Prosas Barbaras Batalha Reis

download Prosas Barbaras Batalha Reis

If you can't read please download the document

description

Eça de Queiros

Transcript of Prosas Barbaras Batalha Reis

Arcdia

1

Prosas BrbarasEa de Queirs

Na primeira fase da vida literria de Ea de QueirsNotas marginaisSinfonia de aberturaO MacbethPoetas do malA ladainha da dorOs mortosAs misrias: 1. entre a neveFarsasAo acasoO MiantonomahMisticismo humorsticoLisboaUma cartaDa pintura em PortugalO lumeMefistfelesOnflia BenoitonMemrias de uma forcaApndice: Ins de CastroA morte de Jesus.

NA PRIMEIRA FASE DA VIDA LITERRIADE EA DE QUEIRSIJulgaram os Editores das Prosas Brbaras ser necessrio explicar como elas se escreveram e denominaram.Fui talvez a testemunha mais prxima da redaco dos escritos agora reunidos em volume, e, por esse tempo, o mais inseparvel companheiro do autor. Esta Introduo pois uma pgina da sua biografia. Tento esboar nela a figura do homem e a do escritor tais como as conheci, ao formarem-se as criaes deste livro que circunstncias e que espritos principalmente influenciaram a alis extraordinria originalidade do gnio de Ea de Queirs.Quando nos encontrmos, j estavam publicados alguns dos seus Folhetins na Gazeta de Portugal, que fora fundada por Antnio Augusto Teixeira de Vasconcelos (em Novembro de 1862), 4 anos antes da apario do primeiro deles, e terminou (Janeiro de 1868), pouco mais de um ano depois da publicao do ltimo, sendo em rivalidade com a Revoluo de Setembro, dirigida por Rodrigues Sampaio o mais brilhante peridico do tempo. A Gazeta de Portugal publicava, alm das do seu fundador, frequentes produes de Antnio Feliciano de Castilho, Jos Castilho, Mendes Leal, Rebelo da Silva, Camilo Castelo Branco, Jlio Csar Machado, Toms Ribeiro, Zacarias dAa, Graa Barreto, Silveira da Mota, Cunha Rivara quase todos os consagrados de ento. Os NOVOS que aqui escreviam, ficavam, por este facto, para logo consagrados tambm. A primeiro apareceram no Folhetim, triunfantemente, Mateus de Magalhes, Pinheiro Chagas, Osrio de Vasconcelos e Xavier da Cunha (Olmpio de Freitas). Todos estes escritores se continuavam uns aos outros, sem contrastes nem revolues, apenas levemente desenvolvendo frmulas aceites e classificadas pelos aplausos de um pblico hereditariamente satisfeito.Em 1866 a Gazeta de Portugal entrara porm em decadncia; comeava a viver de expedientes. Desde Dezembro de 1865 diminuiu o formato. A 14 de Julho de 1866, Jos da Silva Mendes Leal, poeta, dramaturgo, romancista, historiador, estadista, orador, diplomata para muitos mestre e legtimo sucessor de Almeida Garrett despedira-se da direco literria que at ento, pelo menos nominalmente, exercera. Os colaboradores literrios mais assduos, mais genuinamente representantes do gosto geral, eram 16 ento, no Folhetim da Gazeta de Portugal, Santos Nazar e Lus Quirino Chaves. Por essa poca Teixeira de Vasconcelos publicou a o seu romance A Ermida de Castromino, seguido porm, desde os primeiros dias de 1866, por O Diamante do Comendador do visconde Ponson du Terrail...Repentinamente (em Maro de 1866), comearam a aparecer uns Folhetins assinados Ea de Queirs.Ningum conhecia a pessoa designada por estes apelidos que, por algum tempo, se sups serem um pseudnimo.Os Folhetins de Ea de Queirs foram todavia notados: mas como novidade extravagante e burlesca. Geral hilaridade os acolheu desde a prpria Redaco da Gazeta de Portugal, at aos centros intelectuais reconhecidos do pas, e at parte mais grave, culta e influente do pblico. Para este, uma ou outra frase os arrumou logo no que ento se chamava a Escola Coimbra centro literrio e filosfico que se supunha dedicado a escrever de modo sistematicamente ininteligvel. Citavam-se, como modelos de cmico inconsciente, as cenas, as imagens, os eptetos desses Folhetins,. lidas entre gargalhadas no Caf Martinho, nas livrarias Silva, Rodrigues e Bertrand, no Grmio Literrio, em alguns sales poticos e polticos e noutros centros representativos do tempo. O Severo o Severo dos Anjos principal e clebre noticiarista da Gazeta de Portugal, entalando o monculo ao canto do olho direito, inventava quotidianamente, sobre o Ea de Queirs e os seus Folhetins, epigramas em geral adoptados; e o Teixeira de Vasconcelos, exagerando, com inteno mordaz, o seu natural gaguejar, conclua: Tem muito talento este rapaz; mas pena que estudasse em Coimbra, que haja nos seus contos, sempre dois cadveres amando-se num banco do Rossio, e que s escre...va...va...va em francs Quando, em 1875, comeou na Revista Ocidental a publicao de O Crime do Padre Amaro,Teixeira de Vasconcelos escreveu: Nasceu na Gazeta de Portugal Ea de Queirs e assustou por diferentes vezes os espritos serenos dos pacificas leitores dela. No passaram sem observaes nossas alguns dos seus realismos exagerados... Jornal da Noite, 20 de Fevereiro, 1875, Lisboa. .Pouco tempo depois de publicado o ltimo desses Folhetins em Dezembro de 1867 j ningum pensava no autor deles. Que importava s Academias, ao Caf Martinho, ao Grmio suposto literrio, e aos centros polticos, a apario de um novo escritor com um novo estilo? Eram ministros... no sei quem; discutia-se no Parlamento e na imprensa... no sei qu; os negcios iam andando; os namoriscos e a maledicncia seguiam o seu curso abundante; a arte, serena e comedida, no sacudia os que dormitavam.., e nada mais era de interesse, em Portugal, para as classes cultas.IIEu era, por 1866, estudante em Lisboa e muito novo. Circunstncias que intil referir me faziam frequentar a Redaco da Gazeta de Portugal, no n 26 da Travessa da Parreirinha, perto do Teatro de S. Carlos.Uma noite, junto da mesa onde escrevia o Severo, vi uma figura muito magra, muito esguia, muito encurvada, de pescoo muita alto, cabea pequena e aguda que se mostrava inteiramente desenhada a preta intenso e amarelo desmaiado.Cobria-a uma sobrecasaca preta abotoada at ao mento, uma gravata alta e preta, umas calas pretas. Tinha as faces lvidas e magrssimas, o cabelo corredio muito preto, de que se destacava uma madeixa triangular, ondulante, na testa plida que parecia estreita, sobre olhos cobertos por lunetas fumadas, de aros muito grossos e muito negros. Um bigode farto, e tambm muito preto, caa aos lados da boca larga e entreaberta onde brilhavam dentes brancos. As mos longas, de dedos finssimos e cor de marfim velho, na extremidade de dois magros e longussimos braos, faziam gestos desusados com uma badine muito delgada e um chapu de copa alta e cnica, mas de feltro bao, como os chapus do sculo XVI nos retratos do duque de Alba, de Filipe II de Espanha, ou de Henrique III de Frana.Era o Ea de Queirs.Contava o quer que fosse a um tempo trgico e cmico, nervosamente, dando a espaos gargalhadas ricanements, como se diria em francs curtas, e sinistras.O Severo, de monculo fincado no olho direito, a larga mscara gorda, amarela, irnica, dilatada, escutava-o, rindo em notas agudas.Sa do Escritrio da Gazeta de Portugal com o Ea de Queirs, jantmos, passmos toda a noite Juntos, e desde ento, por anos, no nos separmos quase.O Ea de Queirs terminava em 1866 o curso de Direito na Universidade deCoimbra, e viera para Lisboa onde seu pai era magistrado. Por tradies de famlia, e como consequncia natural dos seus estudos, deveria seguir, ele tambm, a. magistratura oficial, ou, pelo menos, fazer-se advogado. Suponho que neste intuito frequentou algum tempo um escritrio em Lisboa.Mas a Arte tomava-o j a esse tempo fundamente, e ia-se-lhe o tempo a ler, a cismar, a idear, a cogitar os aspectos subtis das coisas.Ea de Queirs morava em casa da famlia, ao Rossio, no quarto andar do prdio n 26. O seu quarto pequeno, com uma mesa ao centro e uma estante de poucos livros dava para a Rua do Prncipe. A foram, em parte, escritos os Folhetins das Prosas Brbaras.IIIHavamo-nos criado um mundo como que parte da realidade.Quando por algum tempo nos separvamos durante o dia, reunamo-nos logo, s horas de jantar, ou depois, num qualquer restaurante pouco frequentado, cerca da Rua Larga de S. Roque ou do Chiado. sobremesa o caf abria-nos as regies visionrias por onde viajvamos: o Ea de Queirs bebia-o com ateno concentrada e reverente, curvado de alto sobre a chvena, para onde cada feio, principalmente o nariz comprido e adunco, como que se pro1ongava aguada. A uma primeira chvena seguia-se uma segunda e uma terceira; e amos exaltados para minha casa continuar a beber caf, s vezes at madrugada.Nestas circunstncias foram criados, por Ea de Queirs, muitos dos contas agora reunidos em volume.Eu morava no primeiro andar da casa n 19 da ento Travessa do Guarda-Mor, em pleno Bairro Alto.No meu quarto de estudante Veja-se Antero de Quental, In Memoriam Ea de Queirs, um Gnio Que Era Um Santo, pp.499-502; J. Batalha Reis, Anos de Lisboa, idem, 442-445, Porto, 1896. havia um grande armrio cheio de livros, cavado na espessura da parede, uma mesa central sobre que se escrevia, e uma secretria de feitio estranho. dada a meu pai por Almeida Garrett, usada por este para escrever de p, que sugeriu a Ea de Queirs a forma da mesa onde, anos depois, em Paris, quase sempre trabalhava. Uma larga janela de sacada abria para a Rua dos Calafates Hoje, Rua do Dirio de Notcias. em frente a prdios baixos que, por isso, no impediam o acesso do ar, da luz, e a vista de um espao largo aberto dando a impresso de canto de vila provinciana. No mais prximo desses prdios moravam duas raparigas, muito novas e bonitas, a cantar, entre craveiros e manjerices, costurando activamente o dia inteiro. por vezes, para o Ea de Queirs e outros lricos fantasistas que me visitavam, pontos de partida de longas variaes, em verso e prosa, sobre o que o mesmo Queirs, corrigindo Goethe, chamava o efmero feminino In A Correspondncia de Fradique Mendes...Certas noites, entrava o Ea de Queirs j tarde, no meu quarto, com uns rolo de papel na mo, dizendo: Sou eu, sim, amigo.E aludindo aos corvos, milhafres, gavies que, com tanta frequncia, fantasticamente, apareciam nos seus contos, acrescentava: Sou eu e os meus abutres: vimos cear, devorando cadveres!Muitas coisas preocupavam o Ea de Queirs, quando trabalhava:Durante tempos s pde escrever em certo almao, que ele prprio ia comprar a uma pequena loja de ch e papel selado, no n 41 da Rua Larga de S. Roque.Havia de sempre entrar no meu quarto com o p direito, suspendendo-se por isso, no ltimo momento, recuando o agourento p esquerdo, quando j este inoportunamente se adiantasse e fazendo hesitante e confuso, ao passar enfim a soleira da porta, um rudo de inexplicvel trepidao. Aterravam-no correntes de ar, e andava continuamente a fechar a janela, ou as portas, a mudar a posio da cadeira onde se sentava, murmurando em voz cava: a pneumonia, a congesto pulmonar fulminante a morte, menino!A luz do candeeiro de petrleo que eu usava, feria-lhe a vista; de modo que, a fim de concentrar a claridade sobre o papel em que escrevia, ou sobre o livro em leitura, prolongava, do seu lado, o abat-jour, com longas tiras de papel. No podia suportar poeira nas mos e erguia-se amide da mesa para interrompendo a composio, mas recitando em voz alta as frases j escritas vir, cuidadosamente, lavar as pontas dos dedos. Fumava cigarros sem cessar, enquanto compunha, inclinado sobre o papel que olhava muito de perto. E, uma vez embebido nas suas criaes, no falava, no escutava, no atendia a coisa alguma embrulhando o cigarro, indo lavar as mos ou fechar a porta, passeando pela casa, muito curvo, dando passadas altas e largas, fazendo gestos de dialogar com algum invisvel, resfolegando ruidosamente, abrindo muito os olhos, elevando e baixando nervosamente as sobrancelhas, as plpebras, e as rugas horizontais da testa, onde ondulava, convulsa, a sua madeixa corredia, negra e triangular.Escrevia com extrema facilidade e, nesta poca, emendava muito pouco: as imagens, os eptetos ocorriam-lhe abundantes, tumultuosamente, e ele redigia rpido, insensvel a repeties de palavras e rimas ou a desequilbrio de perodos, sem exign-cias criticas de forma, aceitando, comovido o que to espontaneamente, to sinceramente lhe ocorria.Quando, nessas noites, ele me lia alguns dos seus contos, a figura e a voz com pletavam4he as fantsticas criaes: erguia-se quase nos bicos dos ps, de uma magreza esqueltica, lvido na penumbra das projeces do candeeiro os olhos esburacados por sombras ao fundo das rbitas, sob as lunetas fumadas de aro preto, o pescoo inverosimilmente prolongado, as faces cavadas, o nariz afilado, os braos lineares, interminveis. Ento, com gestos de apario e espanto, a voz lgubre, sentimental enfaticamente pattica, ou gargalhando sinistramente declamava.Alta noite, quando a excitao do trabalho e do caf nos havia quase alucinado, saamos pelas ruas desertas do Bairro Alto ou estendamos as nossas exploraes Mouraria, Alfama, em volta da S e pelas encostas mouriscas e fadistas do Castelo de S. Jorge, a examinar a fisionomia fantstica, e quase humana, das casas antigas, algumas ainda ento, nesses bairros, mais ou menos medievais.As casas sem luz escreveu Ea de Queirs ento tm o aspecto calmo e sinistro dos rostos idiotas.De uma vez, quase de madrugada, seguindo no Bairro Alto a Rua de S. Boaventura, divismos ao longe, junto do Ptio do Conde de Soure, uma fila de homens agigantados, segurando como que longas e grossas lanas, cujos ferros se perdiam talvez na atmosfera mal alumiada e cujos contos se esfumavam na massa confusa do que parecia ser nuvens rasteiras... Estes homens apareciam-nos apenas esboados por grandes massas de sombra e luz... De alguns saam barbas hirsutas... Estavam imveis... Tivemos a impresso de um quadro sobrenatural.. Aproximmo-nos... Eram varredores municipais que esperavam, encostados s vassouras, a hora de se dispersarem pela cidade.Nas noites mais serenas nas noites de luar saamos da cidade e amos pelos campos e pelos montes, ou ao longo das margens do Tejo, conversando, improvisando,. at nascer o Sol.De ordinrio, nas noites de composio e conversa mais absorventes, ou em seguida s nossas divagaes pari patticas, o Ea de Queirs dormia em minha casa.E havia, para ele, ritos determinados no modo de dispor a roupa que despia, antes de se deitar, colocando os punhos sobre uma mesa pela ordem por que os tinha usado, no brao direito e esquerdo respectivamente, e dispondo as botas porta; para que o meu criado as limpasse, de manh, sem nos acordar; tambm, pelo mesmo mtodo, ordenadamente emparelhadas.E ao meter-se na cama, para explicar os seus movimentos supersticiosos, murmurava, persignando-se: preciso obedecer com f e sem exame s leis subtis das coisas: ningum sabe exactamente, menino, de que possa depender o curso dos acontecimentos; e o mistrio complicado dos Fados.Na poca em que publicaram os Folhetins da Gazeta de Portugal, eram poucos os amigos que frequentavam a minha casa. O mais assduo era, por esse tempo alm de Ea de Queirs, o Salomo Saragga que, quando aparecia, nos explicava com veemncia, prolixamente, simultaneamente, a construo de carruagens, o livro do Profeta Isaas, a fabricao de tecidos com desperdcio de l, os Historiadores de Israel e as origens do Cristianismo.De tempos a tempos, o Ea de Queirs dizia-me: Estamo-nos tornando impressos. Basta de ler e imaginar. Precisamos de um banho de vida prtica. -nos indispensvel o acto humano inverosmil, se for passvel, a aventura, a lenda em aco, o heri palpvel: vamos pois cear com o capito Joo de S o Joo de S Nogueira, dArtagnan de frica em Lisboa com licena registada.E amos, com efeito, encontrar este nosso amigo, oficial do Ultramar, que ceia nos contava durante o bacalhau com batatas, o meio bife, e o Colares, as pitorescas aventuras das suas viagens pelos sertes de Angola.IVHavendo eu pertencido primeira gerao afectada pelos escritos de Ea de Queirs, as recordaes do meu sentir de ento possuem talvez algum valor histrico.Os anos de 1866 e 1867 so datas capitais na histria da educao do meu esprito. A predominante paixo pela msica ligara-me a Augusto Machado, que estudava ento piano e harmonia com dois dos melhores mestres da especialidade em Lisboa.Nesta cidade floresciam, por esse tempo, a par da pera italiana e da zarzuela, o pot-pourri e as variaes. A sensibilidade pblica alimentava-se de inumerveis rveries musicais. O grau supremo do pattico geralmente conhecido atingia-se com os nocturnos de Ravina e Dhler. Os arranjos operticos de Thalberg e Liszt eram o ideal raras vezes alcanado. Nas salas cantavam-se romanzas de Cara pana e rias teatrais. A suprema forma de arte era, para Lisboa, a pera italiana. Meyerbeer autor de peras italianas passava por ser o mais genial representante da profunda mas obscura arte alem.Ora em 1867 Augusto Machado, ao voltar de Paris, onde cursara piano, harmonia e composio com Alberto de Lavignac e outros, trazia, como repertrio de estudo, OS preldios e fugas de Bach; as sonatas de Mozart e Beethoven, as obras de Mendelssohn, Schumann e Chopin.Os Folhetins de Ea de Queirs fizeram-me uma impresso s comparvel, em profundidade e consequncias subjectivas, que justamente pela mesma poca, me fazia a descoberta das obras dos grandes criadores da msica moderna.Esses Folhetins foram-me uma revelao no tanto nos assuntos e na inteno, como no poder de realizao artstica: enfim encontravam formas e cores intensas de expresso, factos, antes, na Literatura Portuguesa, insuficientissimamente revelados.Pelos pontos de vista, pelo estilo, esses folhetins eram, ainda no ano de 1866, uma quase inteira novidade para os leitores da lngua portuguesa; como haviam sido, para todo o Sul da Europa, apario do Romantismo francs nos primeiros anos do sculo XIX, as mesmas ideias e estilos semelhantes.Nesses primeiros escritos Ea de Queirs era, na verdade, o que geralmente se denomina um romntico. Ele prprio - dizia da poca imediatamente anterior:Naqueles tempos o Romantismo estava nas nossas almas. Fazamos devotamente orao diante do busto de Shakespeare.E, ento mesmo, achava ser prefervel, sade vulgar e intil que se goza no clima tpido que habitam Racine e Scribe... a doena magnfica que leva ao hospital romntico... Veja-se a Carta a Carlos Mayer.. Com efeito, por uns dois sculos, pareceu gozar-se nas regies mais evidentes da Literatura, uma inaltervel sade: s certos factos do esprito perfeitamente determinados s as ideias e os sentimentos susceptveis de clara determinao eram nessa Literatura expressos. Os meios de expresso usados, os vocbulos e os seus grupamentos, os gneros literrios tudo parecia claramente, definitivamente assente, segundo normas antigas e, por isso, venerandas, num sistema de simetria, de equilbrio, de ordem, aplicvel sem hesitaes, com o mnimo esforo, na mais segura tranquilidade. Assim viveu na Europa, em geral, a gente culta, do sculo XVI ao sculo XVIII.Comearam pelos meadas deste, a mostrar-se nos espritos sinais inquietadores: alm das ideias completamente compreensveis e dos sentimentos inteiramente claros, outras ideias e outros sentimentos se impuseram expresso dos Literatos. Entre as grandes formas dos afectos, como entre as cores mais vivas, distinguirem-se transies e meias-tintas. Os homens no pareceram estar sempre, ou exuberantemente alegres, ou definitivamente tristes. Havia comoes, sentimentos intermedirios ao amor e ao dio. Entre o preto e o branco descobriram-se gradaes infinitas.Cada ideia classificada, cada sentimento catalogado antes, comeou ento, pouco a pouco, a mostrar-se centro de grandes grupos psicolgicos, de factos espirituais diversamente complexos, susceptveis de definies variveis, expressas por sries simblicas de clareza decrescente: uns que podiam ser nitidamente como que linearmente desenhados, inteiramente descritos, completamente iluminados; outros que s podiam indeterminadamente sugerir-se, sumariamente indicar-se por vagas massas de cor, de sombra e de luz; uns que so as ideias e os sentimentos que todos os homens conscientemente reconhecem como a matria superficial da existncia; outros mais ou menos inconscientemente dominantes, sem nome ou descrio que os esgote, prolongando-se pelas profundidades insondveis e inexpressveis das almas.Do conhecimento destes estados mais subtis e raros do esprito, resultou, inevitavelmente, a suo cultura intencional; os sistemas nervosos pareceram desenvolver-se em direces anormais; e imprevistas, ou mais apreciveis vibraes vieram impor-se, criar ou tornar complexas e mais conscientes as nevroses.Novas formas de expresso foram necessrias, no s para os novos estados da conscincia, mas porque cada esprito comeou a sentir e a pensar independentemente, reconhecendo dever procurar por si por isso, quanto possvel fora de frmulas e regras j feitas os termos que mais exactamente lhe simbolizassem as concepes pessoais.Toda esta revelao espiritual este descobrimento de regies ignoradas ou indolentes dos espritos, toda esta apario de aspiraes, de incertezas, de incoerncias novas, toda esta quebra de moldes, todo este desequilibrar de foras e simetrias inmeras afirmaes de personalidades pareceu s gentes cultas, serenas e classicamente imitativas, um grande achaque mental, ou variadas doenas nervosas que atacassem a humanidade.A este estado dos espritos e da consequente Literatura deu-se, como sabido, o nome de Romantismo facto esttico, ainda hoje em busca de suficiente definio, mas que, pelo que deixo explicado, me parece poder essencialmente definir-se a procura directa de formas de expresso, para todos os sentimentos e todas as ideias, por isso, para as mais intimas ideias e os mais vagos sentimentos do ser humano.Muitos pretendem tratar-se apenas de uma doena moral, e que esta foi, nos fins do sculo XVIII, a reincidncia da epidemia que devastara a Europa durante o perodo secular desdenhosamente denominado, por os saudveis neo-greco-romanos, a Idade Mdia, idade escura dark age dizem os ingleses, poca de transio, que em Histria h a considerar entre os dois claros perodos clssicos de suposto equilbrio e sade normal.O Romantismo pareceu ser, geralmente, a ressurreio idealizada dessa histrica mrbida Idade Mdia. que, durante esta, gradualmente se constituram as naes modernas da Europa na sua ntima complexidade sentimental. Nelas as foras humanas como integral resultado de foras naturais deram forma aos mais ntimos sentimentos do esprito. Os povos haviam vivido tradicionalmente mergulhados nas criaes completas das suas artes e das suas religies: haviam amado, adorado, temido, trabalhado, lutado, cantado, danado, cercados por todas as vibraes inconscientes das suas fantasias; haviam formado com a interpretao dos aspectos naturais, com os encantamentos, com os gnios, e as fadas de mil religies tradicionais, os novos santos milagrosos e cristos; haviam sentido em cada ser, orgnico ou mineral, real ou fantasiado, propcio ou hostil, influncias humanas, e haviam-se suposto indissoluvelmente solidrios com uma natureza sempre animada, por onde os prprios cadveres nunca desvitalizados evoluindo se dispersavam em pulverizaes de espritos e energias.Estas manifestaes da vida espontnea dos povos durante a Idade Mdia, sem dvida solicitaram, a interpretao dos Romnticos, cuja razo de ser, cuja misso era tambm, como j mostrei, ir expressando, at aos mais profundos e subtis, todos os factos espirituais.Mas o chamado Romantismo deu-se na Europa dos fins do sculo XVIII aos anos de 1830 ou 1850, modificando, durante esse tempo, a Literatura do remoto Portugal.Que novidades podia pois ainda apresentar o romntico Ea de Queirs aos romnticos portugueses de 1866? o que vou tentar explicar:O Romantismo tomou, primeiro, corpo saliente, ao Norte da Europa, e s depois se estendeu ao Sul. Veio dos pases de luz atenuada e nvoas visionrias, indeterminadoras de formos e de cores, para as terras do sol brilhante, atmosfera lmpida, formas vincadas e cores elementares. Na Europa o Sul representa... a maneira de ser exterior, como o Norte representa o vago sentimento ntimo... Ea de Queirs. Da Pintura em Portugal, Gazeta de Portugal, 10 de Novembro de 1867.Nesta descida atravs das latitudes, as ideias foram ganhando nitidez, definio, brilho e correlativamente perdendo meias-tintas, subtil claro-escuro, indeterminao.Os sentimentos, transportados com simplificaes lcidas superfcie dos espritos, pelos artistas das terras do Sul, perderam muitos dos nimbos esfumados, muitas das atmosferas de esbatida atenuada iluminao, que os rodeiam nas regies profundas onde eles nascem completos. Enquanto o Norte expressava tudo o que nas ideias quase apenas sugervel, o Sul to-somente aproveitou o que possa nitidamente descrever-se. Os Romnticos das raas do Sul da Europa comearam a fazer assim, mais uma vez, por uma fatalidade atvica e climatrica, o que os antepassados cultos de muitos deles haviam completamente consumado sculos antes, na construo equilibrada e ntida do Classicismo greco-romano, sobre a atrofia esttica e religiosa de exuberantes regies da alma humana, pela reduo das misteriosas formaes msticas do Oriente, da Hlade e da Itlia, aos moldes retricos, s esculturas luminosas mas frias, e s biografias anedticas dos obscuros politesmos hericos.Eis porque tantos romnticos portugueses em Portugal, no extremo dos pases claros do Meio-Dia ...Ns... os que estamos neste canto da velha terra portuguesa, com a alma serena, sob o cu claro... Ea de Queirs, Sinfonia de Abertura, Gazeta de Portugal, 7 de Outubro, 1866. s foram superficialmente romnticos.Nas partes mais profundas, mais obscuras, mais Indeterminveis do esprito, para alm do real, do lgico, do coerente, do explicvel como que para preencher as lacunas deixadas no completo da totalidade psquica, pelas definies fragmentrias do compreensvel existem com efeito, infinitamente, as necessidades misteriosas do contraditrio, do sobrenatural, do maravilhoso. para as satisfazer que todos os povos criam, fatalmente, formas estticas e religiosas, e delas que todo o homem completo se sente, por vezes, essencialmente possesso.Essas formas constituem a arte e a literatura mstica e fantstica.A Frana a mais ao norte das naes definidoras recebeu, em grande parte, a sua literatura fantstica da Alemanha. Da Alemanha, por interveno da Frana, a recebeu Portugal. Teve ela, de 1866 a 1867, em Ea de Queirs, a seu mais genial representante.E porque essa Literatura me punha em vibrao tantas faculdades Intimas e latentes, me comoveu ela a mim e comovendo outros espritos contemporneos da minha primeira mocidade, talvez por educao, e quem sabe se por atavismo, no inteiramente, ou no exclusivamente filhos das raas e dos climas claros e analticos do Sul.VAssim as primeiras influncias que actuaram em Ea de Queirs aquelas que mais evidentemente se reconhecem nas suas primeiras criaes literrias, os escritores de cuja frequentao eu posso dar testemunho foram principalmente, Henrique Heine, Gerardo de Nerval, Jlio Michelet, Carlos Baudelaire mais distantemente, ou mais em segunda mo, Shakespeare, Goethe, Hoffmann, Arnim, Pe, e, envolvendo tudo poderosamente, Vtor Hugo.A maior influncia nesse perodo sobre Ea de Queirs a de Heine foi tambm considervel sobre alguns - dos seus mais ilustres contemporneos e amigos: v-se nas poesias, mais tarde reunidas por Antero de Quental sob o nome de Primaveras Romnticas, e no que este diz da sua prpria obra, nas pginas autobiogrficas que esto publicadas Du Heine de deuxime qualit, Antero de Quental, Carta a Wilhelm Storck, 14 de Maio, 1887.; v-se tambm nas poesias primeiro- escritas para o Sculo XIX, de Penafiel, de 1864 a 1865, e depois coligidas, com o ttulo de Lira Meridional, por Antnio de Azevedo Castelo Branco.Ea de Queirs no sabia alemo e as obras de Heine adquirem nas tradues francesas algumas feitas pelo prprio autor, outras por este em colaborao com Gerardo de Nerval um carcter novo.Heine para mim um dos maiores escritores das lnguas germnicas. Traduzi-lo , sem dvida, empobrec-lo: foi ele quem disse que um verso traduzido um raio de lua... empalhado. Mas as qualidades musicais de som e ritmo de vaga indeterminao que as suas obras perdem, ao passar para o francs, so substitudas por outras: a singeleza pattica como que se torna mais dolorosa claridade ntida da nova lngua; o humorismo, a um tempo irnico e ingnuo, como que se faz mais subtil nas formas do esprito latino; os versos, passados a prosa de ritmos incertos e sem rima, como que adquirem uma indeterminao, um vago especial que faz lembrar versculos bblicos H como se sabe muitas poesias de Heine em verso solto: Das Nordsee; etc.. Recordo-me da impresso nova que me fizeram as poesias de Heine que eu decorara no Colgio Alemo Colgio do Roeder, na Rua do Prior, Lisboa. , onde fui educado quando Ea de Queirs mas deu a conhecer em francs; e de uma noite em que ele me declamou enfaticamente, quase com lgrimas, traduzindo-as para a sua prosa fantstica de ento, as pginas dos Reisebilder onde Heine a quem a msica sempre sugeria formas e cores literrias definidas conta as transformaes por que a seus olhos passara, num concerto, Paganini, tornado, pela evocao do sobrenatural rabeca, em gal cortejante do sculo XVIII, assassino por cimes, forado, monge solitrio junto ao mar e sob as abbadas de catedrais, gnio planetrio entre as harmonias apoteticas das esferas, por fim vulto espectral, curvo, humilde e grotesco, agradecendo os aplausos dos auditrios. Em muitas pginas das Prosas Brbaras se encontra a influncia desta lenda fantstica de Paganini. O conto A Ladainha da Dor, que, em parte, tem o prprio Paganini por assunto, directamente inspirado por Heine e por Berlioz H. Heine, Reisebilder. Les nuits florenthines, II, pp. 316 e 330 (cito a traduo francesa que Ea de Queirs conheceu); H. Berlioz, Les Soires de lOrchestre 16, Paganini, pp. 218-219,2 ed., Paris, 1854. Depois de contar o episdio que realmente nada tem de fantstico, Berlioz escreve:Supposez Thodore Hoffmann ma place: quelle touchante et fantastique lgie il et ecrit sur ce bizarre incident. (P. 219.) Foi o que fez Ea de Queirs... As Notas Marginais parecem estncias do autor do Lyscher Intermezzo, do Traumbilder, do Nordsee.Gerardo de Nerval foi, como se sabe, um dos iniciadores directos da Frana no Romantismo germnico. Foi ele o primeiro tradutor francs do Fausto de Goethe, e, como j disse, colaborador, na traduo francesa, de algumas das obras de Heine. evidente nas pginas das Prosas Brbaras a influncia dos prprios escritos originais de Gerardo de Nerval, principalmente a dos misteriosos e fantsticos sonetos que comeam:Je suis le tnebreux, le veuf, linconsol,Le Prince dAquitaine la tour abolie...Ma seule toile est morte, et mon Luth constellPorte le soleil noir de la mlancolie!... Veja-se Notas Marginais.Luzia um grande Sol, mas negro; o Sol da melancolia...) Sinfonia de Abertura, Gazeta de Portugal, 7 de Outubro de 1866.Un affreux soleil noir do rayonne la nuit!A expresso Sol negro hoje, em parte, cientificamente verdadeira: os raios ultraviolceos da luz solar, podem chamar-se negros, e no so nem luminosos, nem quentes.Vtor Hugo, Les Contemplations, (ce qui dit tu bouche dombre).Jlio Michelet, pela originalidade, pelo poder evocador do seu estilo, pelo dom de criar vida ntima e fantstica, pela ressurreio mitogrfica e profunda sobretudo, nos 8 primeiros volumes da sua Histria de Frana da Idade Mdia, da Renascena e da Reforma e, na Sorcire, pela materializao sentimental e pela explicao, a um tempo natural e visionria, da vasta lenda do Diabo foi um dos pas artsticos do primeiro Ea de Queirs.H. Heine judeu alemo que alis alguns crticos chegam a considerar um esprito francs Gerardo de Nerval e Jlio Michelet representam, em Frana, profundas influncias germnicas. Foi na forma vaga, ntima e completa das suas obras, que o Romantismo fantstico principalmente impressionou Ea de Queirs.Por toda a parte, nos escritos das Prosas Brbaras, se encontram os mitos, as cores e formas do maravilhoso popular germnico, os aspectos evocadores da natureza teu tnica, as personalidades da Histria da Lenda do Norte da Europa localizando, a cada passo, as fantasias do romntico portugus: so as Nixes, as Willis, os Elfos, as Ondinas, as velhas mitologias do Reno, as monjas dos conventos da Alemanha a quem o Diabo escreve, o abade de Helenbach, as abadessas de Vecker a quem o Diabo faz sonetos, as mes melodramticas dos Burgraves, os pastores de Helyberg, o abade de Tritheim vendendo a alma pelo segredo da circulao do sangue, que passam de contnuo nas narraes; e as encruzilhadas da Alemanha, as encruzilhadas da Floresta Negra, as florestas da Turngia, as alturas de Borxberg, onde a 30 de Abril se encanta a assembleia de Valpurgis, as catedrais da Alemanha, o Reno, o mar do Norte, que o Nordsee dos ciclos poticos de Reine, a Alemanha onde nasce a flor do absinto, onde se ouvem as velhas baladas da Turngia e a guitarra de Inspruck La guitarre des monts d'Inspruck... V. Hugo. Lgende des Sicles, Eviradnus., onde a poesia popular foi a invisvel que levou pela mo os trovadores.... s lareiras dos senhorios feudais..., s brancas castels onde vo os Minnersingers errantes, onde se celebram as quermesses de Leipzig e se bebe a cerveja de Heidelberg, onde Alberto Drer desenhou a sua Melancolia. onde correm as caadas fantsticas do Freischtz e passam os imperadores do Santo Imprio, Fausto, Mefistfeles, Margarida, Lutero... Spohr, Weber...O conhecimento directo das poesias de Carlos Baudelaire e a sua influncia considervel em Ea de Queirs Veja-se O Milhafre, Misticismo Humorstico, no presente volume, e A Correspondncia deFradique Mendes, Introduo, passim.. , s se deu de uma maneira importante, depois da dos autores que acabo de mencionar. A edio em volume das Fleurs du Mal s tarde lhe chegou s mos. Recordo-me, na falta dela, de passarmos muitas noites na Biblioteca do Grmio Literrio, procurando, em coleces antigas de revistas francesas, as poesias que Baudelaire a havia pela primeira vez publicado.Carlos Baudeknire foi um escritor essencialmente francs. Frio, impassvel, ocorrecto de maneiras e toilettes, preocupado com a realizao de uma certa simetria de forma, o mistrio, o fantstico, foi, por ele, apenas intelectualmente sentido. Penetrou, sem dvida, em profundas, tenebrosas e inexploradas regies do esprito; mas para principalmente revelar o que nelas capaz de expresso 1ucidameme estranha. Nele o delrio sempre crtico. a nevrose intensa, mas metodizada: as suas poesias, como se sabe, foram primeiro substancial mente redigidas em prosa. Cria na arte o frisson nouveau que Vtor Hugo celebra, mas compe-no rigorosamente segundo as melhores formas da sbia lngua francesa, com sintaxe directa e rimas ricas, p a p. vibrao a vibrao ...Baudelaire, Poeta Retrico... A. Z. (Ea de Queirs), Leituras Modernas, Distrito de vora, 6, Janeiro 1876, p. 2. A Correspondncia de Fradique Mendes. .So, porm, estas qualidades especiais que tornam decisiva a influncia de Carlos Baudelaire sobre Ea de Queirs, mais tarde, no perodo de transio, quando pouco a pouco impressionado pelo Realismo e por Gustavo Flaubert, ele justamente denominou j ento crtica a coleco de escritos prosas brbaras.Exerceu-se no mesmo sentido a influncia das obras de Edgar Allan Pe, que Ea de Queirs ainda ento ignorante de ingls, s conhecia pelas tradues francesas do mesmo Baudelaire. A nitidez fria com que o escritor americano determinou o nevrosismo das Histrias Extraordinrias, acentua-se ainda mais privado, em todo o caso, da indeterminao literria e flutuante da lngua inglesa nas formas lgicas e lapidares de um dos mais claros escritores da Frana.Indico apenas, como j disse, as influncias dominantes; mas o trato ntimo com quase todos os grandes romnticos franceses Musset, Gautier, Mallefille, Villiers de Llsle Adam sensvel neste primeiro perodo da vida literria de Ea de Queirs.As influncias portuguesas importantes que podem distinguir-se, so pouco numerosas e superficiais: quase somente as da- poesia lrica popular Veja-se as quadras em O Senhor Diabo, no presente volume. e Bernardim Ribeiro, Livro das Saudades, romance de Avalor: com as Notas Marginais, no presente volume. , e as de alguns seus companheiros de Coimbra Joo de Deus, Antero de Quental, porventura Gomes Leal Cujas poesias, muito conhecidas desde que foram compostas, s em 1875 apareceram coligidas em volume. . Foi alis o conto de Ea de Queirs, O Milhafre, que sugeriu a Antero de Quental uma das suas mais interessantes poesias O Monge, destruda pelo autor e nunca publicada....aux votes gothiquesDes portiques.Les vieux de pierre athltiquesPriant tout bas pour les vivants!A. de Musset, Prmires Posies, Stances, 1828.. .A linguagem viva, isto , falada, dos portugueses que Ea de Queirs encontrou em evoluo, era de longa data j em parte formada por galicismos; por isso a aco reconhecvel na sua forma literria a lngua francesa. Foi por meio de muitas das formas sintxicas desta, e quase se pode dizer, do seu vocabulrio, que ele modelou o que quando a sua obra comeou a ser apreciada, deu a impresso de uma como que nova lngua portuguesa.Mas esta Introduo s Prosas Brbaras to-somente tem por fim explic-las rapidamente; no critic-las: no lhe cumpre por isso mostrar que diferenas profundas h entre o fantstico alemo e o fantstico do escritor portugus, entre o humorismo subtil de Heine e a ironia poderosamente vincada de Ea de Queirs, entre a fantasia ingnua, tranquila e vaga. dos homens do Norte e a imaginao veemente, exuberante, e imprevista do criador meridional; no tem enfim que provar como todas as influncias notadas se sentem apenas superfcie da obra do grande artista, essencialmente original, que escreveu, na sua primeira mocidade, as extraordinrias pginas reunidas neste livro.VINa inteno de Ea de Queirs os Folhetim da Gazeta de Portugal apesar da sua desconexo episdica, formavam srie, obedeciam a um pensamento, constituam um corpo, uma obra sistemtica, cujos captulos, separados por lacunas que nunca foram preenchidas, podem, cronologicamente, reunir-se nos seguintes dois grupos:ASinfonia de Abertura(1).....................................1866 .................Outubro 7Macbeth......................................................... 1866 .................Outubro 14Poetas do Mal (1).............................................1866 .................Outubro 21A Ladainha da Dor ..........................................1866................. Outubro 28Os Mortos .....................................................1866 ................. Novembro 4As Misrias: I Entre a Neve........................... 1866 .................Novembro 13Farsas (1).........................................................1866................. Novembro 18Ao Acaso (2) ...................................................1866 .................Novembro 27O Miantonomah ..........................................1866 .................Dezembro 2Misticismo Humorstico................................... 1866 .................Dezembro 23

(1) No includos na primeira edio.(2) Com o ttulo A Pennsula na primeira edio

BO Milhafre (1)...................................................1867 .................Outubro 6Lisboa (2).........................................................1867 ..................Outubro 13O Senhor Diabo (3)............................................1867 .................Outubro 20Uma Carta (a Carlos Mayer) ............................1867..................Novembro 3Da Pintura em Portugal ....................................1867................. Novembro 10O Lume ..........................................................1867................. Novembro 17Mefistfeles (J. Petit)(4).....................................1867................. Dezembro 1Onflia Benoiton (5) ..........................................1867 .................Dezembro 15Memrias de uma Forca ...................................1867................. Dezembro 22

(1) Tem uma epgrafe e primeira parte omitidas na primeira edio.(2) Tem uma pequena introduo omitida na primeira edio.(3) Tem uma introduo omitida na primeira edio.(4) Tem uma parte crtica relativa ao baixo Jlio Petit, ento cantando em S, Carlos, de Lisboa, omitida na primeira edio.(5) No includo na primeira edio.

O primeiro Folhetim em data Maro de 1866 as Notas Marginais, tendo por epgrafe as frases interrompidas de uma trova Bernardim Ribeiro, e influenciado, como j mostrei, pela traduo francesa das poesias de Heine, foi inserido, na Gazeta de Portugal, fora do seu lugar.Porque os Folhetins tm uma introduo formal uma Sinfonia de Abertura, que se publica a 7 de Outubro de 1866 e continuam, quase sem interrupo, semanalmente, aos domingos, at 23 de Dezembro do mesmo ano. Uma longa ausncia de Lisboa interrompe a publicao: dos primeiros dias de Janeiro a 1 de Agosto de 1867, Ea de Queirs reside no Alentejo, onde funda e redige o Distrito de vora, peridico poltico, literrio e noticioso. Os Folhetins da Gazeta de Portugal recomeam no dia 6 de Outubro, e prosseguem at 22 de Dezembro do mesmo ano de 1867.A Sinfonia de Abertura Gazeta de Portugal, 7 de Outubro de 1866. prepara, com efeito, o esprito para a ideia que os diferentes trechos depois vo desenvolvendo. Neles a fantasia livremente, irregularmente, fragmentariamente esboa, sugere, deixa entrever, faz sentir essa ideia, em- episdios, em alegorias fantsticas e como que musicalmente vagas.Trata-se, na Sinfonia de Abertura, das imagens dos Deuses, desde os templos de Elora onde eles andavam ferozes por entre os elefantes at cruz de Jesus, onde um rouxinol veio pousar cantando de amor [...] desde a matria negra e informe, at s serenidades vivas para alm das nuvens, das estrelas e dos caminhos lcteos.Nestas viagem ideais os Deuses tm uma companheira que Intimam ente estabelece a sua comunicao com os homens, a Arte.Da histria visionria desta na longa peregrinao divina a Sinfonia de Abertura, faz-nos ouvir adagio ou vivace, piano ou forte algum trechos maravilhosamente instrumentados...Quando os povos na Caldeia, no Egipto. na Grcia plantavam tendas debaixo das estrelas..., e, mais tarde, em cus de profundo misticismo cristo, nas regies transcendentes, prodigiosamente luminosas, onde as prprias estrelas so apenas, gotas de sombra... Constelaes, gotas de sombra, in O Milhafre.. 20Entrevem-se, flutuando as imagens, as diferentes Artes:A Arquitectura que se abriu em transparncia e transfiguraes, como se quisesse ser, no espao, a morada suspensa do esprito.A Msica enfim liberta dos contornos, dos coloridos, e das gravidades, dissipando-se nos amolecimentos divinos......no terror da Natureza, onde o Diabo era visvel... a alma alem tinha todo a sorte de penumbras, de desfalecimentos, de plidos silncios que se exalavam divinamente no canto...Esvai-se aquela melopeia grega esfarrapada pela aspereza do latim dos versculos...Aparece Lutero, a alma alem... que desfalecia naquelas melancolias imensas que Alberto Drer revelou...Mas a Msica, que a alma, o espiritualismo, o vapor da Arte, sumiu-se com a aproximao do Renascena que vinha cheia das rebelies da carne...At que outra vez se produziu, na nossa poca, como a Grcia produziu a Escultura, como a Europa gtica produziu a Arquitectura...Chega-se assim aos tempos modernos:A alma comeou a entrever cimos luminosos, por entre os astros, que se chamavam Homero, squilo, Dante, Miguel Angelo, Rabelais, Cervantes e Shakespeare. A alma queria subir aqueles escarpamentos divinos para colher a flor do ideal. Veja-se Vtor Hugo, William Shakespeare: principalmente, livre II, Les Gnies., II. Veja-se tambm Macbeth no presente volume. 21A melancolia d cor cio Romantismo...O tipo em quem se resumem todos os sofrimentos, todas as desesperanas, as melancolias, as incertezas, as aspiraes. os lirismos desta poca plida e doentia:Fausto, Manfredo, Lara, Antony, Werther, Rolla, D. Juan... que saem ento de toda uma- mocidade plida e nervosa, de toda uma Primavera....O indefinido da alma de D. Juan revelado pela arte eis a a Msica...,aquela vaga Oflia que se chama Msica..., uma voz Inesperada em que se entendem os desconsolados... Veja-se uma outra profunda definio de Msica em Macbeth, no presente vo1ume.A Msica deve ser a voz de tudo aquilo que ali est silencioso. sem ter a faculdade de se exprimir e ns termos a possibilidade de o compreender. de notar que Macbeth reproduzido nas Prosas Brbaras foi escrito em 1866. Entre os compositores de pera mencionados nesse escrito de Ea de Queirs, no se acha citado o Ricardo Wagner, cujas peras, Tanhauser (1845) e Lohengrin (1850), j existiam. que essas obras no tinham ainda sido executadas em Lisboa.. Constituiu-se enfim a msica moderna:A Alemanha... a loura Alemanha de ideal seriedade, luminosa, um tanto nuvem, cheia de vapores e de constelaes... A Alemanha que pensa com o doce rudo inefvel, forma a sua Msica que o vapor da Arte...E, ao lado dela, a Msica italiana.., tendo o quer que seja de palpvel.., de ondeante como seda invisvel.Tal , muito vagamente, a significao sentimental da Sinfonia de Abertura.Os escritos coligidos neste volume so assim, em prosa, os Cantos Fragmentrios de um imenso Poema Fantstico:O Universo um infinito de almas. As coisas tm sentimentos humanos que se disseminam, sem se alterarem, com a dissociao de todas as morres. Os que morrem vo difundir-se nas coisas sem nas decomposies inteiramente aniquilarem a personalidade, passando por formas inferiores no homem, e por formas purificadas na Natureza. Na alma que se concebe, ria, o mal: o corpo, a matria, essencialmente inaltervel, volta sempre pureza natural. Com sucessivos ideais, e sucessivas e profundas comoes, o homem gera, para rodo o sempre, deuses que o dominam, que vivem de uma vida sentimental e independente, mas que fogem, uns ante os outros, para desvairados destinos, que se asilam, errantes, em todos os grandes centros de vida misteriosa da Criao, que s fazem seduo sob a forma, ainda anglica e j irnica, do Diabo, que se dispersam na Natureza transformadora.Com este vago tema geral, o Poema em prosa de Ea de Queirs propunha-se ser a expresso das mais profundas regies do sonho, da viso, do indeterminvel, do substrato fantstico que se encontra sob a realidade evidente; queria tornar Sonoras as capacidades de vibrao musical que formam a intimidade de todos os seres todas as vibraes impossveis de completamente reduzir aos sons calculados de uma escala musical; era a fantasia tocando, um momento apenas, o mundo da realidade, para logo se afastar dele, voando, exilada pela incompreenso, pela insensibilidade, pela determinao ntida e clara das foras sensatas do esprito. E assim, aps os belos deuses de mrmore, que se escondem fugitivos nas florestas ainda enevoadas dos sonhos de religies anteriores, os anjos sublimados ou rprobos do cristianismo a prpria ironia espiritualista de Satans, o prpria plida e doce figura de Jesus vo igualmente perder-se e ser esquecidos: morreu a fantasia. So fteis todas as iluses.Reina o clculo demonstrvel Oh, egosmo humano, os que vo morrer sadam-te! Ea de Queirs, O Milhafre, Introduo, Gazeta de Portugal, 6 de Outubro de 1867. .Heine tambm j contara o exlio dos antigos Deuses De lAllemagne. Les Dieux en Exil, IX partie, pp. 181-242. La mer du Nord, Les Dieux de la Grce (cito as tradues francesas que Ea de Queirs conheceu)., e Michelet La Sorcire. recorda o brado, Le grand Pan est mort! Veja-se XIII de Notas Marginais. que se ouviu pelo vasto mundo ao aparecer de novas crenas.O que caracteriza este momento da vida literria de Ea de Queirs a sincera comoo do criar fantstico, sem excluir inteiramente, j ento, a ironiaque mais tarde o inseparvel instrumento de trabalho do seu esprito fornecedora de to delicadas velaturas, ou de toques to vivos e reais a todas as suas obras. Consegue assim idear um inundo imaginrio, um cenrio de alegorias; sabe que esse mundo ilusrio, que s parece povoado por metforas e enternece-se, e comove-se, e comunica essa ternura e essa comoo. como se as produzissem realidades, sentindo e fazendo sentir, ao mesmo tempo. inexplicavelmente. que com efeito existe uma profunda realidade, vagamente simbolizada por todas essas imagensAs vises so as atitudes fantsticas e desmanchadas que a sombra d s verdades: Misticismo Humorstico, no presente volume.... ceux qui ont mis leur foi dons les rves comme dans les seulets ralits. Edgar Allan Pe,Eureka, trad. de Ch. Baudelaire que Ea de Queirs conheceu: ...to those who feel rather than to those think to the dreamers and those who put faith in the dreams as in the only realities... Edgar Allan Pe, idem, II, p. 117. 1876, New York. .Como quer que episodicamente fale de assuntos inteiramente reais da Amrica do Norte, de Lisboa, da vida de estudante de Coimbra sempre o mesmo substrato visionrio da realidade para que o seu esprito procura expresso.Esta situao especial do esprito de muitos artistas no foi ainda, parece-me, suficientemente estudada pela crtica e pela filosofia da arte.VIIEa de Queirs tinha, por aquele tempo, igual exuberncia e originalidade de fantasia em verso; e sentia muitas vezes a necessidade de metrificar quase o mesmo gnero de necessidade de som e ritmo que o fazia com frequncia cantarolar, em voz baixa, pequenas frases musicais, sempre erradas, sempre fora de tom, mas sempre impregnadas das mais patticas inflexes Quando se deu, em Paris, o Hamlet com msica de Ambroise Thomas, Augusto Machado leu-nos ao piano a partitura.H nela uma cantiga fantstica popular norueguesa que eu ouvi mais tarde a Cristina Neilson, que era escandinava, e impressionou francamente Ea de Queirs.A poesia dessa cano uma balada sobre assunto fantstico do Norte que ento preocupava o esprito de Ea de Queirs.Desde ento ouvia-se cantarolar, a meia voz dolorosa e melodramtica, como seguindo as suas vises: Calme et blonde, dort dans leau profonde la Willis, au regard du feu.... .Os versos que compunha eram de um enorme relevo pela originalidade da concepo, dos eptetos e das imagem, e conservavam ainda a fluncia romntica, apaixonada, fantstica, dos primeiros escritos, quando j ele a havia quase inteiramente eliminado da sua prosa realista. Mas teve sempre grande dificuldade em compreender e sentir os processos tcnicos da metrificao.Datam exactamente do mesmo perodo dos escritos coligidos no presente volume as linhas seguintes, que deviam, na inteno do autor, ser versos alexandrinos Onflia Benoiton, Gazeta de Portugal, 15 de Dezembro de 1867.:

Sat tenebroso, trgico fulminado,Tu vencers em mim o ntimo Deus bomNo com as armas bblicas com que bateste os astros,Mas vindo unicamente vestido Benoiton!

Mas de pouco depois a seguinte admirvel poesia, mais tarde publicada com a assinatura de C. Fradique Mendes Os versos citados na Revista Moderna (20, Novembro 1897, p. 324) no so de Ea de Queirs.Nunca ele publicou na Revoluo de Setembro, em folhetins como tambm na Revista Moderna se afirma os primeiros cantos de um poema, A Tentao de S. Jernimo. Existe, com efeito, de Ea de Queirs, mas indito, um poemeto intitulado A Morte de S. Jernimo.. :

SERENATA DE SAT S ESTRELAS

Nas noites triviais e desoladas,Como vos quero, msticas estrelas!.Lcidas, antigas camaradas...Gotas de luz no frio ar nevadas,Pudesse a minha boca inda beb-las!

No vos conheo j. Por onde eu ando!...Sois vs msticos pregos duma cruz,Que Cristo estais no Cu crucificando?Quem triste pelo ar vos foi soltandoProfundos, soluantes ais de luz!

viagem nas nuvens desmanchadas!Doces seres do Cu entre as estrelas!Hoje s ais, ou lgrimas caladas...Ai! sementes de luz mal semeadas,Ave do Cu, pudesse eu ir com-las!

Triste, triste loucura, flors da cruz,Quando vos eu dizia soluando: Afastai-vos de mim cardos de luz! Pudesse eu ter agora os ps bem nus,Inda por entre vs i-los rasgando..............................................................Hoje estou velho, e s, e corcovado;Causa-me espanto a sombra duma estola;Enche-me o peito um tdio desolado:E corro o mundo todo, esfomeado,Aos abutres do cu pedindo esmola.

Eu sou Sat o triste, o derrubado!Mas vs estrelas sois o musgo velhoDas paredes do Cu desabitado,E a poeira que se ergue ao ar calado,Quando eu bato com o p no Evangelho!

O Cu cemitrio trivial:Vs sois o p dos deuses sepultados;Deuses, magros esboos do ideal!S com rasgar-se a folha de um missal,Vs cas mortos, hirtos, gangrenados.

Eu sou expulso, roto, escarnecido;Mas a vs j ningum vos quer as leisOh! velho Deus, oh! Cristo dolorido!Lembrai-vos que sois p enegrecidoE cedo em negro p vos tomareis. Revoluo de Setembro, 29 de Agosto de 1869..

Dois episdios mostraro o seu ento quase permanente desejo de improvisao potica.Uma noite no Vero de 1867 ou 1868, depois de cear o Ea de Queirs, o Salomo Saragga e eu fomos de passeio, conversando, at Belm.A noite estava muito quente. Havia uma grande claridade de lua cheia.Seriam umas duas horas de madrugada quando chegmos praia da Torre.Quase varado na areia, havia um barco. Metemo-nos dentro. A mar enchente fez-nos flutuar. A continumos a nossa conversao at que o dia apareceu e o Sol se levantou por detrs da casaria e dos altos de Lisboa.Desembarcmos ento e dirigimo-nos para Belm, com fome, em busca de uma. taberna ou restaurante. Queramos almoar ali mesmo; continuando, beira do rio, a nossa discusso. Mas conhecamos os nossos trs apetites, e verificmos, reunindo todo o dinheiro, que ele apenas pagaria um insuficiente repasto.Que fazer? Tenho uma ideia disse o Ea de Queirs, fazendo o resto consagrado de bater na testa. Tenho uma ideia venial acrescentou, erguendo tremulamente os braos ao cu: Sigam-me.E negro, linear, curvo, agitando a badine na mo como se esgrimisse, com passos largos e rtmicos que pareciam saltar obstculos invisveis, a sombra da figura esguia e imensa projectada pelos raios horizontais do sol-nascente, Ea de Queirs adiantou-se em direco calada que leva de Belm Ajuda.Salomo Saragga e eu amos atrs, famlicos, murmurando.Seriam quase 5 horas da manh.Junto da Igreja da Memria o Ea de Queirs dirigiu-se a uma casa baixa, de janelas cerradas, e bateu.Os habitantes da casa estavam ainda evidentemente no melhor dos seus sonos.O Ea de Queirs explicou-nos: Mora aqui o Manclia, a quem vamos dar um tiro. S ele nos pode salvar neste deserto.E continuou a bater durante minutos.Por fim ouviu-se falar dentro da casa. Algum abriu a porta resmungando, e vimos diante de ns uma cara larga, um bigode castanho, e uns olhos, entre terrveis e risonhos, sob uma grande trunfa de caracis desordenados. Era o Loureno Malheiro. Menino contou o Ea de Queirs estamos esfomeados aps muitas horas de incalculvel criao romntica. Jurmos no morrer antes de produzirmos trs obras de gnio. D-nos entretanto dinheiro para almoar. Mas olha l... Comunicmos toda a noite, espectralmente, no Restelo, com as armadas portuguesas que dali foram ao descobrimento da ndia e do Brasil: d-nos pois dinheiros antigos e sugestivos sequins, dobres, florins, ducados, escudos, peas, ou, quando menos, pintos...O Malheiro foi dentro e trouxe trs moedas de cinco tostes. Ouvirs falar da tua generosa ddiva, Manclia disse a Ea de Queirs, apertando-lhe as mos com comoo e solenidade.Voltmos a Belm.E, enquanto na cozinha da taberna, onde bebiam marinheiros e uma guitarra gemia frases lancinantes do Fado, se preparava a pescada com batatas e a caldeirada que encomendramos, o Ea de Queirs e eu, num quarto do primeiro andar, organizvamos o seguinte problema cuja glosa e soluo seria enviada ao providencial Loureno Malheiro:Cristo deu-nos o amor,Robespierre a liberdade;Malheiro deu-nos trs pintos:Qual deles deu a verdade?O Salomo Saragga fez-nos uma sbia dissertao sobre a prosa rtmica dos livros hebraicos e declarou que, como semita puro, no pudera jamais fazer versos mas comporia, para o caso memorvel, um salmo penitencirio sobre a vaidade da pescada cozida e das caldeiradas humanas.Almoando, o Ea de Queirs e eu glosmos e resolvemos o problema em quatro quadras e dcimas contadas ali logo, ao acompanhamento do Fado que continuava a ouvir-se chorar na cozinha do rs-do-cho.Existem as minhas quadras mas perderam-se as dcimas de Ea de Queirs, que com efeito sobrescritmos para o Loureno Malheiro, dcimas cheias de graa e fantasia.De outra vez dois dos nossos amigos o capito Joo de S e o Zagalo convenceram-nos a irmos com eles a uma espera de touros.Na volta, pela madrugada, abancmos a cear numa tasca do Arco do Cego.ramos, a esse tempo, um grupo numerosa. Apareciam amigos, conhecidos, desconhecidos. Ns, expansivamente, amos convidando. Eles iam comendo, bebendo, desaparecendo. Quando rompeu o dia e quisemos ns mesmos partir, descobrimos que havamos gasta, em bacalhau, iscas de fgado, azeitonas e Colares, um dinheiro que no tnhamos na algibeira.Comramos num ptio onde havia galinhas, e uma. horta com couves e parreira.Ao lado, dava para esse ptio uma casa estreita, de janelas sem vidraas, onde se guardavam frutas, legumes secos e feno. Era madrugada.O Ea de Queirs e eu, j sonolentos, resolvemos esperar ali, at tarde seguinte, que o Joo de S e o Zagalo nos viessem desempenhar com o dinheiro necessrio a pagar as nossas dividas.Cerca do meio-dia acordmos sobre os molhos aromticos do feno, rodeados por galinhas e pombos familiares. As paredes da casa onde dormramos eram caiadas.Ento depois de almoarmos ainda a crdito com dois lpis. devorando fruta, principimos a cobrir as paredes de um longo poema, difuso, indeterminado, lrico,. humorstico, tristssimo e hilariante, misto, como gnero do Childe Harold e D. Juan de Byron, do Mardoche e Namouna de Musset, do Intermezzo de Heine, e da Fobia de Francisco Palha. Este exerccio durou 4 ou 5 horas. Duas das paredes da casa ficaram, at altura de homens, cinzentas de versos.Sinto hoje no haver copiado, e ter completamente esquecido, a parte do Ea de Queirs nesta colaborao extravagante: lembro-me nitidamente de que havia nessa parte trechos espantosos pelas imagens originais, pela fantasia, pela graa, pelo imprevisto.VIIIAinda dormamos, um dia que o Ea de Queirs ficara em minha casa, quando porta do quarto apareceu uma pequena cabea de cabelo muito curto, faces plidas, feies midas, ligeiro buo sobre os beios grossos e uns olhos pequenos. piscos, risonhos e maliciosos. Por cima desta cabea via-se outra de longo cabelo negro e crespo, nariz aquilino, olhos grandes, bigode audaciosamente retorcido, e mais abaixo uma terceira cabeo rosada, de olhos avermelhados, cabelos aos caracois louros, bigode lourssimo pendente.Acordmos. Lus! Manuel! exclamou Ea de Queirs bocejando. Chavarro! conclu eu sentando-me na cama.Eram o conde Lus de Resende, seu irmo Manuel Depois conde de Resende. , e o Joo de Sousa Canavarro. Oficial da marinha portuguesa, e desde 1881 cnsul-geral de Portugal nas ilhas Sandwich. Chegmos do Pano. Vimos busc-los para jantar disse o conde de Resende. noite jantmos com efeito no Jos Manuel, ao Cais do Sodr um restaurante ento clebre, a preo fixo, onde causvamos devastao e horror, pela quantidade inverosmil do que comamos, discutindo toda a sorte de assuntos ininteligveis.Nesse jantar demonstrou-se o vasto ridculo do Romantismo; descreveu-se, discutiu-se e aprovou-se o Realismo na arte; fez-se a apologia violenta e clamorosa da frieza, da impassibilidade, da serenidade crtica, da correco nas ideias, nas maneiras, no estilo, na toilette a apoteose de todas as correces. Terminmos, depois da meia-noite, abraando efusivamente o velho Andrews o ingls que tinha uma lenda misteriosa, e ali jantou, durante anos, despejando por noite, em silncio, com mtodo, lentido e continuidade, trs garrafas de vinho do Porto Veja-se o tom em que Ea de Queirs fala dos seus escritos no Gazeta de Portugal, ao tempo da viagem ao Egipto, in A Correspondencia de Fradique Mendes.. .Tempos depois o Ea de Queirs partia em: viagem com o conde de Resende: Le comte de Rezende, grand amiral du Portugal et chevalier de Queirs diziam os jornais do Cairo. Assistiram inaugurao do Canal de Suez, visitaram a Egipto e a Palestina.Na Primavera de 1869, estvamos uma tarde o Antero de Quental e eu na casa que ento habitvamos a S. Pedro ele Alcntara, quando entrou o Ea de Queirs, chegado, havia pouco, do Oriente, mas que ainda no vramos.Trajava uma longa sobrecasaca aberta de cuja botoeira saa, com coloridos, um enorme ramo de flores; cobria-lhe o em relevo, um plastron que nos pareceu imenso, sobre a qual se erguia um colarinho altssimo, onde a custo a cabea oscilava. Os punhos, que botes uniam pelo centro com ama corrente de ouro, encobriam grande parte das mos metidas em luvas cor de palha. Vestia calas claras, arregaadas alto, mostrando meias de seda preta com largas pintas amarelas como ouro e Sapatas muito compridos, ingleses, de polimento. Tinha na cabea um chapu alto, de plo de seda brilhantssimo. E olhava-nos com um monculo que lhe estava sempre a cair e que ele, por isso, elevando as sobrancelhas e abrindo a boca em esgares sarcsticos, amide reentalava junto da lacrimal do olho direito.Abramo-lo com entusiasmo e cobrimo-lo de epigramas.Contou-nos casos das suas viagens, descreveu-nos tipos, cenas nos bazares doCairo, no deserto egpcio os guias, os sheiks, e noite, em volta das fogueiras, os camelos, de expresso humorstica, sorrindo ironicamente, e alongando as cabeas como que para escutar o narrador, por sobre os ombros dos bedunos atentos, graves e de pernas encruzadas. Analisou, minuciosamente, as sensaes que lhe dera, no Cairo, o uso do haschisch, e as vises fantsticas que nos preparava porque de e o conde deResende haviam-nos trazido haschisch misturado a geleia, a bolos, e a pastilhas que se fumavam em cachimbos especiais.Mas pretendia haver voltado doentssimo, de uma extrema debilidade, de uma mrbida impressionabilidade nervosa, e agitava, de contnuo, um grande leno perfumado de seda branca, com que limpava a testa e cofiava a barba, que atirava obre a mesa, interrompendo-se para entalar o monculo e exclamar em voz desmaiada: Meu Deus! como me sinto mal! Vou ter o meu delquio! meu apoplet! Meninos, depressa, os meus sais... onde esto os meus sais?!...E tirava, com efeito, da algibeira, um longo frasco de sais que sofregamente aspirava.Ficar para sempre o prazer delicado de ler os livros de Ea de Queirs; mas perdeu-se o prazer, ainda talvez maior, de o ouvir, quando ele conversava, quando ele contava, quando ele representava algum personagem que quisesse imitar ou a que quisesse dar vida. Parecia, com o seu forte e inesperado poder de expresso, de imagem, de rplica, de graa, o representante de uma raa especial diversa da portuguesa, ou de qualquer outra, falando, em Portugal, uma lngua nova.Ouvimo-lo toda aquela tarde, jantmos com ele no o podamos largar.As ideias estticas de Ea de Queirs haviam-se, a esse tempo, modificado e entrado numa fase de transio.Citava especialmente a Salamb e a Tentao de Santo Anto Uma revista francesa (Artiste) havia, em 1856, publicada alguns fragmentos desta obra cuja verso definitiva s apareceu em 1875. de Gustavo Flaubert. Preocupava-se com a perfeio da forma, com a realizao da cor verbal, segundo este ltimo literato. Lia tambm a Vida de Jesus, o So Paulo, de Ernesto Renan, e as Memrias de Judas, de F. Petruccelli della Gattina.Foi sob estas influncias que com as impresses locais da sua recente viagem Palestina comeou, em Lisboa, a escrever a Morte de Jesus, publicada em folhetins, na Revoluo de Setembro, de 13 de Abril a 8 de Julho de 1870.Mas escrevera desta obra, alm do que se publicou uns captulos que ele me leu, e depois sem dvida destruiu ou se perderam.IXEntre os Folhetins da Gazeta de Portugal e a Morte de Jesus na Revoluo de Setembro, medeiam quase 3 anos.Passou mais tempo ainda. A evoluo crtica do esprita de Ea de Queirs continuava.Um dia veio mostrar-nos, ao Antero de Quental e a mim, o primeiro esboo, muito desenvolvido to extenso que levou vrias noites a ler de um romance intitulado Histria de Um Lindo Corpo.Foi, julgo eu, a sua primeira tentativa na chamada Literatura Naturalista ou Realista. A ideia fundamental da obra era, at certo ponto, se bem me recordo, a do Affaire Clmenceau, de Alexandre Dumas filho; mas a execuo, j, em grande parte, devida influncia dos processos da Madame Bovary e da Educao Sentimental de Gustavo Flaubert.Pouco depois em 1871 Ea de Queirs descrevia, suma das Conferncias Democrticas do Casino, o Realismo na Arte, expondo as ideias praticadas por Flaubert e Courbet, e teoricamente descritas, por Proudhon, no livro Do Principio da Arte e do Seu Destino Social.O fim da Arte foi, doutrinalmente, desde ento, para Ea de Queirs, a reproduo exacta da Natureza, da realidade, impessoal, impassvel. A interveno da ironia 36 Nem o humorismo, nem a ironia, existem no esprito e na literatura portuguesa.Camilo tem a graa, a chalaa, o sarcasmo. No irnico, nem humorista.Queirs, sim: por isso to pouco portugus no estilo e nas formas do seu esprito, se bem que o seja nos assuntos dos seus romances de pois das Prosas Brbaras.A ironia, to essencial e tpica parte da sua personalidade, da sua esttica, do seu estilo de seu mestre, Reine no aparece ainda ento (no tempo das Prosas Brbaras). representa a forma superior, a nica forma admissvel da opinio do artista se manifestar, e a correco necessria para qualquer excesso de sentimento.Foi por este tempo que eu lhe aconselhei a reunio em volume dos antigos Contos Fantsticos da Gazeta de Portugal e lhe reli, se no me engano, As Memrias de Uma Forca, de que se havia quase esquecido Veja-se no presente volume. .Ao ouvir a sua obra primitiva, Ea de Queirs soltava gargalhadas sarcsticos, gritos de indignao contra as imagens, os assuntos, o estilo: no compreendia como pudesse ter escrito assim, to pessoalmente, to apaixonadamente, to vagamente, com tanto desleixo berrava ele na criao das imagens. na construo da frase e no emprego dos vocbulos.Mas depois de uma longa discusso concluiu dizendo-me: Tens talvez razo, com eleito est claro, tens razo Talvez se deva republicar. isso em livro. E acrescentou muito grave: Mas sob o titulo crtico e severo de Prosas Brbaras.No pertence a esta Introduo descrever as subsequentes fases do desenvolvimento esttico e da obra literria de Ea de Queirs, e eu devo resistir tentao de demonstrar aqui como ele foi um dos artistas mais eminentes da Literatura portuguesa de todos os tempos e de todas as Literaturas, nos ltimos anos do sculo XIX.Juntarei ainda, apenas, uma ltima recordao.Eu lamentara sempre que Ea de Queirs houvesse abandonado o mundo de criaes fantsticas onde a sua imaginao to maravilhosamente vivera algum tempo.Um dia, no Vero de 1891, estava o Ea de Queirs em minha casa por esse tempo, em Vaucresson, numa clareira da floresta de Saint-Cloud, no longe de Paris.Ento, passeando sob as rvores do macio de alto furte que rodeio os lagos romnticos de Saint-Cucufas, contou-me ele: Sabers, porventura com satisfao, que estou seguindo o teu antigo conselho: enevoei-me outra vez, totalmente, no fantstico quase naquele velho fantstico da Gazeta de Portugal, feito agora com menos abutres, e em prosa talvez menos barbara que a desses longnquos tempos: estou escrevendo a vida diablico e milagrosa de S. Frei Gil. E por sinal dir-to-ei agora aqui. quando justamente nos achamos sob os arvoredos que a nossa riqussima lngua portuguesa me parece deficiente em cores com que se pintem selvas; e tambm te confiarei que. tendo metido, por minhas prprias mos, o santo bruxo numa floresta, no sei como o hei-de tirar de l.Sintra, Setembro de 1903.Jaime Batalha Reis.