Proslógio - S. Anselmo de Cantuária

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Confira um trecho dessa belíssima obra. Já à venda no site da Concreta: https://editoraconcreta.com.br/crowdpublish/compre-o-seu-proslogio/

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Proslógio

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Santo Anselmo de Cantuária

ProslógioEdição bilíngüe

Tradução:

Sérgio de Carvalho Pachá

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Proslógio, Santo Anselmo de Cantuária © Editora Concreta, 2016

Títulos originais: Proslogion

Quid ad haec respondeat quidam pro insipiente Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli

O texto latino utilizado nesta obra é o da S. Anselmi Cantuariensis Archiepiscopi Opera Omnia, edição crítica de Franciscus Salesius Schmitt, O.S.B., 3 vol., Edimburgo, Thomas Nelson & Sons, 1947.

Os direitos desta edição pertencem àEditora Concreta

Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – Telefone: (51) 9916-1877 – e-mail: [email protected]

Editor: Renan Martins dos Santos

Coordenador editorial: Sidney Silveira

Tradução: Sérgio de Carvalho Pachá

Revisão: Emílio Costaguá

Capa & Diagramação: Hugo de Santa Cruz

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica

ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

www.editoraconcreta.com.br

Ficha Catalográfica

Anselmo de Cantuária, Santo, 1033-1109A618p Proslógio [livro eletrônico] / tradução de Sérgio de Carvalho Pachá, edição de

Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2016. 124p. :p&b ; 16 x 23cm

ISBN 978-85-68962-13-8

1. Teologia. 2. Filosofia. 3. Filosofia medieval. 4. Metafisica. 5. Cristianismo. 6. Catoli-cismo. 7. Espiritualidade. I. Título.

CDD-230.2

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COLEÇÃO ESCOL ÁSTICA

Foram características marcantes do período escolástico a elevação da dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos,

a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela ra-zão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da materia prima a Deus.

O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício feno-menológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno: o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes.

Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgens-tein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.

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Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renas-centista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas, mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto.

Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciati-vas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens, para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados.

No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na lon-gínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma es-pécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigu-rado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada terra dos relativismos.

Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grossetes-te, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica.

Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procurare-mos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será o de não lhes desfigurar o pensamento.

Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro.

Sidney Silveira Coordenador da Coleção Escolástica

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Agradecimentos aos colaboradores

Através de campanha no website da Concreta para financiar a tradução do Proslógio, 432 pessoas fizeram sua parte para que este livro se tornasse reali-dade, um gesto pelo qual lhes seremos eternamente gratos. A seguir, listamos aquelas que colaboraram para ter seus nomes divulgados nesta seção:

Adailso JaneskoAdeilton Dutra GomesAlan de OliveiraAlex Quintas de SouzaAlexandre LemeAlexandre Mariano dos Santos RochaAllan Victor de Almeida MarandolaAluísio DantasÁlvaro PestanaAlysson Souza MouraAmanda Jheniffi Cavalcante SoaresAmantino de MouraAna Nely Castello Branco SanchesAnderson Mello de Carvalho

André Arthur CostaAndré Augusto CustódioAndré Bender GranemannAndré Caniné de Oliveira MachadoAndré QuintoAndrea RochaAntônio AraújoAntonio Carlos Correia de Araújo Jr.Antonio Paulo de Moraes LemeArthur DutraAruan Baccaro de FreitasAssunção MedeirosAugusto Alves de CarvalhoAugusto Carlos Pola Jr.

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Aulenio JúniorAureliano Caldeira Horta FrançaBenedito Luiz Pinheiro MorettoBernardo Jordão Nogueira de SáBruno José Queiroz CerettaBruno ValliniCarla de CarliCarlos A. CrusiusCarlos Alexander de Souza CastroCarlos Eduardo de Aquino de PáduaCarlos Eduardo de Aquino SilvaCarlos Jesus de Abreu Pereira FilhoCláudia MakiaClaudia Pompein Lizardo GomesCleber Eduardo da PaixãoCleto Marinho de Carvalho FilhoClovis AmaralCristiano EulinoCristiano MoraCristiano Nunes LaureanoCristiano Roberto AzevedoCristina GarabiniCristoph KlugDaniel OliveiraDavi AlbuquerqueDavid DamascenoDavid de Carvalho NisnerDelania Gomes VieiraDiego Gonçalves de AraújoDiego JácomeDiego LuvizonDorival Vendramini Jr.Edgar de Almeida CabralEdilson LinsEdinho LimaEdson BezerraEduardo AguiarEduardo César SilvaEduardo Furtado da Silva

Eduardo GomesEdvaldo RamosElaine Cristina Moreira BatistaElisabete MirandaElizabeth Ferreira DiasElpídio FonsecaEly PintoEly SilveiraEmanuel do Rosário Santos NonatoEric Cari PrimonÉrico Raoni Santos da SilvaEstêvão Lúcio SobrinhoEttore Nicolau Jose da RochaEvandro José Ferrez VicenteEvandro MaraschinEverton S. da SilvaFabio AguilheiroFabio DiasFábio KurokawaFábio Salgado de CarvalhoFabricio Freitas AlvesFelipe AguiarFelipe Corte LimaFelipe KollerFelipe Leandro Félix FerràFernando Antonio Sabino CordeiroFernando Cenjor RodriguesFernando de OliveiraFernando Henrique Pereira MenezesFernando Longuini AlvesFernando Luiz Ferreira de AlmeidaFernando Schuind da Costa GuedesFlavio Aprigliano FilhoFortunato BaiaFrancisco Heládio Cunha dos SantosFrancisco Igor de Souza e SilvaGabriel Henrique KnüpferGabriel Melati

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Gabriel Pereira BuenoGabriel ZavitoskiGabriela MarottaGenésio SaraivaGilberto LunaGio Fabiano Voltolini Jr.Giuliano Araújo Lucas de CarvalhoGiuseppe MallmannGleydson dos Santos Teixeira AvelinoGuilherme Batista Afonso FerreiraGuilherme BommGuilherme MezzarobaGuilherme Pinheiro GuedesGustavo BertocheGustavo de AraújoGustavo Mendonça RezendeGustavo Saraiva FrioGustavo VulpiHaberlandt Pereira DuarteHeitor Dias Antunes PereiraHélio Angotti-NetoHellyandro de Sousa FerrazHenrique MiottoHermano ZanottaHugo KalilHumberto CampolinaIgor Silveira SantosIvanor BochiJackes Douglas Pessoa LourençoJanaina Maria FabricioJean Carlos Diniz LopesJefferson Bombachim RibeiroJefferson dos Santos AlvesJefferson NascimentoJessé de Almeida PrimoJoacir Souza VianaJoão Marcelo CrubellateJoão Marques da Silva Jr.João Romeiro

João Valdoir da Silva SantosJonathan de Alcântara F. NascimentoJonathan PinheiroJosé AlexandreJosé Armando Vinagre DelarovereJose BarbozaJosé Bernardino FigueredoJosé Mauricio de Oliveira Lima NetoJosé Ribeiro Jr.Juliana OliveiraJulius LimaJunior Torres BertaoKilmer DamascenoLeandro PassosLeandro Viotto CasareLeonardo ChoiLeonardo Ferreira BoaskiLeonardo Henrique SilvaLucas Amaral M. Gambetti de CastroLucas Bozzi MartinsLucas Mazzardo VelosoLucas Monachesi RodriguesLucia CagidoLucio NovaisLuís Felipe CruzLuis MoraisLuiz Alcides Nascimento AndréLuiz André Barra CouriLuiz de CarvalhoLuiz MatosLutio HenriqueLysandro SandovalMarcelo Assiz RicciMarcelo da Costa SperkaMarcelo Lira dos SantosMarciano Tadeu SouzaMarcio LopesMarcius Vinicius JúlioMarcos Biancardi

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Marcos PreciosoMarcos RangelMaria Aparecida dos Anjos CarvalhoMaria Auxiliadora da Cunha MeirelesMaria Beatrix AzevedoMaria Rita de AguiarMarinaldo CavalariMário Lucas CarboneraMarlon Rodrigo OliveiraMateus ColomboMateus CruzMateus Rauber Du BoisMatheus Ramos de AvilaMauricio CardosoMauro S. RibeiroMaximiliano Losso BunnMylene Carolina Moraes PessoaNicolas Barbieri BeoniNikollas RamosNilton José dos Santos Jr.Oacy JuniorOdilon Silveira Santos RochaOdinei DraegerOrlando TosettoPaulo de Tarso Gonçalves LeopoldoPaulo de Tarso IrizagaPaulo Henrique Brasil RibeiroPaulo Lasaro de Carvalho FilhoPedro BenedettiRafael BassoliRafael de Abreu Ferreira Rafael ManieriRafael PlácidoRaoni de Andrade Miaja GomesRenan CoutinhoRenato de Carvalho MunhozRenato ElesbãoRenato LembeRicardo Antônio Mohallem

Ricardo da CostaRicardo Luis KummerRicardo RangelRinaldo Oliveira Araújo de FariaRodolfo BertoliRodrigo de AbreuRodrigo de MenezesRodrigo FrancaRogerio PenhaRomildo Mousinho FerreiraRonaldo Fernandes da SilvaRonaldo TeixeiraRosemberg EstevamSamuel da Silva MarcondesSérgio EduardoSérgio Fernando Hennies LeiteSérgio MeneghelliSilvia Emilia de Jesus B. da CunhaSilvio CamargoSilvio José de OliveiraTarcisio MouraThiago Amorim CarvalhoThiago Aurélio de Freitas BrandãoThiago BatistaThiago BlakaTiago AurichTiago Borem SfredoTiago Campos RizzottoTiago ToledoTomoyuki HondaVicente TolezanoVictor Hugo BarbozaVinicius BetiniVinícius LeonardiVinicius P. BotelhoVitor Fonseca de MeloVitor Hugo Pontes ButragoWellington LimaWellington Vieira Rios

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Wendel Cesar Giglio OrdineWilliam Saraiva BorgesWillians Alves FreitasWilson JuniorWlamir Amós Saint Martin

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Sumário

Apresentação I. Esforço para harmonizar razão e fé 17II.Preâmbulos históricos: o Século de Ferro 22III. Feição teológica: um esboço da Escolástica posterior 24 IV. O ser acima do qual nada pode pensar-se 26V. Adversários e seguidores 30VI. Uma edição para os dias de hoje 35

PROSLÓGIO

Parte I - ProslógioPrólogo 39Capítulo 1 - Exortação à contemplação de Deus 41Capítulo 2 - Que Deus existe verdadeiramente 45Capítulo 3 - Que não se pode pensar que Deus não existe 47

Capítulo 4 - Como o insensato disse em seu coração 49 o que não se pode pensar

Capítulo 5 - Que Deus é tudo aquilo que é melhor que exista 49 do que não exista; e que, sendo o único que existe por si mesmo, fez tudo do nada

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Capítulo 6 - Como Deus é sensível, embora não seja corpo 51Capítulo 7 - Como Deus é onipotente, embora muitas 51

coisas lhe sejam impossíveisCapítulo 8 - Como é misericordioso e impassível 53Capítulo 9 - Como, sendo total e soberanamente justo, perdoa 53

os maus e com justiça deles se comiseraCapítulo 10 - Como sem ferir a justiça castiga e perdoa os maus 57Capítulo 11 - Como “todos os caminhos do Senhor são 59

misericórdia e verdade” e, contudo, “justo é o Senhor em todos os seus caminhos”

Capítulo 12 - Que Deus é a própria vida pela qual vive e que outro 59 tanto se pode dizer de seus demais atributos

Capítulo 13 - Como somente Ele é sem limites e eterno, ainda que os 61 outros espíritos também sejam sem limites e eternos

Capítulo 14 - Como e por que Deus é e não é visto 61 por aqueles que o buscam

Capítulo 15 - Que é maior do que quanto possa ser pensado 63Capítulo 16 - Que esta é “a luz inacessível que habita” 65Capítulo 17 - Que em Deus se encontra a harmonia, o odor, 65

o sabor, a brandura, a beleza, de uma maneira inefável que lhe é própria

Capítulo 18 - Que não há partes em Deus nem em 67 sua eternidade, que é ele próprio

Capítulo 19 - Que Deus não está num lugar nem 69 no tempo, mas tudo está nele

Capítulo 20 - Que Deus existe antes e depois de tudo 69 e até mesmo do que é eterno

Capítulo 21 - Se isto é “o século do século” ou “os séculos dos séculos” 71Capítulo 22 - Que somente Deus é o que é e Aquele que é 71Capítulo 23 - Que este bem é, ao mesmo tempo, o Pai, o Filho 73

e o Espírito Santo, e é o único necessário, por ser todo e exclusivamente bem

Capítulo 24 - Conjectura sobre a natureza e a grandeza deste bem 75Capítulo 25 - Quais e quão grandes são os bens reservados 75

aos que gozam a visão de DeusCapítulo 26 - Será esta alegria a “alegria plena” que promete o Senhor? 79

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Parte II - Livro escrito a favor de um insensato 83

Parte III - Apologia de Santo Anselmo contra Gaunilo 95

Bibliografia citada 119

S. Anselmi cantuariensis archiepiscopi Opera Omnia 121

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Parte I

Proslógio

(Proslogion)

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38 Santo Anselmo de Cantuária

Prooemium

Postquam opusculum quoddam velut exemplum meditandi de ratione fidei cogentibus me precibus quorundam fratrum, in persona alicuius ta-cite secum ratiocinando quae nesciat investigantis edidi: considerans illud esse multorum concatenatione contextum argumentorum, coepi mecum quaerere, si forte posset inveniri unum argumentum, quod nullo alio ad se probandum quam se solo indigeret, et solum ad astruendum quia Deus vere est, et quia est summum bonum nullo alio indigens, et quo omnia indigent ut sint et ut bene sint, et quaecumque de divina credimus subs-tantia, sufficeret. Ad quod cum saepe studioseque cogitationem conver-terem, atque aliquando mihi videretur iam posse capi quod quaerebam, aliquando mentis aciem omnino fugeret: tandem desperans volui cessare velut ab inquisitione rei, quam inveniri esset impossibile. Sed cum illam cogitationem, ne mentem meam frustra occupando ab aliis, in quibus proficere possem, impediret, penitus a me vellem excludere: tunc magis ac magis nolenti et defendenti se coepit cum importunitate quadem in-gerere. Cum igitur quadam die vehementer eius importunitati resistendo fatigarer, in ipso cogitationum conflictu sic se obtulit quod desperaveram, ut studiose cogitationem amplecterer, quam sollicitus repellebam.

Aestimans igitur quod me gaudebam invenisse, si scriptum esset, alicui legenti placiturum, de hoc ipso et de quibusdam aliis sub persona conantis erigere mentem suam ad contemplandum Deum et quaerentis intelligere quod credit, subditum scripsi opusculum. Et quoniam nec istud nec illud, cuius supra memini, dignum libri nomine aut cui auctoris praeponeretur nomen iudicabam, nec tamen eadem sine aliquo titulo, quo aliquem, in cuius manus veniret, quodam modo ad se legendum invitarent, dimitten-da putabam: unicuique suum dedi titulum, ut prius Exemplum meditandi de ratione fidei, et sequens Fides quaerens intellectum diceretur.

Sed cum iam a pluribus cum his titulis utrumque transcriptum esset, coegerunt me plures, et maxime reverendus archiepiscopus Lugdunen-sis, Hugo nomine, fungens in Gallia legatione Apostolica qui mihi hoc ex Apostolica praecepit auctoritate, ut nomen meum illis praescriberem. Quod ut aptius fieret, illud quidem Monologion, id est soliloquium, istud vero Proslogion, id est alloquium, nominavi.

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39Proslógio

Prólogo

Depois de ceder aos pedidos de alguns irmãos e dar à publicidade um opúsculo que servisse de exemplo de meditação sobre os mistérios da fé a um homem que, refletindo em silêncio consigo mesmo, tenta descobrir o que ignora, percebi que esta obra exigia a concatenação de muitos argumentos e me pus a pensar se não seria possível encontrar um único argumento que a si mesmo bastasse e demonstrasse que em verdade Deus existe e é o Sumo Bem, que não precisa de qualquer outro princípio, e do qual todos os demais seres precisam para existir e para serem bons: que, numa palavra, sustentasse com sólidas razões tudo que cremos da substância divina. Ao revolver, uma e muitas vezes, estes pensamentos, com a devida atenção, parecia-me, por vezes, que eu alcançaria o que buscava; outras vezes, contudo, parecia escapar-me para sempre. Desesperando, enfim, decidi abandonar minha busca como algo impossível de alcançar. Temendo que esse pensamento ocupasse inutilmente meu espírito e o afastasse de outros objetos de estudo que eu poderia perseguir de maneira proveitosa, quis afastá-lo de mim de todo em todo. Mas quanto mais tentava afastá-la e menos queria dar-lhe abrigo, mais e mais me perseguia e importunava. Assim foi que, certo dia em que eu estava cansado de resistir com veemência a essa importunação, no conflito mesmo de meus pensamen-tos se me ofereceu a idéia que eu já desistira de encontrar, e eu a acolhi com o mesmo empenho que pusera em rechaçá-la.

Pensando, pois, que aquilo que eu encontrara com tanto prazer poderia, se fosse escrito, causar o mesmo prazer a quem o lesse, escrevi, sobre esse tema e alguns outros, o opúsculo que se segue, no qual dou a palavra a uma pessoa que busca elevar sua alma à contemplação de Deus e se esforça por compreender o que crê. E, como nem o primeiro tratado nem este me parecem merecer o nome de “livros”, nem são suficientemente grandes para que se lhes anteponha o nome do autor, mas, sem embargo, precisam de um título que convide a lê-los quem quer que os tenha em mãos, chamei ao primeiro Exemplo de meditação sobre os fundamentos racionais da fé e ao segundo A fé em busca de apoio na razão.

Mas como foram, em seguida, transcritos por muitos com esses títulos, persuadiram-me algumas pessoas a apor-lhes meu nome; entre estas figurava o reverendíssimo arcebispo de Lião, Hugo, legado apostólico da Gália, que mo ordenou, com sua autoridade apostólica. Para que isto se fizesse com maior facilidade, a um chamei de Monologium, vale dizer, “solilóquio”, e ao outro de Proslogion, ou seja, “alocução”.

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40 Santo Anselmo de Cantuária

IExcitatio mentis ad contemplandum Deum

Eia, nunc homuncio, fuge paululum occupationes tuas, absconde te modicum a tumultuosis cogitationibus tuis Abice nunc onerosas curas, et postpone laboriosas distentiones tuas. Vaca aliquantulum Deo, et requies-ce aliquantulum in eo. “Intra in cubiculum” [Mt 6,6] mentis tuae, exclude omnia praeter Deum et quae te iuvent ad quaerendum eum, et “clauso ostio” [Mt 6,6] quaere eum. Dic nunc, totum “cor meum”, dic nunc Deo: “Quaero vultum tuum, vultum tuum, Domine, requiro” [Ps 26,8].

Eia nunc ergo tu, Domine Deus meus, doce cor meum ubi et quo-modo quaerat ubi et quomodo te inveniat. Domine, si hoc non es, ubi te quaeram absentem? Si autem ubique es, Cur non video praesentem? Sed certe habitas “lucem inaccessibilem” [1 Tim 6,16]. Et ubi est lux inacces-sibilis? Aut quomodo accedam ad lucem inaccessibilem? Aut quis ducet et inducet in illam, ut videam te in illa? Deinde quibus signis, qua facie te quaeram? Numquam te vidi, Domine Deus meus, non novi faciem tuam. Quid faciet, altissime Domine, quid faciet iste tuus longinquus ex-sul? Quid faciet servus tuus, anxius amore tui et longe “proiectus a facie tua” [Ps 50,13]? Anhelat videre te et nimis abest illi facies tua. Accedere ad te desiderat et inaccessibilis est habitatio tua. Invenire te cupit et nescit locum tuum. Quaerere te affectat et ignorat vultum tuum. Domine, Deus meus es et Dominus meus es et numquam te vidi. Tu me fecisti et refecisti et omnia bona tu mihi contulisti et nondum novi te. Denique ad te viden-dum factus sum et nondum feci, propter quod factus sum.

O misera sors hominis, cum hoc perdidit, ad quod factus est! O durus et dirus casus ille! Heu, quid perdidit et quid invenit, quid abscessit et quid remansit! Perdidit beatitudinem, ad quam factus est, et invenit miseriam, propter quod factus non est. Abscessit, sine quo nihil felix est, et reman-sit, quod per se non nisi miserum est. “Manducabat tunc homo panem angelorum”[Ps 77,25], quem nunc esurit manducat nunc “panem dolo-rum” [Ps 126,2], quem tunc nesciebat. Heu publicus luctus hominum,

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41Proslógio

Capítulo 1 Exortação à contemplação de Deus

Pobre mortal, subtrai-te por um momento a tuas ocupações habituais, esconde-te de teus tumultuosos pensamentos. Lança para longe de ti tuas pe-sadas preocupações, afasta de ti tuas laboriosas inquietudes. Busca a Deus por um momento, por um momento nele repousa. Entra no santuário1 de tua alma, dele exclui tudo que não seja Deus e o que possa ajudar-te a alcançá-lo, e, fechada a porta,2 busca-o. Dize, meu coração, dize agora a Deus: Busco tua face, é tua face que eu quero, Senhor.3

E agora, Senhor meu Deus, ensina a meu coração onde e como te encon-trará, onde e como há de buscar-te. Se não estás em mim, Senhor, se estás ausente, onde te encontrarei? Se estás em toda parte, por que não te vejo presente? Mas decerto habitas uma luz inacessível.4 E onde está essa luz inaces-sível? Ou como terei acesso a essa luz inacessível? Quem me guiará e conduzirá a essa morada de luz para que nela te veja? Por meio de que sinais? Nunca te vi, Senhor meu Deus, não conheço tua face. Que fará, Senhor altíssimo, que fará este exilado tão longe de ti? Que fará este teu servo atormentado pelo amor a ti e arrojado para longe de tua presença?5 Anseia por ver-te e demasiado dista a tua face. Deseja ter acesso a ti e tua morada é inacessível. Anseia por encontrar-te e ignora onde vives. Gostaria de procurar-te e desconhece os traços de teu rosto. Senhor, és o meu Deus e meu Senhor e jamais te vi. Fizeste-me e refizeste-me, concedeste-me todos os bens que possuo e ainda não te conheci. Enfim, fui feito para ver-te e ainda não alcancei a finalidade de meu nascimento.

Ó mísera sorte do homem, que perdeu aquilo para que fora criado! Ó duro e diro caso! O que perdeu ele e o que achou? O que deixou escapar e o que lhe ficou? Perdeu a felicidade para a qual fora criado, achou o infortúnio para o qual não fora criado. Viu afastarem-se as coisas sem as quais não há felici-dade e restou-lhe apenas uma desdita inevitável. Ele, que antes comia o pão dos anjos,6 agora tem fome e come o pão da dor,7 que ele sequer conhecia. Ó luto

1 Mateus 6:6.2 Ibidem.3 Salmo 26:8.4 I Timóteo 6:16.5 Sl 50:13.6 Sl 77:25.7 Sl 126:2.

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42 Santo Anselmo de Cantuária

universalis planctus filiorum Adae! Ille ructabat saturitate nos suspiramus esurie. Ille abundabat nos mendicamus. Ille feliciter tenebat et misere de-seruit nos infeliciter egemus et miserabiliter desideramus. et heu, vacui remanemus! Cur non nobis custodivit, cum facile posset, quo tam gravi-ter careremus? Quare sic nobis obseravit lucem et obduxit nos tenebris? Ut quid nobis abstulit vitam et inflixit mortem? Aerumnosi, unde sumus expulsi, quo sumus impulsi! Unde praecipitati, quo obruti! A patria in ex-silium, a visione Dei in caecitatem nostram. A iucunditate immortalitatis in amaritudinem et horrorem mortis. Misera mutatio! De quanto bono in quantum malum! Grave damnum, gravis dolor, grave totum!

Sed heu me miserum, unum de aliis miseris filiis Evae elongatis a Deo! quid incepi, quid effeci? Quo tendebam, quo deveni? Ad quid aspirabam, in quibus suspiro? “Quaesivi bona et ecce turbatio” [Ps 121,9; Jer 14,19]! Tendebam in Deum et offendi in me ipsum. Requiem quaerebam in se-creto meo et “tribulationem et dolorem inveni” [Ps 114,3] in intimis meis. Volebam ridere a gaudio mentis meae et cogor “rugire a gemitu cordis mei” [Ps 37,9]. Sperabatur laetitia et ecce, unde densentur suspiria!

Et o “tu, Domine, usquequo? Usquequo, Domine, oblivisceris nos, usquequo avertis faciem tuam a nobis”? Quando “respicies et exaudies” nos? Quando “illuminabis oculos” nostros et “ostendes” [Ps 6,4; Ps 12,1-4] nobis “faciem tuam” [Ps 79,4.8]? Quando restitues te nobis? Respice, Domine, exaudi, illumina nos, ostende nobis teipsum. Restitue te nobis, ut bene sit nobis, sine quo tam male est nobis. Miserare labores et conatus nostros ad te, qui nihil valemus sine te. Invita nos, “adiuva” nos [Ps 78,9]. Obsecro, Domine, ne desperem suspirando, sed respirem sperando. Obsecro, Domine, amaricatum est cor meum sua desolatio-ne, indulca illud tua consolatione. Obsecro, Domine, esuriens incepi quaerere te, ne desinam ieiunus de te. Famelicus accessi, ne recedam

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43Proslógio

público dos homens, ó pranto universal dos filhos de Adão! Nosso primeiro pai comia até fartar-se, nós gememos na penúria; ele tinha em abundância e nós mendigamos. Possuía a felicidade e tudo perdeu; como ele, estamos imersos na infelicidade e na dor; nossos desejos trazem a marca de nosso sofri-mento e não são satisfeitos. Por que não preservou para nós o bem cuja perda haveria de ser-nos tão dolorosa? Por que nos vedou o acesso à luz e rodeou-nos de trevas? Por que nos tirou a vida e votou-nos à morte? Desgraçados de nós, de onde fomos expulsos? Para onde fomos impelidos? De onde fomos preci-pitados? Onde fomos sepultados? Da pátria passamos ao desterro; da visão de Deus à cegueira em que nos achamos. Da doçura da imortalidade à amargura e ao horror da morte. Ó mudança funesta! Que mal medonho tomou o lugar de tamanho bem! Grave perda, grave dor, grave congérie de danos!

Desgraçado de mim, um dentre outros desgraçados filhos de Eva aparta-dos de Deus. O que empreendi? O que efetuei? Para onde me dirigia? Aonde cheguei? A que aspirava? Qual a razão de meus suspiros? Eu buscava a ventura e encontro a perturbação.8 Buscava o repouso no segredo de meu coração e lá achei tribulação e dor.9 Queria alegrar-me com toda a alegria de minha alma e vejo-me obrigado a gemer os gemidos de meu coração.10 Eu esperava a felicidade e eis que se me adensam meus suspiros.

E tu, Senhor, até quando? Até quando nos esquecerás? Até quando apartarás de nós a tua face? Quando nos fitarás e ouvirás? Quando iluminarás os nossos olhos e nos mostrarás11 a tua face?12 Quando atenderás aos nossos desejos? Se-nhor, volve teus olhos para nós, ouve-nos, ilumina-nos, mostra-te a nós. Sem ti não temos senão desditas, atende aos nossos desejos para que sejamos no-vamente felizes. Tem piedade de nossos trabalhos e dos esforços que fazemos para chegarmos a ti, pois sem ti nada podemos. Tu nos convidas, ajuda-nos.13 Suplico-te, Senhor, que eu não desespere suspirando, mas respire esperando. Suplico-te, Senhor, meu coração está amargurado em seu desconsolo, edulco-ra-o com tua consolação. Suplico-te, Senhor, pus-me a buscar-te atormentado pela fome; não permitas que me vá sem estar saciado. Aproximei-me de ti famélico, não deixes que eu me afaste sem me ter alimentado. Pobre que sou,

8 Sl 121:9; Jer 14:19.9 Sl 114:3.10 Sl 37:9.11 Sl 6:4 e 12:1-4.12 Sl 79:4 e 8.13 Sl 78:9.

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impastus. Pauper veni ad divitem, miser ad misericordem, ne redeam vacuus et contemptus. Et si “antequam comedam, suspiro” [Iob 3,24], da vel post suspiria quod comedam. Domine, incurvatus non possum nisi deorsum aspicere; erige me, ut possim sursum intendere. “Iniquita-tes meae supergressae caput meum” obvolvunt me, “et sicut onus grave” [Ps 37,5] gravant me. Evolve me, exonera me, ne “urgeat puteus” earum “os suum super me” [Ps 68,16]. Liceat mihi suspicere lucem tuam, vel de longe, vel de profundo. Doce me quaerere te et ostende te quaerenti; quia nec quaerere te possum, nisi tu doceas, nec invenire, nisi te osten-das. Quaeram te desiderando, desiderem quaerendo. Inveniam amando, amem inveniendo.

Fateor, Domine, et gratias ago, quia creasti in me hanc “imaginem tuam” [Gen 1,27], ut tui memor te cogitem, te amem. Sed sic est abo-lita attritione vitiorum, sic offuscata fumo peccatorum, ut non possit facere, ad quod facta est, nisi tu renoves et reformes eam. Non tento, Domine, penetrare altitudinem tuam, quia nullatenus comparo illi in-tellectum meum; sed desidero aliquatenus intelligere veritatem tuam, quam credit et amat cor meum. Neque enim quaero intelligere ut cre-dam, sed credo ut intelligam. Nam et hoc credo: quia “nisi credidero, non intelligam” [Is 7,9].

IIQuod vere sit Deus

Ergo Domine, qui das fidei intellectum, da mihi, ut, quantum scis expedire, intelligam, quia es sicut credimus, et hoc es quod credimus. Et quidem credimus te esse aliquid quo nihil maius cogitari possit. An ergo non est aliqua talis natura, quia «dixit insipiens in corde suo: non est Deus» [Ps 13,1; 52,1]? Sed certe ipse idem insipiens, cum

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acerquei-me do rico; desgraçado que sou, acerquei-me do misericordioso; não permitas que me vá de mãos vazias e desprezado. E se suspiro antes de comer,14 dá-me ao menos, depois de meus suspiros, o que eu coma. Encurvado como estou, Senhor, não posso olhar senão para baixo. Ergue-me, para que eu possa fitar o céu. Minhas iniqüidades já ultrapassam minha cabeça, rodeiam-me intei-ramente e me oprimem como uma carga pesada.15 Livra-me destes obstáculos, desembaraça-me deste peso, a fim de que eu não seja por eles tragado, como pela boca de um poço.16 Seja-me permitido volver meus olhos para a tua luz, ao menos de longe, ao menos do fundo de meu abismo. Ensina-me a buscar-te, mostra-te a quem te busca, porque não posso buscar-te se não me ensinas o caminho. Não posso encontrar-te se não te mostras a mim. Que eu te busque desejando-te, que eu te deseje buscando-te, que eu te encontre amando-te, que eu te ame encontrando-te.

Reconheço, Senhor, e dou-te graças por teres criado em mim esta tua imagem,17 para que me lembre de ti, para que pense em ti, para que te ame. Mas tão destruída está ela por obra dos vícios, tão escurecida pelo fumo dos pecados, que não pode alcançar o fim a que fora destinada, a não ser que a re-formes e renoves. Não tento, Senhor, penetrar tua profundidade, pois a ela de modo algum pode comparar-se minha inteligência; mas desejo, na medida de minhas forças, compreender tua verdade, em que crê e que ama meu coração. Pois não busco entender para crer, mas creio para entender. Creio, com efeito, pois, se não crer, não entenderei.18

Capítulo 2Que Deus existe verdadeiramente

Tu, portanto, Senhor, que dás o entendimento da fé, concede-me, na me-dida em que este conhecimento pode ser-me útil, compreender que tu existes, como o cremos, e que és o que cremos. Cremos, com efeito, que acima de ti nada pode ser concebido pelo pensamento. Trata-se, pois, de saber se tal ser existe, porque o insensato disse em seu coração: Não há Deus.19 Mas quando esse

14 Jó 3:24.15 Sl 37:5.16 Sl 68:16.17 Gn 1:27.18 Is 7:9.19 Sl 13: 1 e 52:1.

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audit hoc ipsum quod dico: ‘aliquid quo maius nihil cogitari potest’, intelligit quod audit; et quod intelligit, in intellectu eius est, etiam si non intelligat illud esse. Aliud enim est rem esse in intellectu, alium intelligere rem esse. Nam cum pictor praecogitat quae facturus est, habet quidem in intellectu, sed nondum intelligit esse quod nondum fecit. Cum vero iam pinxit, et habet in intellectu et intelligit esse quod iam fecit. Convincitur ergo etiam insipiens esse vel in intellectu ali-quid quo nihil maius cogitari potest, quia hoc, cum audit, intelligit, et quidquid intelligitur, in intellectu est. Et certe id quo maius cogitari nequit, non potest esse in solo intellectu. Si enim vel in solo intellectu est, potest cogitari esse et in re; quod maius est. Si ergo id quo maius cogitari non potest, est in solo intellectu: id ipsum quo maius cogitari non potest, est quo maius cogitari potest. Sed certe hoc esse non po-test. Existit ergo procul dubio aliquid quo maius cogitari non valet, et in intellectu et in re.

IIIQuod non possit cogitari non esse

Quod utique sic vere est, ut nec cogitari possit non esse. Nam potest cogitari esse aliquid, quod non possit cogitari non esse; quod maius est quam quod non esse cogitari potest. Quare si id quo maius nequit cogitari, potest cogitari non esse: id ipsum quo maius cogitari nequit, non est id quo maius cogitari nequit; quod convenire non potest. Sic ergo vere est aliquid quo maius cogitari non potest, ut nec cogitari possit non esse.

Et hoc es tu, Domine Deus noster. Sic ergo vere es, Domine, Deus meus, ut nec cogitari possis non esse. Et merito. Si enim aliqua mens posset cogitare aliquid melius te, ascenderet creatura super creatorem et iudicaret de creatore; quod valde est absurdum. Et quidem quidquid est

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47Proslógio

mesmo insensato ouve-me dizer que há um ser acima do qual nada maior po-demos pensar, ele entende o que ouve; o pensamento está em sua inteligência, ainda que não creia que existe o objeto desse pensamento. Porque uma coisa é ter a idéia de um objeto qualquer, e outra é crer em sua existência. Quando um pintor pensa de antemão naquilo que vai pintar, decerto tem aquilo no intelecto, mas sabe que ainda não existe, visto que ainda não o fez. Quando, porém, já pintou, não somente o tem no espírito, mas também sabe que o fez. O insensato tem de convir que tem no intelecto a idéia de um ser acima do qual não se pode pensar nada maior, porque quando ouve enunciar este pensamento entende-o, e qualquer coisa que se entenda está no intelecto. E, sem dúvida alguma, esse objeto acima do qual não se pode pensar nada maior, não existe somente na inteligência, porque, se assim fosse, poder-se-ia supor, pelo menos, que existe também na realidade, nova condição que faria um ser maior do que aquele que não tem existência senão no puro e simples pensa-mento. Portanto, se esse objeto acima do qual não há nada maior estivesse somente na inteligência, seria, sem embargo, tal que haveria algo acima dele, conclusão esta que não seria legítima. Existe, por conseguinte, sem sombra de dúvida, um ser acima do qual não se pode pensar o que quer que seja, nem no pensamento nem na realidade.

Capítulo 3

Que não se pode pensar que Deus não existe

Isto, de fato, é tão verdadeiro, que não se pode sequer pensar que não o seja. Porque se pode conceber um ser tal que não possa ser pensado como não existente na realidade e que, portanto, é maior do que aquele cuja idéia não implica, necessariamente, a existência. Por isso, se o ser acima do qual não se pode pensar nada maior pode ser considerado não-existente, segue-se que este ser que não tinha igual já não é aquele acima do qual nada maior se possa con-ceber, o que é uma conclusão necessariamente contraditória. Existe, portanto, verdadeiramente, um ser acima do qual não podemos erigir um outro, e de tal sorte que nem sequer pode ser pensado como não-existente.

E este ser és tu, Senhor nosso Deus. E tão verdadeiramente existes, Se-nhor meu Deus, que não se pode sequer pensar que não existes, e com razão: pois, se uma inteligência pudesse conceber algo que fosse melhor do que tu, a criatura se elevaria acima do Criador e viria a ser juiz do Criador, o que é inteiramente absurdo. E, na verdade, o que quer que exista fora de ti, pode

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aliud praeter te solum, potest cogitari non esse. Solus igitur verissime om-nium et ideo maxime omnium habes esse, quia quidquid aliud est, non sic vere, et idcirco minus habet esse. Cur itaque “dixit insipiens in corde suo: non est Deus” [Ps 13,1; 52,1], cum tam in promptu sit rationali menti te maxime omnium esse? Cur, nisi quia stultus et insipiens?

IVQuomodo insipiens dixit in corde, quod cogitari non potest

Verum quomodo dixit in corde quod cogitare non potuit; aut quo-modo cogitare non potuit quod dixit in corde, cum idem sit dicere in corde et cogitare? Quod si vere, immo quia vere et cogitavit, quia dixit in corde, et non dixit in corde, quia cogitare non potuit: non uno tan-tum modo dicitur aliquid in corde et cogitatur. Aliter enim cogitatur re, cum vox eam significans cogitatur, aliter cum id ipsum quod res est intelligitur. Illo itaque modo potest cogitari Deus non esse, isto vero minime. Nullus quippe intelligens id quod Deus est, potest cogitare quia Deus non est, licet haec verba dicat in corde, aut sine ulla aut cum aliqua extranea significatione. Deus enim est id quo maius cogitari non potest. Quod qui bene intelligit, utique intelligit id ipsum sic esse, ut nec cogitatione queat non esse. Qui ergo intelligit sic esse Deum, nequit eum non esse cogitare.

Gratias tibi, bone Domine, gratias tibi, quia quod prius credidi te do-nante, iam sic intelligo te illuminante, ut, si te esse nolim credere, non possim non intelligere.

VQuod Deus sit quidquid melius est esse quam non esse:

et solus existens per se omnia alia faciat de nihilo

Quid igitur es. Domine Deus, quo nil maius valet cogitari? Sed quid es, nisi id quod summum omnium solum existens per seipsum, omnia alia fecit de nihilo? Quidquid enim hoc non est, minus est quam cogitari possit. Sed hoc de te cogitari non potest. Quod ergo bonum deest summo

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ser pensado como não-existente. Somente a ti pertence a qualidade de existir verdadeiramente e no mais alto grau. Por que, pois, disse o insensato em seu co-ração: Não há Deus, quando é tão fácil a uma mente racional compreender que existes em grau maior do que todas as coisas? Por que, senão por ser insensato e sem inteligência?

Capítulo 4

Como o insensato disse em seu coração o que não se pode pensar

Mas como o insensato disse em seu coração o que não pôde pensar, ou como não pôde pensar o que disse em seu coração, uma vez que dizer em seu coração e pensar são a mesma coisa? E, se é possível dizer verdadeiramente o que pensou, uma vez que foi dito em seu coração, e, ao mesmo tempo, não o ter dito em seu coração porque não pôde pensá-lo, cumpre admitir que há mais de uma maneira de dizer em seu coração ou de pensar. Uma coisa é pen-sar em algo quando se pensa na palavra que o designa; outra coisa é a inteli-gência entender o que aquilo é. No primeiro sentido, pode-se pensar que Deus não existe; no segundo, não. Ninguém, com efeito, que possa compreender o que Deus é pode pensar que Deus não existe, ainda que profira estas palavras em seu coração, quer sem lhes atribuir sentido algum, quer atribuindo-lhes um outro significado, porque Deus é um ser tal que não se pode conceber nada maior do que Ele. Quem compreende isto bem, compreende ao mesmo tempo que tal ser não pode ser pensado sem existir de fato.

Graças te sejam dadas, Senhor, graças te sejam dadas, porque aquilo que, no princípio, eu cri pelo dom com que me agraciaste, eu compreendo agora graças à luz com que me iluminas, e ainda que eu não quisesse crer que existes, eu não poderia pensá-lo.

Capítulo 5Que Deus é tudo aquilo que é melhor que exista do que não exista;

e que, sendo o único que existe por si mesmo, fez tudo do nada

Quem és, pois, Senhor meu Deus, acima de quem não se pode pensar nada maior? E quem podes ser senão aquele que, existindo sozinho acima de todos por si mesmo, tudo o mais fez a partir do nada? Porque tudo que não é esse poder, é inferior ao que pode ser pensado por nós. Mas isto não pode ser pensado de ti. Que bem, portanto, falta ao Sumo Bem, do

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bono, per quod est omne bonum? Tu es itaque iustus, verax, beatus, et quidquid melius est esse quam non esse. Melius namque est esse iustum quam non iustum, beatum quam non beatum.

VIQuomodo sit sensibilis, cum non sit corpus

Verum cum melius sit esse sensibilem, omnipotentem, misericordem, impassibilem quam non esse: quomodo es sensibilis, si non es corpus; aut omnipotens, si omnia non potes; aut misericors simul et impassibilis? Nam si sola corporea sunt sensibilia, quoniam sensus circa corpus et in corpore sunt: quomodo es sensibilis, cum non sis corpus, sed summus spiritus, qui corpore melior est? Sed si sentire non nisi cognoscere aut non nisi ad cog-noscendum est qui enim sentit cognoscit secundum sensuum proprietatem, ut per visum colores, per gustum sapores : non inconvenienter dicitur ali-quo modo, sentire quidquid aliquo modo cognoscit. Ergo, Domine, qua-mvis non sis corpus, vere tamen eo modo summe sensibilis es, quo summe omnia cognoscis, non quo animal corporeo sensu cognoscit.

VIIQuomodo sit omnipotens, cum multa non possit

Sed et omnipotens quomodo es, si omnia non potes? Aut si non potes corrumpi nec mentiri nec facere verum esse falsum, ut quod factum est non esse factum, et plura similiter: quomodo potes omnia? An haec posse non est potentia, sed impotentia? Nam qui haec potest quod sibi non expedit et quod non debet potest. Quae quanto magis potest, tanto magis adversitas et perversitas possunt in illum et ipse minus contra illas. Qui ergo sic potest, non potentia potest, sed impotentia. Non enim ideo dici-tur posse, quia ipse possit, sed quia sua impotentia facit aliud in se posse; sive aliquo alio genere loquendi, sicut multa improprie dicuntur. Ut cum ponimus ‘esse’ pro ‘non esse’, et ‘facere’ pro eo quod est ‘non facere’, aut pro ‘nihil facere’. Nam saepe dicimus ei, qui rem aliquam esse negat: sic est, quemadmodum dicis esse; cum magis proprie videatur dici: sic non

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qual emana todo bem? És, portanto, justo, verdadeiro, feliz, e tudo que é melhor ser do que não ser. Pois é melhor ser justo do que não justo, feliz do que não feliz.

Capítulo 6

Como Deus é sensível, embora não seja corpo

Mas, sendo melhor seres sensível, onipotente, misericordioso, impassível, do que careceres de todos estes atributos, como és sensível se não tens corpo, ou todo poderoso se não podes tudo, ou cheio de misericórdia, e, ao mesmo tempo, impassível? Visto que somente os seres corpóreos são sensíveis, por-que os sentidos se estendem pelo corpo e fazem parte dele, como podes ser sensível, se não és corpo, mas espírito supremo e, por isso mesmo, melhor do que o corpo? Mas, se sentir é conhecer ou algo orientado para o conheci-mento, o que sente conhece segundo as propriedades dos sentidos, como as cores pela vista, os sabores pelo paladar. E, portanto, não é impróprio dizer que todo ser que conhece, sente. Deste modo, Senhor, embora não sejas corpo, és, sem embargo, soberanamente sensível, visto que conheces todas as coisas em seu próprio ser, e não como um animal, que as conhece apenas por seus sentidos corporais.

Capítulo 7

Como Deus é onipotente, embora muitas coisas lhe sejam impossíveis

Mas como és onipotente se não podes tudo? Se não podes corromper-te, ou mentir, nem fazer com que o verdadeiro seja falso ou que o feito seja não feito, e outras coisas semelhantes, como podes tudo? Ou, porventura, poder estas coisas não é potência, mas sim impotência? Porque o que pode fazer tais coisas pode fazer o que é funesto ou vai contra seu dever. Ora, quanto mais po-deroso é alguém desta maneira, tanto mais poder tem sobre ele a adversidade e o mal e menos poder tem ele contra uma e outro. Logo, semelhante faculdade [de fazer o mal] não é poder, mas impotência. E por isso não se diz que ele próprio possui o poder, mas que a sua impotência faz com que outros tenham poder sobre ele. É um modo de falar impróprio, como muitas outras coisas que se dizem. Usamos, por exemplo, ser por não ser e fazer para exprimir não fazer ou não fazer nada. Dizemos freqüentemente, a alguém que nega algo, é como dizes, embora fosse mais próprio dizer na verdade a coisa não é como dizes

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est quemadmodum dicis non esse. Item dicimus: iste sedet, sicut ille fa-cit, aut: iste quiescit, sicut ille facit; cum ‘sedere’ sit quiddam non facere et ‘quiescere’ sit nihil facere. Sic itaque, cum dicitur habere potentiam faciendi aut patiendi quod sibi non expedit aut quod non debet, impo-tentia intelligitur per potentiam; quia quo plus habet hanc potentiam, eo adversitas et perversitas in illum sunt potentiores, et ille contra eas impo-tentior. Ergo, Domine Deus, inde verius et omnipotens, quia nihil potes per impotentiam, et nihil potest contra te.

VIIIQuomodo sit misericors et impassibilis

Sed et misericors simul et impassibilis quomodo es? Nam si es impas-sibilis, non compateris; si non compateris, non est tibi miserum cor ex compassione miseri, quod est esse misericordem. At si non es misericors, unde miseris est tanta consolatio?

Quomodo ergo es et non es misericors, Domine, nisi quia es misericors secundum nos, et non es secundum te? Es quippe secundum nostrum sen-sum, et non es secundum tuum. Etenim cum tu respicis nos miseros, nos sentimus misericordis effectum, tu non sentis affectum. Et misericors es igitur, quia misericors salvas et peccatoribus tuis parcis; et misericors non es, quia nulla miseriae compassione afficeris.

IXQuomodo totus iustus es et summe iustus parcat

malis, et quod iuste misereatur malis

Verum malis quomodo parcis, si es totus iustus et summe iustus? Quo-modo enim totus et summe iustus facit aliquid non iustum? Aut quae ius-titia est merenti mortem aeternam dare vitam sempiternam? Unde ergo, bone Deus, bone bonis et malis, unde tibi salvare malos, si hoc non est iustum, et tu facis aliquid non iustum?

An quia bonitas tua est incomprehensibilis, latet hoc in «luce inaccessi-bili quam habitas» [1 Tim 6,16]? Vere in altissimo et secretissimo bonitatis

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que não é. Também dizemos este se senta como aquele ou este descansa como o faz aqueloutro, embora por sentar-se entendamos não fazer algo e por descansar entendamos não fazer nada. Assim, portanto, quando se diz de alguém que tem o poder de fazer ou sofrer algo que não lhe convém ou que não deve fazer, entende-se que se trata de impotência, ainda que se empregue a palavra potência, porque quanto mais poderoso é neste sentido, tanto mais fortes são contra ele o infortúnio e a perversidade, e tanto mais ele é fraco contra elas. Assim, pois, Senhor nosso Deus, tu és verdadeiramente onipotente, porque nada podes no que é fruto da impotência e nada pode contra ti.

Capítulo 8Como é misericordioso e impassível

Mas como és, simultaneamente, misericordioso e impassível? Pois, se és impassível, não compartes nossos padecimentos; e se não os compartes, não tens um coração misericordioso que se compadeça do miserável, pois é nisto que consiste o ser misericordioso. Mas, se não és misericordioso, de onde pro-vém a consolação que proporcionas aos desgraçados?

Como, pois, és e não és misericordioso, Senhor, senão sendo-o de acordo com o nosso modo de ser, e não com o teu? Tu o és, com efeito, para que te compadeças de nossos sofrimentos, mas não para que os experimentes. Na verdade, quando volves teus olhos para as nossas misérias, sentimos o efeito da tua misericórdia, mas não sentes o sofrimento causado pela vista delas. És, portanto, misericordioso porque salvas os desgraçados e perdoas os pecadores; e não o és porque não podes ser afetado pela compaixão de nossas misérias.

Capítulo 9Como, sendo total e soberanamente justo, perdoa

os maus e com justiça deles se comisera

Mas se és absoluta e soberanamente justo, como perdoas os maus? Sendo absoluta e soberanamente justo, como fazes algo injusto? Ou que justiça há em dar a vida eterna a quem merece a morte eterna? De onde vem, Deus bom, bom para os bons e para os maus, de onde vem que salves os maus, se isto não é justo e não podes fazer nada injusto?

Acaso isto acontece porque, sendo a tua bondade incompreensível, isto fi--ca oculto na luz inacessível em que habitas? Verdadeiramente é no altíssimo e

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tuae latet fons, unde manat fluvius misericordiae tuae. Nam cum totus et summe iustus sis, tamen idcirco etiam malis benignus es, quia totus sum-me bonus es. Minus namque bonus esses, si nulli malo esses benignus. Melior est enim qui et bonis et malis bonus est, quam qui bonis tantum est bonus. Et melior est, qui malis et puniendo et parcendo est bonus, quam qui puniendo tantum. Ideo ergo misericors es, quia totus et sum-me bonus es. Et cum forsitan videatur, cur bonis bona et malis mala retri-buas, illud certe penitus est mirandum, cur tu totus iustus et nullo egens malis et reis tuis bona tribuas. O altitudo bonitatis tuae, Deus! et videtur, unde sis misericors, et non pervidetur. Cernitur, unde flumen manat, et non perspicitur fons, unde nascatur. Nam et de plenitudine bonitatis est, quia peccatoribus tuis pius es; et in altitudine bonitatis latet, qua ratione hoc es. Etenim licet bonis bona et malis mala ex bonitate retribuas, ratio tamen iustitiae hoc postulare videtur. Cum vero malis bona tribuis: et scitur, quia summe bonus hoc facere voluit, et mirum est, cur summe iustus hoc velle potuit.

O misericordia, de quam opulenta dulcedine et dulci opulentia no-bis profluis! O immensitas bonitatis Dei, quo affectu amanda es pecca-toribus!  Iustos enim salvas iustitia comitante; istos vero liberas iustitia damnante. Illos meritis adiuvantibus  istos meritis repugnantibus. Illos bona, quae dedisti, cognoscendo, istos mala, quae odisti, ignoscendo. O immensa bonitas, quae sic omnem intellectum excedis, veniat super me misericordia illa, quae de tanta opulentia tui procedit! Influat in me, quae profluit de te. Parce per clementiam, ne ulciscaris per iustitiam. Nam etsi difficile sit intelligere, quomodo misericordia tua non absit a tua iustitia, necessarium tamen est credere, quia nequamquam adversatur quod exun-

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secretíssimo âmago de tua bondade que está oculta a fonte de onde flui o rio da tua misericórdia. Pois, ainda que sejas absoluta e soberanamente justo, inclinas--te a fazer bem aos maus, porque és absoluta e soberanamente bom. Com efei-to, serias menos bom se não fosses bom para alguém mau. Porque aquele que é bom para os bons e para os maus é melhor do que aquele que o é somente para os bons, e aquele que é bom castigando e perdoando os maus é melhor do que aquele que não é bom senão castigando-os. És, pois, misericordioso, porque és absoluta e soberanamente bom; e como, por outro lado, é fácil ver por que dás o prêmio aos bons e o castigo aos maus, com boas razões nos admiramos profundamente ao vermos a ti, absolutamente justo; a ti, que não precisas do auxílio de ninguém, dar teus bens aos maus e aos culpados. Ó profundeza da bondade tua, meu Deus! Vemos de onde promana tua misericórdia, mas nosso olhar não vai mais além. Vemos de onde promana o rio, mas não distinguimos a fonte de onde nasce. Tiras o teu amor para com o pecador da plenitude de tua bondade, mas a razão deste amor está na profundeza da tua bondade. Porque, embora recompenses os bons e castigues os maus movido por tua bondade, esta distribuição é também conseqüência da tua justiça. Mas quando concedes um bem aos maus, sabemos que tua bondade o quis, mas ainda assim nos espanta-mos de que tua soberana justiça tenha podido querê-lo.

Ó misericórdia, com que abundante doçura e com que doce abundância fluis até nós! Ó imensidão da bondade divina, com que grande amor deves ser amada pelos pecadores! Salvas os justos em nome da justiça, livras os pecado-res ainda quando a justiça os condena. Uns devem a salvação a seus méritos;20 outros a alcançam apesar de seus deméritos. Uns por conheceres os bens que lhes deste; outros por neles perdoares o mal que odeias. Ó bondade imensa, que ultrapassa todo pensamento! Caia sobre mim aquela misericórdia que promana de tua opulência! Que aquilo que de ti promana chegue até mim. Perdoa-me por tua clemência, não te vingues por tua justiça. Porque, embora seja difícil compreender como a tua misericórdia não se aparta da tua justiça, é necessário crer, contudo, que aquilo que extravasa da superabundância de tua bondade de modo algum contraria a justiça, porque essa bondade não

20 Aqui se vê como faz falta a Santo Anselmo a noção analógica de mérito, a qual foi desenvolvida tempos depois por Santo Tomás de Aquino e acolhida pelo Magistério da Igreja. Em resumo: nin-guém se salva por méritos próprios, e sim pelo mérito do sangue de Cristo vertido na cruz. Mesmo o justo não é capaz de, por esforços próprios, merecer o céu. Coloquemos em termos tomistas: Deus não salva uma pessoa em previsão dos méritos que ela presumivelmente terá neste mundo, mas por uma dileção eterna, absolutamente misteriosa. O tema da predestinação, a propósito, suscitou grandes discussões não apenas na Escolástica, mas também nos períodos que se lhe seguiram. [N.C.]

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56 Santo Anselmo de Cantuária

dat ex bonitate, quae nulla est sine iustitia, immo vere concordat iustitiae. Nempe si misericors es, quia es summe bonus, et summe bonus non es, nisi quia es summe iustus: vere idcirco es misericors, quia summe iustus es. Adiuva me, iuste et misericors Deus, cuius lucem quaero, adiuva me, ut intelligam quod dico. Vere ergo ideo misericors es, quia iustus.

Ergone misericordia tua nascitur ex iustitia tua? Ergone parcis malis ex iustitia? Si sic est, Domine, si sic est, doce me quomodo est. An quia ius-tum est te sic esse bonum, ut nequeas intelligi melior, et sic potenter ope-rari, ut non possis cogitari potentius? Quid enim hoc iustius? Hoc utique non fieret, si esses bonus tantum retribuendo et non parcendo, et si faceres de non bonis tantum bonos et non etiam de malis. Hoc itaque modo iustum est ut parcas malis, et ut facias bonos de malis. Denique quod non iuste fit, non debet fieri; et quod non debet fieri, iniuste fit. Si ergo non iuste malis misereris, non debes misereri; et si non debes misereri, iniuste misereris. Quod si nefas est dicere, fas est credere te iuste misereri malis.

XQuomodo iuste puniat et iuste parcat malis

Sed iustum est, ut malos punias. Quid namque iustius, quam ut boni bona et mali mala recipiant? Quomodo ergo et iustum est ut malos pu-nias, et iustum est ut malis parcas? An alio modo iuste punis malos, et alio modo iuste parcis malis? Cum enim punis malos, iustum est, quia illorum meritis convenit; cum vero parcis malis, iustum est, non quia illorum me-ritis, sed quia bonitati tuae condecens est. Nam parcendo malis ita iustus es secundum te et non secundum nos, sicut misericors es secundum nos et non secundum te. Quoniam salvando nos, quos iuste perderes, sicut mi-sericors es, non quia tu sentias affectum, sed quia nos sentimus effectum: ita iustus es, non quia nobis reddas debitum, sed quia facis quod decet te summe bonum. Sic itaque sine repugnantia iuste punis et iuste parcis.

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57Proslógio

pode existir sem a justiça, mas, pelo contrário, a ela está estreitamente unida. Assim, se é certo que és misericordioso por seres sumamente bom, e não és sumamente bom senão porque és sumamente justo, daí se segue que tua suma misericórdia é conseqüência de tua suma justiça. Ajuda-me, Deus justo e mi-sericordioso, cuja luz eu busco, ajuda-me para que eu compreenda o que digo. És, portanto, verdadeiramente misericordioso porque verdadeiramente justo.

Então a tua misericórdia nasce da tua justiça? Então a tua justiça perdoa os pecadores? Se assim é, Senhor, se assim é, ensina-me como é. É por seres justo que és bom a ponto de não poderes ser pensado melhor e obras com tal poder que não podes ser pensado mais poderoso? Que haverá, com efeito, mais justo do que Deus? Não seria assim, com efeito, se fosses bom somente retribuindo, mas não perdoando, e se fizesses bons somente os que não o são, mas não [fizesses também bons] os maus.21 Enfim, aquilo que não é feito com justiça não deve ser feito; e o que não deve ser feito é feito injustamente. Se, portanto, compadeces-te dos maus injustamente, não deves compadecer-te; e, se não deves compadecer-te, compadeces-te injustamente. Mas, se dizê-lo é algo nefando, temos de crer que com toda a justiça te compadeces dos maus.

Capítulo 10Como sem ferir a justiça castiga e perdoa os maus

Mas também é justo que castigues os maus. Que haverá, com efeito, mais justo que receberem os justos um prêmio e os maus um castigo? Como, pois, será justo que aos maus castigues e perdoes? Haverá, acaso, uma justiça que os castiga e outra que os perdoa? Quando castigas os maus é justo que o faças, porque mereceram a punição; e, quando os perdoas, também és justo, porque tua vontade se conforma com tua bondade, e não com os merecimentos deles. Ao perdoares os maus és justo segundo a tua justiça, e não de acordo com as nossas obras, assim como és misericordioso segundo aquilo que somos, e não segundo aquilo que és. Pois quando nos salvas a nós, a quem com justi-ça deverias condenar, és misericordioso não porque sintas um afeto alheio a tua natureza, mas porque nós sentimos o efeito de tua bondade. Do mesmo modo és justo, não porque nos dês algo a nós devido, mas porque fazes o que compete a ti, sumamente bom. Assim, portanto, sem que nisto vá qualquer contradição, justamente castigas e recompensas.

21 Santo Anselmo aqui faz uma distinção entre os que não são bons nem maus e os que são maus. [N. C.]

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