Projeto Mestrado Letras 2013

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O Realismo Mágico de Gabriel García Márquez: da Literatura para o Cinema Projeto de pesquisa a ser desenvolvido com vistas à dissertação de Mestrado Candidata: Maria Inês Freitas de Amorim Linha de Pesquisa: Literatura e cultura contemporânea Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Letras Mestrado Acadêmico em Teoria da Literatura e Literatura Comparada

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O Realismo Mágico de Gabriel García Márquez:

da Literatura para o Cinema

Projeto de pesquisa a ser desenvolvido com vistas à dissertação de Mestrado

Candidata: Maria Inês Freitas de AmorimLinha de Pesquisa: Literatura e cultura contemporânea

Rio de Janeiro

Universidade do Estado do Rio de JaneiroInstituto de LetrasPrograma de Pós-Graduação Stricto Senso em LetrasMestrado Acadêmico em Teoria da Literatura e Literatura Comparada

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Setembro/2013Apresentação da questão a ser estudada

O fantástico está presente na literatura desde tempos ancestrais. Obras imortais como

A Odisseia e a Ilíada, de Homero e As mil e uma noites são textos que contém profundo

diálogo com o fantástico.

Por Literatura Fantástica se entende aquela criada pelo imaginário, numa realidade

diferente da convencional. Para Todorov:

Chegamos assim ao coração do fantástico. Em um mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Que percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com a diferença de que rara vez o encontra. (TODOROV, 1980, p. 15)

Bebendo nas fontes da Literatura Fantástica, o realismo mágico é uma corrente

literária, surgida no começo do século XX, na América Latina. Uma nomenclatura mais aceita

teoricamente para esta corrente é real maravilhoso, acunhada por Alejo Carpentier. Tal

tendência tem como particularidade fundir o universo mágico à realidade, apresentando

elementos maravilhosos, insólitos ou estranhos como se fossem reais e cotidianos. Aspectos

fantásticos também aparecem de forma natural, intuitiva e sem explicações.

A formação cultural da América Latina influencia de forma profunda a releitura que os

artistas ibero-americanos fazem dos ideais vanguardistas. A realidade histórica das Américas,

principalmente o poliperspectivismo construído pela formação trilateral do “encontro” entre

europeus, africanos e ameríndios contribuiu profundamente para o jeito próprio dos artistas

latino-americanos trabalharem suas produções.

Na América Latina, os tropos vanguardistas do maravilhoso e do fantástico, do canibalismo e do carnaval, tomaram uma forma extraordinariamente concreta e literal(...) O que era remoto e metafórico para os modernistas europeus – magia, carnaval, antropofagia – tornou-se mais familiar e quase literal no âmbito do ‘surrealismo quotidiano’ da vida latino-americana. As culturas heterogêneas que formaram a América Latina promoveram uma nova realidade histórica que subverteu o bom senso convencional do racionalismo ocidental. (STAM, 2008, p.399)

A produção artística latino-americana encontrará no fantástico, na magia e no

sobrenatural os elementos a compor a base de sua produção. Extrapolando a questão estética,

tais elementos são inseridos por questões culturais, que convivem de maneira muito íntima no

cotidiano.

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Um dos maiores representantes do realismo mágico é o escritor colombiano Gabriel

Garcia Márquez. Em suas obras, a fantasia ganha contornos de realidade, e suas personagens

vivenciam experiências fantásticas, como se estas fossem corriqueiras. A leitura de seus

romances conduz o leitor a uma experiência com o maravilhoso. O onírico se concretiza em

real e o imaginário se consagra como protagonista para conduzir o leitor nas jornadas

propostas por Gabriel Garcia Márquez.

Buscando inspiração em outras manifestações artísticas, o Cinema recorrentemente

procura na Literatura boas histórias para contar. Segundo Rizzo:

A imensa dívida do cinema com a literatura nasceu com o surgimento dos primeiros filmes destinados a contar histórias mais longas e complexas em forma de longa-metragem, no início do século 20. O modelo narrativo clássico – baseado nos princípios de onisciência, onipresença e invisibilidade da instância narrativa, e ainda hoje dominante na produção audiovisual – foi articulada em boa medida com base em recursos literários. (RIZZO, p.08, 2011)

Desta forma, toda aquela narrativa desenvolvida pelo leitor em seu imaginário ganha

imagens e som pela linguagem cinematográfica. Esta transposição de linguagem gera

desconforto e polêmicas, pois o apresentado na tela quase nunca corresponde ao que o

imaginário desenhou. Nas narrativas fantásticas, nas quais a fantasia precisa do imaginário

para ganhar forma, esta relação se apresenta de forma ainda mais delicada.

Algumas obras de Garcia Márquez ganharam versões cinematográficas. As mais

recentes são Amor nos Tempos do Cólera, de Mike Newell, uma co-produção entre EUA e

Colômbia, de 2007 e Memórias de Minhas Putas Tristes, uma produção mexicana, dirigida

por Henning Carlsen e lançada em 2011.

Pensando nisso, o presente trabalho se propõe a analisar a adaptação das obras Amor

nos Tempos do Cólera e Memória de Minhas Putas Tristes para o cinema, pautando a

pesquisa em como o imaginário se expressa nas duas produções. A pesquisa levará em

consideração as escolhas semelhantes e as maneiras diferentes que cada cineasta optou para

transformar em imagens as palavras escritas por Gabriel Garcia Márquez.

Com base nestas considerações, o projeto pretende responder ao seguinte

questionamento: como o mágico presente no texto literário de O Amor nos Tempos do Cólera

e Memória de Minhas Putas Tristes, de Gabriel Garcia Márquez, é transposto para a

linguagem cinematográfica?

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Revisão Bibliográfica

O cinema, ao se apropriar de histórias consagradas pela literatura, recria todo o

significado da narrativa, uma vez que cinema e literatura compõem linguagens distintas. “O

texto literário possui relação com o leitor de forma isolada e tem como matéria-prima a

linguagem e não a imagem, ao contrário do filme que é feito para projeções em salas escuras,

onde atinge um público determinado” (CURADO, 2007). Na literatura, o responsável por

transformar palavras em imagens é o leitor, já no cinema, isto já é entregue pronto ao

espectador.

Mesmo baseado em uma obra literária, “o filme é uma obra autônoma, independente

da leitura do livro” (XAVIER, 2005). Uma adaptação cinematográfica não deve seguir a obra

literária página a página, mas entender sua atmosfera, dialogar com o seu contexto e

identificar os valores expressos. Para Bazin, uma adaptação literal produz um filme pobre,

enquanto a tradução livre demais é condenável, pois a essência do original é perdida. A

considerada “boa adaptação” seria aquela capaz de “restituir o essencial do texto e do

espírito” (BAZIN, 1991, p.96).

Curado, retificando Plaza, afirma que: “(...) o processo de adaptação do texto literário

para cinema não se esgota na transposição de um meio para o outro, porque esse processo é

dinâmico e permite uma série infinita de referências, sendo duas delas traduções ou

(re)interpretações de significados” (CURADO, 2007).

O cinema, por ser a mais jovem de todas as artes, é a que mais aproveita a contribuição

e as características das demais artes, como a música, a pintura, a fotografia, o teatro e a

literatura, para a formação de sua linguagem própria. Para Bazin, o hibridismo entre as artes

garante que “há cruzamentos fecundos que adicionam as qualidades de seus genitores”

(BAZIN, 1991, p.88). As adaptações cinematográficas conferem uma nova roupagem à obra,

como se ela encontrasse ecos.

A partir da leitura de um livro, o leitor forma imagens oriundas da sua imaginação. E,

a partir dessas imagens elaboradas pelo imaginário, cria uma relação afetiva com a narrativa.

Por isso, a adaptação da literatura para o cinema gera muito desconforto e polêmicas.

O imaginário tem um significado distinto para cada um. No Ocidente, são os filósofos

pré-socráticos que impõem pouco a pouco o dualismo entre o real e o imaginário. Para Platão:

“sabe que muitas verdades escapam à filtragem lógica do método, pois limitam a Razão à

antinomia e revelam-se, para assim dizer, por uma intuição visionária da alma que a

antiguidade grega conhecia muito bem: o mito” (DURAND, 2001). Ou seja, é no imaginário

que são construídas as explicações para as dúvidas que a razão não conseguia responder.

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Com o cristianismo, a dualidade entre real e imaginário se consolida, uma vez que as

religiões cristãs se pautam na lógica binária. “Após Descartes, os filósofos vão julgar

severamente a imaginação enquanto faculdade, modo de exercício do pensamento, a imagem

que daí resulta é geralmente o imaginário; tanto mais enganador quanto mais pode se dar por

real e verdadeiro” (BARBIER, 1994, p.17).

Enquanto para Sartre há um abismo que separa o imaginário do real, para Lacan, o

imaginário é destinado à enganação, ao desconhecimento e à ilusão. Para os românticos, “o

imaginário torna-se o único real, e a imaginação, o caminho da realização” (Ibid). Já para os

surrealistas: “trata-se antes de tudo de ampliar nossa percepção segundo uma expressão

humana sobre todas as formas” (Ibid.ibid).

Para Castoriadis:

nós falamos de imaginário quando queremos falar de algo inventado, ou quer se trate de uma invenção 'absoluta' (uma história onde todas as peças são imaginadas) ou de um deslizamento, ou de um deslocamento de sentido, onde símbolos já disponíveis são investidos de outras significações distintas de suas significações 'normais' ou canônicas. Nos dois casos, fica claro que o imaginário se separa do real, que ele pretende se colocar em seu lugar (uma mentira) ou que ele não o pretende (um romance) (CASTORIADIS, 1965, p.65)

Na Literatura Fantástica, a imaginação é o elemento chave para a construção das

narrativas. Para Todorov: “Por sua própria definição, a literatura passa por cima da distinção

entre o real e o imaginário, entre o que é e o que não é. Pode inclusive dizer-se que, por uma

parte, graças à literatura e à arte, esta distinção se torna impossível de sustentar” (TODOROV,

1980, p87) .

Para a narrativa fantástica, o imaginário é oriundo do mundo real:

Se alguns acontecimentos do universo de um livro se dão explicitamente como imaginários, negam, com isso, a natureza imaginária do resto do livro. Se tal ou qual aparição não é mais que o produto de uma imaginação superexcitada, é porque tudo o que a rodeia pertence ao real, longe de ser um elogio do imaginário, a literatura fantástica apresenta a maior parte do texto como pertencente ao real, ou, com maior exatidão, como provocada por ele, tal como um nome dado às coisas lhes preexistam. A literatura fantástica nos deixa entre as mãos duas noções: a da realidade e a da literatura, tão insatisfatória a uma como a outra” (Ibid).

Para Bessière, o fantástico não seria enquadrado enquanto gênero literário, mas um

modo narrativo que proporciona ao leitor diversas possibilidades interpretativas, conduzindo à

escolha de múltiplas soluções possíveis. Segundo ela,

O relato fantástico provoca a incerteza, ao exame intelectual, porque utiliza dados contraditórios reunidos segundo uma coerência e uma complementaridade próprias. Ele não define uma qualidade atual de objetos ou de seres existentes, como tampouco constitui uma

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categoria ou um gênero literário, mas supõe uma lógica narrativa que é tanto formal quanto temática e que, surpreendente ou arbitrária para o leitor, reflete, sob o aparente jogo da invenção pura, as metamorfoses culturais da razão e do imaginário coletivo. (BESSIÈRE, 2001, p84).1

A narrativa fantástica se propõe a fabricar um novo mundo a partir de palavras e ideias

do mundo conhecido. O fantástico se forma a partir de uma espécie de “parasitismo” do

mundo real: cria um universo todo novo, fruto da imaginação do autor a partir de elementos

do mundo conhecido.

Não existem fronteiras ou limites para se estabelecer esse universo imaginativo.

Segundo Sartre,

Não se pode delimitar o fantástico: ou não existe, ou estende-se a todo o universo; é um mundo completo em que as coisas manifestam um pensamento cativo e atormentado, simultaneamente caprichoso e encadeado, que rói secretamente as malhas do mecanismo, sem nunca conseguir exprimir-se (SARTRE, 2005, p.110).2

A construção desse mundo imaginário se pauta na ideia de verossimilhança, uma vez

que se torna possível crer na narrativa, pois o leitor tem consciência que há um universo

específico a ser apresentado. Por outro lado, a literatura fantástica busca romper com o

sentido clássico da mimese. O fantástico relativiza a ideia de ordem estável da realidade,

resultados das experiências extra-textuais dos leitores para apresentar um mundo sem um

referencial conhecido e estável, mas a partir da construção de novos referenciais.

A construção linguística de uma nova realidade, a partir de elementos narrativos

conhecidos torna possível a identificação do leitor com as situações apresentadas. Ao se

identificar com a narrativa, o leitor é convidado a questionar a realidade na qual ele está

inserido.

O verossímil do possível e do inacreditável não pede identificação nem adesão posto que nada ocorra segundo necessidade do mundo, mas segundo a necessidade da arte. Porém, estimula uma dedicação intelectual, pois a galeria de espelhos deformantes que são as estratégias do fantástico obriga a pensar nas circunstâncias que tecem a malha do que consideramos verdadeiro, mas também as malhas que sustentam a narração, começando pelas da linguagem. Enigma do real e de como falar dele (ARÁN,1999, p.58)3

1 Tradução nossa. No original: “El relato fantástico provoca la incertidumbre, en el examen intelectual, porque utiliza datos contradictorios reunidos según una coherencia y una complementariedad propias. No define una cualidad actual de objetos o seres existentes, como tampoco constituye una categoría o un género literario, pero supone una lógica narrativa a la vez formal y temática que, sorprendente o arbitraria para el lector, refleja, bajo el aparente juego de la invención pura, las metamorfosis culturales de la razón y del imaginario colectivo” 2

3 Tradução nossa. No original: “El verosímil de lo posible y de lo increíble no pide identificación ni adhesión puesto que nada ocurre según necesidad del mundo sino según necesidad del arte. Pero estimula una dedicación intelectiva pues la galería de espejo deformantes que son las estrategias del fantástico, obligan a pensar en las circunstancias que tejen la malla de lo que consideramos verdadero, pero también en las mallas que sostienen la narración, empezando por las del lenguaje. Enigma de lo real y cómo hablar de ello”

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A construção de uma nova realidade se faz aceitável uma vez que ela se pauta no

desenvolvimento de um “mundo possível”. Dentro do que é apresentado na narrativa, tudo se

faz acreditável, uma vez que o que é tido como referência é o mundo conhecido. Se mesmo o

chamado “mundo real” é fruto de uma construção sociocultural, o mundo possível, por ser

“parasitário” deste mundo conhecido, se torna uma reconstrução dele. Segundo Eco: “Dentro

do marco de um enfoque construtivista dos mundos possíveis, também o chamado mundo

‘real’ de referência deve considerar-se como uma construção cultural” (ECO, 1993, p.186) 4·.

Ao refletir valores oriundos de uma construção cultural, a narrativa fantástica explora

uma compreensão do mundo conhecido, uma vez que, segundo Bessière,

O relato fantástico utiliza os marcos sociológicos e as formas de compreensão que definem os domínios do natural e do sobrenatural, do trivial e do estranho, não para inferir com alguma certeza metafísica, mas para organizar o confronto entre os elementos de uma civilização relativos aos fenômenos que escapam à economia do real e do ‘surreal’, cuja concepção varia conforme as épocas (BESSIÈRE, 2001, p.85) .5

As obras com a temática fantástica expressam a partir de sua estética própria debates

intelectuais de um determinado período, relativos à relação do homem com o seu lado

sensível e com a sua vida em uma realidade sociocultural. O fantástico busca transgredir

limites, inserindo em suas narrativas jogos de palavras, que revelam vazios e silêncios. Tais

silêncios revelam a voz do “outro” silenciado, ou seja, os entes marginalizados da realidade

social.

O fantástico celebra a suspensão temporária das leis rígidas que regem o mundo

conhecido, e assim, abre caminho para dar voz aos fatos sociais que não são comumente

trabalhados de maneira explícita, que encontram obstáculos pelo sistema social para serem

explorados, como as minorias marginalizadas e os tabus impostos pelo sistema de crenças

vigente.

A imaginação do autor não possuiu limites, e a função imaginativa reside na

consciência. E é por esta consciência que “o homem se torna indivíduo no mundo, aberto ao

mundo, o que pode conhecer e descobrir sua situação existencial” (ARÁN, 1999, p.103)6.

4 Tradução nossa. No original: “Dentro del marco de un enfoque constructivista de los mundos posibles, también el llamado mundo "real" de referencia debe considerarse como una construcción cultural.” 5 Tradução nossa. No original: “El relato fantástico utiliza los marcos sociológicos y las formas del entendimiento que definen los dominios de lo natural y lo sobrenatural, de lo trivial y lo extraño, no para inferir alguna certeza metafísica sino para organizar la confrontación de los elementos de una civilización relativos a los fenómenos que escapan a la economía de lo real y de lo ‘surreal’, cuya concepción varía según las épocas” 6 Tradução nossa. No original: “Es por la conciencia que el hombre se vuelve persona en el mundo, abierto al mundo, lo puede conocer y descubrir se propia situación existencial”

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Inserido no contexto do Realismo Mágico, tendência do fantástico enquanto modo

narrativo, as obras de Gabriel Garcia Márquez trazem uma narrativa pautada no universo do

imaginário, transportada para o cotidiano. Trevisan classifica a obra do escritor como:

“Encantamento e espanto diante das coisas mais cotidianas e naturalidade diante das

maravilhas: por estas veredas se constrói o mosaico narrativo de Garcia Márquez”

(TREVISAN, 2011, p.35).

A partir dos anos 50 e 60, houve o que se convencionou chamar de “boom da literatura

latino-americana”, fenômeno do mercado literário que revelou a ficção original e provocadora

produzida no continente. Diversos escritores como Gabriel García Márquez, Juan Rulfo,

Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, dentre outros,

apresentaram obras ficcionais com novos elementos narrativos e uma temática original.

A principal inovação destes escritores foi revelar uma nova América, que extrapolava

os assuntos já abordados à exaustão, como o histórico de pobreza e autoritarismo. Tais autores

buscavam apresentar um elemento libertador, como se ao se voltar aos mitos de origem, à

magia e ao maravilhoso, se redescobrisse a essência esquecida do continente.

A esta nova forma de ficção, alguns críticos literários batizaram de Realismo Mágico.

Segundo Chiampi:

A constatação de um vigoroso e complexo fenômeno de renovação ficcional, brotado entre os anos 1940 e 1955, gerou o afã de catalogar suas tendências e encaixá-las sob uma denominação que significasse a crise do realismo que a nova orientação narrativa patenteava. Assim, realismo mágico veio a ser um achado crítico-interpretativo, que cobria, de um golpe, a complexidade temática (que era realista de um outro modo) de novo romance e a necessidade de explicar a passagem da estética realista-naturalista para a nova visão (mágica) da realidade. (CHIAMPI, 2012, p.19)

A complexidade das estruturas hispano-americanas necessitava de uma forma

discursiva singular. As obras dessa nova tendência careciam de uma nomenclatura própria,

que expressasse essa “nova atitude” dos artistas diante daquilo que era encarado como real.

Assim, o termo “mágico” foi o encontrado.

O termo foi aplicado para denominar esta produção literária pela primeira vez por

Arturo Uslar Pietri, em sua obra Letras y Hombres de Venezuela, de 1948. Pietri buscava uma

expressão para se referir aos contos venezuelanos dos anos de 1930 e 1940. O termo,

entretanto, encontrou aderência por parte de acadêmicos e críticos a toda produção hispano-

americana.

Apesar de poético, o termo é conceitualmente problemático. Para Chiampi:

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Como se vê, o problema da implantação do termo realismo mágico na crítica hispano-americana envolve ora a deficiência metalinguística (os dados ‘reais’ são denominados ‘realistas’), ora no duplo enfoque da questão. O primeiro, pelo referente (o ‘real’), leva o autor a indefinir a realidade; como uma faca de dois gumes, essa operação, em vez de exorcizar o real, o postula como necessário. O segundo, pela atitude do narrador diante do real, conduz o problema para fora do texto, centralizando no ato criador o fundamento conceitual do realismo mágico (Ibid, p.23)

Para designar essa tendência literária, o termo mais aceito é Realismo Maravilhoso ou

Real Maravilhoso Americano, criado pelo romancista franco-cubano Alejo Carpentier no

prefácio El Reino de este mundo (1949). Para Stam: “Carpentier contrasta o que vê como

sendo os laboriosos esforços dos vanguardistas europeus de processar o maravilhoso, através

de técnicas de deslocamento, com o maravilhoso inerente à própria realidade quotidiana na

América Latina.” (STAM, 2008, p.447)

Carpentier buscou o termo “maravilhoso” por já ser consagrado pela poética e pelos

estudos críticos-literários (como os de Todorov), sobretudo por estar ligado a outros conceitos

correlatos, como o fantástico e o realismo. Já o termo “mágico” possui outros significados

teóricos, aproximados a outros ramos do conhecimento, como o Ocultismo.

Por ser uma manifestação literária tão própria da América Hispânica, a conceituação

se torna um desafio, uma vez que é limitador utilizar termos aplicados ao pensamento europeu

para uma realidade tão distinta quanto a americana. Carpentier defendia que “nós, novelistas

latino-americanos, temos que nomear tudo – tudo o que nos define, envolve e circunda: tudo o

que opera com energia de contexto – para situá-lo no universal.” 7 (CARPENTIER apud

CHIAMPI, 2012, p.46). O Realismo Maravilhoso, a partir da perspectiva do hispano-americano,

busca representar uma realidade universal.

Mesmo sendo um gênero bastante presente na literatura da América, o realismo

maravilhoso não é um gênero exclusivo do continente, mas encontra um significativo espaço

para seu desenvolvimento estético e temático, como analisa Chiampi:

E, de fato, o realismo maravilhoso não é uma modalidade narrativa exclusiva da literatura hispano-americana, e nem todos os relatos desta literatura tomam a América como referente (semiotizado ou não como realidade maravilhosa). Mas tal procedimento se legitima à simples constatação de que, na América Hispânica, a continuidade e a renovação da produção ficcional vem marcada pela busca de significar a identidade do continente americano (seja em seu aspecto histórico, político, social, religioso ou místico), tomando-o como espaço privilegiado para as aventuras dos seus heróis. (Op.cit., p.96)

Como tendência narrativa, Roas defende que “O realismo maravilhoso descansa sobre

uma estratégia fundamental: desnaturalizar o real e naturalizar o insólito, quer dizer, integrar o

7 Tradução nossa. No original: “(...) nosotros, novelistas latinoamericanos, tenemos que nombrarlo todo – todo lo que nos define, envuelve y circunda: todo lo que opera con energía de contexto – para situarlo en lo universal”

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ordinário e o extraordinário em uma única representação do mundo.” (ROAS, 2011, p.12) 8

Todos os acontecimentos narrados são sempre apresentados como algo recorrente. O

maravilhoso e o corriqueiro convivem lado a lado, e aos personagens (ou ao narrador) nada

causa assombro.

Assim, o realismo maravilhoso se distingue da literatura fantástica enquanto gênero,

pois não produz um enfrentamento entre o real e o insólito, mas gera uma naturalização – e

em muitas narrativas, até uma banalização – do sobrenatural.

Ao representar a realidade americana sob o prisma da naturalização do insólito, as

narrativas do realismo maravilhoso assumem também um caráter político. Um exemplo que

ilustra essa relação é a obra Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, que, segundo a

análise de Stam:

Quando uma epidemia de insônia toma conta de Macondo, seus habitantes perdem a capacidade de distinguir entre o sonho e a realidade. Este embaçamento do onírico e do factual também tem uma dimensão política. Quando uma greve é reprimida pelos proprietários de uma plantação de bananas, aquele que detém o poder impõem seus ‘sonho’ à população, que é obrigada a aceitar a ficção de que a polícia nunca realmente atirou nos manifestantes e que, consequentemente, as mortes que eles testemunharam, na realidade, não haviam acontecido. (STAM, 2008, p.440)

Desta forma, o realismo maravilhoso busca tocar o lado sensível do leitor para

despertar o senso de coletividade. Ao se identificar nos elementos insólitos da obra

referências críticas à realidade cotidiana, busca-se acender o senso de comunidade, de

pertencimento a um povo que possui os mesmos problemas e dificuldades, as mesmas crenças

e costumes, o mesmo modo de encarar o cotidiano.

O caráter subversivo e ao mesmo tempo poético são características importantes do

realismo maravilhoso. Expressar as especificidades, os problemas e a poesia presentes na

realidade da América Hispânica confere a este gênero literário a categoria de divulgador do

que seja ser americano.

Das obras de Gabriel Garcia Márquez adaptadas para o cinema, poucas produções

conquistaram sucesso de público e de crítica. O próprio escritor costumava limitar a liberação

dos direitos e afirma, por exemplo, que não tinha interesse em ver suas obras adaptadas para

filmes com diálogos na língua inglesa. As obras mais recentes adaptadas foram Amor nos

tempos do cólera e Memórias de minhas putas tristes.

Amor nos tempos do cólera foi publicado em 1985 e narra a história do amor do

telegrafista e violinista Florentino Ariza por Fermina Daza. A adaptação cinematográfica foi 8 Tradução nossa. No original: “El realismo maravilloso descansa sobre una estrategia fundamental: desnaturalizar lo real y naturalizar lo insólito, es decir, integrar lo ordinário y lo extraordinario en una única representación del mundo”

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lançada em 2007, numa co-produção estadunidense e colombiana e dirigida pelo cineasta

inglês Mike Newell. O idioma original do filme é o inglês, e seu elenco é formado,

majoritariamente, por atores de origem latina, como o espanhol Javier Bardem, a italiana

Giovanna Mezzogiorno, o colombiano John Leguizamo e a brasileira Fernanda Montenegro.

Memória de Minhas Putas Tristes foi lançado em 2004 e narra a história de um velho

jornalista que decide comemorar seus noventa anos em uma noite de amor com uma jovem

virgem. O filme baseado no livro estreou em 2011, dirigido pelo dinamarquês Henning

Carlsen e é uma produção mexicana, em língua espanhola. Seu elenco é composto por nomes

como Emilio Echevarria, Geraldine Chaplin, Ángela Molina, Olivia Molina e Paola Medina.

O fantástico presente nas palavras escritas de Gabriel Garcia Márquez ganha imagem e

som em suas adaptações cinematográficas. O mágico, assim, sai do imaginário e se torna

“real” pelo cinema.

Objetivos

Objetivo Geral

Analisar de que maneira as adaptações cinematográficas das obras literárias Amor nos Tempos

do Cólera e Memória de Minhas Putas Tristes de Gabriel Garcia Márquez transportam o

mágico para o cinema, ressaltando as diferenças e semelhanças entre as duas produções.

Objetivos específicos

1) Evidenciar as singularidades das linguagens cinematográficas e literárias.

2) Apresentar as principais características do Realismo Mágico a partir das obras

estudadas.

3) Salientar o papel do imaginário na compreensão da obra, sejam elas literárias ou

cinematográficas.

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