, como mudanças climáticas, eventos tectônicos e até mesmo colisões entre asteróides e a Terra. Muitos cientistas e pesquisadores têm afirmado que estamos diante de mais um ciclo de extinções em massa, mas dessa vez o principal agente causador é o próprio homem. As mudanças provocadas pela espécie humana nos ambientes naturais têm levado espécies à extinção em uma velocidade muito maior do que aquela registrada em eras passadas e, muitas vezes, sem sequer saber o que está sendo perdido. As principais causas da perda de biodiversidade A destruição e a fragmentação de habitats, a degradação ambiental, a polui- ção dos meios aéreo, aquático e terrestre, a exploração de espécies para uso hu- 1 Paleozóica: uma das eras documentadas na histó- ria da vida da Terra. Iniciou há cerca de 550 milhões de anos no período Cambriano e durou cerca de 300 milhões de anos, terminando com o período conhecido como Permiano, quando houve um fenômeno de extinção em massa. 2 Cretáceo: período da era Cenozóica que sucede a Paleozóica. Durou cerca de 180 milhões de anos e marca o surgimento das plantas com sementes e o desaparecimen- to de muitos grupos de rép- teis, como os dinossauros. 3 Pleistoceno: período que marca o início da era Quaternária, que durou de 1,8 milhões a 11.000 anos. É marcada por um período frio, quando muitas espécies de grandes mamíferos extin- guiram-se. Caso de sucesso 10

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Projeto Arara-azulSandro Menezes Silva

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Arara-azul.

A extinção de uma espécie é um processo natural na história e ciclos de ex-tinção têm sido registrados normalmente na natureza ao longo dos últimos milhões de anos. Estima-se que tenha havido grandes ondas de extinção

de espécies ao final da era Paleozóica1 – há cerca de 250 milhões de anos –, no período Cretáceo2 – 90 milhões de anos atrás – e mais recentemente no Pleistoce-no3 – há aproximadamente um milhão de anos. Existem evidências de que esses eventos de “megaextinção” tenham ocorrido por causas naturais, como mudanças climáticas, eventos tectônicos e até mesmo colisões entre asteróides e a Terra.

Muitos cientistas e pesquisadores têm afirmado que estamos diante de mais um ciclo de extinções em massa, mas dessa vez o principal agente causador é o próprio homem. As mudanças provocadas pela espécie humana nos ambientes naturais têm levado espécies à extinção em uma velocidade muito maior do que aquela registrada em eras passadas e, muitas vezes, sem sequer saber o que está sendo perdido.

As principais causas da perda de biodiversidade

A destruição e a fragmentação de habitats, a degradação ambiental, a polui-ção dos meios aéreo, aquático e terrestre, a exploração de espécies para uso hu-

1Paleozóica: uma das eras documentadas na histó-

ria da vida da Terra. Iniciou há cerca de 550 milhões de anos no período Cambriano e durou cerca de 300 milhões de anos, terminando com o período conhecido como Permiano, quando houve um fenômeno de extinção em massa.

2Cretáceo: período da era Cenozóica que sucede a

Paleozóica. Durou cerca de 180 milhões de anos e marca o surgimento das plantas com sementes e o desaparecimen-to de muitos grupos de rép-teis, como os dinossauros.

3Pleistoceno: período que marca o início da era

Quaternária, que durou de 1,8 milhões a 11.000 anos. É marcada por um período frio, quando muitas espécies de grandes mamíferos extin-guiram-se.

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mano e a introdução de espécies exóticas têm sido apontadas como as principais causas da perda de biodiversidade. As espécies reconhecidas oficialmente como ameaçadas de extinção são os reflexos desse processo e cada vez que é publica-da uma atualização dessas listas, mais e mais espécies são relacionadas. Para se ter um exemplo dessa grandeza, a atual lista de espécies da fauna ameaçadas de extinção no Brasil relaciona 633 espécies, contra as 218 que eram conhecidas an-teriormente.4

A espécie é considerada em risco de extinção quando suas populações atin-gem tamanhos muito reduzidos, deixando a espécie geneticamente enfraquecida e conseqüentemente ameaçada. A redução drástica de uma população pode levar a um aumento nos acasalamentos entre parentes, ou até mesmo ao não-acasala-mento, diminuindo a variabilidade genética e o número de descendentes a cada geração, provocando o gradual desaparecimento da espécie.

A perda de habitats pode provocar o desaparecimento de populações inteiras de uma só vez, principalmente de espécies que têm distribuição geográfica restrita a um determinado tipo de ambiente. Pode provocar a perda de uma espécie que é vital para a sobrevivência de outras, como um vegetal que serve de alimento ou abrigo para a espécie animal ou um animal que é a presa de outra espécie, e que sem este não consegue sobreviver, só para citar exemplos bem simples.

Mas é o tráfico de animais silvestres, outra importante causa de perda de biodiversidade, que tem representado a principal ameaça de extinção de muitas espécies da fauna brasileira, principalmente das aves, atraentes pelas suas cores e pelos seus diferentes cantos. A retirada de animais de seus ambientes naturais para serem vendidos como animais de estimação, para colecionadores, para fins científicos ou como produtos para serem beneficiados por diferentes setores indus-triais é crime pela legislação brasileira.

“Após a perda do habitat, a caça, para subsistência e comércio, é a segunda maior ameaça à fauna silvestre brasileira [...]. Atualmente, o comércio ilegal de vida silvestre, o qual inclui a fauna e seus produtos, movimenta de 10 a 20 bilhões de dólares por ano [...]. É a terceira atividade ilícita do mundo, depois das armas e das drogas. O Brasil participa com cerca de 5% a 15% do total mundial.” (RENCTAS, 2006)

A arara-azul, espécie que motivou a criação do projeto que estudamos ago-ra, tem sido alvo dessa atividade ilícita, e embora os resultados que conheceremos apontam para um futuro promissor para a espécie, ainda há muito para ser feito, para garantir não só a proteção dessa, mas de várias outras espécies que se encon-tram em situação semelhante à da arara-azul.

O tráfico de animais silvestres Em um estudo realizado pela Rede Nacional de Combate ao Tráfico de

Animais Silvestres (Renctas), são apresentados alguns animais da fauna brasi-leira que são caçados para serem vendidos a colecionadores, ou como animais

4Para saber mais sobre a fauna brasileira amea-

çada de extinção consulte o trabalho: Machado, A. B; Martins, C. S. e; Drummond, G. M. (eds.) Lista da Fauna Brasileira Ameaçada de Extinção. Belo Horizonte, Fundação Biodiversitas, 2005, 160 p.

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de estimação, e seus respectivos preços no mercado internacional, conforme pode ser visto abaixo:

Nome comum português / inglês

Nome científico Valor em US$/unidade

Arara-azul-de-learLear’s macaw

Anodorhynchus leari 60.000

Arara-azulHyacinthine macaw

Anodorhynchus hyacinthinus 25.000

Arara-canindéBlue and yellow macaw

Ara ararauana 4.000

Papagaio-de-cara-roxa Blue cheeked parrot

Amazona brasiliensis 6.000

HarpiaHarpy eagle

Harpia harpyja 20.000

Mico-leão-douradoGolden lion tamarin

Lentopithecus rosalia 20.000

Uacari-branco Uakari

Cacajao calvus 15.000

Jaguatirica Ocelot

Leopardus pardalis 10.000

1.º Relatório Nacional sobre o tráfico de fauna silvestre / Renctas.

Só em 2005 foram apreendidos cerca de 25 000 animais que estavam sendo vendidos por traficantes, o que para os leigos não passa de mais uma cena comum em nosso país: pessoas tentando se dar bem na vida com atividades ilícitas. Só que o tráfico de animais acontece junto com o tráfico de drogas, armas e até pedras preciosas, crimes considerados “mais graves” pela sociedade em geral. A legisla-ção brasileira considera o tráfico de animais um crime de menor potencial ofensi-vo (até 1998 era inafiançável) e hoje, o indivíduo que for pego vendendo animais silvestres pega no máximo dois anos de prisão, podendo a pena ser substituída por ações comunitárias ou doação de cestas básicas.

O valor das multas é de R$ 523,00 por animal não ameaçado de extinção, e pode chegar a mais de R$ 3.665,00, se for ameaçado. Se estiver ameaçado e fizer parte da convenção internacional de preservação de espécies, o valor chega a R$ 5.769,00. O valor máximo que a multa pode alcançar é de 150 mil reais, no estado de São Paulo.

A lógica de toda venda ilegal é a mesma: se alguém está vendendo é porque existe alguém para comprar. Com penas brandas, os traficantes sentem-se à vontade para continuar suas atividades. Dos animais capturados para venda, apenas 40% vai para outros países, o restante fica no Brasil mesmo. A rede de tráfico é profissional, com caçadores e receptadores espalhados por todo o território nacional.

Para piorar a situação, um papagaio verdadeiro, aquele que diverte a crian-çada repetindo palavras do nosso vocabulário, custa entre R$ 50,00 e R$ 100,00 quando comprado no mercado ilegal. Já quando vem de criadouros autorizados, o preço chega a R$ 1.000,00.

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“Em janeiro passado, a Polícia Ambiental recebeu denúncia de que um hóspede de uma pousada na cidade de Aparecida estava transportando pássa-ros. Com ele foram encontrados 16 canários-da-terra, 10 canários-da-terra pe-ruanos e um canário-do-reino. Mesmo tendo uma documentação do Instituto do Meio Ambiente (Ibama) que permitiriam o transporte das aves, ele tentou soltar algumas pela janela. Desconfiados, os policiais vasculharam o quarto e acharam uma pistola 380, revólver calibre 38, dois Speed Louder e um porta Speed Louder com 18 cartuchos intactos de calibre 38. Nenhuma das armas tinha documentação. Em outubro do ano passado, a Polícia Militar Ambiental apreendeu no Morumbi, zona sul da capital, sete araras e um papagaio junto com um arsenal de armamentos e munições de uso restrito das Forças Armadas.” (RENCTAS, 2006)

A arara-azulA arara-azul-grande, como é conhecida nos compêndios de Or-

nitologia5, tem sido vítima do tráfico de animais silvestres, e foi justa-mente essa situação, percebida por uma pesquisadora chamada Neiva Robaldo Guedes, há 16 anos, que ocasionou o surgimento do Projeto Arara-azul.

Também chamada de araraúna, (una, em tupi, significa negro), nome rela-cionado à coloração preta na parte interna de suas penas, que só pode ser vista durante o vôo, é a maior arara brasileira, podendo chegar a mais de um metro de comprimento e pesar entre 1 e 2 kg.

Seu nome científico é Anodorhynchus hyacinthinus, cujo gênero possui mais duas espécies brasileiras, Anodorhynchus glaucus (ararinha-azul ou arara-cinza-azulada; já extinta na natureza) e Anodorhynchus leari (arara-azul-de-lear; ameaçada de extinção). Para conhecer um pouco mais sobre essas três espécies, veja o quadro a seguir.

Arara-azul-grande

Arara-azul-de-lear Ararinha-azul

Ordem Psittaciformes

Família Psittacidae

Nome científico Anodorhynchus hyacinthinus

Anodorhynchus leari Anodorhynchus glaucus

Nome popular Arara-azul-grande, araraúna

Arara-azul-de-lear Ararinha-azul, arara-cinza-azulada

Nome em inglês Hyacinthine macaw Indigo macaw Glaucous macaw5Ornitologia: parte da Biologia que estuda as

aves.

E a arara-azul, o que tem a ver

com isso?

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Cor

Plumagem totalmente azul com um anel amarelo em torno do olho e fita da mesma cor na base da mandíbula.

Cabeça e pescoço azul-esverdeados, barriga azul-claro, apenas as costas e lado superior das asas e cauda azul-escuro. Anel em torno do olho amarelo-claro, pálpebra azul-claro, branca ou levemente azulada, íris castanha. Na barbela tem uma mancha amarelo-enxofre clara quase triangular, situada dos lados na base da mandíbula.

Cabeça, pescoço, costas, asas, cauda e barriga são de azul desbotado esverdeado; a garganta é enegrecida.

Peso 1,5 kg 940 g 800 g

Comprimento 98 cm a 1,14 m 72 cm (aproximadamente)

68 cm

Distribuição geográfica

Região Norte, Central e parte da Região Nordeste do Brasil.

Região semi-árida do nordeste da Bahia; endêmica da caatinga baiana.

Era comum ao longo do Rio Paraguai e Paraná, na Argentina, Paraguai e Brasil, onde vivia nas baixadas com palmeiras (tucum, mucujá), margens de rios, fazendo ninhos nos barrancos do rio ou em ocos de árvore.

HabitatBuritizais, florestas de galeria e cerrados adjacentes.

Caatinga, em regiões de cânions e rochedos.

Caatinga e cerrado

Hábitos alimentares

Sementes, frutas, insetos e pequenos vertebrados.

Principalmente, sementes de licuri, mas também pinhão, umbu e mucumã.

Frutas, grãos, frutos das palmeiras e insetos.

ReproduçãoPostura de 1 a 2 ovos. Incubação de 30 dias.

Período de incubação de 25 a 28 dias, botando de 1 a 3 ovos.

NinhoOcos de árvores, especialmente o manduvi.

Locais rochosos em paredes íngremes dos cânions.

Barrancos de rios e ocos de árvores.

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Período de vida

Em vida livre, entre 30 e 40 anos. Em cativeiro, aproximadamente 60 anos.

Em cativeiro, aproximadamente, 60 anos.

Situação atual

Vulnerável.Tamanho populacional reduzido por causa da caça, do comércio ilegal e da degradação dos habitats.Com o trabalho de recuperação da população, o número de indivíduos subiu de 1 500 (em 1987) para aproximadamente 5 000 hoje na região do Pantanal.

Criticamente ameaçada.Tamanho populacional reduzido ou em declínio, com probabilidade de extinção na natureza em pelo menos 50% em 10 anos ou 3 gerações. É uma das espécies de aves menos conhecidas e mais ameaçadas de extinção. Estima-se que atualmente existem cerca de 180 indivíduos na natureza e 20 em cativeiro. Durante muitos anos não era encontrada em vida livre. Em 1978 foi localizada no Raso da Catarina, nordeste da Bahia, sendo a única arara em vida livre da região.

Extinta na natureza.Uma suspeita de catástrofe natural causada por doença a possibilidade de esgotamento genético devido à caça intensiva para o comércio de animais são as causas da extinção dessa espécie. Era raramente encontrada em vida livre e pouco se sabe sobre seus hábitos e características.

Obs.: Ainda existe outra espécie conhecida como ararinha-azul, que também está extinta na natureza. Seu nome científico é Cyanopsitta spixii. É bem menor (cerca de 54 cm), vivia na caatinga seca e matas ciliares abertas na bacia do São Francisco, desde o extremo norte da Bahia, até o sul do rio São Francisco, na região de Juazeiro. Seu desaparecimento também foi devido ao tráfico de ani-mais e degradação do habitat. Atualmente, resta um único exemplar conhecido na natureza (um macho) e cerca de 20 em cativeiro. Desde o início da década de 1990, há um projeto para a localização de outros indivíduos e a recuperação da espécie pela reintrodução na natureza de animais provenientes de cativeiro. A tentativa de acasalamento do macho em liberdade com uma fêmea nascida em cativeiro, feita recentemente, não obteve sucesso.

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6Buritizais: formações onde o buriti, uma palmeira de

nome científico Mauritia fle-xuosa, é a espécie mais típica. Em geral ocorrem em áreas úmidas, como em nascentes de rios e brejos permanentes, na região Centro Oeste e Nordes-te do Brasil.

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Arara-azul-grande.

A arara-azul-grande é encontrada no Pantanal, na Região Sul-amazônica, no oeste da Bahia, Tocantins, Piauí e sul do Maranhão, habitando áreas de matas ciliares e cerrado, além de buritizais6. Hoje, a população é pequena devido prin-cipalmente à destruição dos seus habitats, ao tráfico de animais e ao seu baixo sucesso reprodutivo em cativeiro.

As maiores populações conhecidas estão relacionadas à existência de ár-vores grandes para nidificação, uma vez que elas fazem seus ninhos em troncos ocos de árvores e aos frutos de algumas espécies de palmáceas, que constituem sua preferência alimentar. Comumente vivem em famílias, pares ou bandos, que podem atingir até 60 indivíduos.

Como é a vida da arara-azulA existência da espécie é hoje ameaçada por vários fatores, alguns dos quais

já comentados anteriormente, comuns à maioria das espécies ameaçadas de ex-tinção. Nas regiões onde a agricultura e a pecuária são as atividades principais, a situação das araras é ainda mais grave, ameaçada pelas queimadas constantes e pelo pisoteio do gado. As queimadas, muito utilizadas para o manejo do pasto e para a limpeza da roça, acabam se espalhando e alcançando as partes com vege-tação mais alta, incluindo os capões onde estão os ninhos e os alimentos para as araras. Já o pisoteio do gado impede a germinação e o desenvolvimento de muitas espécies vegetais, incluindo aquelas que fazem parte da vida das araras, seja como alimento, seja como local de nidificação.

No Pantanal, as araras-azuis usam espécies de árvores como a ximbuca (Enterolobium contortisiliquun) e o angico-branco (Albizia niopoides). Mas é o manduvi (Sterculia apetala) a predileta desses animais; cerca de 90% dos ninhos encontra-se em árvores desta espécie.

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Ninho de arara-azul em tronco de manduvi.

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O manduvi chega a ter de 50 a 60 centímetros de diâmetro no tronco e mais de 10 metros de altura, e tem madeira mole, proporcionando o desenvolvimento de ocos no interior do tronco, os quais são grandes o suficiente para acomodar o ninho dessa espécie. A arara não inicia um oco, mas pode aumentá-lo para seu uso, pois a força de seu bico é extraordinária. Produz frutos maduros entre maio e agosto, muito consumidos por aves, macacos e roedores.

As araras-azuis são animais monogâmicos; vivem com o mesmo parceiro durante toda a vida. Para muitos, essa característica é desfavorável para a sobrevi-vência da espécie atualmente, pois com a perda do parceiro o animal fica sozinho e não se reproduz mais.

Arara-azul.

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O casal divide a tarefa de preparo do ninho e cuidado dos filhotes. A fêmea coloca em média dois ovos (que são do tamanho de um ovo de galinha), que eclo-dem após 28-30 dias. Os ovos precisam ser vigiados o tempo todo, pois servem de alimento para outros animais como a gralha (Cyanocorax sp), o tucano (Ram-phastos toco), o carcará (Polyborus plancus), o quati (Nasua nasua), a irara (Eira barbara) e o gambá (Didelphis albiventris). Quando jovem, além da predação por animais como o gavião-relógio (Micrastur semitorquatus), o gavião-pernilongo (Geranospiza caerulescens), o gavião-preto (Buteogallus urubutinga) e a irara, os pais ainda precisam tomar cuidado com baratas e formigas, pois as pequenas araras são muito frágeis até os 45 dias de vida. Na maioria das vezes, apenas um filhote sobrevive.

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A reprodução pode ainda ser dificultada pela disputa de ninhos com a ara-ra-vermelha (Ara chloroptera), com o gavião-relógio, com o urubu (Coragyps atratus), com o pato-do-mato (Cairina moschata), com a marreca-cabocla (Den-drocygma autumanalis) e com o tucano.

Em geral, o filhote permanece no ninho sob cuidado constante dos pais, por pouco mais de três meses, quando começa a dar os primeiros vôos. Depois disso, até uns seis meses, não fica mais no ninho, mas continua nas proximidades e é alimentado pelos pais. Com cerca de sete anos de idade a arara está madura o suficiente para começar sua própria família.

Sua alimentação varia de acordo com sua região de ocorrência. No Pan-tanal, as araras se alimentam de castanhas de diferentes espécies de palmeiras, como o acuri (Scheelea phalerata), a bocaiúva (Acrocomia aculeata) e o carandá (Copernicia alba). Na Região Sul-amazônica, sua alimentação é principalmente de cocos de inajá (Maximiliana maripa) e Astrocaryum sp. No oeste da Bahia, To-cantins, sul do Maranhão e Piauí, alimentam-se dos cocos da piaçava (Orbygnia eichleri) e do catolé (Syagrus oleracea).

Além da degradação do habitat, com a conseqüente perda das árvores que servem de ninho e alimento para a espécie, e da caça realizada por índios que vendem adornos feitos com suas penas, o tráfico desses animais contribuiu sig-nificativamente para a diminuição populacional dessa espécie. Estima-se que até a década de 1980 foram retirados ilegalmente da natureza mais de dez mil exem-plares dessa ave, sendo levadas principalmente para os Estados Unidos, Europa e Japão, além do próprio mercado interno brasileiro. Em 1987, estimava-se haver apenas 1 500 indivíduos no Pantanal, mas hoje se estima que existem na natureza cerca de 5 000 aves, sendo o Pantanal a região onde a espécie encontra-se mais protegida e onde fica a maior população. Mas o que aconteceu para que houvesse essa mudança?

O Projeto Arara-azulO Projeto Arara-azul nasceu de uma iniciativa pessoal da pesquisadora Nei-

va Robaldo Guedes, uma bióloga que ficou encantada com a ave desde a primei-ra vez que a viu na natureza. Sensibilizada pela sua beleza, e ao mesmo tempo chocada com o grau de ameaça de extinção que a espécie se encontrava, Neiva começou a pesquisar a arara e desde então nunca mais parou; isso foi em 1990.

No ano seguinte, Neiva inscreveu-se e passou na seleção para o mestrado na Esalq/USP, e foi nessa época que ela conheceu o ornitólogo Lee Harper, que ensinou a ela técnicas de escalada em árvores para estudar ninhos de psitacídeos, experiência que trazia de estudos realizados na Amazônia. Não demorou muito e Neiva já estava dando cursos de escalada em árvores, usando as técnicas como ferramentas de seu trabalho diário no campo.

Em 1991, começou sua pesquisa sobre a reprodução das araras-azuis duran-te o curso do mestrado e contou com apoio de uma bolsa de pesquisa e da WWF7. Após a conclusão do mestrado, em 1993, Neiva continuou o projeto por conta

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própria, e o que era projeto de pesquisa passou a ser um projeto de vida. Em 1994, a pesquisadora ingressou no Centro de Ensino Superior de Campo Grande, institui-ção pela qual passou a desenvolver o projeto. Ao longo de toda a história do projeto foram vários apoios, como da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza e da Toyota do Brasil, e atualmente Neiva é professora na Universidade para o Desen-volvimento do Estado e Região do Pantanal (Uniderp), onde coordena o projeto. O projeto ainda mantém as parcerias com a WWF-Brasil e com a Toyota, contando ainda com o apoio da Pousada Caiman e patrocínio da Fundação Manoel de Bar-ros, da Brasil Telecom, da Vanzin Escapamentos, da BR Tintas, do Criadouro Asas do Brasil, da Ecotrópica Alemanha / GNF e da Bradesco Capitalização.

As principais metas e atividades do Projeto Arara-azul

Atualmente, as principais metas a serem atingidas pelo projeto são a manu-tenção de uma população viável de araras-azuis na natureza a médio e longo prazo e a conservação da biodiversidade. O Projeto Arara-azul desenvolve atividades de pesquisa, manejo e conservação da espécie, que vão desde o trabalho técnico de pesquisa sobre seus hábitos até atividades de educação ambiental para diferentes públicos.

Participam do projeto biólogos, veterinários, assistentes, auxiliares de cam-po, fazendeiros e estudantes universitários, em um dia-a-dia que envolve um con-junto diverso de atividades. Podem ser citados a recuperação de ninhos naturais e artificiais; o monitoramento de ovos e filhotes; a biometria8; a coleta de material biológico; a marcação de filhotes (anilhas ou microchips); o monitoramento dos filhotes após deixarem os ninhos; a realização de palestras para hóspedes do Re-fúgio Ecológico (R.E.) Caiman e da Pousada Araraúna, locais onde o projeto é desenvolvido; o atendimento no Centro de Visitantes do projeto, localizado no R.E. Caiman; o trabalho de educação voltado para a conservação com fazendeiros e peões; o trabalho de educação e de resgate da cultura pantaneira; o artesanato com crianças no R.E. Caiman; a realização de visitas monitoradas de turistas nos locais de realização do projeto.

Na época da reprodução, de julho a março, os ninhos são monitorados mais intensamente para garantir que os filhotes cheguem com saúde à vida adulta. Os ninhos que não estão em condições para abrigar o casal e seus filhotes são con-sertados conforme as suas respectivas necessidades; se o oco é muito grande, facilitando a entrada de predadores, a equipe diminui; se entra água, conserta-se; se é muito raso, aprofunda-se; ou seja, é um trabalho constante em prol da sobre-vivência da maior arara do mundo. Além disso, há os ninhos artificiais, que não foram bem aceitos de início pelas araras-azuis.

Em 1997, foram instalados os primeiros ninhos artificiais em fazendas do pantanal sul-mato-grossense. Mesmo não sendo muito bem aceitos pelas araras-azuis, esses ninhos foram ocupados pelas espécies que disputam o manduvi com a arara-azul, como os tucanos, as araras-vermelhas, gaviões, corujas, patos e uru-bus, colaborando indiretamente com a arara-azul, pois aumentou suas chances de conseguir um tronco de manduvi para fazer seu ninho.

7WWF: abreviatura de World Wildlife Fund,

organização não-governa-mental que apóia projetos de conservação da natureza em diversas regiões do mundo. Seu símbolo, um urso-panda, é bastante conhecido e tor-nou-se uma “marca” da con-servação da biodiversidade.

8Biometria: trabalho de medição e/ou pesagem

de um animal, que pode ser feito tanto com o animal vivo como com ele morto. Em estudos ecológicos é mais comum a prática em animais contidos, com ou sem o uso de anestésicos, dependendo da espécie.

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Hoje, a equipe conseguiu acertar o material e a arquitetura dos ninhos ar-tificiais para que eles fossem aceitos pelas araras-azuis. São cerca de 362 ninhos naturais e 198 artificiais em uma área de 450 mil hectares no Pantanal sul-mato-grossense, em 47 fazendas. Com um total de mais de 3 000 indivíduos monitora-dos, o projeto ainda conta com a colaboração de pesquisadores de outras institui-ções. Um exemplo é o trabalho desenvolvido pelas cientistas Cristina Y. Miyaki e Patrícia Faria, da Universidade de São Paulo, que identificaram um padrão ge-nético característico das araras-azuis do Pantanal. Com isso, as aves poderão ser identificadas quando forem apreendidas pela fiscalização, auxiliando no mapea-mento da rota do tráfico e permitindo a reintrodução da espécie no seu respectivo local de origem.

O trabalho com os fazendeiros e peões foi feito através do desenvolvimen-to do orgulho e do privilégio de terem animais tão belos livres à sua volta. Esse apoio foi fundamental para o sucesso do projeto, pois além de não permitirem a caça em suas terras, eles preservam o manduvi e as palmeiras, espécies-chave para a arara-azul. Ver um bando de araras-azuis sobrevoando as fazendas é uma das recompensas que eles têm diariamente por ajudar a proteger esses animais.

Depois de 16 anos de muito trabalho, a equipe do Projeto Arara-azul sente-se orgulhosa, pois a população de araras triplicou. Hoje, são monitorados mais de 3 000 adultos e estima-se que exista um total de 5 000 aves em vida livre no Panta-nal. O tráfico de arara-azul diminuiu bastante, graças ao apoio da população local, que se conscientizou de que é muito melhor ver uma arara voando livre do que confinada a uma gaiola. Com isso, o foco principal, que era a conscientização para deixar o animal livre, hoje é para a preservação do seu ambiente natural. Com isso, o projeto consegue beneficiar não só a arara, mas também todos os outros seres vivos que compartilham com ela o Pantanal.

Um resultado importantíssimo desse projeto foi o desenvolvimento de téc-nicas de monitoramento e proteção da ave, que atualmente servem de base para outros estudos de psitacídeos no Brasil e no exterior.

Arara-azul ganha comitê exclusivoA partir de 2003, o Ibama separou a arara-azul-grande (Anodorhynchus

hyacintinus) em um comitê exclusivo; essa espécie fazia parte de um comi-tê junto com a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari). A separação ocorreu porque as duas espécies requerem manejos diferenciados, e com comitês ex-clusivos poderão receber mais atenção de instituições envolvidas no manejo e conservação de cada espécie.

O comitê da arara-azul-grande é composto pelo Ibama, pela Sociedade de Zoológicos do Brasil (SZB) e a Sociedade Brasileira de Ornitologia (SOB), além dos especialistas Neiva Guedes (Projeto Arara-azul), Yara de Melo Barros (Iba-ma), Ricardo Bonfim Machado (Conservação Internacional) e Pedro Scherer Neto (Museu Capão da Imbuia-PR).

O comitê tem caráter consultivo e atuará no estabelecimento de estratégias para estudo, manejo e conservação da arara-azul-grande. O objetivo é restabelecer populações geneticamente viáveis da espécie, evitando que seja extinta, como já

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aconteceu com a ararinha-azul (Cyanopsitta spiixi) e com a arara-cinza-azulada (Anodorhynchus glaucus).

Apesar da arara-azul-grande também ser encontrada nos estados de Tocan-tins, Pará, Maranhão e na região norte da Bahia, pouco se sabe sobre as popula-ções dessas regiões; as pesquisas ainda estão no início, colocando-as como priori-dade de conservação nas discussões do comitê.

Além disso, o levantamento do número de aves que estão em poder dos criadouros científicos e conservacionistas é outro objetivo do comitê, pois podem ser manejadas e fazer parte das pesquisas sobre comportamento e genética da espécie.

Atualmente, o Projeto Arara-azul é um exemplo bem sucedido de pesquisa associada à conscientização e mobilização para a conservação e transformou a arara azul em um símbolo do Pantanal. Ela tem inspirado artistas, biólogos, tu-ristas e amantes da natureza em geral, e mais do que isso, tem garantido que a espécie continuará a existir em detrimento do que vem sendo feito com a mesma em outras regiões do Brasil.

Histórico do tráfico (RENCTAS, 2006)

A fauna silvestre sempre foi um importante elemento cultural das diversas tribos indígenas brasileiras. As mais variadas espécies eram utilizadas para a alimentação, que incluía quase todos os mamíferos, aves, répteis, anfíbios e insetos, como também seus ovos. De suas partes (dentes, ossos, garras, peles e outras) se fabricavam instrumentos e ferramentas, utilizadas para diversos fins. Os animais, principalmente as aves, eram essenciais para a ornamentação indíge-na, que usava penas coloridas de qualquer espécie para enfeitar as flechas, cocares, braçadeiras, colares, brincos e diversos outros itens. Muitas aves, como as araras e a harpia, eram capturadas e mantidas nas aldeias como fornecedoras de penas para ornamentação. Esses adornos eram utilizados pelos índios em seus rituais, festas e comemorações, e os que usavam as peças mais bonitas eram mais prestigiados pela tribo (CARVALHO, 1951; JÚNIOR, 1980; RAI, 1978a, b; MACHADO, 1992a; SICK, 1997b).

As populações indígenas também incorporavam elementos faunísticos em seus mitos, len-das e superstições (muitos ainda presentes no folclore brasileiro atual), como também em suas canções, danças e obras de arte (Júnior, 1980; Andrade, 1993). Os índios também amansavam espécimes da fauna silvestre, sem nenhuma função útil, mas unicamente para diversão doméstica, alegria e curiosidade para os olhos. Esses animais eram mantidos nas aldeias como xerimbabos, que significa “coisa muito querida”, nome dado aos animais silvestres mantidos como de estima-ção, pelos índios brasileiros (CARVALHO, 1951; CASCUDO, 1973; SPIX e MARTIUS, 1981).

Grande número de xerimbabos, das mais diferentes espécies, era encontrado nas aldeias indí-genas, como araras, papagaios, periquitos, mutuns, bem-te-vi, diversos primatas, quatis, veados, jibóias e muitos outros. Os índios eram bastante apegados a esses animais, mas não se empenha-vam em reproduzi-los. Domesticavam os espécimes e não as espécies. Os animais eram mantidos por motivos afetivos e circulavam livremente nas aldeias. Por terem perfeito conhecimento do

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modo de vida das espécies, os índios se preocupavam em manter a alimentação correta de cada animal (NOGUEIRA-NETO, 1973; SICK, 1997b). É importante ressaltar que a utilização da fauna silvestre pelos índios era realizada com critérios, sem ameaçar a sobrevivência das espécies, ativi-dade bastante lucrativa, se tornou um novo ramo de negócios, como, por exemplo, não abatiam fê-meas grávidas ou animais em idade reprodutiva. No entanto, esses índios mudaram após o contato com os colonizadores e exploradores europeus. Começaram a explorar os recursos naturais mais seletivamente e intensamente, e em muitos casos eram usados como agentes depredadores desses recursos. Começa aí a história da exploração comercial da fauna silvestre brasileira, que pela sua diversidade gerava idéia de ser abundante e inesgotável.

O comércio de animais silvestres, como jacarés e sucuris oriundos da região amazônica, já era realizado pelos Incas, no Peru, mas só atingiu proporções maiores depois da chegada da ex-ploração européia (REDFORD, 1992). Esse comércio se desenvolveu paralelamente com o cresci-mento do interesse das pessoas por esses animais.

No século XVI, época da abertura do mundo para a exploração européia, era motivo de or-gulho para os viajantes retornarem com animais desconhecidos, comprovando assim o encontro de novos continentes (SICK, 1997a). Em 27 de abril de 1500, pelo menos duas araras e alguns papagaios, frutos de escambo com os índios, foram enviados ao rei de Portugal, juntamente com muitas outras amostras de animais, plantas e minerais. A impressão que tais aves causaram foi tanta, que por cerca de três anos o Brasil ficou conhecido como Terra dos Papagaios (BUENO, 1998a). Em 1511, a nau Bertoa levou para Portugal 22 periquitos tuins e 15 papagaios (SANTOS, 1990). Em 1530 o navegador português Cristóvão Pires levou 70 aves de penas coloridas (POLI-DO e OLIVEIRA, 1997). Esses foram os primeiros registros de envio da fauna silvestre brasileira para a Europa. Esses animais, que chegavam à Europa por meio de poucos viajantes e explorado-res, despertavam a curiosidade e interesse do povo europeu, e logo começaram a ser expostos e comercializados nas ruas (HAGENBECK, 1910). Passaram a ser cobiçados para estimação e no século XVI já eram encontrados primatas sul-americanos nas residências inglesas, como também era comum encontrar indígenas e animais brasileiros em residências pela França (KAVANAGH, 1983; BUENO, 1998b). Possuir animais silvestres sempre foi símbolo de riqueza, poder e nobreza, conferindo um certo status ao seu dono perante a sociedade (KLEIMAN et al., 1996). A partir do momento que o comércio de animais foi notado como uma atividade bastante lucrativa, se tornou um novo ramo de negócios, com viajantes especializados em obter animais para depois vendê-los (HAGENBECK, 1910). A comercialização da fauna silvestre ocidental, para a Europa, se siste-matizou no final do século XIX, e a partir de então se iniciou o processo de extermínio de várias espécies de animais brasileiros para atender ao mercado estrangeiro.

Os beija-flores eram exportados aos milhares para abastecerem a indústria de moda, como também eram utilizados, embalsamados, para ornamentação das salas européias (PAIVA, 1945; FITZGERALD, 1989; REDFORD, 1992; SICK, 1997a). As penas de garças e guarás eram utili-zadas como adornos de chapéus femininos na Europa e na América do Norte, e o abate desses animais foi tão excessivo que, em 1895 e 1896, Emílio Goeldi (na época diretor do Museu Para-ense de História e Etnografia), encaminhou duas representações ao governo do Estado do Pará, protestando contra a matança desses animais na Ilha de Marajó (ROCHA, 1995; POLIDO e OLI-VEIRA, 1997). No ano de 1932, cerca de 25 000 (vinte cinco mil) beija-flores foram mortos no Pará e suas penas destinadas à Itália, onde eram utilizadas para enfeitar caixas de bombons. Em 1964, chegou-se ao absurdo de importar um canhão francês para se atirar nos bandos de marrecas na Amazônia, sendo registrada a morte de 60 000 (sessenta mil) marrecas em apenas uma fazenda no Amapá (SICK, 1997a).

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Não apenas a exportação, mas também o comércio interno no Brasil foi evoluindo, abastecido pelos avanços dos meios de transporte, comunicação, técnicas de captura dos animais, crescimen-to populacional e a urbanização, permitindo o acesso a áreas que antes não eram acessíveis para exploração da fauna (FITZGERALD, 1989; MUSITI, 1999). Na década de 1960, esse comércio se encontrava estabelecido e era comum encontrar animais silvestres e seus produtos sendo vendidos em feiras livres por todo o Brasil e no mercado da Praça Mauá, na cidade do Rio de Janeiro, que sempre foi um pólo comercial de fauna silvestre (SANTOS, 1990; SICK, 1997a; CAMPELLO, 2000). A proporção era tão grande que alguns locais se destacavam pelas suas enormes “feiras de passarinhos”. Esse comércio se encontrava estabelecido no Brasil e era muito grande, sobretudo o de aves. Era rara uma cidade brasileira que não possuísse uma feira ou loja que realizasse esse comércio (Carvalho, 1951; SICK e TEIXEIRA, 1979; VINÍCIUS e SOARES, 1998).

Até então não havia um controle por parte do governo sobre a caça, a captura e a utilização de animais silvestres. No Brasil, a caça e o comércio predatório e indiscriminado da fauna silvestre são práticas antigas, que passaram a ser ilegais no ano de 1967, pois até então não havia legisla-ção que proibisse essas atividades. No ano de 1967, junto com a criação do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, foi baixada a Lei Federal 5 197, a Lei de Proteção à Fauna, declarando que todos os animais da fauna silvestre nacional e seus produtos eram de propriedade do Estado e não poderiam mais ser caçados, capturados, comercializados ou mantidos sob a posse de particulares. No entanto, não foram dadas alternativas econômicas às pessoas que até então viviam desse comércio e que da noite para o dia caíram na marginalidade. Como conseqüência surgiu um comércio clandestino (MARQUES e MENEGHETI, 1982). Começa a partir daí a his-tória do tráfico da fauna silvestre brasileira.

Apesar da ilegalidade, ainda é muito fácil encontrar animais, suas partes e produtos sendo comercializados. Atualmente, só no estado do Rio de Janeiro existem cerca de 100 feiras livres, onde também são comercializados animais ilegalmente (ROCHA, 1995; POLIDO e OLIVEIRA, 1997; BRAGA et al., 1998). A feira de Duque de Caxias (RJ) é considerada uma das maiores feiras de comércio ilegal do país. A permanência dessas feiras encoraja o comércio ilegal, pois demonstra impunidade a essa atividade, além de facilitar a posse, também ilegal, de animais por parte da sociedade. Não só as feiras, mas também algumas lojas e alguns criadouros legalizados e clandestinos, muitas vezes participam dessa atividade ilegal.

A história do tráfico de animais silvestres não é apenas de desrespeito à lei, mas também de devastação e crueldade (TOUFEXIS, 1993). O comércio de animais silvestres capturados na natureza sempre foi uma atividade deletéria para a fauna, independente de ser legal ou ilegal. O processo de comercialização, técnicas de captura, transporte e manejo, de uma maneira geral, são os mesmos desde o início até hoje, com agravantes por atualmente ser uma atividade ilegal. Os animais sempre foram tratados de uma maneira desrespeitosa, vistos apenas como simples merca-dorias, utilizados como fonte de renda.

Do momento em que o comércio de fauna silvestre se estabeleceu na Europa, surgiram comerciantes e viajantes especializados em obter e revender esses animais. Os comerciantes faziam encomendas aos viajantes, que muitas vezes utilizavam intermediários no país de origem dos animais, para a obtenção destes. Os animais ao chegarem na Europa eram revendidos para zoológicos, colecionadores particulares, além de shows e exibições circenses (HAGENBECK, 1910). Atualmente esquemas especializados do tráfico ainda funcionam assim. O grande trafi-cante, geralmente europeu ou norte-americano, possui uma rede de vendedores no país receptor e emprega coletores e contrabandistas no país exportador, que encaminham os animais até ele (LE DUC, 1996).

O transporte se dava por navios e trens e os animais eram transportados amontoados de maneira que não dava para alimentá-los. Ficavam estressados e para acalmá-los e facilitar o trans-

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Projeto Arara-azul

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porte, muitas vezes eram oferecidas aos animais bebidas alcoólicas, como rum com açúcar (HA-GENBECK, 1910). Atualmente, apesar de existirem técnicas de manejo e transporte adequadas às espécies, no comércio ilegal os animais continuam sendo transportados confinados em pouco es-paço, sem água e alimento, presos em caixas superlotadas, onde se estressam, brigam, se mutilam e se matam. Além da ingestão de bebidas alcoólicas, muitas vezes os animais são submetidos a práticas cruéis que visam a amortecer suas reações e fazê-los parecer mais mansos ao comprador e chamar menos atenção da fiscalização. É comum dopar animais com calmantes, furar ou cegar os olhos das aves, amarrar asas, arrancar dentes e garras, quebrar o osso esterno das aves, entre muitas outras técnicas cruéis (JUPIARA e ANDERSON, 1991; LOPES, 1991).

Os comerciantes e compradores não possuíam experiência e conhecimento necessário sobre a biologia dos animais e de como tratá-los, o que também acarretava uma elevada morte dos ani-mais (HAGENBECK, 1910; KLEIMAN et al., 1996). Ainda hoje, apesar de todo estudo e conhe-cimento de manejo, muitos compradores ignoram as necessidades mínimas dos animais.

Após consultar as referências recomendadas, responda às seguintes questões:

1. Qual a relação entre o tráfico de animais silvestres e a perda de biodiversidade?

2. Você acha que o tráfico de animais está relacionado a outras atividades ilícitas? Em caso posi-tivo, com quais e de que forma?

3. Quais os itens básicos que um projeto de conservação de uma espécie ameaçada deve conside-rar para ser bem-sucedido?

4. Além do Arara-azul, quais outros exemplos de projetos no Brasil que são desenvolvidos com o intuito de proteger espécies ameaçadas?

5. O que você acha que pode fazer para ajudar a proteger espécies ameaçadas de extinção?

6. Discuta em grupo quais as ações do Projeto Arara-azul que, na sua opinião, foram mais eficazes para impedir que essa ave fosse extinta?

7. Faça uma pesquisa sobre outros psitacídeos brasileiros ameaçados de extinção, procurando in-vestigar quais as principais causas desse processo, que tipo de trabalho vem sendo desenvol-vido e quais os principais resultados obtidos. Compare os resultados obtidos com o Projeto Arara- Azul e discuta em grupo com os demais colegas.

CALDAS, S. T.; CANDISANI, L. Arara-Azul. São Paulo: Dórea Books and Art, 2005.Esse livro mostra belas fotos de Luciano Candisani, fotógrafo de natureza, das araras-azuis em

seu habitat natural. São mostrados o comportamento da espécie durante todas as fases da sua vida, des-de o nascimento até o acasalamento e o surgimento de uma nova geração de araras. Também mostra os

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esforços empreendidos para a preservação da espécie, em texto bilíngüe (português e inglês), de autoria de Sérgio Túlio Caldas. Esses mesmos autores já escreveram outros dois livros que também contam as histórias de luta dos biólogos para salvar espécies ameaçadas de extinção, o Peixe-Boi e o Muriqui.

CORRÊA, M. S. Sinais da Vida: algumas histórias de quem cuida da natureza do Brasil. Curitiba: Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, 2005.

Livro comemorativo dos 15 anos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, que relata de for-ma simples e atraente alguns projetos apoiados pela Instituição ao longo de sua história. Entre eles, o Projeto Arara-azul. São informações atualizadas e contextualizadas na história que envolve a relação da bióloga Neiva Guedes e a arara-azul.

MACHADO, A. B.; MARTINS, C. S.; DRUMMOND, G. M (Org.). Lista da Fauna Brasileira Ame-açada de Extinção. Belo Horizonte: Fundação Biodiversitas, 2005.

A lista brasileira da fauna ameaçada de extinção é apresentada nessa publicação de forma crítica e comentada por especialistas nos diferentes grupos, juntamente com a história das listas no Brasil, marcos legais do tema e algumas informações sobre as espécies tratadas. A publicação e constante atualização das listas de espécies ameaçadas de extinção é um dos compromissos preconizados na Convenção da Diversidade Biológica (CDB) da qual o Brasil é signatário.

UNIVERSIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO E REGIÃO DO PANTANAL. Proje-to Arara-Azul. Disponível em: <www2.uniderp.be/projetos/arara.html>. Acesso em: 2 jun. 2006.

Site institucional da Universidade para o Desenvolvimento do Estado e Região do Pantanal – Uniderp – instituição onde a bióloga Neiva Guedes desenvolve suas atividades de ensino, pesquisa e extensão. É proprietária da Pousada Ararauna, uma das bases de campo do Projeto.

ZOOLÓGICO DE SÃO PAULO. Arara-Azul-Grande. Disponível em: <www.zoologico.sp.gov.br/aves/araraazulgrande.htm>. Acesso em: 2 jun. 2006.

Site do Zoológico de São Paulo, no qual é possível encontrar informações mais detalhadas sobre as diferentes espécies de araras tratadas no texto.

CORRÊA, M. S. Sinais da Vida: algumas histórias de quem cuida da natureza do Brasil. Curitiba: Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, 2005.

LORENZI, H. Árvores Brasileiras: manual de identificação de plantas arbóreas nativas do Brasil. Nova Odessa: Plantarum, 1998. v. 2.

MACHADO, A. B.; MARTINS, C. S.; DRUMMOND, G. M (Org.). Lista da Fauna Brasileira Ame-açada de Extinção. Belo Horizonte: Fundação Biodiversitas, 2005.

RENCTAS. Relatório da Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres 2001. Dis-ponível em: <www.renctas.org.br/pt/trafico/rel_renctas.asp>. Acesso em: 2 jun. 2006.

UNIVERSIDADE PARA O DESENVOLVIMENTO DO ESTADO E REGIÃO DO PANTANAL. Projeto Arara-Azul. Disponível em: <www2.uniderp.be/projetos/arara.html>. Acesso em: 2 jun. 2006.

ZOOLÓGICO DE SÃO PAULO. Arara-Azul-Grande. Disponível em: <www.zoologico.sp.gov.br/aves/araraazulgrande.htm>. Acesso em: 2 jun. 2006.