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1 PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL (Parte IV) Aula de Filosofia Medieval Prof. Marcos Aurélio Fernandes UnB – Fil 2017.1 A ALTA ESCOLÁSTICA A alta escolástica vai de 1200 até cerca de 1340. É o ápice da filosofia e da teologia na idade média latina. UNIVERSIDADE E ESCOLÁSTICA No século XII, como vimos, as escolas se abrem para um público maior, para além do tradicional público: os monges e a aristocracia feudal. Estudantes e mestres se movimentam para lá e para cá. O conteúdo e os métodos também se transformam. Desde Pedro Abelardo se impõe o primado da dialética. Esta introduzia no ensino as questões filosóficas e fornecia o método do “sim” e do “não”. Este recorria ao levantamento de “questões”, articulando argumentos afirmativos e negativos, com base em “sentenças”, que expressavam o parecer de “autoridades” (principais autores da tradição filosófica e da tradição do saber cristão) em referência a determinadas teses, em vista de alcançar respostas que, como sínteses, superassem as contradições (antíteses) entre estes pareceres. Isto possibilitou um tratamento racional das verdades da fé cristã, ao qual Abelardo deu o nome de “teologia”. Este mesmo método passou a ser usado para outros saberes, como o direito e a medicina. A Itália teve um papel decisivo no desenvolvimento destes dois saberes. O direito tomou novo impulso em Bolonha, com a redescoberta de textos do direito romano. A medicina, em Salerno, com

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PROSPECTO DE FILOSOFIA MEDIEVAL

(Parte IV)

Aula de Filosofia Medieval

Prof. Marcos Aurélio Fernandes

UnB – Fil

2017.1

A ALTA ESCOLÁSTICA

A alta escolástica vai de 1200 até cerca de 1340. É o ápice da filosofia e da

teologia na idade média latina.

UNIVERSIDADE E ESCOLÁSTICA

No século XII, como vimos, as escolas se abrem para um público maior, para além

do tradicional público: os monges e a aristocracia feudal. Estudantes e mestres se

movimentam para lá e para cá. O conteúdo e os métodos também se transformam.

Desde Pedro Abelardo se impõe o primado da dialética. Esta introduzia no ensino as

questões filosóficas e fornecia o método do “sim” e do “não”. Este recorria ao

levantamento de “questões”, articulando argumentos afirmativos e negativos, com base

em “sentenças”, que expressavam o parecer de “autoridades” (principais autores da

tradição filosófica e da tradição do saber cristão) em referência a determinadas teses,

em vista de alcançar respostas que, como sínteses, superassem as contradições

(antíteses) entre estes pareceres. Isto possibilitou um tratamento racional das verdades

da fé cristã, ao qual Abelardo deu o nome de “teologia”. Este mesmo método passou a

ser usado para outros saberes, como o direito e a medicina. A Itália teve um papel

decisivo no desenvolvimento destes dois saberes. O direito tomou novo impulso em

Bolonha, com a redescoberta de textos do direito romano. A medicina, em Salerno, com

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a tradução de textos da medicina greco-árabe. A maioria dos mestres que ensinavam

estes saberes era leiga e seu ensino escapava do controle eclesiástico. Estes aspiravam

a ensinar na França ou na Inglaterra. Estudantes de teologia de Paris aspiravam à

carreira eclesiástica; estudantes de direito de Bolonha, a serem conselheiros de

príncipes e cidades. Magistri (mestres) e scolares (estudantes) foram, aos poucos,

tomando consciência de sua vocação específica e começam a aspirar a uma organização

corporativa e à autonomia. As universidades surgiram para responder a esta demanda.

Assim surgiu em Paris, na primeira década do século XIII, a instituição chamada

hoje de “universidade”. A palavra usada para nomear esta nova e original instituição

escolar, “universitas”, é abreviação de uma expressão ou locução maior. Em Paris, ela

se chamou “Universitas magistrorum et scolarium parisiensium” (universidade dos

mestres e dos estudantes parisienses). Ela estava organizada em “nações” (origem

geográfica: França, Picardia, Normandia, Inglaterra) e em faculdades (áreas de saber).

As faculdades eram a Faculdade de Artes (Liberais), que tinha o papel propedêutico para

as demais faculdades, que incluía a filosofia e privilegiava a dialética; e as faculdades dos

cursos “superiores”, quais sejam, a medicina, o direito (em Paris, a partir de 1219, o

estudo do direito se restringia ao direito canônico, excluindo o direito civil) e a teologia,

que contava com o maior número de estudantes e que passou a incorporar os centros

de estudos (studia) das Ordens Mendicantes. A universidade de Bolonha, cujo

nascimento é contemporâneo à de Paris, surgiu como uma corporação (universitas) de

estudantes, diferente da de Paris, que era uma corporação de mestres e estudantes. Ela

tinha a Faculdade de Medicina, mas dava prioridade ao estudo do direito, civil e

canônico. Na Faculdade de Artes se ensinava principalmente a gramática e a retórica. A

Faculdade de Teologia passou a ser conduzida hegemonicamente pelas ordens

mendicantes. As nações estavam organizadas em “citramontanos”, os originários de

terras aquém-Alpe, e “ultramontanos”, os originários de terras além-Alpes1.

Os poderes públicos (comunas, reinos, Império) oscilaram entre a resistência, o

apoio e a tutela a esta nova instituição. A entrada em conflito com o rei e com o poder

policial devido a problemas estudantis levou a Universidade de Paris, que se tornava,

1 Outras universidades que surgiram no século XIII: Oxford e Cambridge, na Inglaterra; Montpellier e Toulouse, na França; Salamanca e Lisboa/Coimbra, na Península Ibérica; Pádua e Nápoles, na Itália.

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agora, a Atenas do ocidente latino medieval, apelar para o apoio do Papa. Um episódio

de violência envolvendo estudantes alemães e um taberneiro levou a uma repressão

policial: cinco estudantes foram mortos. Os estudantes organizaram um movimento de

greve e ameaçaram ir embora da cidade. Por isso, o rei Filipe Augusto decidiu subtrair

os escolares da jurisdição real e passa-los à jurisdição papal. Em 1209 Inocêncio III deu

à comunidade dos mestres e aprendizes estatutos próprios. A licentia docendi (licença

para ensinar) já não seria dada mais pelo bispo local, mas sim pelo próprio papa.

Seguindo o modelo das corporações de artesãos, a Universidade se tornou uma

corporação que tinha a forma de um estaleiro, em que se dispunham e se ordenavam

oficinas dos diversos saberes, que se pretendiam articular numa unidade. Um espírito

cavalheiresco também impregnava os exercícios acadêmicos, as disputas, os debates,

que se tornavam verdadeiros torneios de pensamentos e palavras.

Embora seja herdeira da uma longa tradição escolar ocidental, a universidade

medieval, surgida no século XIII, é uma criação original, sem verdadeiro antecedente

histórico. Os seus mestres e estudantes estavam conscientes desta originalidade.

Entretanto, em que consistia esta originalidade? Antes de tudo, na busca de relativa

autonomia institucional, ou, como se dizia, na conquista de “liberdades e privilégios”

para mestres e estudantes. Um certo espírito democrático inspirava esta instituição. Ela

podia, a partir de assembleias de mestres, organizar estatutos e estabelecer regras de

funcionamento. Ela também organizava a defesa e a representação perante as

autoridades externas, civis ou eclesiásticas; e controlava por si mesma o recrutamento

de estudantes e mestres. Em segundo lugar, a universidade nascente era imbuída de

uma vocação universalista. Este universalismo se deixa ver em vários aspectos. A

“universitas”, antes de tudo, tinha a função de promover a totalidade do saber, a

“universitas studiorum” (universidade dos estudos), que provinha de dupla fonte, da

filosofia grega e da revelação cristã. Este saber era ensinado na língua universal da

cristandade latina, justamente, o latim. Os particularismos regionais e nacionais ficavam

em segundo plano diante do protagonismo de um saber universalista, que era

basicamente o mesmo por toda a parte da cristandade latina. Os mestres e estudantes,

mais do que cidadãos de suas terras e reinos de origem, eram, basicamente, cidadãos

desta mesma cristandade e, embora fossem muitas vezes organizados em “nações”, isto

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é, de acordo com seus lugares de nascimento, eram enriquecidos por uma experiência

de vida acadêmica internacional. Os títulos obtidos em uma universidade eram

reconhecidos em outra. Em terceiro lugar, esta instituição ligava-se diretamente ao

poder universalista por excelência na cristandade latina: o papado. Era o papa que

confirmava os privilégios; era em seu nome que o chanceler conferia a licença “ubique

docendi” (de ensinar por toda a parte). Em troca da fidelidade à ortodoxia da Igreja

Católica e ao magistério pontifício, ele protegia mestres e estudantes dos abusos das

autoridades locais, civis ou eclesiásticas. Isso se pode dizer, traçando-se um quadro

geral, sem levar em conta das peculiaridades e as exceções.

A contribuição das universidades medievais para o desenvolvimento do saber no

ocidente latino foi decisiva, sobretudo na época do seu florescimento (séc. XIII e XIV).

Jacques Verger resume assim a sua contribuição nos domínios do ensino superior e da

cultura erudita medieval:

A Universidade, no início, levou à perfeição métodos de ensino cuja fecundidade foi por muito tempo encoberta pelas críticas tardias e injustas dos humanistas e filósofos das Luzes. A “leitura” atenta das “autoridades” permitia uma minuciosa exegese de textos, a “disputa” abria caminho a grande liberdade intelectual, assentada no rigor racionalista do raciocínio dialético. O conteúdo do ensino universitário também deve ser considerado: os “artistas” de Paris e Oxford levaram a lógica formal a uma perfeição que os filósofos de hoje redescobrem; com Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino, os teólogos reconciliaram no século XIII fé e razão, confiança na Revelação e redescoberta do mundo; nos séculos XIV e XV, os críticos de Ockham e de seus herdeiros “nominalistas” enfraquecerão essas sínteses poderosas, mas para recolocar em primeiro plano problemas que ocuparão a consciência moderna (liberdade, graça, salvação), livrando, talvez, o pensamento científico do entrave teológico. As ciências dos números e da natureza foram frequentemente negligenciadas nas universidades medievais. No entanto, são elas que, em alguns momentos privilegiados (meados do século XIV em Oxford e Paris; século XV em Pádua e Salamanca), darão forma a certos rudimentos da ciência moderna (astronomia, mecânica). Sua introdução na Universidade representou para a medicina, malgrado o peso das autoridades (Galeno, Avicena), uma verdadeira revolução, que a fez passar do estágio do saber empírico, se não mágico, ao de disciplina intelectualmente constituída por princípios racionais e reconhecida como tal. O direito finalmente encontrou nos juristas medievais, sobretudo italianos, tanto exegetas minuciosos como pensadores capazes de abstrair os princípios gerais de um sistema legislativo; por este caminho e manifestando algum desdém pelo direito cotidiano, o do costume e o da jurisprudência, eles tiveram a função essencial de

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introduzir em nossa civilização uma imensa parcela de romanidade, sobre a qual se fundarão tanto a ciência político moderna quanto as noções que regem até hoje o direito privado.

Nossa escolha de concentrar o nosso estudo do pensamento medieval pela

escolástica, por conseguinte, não é por pura e simples localização numa tradição

histórica: a ocidental latina, da qual a Europa, especialmente a Europa ocidental,

atlântica, esta que levou a cabo a expansão do ocidente pelo mundo na era moderna,

predominantemente depende em suas raízes. A escolha da escolástica também se

justifica por critérios filosóficos. Para aprender a pensar com os medievais a escolástica

medieval nos oferece bons préstimos e oportunidades. As razões são as seguintes:

1) Na escolástica latina confluem as riquezas das outras tradições. “As contribuições

filosóficas dadas pelos dois outros ramos, a cristã-síria e a cristã-árabe, bem como

pelos dois outros troncos da árvore da filosofia, a filosofia dos árabes e a filosofia

dos judeus medievais foram utilizadas e absorvidas pelos escolásticos. Claro que o

fizeram adaptando-as à sua própria perspectiva teológica. A filosofia árabe e judaica,

que eles nos propõem, já nos chega batizada pela especificidade da fé cristã.

Ademais, um mesmo ar respiravam todos os pensadores medievais, um ar que se

poderia caracterizar por uma atitude de acolhimento e aceitação da realidade tal

como se oferece na diversidade do mundo, da natureza, da fé no monoteísmo

revelado. Nenhum medieval, de qualquer credo que seja, pretende as conhecer,

transformar a realidade e colocá-la a serviço do senhorio do homem sobre a

natureza e de sua maestria sobre a realidade, tal como é o espírito e a mentalidade

da idade moderna.”

2) A criatividade do pensamento escolástico. “A riqueza e variedade dos muitos

caminhos desbravados pelos escolásticos superam em número, gênero e grau, todas

as contribuições dos filósofos árabes e judeus da idade média. Os escolásticos

abriram novos horizontes de questões e rasgaram outras dimensões de interrogação

que não se encontram nem entre os árabes nem entre os judeus, embora tanto uns

quanto os outros tenham dado uma contribuição decisiva aos desempenhos da

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escolástica e tenham desenvolvido também uma mística própria, não, porém, uma

mística especulativa, no sufismo e na cabala”.

3) O caráter determinante do pensamento escolástico para o destino do pensamento

moderno. O pensamento árabe foi muito fecundo no breve tempo em que ele

vigorou. Mas, com Averróis, este pensamento emudece, perdendo seu poder de

determinar a história dos séculos futuros. Paradoxalmente, Averróis, assumido no

pensamento ocidental, tornou-se uma das forças propulsoras para o advento da

modernidade no ocidente cristão. As contribuições dos pensadores escolásticos não

deixaram de atuar na gênese do pensamento moderno, como, por exemplo, no

pensamento do século XVII e XVIII, de Descartes a Kant, por mais que esta atuação

permaneça subterrânea. Neste sentido, podemos fazer as seguintes perguntas: “Por

que pertence a todo currículo de formação filosófica estudar o pensamento

medieval? O que há com a filosofia que não se pode desvencilhar destes vencilhos

históricos do pensamento no passado? Que originalidade nos traz o pensamento já

pensado na escolástica para levar-nos a pensá-lo de novo? ”.

A escolástica não é algo de padronizado e estereotipado. Pelo contrário. É algo

criativo e plural. Diversos são os estilos, as formas, os caminhos da filosofia escolástica.

Múltiplas são as respostas que deram às mesmas questões e aos mesmos problemas.

No entanto, estas produções e criações próprias se fundam numa unidade de

pressuposições iguais e se plantam em condições culturais compartilhadas por todos os

doutores escolásticos. Vejamos, pois, quais são estas características comuns:

1) O íntimo relacionamento de filosofia e religião e, respectivamente, teologia. A

escolha dos problemas filosóficos e o modo de sua elaboração são determinados por

este relacionamento. A religião baseada numa revelação que é contida num livro

sagrado, a Bíblia, e cuja doutrina é desenvolvida a partir da tradição pela autoridade

do magistério eclesiástico fomenta a teologia. A filosofia, por sua vez, está a serviço

da teologia. Ela serve à fundamentação racional e ao esclarecimento conceptual do

conteúdo teológico, de um lado, e à assunção de rigor demonstrativo, de outro.

“Autonomia de princípio e metódica da filosofia enquanto ciência do conhecimento

racional puro dos grandes problemas do espírito humano de um lado e a mais

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estreita ligação pessoal e objetiva com a teologia, de outro lado, é característico para

a idade média”2.

2) A forte dependência da filosofia antiga, especialmente de Platão e Aristóteles. A

doutrina de ambos, porém, chega aos latinos pela intermediação das escolas

helenísticas (sobretudo neoplatônicos e estoicos), dos ensinamentos patrísticos (dos

“Padres da Igreja”)3, dos comentários e interpretações dos árabes e judeus.

3) Uma concepção de método. A escolástica é não somente um método de ensino e de

exposição do saber conquistado como também um método de investigação e,

portanto, de conquista do saber. No século XII, a concepção de método foi elaborada

exemplarmente por Pedro Abelardo numa perspectiva dialética. Trata-se do método

do “sim” e do “não” (sic et non). De origem filosófica platônica, este método recorria

ao levantamento de “questões”, articulando argumentos afirmativos e negativos,

com base em “sentenças”, que expressavam o parecer de “autoridades” (principais

autores da tradição filosófica e da tradição do saber cristão) em referência a

determinadas teses, em vista de alcançar respostas que, como sínteses, superassem

as contradições (antíteses) entre estes pareceres. Isto possibilitou um tratamento

racional das verdades da fé cristã, ao qual Abelardo deu o nome de “teologia”. Este

mesmo método passou a ser usado para outros saberes, como o direito e a medicina.

No século XIII, a concepção de método recebe uma reelaboração numa perspectiva

2 Geyer, Bernhard. In: Überweg, Friedrich; Reicke, Rudolf; Heinze, Max (orgs). Grundriss der Geschichte der Philosophie. Zweiter Teil: Die mittlere oder die patristische und scholastische Zeit. Berlin: Mittler & Sohn, 1927, p. 143. 3No âmbito do cristianismo, chama-se de “era patrística” o tempo dos “Padres da Igreja”. Denominam-se “Padres da Igreja” determinados escritores da antiguidade cristã, clérigos ou leigos, em cujas obras a doutrina cristã foi primeiramente elaborada, exposta e conservada. De seus escritos surgiu toda uma elaboração da vida e da doutrina, da moral, dos sacramentos, do governo, da ascese e da mística, que veio a dar uma feição concreta e institucional ao cristianismo. Costuma-se delimitar o término da era patrística da seguinte maneira: no ocidente, com a morte de Isidoro de Sevilha (636) e no oriente, com a morte de João Damasceno (749). As três grandes fases da era patrística são: 1. Padres Apostólicos – são aqueles que conviveram, ainda, com os apóstolos (sec. I); 2. Padres Apologetas ou Apologistas – defensores do cristianismo diante dos pagãos (sobretudo séc. II); 3. Padres Dogmáticos – defensores da ortodoxia diante das heresias e participantes decisivos na elaboração dos primeiros dogmas do cristianismo (a partir do século III). A era patrística constitui-se como um momento em que a Igreja e a pregação cristã, em seu fervor, se expandem pelo mundo antigo, no espaço cultural da língua grega (a oikoumene). A expansão da mensagem cristã, a revelação e a fé em Cristo, pelo espaço geográfico e espiritual do mundo helênico tornou inevitável o encontro/confronto entre cristianismo e filosofia. Daí a importância da era patrística tanto para a história do cristianismo quanto para a história da filosofia.

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aristotélica. Antes de se impor com o seu conteúdo doutrinal, o aristotelismo se

impôs como forma de pensamento, na metodologia escolástica como tal, com o seu

rigor lógico-demonstrativo. Com o exercício operativo da razão ao modo do

pensamento aristotélico, a filosofia se tornou o elemento unificador e articulador de

todos os saberes cultivados na universidade, inclusive da teologia. Os teólogos, que

passaram antes de tudo pelo tirocínio do estudo aristotélico na Faculdade de Artes,

operaram uma verdadeira revolução na constituição do saber teológico, criando

uma teologia de natureza especulativa. A concepção de método escolástico

apresenta um esquema igual para o tratamento das questões, com algumas

variantes aqui e ali, porém. Não obstante a sua rigidez formal, oferece espaço para

as mais diversas direções de pensamento. A igualdade da forma exterior, porém,

acaba causando a impressão de uniformidade e de monotonia do trabalho filosófico.

4) A unidade de escolástica e mística. O historiador do cristianismo A. Harnack

considerou que há uma continuidade entre o cristianismo patrístico e o medieval, e

que em ambos o saber e a mística estão tão intimamente conexos. “Neste sentido

todos os desenvolvimentos do saber do ocidente na idade média são simplesmente

uma continuação do que a Igreja grega, em parte, já tinha vivido, em parte, sempre

ainda em movimentos fracos vivia”4. Escolástica e mística são no fundo um único e

mesmo fenômeno. “Onde, pois, este conhecimento decorre de tal modo que a

compreensão penetrante (Einsicht) no relacionamento de mundo e Deus é buscado

prioritariamente ou pura e simplesmente para compreender melhor a própria

posição da alma em relação a Deus e, nesta compreensão, crescer interiormente,

então se fala de teologia mística. Onde, porém, esta colocação reflexiva da meta do

processo do conhecimento não vem à tona de modo tão claro, e,

preponderantemente, o conhecimento do mundo em sua relação com Deus obtém

um interesse mais autônomo e objetivo, então usa-se o termo ‘teologia escolástica’.

Disso se vê que não se trata de duas grandezas que correm paralelamente ou até

mesmo uma contra a outra, mas que teologia mística e escolástica são um único e

idêntico fenômeno, que se apresentam em múltiplas gradações, dependendo do

4 Harnack, Adolf. Lehrbuch der Dogmengeschichte III, p. 331. Apud: Grabmann, Martin. Die Geschichte der scholastischen Methode. Erster Band. Freiburg im Breisgau: Herdesche Verlagshandlung, 1909, p. 11.

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domínio do interesse subjetivo ou objetivo”5. Mas, qual a concepção de mística guia

o pensamento medieval nesta unidade com o saber? Seja dada, aqui, uma indicação

introdutória apenas: “Não se trata de uma ascese em que o espírito procura dominar

as sensações dos sentidos e controlar os impulsos do corpo, as demandas e

exigências da carne. E por motivo muito simples. Não há aqui distinção entre corpo

e espírito. A mística é a superação contínua de toda e qualquer dicotomia. Existe

ascese mas a ascese da mística é o treinamento e a disciplina da unidade de tudo

que é humano, corpo, carne, alma, mente e espírito, cuja perda gera as dualidades

todas, tanto no corpo como no espírito, tanto na história como na sociedade, tanto

no sentimento como na ação e no conhecimento. A mística especulativa, seja no

século XI com Santo Anselmo de Cantuária, seja no século XII, com Bernardo de

Claraval e os Victorinos, seja no século XIV com mestre Eckhart, seja no século XV

com Nicolau de Cusa, não se opõe ao conceito e à reflexão, nem à dialética e ao

discurso da razão, antes os integra todos numa dinâmica concreta das atividades de

videre, sentire e experiri pela interiorização de um intuitus originarius”6.

A RECEPÇÃO DE ARISTÓTELES – AS POSIÇÕES DOS TEÓLOGOS E DOS ARTISTAS.

O acontecimento que trouxe uma considerável transformação e um recomeço

no âmbito dos saberes e do estudo, na época da invenção das universidades, é a

recepção de Aristóteles7. Esta recepção foi um fenômeno complexo. Em primeiro lugar,

5 Harnack, Adolf. Lehrbuch der Dogmengeschichte III, p. 329. Apud: Grabmann, Martin. Die Geschichte der scholastischen Methode. Erster Band. Freiburg im Breisgau: Herdesche Verlagshandlung, 1909, p. 11. 6 Leão, Emmanuel Carneiro. Filosofia Medieval. In: Scintilla, 2012, p. 150. 7 De 1150 a 1250 toda a obra de Aristóteles foi traduzida. De início conhecia-se apenas a obra concernente às “Categorias” e o “De Interpretatione” (Da interpretação), na tradução de Boécio. Mas, no período aludido, não somente os demais escritos do Organon, como também escritos de metafísica, de física, psicologia e ética foram traduzidos. No ocidente latino, a recepção do pensamento do Estagirita começa pelos idos de 1200, especialmente na Universidade de Paris. De início, Aristóteles foi proibido, depois, acabou sendo recomendado. A proibição de Aristóteles se deve a pelo menos três teses que colocaram em questão convicções fundamentais da fé cristã: a criação ex nihilo (a partir do nada), a imortalidade individual da alma e a doutrina da providência divina. No ano de 1210, um sínodo de Paris proibiu a leitura dos textos de filosofia da natureza de Aristóteles. Uma proibição de 1215, porém, inclui a Metafísica. Contudo, os estatutos da Faculdade de Artes da Universidade de Paris preveem no currículo o estudo do Organon e da ética aristotélica. Em 1231, o papa Gregório IX confirmou a proibição anterior, mas com a ressalva: “até que fossem corrigidos” (os seus escritos). Entretanto, não somente os mestres da faculdade de artes, mas também os da teologia seguiram lendo, comentando, discutindo e criticando Aristóteles,

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há que se considerá-la como um fenômeno tardio: Aristóteles só chega ao ocidente

latino depois de sete séculos da queda do Império Romano. Em segundo lugar, esta

recepção é um fenômeno ambíguo: Aristóteles não chega sozinho – com os seus escritos

autênticos e apócrifos chegam também outras tradições, como o neoplatonismo e o

peripatetismo árabe. Em terceiro lugar, antes de se impor com o seu conteúdo doutrinal,

o aristotelismo se impôs como forma de pensamento, na metodologia escolástica como

tal, com o seu rigor lógico-demonstrativo. Em quinto lugar, com o exercício operativo da

razão ao modo do pensamento aristotélico, a filosofia se tornou o elemento unificador

e articulador de todos os saberes cultivados na universidade, inclusive da teologia. Em

sexto lugar, os teólogos, que passaram antes de tudo pelo tirocínio do estudo

aristotélico na Faculdade de Artes, operaram uma verdadeira revolução na constituição

do saber teológico, criando uma teologia de natureza especulativa.

Nos primeiros decênios do século XIII, a nova literatura filosófica influiu

consideravelmente no trabalho teológico de teólogos parisienses, tendo sido eles, e não

os “artistas”, os primeiros a se confrontarem com o pensamento aristotélico e com as

tradições, árabe e judaica, que chegam concomitantemente com esse pensamento ao

ocidente latino. Os primeiros mestres de Paris a realizar esta confrontação foram os

teólogos Guilherme de Auxerre8, Filipe o Chanceler9 e Guilherme de Auvergne (de

até que, em 1255, os escritos de Aristóteles fossem recomendados oficialmente no programa de estudos da faculdade de Artes. Aristóteles se tornou, simplesmente, o “Filósofo” e a admiração que Avicena, Averróis e Maimônides nutriram pelo Estagirita passou também aos filósofos cristãos do mundo latinófono (Cfr. Heinzmann, 1992, p. 158-160). 8 Wilhelmus ou Guillelmus Altissidoriensis (c. 1150 – 1231), “Arquidiácono de Beauvais”: ensinou em Paris na Faculdade de Artes e depois na de Teologia. A crônica de Salimbene de Parma, escrita em 1247, o recorda como um docente célebre pela sua habilidade em sustentar as disputas. Em 1229 obtém de Gregório IX o apoio por ocasião da crise desencadeada pela violência policial sobre os estudantes e pela intervenção política sobre a universidade. A bula Parens Scientiarum, do mesmo papa, datada de 13 de abril de 1231, o nomeia como “procurator” para intermediar as relações entre a Universidade de Paris e a Sé Romana. Uma carta papal de 23 de abril de 1231 o nomeia entre os três membros da comissão encarregada de examinar os “libri naturales” de Aristóteles. Parece ter morrido neste mesmo ano (Cfr. Sileo, 1996, p. 616-617). 9 Philippus Grevius, nascido entre 1165 e 1185, aparece pela primeira vez em 1211 com o título de Arquidiácono de Noyon. Em 1217 é chamado pelo bispo de Paris para a chancelaria de Notre-Dame. Dignitário do Capítulo e fiduciário do bispo, é nomeado delegado episcopal na direção da Universidade. Na crise de 1229-1231 se opõe ao reino da França e ao bispo Guilherme de Alvérnia, com quem tinha disputado a sucessão na sede episcopal de Paris, e tinha perdido. Foi mestre regente na Faculdade de Teologia. Favoreceu a entrada das Ordens Mendicantes (dos Pregadores e dos Frades Menores) na Universidade. Morreu ao fim de 1236 e foi sepultado na igreja dos franciscanos (Cfr. Sileo, 1996, p. 623-624).

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Alvérnia)10. Guilherme de Auxerre, escritor de uma Summa super quatuor libros

sententiarum (Suma sobre os quatro livros das sentenças, de Pedro Lombardo), que é

mais conhecida como Summa Aurea, foi tido em grande consideração por Alexandre de

Hales e pelos franciscanos da escola de Paris. Na Summa Aurea, e também na Glossa

sobre o Anticlaudianus de Alano de Lille temos as primeiras citações aristotélicas e do

peripatetismo árabe por parte de teólogos parisienses11. Filipe, chanceler da

Universidade, e Guilherme de Alvérnia, bispo de Paris, também favoreceram em muito

o ingresso e a integração dos frades, Menores e Pregadores, na Universidade parisiense.

A obra mais importante de Filipe o Chanceler é a Summa quaestionum theologicarum

(Suma das questões teológicas), conhecida como Summa de bono. Há citações do Liber

de Causis12 e de Aristóteles13. Alexandre de Hales tem também a Summa de bono em

alta consideração. Na vasta obra de Guilherme de Alvérnia. A obra sua mais imbuída de

autoridade junto aos medievais é a que ficou conhecida como Magisterium sapientiale

et divinale, que é uma composição de monografias escritas em tempos diversos14. Aos

olhos de Guilherme de Alvérnia, Aristóteles é o príncipe do saber, quando se trata dos

conhecimentos acerca do mundo sublunar. Na metafísica, porém, Aristóteles detém

uma autoridade limitada. Ele tem em alta consideração ao pensador judeu Salomão Ibn

Gabirol, que é conhecido pelos latinos como Avicebron ou Avencebrol, e tido por

Guilherme como cristão, cuja obra traduzida para o latim como “Fons Vitae” (A fonte da

10 Nascido em Aurilac aproximadamente pelo ano 1180, em 1225 se torna Magister em teologia na Universidade de Paris. Em 1228 foi feito bispo por Gregório IX. Apoiou o poder real na crise de 1229-1231. Favoreceu o ingresso dos mendicantes na instituição universitária. Participou também da comissão nomeada em 1231 para examinar os “libri naturales” de Aristóteles. Morreu em 1249 (Cfr. Sileo, 1996, p. 628-629). 11 Na Suma Áurea encontram-se citações da Ética, do De Anima e da Física. Elas são tomadas da Ethica Vetus e da antiga tradução do De anima do grego para o latim. No Comentário ao Anticlaudiano de Alano de Lille, obra considerada posterior à Suma Áurea, há citações da Física, do De generatione et corruptione e da Metafísica. Além disso, aparecem as primeiras citações dos comentários de Averrois (Cfr. Sileo, 1996, p. 617; Geyer, 1927, p. 263). 12 Obra apócrifa de Aristóteles. O Livro do Bem Puro, conhecido no ocidente com o nome de Liber de causis (Livro das causas), tido em bastante consideração pelo peripatetismo árabe, tem como fonte principal a Elementatio theologica (Elementos de Teologia) de Proclo. 13 De Aristóteles são citados o De Caelo et Mundo em tradução do árabe para o latim, o De generatione et corruptione, a Física, o De anima, em tradução do grego para o latim, a Ethica vetus e a Ethica nova e a Metaphysica vetus (Cfr. Geyer, 1927, p. 363). 14 As monografias mais importantes para a história da filosofia medieval são: um De universo, um De anima, um De Trinitate (Sileo, 1996, p. 629; Geyer, 1927, p. 363-364).

12

vida) gozou de autoridade na escolástica daquele tempo. São citados também o judeu

Moisés Maimônides e os árabes Alfarabi, Avicena, Algazali e Averrois.

A recepção de nova literatura impôs aos teólogos a necessidade de repensar a

relação entre filosofia e teologia, bem como a cientificidade da própria teologia.

Paradigmático ficou sendo o trabalho de Guilherme de Auxerre na Summa Aurea.

Vejamos algo deste trabalho, especialmente o direcionamento que é dado ao problema

do relacionamento entre filosofia (especialmente a metafísica) e a teologia cristã, e ao

problema da cientificidade da teologia.

Guilherme de Auxerre não somente trabalha com uma racionalidade imanente à

própria fé e à revelação (ex theologicis rationibus), mas recorre à metafísica, entendida

como ciência do ente enquanto ente e como ciência natural acerca do divino, para

sustentar, de fora, a sistematização dos dados exegéticos e dogmáticos da teologia

cristã. Guilherme une metafísica e teologia da revelação cristã, mas sem confundir o

discurso teológico de uma e de outra. Há uma scientia naturalis de divinis (ciência

natural acerca das coisas divinas), que pronuncia um discurso natural circa res divinas

(sobre as coisas divinas) e há uma scientia Dei (ciência de Deus) acolhida na fé. É trabalho

do teólogo encontrar a correspondência entre as duas teologias, a natural ou metafísica,

e a da fé e da revelação bíblica. Guilherme entende que há duas revelações, uma por via

natural (per modum naturae), outra por via sobrenatural (per modum gratiae). Na

revelação natural, o intelecto é iluminado para conhecer Deus a partir das criaturas (Cfr.

Rm 1, 18-20). Na revelação sobrenatural os artigos a serem cridos são recebidos por

uma iluminação que se dá ao modo da graça, na qual Deus ilumina o intelecto com a fé,

que é também uma iluminação da mente (fides mentis est illuminatio). O conhecimento

metafísico de Deus é o conhecimento da deidade como “prima essentia”, ou seja, o

conhecimento da “essentialitas Dei” (essencialidade de Deus) a partir e por meio das

criaturas (per criaturas), mais precisamente, partindo da concepção comum do ente (ens

in communi).

Duas proposições da Metafísica de Avicena (Metaphysica I, 5)15 são importantes

para impostar este discurso metafísico (onto-teo-lógico) sobre Deus. A primeira é: “ens

15 Avicena Latinus, I, Louvain – Leiden 1977, p. 31-32 (Apud Sileo, 1996, p. 621).

13

est prima animae impressio” (o ente é a primeira impressão que incide sobre a alma). A

segunda é: “ens est primum universale aggregans omnia in sua intentione universali” (o

ente é o primeiro universal que agrega todas as coisas na sua intenção universal).

Partindo do conceito universal de ente se chega ao conceito de Deus haurido por via

natural, a saber, como “vere ens”, ou seja, como o ente em sentido autêntico absoluto

e simples. Este conceito, por um lado, como já foi dito, é analógico, parte do “ens in

comumuni” e das criaturas; e, por outro lado, é dialeticamente constituído.

Primeiramente, Guilherme considera que se há de resguardar a transcendência

da luz da fé por meio do princípio metodológico de que, sem menos, “não se há de

aplicar às realidades divinas as razões próprias das realidades naturais”, como ele diz no

prólogo da Summa aurea (Apud Chenu, 1995, p. 48). Este princípio já tinha sido exposto,

no século XII, por Gilberto Porreta e por Alano de Lille. A este princípio corresponderia,

no século XIII, a doutrina do Concílio do Latrão (1215) referente à relação entre criatura

e criador, a saber, de que “não se pode estabelecer uma semelhança tal que não se deva

estabelecer entre eles uma dessemelhança ainda maior” (Apud Chenu, 1995, p. 49). Em

segundo lugar a afirmação metafísica sobre Deus provém de uma negação, ou melhor,

é uma negação da negação. Ao se dizer que Deus é “vere ens” se quer dizer que ele é

ente em sentido mais próprio porque ele é “ens a se” (ente a partir de si). Entretanto,

ao afirmarmos que Deus é “ens a se” o que estamos fazendo, no fundo, é negar que

Deus seja “ens ab alio” (ente a partir de outro). Verdadeiramente ente é aquele que não

é causado por outro e é este ente que se intenciona quando se usa o nome “Deus”.

“Deum significat ut primum ens, id est non ab alio” (Deus significa como que o primeiro

ente, ou seja, o ente que não é a partir de outro) (Cfr. Sileo, 1996, p. 618-622). A partir

de então, guardados o princípio do caráter analógico do discurso sobre Deus a partir do

ente e dos transcendentais, bem como o caráter de negação da negação das afirmações

ontológicas sobre Deus, toda uma teologia dos filósofos, cujo caráter era diverso da

teologia neoplatônica, podia ser posta a serviço da elaboração racional-natural dos

conceitos próprios da teologia cristã, que são hauridos pelo modo da graça a partir da

revelação sobrenatural acolhida pela fé.

A outra grande contribuição oferecida ainda por Guilherme de Auxerre e que

incide diretamente na questão da cientificidade da teologia é a assunção dos artigos de

14

fé como princípios na probatio fidei, ou seja, no procedimento demonstrativo que

possibilita a teologia cristã erigir-se como ars ou scientia. A Summa aurea se preocupa

com o problema: como aproximar ciência aristotélica e teologia cristã? “Uma ciência

teológica conforme os critérios aristotélicos da cientificidade, esse é o ideal que a

Summa aurea instrumenta, sem insistir” (De Libera, 1998, p. 376). Esta empreitada se

tornou viável a partir do momento em que Guilherme traduz, quer dizer, interpreta, a

expressão “pragamaton elenchos ou blepomenon” que compõe a definição da fé na

Carta aos Hebreus (11,1) como “argumentum non apparentium”, ou seja, como

argumento referente às coisas que não aparecem16. Mas, se a fé é um argumento, então

a fé não perde o seu mérito? De fato, Gregório tinha dito: “não tem nenhum mérito a fé

para a qual a razão humana pode oferecer prova”. Frente a isso, Guilherme dá uma

indicação mais precisa, a saber, de que a fé é argumento, não provado (non probato),

mas sim probante (probans). Na teologia cristã, trata-se, portanto, de provar a partir

dos artigos de fé e não de provar os artigos de fé. Entretanto, em virtude de que se pode

tomar a fé como argumento probante? A resposta de Guilherme é: “propter articulos

fidei qui sunt principia per se nota” (em virtude dos artigos de fé que são princípios

conhecidos por si). Os artigos de fé são tomados, pois, na teologia cristã, como axiomas

(cfr. De Libera, 1998, p. 377-378). Mas, como e em que sentido um processo

demonstrativo, essencial para que se possa falar de “scientia” em sentido aristotélico,

pode se tornar inerente à teologia cristã? Ainda no prólogo da Summa Aurea, Guilherme

diz:

Em três sentidos se demonstra a fé (Tripliciter ratione ostenditur fides). O primeiro, é que as razões naturais aumentam e confirmam a fé, nos fieis. De fato, como Deus, enquanto fim, não deve ser amado por causa dos benefícios temporais e, todavia, estes mesmos benefícios aumentam a caridade e a confirmam em quem a possui, (são, de fato, causas motivadoras e produtoras do amor de Deus), assim as razões naturais aumentam e confirmam a fé em quem a possui. O segundo sentido é a defesa da fé contra os heréticos. O terceiro é a promoção dos simples à nossa fé; como, de fato, por causa dos bens temporais os simples são promovidos ao verdadeiro amor de Deus, assim, mediante as razões naturais, os simples são muitas vezes promovidos à verdadeira fé (Apud Chenu, 1995, p. 53).

16 De Libera formula assim a sua tradução de Guilherme: “a fé é uma maneira de argumentar além dos fenômenos” (1998, p. 376).

15

É possível, portanto, exercitar a racionalidade demonstrativa dentro do

horizonte da “doctrina sacra”, ou, como dirá Alexandre de Hales, dentro da “doctrina

theologiae”. O exercício desta racionalidade, cujo processo demonstrativo parte dos

artigos da fé quais axiomas, serve para sustentar a fé dos fiéis, para defender a fé diante

dos hereges e para robustecer a fé dos simples. As razões naturais servem para

incentivar a fé, assim como os bens temporais servem para incentivar o amor daqueles

que se veem agraciados com eles como sendo dons de Deus. Ademais, a própria fé é

capaz de gerar um intelligere (um compreender) a partir de si mesma. Mas, o que

significa, aqui, a intelecção gerada pela própria fé? No prólogo da Summa Aurea ainda

se pode ler:

Depois, quanto maior em alguém é a fé, tanto mais rapidamente ele vê razões deste gênero, pois a fé é uma iluminação da mente para ver Deus e as realidades divinas, e quanto mais é iluminada, tanto mais claramente a alma vê não só aquilo que é assim como esta o crê, mas também em que modo seja assim e porquê; isto significa intelligere (Apud Chenu, 1995, p. 54).

Uma longa tradição medieval latina ressoa aqui, desde a indicação do “crede ut

intelligas” (creia para inteligir), de Agostinho (Sermo 43, 7, 9 e 118, 1), até o lema “fides

quaerens intellectum” (a fé buscando intelecção), de Anselmo (subtítulo do Proslogion).

Esta compreensão de um intelligere gerado pela própria fé permitiu a Guilherme

retomar um dito de Simão de Tournai (c. 1190) em que, numa comparação, são postos

lado a lado Aristóteles e Cristo, resultando um contraste: “Por isso, foi dito justamente

por alguém, que para Aristóteles o argumento é uma razão que gera fé (ratio... faciens

fidem) em relação a uma coisa dúbia; para Cristo, ao invés, o argumento é uma fé que

gera a razão (fides faciens rationem)” (Apud Chenu, 1995, p. 54). Alexandre de Hales

retomará quase ao pé da letra estas indicações de Guilherme de Auxerre e de Simão de

Tournai na questão II do Tratado Introdutório (m. 3, c. 4), onde ele faz ressaltar o caráter

iluminativo da fé e o caráter heurístico da razão teológica: “a fé em base a que se crê

(fides qua creditur) é a luz (lumen) das almas, pela qual quanto mais alguém é iluminado,

tanto mais é perspicaz para encontrar as razões (inveniendas rationes), com que se

demonstram aquelas coisas se há de crer (probentur credenda)” (Hales, 1924, p. 35).

16

BOAVENTURA DE BAGNOREGIO

Podemos considerar que o clímax do pensamento medieval latino dura cerca de

um século e meio e se constituiu como diferentes posições que interagiam entre si e

frente ao fenômeno histórico do aristotelismo. Este clímax começa, no século XIII, com

o início do ensinamento de mestres como Alexandre de Hales e Alberto Magno e termina

com o pensar de quatro grandes mestres determinantes para o século XIV: João Duns

Scotus, Mestre Eckhart, Dante Alighieri e Guilherme de Ockham.

Alexandre, nascido por volta de 1185 ou de 1186, na Inglaterra, se tornou mestre

regente na faculdade de teologia de Paris em cerca de 1220 ou 1221 e lá pelo ano de

1236 ou 1237 entrou para a Ordem dos Frades Menores (franciscanos). Alberto Magno,

nascido por volta de 1193, na Alemanha, depois de sua entrada na Ordem dos

Pregadores (dominicanos), por volta de 1223, começou a ensinar teologia depois de

1233 nas escolas superiores dos dominicanos na Alemanha (Hildesheim, Freiburg im

Breisgau, Regensburg e Strassburg) e se tornou mestre na faculdade de teologia de Paris

em 1245. Destes dois mestres destas duas novas ordens mendicantes vêm dois insignes

pensadores do século XIII. Aluno de Alexandre de Hales foi o franciscano Boaventura de

Bagnoregio (nascido por volta de 1217) e aluno de Alberto Magno foi o dominicano

Tomás de Aquino (nascido em 1225). Ambos ensinaram na faculdade de teologia de

Paris, enfrentando, de diferentes modos, os desafios de seu tempo, e ambos faleceram

no mesmo ano, em 1274. Até 1250 toda a obra de Aristóteles tinha sido traduzida para

o latim. A sua recepção começara em Paris por volta de 1200. Em aproximadamente

meio século, Aristóteles, de proscrito, se tornou prescrito. De fato, em 1255 os escritos

de Aristóteles foram recomendados oficialmente no ensinamento da Faculdade de

Artes. Os teólogos tinham sido os primeiros a se dedicar a estudar Aristóteles. Tomás de

Aquino foi o teólogo que promoveu uma síntese em que maiormente a filosofia de

Aristóteles fora subsumida. Boaventura, porém, considerava que a Aristóteles tinha sido

dada a palavra da ciência e a Platão a palavra da sabedoria e, atendo-se à superioridade

de Platão sobre Aristóteles, que ele não ignorava, promoveu uma síntese diversa do

pensamento escolástico, filosófico-teológico-místico, a partir da tradição que passa por

Agostinho (séc. IV-V) e Dionísio (séc. V-VI), Anselmo (séc. XI-XII) e que, para ele, se

17

concluía enfim em representantes do pensamento no século XII, como Bernardo de

Claraval, Hugo e Ricardo de São Vítor.

Seja para Tomás, seja para Boaventura, o aristotelismo dos “averroistas latinos”,

representado por mestres da Faculdade das Artes, como Sigério de Brabante e Boécio

de Dácia, constituiu um grande desafio. O ponto explosivo do aristotelismo averroista

destes mestres não estava propriamente em teses particulares que iam contra a

doutrina cristã, tais como a da eternidade do mundo, a do intelecto único para todos os

homens, a não presciência de Deus em relação aos futuros contingentes, mas na sua

atitude face à questão da relação entre razão e fé. O decisivo era: ou o aristotelismo

seria posto a serviço da teologia ou se tornaria ameaçador à cristandade. Os averroistas

da Faculdade de Artes, que eram cristãos, tendiam para uma dissociação entre a

“scientia” aristotélica, isto é, o saber demonstrativo que parte de princípios e chega, por

via de necessidade lógica, a conclusões que não podem ser diversas de como são, e a fé

cristã. Sigério, especialmente, desvinculava a filosofia da teologia, afirmando não ser

necessária uma harmonia entre a “scientia”, o saber ao modo aristotélico, e a fé.

Boaventura e Tomás de Aquino iriam responder de modo diverso a este desafio do

aristotelismo averroista dos mestres da Faculdade de Artes.

Boaventura se mantém fiel ao endereço platônico-agostiniano que predominou

em toda a idade média latina até então. O fio condutor de sua compreensão do ser da

criatura pode ser lido na sentença de Hugo de São Vítor: “verbum divinum omnis

creatura” (toda criatura é uma palavra divina). Cada coisa é palavra: expressão da

Palavra criadora de Deus. O mundo é o livro originário em que Deus, o seu autor, se

deixa ler. O ser das coisas consiste, pois, em significar, isto é, em indicar Deus, em deixar

e fazer ver o poder, a sabedoria e a bondade do Criador. Contudo, por causa do pecado,

o homem deixou de ser capaz de ler o livro da criação divina. Por isso, o Verbo, a Palavra

criadora de Deus, se fez carne, se tornou homem entre os homens, na história. O Verbo

encarnado é o “medium”, meio e centro, de todo o real e de todo o saber. Para

Boaventura, a razão humana se perde no erro, se entregue unicamente a si mesma.

Somente no interior da fé é que ela acerta o seu alvo: o conhecimento da verdade, a

conquista da sabedoria, que é uma só, e que é dada aos homens numa múltipla

iluminação, para que eles alcancem a salvação, a beatitude eterna. Na segunda metade

18

dos anos sessenta e na primeira metade dos anos setenta do século XIII, até a sua morte,

em 1274, Boaventura irá travar uma forte batalha contra a hegemonia do aristotelismo

em geral e contra os supostos erros do averroismo em particular, dentre estes, a tese

da eternidade do mundo e a tese do intelecto único para todos os homens.

A tese do mundo eterno contradiz dois dos dogmas fundamentais do

cristianismo: a criação “ex nihilo” (do nada) e a encarnação do Verbo. A tese do intelecto

único ameaça a com- preensão da individualidade da pessoa humana e, por

conseguinte, de sua liberdade; e, enfim, de sua responsabilidade, pela qual o homem

pode ganhar ou perder a sua alma em face de Deus. Ameaça também a afirmação da

imortalidade do indivíduo: pois, se a individualidade é dada pela matéria e se limita à

matéria, não pertencendo ao espírito, então com a morte corporal se desfaz a própria

individualidade. O que é imortal é o que é impessoal: o intelecto agente único que atua

no inteligir de todos os homens. Na criação se salvaguarda a liberdade e onipotência de

um Deus transcendente, Senhor do ser e do nada; na encarnação se salvaguarda a

liberdade e o amor pelo qual a pessoa divina do Verbo assume a humanidade em sua

carne; na individualidade, se salvaguarda a liberdade e a imortalidade da pessoa

humana, ou seja, a tese de que o homem individual é livre e responsável por seus atos

e que, ao exercer esta liberdade na responsabilidade, no tempo da sua história

biográfica ele decide sobre seu destino eterno. As verdades de fé do cristianismo,

portanto, a saber, a criação a partir do nada, a encarnação e salvação eterna ou não da

alma humana em sua individualidade, pressupõem a temporalidade e a historicidade. A

temporalidade e historicidade do universo (decursus mundi); a temporalidade e

historicidade da ação imanente do Deus transcendente (encarnação); a temporalidade

e historicidade da existência humana, do exercício de sua liberdade e responsabilidade.

O perigo do aristotelismo averroista, na perspectiva de Boaventura, está em sua

concepção a-histórica, fatalista ou necessitarista e impessoal da realidade como um

todo, de Deus, do mundo e do ser humano17.

17 Fernandes, M. A. O confronto de São Boaventura com a Filosofia nas Conferências de Paris sobre Os Dez Mandamentos e sobre Os Sete Dons do Espírito Santo. In: Revista Coniunctio, ano 2, nº 2, 2013, p. 54.

19

TOMÁS DE AQUINO

Outra foi a resposta de Tomás de Aquino ao desafio do aristotelismo averroista.

Tomás nasceu em 1224, na Itália (perto de Nápoles). Foi educado com os beneditinos

em Monte Cassino e estudou as Artes Liberais no centro imperial de estudos de Nápoles,

onde teve como mestre Pedro de Hibérnia. Contrariando sua família, entrou para a

Ordem dos Pregadores (a ordem mendicante dos dominicanos). Estudou depois com

Alberto Magno (1200-1280) em Paris e em Colônia. Com este aprendeu a dedicar-se ao

estudo de Aristóteles. Sua atividade de ensino se dá antes de tudo em Paris. Depois

ensina na Itália, em Roma, Viterbo e Nápoles. Em sua segunda fase em Paris enfrenta

uma polêmica dirigida contra as ordens mendicantes e também combate os aristotélicos

extremos da faculdade de Artes. Tomás de Aquino se entende, antes de tudo como

teólogo. Num dos raros momentos em que fala de si em sua obra, ele declara: “A tarefa

principal da minha vida, à qual me sinto obrigado em consciência diante de Deus, é que

todas as minhas palavras e todos os meus sentimentos falem d’Ele”. Antes de morrer,

tem uma experiência mística que o leva a dizer: “Não posso mais. Tudo aquilo que

escrevi me parece palha em comparação com aquilo que vi” (Apud TORREL, 2003, p. 26).

Morre em 1274, com 50 anos de idade, perto da abadia cisterciense de Fossanuova, a

caminho do Concílio de Lião. Foi em vida e depois da morte contestado pelos

agostinistas, tanto os de fora como os de dentro de sua própria ordem. Dentre suas

obras, no interesse da filosofia, se destacam o opúsculo intitulado De ente et essentia

(Do ente e da essência), os diversos Comentários a Aristóteles, as Questões disputadas,

a Suma Contra os Gentios e a Suma Teológica.

A Suma Teológica é a obra mais célebre de Tomás, embora tenha ficado

inacabada. Sua intenção pedagógica nesta obra se deixa declarar com as palavras: “Os

doutores da verdade católica devem instruir não só os iniciados, mas também os

principiantes (...), por isso, o intento que nos propomos nesta obra é o de expor tudo

aquilo que concerne à religião cristã no modo mais conveniente à formação dos

principiantes” (Apud TORREL, 2003, p. 30). Ele assim explica o gênero da Suma: “...

tentaremos, confiando na divina ajuda, expor a doutrina sagrada com a maior brevidade

e clareza permitida por tal disciplina” (Apud TORREL, 2003, p. 31). Tomás é um pensador

20

sistemático que reflete sobre um assunto partindo dos princípios últimos claramente

sistematizados. Mas como é ao mesmo tempo o pensador objetivo, cada pormenor que

trata não é considerado apenas pretexto para discorrer sobre os princípios, mas é na

verdade ponderado com particular atenção, ainda que à primeira vista não pareça

conformar-se facilmente com os grandes motivos principais de seu pensamento. Tomás

declara o limite do conhecimento teológico, na tradição do Pseudo-Dionísio, a quem

chegou a comentar. Nós não podemos saber de Deus o que ele é, mas somente o que

ele não é. Tomás sabe bem que a precisão e objetividade da verdadeira teologia só tem

um fim em vista: arrancar o homem da claridade fácil da sua existência, para mergulhá-

lo no mistério da incompreensibilidade de Deus, onde o homem ultrapassa a

compreensão para se render à adoração. Para ele, só na medida em que a teologia dos

conceitos compreensíveis se revogar na teologia da incompreensibilidade que toma o

homem de veneração diante do mistério, é que é verdadeiramente teologia. A teologia

apresenta, na Suma, três temas, segundo o esquema do exitus (saída de Deus) e reditus

(retorno para Deus): fala-se, antes de tudo, de Deus; em seguida, do movimento da

criatura racional para Deus; enfim, do Cristo, o qual, enquanto homem, é via para

ascender a Deus.

Mesmo sendo principalmente teólogo, Tomás não deixou de valorizar a filosofia.

Sempre trabalhava em paralelo. Por exemplo, quando escrevia a parte da Suma que

trata da moral cristã, ele trabalhava também, paralelamente, um comentário à Ética de

Aristóteles (TORREL, 2003, p. 22). Apesar de transitar bem na dimensão da filosofia e da

teologia, ele não quis que ambas se confundissem. No ocidente cristão, é o primeiro a

postular uma autonomia da filosofia em relação à teologia. Paradoxalmente, porém,

esta postulação de autonomia da filosofia não é motivada pela reivindicação de uma

libertação da razão em relação à fé, mas sim, por tomar a sério os dogmas da fé: a

criação e a encarnação. Durante séculos, o cristianismo tinha seguido pela via do

espiritualismo e transcendentalismo. O juízo final era o dogma principal. Platão era a

filosofia mais adequada para apoiar esta via de transcendência. Mas, a partir do século

XII, como demonstra a arte gótica, o cristianismo sofre uma guinada radical: volta-se

para o mundo como criação de Deus e para a humanidade de Deus. Daí decorre

também, na filosofia, a exigência de uma guinada anti-platônica. O idealismo

21

transcendental platônico cede o lugar ao realismo empírico aristotélico. É preciso se

voltar para o mundo sensível, o mundo da experiência, no qual nós, de início e na maior

parte das vezes nos encontramos. Não ter vergonha de reconhecer que nossa aventura

no conhecimento começa sempre “de baixo”, do mundo sensível. Depois, não querer

construir o conhecimento em especulações soltas no ar, mas atendo-se ao que se

mostra concretamente – a manifestis non discendere (não se afaste do que é

manifesto!), diz ele (De Spiritualibus Creaturis 5: apud HEINZMANN, 1992, p. 205). Deus

cria dando o ser ao mundo e o mantendo neste mesmo ser. Entretanto, ao criar, Deus

deixa sua obra repousar em si mesma, ou melhor, deixa que sua obra tenha em si mesma

o princípio de sua atividade. Enquanto os agostinistas, de modo pessimista, salientavam

as consequências do pecado para a razão humana, que se tornou cega para o essencial,

para o mundo do espírito e para Deus, Tomás salienta, de modo otimista, que o homem

fora criado por Deus como sua imagem e semelhança, isto é, como um ser livre e

autônomo. A onipotência do criador não suprime a liberdade do homem, antes, a

promove. Criar é deixar-ser. É não somente um ato de dependência, mas é também um

ato de liberação. A “causa primeira” não anula, antes promove a autonomia das “causas

segundas” que atuam no mundo. A autonomia da razão é o horizonte da filosofia. Aliás,

a filosofia é o máximo empenho de autonomia da razão (HEINZMANN, 1992, p. 204-

205).

A afirmação desta autonomia é também o motivo pelo qual Tomás prefere, na

teoria do conhecimento, a teoria da abstração de Aristóteles do que a teoria da

iluminação de Agostinho. Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, entende a conquista

do conhecimento como um empenho do próprio homem, uma disposição adquirida

graças ao esforço humano de compreender as coisas. O conhecimento humano sempre

parte dos sentidos. Os sentidos nos revelam coisas sensíveis, substâncias individuais.

Conhecer é abstrair. Abstrair é, antes de tudo, prescindir: prescindir do que é sensível,

do que é particular. Abstrair é, depois, extrair: extrair o inteligível, o elemento universal.

O intelecto tem o poder de distinguir mentalmente o que, na realidade, é inseparável:

o inteligível e o sensível, o individual e o universal. O homem transcende o mundo da

experiência pela capacidade abstrativa da razão. A razão, a partir da abstração, forma o

conceito; a partir do conceito, enuncia juízos sobre o real; a partir dos juízos, realiza

22

raciocínios (silogismos); concatenando os juízos e articulando razões necessárias e

prováveis, a razão elabora a ciência. A ciência é, portanto, uma construção do homem.

Mas esta construção se dá graças à capacidade que lhe foi dada pelo Criador. Esta

capacidade é a “luz natural da razão”. A ciência e a filosofia são uma conquista do

homem, que segue esta luz natural da razão. A fé já um dom de Deus, que é infuso no

homem como graça de uma iluminação sobrenatural. Assim, mesmo seguindo uma

concepção Aristotélica do conhecimento como abstração, Tomás ainda entende o

conhecimento como “iluminação”, embora seja uma iluminação que advém do intelecto

como potência naturalmente inserida na alma humana, que é criada por Deus. Deus é a

fonte de ambas as formas de conhecimento: a da razão natural e a da fé sobrenatural.

Por isso, ambas não podem se contradizer.

A envergadura do intelecto é de tal magnitude, que Tomás chega a firmar de que

a alma intelectual é, de certo modo, todas as coisas. Isso quer dizer: o intelecto tem a

capacidade para conhecer todo o ente, qualquer que seja o seu modo de ser, pois todo

o ente, enquanto criação do intelecto divino, é inteligível. Há uma correlação

fundamental entre pensar e ser. Seguindo sua própria capacidade, o intelecto é apto a

partir das coisas e se elevar até Deus. Como fica claro ao fim de seu opúsculo juvenil O

ente e a essência, a filosofia de Tomás é a demonstração de uma elevação da mente

para Deus, uma elevação que o homem faz a partir de suas próprias forças (TOMÁS DE

AQUINO, 1990, p. 241). Autonomia é isso: o erguer-se a si mesmo do homem, a partir

da capacidade de sua liberdade. Entretanto, embora fundamentalmente orientada para

o todo, a razão não pode tudo. Acima da luz natural da razão, está a luz sobrenatural da

fé. Se a filosofia é a ciência da autonomia da razão, a teologia é a ciência da obediência,

melhor, da recepção agradecida e afeiçoada da fé. A fé é “virtude infusa”. A disposição

de crer não vem do homem, mas de Deus. E a teologia é uma ciência bem singular, pois

é a ciência de uma verdade, cuja revelação não é acessível à investigação autônoma da

razão, mas é sobrenatural, isto é, puramente gratuita. A filosofia é experiência do

empenho da razão. A teologia é a experiência da gratuidade da fé. Ambas, no entanto,

isto é, razão e fé, vêm de Deus. Uma, a filosofia, está fundada na ordem da criação e da

luz natural da razão. A outra, a teologia, está fundada na ordem da salvação e na luz

sobrenatural da fé (revelação).

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Tomás de Aquino assume uma posição diferenciada em relação à tradição

dominante na Idade Média latina até o século XIII. Ele opera uma distinção nítida entre

filosofia e teologia. Não só. Ele até postula certa autonomia da filosofia em relação à

teologia. Filosofia e teologia são saberes distintos. A filosofia é o conhecimento que

surge da luz natural da razão. A teologia é o conhecimento que parte da luz sobrenatural

da revelação e se move no horizonte da fé. A filosofia pode se elevar a Deus, mas é um

conhecimento que se alcança por via da razão natural, partindo-se das criaturas, como

aparece na exposição das "cinco vias" que demonstram a existência de Deus. A razão

chega a uma causa primeira do ser, ao ente supremo, necessário, absoluto ao qual, diz

Tomás, "nós chamamos Deus". A filosofia, porém, pode ser o que ela é sem se

subordinar à teologia. A subordinação da filosofia à teologia é uma necessidade ou

possibilidade do teólogo, não do filósofo enquanto tal. A teologia, por sua vez, parte da

revelação divina. Os mistérios da Trindade e da Encarnação, por exemplo, escapam à

razão. A razão, no máximo, pode preparar os preambula fidei (os preâmbulos da fé)

(ÜBERWEG, 1927, p. 429). A passagem da razão natural à fé não se dá por continuidade

e sim por um salto. À fé só se chega com a própria fé. E a fé é uma virtude infusa

(infundida, derramada), um dom sobrenatural. Aqui a palavra fé não é o mesmo que

crença. O ato de crer é, aqui, um dom sobrenatural e gratuito de Deus. A partir da fé,

porém, se edifica a teologia, que recorre à razão para clarear melhor o sentido daquilo

que se crê, sem, porém, extinguir o mistério. Com a razão, o máximo que o crente

consegue é mostrar a não absurdidade daquilo que ele crê. Ademais, todo o

conhecimento que temos de Deus, mesmo com o auxílio da fé, é limitado. Nós podemos

dizer o que Deus não é, mas não o que ele é.

A posição de Tomás de Aquino foi, após sua morte, em 1274, num primeiro

momento, fortemente atacada pela corrente platônico-agostiniana, de que

participavam tanto mestres franciscanos, quanto mestres dominicanos. Dentre os

franciscanos, destacou-se João Peckham, aluno de Boaventura. Dentre os dominicanos,

Roberto Kilwardby, arcebispo de Cantuária. Em 1277, o bispo de Paris, Estevão Tempier,

publicou 219 proposições condenadas como heterodoxas, provindas do aristotelismo

em geral e do aristotelismo averroista dos mestres da Faculdade das Artes. Várias

doutrinas de Tomás foram atingidas por esta condenação, sendo consideradas, ao

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menos, suspeitas. Dentre estas, a mais problemática era a da unicidade da forma do

homem (o homem como uma unidade substancial de corpo-e-alma, sendo a alma forma

do corpo). Depois destas condenações, o franciscano Guilherme de La Mare escreveu

um “Correctorium fratris Tomae”, em que analisava criticamente 118 proposições

tiradas de escritos de São Tomás. Mas, os defensores de Tomás de Aquino responderam

com energia ainda maior: apareceram, então, cerca de cinco “Correctoria Corruptori”,

correções do corretor, que, neste caso, deixa de se chamar “corrector” (o corretor, o

que corrige) e passa a ser chamado de “corruptor” (o corruptor, o que corrompe). A

experiência das conturbações geradas pelo aristotelismo averroista e das condenações

do bispo Tempier foi crucial para o pensamento dos anos seguintes da Idade Média. A

lua-de-mel entre a filosofia e a teologia durou pouco. A partir dos anos seguintes, o

divórcio já se faz anunciar, e se começa a fazer uma “separação de bens” entre os

litigantes.

No último quartel do século XIII a situação assim se deixa caracterizar, grosso

modo: os escritos aristotélicos estão disponíveis em sua totalidade; Avicena e Averróis

já são bastante familiares aos latinos; a lógica se desenvolve notadamente no trabalho

de Pedro Hispano; e três pensadores dão novos impulsos ao pensar filosófico e

teológico: Henrique de Gand, Egídio de Roma e Godofredo de Fontaines. É com estes

pensadores, antes de tudo, que João Duns Scotus irá se confrontar criticamente. Egídio

de Roma (c. 1243-1316), da Ordem agostiniana, foi aluno de Tomás de Aquino e se

tornou excelente expositor da doutrina do mestre, sem, no entanto, conseguir ser um

pensador criativo. Expôs de modo mais claro a doutrina de Tomás de Aquino a respeito

da distinção de essência e existência. As críticas de Duns Scotus e de Guilherme de

Ockham se voltam mais propriamente contra ele do que contra Tomás de Aquino.

Godofredo de Fontaines (+ c. 1306) já é um pensador mais autônomo, de orientação

aristotélica moderada. Rejeita a distinção real entre essência e existência, transfere o

princípio de individuação da matéria para a forma e ensina o pluralismo das formas no

ser humano. Seu adversário principal é Henrique de Gand (+ 1293), adversário decidido

de todo aristotelismo. Renova doutrinas agostinianas no novo contexto do pensamento

medieval. Prepara as doutrinas da distinção formal e da forma da corporeidade. Dos três

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pensadores citados, é o mais eminente. João Duns Scotus irá debater criticamente as

suas doutrinas.

A geração seguinte, que irá determinar o pensamento no início do século XIV, é

marcada por pensadores nascidos nos anos sessenta do século XIII: Mestre Eckhart

(1260-1327); Duns Scotus (1265-1308); e Dante (1265-1321). Estes tiveram como

primeira tarefa histórica pensar criticamente o pensado da geração precedente e

estabelecer uma outra atitude para com a tradição, nomeadamente, para com

pensadores como Aristóteles, Proclo, Avicena e Averróis. Dos pensadores desta geração

escolhemos um para estudar: Duns Scotus.