Projeto Juliana Fausto

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“Os fantasmas na nossa máquina” A (cosmo)política dos animais Projeto de doutorado Juliana Fausto Matrícula 1312408 2014-01 Orientadora: Déborah Danowski

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Projeto de doutorado

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“Os fantasmas na nossa máquina”

A (cosmo)política dos animais

Projeto de doutorado Juliana Fausto

Matrícula 1312408 2014-01

Orientadora: Déborah Danowski

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Para Bruxo, Nausicaa e Batatinha, refugiados políticos tornados companheiros.

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1 1. Justificativa

1.1. Preâmbulo

A primeira versão deste projeto, aquela que submeti à seleção e com a qual

entrei para o programa de pós-graduação em Filosofia da PUC-Rio, difere da atual e

penso que a explicitação dessa diferença, na forma de uma exposição do caminho

percorrido entre o projeto original e este, seria uma boa maneira de introduzir as

questões de que pretendo me ocupar. Intitulado “Antropogênese, devir-animal,

diferOnça: da relação entre humanidade e animalidade em Agamben, Deleuze e

Viveiros de Castro”, o projeto procurava investigar se havia correspondência entre o

estatuto ontológico de humanos e animais e as formas políticas. Informava-me, meio

à guisa de princípio, o capítulo “Antropogênese”, do livro O aberto, de Giorgio

Agamben, no qual o autor enuncia uma série de teses sobre o “tornar-se humano do

vivente”, das quais duas figuravam particularmente interessantes:

2) A ontologia, ou filosofia primeira, não é uma inócua disciplina acadêmica, mas a operação em todo sentido fundamental em que se atua a antropogênese, o tornar-se humano do vivente. A metafísica é apanhada do início ao fim nessa estratégia: ela concerne, precisamente, àquela metá que completa e custodia a superação da phýsis animal em direção à história humana. Essa superação não é um evento que se cumpre de uma vez por todas, mas um acontecimento sempre em curso, que decide a cada vez, e em cada indivíduo, sobre o humano e o animal, sobre a natureza e a história, sobre a vida e a morte.[...]

5) O conflito político decisivo, que governa todos os demais conflitos, é, na nossa cultura, aquele entre a animalidade e a humanidade do homem. A política ocidental é, a saber, co-originariamente biopolítica (Agamben, 2007, pp.145-146).

Isto é, não apenas a ontologia aparecia como a operação mesma de

antropogênese, mas esta era tomada como conflito político decisivo. O complemento

“na nossa cultura” me levou a pensar em outras “culturas” e mesmo em outros

conceitos de ontologia, diversos da tradição a que Agamben primariamente se filia,

por exemplo, o de Deleuze. Assim, eu tomava três conceitos que diziam respeito à

relação entre humanidade e animalidade – antropogênese, devir-animal e diferOnça –

e tentava relacioná-los a certas políticas. A hipótese, então, era a de que quanto mais

marcada fosse a separação entre humanidade (própria) e animalidade, quanto menos

animal o homem se constituísse, mais centralizados e verticais seriam a política e o

regime de governo; por paradigmas, eram tomados o campo de concentração, em um

polo, e as sociedades contra o Estado, no outro. Tratava-se já, creio, de uma tentativa

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2 de relacionar não-humanidades e sub-humanidades (tema a que voltarei com mais

detalhe em seguida).

O conceito de “vida nua”, de Agamben, parecia estratégico para o

estabelecimento de uma tal ligação; logo no início de Homo sacer, no entanto, fica

claro que a “vida natural”, zoé, é tudo que os “viventes” podem experimentar e que

apenas os humanos possuiriam o suplemento bíos, o único tipo de vida capaz de

qualificação – e por isso mesmo, o único tipo de vida que, roubada de qualificadores,

poderia tornar-se vida nua (cf. Agamben, 2002). Pensei então que, se “profanasse”

Agamben por meio de Deleuze, conseguiria, talvez, complicar a questão de maneira a

criar essa ponte; a partir então de um trecho de Diálogos, em que Deleuze afirma que

“Você ainda não definiu um animal enquanto não tiver feito a lista de seus afetos.

Nesse sentido, há mais diferença entre um cavalo de corrida e um cavalo de trabalho

do que entre um cavalo de trabalho e um boi” (Deleuze e Parnet, 1998, p. 74),

comecei a pensar sobre o cavalo de corrida, o cavalo de trabalho e o cavalo livre

como três tipos de cavalo, ou melhor, três tipos possíveis de vida. Alguns vídeos de

elefantes sendo “treinados”, isto é, agredidos fisicamente por treinadores de circo até

a submissão total para se tornarem obedientes, também me vieram à cabeça1, isso sem

falar em imagens de produção animal2. Pensei que, afinal, talvez pudesse haver uma

vida nua dos animais, análoga de alguma forma à humana; escrevi um e-mail a

Agamben colocando-lhe a pergunta, que não pareceu abalar em nada a sua convicção

na exclusividade humana da vida nua, dada a resposta: “Bare life is something

produced by power and, in your perspective, we should think to an action of power on

animals, which is perhaps conceivable. But there is not a political life of animals, so,

in this sense, bare life does not seem possible for them3.” O filósofo não negava que

era possível exercer poder sobre os animais, mas negava categoricamente a

possibilidade de sua vida política.

1 Há um documentário de 2013, “An Apology to Elephants”, de Amy Schatz, que expõe muitas dessas práticas. 2 Seguindo a socióloga, zootécnica e antiga criadora Jocelyne Porcher, prefiro o termo “produção animal” a “criação industrial”, que parece significar que entre esta e a “criação tradicional” ou familiar há apenas uma diferença de escala, quando são, de fato, práticas fundamentalmente diversas (Cf. Porcher, 2014). 3 Comunicação pessoal por e-mail, em 12/05/2013.

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3

Ficou claro que uma política humanista, como a de Agamben, jamais seria

capaz de levar em conta os animais não-humanos como qualquer outra coisa que não

objetos. Não apenas isso, mas uma outra pergunta, ainda mais fundamental, fez-se

ver, qual seja, a da possibilidade mesma de uma política que não fosse humanista. Era

preciso levar a sério as equivocações surgidas da tentativa de comparar ontologias.

Era preciso, em suma, recuar.

1.2. Era uma casa muito engraçada

Em Jamais fomos modernos, Bruno Latour, após expor a querela entre Hobbes

e Boyle como fundadora daquilo que ele chama de constituição moderna, a explicita

nos seguintes termos:

Cabe à ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à política; cabe à política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qualquer relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência e pela tecnologia (Latour, 1994, pp. 33-34).

Isto é, de acordo com a teoria de Latour, Agamben tinha razão: não existe vida

política dos animais, pelo menos do ponto de vista da constituição moderna. Nesta,

duas casas distintas, a da Natureza e a da Sociedade, não podem se comunicar. A uma

está ligada a verdade, mas é muda; a outra, a do “falatório”, não pode produzir

verdade alguma. Os animais não-humanos residiriam, claro, na primeira. São mudos,

obedecem a leis físicas e estão completamente apartados da política. Agamben teria

portanto apenas enunciado este princípio basilar da modernidade, uma espécie de

continuação do mito da caverna:

As it happens, in the West, through the ages we have become heirs to an allegory that defines the relations between Science and society: the allegory of the Cave, recounted by Plato in the Republic [...] The Philosopher, and later the Scientist, have to free themselves of the tyranny of the social dimension, public life, politics, subjective feelings, popular agitation—in short, from the dark Cave—if they want to accede to truth. Such is the first shift, according to the allegory. There exists no possible continuity between the world of human beings and access to truths “not made by human hands.” The allegory of the Cave makes it possible to create in one fell swoop a certain idea of Science and a certain idea of the social world that will serve as a foil for Science. But the myth also proposes a second shift: the Scientist, once equipped with laws not made by human hands that he has just contemplated because he has succeeded in freeing himself from the prison of the social world, can go back into the Cave so as to bring order to it with incontestable findings that will silence the endless chatter of the ignorant mob. Once again, there is no continuity between the henceforth irrefutable objective law and the human—all too human—logorrhea of the prisoners shackled in the shadows, who never know how to bring their interminable disputes to an end (Latour, 2004, pp. 10-11).

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4

Na casa da sociedade, a casa da política, só residem os humanos, vítimas de

sua logorreia. A distinção entre as casas repousa, pois, sobre um conceito

fundamental da própria filosofia: o da excepcionalidade humana. Apenas os homens,

os únicos que “têm lógos”, para lembrar outro filósofo, são “animais políticos”:

Now, that man is more of a political animal than bees or any gregarious animal is evident. Nature, as we often say, makes nothing in vain, and man is the only animal whom she has endowed with the gift of speech [λόγον δὲ µόνον ἄνθρωπος ἔχειτῶν ζῴων]. And whereas mere voice [φωνὴ] is but an indication of pleasure and pain and is therefore found in other animals (for their nature attains to the perception of pleasure and pain and the intimation of them to one another, and no further), the power of speech is intended to set forth the expedient and inexpedient, and therefore likewise the just and the unjust. And it is a characteristic of man [τοῖς ἀνθρώποις ἴδιον] that he alone has any sense of good and evil, of just and unjust, and the like, and the association of living beings who have this sense makes a family and a state [ἡ δὲ τούτων κοινωνία ποιεῖ οἰκίαν καὶ πόλιν] (Aristotle, 1978, 1253a5-20 p. 446).

O que na versão de Benjamin Jowett foi traduzido por família, oikía, pode ser

mais precisamente dito casa, lar, morada. Isto é, que o próprio do anthropos, dentre

todos os outros viventes, seja saber, porque tem lógos, a diferença entre justo, injusto,

bom e ruim, faz uma casa e uma cidade. Nem Latour, ao falar em casas, estava

anunciando uma distinção exclusivamente moderna nem Agamben, ao afirmar a

inexistência da vida política dos animais, tão longe de uma narrativa clássica da

filosofia4. Que os homens falem cria a casa política. Todo o resto está fora. A

novidade de Latour é apontar, na constituição moderna, a existência da outra casa,

que se forma na separação entre humanidade e mundo, na qual está contida a verdade

– ele também diz que ela é muda; desconfio que seja muito barulhenta, mas que sua

voz seja concebida como desarticulada –, e também que, dessa separação, emerge a

figura do cientista (no mito platônico, do filósofo), o único capaz de transitar entre

elas e, principalmente, de “trazer ordem com suas descobertas incontestáveis que

silenciarão a falação sem fim da turba ignorante”. Mas, se jamais fomos modernos,

como ele afirma, é porque essa divisão nunca existiu de fato. Se há mesmo um

descompasso entre como os modernos se descrevem e aquilo que constitui sua prática,

4 Em termos agambenianos (todos emprestados de Aristóteles): a separação entre animais e homens é a separação entre voz e linguagem é a separação entre zoé e bíos. Se não há vida nua dos animais é porque, para ele, sua existência é perpétua e irrevogavelmente desqualificada.

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5 então entre essas duas casas há uma infinidade de híbridos e as agências estão melhor

distribuídas do que se poderia imaginar.

2. Hipótese

2.1. Os subterrâneos do fora

É sabido que, em suas obras ditas naturais, Aristóteles também concede a

outros animais uma certa politicalidade. Na História dos animais, ele diz

expressamente que são políticos “homens, abelhas, vespas, formigas, grous” (488a5),

diferenciados daqueles animais meramente gregários/que vivem em bando (ἀγελαῖα)

por uma “atividade compartilhada” (κοινόν ἔργον). Isto é, os animais que vivem

juntos mas cujo trabalho não é dividido como, digamos, as ovelhas, são de bando mas

não são políticos; somente daqueles para quem há uma comunidade de atividades

pode-se dizer que são. O problema causado por esse uso do termo político em

Aristóteles é lugar de uma discussão complexa que não tenho nenhuma pretensão (ou

competência) de resconstituir aqui. Penso que me basta, para os fins ora propostos,

mencionar que nesta discussão não está em jogo que a política, mesmo quando seu

uso pelo filósofo no caso dos animais não é interpretado metaforicamente, é

considerada não apenas como (pelo menos) um próprio dos homens (ainda que não a

sua essência), mas que nestes há um “excedente de política” em relacão aos animais

não-humanos5, causado justamente pelo fato de que os primeiros têm lógos. Na Ética

a Nicômaco, por exemplo, em 1148a, Aristóteles afirma que, no caso dos homens,

viver junto (συζῆν) quer dizer compartilhar linguagem e pensamento (κοινωνεῖν

λόγων καὶ διανοίας) – e não comer no mesmo lugar, como no caso do gado. A

partilha de discurso e pensamento, e não a comensalidade, é a marca do viver-com

humano. A deficiência de lógos nos animais, aliás, é convocada em outra obra para

exemplificar as consequências políticas embutidas nela: na Política, depois de

postular em 1254b20 sobre o escravo “por natureza” que ele “compartilha do lógos a

ponto de apreênde-lo, mas não de tê-lo” (αἰσθάνεσθαι ἀλλὰ µὴ ἔχειν), Aristóteles os

aproxima dos animais pelo seu uso, afirmando que “o uso dos animais domesticados

5 Para uma indicação sobre a questão, cf. Depew, 1995.

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6 diverge pouco do dos escravos6”. Nesta comparação é importante notar que, ao

aproximar os escravos dos animais, Aristóteles está aproximando os animais dos

escravos. Ambos se encontrariam aí onde são deficientes de lógos, uns por não

possuí-lo, embora o apreendam, os outros por estarem totalmente fora dele. Isto é, a

relação com o lógos não apenas separa dois mundos, o da política mais alta e o

“natural” (cuja política, se há, não está no mesmo nível), mas determina, dentro do

ordenamento da pólis, dentro da casa política, o lugar de cada um. O problema não é,

portanto, simplesmente estar excluído da política, mas ser imediatamente capturado

por ela.

Desde Aristóteles, os animais viram sua história ser apropriada e

desmembrada por distintos campos de saber; foram animais-máquinas, tornaram-se

espécies, nossos antepassados e até pobres de mundo. Os discursos a seu respeito,

como se percebe pelos percusos da(s) filosofia(s) e da(s) ciência(s), para ficar com

dois apenas, foram objeto de muita divergência. Mas por entre todas essas

discordâncias, pode-se observar uma continuidade: a afirmação da excepcionalidade

humana. Isto é, filosofia e ciência construíram, no geral, narrativas que se pode chegar

a qualificar de antagônicas, mas no fundo da maioria delas, havia um espírito

concordante, qual seja, como melhor separar os homens dos outros. Esse movimento

foi belamente enunciado por Lévi-Strauss em seu famoso discurso sobre Rousseau:

Começou-se por cortar o homem da natureza e constituí-lo como um reino supremo. Supunha-se apagar desse modo seu caráter mais irrecusável, qual seja, ele é primeiro um ser vivo. E permanecendo cegos a essa propriedade comum, deixou-se o campo livre para todos os abusos. Nunca antes do termo desses últimos quatro séculos de sua história, o homem ocidental percebeu tão bem que, ao arrogar-se o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade, concedendo a uma tudo o que tirava da outra, abria um ciclo maldito. E que a mesma fronteira, constantemente empurrada, serviria para separar homens de outros homens, e reivindicar em prol de minorias cada vez mais restritas o privilégio de um humanismo corrompido de nascença por ter feito do amor-próprio seu princípio e noção (Lévi-Strauss, 2013, p. 53).

A separação de humanidade e animalidade, radicalizada ao ponto de o humano

precisar ser compreendido apenas a partir de um próprio não compartilhado com o

animal, ao mesmo tempo em que reduz o último ao estatuto de sub-vivente, cria uma

cisão, dentro da humanidade, entre aqueles que se apropriam desse próprio, que o

6 Abundam defesas de Aristóteles concernindo essa passagem: em sua maioria, não para negar que Aristóteles realmente cria na existência de “escravos por natureza”, mas para salvar estes da indignidade de comungarem seu estatuto ontológico com os animais. Para uma delas, ver Heath, 2008.

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7 realizam, o conhecem – e os outros, todas as sub-humanidades de que a história dá

testemunho. Cria-se, de uma só tacada, não-humanos e sub-humanos7. As maneiras

pelas quais os animais e os não-ocidentais foram aproximadas são muitas, desde a

querela quinhentista sobre as almas dos selvagens ao uso do termo “brutos” para

designar os dois até o encerramento de The Descent of Man, and Selection in Relation

to Sex, de 1871, no qual se lê:

The main conclusion arrived at in this work, namely that man is descended from some lowly-organised form, will, I regret to think, be highly distasteful to many persons. But there can hardly be a doubt that we are descended from barbarians. The astonishment which I felt on first seeing a party of Fuegians on a wild and broken shore will never be forgotten by me, for the reflection at once rushed into my mind—such were our ancestors. These men were absolutely naked and bedaubed with paint, their long hair was tangled, their mouths frothed with excitement, and their expression was wild, startled, and distrustful. They possessed hardly any arts, and like wild animals lived on what they could catch; they had no government, and were merciless to every one not of their own small tribe. He who has seen a savage in his native land will not feel much shame, if forced to acknowledge that the blood of some more humble creature flows in his veins. For my own part I would as soon be descended from that heroic little monkey, who braved his dreaded enemy in order to save the life of his keeper; or from that old baboon, who, descending from the mountains, carried away in triumph his young comrade from a crowd of astonished dogs—as from a savage who delights to torture his enemies, offers up bloody sacrifices, practises infanticide without remorse, treats his wives like slaves, knows no decency, and is haunted by the grossest superstitions.

Man may be excused for feeling some pride at having risen, though not through his own exertions, to the very summit of the organic scale; and the fact of his having thus risen, instead of having been aboriginally placed there, may give him hopes for a still higher destiny in the distant future. But we are not here concerned with hopes or fears, only with the truth as far as our reason allows us to discover it. I have given the evidence to the best of my ability; and we must acknowledge, as it seems to me, that man with all his noble qualities, with sympathy which feels for the most debased, with benevolence which extends not only to other men but to the humblest living creature, with his god-like intellect which has penetrated into the movements and constitution of the solar system – with all these exalted powers – Man still bears in his bodily frame the indelible stamp of his lowly origin (Darwin, 1871, vol. 2 pp. 404-405).

A filósofa e psicóloga Vinciane Despret, em Quand le loup habitera avec

l’agneau, privilegia essa passagem para mostrar como Darwin precisa selecionar para

antepassados do homem vitoriano virtuoso espécies primatas que seriam, segundo a

7 Marco Antonio Valentim me contou que, em conversa com Eduardo Viveiros de Castro, este comentou, acerca do trecho de Lévi-Strauss: “O animal é o primeiro escravo ou o escravo, o primeiro animal?” A pergunta, que tem a forma de um enigma, me parece admitir apenas uma resposta possível, que resume, então, a ideia de Lévi-Strauss (que se podia ver esboçada já por Aristóteles): ambos surgem ao mesmo tempo, pela mesma operação.

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8 literatura da época, violentas e plenas de vício. Se, como advoga o primitivismo,8 os

selvagens não são outros, mas “nós do passado”, então era necessário situá-los entre o

macaco e o homem inglês:

O primitivo deve ele também apresentar características que permitam afirmar e confirmar o laço entre o animal e o homem civilizado: ele deve ser o bom intermediário testemunhando sua humanidade por um lado; ele deve, por outro, se situar próximo do animal e se parecer com ele, sob pena de romper a continuidade” (Despret, 2002, p. 49).

Mais uma vez, para que o lugar do homem ocidental, esclarecido e civilizado,

seja garantido, produz-se uma narrativa que alinha não-humanidades e sub-

humanidades. No caso de Darwin, como ele mesmo explicita, foi preciso “aceitar”

como parente próximo uma espécie viciosa de primatas para que o caminho até o

homem civilizado passasse pelo primitivo – sobre quem, como se percebe na leitura,

ele não tinha a melhor das opiniões. Os macacos virtuosos, a partir daí, são relegados

ao anedotário popular e uma imagem de primatas altamente perigosos passa a

proliferar9. Despret continua, agora com o Totem e tabu de Freud; é a Darwin que o

psicanalista recorre para erigir sua tese sobre “como nos tornamos quem somos”

(idem, p. 42). Aí, mais uma vez, é convocada a relação entre animais e selvagens (o

testemunho vivo da pré-história, segundo Freud), desta vez sob o viés do totem, para

que o homem civilizado encontre seu lugar:

Ao elucidar as origens da humanidade com a ajuda daquilo que denuncia como crenças supersticiosas dos primitivos em sua origem animal, Freud vai então, paradoxalmente, chegar a situar o homem como descendente ele mesmo de um animal particular, primeiro o primata ciumento de seus privilégios, em seguida um pré-humano parricida e enfim o homem sujeito de memória e remorsos. Agenciando, em uma ficção da origem, os primitivos e o animal, Freud vai nos “totemizar”! (idem, pp. 43-44).

Talvez seja possível escrever uma história em que os supostos três traumas no

narcisismo humano submetidos por Copérnico (considerando, neste caso, a “virada”

operada por Kant e o surgimento do sujeito transcendental), Darwin e Freud não

8 Para uma exposição sobre a questão do primitivismo, cf. Hélène CLASTRES “Primitivismo e ciência do homem no século XVIII” (1980). 9 Uma outra história sobre os primatas só começou a ser escrita a partir do fim dos anos 1950, quando o paleoantropólogo Louis Leakley enviou as trimatas Jane Goodall, Dian Fossey e Biruté Galdikas para estudar chimpanzés, gorilas e orangotangos em seus habitats. A elas se somam Shirley Strum, com os babuínos, além de Barbara Smuts e Thelma Rowell. O trabalho feito por essas pesquisadoras (que continuam todas a atuar, à exceção de Fossey, assassinada em 1985) mudou completamente a ideia que se fazia dos grandes primatas e a maneira pela qual as pesquisas são conduzidas, a ponto de, atualmente, Frans de Waal poder argumentar em favor de uma espécie de “moralidade primata”.

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9 tenham feito senão elevar cada vez mais o homem ocidental, possibilitando que os

golpes aplicados por eles em outros pudessem, a cada vez com mais embasamento

teórico, se justificar.

Retornando à questão política, que se conceba os animais como estando fora

dela não deixou de significar, para eles, que fossem convocados a habitar uma série

de discursos cujas consequências políticas não são de se menosprezar (os

colonialismos, por exemplo). Mais que isso, o fato de estarem supostamente fora

nunca os liberou de experimentar na carne o resultado de ações forjadas no seio e na

crença do “excedente político” humano (destruição de habitats, produção industrial,

uso indiscriminado como cobaias). Em suma, estar aparentemente fora da política

jamais eximiu ninguém de ser mobilizado (e afetado) das mais diversas maneiras por

ela.

2.2. “Os fantasmas na nossa máquina”

The Ghosts in our Machine é o título de um documentário dirigido por Liz

Marshall em 2013 cuja sinopse que consta no site Internet Movie Database (IMDB)

diz “A cinematic documentary that illuminates the lives of individual animals living

within and rescued from the machine of our modern world.” Mais que o filme ou sua

sinopse, que descreve os animais vivendo dentro ou sendo resgatados da máquina,

instigou-me no título a possibilidade interpretativa na qual eles seriam pensados como

fantasmas que animam a máquina do nosso mundo, ou seja, a possibilidade de uma

agência invisível, de outra dimensão. Isto é, que ainda que acreditemos (e no tocante

aos fantasmas, via de regra trata-se de uma questão de crença) nos animais fora da

política, fora da história, que eles poderiam ter um papel fundamental na nossa

política, na nossa história. Que o nosso talvez se encontre com o deles, que existam

(entre)lugares nos quais isso se realize. Pretendo, a partir dessa ideia, construir um

caminho que visibilize alianças políticas e possíveis com os animais, um caminho

indicado por pensadores dentro e às bordas da filosofia.

Na tradição filosófica do século XX, fora Derrida10, talvez seja Deleuze o

autor que mais agenciou animais em seu pensamento. Desde o próprio conceito de

10 Com, claro, O animal que logo sou (a seguir), mas principalmente pelos seus grandiosos seminários intitulados A besta e o soberano, Derrida é hoje considerado um “filósofo animalista”. Confesso que a

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10 agenciamento até o de devir-animal, há todo um bestiário formado por carrapatos,

lobos, vespas e pássaros povoando sua obra. E nela eles não apenas têm mundo11,

como o devir-animal é uma política: uma que dá ao humano uma saída de instituições

tais como família e Estado (lembremos de Gregor Samsa, o personagem de Kafka,

como afirma Deleuze, tornando-se inseto para não virar burocrata). Trata-se do

encontro de duas heterogeneidades que cria uma linha de fuga; de uma saída do rosto

para a cabeça, do sujeito para o agenciamento coletivo de enunciação. No devir-

animal encontra-se a possibilidade mesma do processo de individuação sem sujeito,

isto é, de uma hecceidade. O encontro com o animal – que é sempre um bando do

qual se escolhe aquele que vive à borda, o anômalo (sem nomos, e não anormal, que

supõe uma normalidade), quer dizer, de tipos como Josefina, a cantora do povo dos

ratos – possibilita a relação de aliança em vez da de filiação, de uma “aliança

demoníaca”, que desterritorializa o homem (“já não há homem nem animal”12).

Na seção “Lembranças de um feiticeiro”, do platô “Devir-animal, devir-

intenso, devir-imperceptível”, essa política é explicitada. Colocando-se do lado dos

“feiticeiros”, aqueles “traidores” que se aliam com os anômalos e celebram “núpcias

contra natureza” (“O feiticeiro está numa relação de aliança com o demônio como

potência do anômalo” Deleuze e Guattari, 2005, p. 28), Deleuze e Guattari expõem a

política do devir-animal como uma política capaz de criar linhas de fuga para fora de

instituições universalizantes tais como a família, o Estado e a Igreja:

Citemos desordenadamente, não como misturas a serem feitas, mas antes como diferentes casos a serem estudados: os devires-animais na máquina de guerra, homens-feras de todas as espécies, mas justamente a máquina de guerra vem de fora, extrínseca ao Estado que trata o guerreiro como potência anômala; os devires-animais nas sociedades de crime, homens-leopardos, homens-jacarés, quando o Estado proíbe as guerras locais e tribais; os devires-animais nos grupos de

sua ausência neste projeto deve-se a uma deficiência do estudo de sua obra por mim, que pretendo sanar para a tese. Ficam, portanto, as desculpas por esta omissão. 11 Quando afirma no Abecedário, ecoando von Uexküll, que “Todo animal tem um mundo” e continua por qualificar esses mundos, muitas vezes, como no clássico exemplo do carrapato, de “pobres”, isso não quer dizer, como para Heidegger, que o ser está vedado aos animais ou que o homem falante – pois quando recusa a definição de animal racional, com lógos, o que Heidegger está de fato recusando é a nimalidade do homem, e não o lógos como seu caráter distintivo – é o “pastor do ser”. E isso porque a ontologia de Deleuze não é antropogenética: “o Ser se diz num só e mesmo sentido de tudo o que difere. Não estamos falando aqui da unidade da substância, mas da infinidade das modificações que são partes umas das outras sobre esse único e mesmo plano de vida” (Deleuze e Guattari, 2005, p. 39). 12 “Já não há sentido próprio nem figurado, mas uma distribuição de estados no leque da palavra. (...) Já não há homem nem animal, visto que cada um desterritorializa o outro, numa conjunção de fluxos, num continuum reversível de intensidades” (Deleuze e Guattari, 2003, p. 48).

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11

sublevação, quando a Igreja e o Estado encontram-se diante de movimentos camponeses com componente feiticeiro, e que irão reprimir, instaurando todo um sistema de tribunal e de direito próprio a denunciar os pactos com o demônio; os devires-animais nos grupos de ascese, o anacoreta roedor, ou besta fera, mas a máquina de ascese está em posição anômala, em linha de fuga, fora da Igreja, e contesta sua pretensão de erigir-se como instituição imperial; os devires-animais nas sociedades de iniciação sexual do tipo "deflorador sagrado", homens-lobos, homens-bodes, etc., que se valem de uma Aliança superior e exterior à ordem das famílias, enquanto que as famílias terão que conquistar contra eles o direito de ajustar suas próprias alianças, de determiná-las segundo relações de dependência complementar e de domesticar essa potência desenfreada da aliança (Deleuze e Guattari, 2005, p. 30).

A menção aos feiticeiros e aos pactos com o demônio não é em vão; os

próprios tribunais de inquisição são uma maneira de as instituições neutralizarem esse

tipo de aliança com o não-humano. Há uma “potência desenfreada da aliança” que

precisa ser “domesticada” pela família, caso essa queira persistir. O devir-animal

permite ao homem “Uma saída (...) Uma linha de fuga viva” (Deleuze e Guattari,

2003, p. 49). Mas há também, no devir-animal, advertem os autores, uma

ambiguidade que é enunciada no livro sobre Kafka como advinda do fechamento e da

forma do animal ele mesmo e, em Mil platôs, como o perigo da captura pelas

instituições ou como uma reterritorialização simbólica dos animais. Do primeiro

texto:

Não será, antes, porque os devires animais não conseguem cumprir o seu princípio e mantêm uma ambiguidade que constitui a sua própria insuficiência condenando-os ao fracasso? Os animais não estarão ainda demasiado fechados, significantes e territorializados? Não é o conjunto do devir animal que oscila entre uma saída esquizo e um impasse edipiano? (Deleuze e Guattari, idem, p. 37).

Isto é, é possível que os animais não sejam tão heterogêneos, que sua não-humanidade

talvez contenha ainda alguma humanidade. Nesse caso, corre-se o risco de não se

conseguir seguir a saída que surge no devir-animal até o fim. No capítulo sobre devir-

animal, o perigo é dito assim:

Então, evidentemente, a política dos devires-animais permanece extremamente ambígua, pois as sociedades, mesmo primitivas, não deixarão de apropriar-se desses devires para caçá-los e reduzi-los a relações de correspondência totêmica ou simbólica. Os Estados não deixarão de apropriar-se da máquina de guerra, sob forma de exércitos nacionais que limitam estritamente os devires do guerreiro. A Igreja não deixará de queimar os feiticeiros, ou então de reintegrar os anacoretas na imagem abrandada de uma série de santos que não têm mais com o animal senão uma relação estranhamente familiar, doméstica. As Famílias não deixarão de conjurar o Aliado demoníaco que as corrói, para ajustar as alianças convenientes entre si. Ver-se-á os feiticeiros servirem os chefes, colocarem-se a serviço do despotismo, fazerem uma contra-feitiçaria de exorcismo, passar para o lado da família e da dependência. Mas será também a morte do feiticeiro, como aquela do

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devir. Ver-se-á o devir parir apenas um grande cachorro doméstico, como na danação de Miller ("era melhor simular, fazer-se de animal, de cachorro, por exemplo, agarrar o osso que jogariam para mim de tempos em tempos") ou a de Fitzgerald ("tentarei ser um animal tão correto quanto possível, e se você me jogar um osso com bastante carne por cima, talvez serei até capaz de lamber sua mão"). Inverter a fórmula de Fausto: então era isso, a forma do Estudante ambulante? um reles cachorrinho! (Deleuze e Guattari, 2005, pp.31-32).

O problema da política do/no devir-animal repousaria, então, na sua

reterritorialização: “o devir parir apenas um grande cachorro doméstico”. O risco todo

é que Fausto, seguido até sua casa por um cão negro, terminasse não firmando um

pacto com o demônio que esse cachorro revelasse ser, mas afagando os pelos macios

de um dócil poodle. Para Deleuze e Guattari, o animal ainda não é não-humano o

suficiente13.

É possível, no entanto, que a política do devir-animal não esteja fadada ao

fracasso. Deleuze e Guattari, como vimos, elencam entre as maneiras pelas quais o

devir-animal malogra, que “as sociedades, mesmo primitivas, não deixarão de

apropriar-se desses devires para caçá-los e reduzi-los a relações de correspondência

totêmica ou simbólica”. O que eu gostaria de levantar, como hipótese, é que isso não

é verdade para todas as ditas sociedades primitivas, e que naquelas em que vige o que

Viveiros de Castro chama de perspectivismo cosmológico, o devir-animal pode ser

um tipo de aliança demoníaca que não se reterritorializa “como um grande cachorro

doméstico” e que, até o fim, produz “sociedades contra o Estado”. No artigo “Filiação

intensiva e aliança demoníaca”, que procura relacionar justamente o pensamento de

Deleuze e Guattari ao das sociedades amazônicas, o antropólogo afirma que:

O conceito de aliança cessa de designar uma instituição — uma estrutura — e se torna uma potência, um potencial — um devir. Da aliança como forma à aliança como força, passando ao largo da filiação como substância. Não estamos aqui no elemento místico serial do sacrifício nem no elemento mítico-estrutural do totemismo, mas no elemento mágico-real do devir (Viveiros de Castro, 2007, p. 120).

13 Eliane Martin-Haag em um artigo sobre a política do devir-animal, conclui: “Do ponto de vista que nos interessa, pode-se dizer que a obra de Kafka marca, segundo Deleuze, o momento em que o devir-animal não é mais suficiente para nos livrar dos agenciamentos do poder, a menos que se acelere a sua fuga e se devenha uma máquina que nos faça imperceptíveis, indiscerníveis e impessoais. É preciso então anunciar a morte do homem e a boa nova da imanência a fim de que cada um aspire a uma individuação impessoal que exclua toda a hierarquia política e ontológica dos graus de ser” (Martin-Haag, 2008, p. 16).

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13 Ora, isso quer dizer que há uma relação de aliança com o animal nessas sociedades

que não termina em totemismo nem em simbolismo. Se para Deleuze e Guattari, a

política do devir-animal periga fracassar porque os animais ainda são territorializados

demais, ou, poderíamos ousar, humanos demais, no perspectivismo ameríndio o

devir-animal é uma aliança contra natureza que segue aliança contra o Estado porque

os animais são, paradoxalmente, humanos. Se no ocidente, o grande divisor

humanidade/animalidade permite que o cão-mefistófeles possa ser visto como apenas

um cachorrinho, nas sociedades amazônicas a concepção de que os animais, para si

mesmos, são humanos, colocando em xeque o próprio solo imóvel do humano – se

todos, de sua perspectiva, são humanos, afirmar a própria humanidade é uma questão

de sobrevivência – permite que a aliança siga demoníaca. O animismo que caracteriza

o perspectivismo amazônico não é um totemismo, mas nele “O animal é o protótipo

extra-humano do Outro” (Viveiros de Castro, 1996, p. 119-120).

Nesse caso, parece-me que a política do devir-animal encontra uma linha de

fuga que não foi possível para o ocidente; nas sociedades amazônicas, “a aliança [é]

intensiva, anti-natural e cosmopolítica” (idem, 2007, p. 119). O animal nunca é aquele

com quem se “faz família”, o risco de sua edipianização passa ao largo; o trânsito

entre as perspectivas, possível ao xamã14, figura essencial nesse tipo de mundo, seu

“fundamento teórico e o campo de operação” (idem, 1996, p. 119), não “humaniza” o

animal como um próximo; o animal segue sendo sempre alteridade radical,

sobrenatureza. Ver do ponto de vista do animal – e voltar para contar – não significa

estabelecer uma relação totêmica ou de filiação com ele. Evitando o risco de reduzir

os animais a meros símbolos familiares, isto é, de permitir que permaneçam formados

e territorializados demais, o devir-animal, na forma do xamanismo, chega a ser

“multinaturalismo como política cósmica” (idem, p. 120).

Deleuze e Guattari colocam-se do lado dos feiticeiros em Mil platôs, mas

parece que limitam a feitiçaria possível. Nem todo feitiço precisa se reterritorializar

como símbolo ou totem, embora este seja um perigo real que, como os autores

perceberam, faz fracassar a política do devir-animal: 14 Refiro-me aqui ao xamanismo horizontal, aquele em que o xamã transita entre mundos animais e de mortos, e nos quais tanto os primeiros como os segundos são sobrenatureza, por oposição ao xamanismo vertical, em que os xamãs apenas se comunicam com os mortos tomados como ancestrais, agora com um estatuto diferenciado em relação aos animais, que, por sua vez, degeneram-se como uma sub-humanidade. (Cf. Viveiros de Castro, 2008, p. 96-105).

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(...) o xamã horizontal amazônico marca, em sua onipresença na região, a impossibilidade de coincidência perfeita entre poder político e potência cósmica, dificultando, assim, a elaboração de um sistema sacrificial de tipo clássico. A instituição do sacrifício assinala a captura do xamanismo pelo Estado. O fim da bricolagem cosmológica do xamã, o começo da engenharia teológica do sacerdote (idem, 2008, p. 101).

Considero que minha hipótese não é discordante da tese de Deleuze e Guattari

e que o perspectivismo cosmológico, como elemento novo lançado para dentro de seu

pensamento, possibilita a neutralização da ambiguidade da política do devir-animal,

criando de fato uma linha de fuga contra as instituições que procuram se apropriar

dela; nem todo feiticeiro termina servindo a um déspota. O cão que seguiu Fausto até

em casa, aqui transmutado em jaguar, não cessa, nessas sociedades, de firmar pactos

contra natureza. “A aliança intensiva amazônica é uma aliança contra o Estado”

(idem, 2007, p.123).

Uma outra objeção à política do devir-animal deleuziana encontra-se na obra de

Donna Haraway15, principalmente no livro When Species Meet. A autora não poupa

críticas a Deleuze e Guattari, dizendo que não vê neles senão “escárnio por tudo o que

é mundano e ordinário” e uma “profunda falta de curiosidade e respeito por animais

reais” (Haraway, 2008, p. 27). Haraway termina por qualificar a filosofia de D&G

como “do sublime, não da lama” pelo seu compromisso com o anômalo, o “Único”.

Para ela, o “devir-animal não é uma autre-mondialisation” (idem, p. 28).

O problema de Haraway com seus colegas franceses não é, no entanto, de

princípio; ela chega a concordar com as premissas dos autores de Mil platôs, que vê

como

a part of the writers’ sustained work against the monomaniacal, cyclopean, individuated Oedipal subject, who is riveted on daddy and lethal in culture, politics, and philosophy. Patrilineal thinking, which sees all the world as a tree of filiations ruled by genealogy and identity, wars with rhizomatic thinking, which is open to nonhierarchical

15 Talvez Haraway seja mais conhecida pelo seu Manifesto Cyborg, único de seus textos a ser publicado no Brasil. Sobre as motivações políticas que a levaram a mudar seu foco dos cyborgs para os animais, ela comentou em The Companion Species Manifesto: “I appropriated cyborgs to do feminist work in Reagan's Star Wars times of the mid-1980's. By the end of the millennium, cyborgs could no longer do the work of a proper herding dog to gather up the threads needed for critical inquiry. So I go happily to the dogs to explore the birth of the kennel to help craft tools for science studies and feminist theory in the present time, when secondary Bushes threaten to replace the old growth of more livable naturecultures in the carbon budget politics of all water-based life on earth. Having worn the scarlet letters 'Cyborgs for earthly survival!' long enough, I now brand myself with a slogan only Schutzhund women from dog sports could have come up with, when even a first nip can result in a death sentence: 'Run fast; bite hard!" (Haraway, 2003, pp. 4-5).

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becomings and contagions. So far, so good. Deleuze and Guattari sketch a quick history of European ideas from eighteenth-century natural history (relations recognized through proportionality and resemblance, series and structure), through evolutionism (relations ordered through descent and filiation), to becomings (relations patterned through “sorcery” or alliance) (idem).

Acompanhando-os até aí, ela separa-se no momento em que enxerga no trabalho

de Deleuze e Guattari uma dicotomia entre o selvagem e o doméstico, expressa no

privilégio do anômalo e também na oposição sustentada pelos autores entre o cão e o

lobo, reveladora de que eles “sabiam como chutar o psicanalista onde dói” mas não

teriam “a coragem de olhar um tal cachorro nos olhos” (idem, p. 29).

Não pretendo armar uma arena para decidir quem tem razão, mas tomar o

discurso de Haraway como um outro tipo de proposta política na qual os animais

podem figurar como agentes. Para usar um termo dela, em vez de tomar partido cedo

demais, penso que é mais importante stay with the trouble.

E, de fato, por entre todas as diferenças, e sem desconsiderá-las, há também

linhas de continuidade, talvez de transformação, entre duas as obras, como os

conceitos de devir e o de devir-com, as alianças e infecções, além do personagem

conceitual do idiota e o lema staying with the trouble. Se há uma diferença

irreconciliável, no entanto, ela se situa no amor de Haraway aos cães, que populam

sua obra e são representados principalmente pela figura de Cayenne Pepper, a cadela

com quem a pensadora pratica esportes de agilidade, e o desprezo de Deleuze16 pelos

“reles cachorrinhos”. Que em Mil platôs se leia a frase “todos aquele que amam os

gatos, os cachorros, são idiotas17” (Deleuze e Guattari, 2005, p. 21), a faz trazer à

tona justamente esse personagem. É claro que aí esse idiota não pode ser o mesmo de

O que é a filosofia?, o príncipe Míchkin de Dostoiévski, que “quer fazer do absurdo a

mais alta potência do pensamento, isto é, criar”, que “mais próximo de Jó que de

Sócrates, quer que se lhe preste contas de ‘cada vítima da história’”, que “não aceitará

jamais as verdades da História”, que quer que lhe “devolvam o perdido, o

16 Ainda que se tome esse desprezo como figurado, pois o cachorro, para Deleuze, seria o lobo capturado pelo esquema edipiano, o animal com quem se faz família, aquele por quem Freud neutralizaria o devir-animal do homem dos lobos, por exemplo, isso significaria, confirmando a suspeita de Haraway, que para este filósofo não está em questão o cão como animal real. 17 Na verdade, a palavra usada pelos autores é outra: “tous ceux qui aiment les chats, les chiens, sont des cons”. Na tradução que Haraway cita, a palavra escolhida para traduzir cons foi fools. Mesmo com a diferença de vocábulo, ela não deixa de pensar a semelhança entre seus significados. Que Suely Rolnik tenha usado justamente o termo idiotas não é uma mera coincidência.

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16 incompreensível, o absurdo” (Deleuze e Guattari, 2009, pp. 84-85), em suma, o idiota

invocado por Isabelle Stengers18 em sua proposta cosmopolítica. E é aí que Haraway

pretende se localizar, é essa idiotia que ela, “espécie companheira” de Cayenne

Pepper, reinvindica. Equivocando Deleuze, Haraway aceita para si, como idiota, a

tarefa da cosmopolítica tal como Stengers a enuncia: “It is a matter of imbuing

political voices with the feeling that they do not master the situation they discuss, that

the political arena is peopled with shadows of that which does not have a political

voice, cannot have or does not want to have one” (Stengers, 2005, p. 996).

Para tanto, Haraway reúne algumas estratégias: ela recusa o discurso iluminista

e categorizador, procura falar sempre diante de animais reais e em um entre-lugar que

curto-circuita ciência (biologia) e filosofia. Tomemos aquele que seja o seu conceito-

chave (senão pelo menos uma via de acesso) a seu pensamento: o devir-com. Não se

trata de tornar-se outro, mas com outro, em uma via de mão dupla de “alteridades

constituintes”. “To be one is always to become with many” (Haraway, 2008, p. 4) e

“the partners do not precede their relating” (idem, p. 17), o que também não significa

que a relação preceda os parceiros nela envolvidos: “Ordinary identities emerge and

are rightly cherished, but they remain always a relational web opening to non-

Euclidean pasts, presents, and futures” (idem, p. 32). O ordinário que ela reinvindica,

essa lama de que ela reclama fazer parte, é uma “multipartner mud dance issuing from

and in entangled species” (idem). Em suma, “it’s turtles all the way down” (idem).19

É uma questão de enlamear a filosofia (e o pensamento), fincar-lhe os pés no

chão e permanecer aí para ver o que acontece: “The Great Divides of animal/human,

18 Na conferência de 2013 “Cosmopolitical Critters: Companion Species, SF and Staying With the Trouble”, Haraway afirma: “I am particularly informed by Isabelle Stengers notion of cosmopolitcs, which is specifically not indebted to Immanuel Kant. She is specifically defining cosmopolitics as the remedy for tolerance, as opposed to its extension. She is proposing a risk-taking cosmopolitics of articulations of that which is not yet but might yet be. A cosmopolitcs based on living and dying for that which one is for with others in risk rather than extending to others an already established notion of the universal and common good. It is not an act of hospitality, it’s much more dangerous than that. So Isabelle Stengers cosmopolitics is about decisions must take place somehow in the presence of those who will bear their consequences, she goes on to say even when they don’t want to participate, refuse to participate, no thank you, or are sctructurally disabled from participation. A cosmopolitics cannot succeed on a sentimental ideology of participation and communication, it’s much riskier than that. It takes up the risks of living and dying different” (Haraway, 2013, 12’52”). 19 Vinciane Despret e Jocelyne Porcher, em seu livro Être bête, encontraram o devir-com no discurso dos criadores que descrevem a relação com seus animais: “Trata-se mais precisamente de viver como seus animais vivem, de transformar o tempo em duração [...] Não é questão de identidades ‘idênticas’, mas de colocações em relação, de fronteiras e de sua passagem [...] Pode-se partilhar o mesmo mundo, não um mundo idêntico” (Despret e Porcher, 2007, p. 85).

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17 nature/culture, organic/technical, and wild/domestic flatten into mundane differences

– the kinds that have consequences and demand respect and response – rather than

rising to sublime and final ends” (Haraway, 2008, p. 15). Ou, como bem glosou

Vinciane Despret, “Il s’agit à présent de construire ce ‘devenir avec’ d’autres êtres,

non plus sur le mode épuisé des analogies – ce mode même qui a permis aux

philosophes de tenir le monde à distance –, mais bien sur celui du respect et de la

réponse” (Despret, 2009, p. 750). Ser responsável para Haraway deve ser entendido

pela decomposição da palavra em inglês, quer dizer, ser response-able.

Response-able frente a quem? A questão da resposta está ligada àquela do

nivelamento dos Grandes Divisores: não é porque os animais foram excluídos da pólis

que não são entretidas relações com eles dos mais diferentes tipos. E, antes de essa

relação ser simplesmente ética, ela é de ordem política: tomar um abismo entre nós e

eles supõe que só nós agimos, enquanto eles reagem. Achatar esse desnível, em

práticas e experiências do mundo, significa compreender que eles respondem. E está

fundada nessa exclusão que retira a sua agência, assevera Haraway, em uma leitura de

Derrida, a crença de que a maioria dos vivente é “assassinável” (cf. idem, pp. 77-82) e

que leva ao “exterminismo” a que nos acostumamos hoje20. Não se deduza daí que a

autora aposta em um discurso de direitos animais, que, segundo ela, não apenas

separa ainda mais humanos e animais como ainda condenaria as espécies domésticas,

por exemplo, ao desaparecimento21. A posição de Haraway não é ingênua ou

higienista:

The problem is actually to understand that human beings do not get a pass on the necessity of killing significant others, who are themselves responding, not just

20 Cf. por exemplo, Barnosky et alii (2011), “Has the Earth’s sixth mass extinction already arrived?”, em que os autores comparam as extinções nos últimos 500 anos com as últimas extinções em massa, verificando que a velocidade atual é entre 3, nas mais otimistas previsões, a 80 vezes maior. Segundo eles, se as espécies de mamíferos atualmente em perigo de extinção desaparecerem em um século, então, em 334 anos 75% dos mamíferos terão desaparecido. 21 Para uma crítica “animalista” do movimento de liberação animal, cf. Porcher (2007), “Ne libérez pas les animaux!”, em que ela conclui: “Il faut le dire, il y a chez certains de nos contemporains une terrible présomption à prétendre vivre sans les animaux domestiques. La revendication de ‘libération’ ne fait que renforcer, en prétendant la réduire, la distance entre les humains et les animaux. Nous si forts humains, mâles, blancs, occidentaux, si généreux qu’après avoir libéré nos propres autrui malmenés, les Noirs et les femmes, portons notre magnanime attention à nos autrui à quatre pattes et prétendons leur accorder notre grâce et une liberté qu’ils n’ont pas demandée, comme si nous-mêmes, humains, savions définitivement ce qu’il en est de la liberté et de la domestication de l’homme par lui-même et par les animaux. Car les animaux nous domestiquent. Là est le mystère. Car les animaux nous éduquent. Là est leur grande faute. Parce que nous ne voulons pas être domestiqués ni éduqués par eux. Nous ne voulons rien leur devoir. Notre grandeur se suffit à elle-même. Hélas!”

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reacting. In the idiom of labor, animals are working subjects, not just worked objects. Try as we might to distance ourselves, there is no way of living that is not also a way of someone, not just something, else dying differentially (idem, p. 80).

Trata-se, portanto, não de não matar, mas de “não tornar matáveis” (idem, p. 81). De

sair da narrativa da excepcionalidade humana, de arrancar essa questão da ética e

introduzí-la na (cosmo)política, adotando uma postura response-able frente à morte

dos outros (e à nossa). Não é uma questão de perdão nem de razão suficiente, mas do

fato de que não podemos “nurture living until we get better at facing killing. But also

get better at dying instead of killing. Sometimes a ‘cure’ for whatever kills us is just

not enough reason to keep the killing machines going at the scale to which we (who?)

have become accustomed” (idem, p. 82).

A aventura de Haraway, que segue ativa e com uma obra vibrante, a levou a,

como se tem visto em suas últimas conferências22, radicalizar a assertiva que nomeia

um dos capítulos de When Species Meet, “We have never been humans”; apoiando-se

no trabalho dos biólogos Gilbert, Sapp e Tauber, ouvimo-la citá-los, afirmando que

“nunca fomos indivíduos” e “somos todos líquens” (Gilbert, Sapp e Tauber, 201223).

É a noção de espécie biológica, da qual Deleuze procurava se separar e que não faz

sentido nas cosmologias ameríndias, que ela pretende subverter sem precisar se

afastar desse campo de saber. Principalmente a partir da obra de Lynn Margulies e de

seu conceito de simbiogênese, Haraway pretende oferecer uma alternativa ao discurso

22 Refiro-me a uma série de comunicações, todas disponíveis na internet, como “Cosmopolitical Critters: Companion Species, SF, and Staying with the Trouble”, de 26/10/2012 “SF: String Figures, Multispecies Muddles, Staying with the Trouble”, de 24/03/2014 ou “Anthropocene, Capitalocene, Chthulucene: Staying with the Trouble” de 09/05/2014 (em (https://www.youtube.com/watch?v=fMIm0SeRRY4, https://www.youtube.com/watch?v=Ii3vuI-0614 e http://vimeo.com/97663518, respectivamente). 23 Os autores defendem, neste artigo, que “During the past decade, nucleic acid analysis, especially genomic sequencing and high-throughput RNA techniques, [found] significant interactions of animals and plants with symbiotic microorganisms that disrupt the boundaries that heretofore had characterized the biological individual. Animals cannot be considered individuals by anatomical or physiological criteria because a diversity of symbionts are both present and functional in completing metabolic pathways and serving other physiological functions. Similarly, these new studies have shown that animal development is incomplete without symbionts. Symbionts also constitute a second mode of genetic inheritance, providing selectable genetic variationfor natural selection. The immune system also develops, in part, in dialogue with symbionts and hereby functions is a mechanism for integrating microbes into the animal-cell community. Recognizing the holobiont”—the multicellular eukaryote plus its colonies of persistent symbionts—as a critically important unit of anatomy, development, physiology, immunology, and evolution opens up new investigative avenues and conceptually challenges the ways in which the biological subdisciplines have heretofore characterized living entities” (Gilbert et alii, 2012, p. 325. Grifo nosso).

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19 totalizante e individualizante24 da nova síntese e da família do homem. A vida

proliferou e evoluiu por infecção e indigestão, não há indivíduos e as alianças são o

nome do jogo a um ponto em que não faz mais sentido uma narrativa verticalizada e

fechada sobre os viventes25. Uma barreira de corais, as bactérias que populam nossa

flora intestinal ou os cães podem ser nossos parentes – digo podem porque este não é

um pensamento totalizante; como Haraway afirma, “nem tudo está ligado a tudo, mas

tudo está ligado a algo”. É uma nova ideia de parentesco, com pés na biologia, que ela

parece estar alinhavando, uma que coloca a humanidade de tal maneira no mundo

(“We are in and of the world, not responsable to it from the outside”, Haraway, 2013,

73’25”) que talvez o termo política não lhe seja suficiente:

In a pretty serious way we are all lichens. We are all the result of multiple infections that has redone our kin in such a way that we are response-able to each other as relatives and kin that might tell us something about multispecies cosmopolitics and ways of thinking it (idem, 55’19”).

Colocando a biologia em devir, Haraway abre a possibilidade de mundos

cosmopolíticos infestado de agentes. Se, como ela diz, parafraseando Marilyn

Strathern, “it matters what worlds world worlds” (Haraway, 2013, 17’) e se a crise

ecológica pode ser tomada como algo que “nos faz olhar para os nossos parentes

lateralmente” (idem, 54’), essa nova noção de parentesco pode abrir as portas para a

criação de mundos em que animais humanos e não-humanos coexistiriam de um

modo intensamente cosmopolítico.

3. Objetivos

Considerando que é, primordialmente, a assunção da excepcionalidade

humana que retira os animais não humanos da política e que, pelo menos no que diz

respeito à modernidade, a divisão clara e distinta entre as duas casas não é senão um

erro de percepção daquilo que se faz, minha intenção é, através de discursos que julgo

exemplares, experimentar como os animais participam ou podem participar da

política, que por esta operação, torna-se cosmopolítica. Pretendo finalizar a tese com

24 E, no limite, um discurso transcendente, que está sempre à procura do mínimo elemento inteiro ordenador, como é o caso do gene egoísta. 25 “Relations in multispecies cosmopolitics work by indigestion and infection rather than reproduction, thats the most important thing to remember. That making worlds and coming to be accountable to each other and finding out who is kin to whom looks more like indigestion and infection than it does like reproduction” (Haraway, 2013, 38’50”).

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20 um epílogo sobre a situação dos animais no Antropoceno, procurando pensar as

consequências da extinção e as possíveis alianças e conflitos em torno do que Latour

chama de Guerra dos Mundos26.

A estrutura da tese, portanto, está prevista da seguinte maneira:

Capítulo 1: A situação política dos animais em alguns discursos tradicionais da

filosofia e da ciência que postulam, cada um à sua maneira, a excepcionalidade

humana e o Grande Divisor humanidade/animalidade, como Aristóteles, Descartes e

Darwin. A relação, nestes discursos, entre as não-humanidades e as sub-humanidades.

Latour e a Constituição Moderna. A divisão em duas casas. A possibilidade de

agências não-humanas.

Capítulo 2: O devir-animal como zona de indiscernibilidade e comunicação

transversal entre homem e animal. A questão da metáfora e da metamorfose. As

novelas animalistas de Kafka. A novela “Relatório à academia”. A interpretação de

Elizabeth Costello em A vida dos animais, de Coetzee. “Think my way into the

existence of” (Coetzee, 1999, p. 35). A guerra entre homens e animais. Os ratos de

Costello (“Rats haven’t surrendered. They fight back. They form themselves into

underground units in our sewers. They aren’t winning, but they aren’t losing either”,

idem, p. 59), os agonizantes de Lord Chandos (frente a uma família de ratos que

agoniza, ele comenta sobre o que sentiu: “Era bem mais e bem menos do que

compaixão. Era uma participação monstruosa” Hoffmannsthal, 2010, s/p), Ben e o

bando de Willard no filme homônimo. A relação entre os animais e a literatura:

“escrever como um rato”. Mil platôs, “Devir-intenso, devir-animal, devir

imperceptível”. Da possibilidade de uma política do devir-animal e seu fracasso.

Capítulo 3: O perspectivismo ameríndio e a cosmopolítica xamânica (Viveiros de

Castro). Diferenciar-se de si, a diferOnça (Viveiros de Castro). A impossibilidade do

conceito de espécie. Davi Kopenawa e os ancestrais animais (Kopenawa e Albert). Os

Wauja e sua relação com os Apapaatai (Barcelos Neto). O conceito de Apapalutapa-

26 Essa guerra é enunciada e anunciada por Latour em suas Gifford Lectures como aquela em que nos encontramos hoje. A catástrote ecológica causada pela civilização baseada na queima de combustíveis fósseis ameaça mundos humanos e não humanos e pode mudar o estado em que o sistema Terra pensado como Gaia se encontra. Nesta guerra, segundo Latour, podemos encontrar dois lados: o dos Terranos e o dos Humanos (cf. Latour, 2013). Para uma interpretação dessa guerra que leva em conta o lugar dos animais, cf. Fausto, 2013.

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21 mina entre os Yawalapiti (Viveiros de Castro). Relação entre guerra e caça para os

Yudjá (Stolze Lima). Cachorros, os “animais sem mito”, entre os Karitiana (Velden).

“Cosmopolítica indígena nos Andes” (de la Cadena). A cosmopolítica como “mais

que um mundo, menos que dois”.

Capítulo 4: A cosmopolítica como idiotia (Stengers). Devir-com (Haraway e

Despret). Antropozoogênese (Despret). Companion Species (Haraway). Os cientistas

e os animais (Haraway e Despret). Antropomorfismo, antropocentrismo e

antropoteriomorfismo (Danowski e Viveiros de Castro, Despret, Haraway). A

primatologia simétrica de Smuts e Strum. Os criadores e seus animais (Porcher). Os

problemas com a liberação animal e os direitos animais (Hearne, Haraway, Porcher).

Simbiogênese, Simpoiese: uma cosmopolítica baseada no parentesco lateral

(Haraway).

Epílogo: Os animais no Antropoceno. A sexta grande extinção. Extinção e pobreza de

mundo (Despret). Os animais e a guerra dos mundos (Latour).

4. Referências Bibliográficas

AGAMBEN, G (2002). Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Tradução de. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG.

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