PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a...

184

Transcript of PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a...

Page 1: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu
Page 2: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu
Page 3: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

PROTUBERÂNCIA

O LIVRO DO BLOGUE

VOLUME III)

(2011)

Joel G. Gomes

Page 4: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Título: Protuberância: O livro do blogue: Volume III

Autor: Joel G. Gomes

Capa: Joel G. Gomes

(C) Joel G. Gomes 2012

ISBN:

Page 5: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 5

TERMINUS 198

UMA DROGA DE ARTIGO

Então? Como foi essa passagem de ano? Agora que come-

çam a acordar e a tomar noção do que fizeram na noite pas-

sada, nada melhor do que um artigo leve para vos deixar bem-

dispostos. Vou só aguardar que lavem a cara. Estão todos

prontos? Aquela senhora também? Peço desculpa, não era uma

senhora. Era o José Castelo Branco. E cá está. A piada sobre o

José Castelo Branco.

Vamos lá então ao nosso artigo. O Instituto da Droga e da

Toxicodependência anda preocupado com uma droga que anda

a fazer estragos por esta Europa fora. Essa droga já matou dois

jovens no Reino Unido e é ilegal em Portugal e em outros 13

países da União Europeia. Se tivermos em conta que a União

Europeia é composta por 27 Estados Membros, basta

convencer um deles a mudar de ideias. Dica: Portugal tem

bons índices de corrupção. Porque não começar por aí?

A droga em questão tem o nome científico de mefedrona. E

vamos ficar pelo nome científico, porque se queremos ter um

artigo sério, ainda que divertido, sobre este tema, não podemos

dizer que o nome de rua desta droga tão nefasta é miau-miau.

Ora bolas! Pronto, 'tá dito, 'tá dito. Mais vale aproveitar e

gozar. Vamos então aos trocadilhos na forma de comentários

ditos por pessoas inventadas por mim.

“Miau miau? Parece uma droga um pouco abichanada.”

Kiko, cronista social de Arronches

“Prefiro ão-ão.”

Bóbi, terrier de Ourique

“Os cartões do Metro não dão pra filtros. É só químicos.”

Jimmy, junkie de Olivais Sul

Page 6: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

6 PROTUBERÂNCIA – Volume III

Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um

assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu acho

muito mal que Portugal seja um dos países a considerar esta

droga uma substância legal. Penso que, tal como já se faz em

outros países, nós também devíamos punir, não só quem vende,

mas também quem consome esta droga. Sorte tiveram os dois

bandalhos que morreram no Reino Unido. Se fosse cá, ainda

tinham de pagar uma multa.

O grande problema do miau-miau não tem que ver com o

seu tráfico, o seu consumo ou as suas consequências para a

saúde. Se fosse só por isso, por mim haveriam lojas com vi-

trinas cheias de miau-miau para quem quisesse ir lá comprar.

O problema está precisamente no nome. Inventem-se as razões

que quiserem, a verdade é que esta droga só é legal em

Portugal porque... cá vai: Portugal tem neste momento um

Governo PS que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo

sexo. Como tal, não será este Governo a ilegalizar uma droga

com nome bicha. É tudo política, meus caros.

É verdade que há registo de 37 mortos relacionados com

esta droga. Mas nem todos morreram por causa do consumo.

Os dados não apontam quais as verdadeiras causas, mas su-

ponho que alguém possa ter morrido por levar com uma palete

de miau-miau na mona. Já o meu pai me dizia quando era

miúdo (eu miúdo, não o meu pai): pesa tanto um quilo de

miau-miau, como um quilo de ecstacy, a diferença está mais

no nome.

Portanto, se nunca consumiram esta droga, continuem as-

sim. Entretenham-se com outras drogas que achem interes-

santes. Caso contrário, parem o que estão a fazer e vão já

imediatamente deitar fora todo o vosso stock de miau-miau

pela sanita abaixo. Eh! Esperem lá! Onde é que vão todos?

Calma! O artigo ainda não acabou! Ainda não... Ainda faltava

a piada sobre o...

Feliz 2011.

Page 7: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 7

TERMINUS 199

ANO NOVO, DISCURSO DE SEMPRE

Olá, meus queridos e minhas queridas. Quero começar bem

este ano de 2011 e quero fazê-lo da melhor forma. Como?

Através do discurso de Ano Novo do senhor ainda Presidente

da República. (E muito provavelmente o próximo, mas isso é

outro assunto.) Desculpem? Não estão interessados? Eu sei

que é um assunto um pouco maçudo, mas não pode ser sempre

pândega; há que haver alguma seriedade de vez em quando.

Mais que não seja para fazer contraste. Eu prometo que vou

ser meigo. Ora, vamos lá.

No ano que agora terminou, Portugal foi confrontado

com uma realidade que há muito se desenhava no hori-

zonte.

Começa logo ao ataque o Aníbal. Andava tudo com a ca-

beça no ar e de repente... tau! Eu não me importo de ser con-

frontado com uma realidade que tenha sido desenhada há

pouco. Ser confrontado com uma realidade desenhada há

muito, parece-me distracção a mais. Ninguém escutou os avi-

sos, foi o que foi. “Olha a realidade! Eh pá! Olha a realidade

que se desenha no horizonte! Vês? Levastes com a realidade

no focinho que é por causa das tosses!”

Não iludir a realidade é um sinal positivo e uma atitude

responsável, pois representa o primeiro passo para mudar

de rumo e corrigir a trajectória.

Não iludir a realidade em que sentido? Não me parece que

não escamotear os problemas que existem seja quanto baste

para começar a resolvê-los. Transportando isto para o mundo

do futebol, pensemos no pior guarda-redes do mundo. Sempre

que joga, é frango atrás de frango. No último jogo, entra para

substituir o colega titular e tem de defender um pénalti. No

mundo do futebol é possível este guarda-redes defender este

pénalti. No mundo da política, pelo contrário, não se pode

Page 8: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

8 PROTUBERÂNCIA – Volume III

esperar que a solução de muitos dos problemas que nos

afectam, venha de alguém que teve total ou parcial res-

ponsabilidade no surgimento dos mesmos.

O regime republicano encontra-se plenamente consoli-

dado ao fim de 100 anos de existência. Por outro lado, é em

democracia que todos aspiramos viver e ninguém deseja o

regresso aos tempos da ditadura.

Agora vou dar algo que fazer aos historiadores que me

possam estar a ler. A Primeira República teve início em 1910 e

foi interrompida em 1926, com o Golpe Militar de 28 de Maio;

ao todo são dezasseis anos. Seguem-se os quarenta e oito anos

da Ditadura Militar e do Estado Novo. Depois, a partir de 1974

até ao ano passado, são trinta e seis anos. A conta é 16+48+36.

E dá 100. Mas só dá 100 porque estamos a contar os anos da

chamada ditadura. O que não faz muito sentido porque, se foi

uma ditadura, se foi um regime diferente de um

republicanismo democrático, porque é que...? Não sei se estão

a ver onde é que eu quero chegar? Mais valia, se é para

contabilizar regimes que não têm nada a ver, iniciar a

contagem dos anos da República a partir de 1891. É verdade

que nessa altura ainda estávamos em tempo de Monarquia,

mas quem inclui anos de Ditadura em anos de Democracia,

pode muito bem incluir anos de Monarquia. Fica à atenção dos

nossos historiadores.

Por hoje chega. Acreditem que ainda havia muito para es-

mifrar neste discurso do senhor Aníbal, mas o espaço não dá

para mais. Deixo-vos com esta última frase e um xi-coração

bem grande para todos aqueles que lavaram a cara antes de

sair do Renault onde agora residem.

Page 9: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 9

TERMINUS 200

TEMPO DOS MAI PIQUENOS #1

Dois dias depois de vos ter agraciado com uma análise breve

sobre o discurso de Ano Novo do senhor Presidente Cavaco, é

altura de darmos conta das reacções de vários quadrantes do

sector político. A reacção dos principais partidos políticos – PS,

PSD, CDS-PP, PCP e Bloco de Esquerda – já foi escutada;

todos eles tiveram oportunidade de apresentar as suas

apreciações sobre os ditos do senhor Aníbal. Mas... e os par-

tidos pequenos? O que têm o PND, o POUS, o PPM, o MPT,

ou o PNR a dizer sobre os avisos de Cavaco Silva? Chegou a

altura de saber tudo isso e muito mais numa nova rubrica

chamada “Piquenos Analistas”.

PNR – Partido Nacional Restaurador

“Antes de mais, dizer que acho uma vergonha, para não

dizer palhaçada, que não me deixem ser candidato à Presi-

dência da República só porque ficámos a umas mil e seiscen-

tas assinaturas das que eram precisas. Em relação ao discurso

do Presidente da República, é mais uma prova de que este país

carece de um rumo, rumo esse que só pode ser estipulado por

um partido que defenda os valores de uma sociedade justa e

igualitária para todos os portugueses. Uma vez que não somos

esse partido, não temos muito mais a dizer sobre o assunto. Ah!

Dizer também que não somos contra os estrangeiros.

Principalmente aqueles que não vêm para cá.”

José Lebre Salpico

MPT – Movimento Partido de Todos

“O senhor Presidente da República diz-se Presidente de

todos os portugueses, mas não esconde a sua simpatia pelos

quadrantes políticos mais à direita. Assim não pode ser. Já não

bastava cada candidato presidencial ser apoiado pelo seu

Page 10: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

10 PROTUBERÂNCIA – Volume III

partido ou por vários ou por nenhum?

Acreditamos que todas as pessoas têm direito ao seu parti-

do, mas que nem todos os partidos têm direito às suas pessoas.

A pluralidade de partidos é sintoma de uma sociedade

fragmentada. Somos pela unidade, pela coesão e pelo empe-

nho num caminho certo e definido."

Pedro Chalaça Quintin

PH – Partido Hidrogeniónico

“A que epiderme aspiramos? Sentimos a secura e a acidez

de uma sociedade pouco dedicada à resolução dos problemas

que todos os dias afligem as peles delicadas. Somos pela hi-

dratação, pela frescura e pela suavidade de uma epiderme

saudável. Buscamos combater esses grandes males cutâneos

que são a psoríase e a hidrosadenite supurativa. Acreditamos

numa sociedade em que as pessoas não mais sejam distingui-

das pela sua pigmentação, e sim pelo seu ph.

Lamentamos com grande pesar que, apesar da gravidade

deste problema, o senhor Presidente da República tenha dedi-

cado o seu discurso a falar dos desempregados e dos pobres e

não tenha feito uma nota, ainda que breve, ao aumento do IVA

nos cremes hidratantes. Enfim, prioridades.”

LF de la Paz

Por agora é tudo. Para a próxima à mais. E sim, a frase

anterior tem um erro. Mas não vou dizer qual é.

Page 11: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 11

TERMINUS 201

AI DOS POBRES!

Antes de mais, dizer que não tenho nada contra os pobres.

Nem contra as pessoas que começam frases com “dizer que”.

Todavia, a proposta a ser lançada brevemente pela revista

CAIS de tornar ilegal a pobreza, parece-me algo mal pensado.

O propósito até pode ser nobre e digno de divulgação. O

problema é que estamos em Portugal. Ainda que o Estado vá

na cantiga de aceitar pagar coimas por não conseguir reduzir o

número de pobres em Portugal, não é isso que vai resolver o

problema da pobreza. Vai resolver o problema CÁ. Se o

objectivo for reduzir o número de pobres em Portugal, basta

enviá-los para o estrangeiro. Em pouco tempo passaríamos a

ter zero pobres no nosso país.

Colocar-se-ia então a questão: onde é que os nossos polí-

ticos iriam fazer as suas demonstrações de solidariedade?

Junto dos cidadãos de classe média baixa? Só se fosse.

Uma outra solução para reduzir o número de pobres no

nosso país, sem que tenhamos de enviá-los para fora, é dimi-

nuir o comprimento da fenda que separa os ricos dos pobres.

Para tal, não é preciso tirar dinheiro aos ricos para dar aos

pobres, basta tornar oficial a noção de que quem tiver 1 euro

por dia passa a pertencer a classe média baixa inferior. Já não é

um cidadão pobre, é um cidadão com fluxo financeiro defi-

citário.

As consequências do incumprimento desta proposta de

projecto de lei, caso seja aprovado, implicam as já referidas

coimas. O Estado português vai ter de pagar multas sempre

que não consiga reduzir o número de pobres de ano para ano.

Resultado: se o número de pobres aumenta, ou mesmo que se

mantenha, de ano para ano, reduz o número de contribuintes

que sustentam o pagamento das coimas. Logo, o Estado co-

meça, ele próprio, a entrar em dívida. A longo prazo ficará

Page 12: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

12 PROTUBERÂNCIA – Volume III

também o Estado na condição de pobre. E depois? Quem é que

se vai chegar à frente depois?

Isto de combater a pobreza é muito bonito mas, tal como

tudo na vida, há dois lados nesta questão. Geralmente, tende-

mos a ver o lado da miséria, o lado do desespero. Esse aspecto

vale a pena combater. Gosto de ter um tecto sobre a minha

cabeça, gosto de ter um lar e sei que muitas pessoas que estão

neste momento a dormir na rua porque as circunstâncias da

vida a isso levaram não se importariam de estar no meu lugar.

Porém, convém não esquecer o outro lado da pobreza. Vestir

uns trapos e ir para a porta da Igreja pedir qualquer um faz. Há

os pobres pobres e há os pobres de moral. São diferentes.

Além disso, a erradicação da pobreza é um acto que traz

mais malefícios do que benefícios. Assim como na natureza,

todo o ser vivo tem um papel a cumprir, o mesmo se passa

com os pobres na sociedade. A melhor definição de classes foi

apresentada em 1996 pelo comediante George Carlin. É com

ela que vos deixo.

“As classes altas: ficam com o dinheiro todo, não pagam

impostos. A classe média: paga os impostos, faz todo o traba-

lho. Os pobres estão lá... só para acagaçar o pessoal da classe

média.”

Page 13: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 13

TERMINUS 202

CONTENÇÃO Q. B.

Durão Barroso é da opinião que devemos ter alguma modera-

ção sempre que falarmos da crise. Cavaco Silva considera essa

uma opinião “muito sensata”, na medida em que “palavras de

insulto” poderão levar ao aumento do desemprego. Hum...

Não é por aí. É verdade que chamar nomes feios costuma ter

consequências más, principalmente se for a um credor, mas

não é por aí que o desemprego aumenta. Ou melhor, não é por

não fazermos isso e por oscularmos os glúteos desses sujeitos

que passamos a ter mais emprego. Quer dizer, em alguns casos

até é.

Não obstante alguma irrelevância destas declarações, elas

não são inteiramente desprovidas de sentido. Por um lado, tal

como disse há pouco, porque é falta de educação, por outro

porque, alerta o senhor Aníbal, “há pessoas em Portugal que

parecem não saber que os nossos credores são as companhias

de seguros, os fundos de pensões, os fundos soberanos, os

bancos internacionais e os cidadãos espalhados por esse

mundo”. Ena, tantos! Eu não fazia ideia que tínhamos tanta

gente à perna.

Há umas semanas recebi uma notificação da Direcção-

Geral de Contribuições e Impostos. Devido a uma declaração

não entregue, fui notificado para proceder à regularização da

situação e ao pagamento de uma coima (caso não pudesse re-

gularizar a situação) estimada em 125€. Este valor não era

quanto eu devia, era quanto eles achavam que eu não declarei.

Julgava que só tinha de me preocupar com estes senhores.

Pelos vistos, não.

É graças a esta experiência pessoal que sou capaz de apre-

ciar as palavras de Durão Barroso e de Cavaco Silva por

aquilo que realmente são. Sem a minha experiência da notifi-

cação estas declarações soar-me-iam a demagogia, a hipocrisia

Page 14: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

14 PROTUBERÂNCIA – Volume III

política; neste caso, soam-me apenas a demagogia e a hi-

pocrisia política. A diferença a ter em conta nestas duas situa-

ções tão díspares é o facto de eu não ser alheio às consequên-

cias que eles advertem. Já as vivi. Pode não parecer, mas co-

nhecer na prática o que alguns só sabem em teoria, ajuda a

manter uma certa perspectiva das coisas.

A adesão de Cavaco Silva à contenção verbal não é novi-

dade para ninguém. Recorde-se que há bem pouco tempo, o

mesmo Cavaco apelou aos líderes políticos que agissem mais e

falassem menos. É um tipo de padrão expectável de um

Presidente que antes tão pouco falava e agora tão pouco diz.

Não diz, por exemplo, que além de não se dever ofender cre-

dores, não se deve, não se devia, ofender quem é obrigado a

contribuir para saldar essas dívidas. A verdade é inequívoca.

Os políticos podem insultar os credores, mas quem paga a

factura somos nós. Não julguem, porém, que Cavaco Silva

está preocupado connosco. Pelo contrário. A verdade e que,

quer saibamos porquê, quer não, haverá sempre facturas para

pagar. O ideal é não sabermos do quê ou para quem.

Page 15: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 15

TERMINUS 203

PELA ETIQUETA

Um comunicado publicado no site oficial da Direcção Geral de

Saúde, dá conta que “a actividade gripal é moderada, mas

revela tendência, conforme esperado para esta época do ano”.

Ora, muito obrigado meus caros senhores. É disto que eu gosto

nos médicos. São capazes de nos dizer que quando vem o

friozinho, vem o ranhinho também.

Duas perguntas, não para os médicos, mas para quem me lê,

mesmo que não seja médico. A primeira é: a DGS terá uma

quantidade assim tão grande de sites de fãs para que seja

necessário especificar que este comunicado foi publicado no

site oficial? E a segunda: escrever “ranhinho” é fofo ou ja-

vardo?

A gripe pode ser muito perigosa, sem dúvida. Principal-

mente para quem anda à fresca. “A vacinação é o melhor mé-

todo de prevenção”, diz o mesmo comunicado. Assim à pri-

meira vista, os senhores da DGS fazem lembrar os avós. É

possível que alguns deles também o sejam. “Agasalha-te que

'tá frio. Olha que constipas-te.” No entanto, os senhores da

DGS, além dos avisos, são também pela regras de etiqueta,

nomeadamente pelas regras de etiqueta respiratória.

A minha preferida destas regras é aquela que diz que de-

vemos tossir ou espirrar para um lenço descartável ou para o

cotovelo. Pessoalmente, prefiro perder o amor aos 4 cêntimos

que custa um lenço de papel do que manchar de muco a manga

do casaco. Quando eu era pequeno levava nas orelhas por

limpar o ranho à manga. Agora que sou adulto, vêm uns

senhores que não conheço de lado dizer que assim é que é.

No caso das senhoras, as consequências são ainda mais

nefastas. Pensem num casal à antiga. Não vão de mão dada na

rua. Ele dá o braço e ela segura precisamente na zona-alvo.

Haverá cenário mais romântico do que sentir na palma da mão

Page 16: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

16 PROTUBERÂNCIA – Volume III

o muco de alguém que se ama? Por acaso, esta ideia não me

fascina muito, mas isso é porque não pertenço a um casal à

antiga. Só por isso.

Outra chamada de atenção que a DGS faz tem a ver com

lavar as mãos com frequência. Se no caso desta DGS, esta re-

comendação tem que ver com questões de germes; no caso da

antiga DGS, lavar as mãos era qualquer coisa como declarar-se

“inserido no regime”. Ou qualquer coisa assim.

Peço desculpa por este pequeno desvio. Foi pouco ético da

minha parte.

Page 17: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 17

TERMINUS 204

QUESTÕES DO FORO PRIVADO

Olá, meus rojõezinhos! E então? Continuam em pulgas pelas

eleições que estão prestes a acontecer, ou já tomaram uma as-

pirina e perceberam que as coisas não vão mudar assim tanto?

Na minha crónica de hoje trago-vos um tema que é sempre tão

bem explorado pelo homem: a menstruação. E atenção que

“explorado” não é um termo utilizado ao acaso.

Parece que na Noruega existe uma empresa em que as tra-

balhadoras são obrigadas a utilizar uma bracelete vermelha

sempre que estiverem com o período. A medida está a ser

fortemente contestada pelos sindicatos, que acusam a empresa

de descriminação. A empresa defende-se, dizendo que, graças

a este sistema, essas funcionárias podem passar mais tempo na

casa de banho.

Em muitos aspectos eu admiro a Noruega, a Suécia, enfim,

esses países nórdicos onde as coisas tendem a funcionar bem.

Este caso não é exemplo disso. Uma medida que permite

menos tempo de trabalho é uma medida contraproducente.

Tenho dificuldade em perceber estes sindicalistas. Em vez de

ficarem contentes porque existe um grupo que passa a traba-

lhar menos, ficam indignados por esse grupo ser obrigado a

utilizar um acessório de modo.

É uma medida que mexe na privacidade nas pessoas? Mais

ou menos. Quem trabalha com mulheres, sabe que elas estão a

par dos ciclos menstruais de todas; quem fica de fora deste

baralho são os homens. Portanto, esta questão da privacidade

só é privada até certo ponto.

Em Portugal ainda ninguém se lembrou de fazer isto. E

ainda bem. A avaliar por alguns casos, certas mulheres ficari-

am com o braço marcado de tanto andar com a bracelete co-

locada. Outras, mais púdicas, ficariam da mesma cor da bra-

celete, tornando-a obsoleta.

Page 18: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

18 PROTUBERÂNCIA – Volume III

Quanto aos homens, não se pense que escapam ao crivo

patronal. Se as mulheres são obrigadas a utilizar bracelete, os

homens têm de picar cartão sempre que forem à casa de banho.

Esta medida já não me desagrada, na medida em que me

permitiria contabilizar quanto tempo é que passo na casa de

banho. Seria uma ajuda imprescindível para poder organizar

melhor o meu dia a dia.

Page 19: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 19

TERMINUS 205

VÃO-SE QUOTIZAR TODOS

Olá, meus bezerrinhos. O diminutivo não é por serem fofinhos

e queridos, é por ainda não estarem prontos para o abate. No

artigo de hoje vou falar de um tema que vai fazer as delícias de

todos aqueles envolvidos em fraudes e outros delitos desse

calibre. E o grande tema é: sociedade por quotas. Calma! Não

comecem já a dar pulos de contentamento. Se estiverem em

local público, força; sempre é um espectáculo bonito de se ver.

Se estiverem em casa, façam favor de se comportarem como

os adultos que gostariam de ser.

Foi preciso esperar um bocado, mas em boa hora o Go-

verno decidiu acabar com o capital social mínimo de 5000

euros para constituir empresas. A partir de agora quem quiser

formar uma empresa, pode fazê-lo com mais facilidade e com

muito menos dinheiro, nem que seja só com euro.

Esta medida faz parte do nosso já grande amigalhaço

Simplex, e tem por objectivo “contribuir para reduzir os custos

de contexto” e “promover o empreendedorismo”. Quem sabe o

que isto significa, deixe-se estar caladinho e não interrompa

enquanto eu explico aos que não sabem.

CONTRIBUIR PARA REDUZIR OS CUSTOS DE

CONTEXTO

Exemplo: O senhor Calapito abre um consultório de

Oftalmologia na zona do país com mais cegos por metro quadrado. Como tem de mandar vir clientes de

fora, essa despesa reduz substancialmente a sua

margem de lucro. De modo a compensar esse gasto, o

Governo deixa o senhor Calapito meter mais algum ao

bolso.

Page 20: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

20 PROTUBERÂNCIA – Volume III

PROMOVER O EMPREENDEDORISMO

Exemplo: O senhor Calapito abre um consultório de

Oftalmologia na zona do país com mais cegos por

metro quadrado. Por ser uma ideia arrojada, embora de difícil aplicação neste cenário, o senhor Calapito gasta

mais dinheiro do que gostaria. Para compensar esse

gasto, o Governo deixa o senhor Calapito meter mais

algum ao bolso.

Para um leigo na matéria, compreendo que possa parecer

que existe uma ideia comum a estes dois pontos. Asseguro-vos

que o facto de ambos os senhores nestes dois exemplos terem

o mesmo nome, e de ambos terem tido a bela ideia de abrir

consultórios de Oftalmologia em zonas pouco adequadas para

isso, trata-se de uma simples coincidência.

A ideia principal a reter é a possibilidade de “fomentar que

boas ideias se transformem em negócios com facilidade. Um

bom exemplo, de acordo com a Secretária de Estado da

Modernização Administrativa, é a criação de empresas de

serviços informáticos na Internet. Antigamente estes empre-

sários precisavam de um capital social mínimo de 5000 euros;

o que os obrigava a perder muito tempo a quebrar firewalls,

roubar passwords, entrar em contas bancárias, fazer

transferências de 1 ou 2 cêntimos para contas off-shore. Até

conseguirem chegar aos 5000 euros, estão a ver a maçada que

não era. Agora só precisam de furtar 1 ou 2 euros. Não me

admiro se alguns deles, com mais vontade de gastar do que o

normal, for capaz de se chegar à frente com esse guito todo.

Page 21: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 21

TERMINUS 206

MENOS ESTUDOS, MAIS EMPREGO

Um país é como um restaurante que coloca um catrapázio com

a ementa no meio do passeio: ambos tentam destacar algo que

os distinga da concorrência. No caso dos restaurantes temos o

mítico e digno “Á pipis”, no caso dos países funciona de

maneira diferente, mas não muito diferente.

Um bom exemplo português, divulgado no primeiro bole-

tim trimestral do Observatório Europeu de Vagas Profissionais,

é o facto de sermos o país da Europa que oferece mais trabalho

a quem tem menos estudos. De acordo com os números

divulgados, 59% das pessoas que conseguiram trabalho neste

último trimestre de 2010 tinham uma escolaridade muito baixa.

Para quem dizia que este Governo não tinha uma política

de Educação bem definida, faziam melhor em terem ficado

calados para não passar vergonha. Portugal, não só tem uma

boa política de Educação, como garante emprego para quem,

apesar das facilidades, não se conseguir safar.

E não é preciso pensarmos muito para encontrarmos bons

exemplos de facilidades. O mais recente é a transição do 8º

para o 10º ano mediante a realização de um exame. Palpita-me

que não tardará a aparecer o exame para se passar do 7º para a

Licenciatura. Quem não conseguir fazer este exame, pode

depois ir trabalhar para o campo ou para uma tasca ou para

uma repartição de Finanças. Em suma, trabalhos que carecem

de trabalhadores pouco qualificados. Ou, pelo menos, assim

parece.

Nesta altura vejo-me quase que obrigado a lançar uma

questão. Porquê? (Não é esta a questão, embora também seja

uma questão.) Porque é que eu me vejo obrigado a lançar esta

questão? (Também não é esta questão; contudo é uma questão

a ser respondida.) Resposta: porque estou a escrever com um

espelho à minha frente. Não é narcisismo. É mobília. Sobre a

Page 22: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

22 PROTUBERÂNCIA – Volume III

relevância da questão, que é o que interessa, a questão a ser

lançada é a seguinte: esquecendo tudo o que eu escrevi nos

parágrafos anteriores, todas as ironias, paródias, etc., este

estatuto é bom ou mau para Portugal?

A grande vantagem que os números nos oferecem é a possi-

bilidade do reverso. Se considerarmos os 59% divulgados pelo

relatório, é muito mau percebermos que da totalidade de

pessoas que trabalha, mais de metade tem baixa escolaridade.

Porém, se considerarmos os restantes 41%, podemos conven-

cer-nos (ainda que não seja verdade) que apenas 41% do nosso

pessoal qualificado não consegue arranjar trabalho. Se

consultarmos os números da Itália e os da Grécia, respectiva-

mente 43% e 37%, e os compararmos com os seus reversos,

percebemos que 57% dos trabalhadores italianos qualificados

e 63% dos trabalhadores gregos qualificados não consegue

arranjar trabalho.

Em suma, a resposta à questão de isto ser bom ou mau para

Portugal está dependente da opinião de cada um. Os números

dizem sempre aquilo que nós queremos que eles digam.

Mesmo que seja um disparate autêntico. É tudo uma questão

de interpretação.

Page 23: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 23

TERMINUS 207

MORRER EM NOVA IORQUE

O artigo que se segue tem como tema principal o recém-fale-

cido cronista Carlos Castro. Antes de mais, tenho que falar do

elefante no quarto. Podem ser de mau gosto todas as piadas

que de imediato começaram a proliferar pela Internet, jornais e

etc., sobre os nomes dos envolvidos nesta situação, mas

percebam duma vez por todas: os nomes em causa e a situação

em si geraram essa possibilidade. Se os envolvidos se

chamassem Zé Manel e João Silva, não teríamos tantas piadas

como temos com Castro e Seabra. Não tem a ver apenas com

as pessoas, tem a ver principalmente com os nomes.

Referido que está o elefante, vamos ao que interessa. Em

primeiro lugar, não vou adiantar teorias sobre o que terá

acontecido naquele quarto de hotel. Não nutro especial inte-

resse por qualquer um dos envolvidos. Não me interessa de

quem foi a culpa, preocupa-me é a falta de respeito. Nomea-

damente, com a indústria hoteleira portuguesa.

De há uns meses para cá, tenho percorrido o país de norte a

sul e passado por muitos bons hotéis. É verdade que Lisboa

não tem o charme de Nova Iorque. Aliás, para sermos rigoro-

sos, não podemos comparar Lisboa a Nova Iorque; quanto

muito Lisboa a Washington, por serem capitais. Nova Iorque

podemos comparar a... talvez ao Porto ou Coimbra ou mesmo

Albufeira. Tenho passado por muito bom hotel cá, dizia eu, e

fiquei desiludido que Carlos Castro tenha decidido ir morrer

para Nova Iorque.

O ex-cronista tem andado na boca de tudo quanto é jorna-

lista e a sua morte está a receber mais destaque do que a morte

de outras figuras de maior relevo falecidas em data aproxi-

mada. É verdade que a violência do crime justifica um certo

sensacionalismo em torno do caso. É uma morte mediática

sem dúvida. Mas é uma morte efémera.

Page 24: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

24 PROTUBERÂNCIA – Volume III

Sou leitor ocasional do Correio da Manhã e sou capaz de

folhear uma TV Mais ou uma TV7 Dias se estiver num café e

não houver mais nada para ler. E em todos estes periódicos

onde, com uma certa regularidade, costumava encontrar

“textos” do senhor Carlos Castro, não me consigo lembrar de

nada relevante que ele tenha escrito. Estou certo de que terá

escrito algo importante, mas não estou a ver o quê. Assim

como as entrevistas vazias que fazia a pessoas sem

importância não conferiram a essas pessoas mais relevância do

que aquela que não tinham, aquelas com obra feita que

aceitaram ser entrevistadas por ele, não será isso que as fará

perdurar na memória colectiva, será tudo o resto.

Três dias antes da morte do cronista faleceu o artista mo-

çambicano Malangatana. Perto da Escola Secundária onde

estudei existe um parque com uma obra desse escultor. Daqui

por vários anos as pessoas continuarão a ver essa escultura. Já

as opiniões e críticas de Carlos Castro, embora venham a

desaparecer, não será de uma forma que dê para encher tanto

chouriço.

Page 25: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 25

TERMINUS 208

PARTILHE-SE

Aqui há dias responsáveis da ACAPOR entregaram na Pro-

curadoria-Geral da República mil denúncias de IPs que parti-

lhavam ficheiros ilegais. Como ainda não se ouviu nada de

fontes oficiais sobre isto, achei que era meu dever intervir.

Antes de mais, assuma-se de vez: toda a gente faz down-

loads ilegais. Não há ninguém que não faça. Há quem abuse,

há quem tenha o computador ligado 24/7 sempre a sacar; há

quem saque um filme de vez em quando, mas a verdade é que

toda a gente saca. Incluindo os senhores da ACAPOR.

Meus meninos, não venham cá com histórias porque vocês

não são mais nem menos que nós. Protestar publicamente

contra algo que fazem em privado é apenas hipocrisia da vossa

parte.

A reivindicação principal são os direitos dos artistas. Com

os downloads ilegais, os artistas recebem menos. Não. Os ar-

tistas sempre receberam menos. Comparado ao que recebem as

editoras, as produtoras e todas as partes envolvidas que não os

artistas, são estes os que menos recebem. Era assim antes da

Internet, continua a ser assim hoje em dia. Não por culpa da

Internet, sublinhe-se, mas por culpa duma indústria que não

soube, não quer, acompanhar o evoluir dos tempos.

Dizem-se preocupados com os artistas. Eles estão-se nas

tintas para os artistas. Os produtores estão-se nas tintas para os

artistas. A não ser enquanto gerem lucro. Uma obra, boa ou má,

é produzida por dois motivos: porque gera lucro ou porque é

subsidiada por fundos públicos.

Alguns artistas viram as suas vendas aumentar justamente

com o boom da partilha online. Ao podermos obter de forma

gratuita (ainda que ilegal) uma música, um filme, uma série,

etc., aumenta a probabilidade de obtermos o produto original.

Comigo acontece isso. Compro o que vejo e gosto. Não tanto

Page 26: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

26 PROTUBERÂNCIA – Volume III

quanto gostaria porque os preços não o permitem.

Muitas bandas disponibilizam os seus álbuns gratuitamente

nos seus sites pessoais e sobrevivem à conta de publicidade.

Para os fãs, a música é gratuita; para a banda, as receitas de

publicidade cobrem todas as despesas e geram lucro. Quem sai

a perder é quem vive à custa do trabalhos dos outros.

Estes downloads ilegais não estão a suscitar queixas da

parte de quem cria ou de quem produz, e sim de quem vende.

O que não se percebe. Se a propriedade dos produtos parti-

lhados não pertence à ACAPOR, por que raio têm de meter o

bedelho onde não são chamados? Eu não vou apresentar

queixa de carro roubado se o carro não for meu.

Page 27: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 27

TERMINUS 209

DE DEDO EM RISTE

Estou a uma década da idade do dedo. Os homens com mais

de quarenta anos que me estão a ler, sabem do que eu estou a

falar. O famigerado dedo. Durante anos e anos, nós homens

vivemos sob o jugo de profissionais de saúde que ditavam o

nosso destino através da inserção digital numa área que nós

preferíamos que permanecesse inviolável.

Para quem já passou por esta experiência, esta notícia terá

um gosto amargo; para aqueles que, como eu, estão ainda a

uns anos desse evento, poderá ser uma boa nova.

Um estudo britânico concluiu que homens que tenham o

indicador maior que o anelar têm menos probabilidades de vir

a sofrer de cancro da próstrata do que os outros. Vou dar uns

segundos aos homens que me estão a ler para olharem para as

mãos com atenção. Já viram? Não vale dobrar o médio, tem de

ser com os dois esticados. E então? Quem estiver safo, ponha

o dedo no ar. Não o do meio, o maior.

Isto é para quê? Que uma pessoa contraia uma doença por

graça divina ou porque não teve cuidado, por mim tudo bem.

Que se safe por ter os dedos trocados parece-me injusto.

Quando nascemos, contam-nos os dedos. Agora vão passar a

medi-los.

“Parabéns, dona Maria. Tem aqui um belo rapazinho. Co-

mece a prepará-lo já, porque daqui a uns aninhos...”

Há aqui algo de errado. A regra é ter o indicador menor do

que o anelar. Quem não nasce com os dedos bem é que devia

ser castigado para aprender. Mas não. Somos nós, os como

deve de ser, que nos temos de vergar.

Que é o que nos incomoda realmente. O cancro em si é

chato, é mau, mas é quase um alívio comparado com o exame

em si. Estamos no século XXI, senhores! Não há uma máquina

que faça esse exame sem que seja necessário um sujeito de

Page 28: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

28 PROTUBERÂNCIA – Volume III

luvas de borracha a mexer onde não deve?

“Tenho um dedo que adivinha.”

Já chega! Espero que daqui a uns anos, quando for a minha

vez, já estejamos evoluídos ao ponto em que só precise de

cuspir para dentro de um tubo e pronto. A máquina diz logo

tudo.Até lá, temos que nos sujeitar.

Aprecie-se, porém, os esforços que o Governo está a fazer

por todos aqueles que irão um dia passar pelo dedo. Para quem

não compreendia a relevância de algumas das medidas de

austeridade anunciadas, julgo que verão essas dúvidas es-

clarecidas dentro em breve. Para as mulheres e para os homens

que têm os dedos trocados, serão um esforço sem razão

aparente. Para nós, candidatos a exame, será uma preparação.

De tanto nos vergarmos pelo bem das contas públicas, quando

formos ao exame, será com relativa facilidade que baixaremos

as calças.

Page 29: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 29

TERMINUS 210

AS REGRAS DA CONVERSÃO

Tenho andado tão ocupado com isto das presidenciais e do

outro que mal tenho tido tempo de prestar atenção às notícias

de facto importantes. O que vem aí não se trata duma notícia,

no sentido em que já não é actual, mas não deixa de ser um

momento bem bonito que partilhar convosco.

Paulo Macedo, o ex-director-geral dos Impostos (vade re-

tro!) e actual quadro do BCP (a moldura que ele tem à sua

volta é linda, só é pena não ser penal), foi ao Tribunal Central

de Instrução Criminal a pedido do colega e amigo, Armando

Vara, testemunhar sobre o carácter irrepreensível do senhor

Armando. Foi um momento que gerou algum riso junto

daqueles que pensavam estar num julgamento a sério; mas

depois passou e a coisa lá seguiu.

O Paulinho do BCP disse que Vara nunca usou a sua in-

fluência para beneficiar Manuel Godinho. O que se lamenta.

Com tanta prenda que o nosso rei da sucata andou a oferecer a

políticos e dirigentes, o mínimo que faziam era oferecerem-lhe

um vale de compras.

Além do Paulinho, foram também chamados senhores da

CGD para ouvir uma escuta. Como os tempos mudam. Anti-

gamente, a malta juntava-se em casa uns dos outros para ouvir

um disco; hoje em dia juntam-se num tribunal para ouvir

escutas. Pode ser implicância minha, porém, não me parece

que tenha a mesma magia.

E o que tinha esta escuta de tão especial?

Ao que parece – dizem, que eu não ouvi – o senhor Godi-

nho falava da capacidade miraculosa do senhor Vara de con-

verter km em euros; neste caso 25 km em 250 mil euros.

Sempre ouvi dizer que tempo é dinheiro, mas distância é a

primeira vez. Onde é que se aprende a fazer uma conversão

deste tipo? Na escola não deve ser. Pelo menos não em ne-

Page 30: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

30 PROTUBERÂNCIA – Volume III

nhuma igual àquelas onde eu andei.

Uma última nota sobre Manuel Godinho. Parece que o Iron

Man de Ovar anda com vontade de ir para casa. Diz que a

prisão lhe anda a fazer mal. Faz a todos, meu caro. Mas é bom

para quem se baldou ao exame. O amigo tem que idade? É

aproveitar enquanto está aí que não paga nada. Custa à mesma,

mas é grátis.

Quanto às dores que o afligem, das duas uma. Ou Manuel

Godinho tem excesso de ferro no sangue e faz reacção alérgica

às grades, ou então vem do planeta Portugal e está numa cela

cujas grades são feitas a partir de ferro extraído no seu planeta

natal.

Page 31: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 31

TERMINUS 211

ACESSO AO ÁLCOOL

Antes de começar, uma vez que se trata de um tema delicado,

tenho de fazer um aviso. O óbvio é relativo. Esta foi a primeira

ideia que eu quero que fixem deste meu artigo. A segunda é:

não se deve fazer de quem não percebe o óbvio. Perceberam?

Não se goza. Agora sim, podemos começar.

O senhor António Nunes... Não, não é aquele do Euromi-

lhões, é o da ASAE. Pois, também eu preferia estar num grupo

de folclore transmontano, mas enfim. O senhor António Nunes,

não me interrompam agora, percebeu finalmente que as caixas

de pagamento self-service foram uma óptima invenção para

todo o menor de idade que quer comprar álcool. Não gozem,

não gozem que não é por vocês terem percebido isso à

primeira que o senhor António merece ser achincalhado.

(Achincalhado. Há mais algum sítio onde vocês leiam

“achincalhado e self-service? Há? Então vão pra lá! Mal

agradecidos!)

Para o senhor que ficou, um grande bem haja.

Quando eu era pequeno, ia à taberna ao lado da minha casa

buscar vinho e cerveja. Ia a pedido da minha mãe e não levava

mais do que aquilo que me pediam. Acreditava religiosamente

que se ousasse pedir algo com teor alcoólico para meu

consumo pessoal, usando a desculpa do recado para a mãe,

não só o senhor Dias não me venderia o produto como me

levaria pelas orelhas até junto da minha mãe para apresentar

queixa. Ou, o mais certo, venderia tudo aquilo que eu lhe

pedisse, desde que pagasse, porque o negócio dele era vender

vinho e não combater o alcoolismo.

Esta minha crença em capacidades sobre-humanas do ta-

berneiro da minha rua durou até 1989, ano em que visitei

Évora pela primeira vez. Foi aí que visitei a minha primeira

igreja, onde rezei pela primeira vez. Apesar de desconhecer a

Page 32: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

32 PROTUBERÂNCIA – Volume III

maneira correcta de formular um pedido, fiz o melhor que

pude e pedi a Deus que me dessem pelo Natal um conjunto da

LEGO, não me lembro agora qual. Ao não receber nenhum

conjunto da LEGO esse Natal, esvaeceu-se a minha crença no

Senhor invisível e nas capacidades extra-humanas do senhor

Dias.

Desculpe o desvio, senhor Henrique.

Era assim que as coisas funcionavam no meu tempo. Hoje

em dia, como bem sabe é tudo tecnológico. E há mais por

onde escolher. Na taberna da minha rua havia branco e tinto.

Eram estas as marcas. Branco e tinto. Não havia cá Casais

Garcias, Lambruscos, Renguengos, Terras de Xisto. A nossa

escolha era simples. Porque eram simples os tempos.

Pessoalmente, agrada-me mais a ideia de um menor a

comprar vinho numa tasca do que numa grande superfície,

através duma caixa de self-service. Não porque o álcool lhe

faça bem, mas porque perde menos tempo a escolher o vinho

certo e a pagar por ele. Na tasca a escolha é mais simples, mais

rápida, e depressa o jovem sai para a rua. Onde um condutor

alcoolizado lhe espeta com um Fiat em cima. Condutor esse

que comprou o seu vinho numa grande superfície.

É bem feito para o menor que disse à mãe que ia comprar

gomas.

Page 33: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 33

TERMINUS 212

VINICULTURA GERAL

Os franceses são um povo à parte. Não tanto no sentido em

que fazem coisas que mais ninguém no mundo faz, mas no

sentido em que fazem tudo aquilo que os outros fazem, mas

conseguem quase sempre dar-lhe um toque pessoal.

Comparando Portugal e França, enquanto nós andamos

preocupados com a crise financeira e com bancos, na França

está-se a trabalhar na produção de vinho com menos teor

alcoólico. Para combater o alcoolismo? Por favor, não se

embaracem com tanta ingenuidade.

Desconheço sinceramente qual a actual situação financeira

da França. Suponho que seja francamente melhor do que a

nossa, afinal de contas é um país, mas não conheço os por-

menores todos. O que sei, a acreditar no que dizem estes in-

vestigadores, é que, durante os últimos trinta anos, as altera-

ções climáticas têm elevado a concentração de açúcar na uva;

o que, por sua vez, leva ao aumento do teor de álcool.

Há desculpas para tudo. Julgava eu que o problema do ex-

cesso de álcool era porque algumas bestas não sabiam beber.

Achava eu que essas aventesmas bebiam demasiado. Afinal,

não. Afinal essas aves raras bebem o mesmo, ou talvez menos.

A culpa é do clima.

Temos, portanto, duas situações distintas. Em primeiro lu-

gar, qual a razão que levou os franceses a fazerem este estudo?

Obviamente para vender mais vinho. Se o preço da garrafa se

mantiver, mas o teor alcoólico diminuir, em vez de uma, as

pessoas passam a comprar duas ou três. Em nenhum país do

mundo isto resolveria uma crise financeira, contudo, ajudaria

os seus habitantes a esquecerem-se de muitos problemas.

Por cá, lamento dizê-lo, a ideia não resultaria. Nós recusa-

ríamos com veemência o vinho light. Para algumas pessoas,

ainda seria uma hipótese a considerar; para a generalidade da

Page 34: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

34 PROTUBERÂNCIA – Volume III

população portuguesa seria algo a vilipendiar. E porquê? Por-

que nós somos um país de tascas, de tabernas, não de tavernas.

Somos um país de estabelecimentos que, mesmo em plena

época DA (Depois da ASAE), continuam a funcionar, apesar

das condições de higiene serem as mesmas do que há cin-

quenta anos. E porquê? Porque somos assim. Não há vergonha

em admiti-lo.

Enquanto uns comem caracóis de faca e garfo e fazem vi-

nho light, nós comemos tripas, dobrada, chispe, língua, fígado,

coração e bebemos vinho carrascão, do mais ácido e acre que

há.

Publico este artigo, ciente do risco em que estou a colocar o

planeta. Pois se em França eles trabalham para reduzir o teor

alcoólico das uvas provocado pelas alterações climáticas, nós

faríamos uma razia a todas as superfícies comerciais em busca

de aerossóis, acreditando que, se esguicharmos spray em

quantidade suficiente, um vinho de 13,5º passaria para uns

simpáticos 19,8º. Seria algo que, mais uma vez, não resolveria

a nossa crise financeira, mas deixar-nos-ia mais bem dispostos

e mais bem cheirosos.

Page 35: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 35

TERMINUS 213

RIDE THE AMBULANCE

2011 começou mal para muita gente e para mim em particular.

Este ano, que promete ser de muitos sacrifícios, é também o

ano em que eu vi-me forçado a abdicar de uma dos meus

hobbies favoritos: andar de ambulância.

Há aqueles que acham que andar de ambulância é como ir

às Finanças; só o fazemos quando não temos escolha e nin-

guém quer ter de fazer essa escolha. Eu discordo desta forma

de ver as coisas. Para mim andar de ambulância, principal-

mente em hora de ponta na Segunda Circular, é garantia de

intensa adrenalina. Pensem na malta que vai a conduzir uma

ambulância; o tempo todo a levar com queixas e gemidos. Se

estivessem no lugar deles, não gostavam, nem que fosse só

uma vez, de ter alguém lá atrás a dizer, “Passa o vermelho!

Passa o vermelho! Eh eh! Vistes a cara do velho? Quase que

lhe ias passando por cima! Muita bom!”

Todos nós temos um lado ruinzinho cá dentro. Não adianta

negar. Não queremos é mostrá-lo muito para não assustar

ninguém. Infelizmente, acabou-se a papinha. Desde o início do

ano que já não ando de ambulância, pelo menos não como

hobbie, mas tenho descoberto o prazer que é andar em varre-

doras (veículos, não senhoras) e em atrelados.

E porque é que eu, que nunca fiz mal a ninguém, deixei de

andar de ambulância? Porque eu ganho mais do que o salário

mínimo. A diferença não é muita, mas é suficiente para que me

passe a ser cobrado o transporte em ambulância. Em caso de

emergência, se precisar de ir algum lado e não tiver um táxi

por perto, ainda pode ser que vá de ambulância. Não só

continua a ser mais rápido como, ainda por cima, não cobram

bagagem. Além disso, se houver um acidente, tenho logo uma

ambulância à mão.

O que me incomoda não é o tanto o passar a pagar – isto da

Page 36: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

36 PROTUBERÂNCIA – Volume III

crise toca a todos, menos àqueles que a provocam, e é preciso

fazer sacrifícios pelo bem comum – é mais a distinção que se

faz entre os utilizadores do serviço. Que não se cobre a quem

ganha o salário mínimo, acho justo. O que já não me parece

justo é distinguirem entre doentes urgentes e doentes não

urgentes. Não é por não estar a sangrar dos olhos que tenho

menos urgência em ir para o hospital.

Nada disto teria acontecido se as pessoas não abusassem. É

a velha história de sempre. Por uns pagam os outros. A minha

sorte é que tenho um amigo doutor – é doutorado em Zoo-

logia, mas não importa – que me arranja atestados para andar à

borla e um contabilista a quem pago bem para provar que sou

pobre. Aos olhos do Estado, quem tem dinheiro, pode dizer

que não o tem; quem não tem, paga e não reclama. Senão vai a

pé.

Page 37: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 37

TERMINUS 214

O FENÓMENO BIZARRO

Em tudo no reino animal existe um paralelo que se pode traçar

com o Homem. Em quase tudo, digamos. Há certas coisas

sobre as quais podemos afirmar que existe uma ligação, mas

nada mais que isso. Outras vezes, acontece aquilo que se

convencionou chamar o Fenómeno Bizarro.

Para quem não sabe, Bizarro era uma personagem da DC

Comics, uma espécie de versão – como o nome indica – bi-

zarra do Super-Homem. Era grotesco, era desajeitado com os

seus poderes e não possuía a mesma moralidade sonsinha do

homem de aço. No fim de contas, Bizarro era o inverso de

tudo aquilo que o Super-Homem era.

O uso do nome Bizarro generalizou-se e passou a ser apli-

cado sempre que comparamos algo ou alguém ao seu quase

inverso. Não se trata de um inverso total – no caso do Super-

Homem seria uma mulher africana, gorda, sem poderes, sem

cuecas por cima do pijama – apenas de uma versão equiva-

lente.

Uma das versões mais recentes deste fenómeno surgiu num

estudo escocês, publicado em Novembro passado no Journal

of Evolutionary Biology. Hã? Já estamos em Fevereiro? E

depois? Por acaso sabiam do estudo? Se sabiam, porque é que

não contaram? Agora calei-vos.

O estudo foi coordenado por um cientista português, Mi-

guel Barbosa, biólogo especializado em animais marinhos.

Para quem achava que na Escócia só se estudava uísque e

golfe, não é verdade, também se estudam outras coisas. O

estudo incidiu sobre peixes tropicais de água doce que, depois

de estudados, marcharam para a grelha que foi um instantinho.

As conclusões foram muitas. Guppy com molho à espanhola

não, mas com molho de manteiga fica que é uma delícia.

Sobre o estudo, concluiu-se que “as fêmeas que se reproduzem

Page 38: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

38 PROTUBERÂNCIA – Volume III

com vários machos enriquecem as espécies e tornam-nas mais

adaptáveis às mudanças ambientais”.

Que comparações se podem fazer entre estes peixes e a

espécie humana? Para começar, as mulheres que se reprodu-

zem – ou acasalam, é mais isso – com vários homens não en-

riquecem a espécie, mas podem enriquecer a sua conta ban-

cária desde que não cometam nenhum descuido. Já no toca a

ficarem mais adaptáveis mudanças ambientais, verifica-se o

mesmo nas mulheres. Se o golpe der certo mudam-se para um

país tropical, se a coisa descambar fogem para um país sem

acordos de extradição.

Um abraço deste que tanto vos quer. Desde que sejam as-

seadinhos.

Page 39: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 39

TERMINUS 215

QUESTÕES DE SEGURANÇA NOS HIPERMERCADOS

O terrorismo é preocupante. A polícia, regra geral, tem uma

série de procedimentos padrão quando encontra sacos aban-

donados. Sacos e mochilas. Eu, para quem não sabe, costumo

andar com uma mochila. Quem me conhece já se habituou a

ver-me sempre com uma mochila às costas. Muita gente in-

terroga-se sobre o que é que eu levo na mochila. (Imagino que

também se interrogarão porque é que eu escrevi tantas vezes

“mochila” num só parágrafo.) Coincidência ou não, essas

pessoas desapareceram misteriosamente e foram encontradas

mutiladas meses depois.

A razão pela qual eu estou a mencionar a minha mochila é

pelas situações insólitas que ela por vezes provoca. Vou-vos

dar um exemplo, o mais comum aliás.

Nos hipermercados. Não há uma única vez que eu entre

num hipermercado com a mochila às costas e não apareça um

segurança todo sorridente

“Olhe, faz favor, tem de pôr a mochila num saco.”

Desculpe? Pôr a mochila num saco?

É nestas alturas que eu acredito na teoria da sub-evolução

das espécies e que são essas espécies, embora inferiores, que

mandam em nós.

Pensei cá para comigo, deve ser alguma medida de segu-

rança para impedir que as pessoas coloquem produtos nos seus

sacos ou mochilas. Vendo por esse prisma até fazia sentido.

Mas depois reparei: eles nunca dizem nada às mulheres que

entram de mala ao ombro.

Portanto, perdoem a minha ignorância, mas eu não consigo

ver a lógica nesta situação.

Vejam bem:

De um lado um tipo como eu com uma mochila como a

minha, daquelas de fecho. Sem estar dentro do saco, ou da

Page 40: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

40 PROTUBERÂNCIA – Volume III

“protecção plástica” como eles lhe chamam. Do outro, uma

mulher com uma bolsa ao ombro, daquelas com fecho de mola

que basta um simples gesto para abrir; ou mesmo daquelas

sem fecho, só um cordelito a enfeitar.

O gajo da mochila se quiser roubar alguma coisa tem de

tirar a mochila, abri-la devagar para o fecho não encravar,

colocar o que quer lá dentro, voltar a fechá-la e colocá-la de

novo nos ombros. Isto sem que o casal à paisana que anda

atrás dele há mais de uma hora dê por isso.

Mas o que eles têm na cabeça? Será que eles pensam que

quem anda com mochila passa os dias em casa a cronometrar o

tempo que demora a tirar a mochila, abri-la, pôr qualquer coisa

lá dentro, fechá-la e pô-la de novo às costas? Será que é isso

que pensam?

As mulheres não precisam de nada. Nem de subtileza. Para

quê? É só escolher. Os seguranças estão todos a vigiar os tipos

com mochila!

(Não sendo este um dos meus melhores artigos, é no en-

tanto o artigo em que eu mais vezes usei o termo “mochila”.

Acho que isso deve contar para qualquer coisa. Ainda não sei

o quê.)

Page 41: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 41

TERMINUS 216

O NOME DE DEUS – Primeira Parte

Olá, pessoas que acreditam e pessoas desconfiadas. O tema de

hoje, como já devem ter percebido pelo título, é dedicado a...

Deus. Desde o meu último artigo sobre religião que muita

gente me perguntou, “Ó Joel, porque é que gozas tanto com a

religião católica? As outras religiões não são gozáveis?” E a

minha resposta foi, “São. Menos aquelas que os queixosos

fazem bum! Além disso, nós só podemos gozar com aquilo

que conhecemos minimamente. Se eu vivesse em Bombaim,

acreditem que não faltariam piadas sobre a raspadinha. Dito

isto, vamos ao tema.

No que toca a nomes de deuses os católicos são do mais

calão que há. Dois mil e tal anos e não tiveram tempo de

pensar num nome? Dá uma má imagem que nem digo. Parece-

me que há duas razões para isso. E nenhuma delas joga a favor

dos católicos.

A primeira parte do princípio “o nosso é o melhor”. Pura

presunção. “O nosso é o melhor, por isso nem vale a pena

pensarmos num nome, porque além de ser o melhor, é também

o único.”

Os romanos tinham um deus para tudo; na Grécia, o mes-

mo; no Egipto, idem; com os Vikings, idem outra vez. U m

deus para cada coisa. Pronto... não era bem para tudo. Para

coser meias não havia nenhum deus designado, tanto quanto

sei, mas para o clima, coisas da vida e da morte, da sorte, do

azar, do amor, etc. havia um Deus apontado para essa tarefa. O

que fazia mais sentido no meu entender. A responsabilidade a

dividir por todos pesa menos e há menos hipóteses de deixar

coisas a meio.

E todos eles tinham nome. Todos. Houve casos de incesto,

fratricídio e infanticídio, é certo. Tudo bem. Eram muitos, só

que não eram bastantes e quando era preciso algum membro

Page 42: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

42 PROTUBERÂNCIA – Volume III

novo lá tinha de ir o filho ter com a mãe ou com a irmã.

É simples logística, meus caros. Adão e Eva tiveram dois

filhos homens. Mesmo que tenham tido uma catrefada de

mulheres depois, continua a ser tudo da mesma família. Não

ouvi dizer que Deus tivesse continuado a produzir humanos.

Começámos com dois, hoje somos não sei quantos bilhões.

Pensem nisso.

O melhor local, a nível de nomes de deuses, é sem dúvida o

continente americano. Quetzalcoatl, Tepeyollotl, Huitzilo-

pochtli, Tezcatlipoca... Aquilo é mesmo assim ou o gajo que

ditou os nomes para o colega pôr no livro de registo tinha um

problema na fala? Ou seria o escriba disléxico? Parece que

faltam lá letras. Talvez estivessem a jogar à forca e tiveram de

deixar o jogo a meio. Depois os soldados espanhóis chegaram

lá e passaram aquilo sem ligar aos espaços vazios.

Estes nomes nunca iriam funcionar no cinema. “Tonatiuh e

Tlaloc em... Fim-de-semana em Tlahuixcalpantecuhtli” Du-

vido que fosse aquele blockbuster.

A primeira teoria já está. A segunda já está escrita, mas não

a conto hoje só para vos deixar na expectativa.

Durmam bem e agasalhem-se que é capaz de estar frio na

rua.

Page 43: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 43

TERMINUS 217

O NOME DE DEUS – Segunda Parte

Olá de novo. Bem vindos à segunda parte. Ainda se lembram

do que falámos no artigo anterior ou é preciso fazer um “No

último episódio...”? Não? Óptimo, porque eu já não me lembro

o que escrevi. Ah! É mentira! Já estavam a acreditar!

Antes de começar, só um... Eu não tenho nada contra os

católicos, mas eles pertencem à maior religião do mundo e isso

faz deles um alvo. Não se goza com o pessoal da Igreja

Adventista dos Últimos Sete Dias porque eles são pequenos e

é feio; com os grandes já se pode.

A minha segunda teoria para o facto dos católicos terem

mantido o seu deus sem nome durante tanto tempo é... a pre-

guiça.

Estamos algures em Jerusalém, o ano não sei. Deitado na

cama está um fulano a dormir. Um criativo publicitário.

“Acorda. Tens de pensar num nome para o nosso deus.”

“Agora não, mãe.”

“Olha que depois esqueces-te.”

“Não esqueço.”

Depois chegou à hora e nada.

Chega à reunião.

“Tiveste dois meses para pensar num nome como deve ser

para o nosso deus. Espero que satisfaças as nossas expectati-

vas.”

“Bom, eu...”

“O que foi? Pensaste num nome, não pensaste?”

“Pensei, pensei. Só que isso das expectativas... Ninguém

me falou disso.”

“Vá. Que nome pensaste para o nosso deus?”

“Humm... Exacto.”

“Isaaco? Que raio de nome é esse?”

“Não, não. Exacto.”

Page 44: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

44 PROTUBERÂNCIA – Volume III

“Exacto? Continuo sem entender.”

“Não, não. O nome que pensei foi... Deus.”

“Deus? Dois meses de trabalho para isso?”

“É Deus com D grande, calma! E sempre que falarmos dele,

o pronome vem em maiúsculas também.”

“E se alguém quiser saber mesmo um nome? Os tipos lá no

registo são capazes de não aceitar isso assim.”

“Dizemos que o nome verdadeiro de Deus é proibido de

dizer que eles calam-se logo.”

“Assim gosto! Parabéns!”

Há também quem diga que o nome de Deus foi perdido

pelo homem.

Que homem e em que circunstâncias? Tinha o nome escrito

num papel no bolso das calças e ao lavar as calças no rio, o

papel desfez-se? Ou terá apontado o nome à pressa? Tipo

aquelas ideias que um gajo tem às vezes e pensa 'Isto é es-

pectacular!' e aponta à pressa num papel para não esquecer. E

depois vai a ler e não percebe nada. Podia ter decorado o que

escreveu. Não o fez. Porquê?

Presunção, arrogância e mândria.

Eu sou um exemplo de mândria. Mas só em relação a ani-

mais domésticos. Tivemos uma gata durante dois anos e tal.

Que nome lhe demos? Gata. Se era com maiúscula ou minús-

cula, não sei. Era gata. Nós chamávamos e ela vinha. Ou não.

Piriquitos. Ele, o macho; ela, a fémea. Nome para quê? Não

precisavam de ir ao Notário e eram os únicos que tinhamos. O

que eu tenho agora também não tem nome. Porquê? Porque é

o único.

Tive um cão quando era miúdo. Chamava-se Snoopy. E

para mim isso fazia sentido, pois acreditava mais na existência

do Snoopy do que na existência de Deus. Eu via o Snoopy.

Deus...

Page 45: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 45

TERMINUS 218

DISPUTA FAMILIAR

Tenho uma pergunta a fazer. Duas, aliás. A primeira é: que raio

de preocupação é essa que vocês demonstram por mim, que

estou quase um mês ausente, capaz de ter tido um acidente, de

estar acamado no hospital, e vocês nada? Nem um telefonema,

nem um email, nada. Assim se vê. A segunda pergunta é: já se

podem fazer piadas sobre o caso daquela senhora da Rinchoa

que estava morta no apartamento há quase dez anos?

Reparem que eu não disse piadas sobre a senhora, disse

piadas sobre o caso. Porque a senhora, coitada, já lá vai e a

mim sempre me ensinaram que com os mortos não se brinca.

Por causa do cheiro e da decomposição. Experimentem pôr um

morto à baliza. Podem rematar à figura que a bola passa

sempre. Por ele.

Quanto à dona Augusta ,e demais casos que calharam a ser

descobertos nos tempos que se seguiram, eu podia ser uma

pessoa de má índole e fazer piadas do género, “Alguém sabe

qual era o perfume que a dona Augusta usava? É que eu tenho

um amigo que tem um problema de transpiração e aquilo se

calhar era capaz de ajudar.”

Ou então um spot publictário. (Este tem potencial.) Entram

na casa da senhora, descobrem o corpo e notam a ausência de

cheiro. Depois, em fundo negro, aparecia o frasco do perfume,

com o nome, a marca e o locutor a dizer, “Eau de Mort, by

Rinchoa”.

Não será com isto que eu irei gozar. Será com quem me-

rece. Neste caso, os familiares da senhora que, de forma muito

digna, estão em disputa entre si. Pelo quê? Pelas despesas do

enterro? Querem todos pagar e ninguém se entende? Dis-

parate. É por causa do apartamento. A senhora Augusta, por

motivos de morte, contraiu uma dívida junto das Finanças. As

Finanças ficaram com o apartamento. E quem pagar a dívida,

Page 46: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

46 PROTUBERÂNCIA – Volume III

fica com o apartamento. Isto é que são uns familiares. Assim,

até dá gosto morrer. Pelo menos não se está a aturar gente

desta. Se for preciso nunca puseram os pés lá. Ela convidava-

os a irem lá lanchar e eles estavam sempre ocupados. Sempre.

Dizendo entre si, “Eu vou lá aturar agora a velha. Poupem-

me.”

Senhores familiares da dona Augusta, espero sinceramente

que resolvam a vossa contenda e que apanhem lêndeas na

língua. Todos.

Page 47: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 47

TERMINUS 219

TEM BICHO, NÃO QUERO!

O gémeo feio do PS, também conhecido por PSD, tem na sua

lista de coisinhas a alterar na Constituição algumas ideias en-

graçadas sobre portadores de doenças contagiosas. Dizem os

laranjinhas que não seria má ideia, em caso de pandemia,

“restringir a liberdade dos doentes para evitar o contágio”.

Penso que é uma boa ideia, mas só se não puserem as pessoas

nos hospitais. Aí não que é só doentes.

Fora de brincadeiras, a medida tem alguns méritos. É pre-

ciso zelar pela saúde dos não contaminados, ao mesmo tempo

que se salvaguarda a dignidade dos contaminados. O problema

é que estamos em Portugal, onde as boas ideias até aparecem,

mas são estraçalhadas de imediato.

Ao que parece, a proposta reune consenso junto de todas as

bancadas parlamentares. Todavia, os deputados avisam que é

preciso ter atenção ao texto desse artigo. Não vá haver gente a

aproveitar-se da situação. Poderá lá ser! Onde é que alguma

vez, os senhores que escrevem as leis iriam alterar a

Constituição em proveito próprio?

Onde isto também até era capaz de ser uma excelente ideia,

era aí no Parlamento. Aí, também há perigo de contágio. Só

que o tipo de infecção que se contrai aí não se resolve com

Tamiflu, tem de ser com injecções de capital financeiro. Esses

senhores também são transmissores de maleitas e não há quem

os enterre, perdão, interne. Vejam lá isso.

É claro que isto só será tema de conversa de café caso a

proposta do PSD seja aceite. Até lá, num gesto de altruísmo

que muito me dignifica, aqui ficam mais duas propostas para o

Pedrito de Portugal e amigos:

1 – Em vez de “causa justa” ou “razão atendível”, sugiro

“descontextualização sofismática”

Page 48: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

48 PROTUBERÂNCIA – Volume III

2 – Em vez de dar ao Governo indigitado pelo Presidente

da República autoridade para demitir o Presidente da Repú-

blica, dar essa autoridade a um vendedor de castanhas.

Para já é isto. Se me lembrar de mais alguma coisa, depois

digo.

Page 49: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 49

TERMINUS 220

PROTECÇÃO LEGAL

Se eu fosse pedófilo, gostaria de ser membro da Comissão de

Protecção de Dados. Assim, podia arranjar todos os dados

pessoais das crianças que quisesse que não ia ter chatices ne-

nhumas.

Vamos lá a saber que ideia vem a ser essa do concurso "Um

slogan pela Privacidade"? Fazer anúncios a pedir às cri-

ancinhas para divulgarem o seu número de telemóvel, morada,

endereço de correio electrónico, nickname do messenger,

username do hi5, do Facebook, do Twitter, do Orkut, do Ban-

doo e do outro? Sou eu que sou parvo por ser da geração dos

Deolinda ou é isto que não faz sentido?

Há coisas que não percebo.

No meu tempo, ou seja, quando eu era puto, diziam-me

sempre para não falar com estranhos. Agora são os estranhos

que pedem os contactos e os pais não são tidos nem achados.

Porquê? Porque não são uns badamecos quaisquer a pedir es-

ses dados, são os senhores da Comissão de Protecção de Da-

dos. E nenhum deles é padre que se saiba. É pena. Talvez se

fosse, os pais ficassem mais de pé atrás.

“Queres ser meu amigo, puto?”

“O meu pai disse para não falar com pessoas estranhas.”

“Eu não sou estranho. Sou da Comissão de Protecção de

Dados.”

“Então 'tá bem!”

É a desculpa sonho de qualquer pedófilo.

Ontem vi uma casa de banho pública, com o seguinte avi-

so: “Menores de dez anos devem entrar acompanhados de

adultos”. Não está certo. Estamos claramente na fase do acer-

to.

Antes do escândalo Casa Pia podia sorrir a uma criança,

brincar com ela, às vezes até pegar nela ao colo. Depois, des-

Page 50: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

50 PROTUBERÂNCIA – Volume III

cobriu-se que algumas pessoas mais velhas gostavam de outras

pessoas mais novas e nem olhar para um menor era permitido.

Agora, como tudo acabou, voltou-se ao antigamente. Só que

falta fazer o acerto. Agora há contacto a mais.

Não pretendo erguer suspeitas em relação aos senhores da

Comissão de Protecção de Dados, mas o ditado bem diz, “O

caminho para o Inferno é feito de boas intenções.” Ter o con-

tacto de todas as crianças dos 8 aos 17 anos pode parecer uma

boa ideia para avisá-las de algum perigo. Mas é também um

bom catálogo para pessoas menos bem intencionadas.

Principalmente se colocarem lá fotografias. E imagino que, no

descorrer desta gente, não faça sentido ter lá os dados pessoais

todos das crianças dos 8 aos 17 anos e não ter lá fotos. Seria

uma ideia estúpida.

Page 51: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 51

TERMINUS 221

UMA HISTÓRIA ASSIM A MODOS QUE

Entrei no café/snack-bar/restaurante sem saber bem ao que ia.

Talvez almoçar, talvez petiscar. Eram quase três da tarde.

Qualquer hipótese era válida. As mesas estavam todas ocupa-

das. Fumantes e não fumantes. Aproximei-me do balcão.

Perscrutei o cenário, tentando encontrar uma mesa, aquela tal

mesa que há sempre de clientes que só estão lá a pastar. Com

relativa facilidade, aliada a alguma paciência, encontrei-a e, ao

fazê-lo, resolvi aproximar-me.

Os empatas – não gosto de começar logo a insultar – bebi-

am café. Conversavam sobre a sua mais velha que era doutora.

Ou a mais velha que tinha ido à doutora. Ou a sua doutora que

era mais velha que outra pessoa. Com ar irritado, apontei para

o meu pulso, onde se encontrava um relógio hipotético, e fiz-

lhes ver que era tempo de se fazerem à estrada.

Nunca escondendo a minha indignação, dei meia volta e

regressei até ao balcão e encetei conversa com o empregado.

Pedi-lhe um copo de água. Ele fez a piada do costume, não a

sua, mas a da classe. Ri-me com gosto, pois gosto muito de ser

atendido por um especialista em gramática. Contei-lhe a piada

sobre o licenciado em gestão que me estava a atender. Não

achou graça. Fiz-lhe uma festinha no queixo, pedi-lhe

desculpa e fizemos as pazes. Foi um momento bonito.

De amizade reconciliada, apontei para a mesa onde me

havia dirigido e fiz um comentário eloquente e pertinente so-

bre o actual estado das contas públicas. Olhando para os fre-

gueses sentados à mesa, ele abanou a cabeça e fez um ar de

reprovação. A sua reacção não era dirigida a ninguém em

particular, muito menos àquelas pessoas, mas elas não sabiam

disso. E ainda bem.

Regressei à mesa. Continuavam a beber café e a conversar

sobre uma porcaria qualquer. Escolhi o meu alvo com a devida

Page 52: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

52 PROTUBERÂNCIA – Volume III

cautela. Era o mais franzino do grupo. Mas não foi por isso

que o escolhi. Foi por ser o que estava mais a jeito. Tirei-lhe a

chávena da mão e bebi de pénalti o café já frio. Ignorando o ar

de espanto dele e demais convivas, pousei a chávena no pires

com a típica calma de quem está no domínio da situação. O

principal cuidado a ter é manter o personagem até ao fim. Fiz

sinal ao empregado e gritei, bem alto: “Este já não 'tá

queimado! Foi só os outros!”

Pedi desculpa à mesa e também às pessoas sentadas à sua

volta e sai do café/snack-bar/restaurante sem dizer mais nada.

Achei que era melhor ir comer a outro sítio.

Page 53: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 53

TERMINUS 222

TERAPIA DO ACASO

Segundo uma notícia publicada em diário de tiragem nacional,

os políticos portugueses recorrem cada vez mais a terapia da

fala. Sendo a voz um instrumento essencial da actividade

política – é com ela que pedem e fazem favores uns aos outros

–, é natural que exista alguma manutenção. No entanto, penso

que há um dado que é preciso ter em conta.

Para quem tem andado por outra dimensão, no mês passado

realizou-se mais uma Cerimónia de Entrega dos Óscares e O

Discurso do Rei ganhou o prémio de Melhor Filme. O filme,

protagonizado pelo também oscarizado Colin Firth, conta a

história de um rei que sofre de gaguez e decide ter aulas com

um terapeuta para corrigir esse problema.

Se esta notícia tivesse saído noutro país que não Portugal,

eu acharia uma mera notícia de circunstância. Quiçá uma

coincidência. Mas conhecendo a nossa classe política como

conheço, sei que a voz não é o instrumento de trabalho mais

utilizado por eles, é o pulso. Os discursos até os partilham; os

despachos, cada um assina o seu. Isto não me soa nada como

políticos a zelarem pelo bom funcionamento da sua máquina.

Recordo-me de quando estava na chamada idade parva,

entre os 14 e os 17, e ia ao cinema ver um filme que tivesse

cenas de luta. Saia de lá, sempre de peito inchado, convencido

que era capaz de reproduzir na perfeição os golpes executados

pelo herói do filme e defender-me de qualquer meliante que

ousasse meter-se comigo. É claro que a parte sensata da minha

personalidade, preferia que não fosse necessário eu colocar em

prática aquilo que tinha visto no filme.

No caso dos nossos políticos é um bocado isto que se

passa. Parece que foram todos ao cinema ver o mesmo filme.

Por acaso, foi O Discurso do Rei. Calhou não ter sido O

Cisne Negro. Teria sido engraçado. Em vez de notícias sobre

Page 54: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

54 PROTUBERÂNCIA – Volume III

políticos a recorrerem a terapia da fala, agora teríamos notícias

sobre políticos a frequentarem aulas de ballet. Apesar da visão

de figuras proeminentes da vida política portuguesa vestidas

de maillots e tutus poder constituir um agradável momento de

comicidade, preferia que optassem por atitudes mais

adequadas à classe. Assim, em nome da adequação, re-

comendo aos nossos políticos o filme Inteligência Artificial.

Page 55: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 55

TERMINUS 223

PARTIDO A MEIO

Olá. Bem-dispostos? Eu estou. Sabem porquê? Porque

o Santana Lopes admite formar um novo partido. Quem é que fez “yupi”? Calma! Não comecem já com as

vossas manifestações de alegria porque ainda não é certo que Santana vá mesmo para a frente com esta

ideia. É melhor esperarem um pouco. O que ele disse foi “"Há tempos que admito e considero

que é muito provável que apareçam outras realidades no cen-

tro-direita de Portugal. A ver vamos e eu estou num processo

de pensamento sobre isso.” Portanto, ele ainda só está a pensar

se avança ou não.

Para dizer a verdade, é bem provável que ele avance. O

Santana é homem para isso. Lembrem-se que ele já foi Se-

cretário de Estado da Cultura do Governo de Cavaco Silva,

Presidente do Sporting, Presidente da Câmara Municipal da

Figueira da Foz, Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,

Primeiro-Ministro de Portugal, comentador político e Mr.

Camisa de Seda Molhada Lux 2001. É, portanto, um homem

que não recusa um bom desafio.

Por outro lado, é também provável que a criação deste

novo partido fique a meio. O Santana é capaz de definir esta-

tutos, é capaz até de elaborar um programa, mas quando for a

altura de ir fazer o registo da patente, o mais certo é ele lem-

brar-se que tem o leite ao lume e ir-se embora. E é isto que eu

gosto no Santana Lopes. Neste aspecto, Santana é um

autêntico Seinfeld da política.

Jerry Seinfeld, co-autor dessa mítica sitcom, recusou um

balúrdio de dinheiro para fazer uma décima temporada. Apesar

do graveto oferecido, ele recusou a oferta, dizendo que, “A

melhor altura para parar é esta, enquanto estamos no topo.

Continuar até o público se cansar de nós, seria um disparate.”

Page 56: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

56 PROTUBERÂNCIA – Volume III

Muitos políticos levam o seu mandato até ao fim, achando

que, ao fazer isso, estão a respeitar a vontade dos cidadãos que

os elegeram. Um mandato político devia ser como um filme ou

um livro: ao fim de dez minutos ou dez páginas, já sabemos se

aquilo tem ou não interesse. No caso de um Governo, a coisa

podia-se fazer até aos doze meses. Ao fim de doze meses se a

história não nos interessasse, vinham outros. Ficção por ficção,

ao menos que seja uma história interessante.

Santana Lopes é dos poucos políticos que entende não ser

o cumprimento mandatário aquilo que as eleitores procuram.

Apesar de poderem escolhê-lo para determinado cargo, ele tem

a consciência certa de quando deve sair. Pode não sair em

gramde, mas sai sempre a meio. E esse é um tipo de coerência

que eu aprecio.

Page 57: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 57

TERMINUS 224

MICROCRISE DE FUNÇÕES

Há pessoas muita ingratas, pá! Palavra de honra! Então não é

que o Muhammad Yunus, aquele que ganhou em 2006 o Pré-

mio Nobel da Paz com a invenção do microcrédito, foi expulso

do Grameen Bank? O banco que ele fundou, pá! E ainda por

cima foi o próprio presidente do banco que o mandou pôr-se

na alheta! Isto deixa-me cá com uns nervos! E também com a

garganta seca.

Tenho de ir beber água. Com licença.

Pronto. Assim está melhor. Já molhei o bico e aproveitei

também para pôr um pouco de creme anti-bronco. Vocês

também! Um tipo a escrever à bronco e vocês nada, pá! Peço

desculpa, foi aqui uma zona onde o creme ficou mal espalha-

do... Já está.

Perguntam vocês que se interessam pelo que eu tenho para

dizer: ó Joel, as razões que levaram o Banco Central do

Bangladesh a exonerar Muhammad Yunus das suas funções de

director-geral do Grameen Bank são justificáveis? A verdade é

que, desde que ganhou o Nobel da Paz que Yunus e o Governo

nunca se deram bem. A questão é saber quem é que tem razão.

Os senhores do Banco Central do Bangladesh consideram

que Yunus já atingiu a idade da reforma e, por essa razão, não

pode continuar a exercer funções. Cá está uma sociedade

completamente diferente da nossa e, ao mesmo tempo, tão

igual. O nosso ex-Vice-Procurador Geral da República, Mário

Gomes Dias, por exemplo, atingiu o limite de idade para

exercer funções, mas como houve tanta gente a pedir “só mais

um!”, ele lá aceitou continuar.

Já o Yunus foi acusado pelo seu Governo de “sugar o san-

gue dos pobres”. Coitado. Mas a culpa também é dele. Com

tanto dinheiro que ganhou à conta do microcrédito e nem um

espelho foi capaz de comprar para oferecer aos senhores do

Page 58: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

58 PROTUBERÂNCIA – Volume III

Governo.

Para mim, o problema não estava na idade de Yunus, estava

no nome do banco. Grameen Bank é demasiado parecido com

Banco de Gramíneas e a gramínea é uma planta que foi feita

para ser pisada.

Page 59: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 59

TERMINUS 225

TIPO SALADA RUSSA

Ainda a semana vai a meio e já tivemos manifestações, para-

lisações e reduções.

Comecemos pela Manifestação da Geração À Rasca. Im-

pressionante do ponto de vista de aglomeração, mas tão rele-

vante como um Rock In Rio. Não descurando a grande adesão

que teve, não só junto de jovens mas de pessoas de todas as

idades e cores (políticas), ficou um pouco aquém das ex-

pectativas. Em Lisboa mostraram que conseguiram encher a

Praça do Rossio. E?

Não estive presente na manifestação, apesar de me dizer

respeito, não porque não me apetecesse, apenas porque outros

assuntos exigiam a minha atenção. Todavia, mesmo que eu e

tantos outros que ficaram em casa, mesmo que todos os

descontentes e prejudicados e injustiçados tivessem saído à rua

e fizessem o que aqueles que foram fizeram, o que teria

mudado? Nada. Praticamente nada. Porque aquilo que os ma-

nifestantes fizeram, não foi mais do que ir lá. Isso é importante,

sem dúvida, é o princípio da coisa, mas só isso não chega.

Vê-se com frequência, em obras de norte a sul do país, um

ou dois a trabalhar, outros dois a dar palpites e mais três a ver.

Estão lá todos, mas é preciso mais do que estar lá. É preciso

que exista alguma acção. Ir do Marquês de Pombal até à Praça

do Rossio faço eu e muita gente quase todos os dias. Não sinto,

não tenho a pretensão sequer de pensar, que o país vá mudar

por causa disso.

O que deveria ter sido feito? Várias coisas. Talvez mani-

festarem-se num dia de semana. Em dia de plenário na As-

sembleia. Invadir a Assembleia e pregar um cagaço nos de-

putados. Tanta coisa. Nenhuma revolução acontece apenas

porque as pessoas resolvem sair de casa; isso é algo que fazem

todos os dias.

Page 60: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

60 PROTUBERÂNCIA – Volume III

Sobre a paralisação dos camionistas, é a história de sempre.

Quem quisesse, podia circular à vontade; só estava sujeito a

levar com um tijolo atirado dum viaduto. Coisa pouca. É quase

como um mosquito ir contra o vidro dianteiro.

Pararam dois dias por causa do aumento do preço dos

combustíveis. Compreensível. Toca a todos. Tanto quanto sei,

chegaram a acordo. Óptimo para eles.

Não sei se alguém já fez as contas, mas seria interessante

saber quanto é que a Galp, a BP e restantes companhias fac-

turaram antes do início da paralisação. É uma das leis mais

eficazes do comércio. Se um produto vende pouco, ou se

querem vender mais desse produto, basta anunciarem um au-

mento do preço ou uma ruptura de stock iminente que as pes-

soas vão logo a correr gastar o dinheiro que não têm para

comprar aquilo que (às vezes não) precisam. Somos criaturas

previsíveis e no combustível então... Os camiões cisterna vão

parar, os postos de abastecimento vão ficar sem combustível.

Pânico! Como se isto fosse durar mais do que dois, três dias!

Enfim...

No campo das reduções – e a palavra “campo” não foi

usada por acaso – é bom saber que ainda existem prioridades

neste Governo. Não sou da cor do senhor engenheiro, mas

reconheço um serviço bem feito quando ele existe. Posso ser

tendencioso e mal fundamentado, mas sou honesto.

E o que foi que o Governo do engenheiro Sócrates fez que

me deixou tão radiante? Nada mais, nada menos, do que re-

duzir o IVA do golfe de 23% para 6%. Não foi o carro, como

mostrou uma reportagem da RTP, foi o, digamos, desporto. E

em boa hora o fez. Porque era uma injustiça aquilo que estava

a acontecer no mundo do golfe! Isto tem de ser dito! Estamos

a falar de pessoas que pouco mais têm na vida do que a prática

de golfe. E o golfe que é um desporto tão nobre, tão cheio de

significado!

Mentira. É uma actividade parva, nem sequer é desporto,

praticada por gente idiota e snob. Golfe é dar uma tacada

Page 61: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 61

numa bola, passar meia hora à procura da bala, e dar outra ta-

cada. Pra quê? Encontram a bola, acaba o jogo! Querem

acertar no buraco? Ponham a bola mais perto do buraco!

Page 62: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

62 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 226

TRANSPORTES #1 – CARRIS

Hoje vou falar de transportes públicos. Pronto! Já sabia. Fala-

se em transportes públicos e vocês ficam logo... Eh pá!

Comportem-se, por favor.

Meus estimados, antes de começar, e antecipando algum

queixume da vossa parte, eu moro na Moita (Margem Sul,

yeah!), por isso os únicos transportes públicos dos quais posso

falar são os TCB, CP, TST, Metro, Soflusa e Carris. Se não

residem em zona afecta a estas empresas, temos pena. Não se

pode chegar a todos.

Comecemos pela Carris. Ora cá vai.

As recentes alterações de carreiras de autocarros na Carris

levarão, segundo estimativa da empresa, a uma poupança de

cerca de três milhões de euros por ano. Numa altura em que se

fala tanto de crise é bom saber que ainda existem empresas

capazes de facturar. Dizer que é à custa dos utentes pode ser

verdade, mas parece-me mesquinho.

Estive a olhar para o novo mapa de carreiras – eu gosto de

falar fundamentado – e, ao todo, são cinco carreiras que ficam

com percurso reduzido, duas que passam a funcionar apenas

durante a semana e seis que desaparecem por completo. Um

dado curioso a destacar é a não saída de motoristas. Pergunta:

com menos autocarros a fazer menos carreiras em percursos

mais curtos, será que os autocarros da Carris vão passar a ter

motorista e co-motorista?

O bilhete de bordo, esse, não deve tardar a ser aumentado.

Fazer alterações implica tempo para pensar e tempo é dinheiro.

Preparem-se. Não julguem que é por reduzir na qualidade do

serviço, que os preços vão-se manter como estão. Não se

esqueçam da crise. Reparem que Carris só tem uma letra a

mais que crise e que apenas o a e o e é que diferem. No grande

conjunto contextual, pode não significar nada, mas é um facto

Page 63: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 63

que não pode ser ignorado.

Este anúncio foi feito no passado dia 3 deste mês. Dois dias

antes, saiu uma outra notícia que dava conta que na Carris as

medidas de austeridade não seriam aplicadas. Segundo o

Governo, não se podem pagar prémios de desempenho aos

funcionários públicos. No caso da Carris, os seus responsáveis

entendem que não há qualquer problema em conferir uma

remuneração variável àqueles funcionários que “cumprem o

conjunto de pressupostos de desempenho excepcional”. O meu

azar foi ter tido má nota na cadeira de Chico-Espertice II,

senão ainda topava que havia aqui marosca.

Em suma, os funcionários recebem prémios de desempenho,

os gestores recebem ainda mais e os utentes, que antes

demoravam quarenta minutos no autocarro, passam a demorar

apenas quinze: os restantes são feitos a pé. Dizem que o

Governo e as empresas só se preocupam com números, que

não olham para as pessoas. Eis uma empresa que se preocupa

com a saúde dos seus utentes, ao ponto de obrigá-los a fazer

saudáveis caminhadas.

Page 64: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

64 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 227

OS CONTOS DE FADAS

Quando eu era pequeno, os contos de fadas começavam sem-

pre da mesma forma. Era sempre “era uma vez...”, “há muito,

muito tempo, num reino muito, muito distante”, etc. Sempre

assim. Não tinham originalidade. Só que hoje em dia o que

falta por aí são pessoas sem originalidade a venderem bem.

Não sei o que vocês acham, mas eu sinto-me muito triste com

isto.

Comecemos pelo “Era uma vez...”

Se era uma vez então é porque já foi. O que significa que,

mesmo que a história acabe bem, é mais que óbvio que, mais

tarde ou mais cedo, acabam por morrer todos. Maus e bons.

Depois temos a outra: “Há muito, muito tempo, num reino

muito, muito distante...”

Dizer isto é a mesma coisa que dizer “Nem penses que isto

algum dia vai acontecer a alguém como tu”

E isto é apenas o princípio, literalmente falando. Depois

vêm as próprias histórias. E os temas. E que temas! Mortes,

traições, comida envenenada, maldições, roubo, racismo, ex-

ploração de trabalho, até mesmo canibalismo.

Quantas velhinhas, vendedoras de maçãs, é que perderam o

seu emprego por causa da história da Branca de Neve?

Quantos lobos foram abatidos por caçadores que leram “O

Capuchinho Vermelho” na sua infância? “Ai sacana do lobo!

Queres comer a menina? Então toma!”

Há tanta coisa, tanto exemplo nos chamados, entre aspas,

contos para fazer sonhar. E o pior é quando isto se reflecte na

idade adulta e temos assassinos, ladrões, traficantes. Tudo

pessoal inspirado nos contos de fadas. Vão atrás dos exemplos

que leram quando eram crianças e vão ver o que vos acontece.

“Se fizeres isto és bom.”, dizem eles. Dito isto, qualquer

pessoa poderá pensar “Vou fazer isto e vou ser bom.” Pumba!

Page 65: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 65

Cadeia.

Se nós analisarmos isto de outro prisma, e lermos para

além do que está escrito, o que temos é o seguinte: “Se fizeres

isto, sem seres apanhado, és bom. Se não, és uma merda.”

Assim faz mais sentido.

Page 66: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

66 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 228

AUGUINHA

No Centro Hospitalar de Gaia/Espinho a água engarrafada

passou a ser substituída por água da torneira, vulgo el cano. A

medida está a ser aplicada desde Junho e já significa uma

poupança de 12 mil euros. Outras reduções e cortes na despesa,

nomeadamente no consumo de papel, no uso das impressoras,

na aquisição de jornais e na renegociação de contratos com

empresas externas, levaram a uma redução de custos de cerca

de 1,33 milhões de euros.

Gostaram da notícia? Agora vem a parte má.

Eu não resido na zona que serve o Centro Hospitalar de

Gaia/Espinho, por isso acredito que nem seja um mar de rosas.

No entanto, a ideia de poupar recursos é boa e deve ser

estimulada, dentro dos limites do bom senso. Eu sempre bebi

água da torneira e nunca morri. É verdade que, nos últimos

meses, tenho passado por locais cujo água mal inspira o toque

com segurança, quanto mais a ingestão.

Seja como for, esta ideia da água parece-me de louvar. É

uma ideia que ajuda o bolso e também o ambiente. Em teoria,

seria uma ideia capaz de colher aprovação junto dos vários

quadrantes da sociedade, certo? Bom, quase todos. Os se-

nhores do Conselho de Administração da Assembleia da Re-

pública recusaram a proposta de substituir as garrafas de água

mineral por jarros com água da torneira.

Porquê?

Em primeiro lugar, por questões de higiene.

Em segundo lugar, por não haver pessoal suficiente para

encher, substituir, lavar e secar os jarros individuais.

Em terceiro lugar, por haver contratos assinados com em-

presas fornecedoras das máquinas dispensadoras de água.

Analisemos cada uma destas razões separadamente.

Questões de higiene? Mas vocês são deputados ou são ratos?

Page 67: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 67

'Tão com medo de contrair o quê? Não sabem que a imunidade

parlamentar vos protege de todos os vírus e bactérias

conhecidas do homem? Não sejam mariquinhas pá!

Não há pessoal para quê? Para lavar e encher o jarro do

menino deputado? O menino deputado quando vai à casa de

banho leva alguém para lhe limpar o rabinho ou fica ali com o

produto a fazer compostagem? É de admirar como é que as

comissões e plenários duram tanto tempo. Alguns devem fazer

para dentro; outros nota-se naquilo que dizem.

E por fim, contratos. Existem contratos assinados com

empresas fornecedoras das máquinas dispensadoras de água.

Mas não estávamos a falar de garrafas de água? De onde apa-

receram as máquinas dispensadoras de água? Meus lindos, um

contrato não é eterno. Seja ele feito com a Luso, com a

Penacova ou com a Vitalis.

Reparem no número: 2535. Sabem o que é? Em euros, é

quanto a Assembleia da República gasta por mês em garrafas

de 33cl, a fazer as contas a 0,65€ a garrafa. Quase 2600€ que

gasta à vossa pala. Mas calma! Não estou a dizer para come-

çarem a beber refrigerantes. Não façam isso. Porque esses,

além de serem mais caros, fazem pior à vossa saúde e depois

quem é que gozava com a nossa cara?

Costuma-se dizer, faz como eu digo, não faças como eu

faço. Outra que também se costuma dizer é, nunca digas desta

água nunca beberei. Os nossos deputados tendem mais para o

segundo ditado.

A minha sugestão para a Assembleia da República é a se-

guinte: compram uma garrafa por deputado, escrevem o nome

de cada um no rótulo e distribuem-nas. Cada deputado passa a

ter a sua garrafinha e quando acaba, em vez de deitar a garrafa

fora e ir comprar outra, vai à casa de banho e enche. Pessoas

mais sensíveis estarão com o dedo a tentar conter o vómito,

mas paciência. É o tipo de coisa que fazem aqueles que muitas

vezes não têm água em casa, à conta das ideias que os

deputados têm quando bebem água engarrafada.

Page 68: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

68 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 229

SEQUELAS & PREQUELAS

Daqui por algumas horas discutir-se-á no Parlamento a

votação do PEC 4. Se passar, Sócrates continua; senão, adeusinho, a gente vê-se por aí. Que impacto terá cada

um destes possíveis resultados? Para nós, contribuintes permanentes, o que for recusado agora será implantado

pelo próximo Governo, seja para não ofender os

mercados, seja porque é preciso mostrar a Bruxelas que Portugal está determinado em avançar num esforço

concreto. Enfim, tretas. Mas são tretas que divertem e sem as quais eu não estaria a

escrever isto. Reparem, tecer cenários do que poderá acontecer

é um exercício puramente especulativo. E eu assumo isso. Não

faço como muitos comentadores, analistas e, pior, políticos. A

política mexe com a vida das pessoas e não se pode resumir a

olhar para números e antecipar cenários e elaborar decisões

com base nisso. Os antigos olhavam para as tripas de um

porco, hoje olha-se para dados estatísticos falseados e

extrapola-se. A futurologia não devia entrar aqui, mas entra.

Tenho muitas questões sobre este PEC 4. A primeira delas

é: até que ponto vai continuar a saga? É que isto já parece o

Sexta-feira 13 (mas mais assustador): o primeiro foi bom, o

segundo aguentou-se, o terceiro... e do quarto em diante foi

um descambar. Para bem da saga e das pessoas nela envolvi-

das, pensem bem no que estão a fazer. A existência do quarto

filme da saga Alien é negado por muitos dos fãs. Querem que

aconteça o mesmo com o PEC 4? Não querem, pois não?

Uma prequela também não serve. A última grande prequela

que houve foi o Star Wars e, que eu saiba, o Governo não tem

nenhum Jar Jar Binks para entreter as crianças. Mariano

Gago? Não digam isso. O homem está lá no seu cantinho,

quase que não se dá por ele. Estão a implicar com ele porquê?

Page 69: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 69

Há quem não considere a saga PEC uma saga de terror, mas

sim uma saga de comédia. Não se sintam chocados e

ofendidos com a atitude destas pessoas. O PEC pode ser con-

siderado tanto uma saga de comédia, como uma saga de terror.

Tudo depende do ponto de vista.

Os mais ricos olham para o PEC como uma comédia, a

classe média como um filme de terror, os mais pobres como

um filme português dos anos 40, o Governo como um docu-

mentário e a oposição como um mau filme de ficção científico.

Eu prefiro olhar para o PEC como uma mistura de vários

géneros. Porque o PEC É uma comédia e É um filme de terror,

só que é também um filme de fantasia e um musical. E esse é o

grande problema desta saga. Não só lhe falta um enredo que

convença, como também não assume duma vez por todas em

que género cinematográfico se insere.

Façam-me um favor. Quando forem lançar o PEC 5. O

quê? Ninguém me contou. Fui ao IMDB ver a filmografia do

Governo e estava lá em pre-produção. Escutem-me, mudem o

nome do filme. PEC não. O pessoal já conhece. Não tentem

fazer como o Saw, não conseguem. Assustar conseguem, só

que o enredo já não convence ninguém. É apenas violência

gratuita e isso é mau cinema. Em vez de PEC, porque não

experimentam o IAB?

O IAB, ou, na sua forma extensa, o Ir Ao Bolso, seria uma

saga ainda mais assustadora. As situações causadoras de

incómodo e pânico seriam as mesmas, embora mais intensas, e

o enredo seria mais realista. As pessoas sairiam da sala de

cinema, temendo que algo assim lhes pudesse acontecer. E

desejariam adormecer e acordar dentro da saga Pesadelo em

Elm Street ou Halloween e serem rapidamente trucidados.

Uma morte violenta e sangrenta, mas rápida, seria quase uma

benesse para quem se sente a morrer devagar dia a dia.

Page 70: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

70 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 230

TRANSPORTES #2 – TST

Hoje vou vos falar da minha experiência como passageiro de

caminete, que é como quem diz a Rodoviária, ou ainda TST.

Os TST são uma empresa espectacular! A gente paga um ba-

lúrdio e percebe que há um claro investimento feito com o

nosso dinheiro. Só que é na casa dos gestores e accionistas da

empresa. Se formos visitar a casa do director dos TST, deve

estar lá muito módulo e muita viagem Barreiro-Alcochete. Nos

autocarros é que esquece lá.

Pensando melhor, não me apetece falar dos TST. Vou antes

aproveitar este espaço para vos contar um sonho que tive. A

maior parte dos sonhos que tenho desaparecem assim que abro

os olhos. Este foi daqueles que resistiu, por isso só pode ser

bom.

Eu no sonho era um burro. Não um animal, apenas alguém

de discernimento reduzido. E o burro precisava de ir da Baixa

da Banheira para a Moita. Em tempos idos, essa era uma

viagem que o burro fazia com frequência. Vinha a carroça

guiada por uma besta e o burro lá ia, na companhia de outros

burros.

Um dia, este burro zangou-se com um das bestas porque

esta tinha dito ao burro que o título de transporte do burro não

era válido para aquela zona. O título dizia Baixa da Banheira-

Moita e o burro morava na Baixa da Banheira, mas a besta

insistia que o burro tinha de comprar o título Lavradio-Moita

ou ir apanhar a carroça a Alhos Vedros. O burro fez o

manguito à besta e durante muito tempo não andou de carroça.

O tempo passou e o burro começou a ir para outros sítios,

noutras carroças. Até que um dia, o burro viu-se na necessi-

dade de ter de apanhar a mesma carroça de outros tempos.

Sabia que isso lhe traria más recordações, todavia era algo que

ele precisava fazer e assim fez.

Page 71: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 71

O burro foi para a paragem e aguardou a habitual horinha

pela chegada da carroça. Quando a carroça chegou, o burro

entrou e pagou os 2,05€ que a besta indicava como custo do

bilhete Baixa da Banheira-Moita. O burro, apesar de burro,

percebeu que o bilhete estava mais caro. Porém, percebeu

também que a carroça estava diferente.

Para começar, o seu bilhete indicava um número de lugar

para se sentar. O burro procurou pelo lugar que lhe pertencia e

sentou-se num confortável sofá de cabedal. Ao seu dispor

tinha um leitor de Blu-Ray portátil e uns headphones. Para

assegurar o máximo conforto, tinha também um mini-bar com

bebidas e snacks, de consumo gratuito, sistema de ar

condicionado, uma manta para o frio, uma luz de leitura e uma

gueixa.

O burro percebeu que tinha dado o seu dinheiro por bem

empregue e seguiu viagem até à Moita, feliz por viajar naquela

carroça.

E cá está. Viram como se desanca numa empresa assim às

claras, duma maneira que toda a gente percebe mas que não se

pode provar em tribunal? Inventei a trreta do sonho e assim

pude falar à vontade. Aprendam que eu não duro sempre.

Page 72: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

72 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 231

ABUSO DE MENORES

Sou a favor das regras, quando aplicadas devidamente. O "é

assim porque é" não resulta comigo. Sou contra qualquer tipo

de imposições. Porque o respeito conquista-se, não se impõe.

Este artigo é dedicado a algo que está sempre na moda. Infe-

lizmente. Falo do abuso de menores. Sei que não é um tema

fácil de endereçar, mas tem de ser.

Não vou falar da pequena Joana, da pequena Esmeralda,

das vítimas da Casa Pia, ou de qualquer outro caso já esmi-

frado em praça pública. Vou antes falar de algo mais pernicio-

so e ignorado. Algo que acontece todos os dias sem que nin-

guém faça nada.

Falo dos "Malucos e Filhos, das duas versões dos "Bata-

netes", dois programas que, felizmente, já saíram do ar, mas

deixaram a sua marca. Aliás, vou aproveitar para ir mais longe:

todas as séries de televisão que existem agora, todas, feitas por

ou para crianças deviam ser consideradas perigosas. Estão a

tornar os putos estúpidos. Há uma diferença grande entre

programas não violentos e programas que não deixem as

crianças pensar por elas próprias. Pensem nos Morangos com

Açúcar e nos outros exemplos televisivos que dei, olhem para

os vossos filhos, e tirem daí as vossas conclusões.

E eu sei que muitos de vocês vêem os Morangos com

Açúcar. Ainda mais grave que ver, sei que muitos de você até

gostam. Deixem-me que vos diga uma coisa. Os Morangos

com Açúcar são apenas uma nova versão dos "Riscos". Lem-

bram-se dos "Riscos"? Aquela série magnífica em que havia

um bacano que os amigos queriam internar numa clínica de

desintoxicação por ter fumado um cigarro? Não foi um charro,

foi um cigarro!

Foi mais ou menos a partir daí que eu deixei de ver a série.

A cena da gaja que pensava estar grávida porque o namorado

Page 73: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 73

pôs-lhe a mão nas cuecas ainda deixei passar, mas esta do

cigarro...

É disto que eu falo! Realidade! Pais, abram os olhos!

Se suspeitarem que o vosso filho de dezasseis anos anda a

fumar... Alerta! Ele já fuma desde os treze. Ele não começou a

fumar uma semana antes de vocês descobrirem.

Abram os olhos!

Eles podem não ser inteligentes, mas são espertos. Mais do

que vocês querem acreditar.

A televisão é feita para entreter, não para educar. Os pais

culpam a televisão por não corresponderem às suas expecta-

tivas. E é aí que está o erro.

Pais, preparem as crianças para a vida – não as sentem em

frente da televisão à espera que corra tudo bem. Não vai correr.

Vai haver merda. E a culpa vai ser toda vossa. Só vou dizer

uma vez, por isso prestem atenção: prevenção. Pensem nisso.

E não pensem que lá por não dizerem palavrões em casa à

frente dos vossos filhos, que eles não os vão aprender. Se for

preciso, eles até vos ensinam palavras novas. É que não te-

nham dúvidas. Pior do que dizer asneiras, é dizê-las de forma

errada.

Page 74: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

74 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 232

ANTES DAS ELEIÇÕES #1: INÊS DE MEDEIROS

José Sócrates surpreendeu-me. A recusa do PEC 4 já era ex-

pectável, mas José Sócrates ter cumprido a sua promessa de

sair, não. Pelo menos essa promessa ele cumpriu, há que re-

conhecer. No início do debate, quando ele saiu porta fora,

apenas um “boa tarde” fugido aos jornalistas, fiquei à espera

que ele regressasse, já com o PEC 4 votado e recusado, e dis-

sesse “Vejam lá este aqui. Pensavam que já não me viam, não

é? Ah! Ah! Ainda vão ter de gramar comigo mais uns tempos!”

Não sou contra o afastamento de José Sócrates. Também

não sou a favor da aproximação de Passos Coelho. É um bo-

cado como mudar de Pepsi para Coca-Cola: são ambas bebidas

gaseificadas com cafeína, de sabor a caramelo. O que me

estorva é eu ter uma boa quantidade de matérias a abordar

sobre a actual legislatura e, em vez de tratá-las com calma, sou

obrigado a fazê-lo em modo “aviar frangos.” Isso chateia-me,

mas que remédio tenho eu? E o primeiro frango, salvo seja, é:

Inês de Medeiros.

Na primeira e última vez que falei sobre a deputada Inês de

Medeiros estavam em foco as suas viagens de Paris para

Lisboa. O assunto gerou muitos comentários e alguma polé-

mica. Sobre a vontade de Inês querer viver com a família, é

perfeitamente natural e compreensível. O que não é compre-

ensível é querer viver com a família, trabalhar em Portugal e

sermos nós a pagar os custos de deslocação. Não sei em que

ponto está esta situação, se continuamos a pagar e não

sabemos, se é ela que paga, não sei. O que posso aqui

(re)afirmar é o seguinte: o comum contribuinte, quando vai

para o trabalho, seja de transporte próprio ou público, paga a

deslocação do seu bolso. Há quem gaste mais de dez por cento

do seu vencimento em transportes; há quem ganhe dois mil

euros ou mais por mês e tenha tudo pago. Detalhes para alguns,

Page 75: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 75

mas não para muitos.

Regresso ao tema Inês de Medeiros a propósito de uma

entrevista concedida ao Jornal de Notícias. Entre referências a

uma versão portuguesa do Canal Odisseia e à resistência do

cinema português, Inês de Medeiros opina sobre a sua activi-

dade política e sobre a política em geral. Pela sua voz, perce-

bemos que nós, povo, olhamos para a política como algo d'

“Eles”. E de que outro modo poderia ser? É verdade que não

se pode pôr tudo no mesmo saco, mas é tão difícil distinguir.

Insiste-se na partilha de responsabilidade entre todos os

elementos da sociedade, quando a nossa única responsabili-

dade é escolher quem vai continuar a fazer o mesmo ou pior.

Que alternativas temos? É nosso dever e direito cívico esco-

lher os nossos representantes. E os deveres dos nossos repre-

sentantes quais são?

Acredito que muitos políticos, e Inês Medeiros é um ex-

emplo disso, têm ideias boas e promovem iniciativas úteis – no

caso dela as alterações á Lei 4/2008 sobre o regime laboral e

de segurança social dos profissionais do espectáculo e

audiovisual dizem-me particular respeito – só que pecam

quando não assumem as falhas da classe. Ovelhas negras

existem em toda a parte. Não é vergonhoso admiti-lo, mas é

escondê-lo.

Nós não menosprezamos a instituição Parlamento, menos-

prezamos as pessoas que lá estão e que o tornam menospre-

zável. O que ninguém quer admitir é que o político não é mais

do que um tuga aprumado. Eles fazem o que que qualquer um

de nós faz, apenas em escala maior. Podemos mesmo criticá-

los? Podemos, porém, nunca esquecendo que eles são nossos

representantes. Os políticos são tão bons quanto a sociedade

que os elege. Concluam a partir daqui.

Page 76: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

76 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 233

OS MAL LEMBRADOS

(VERSÃO CONDENSADA)

Há quem faça pouco dos ditados populares, que olhe

para eles com desdém; eu sigo-os como uma doutrina

que resiste a qualquer mudança de regime e de sociedade. Entre os muitos, existem três que eu gostaria

de destacar por motivos que farei óbvios. O primeiro desses ditados é: Devagar se vai ao longe. É

verdade que depressa também se chega lá, mas se formos de-

vagar apreciamos mais a viagem. E, no fim de contas, não é a

viagem tão ou mais importante que o destino? Se forem de-

vagar para o trabalho, não apreciam mais o tempo antes de

chegar lá? Depois chegam atrasados, mas isso são outros qui-

nhentos.

Em segundo lugar temos: Quem tudo quer, tudo perde. O

que é querer ter TUDO? Como é que alguém pode querer

TUDO? TUDO não é só o bom, é o mau também. Não são só

as gajas, o dinheiro, a fama, o poder, são também as doenças

venéreas, a sodomia, a esclerose-múltipla e um Governo Por-

tuguês. E assim se percebe melhor a segunda parte do ditado.

Quem tudo tem, não perde tudo, apenas se “esquece” de tudo

em algum lado, vem alguém e leva.

E por fim, um dos meus favoritos: O dinheiro não traz a

felicidade. Nada mais verdadeiro. Reparem no meu caso: tra-

balho quase todos os dias, ganho pouco mais que o salário

mínimo e ainda não tenho casa própria. Por outro lado, um

sem-abrigo residente na Gare do Oriente, que não trabalha o

que eu trabalho (mas que talvez até aufira mais do que eu), é

dado como residente na Torre São Rafael. Vêem como o di-

nheiro não traz a felicidade? Ou, melhor, como a aparência de

pobreza a traz? A felicidade, entenda-se.

Page 77: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 77

Releiam o primeiro ditado. Aposto que muitos sem-abrigos

nem sequer desejavam serem inquilinos nas Torres São Rafael

e São Gabriel. Ficaram parados na Gare do Oriente. E o que é

estar parado, senão andar devagar muito lentamente? Não

queriam ir devagar, não queriam ir depressa, e assim

conseguiram ir até onde muitos desejavam.

E o que é um sem-abrigo senão alguém que perdeu tudo o

que tinha? Alguns até perderam o que não tinham e assim re-

cebem os seus dividendos da sociedade. A mesma sociedade

que apenas lhe dá abrigo e comida por alturas festivas, é

aquela que os coloca a residir em apartamentos de luxo. É

apenas no papel, é verdade, mas não é hipocrisia. Longe disso.

O verdadeiro sem-abrigo aprecia a liberdade de um espaço a

céu aberto. Prefere a visão do firmamento à prisão de um tecto

branco. Ao colocá-los numa falsa residência, estamos a

cumprir o nosso propósito enquanto sociedade e a respeitar os

seus desejos e tradições.

Page 78: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

78 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 233

OS MAL LEMBRADOS (VERSÃO EXTENSA)

O saber dos Antigos continua a surpreender-me. Há

quem faça pouco dos ditados populares, que olhe para

eles com desdém; eu sigo-os como uma doutrina, a única doutrina que resiste a qualquer mudança de

regime e de sociedade. Entre os muitos, existem três que eu gostaria de destacar por motivos que farei óbvios.

O primeiro desses ditados é: Devagar se vai ao longe. É

verdade que depressa também se chega lá, mas se formos de-

vagar apreciamos mais a viagem. E, no fim de contas, não é a

viagem tão ou mais importante que o destino? Se forem de-

vagar para o trabalho, não apreciam mais o tempo antes de

chegar lá? Depois chegam atrasados, mas isso são outros qui-

nhentos.

Em segundo lugar temos: Quem tudo quer, tudo perde. Não

é uma lei escrita na pedra, é apenas probabilidades. Para

alguém perder tudo, é porque em algum momento teve tudo. É

um ditado que fala da ambição, mas também da força de

vontade e do azar que toca a todos sem discriminação. E o que

é querer ter TUDO? Como é que alguém pode querer TUDO?

TUDO não é só o bom, é o mau também. Não são só as gajas,

o dinheiro, a fama, o poder, são também as doenças venéreas,

a sodomia, a esclerose-múltipla e um Governo Português. E

assim se percebe melhor a segunda parte do ditado. Quem tudo

tem, não perde tudo, apenas se “esquece” de tudo em algum

lado, vem alguém e leva.

E por fim, um dos meus favoritos: O dinheiro não traz a

felicidade. Nada mais verdadeiro. Reparem no meu caso: tra-

balho quase todos os dias, ganho o salário mínimo e ainda não

tenho casa própria. Por outro lado, um sem-abrigo residente na

Page 79: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 79

Gare do Oriente, que não trabalha o que eu trabalho (mas que

talvez até aufira mais do que eu), é considerado residente na

Torre São Rafael. Vêem como o dinheiro não traz a felicidade?

Ou, melhor, como a aparência de pobreza a traz? A felicidade,

entenda-se.

Este caso dos Censos tem incomodado muita gente. Como

cidadão informado e maduro, estes tumultos passam-me ao

lado porque percebo aqui toda a sapiência popular. E não é só

neste último ditado, é nos outros dois que referi e em tantos

outros que não mencionei.

Olhem de novo para o primeiro ditado. Aposto que muitos

sem-abrigos nem sequer desejavam serem inquilinos nas Tor-

res São Rafael e São Gabriel. Ficaram parados na Gare do

Oriente. E o que é estar parado, senão andar devagar muito

lentamente? Não queriam ir devagar, não queriam ir depressa,

e assim conseguiram ir até onde muitos desejavam.

E o que é um sem-abrigo senão alguém que perdeu tudo o

que tinha? Alguns até perderam o que não tinham e assim re-

cebem os seus dividendos da sociedade. A mesma sociedade

que apenas lhe dá abrigo e comida por alturas festivas, é

aquela que os coloca a residir em apartamentos de luxo. É

apenas no papel, é verdade, mas não é hipocrisia. Longe disso.

O verdadeiro sem-abrigo aprecia a liberdade de um espaço a

céu aberto. Prefere a visão do firmamento à prisão de um tecto

branco. Ao colocá-los numa falsa residência, estamos a

cumprir o nosso propósito enquanto sociedade e a respeitar os

seus desejos e tradições.

Page 80: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

80 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 234

UM EXEMPLO A (PER)SEGUIR

A TVI prepara-se para estrear um reality show intitulado

“Mulheres Ricas”. O título só não é “Ricas Mulheres”, porque,

a julgar pelas declarações de certas convidadas, a única coisa

que se aproveita desta gente é mesmo o dinheiro. Uma dessas

aves raras, que dá pelo nome de Lili Caneças, considera que

este reality show pode ser uma ajuda para telespectadores

“fartos da miséria.” Até aqui eu dou-lhe a razão. Sou da

opinião que a televisão não deve apenas informar e educar,

deve também entreter, fazer a pessoa imaginar-se numa vida

diferente e melhor. Servindo este propósito, nada teria a obstar

às declarações da senhora, caso ela não tivesse continuado.

À observação prática seguiu-se a asneira. “Se virem pes-

soas que vivem bem, podem pensar que, se trabalharem, tam-

bém podem ter uma vida assim”. Pois... E de que tipo de tra-

balho é que estamos a falar? Nem todos querem ou conseguem

se curvar dessa maneira, minha senhora. E mesmo que fosse

assim tão fácil alcançar a vida das figuras do nosso jet set,

será que desejaríamos isso? O que têm elas para nos oferecer

senão aparências sem conteúdo?

O nosso problema, diz ela, é nós sermos tão acomodados

quanto invejosos. E o problema dela é não ter quem lhe ex-

plique o que essas palavras querem dizer. “Na Índia não há

inveja; os pobres aceitam que foi Deus que os fez assim e não

invejam os ricos... Caso contrário, aquela imensidão de gente

matava os marajá todos.” Lili, não dês ideias, olha que nós

somos invejosos. E um invejoso tende a mover-se até alcançar

o seu objectivo. Por outro lado, somos também acomodados e

poderemos optar por aguardar que esse objectivo venha até

nós. Pessoalmente, estou indeciso entre queimar fogo ao jet set

todo ou deixar-me ficar acomodado enquanto o jet set entra em

combustão espontânea.

Page 81: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 81

A Lili diz que as fantasias de luxo são como uma espécie

de cenoura à frente dos olhos. Fico contente por saber que

existem várias espécies de cenoura, embora não indique a qual

delas se refere, mas convém não esquecer quem na história vai

atrás da cenoura. Lili Caneças pode não ter inteligência para

muita coisa, mas sabe que quem vai atrás da cenoura são os

burros. Pode ter todos os defeitos e mais alguns, mas ninguém

a pode acusar de não conhecer o seu público.

Page 82: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

82 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 235

O EGAS E O BECAS

É inegável a importância que “A Rua Sésamo”, na sua versão

portuguesa, teve junto da minha geração. Foi a série que nos

deu a conhecer grandes actores como o Monstro das Bolachas,

o Gualter, o Poupas e o Ferrão. Os humanos não estavam mal,

mas captava mais naturalidade das figuras de esponja e lã do

que de alguns actores. Os bonecos tinham um comportamento

mais próximo do meu. Exemplo: via-me a imitar o Monstro

das Bolachas, comendo desaldamente um pacote de línguas de

gato; todavia, não me imaginava a imitar um humano a

repreender o Monstro das Bolachas por não ter preceitos à

mesa.

Esta naturalidade de comportamentos que os bonecos de-

monstravam tornavam-nos mais humanos que os próprios

humanos e davam a conhecer ao seu público infantil realidades

desconhecidas. Enquanto crianças, somos, em simultâneo, os

mais malvados e os mais inocentes. Malvados porque dizemos

tudo sem pudor, inocentes porque não vemos mal nenhum

nisso. Era o caso do Ferrão, que vivia num caixote do lixo e

passava o tempo a reclamar de tudo. Não entendia então

porquê. Entendi depois: ele vivia num caixote de lixo. Havia

de estar contente com o quê? Era o caso do Monstro das

Bolachas, que alertava para os perigos da diabetes e da

obsidade mórbida. E era o caso do Egas e do Becas.

Há pouco tempo descobri acerca das teorias que conside-

ram Egas e Becas um casal gay. No episódio “The Outing” da

série Seinfeld, considerou-se como gay, alguém nos seus trinta,

solteiro, sempre organizado e aprumado. Era um estereótipo

assumido para brincar com o estereótipo em si. Egas e Becas

inserem-se em algum estereótipo? Vejamos.

Egas e do Becas eram dois bonecos que viviam no mesmo

apartamento e que concordavam e discordavam um do outro.

Page 83: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 83

Não me recordo se a sua casa era exemplo de boa decoração

de interiores. Também não me parece que as suas roupas fos-

sem um bom exemplo de guarda-roupa gay, mas assumo a

minha ignorância nessa matéria. Era óbvio que existia uma

relação próxima entre si. Mas seriam mesmo mais do que

simples amigos? Porque não primos? Ou irmãos? Por não se

conhecer outro cenário das suas vidas que não aquele, teori-

zou-se algo que pode não ser verdade.

Não me incomoda que o Egas e o Becas sejam um casal

gay, não me incomoda que o Poupas seja um agarrado aos

ácidos ou que o Ferrão seja o traficante lá da rua. São maus

comportamentos humanos, mas é nisso que a Rua Sésamo se

distingue. Não nos mostra apenas o lado bom da sociedade.

Mostra também o mau. Ainda que não o assuma.

Page 84: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

84 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 236

SPIDER-BONER-MAN

Vocês nem imaginam o grato que eu fico quando certas des-

cobertas da Humanidade não coincidem com certas criações

da humanidade. Segundo um estudo publicado por um grupo

de cientistas do Medical College, do estado da Geórgia, a pi-

cada da aranha Armadeira pode provocar uma erecção de

quatro horas. E eu suspiro de alívio. Não pela descoberta em si

que, felizmente, não me é necessária, mas por Stan Lee ter

criado o Homem-Aranha nos anos 60.

Eu adoro o Homem-Aranha, é um dos meus personagens

de Comics preferidos. No entanto, sou o primeiro a admitir

que o senhor Stan Lee deve ter fumado umas cenas bem loucas

para criar aqueles personagens todos. Estávamos nos anos 60

afinal de contas.

Imaginem a criação do Hulk. Um choninhas que leva com

uma bomba em cima e depois quando se zanga, fica bué

grande e forte e verde. Que tempero andamos a pôr na salada,

senhor Lee?

O quarteto fantástico era outra: três homens e uma mulher

que vão numa nave e a nave é bombardeada com radiação

cósmica e um fica com pele de pedra, o outro estica-se até

mais não, o terceiro fica em chamas e a gaja deixa-se de ver.

Detecto aqui algum problema com mulheres?

A origem do Homem-Aranha está numa visita de estudo

que o seu alter-ego, Peter Parker, faz a um museu ou labora-

tório (conforme a versão que conheçam), onde é picado por

uma aranha radioactiva. Pouco tempo depois, Peter apercebe-

se que possui as mesmas faculdades da aranha. Imaginem lá se

tivesse sido picado pela tal aranha Armadeira.

“Uau Peter! Não sabia que estavas assim tão interessado

em mim!”

Page 85: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 85

“Desculpa, Mary Jane. É o meu sensor de perigo. Alguém

está a assaltar um banco neste momento.”

Ou então,

“Parado facínora! Deixa já essa pobre idosa em paz antes

que te parta a boca toda!”

O facínora, assustado, foge a sete pés. O Homem-Aranha

aproxima-se para ver se a senhora está bem e ela, ao ver a

“tenda”, agride-o com a sua compacta mas pesada bolsa.

“Desavergonhado! Sem vergonha! Acudam! Malandros!

Querem-me violar!”

Não seria o mesmo herói com que eu cresci. No entanto,

não me sai da cabeça que, mais dia menos dia, a Marvel estará

a publicar uma nova reformulação da origem do herói. E a

essa outras se seguirão.

Page 86: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

86 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 237

MENDIGOS E RECIBOS

No sentido de resolver o problema do défice e, ao mesmo

tempo, acabar com a pobreza, eis o meu contributo. Conto

convosco para que isto chegue ao conhecimento das autori-

dades competentes.

1 – Todos os mendigos (mesmo os que residem em apar-

tamentos de luxo) deverão ter um cartão de identificação que

comprove o seu estatuto social. Os impressos terão desconto

entre 1,50€ e 2,75€ (descontos para residentes em caixas de ar

condicionado FNAC). Todos os mendigos de origem não-

portuguesa terão de pagar um acréscimo de 0,50€ sobre o va-

lor do impresso, valor esse que poderá triplicar caso sejam

mendigos ilegais.

2- Este documento comprovativo poderá variar de caso

para caso, consoante o grau de pobreza da pessoa em causa, e

será sujeito a um sistema de cotas mensal, cujo valor será de-

finido em sede parlamentar.

3 – Todos os mendigos serão obrigados a ter o seu cartão de

identificação sempre visível. Caso não esteja, poderão

continuar a beneficiar da chamada “esmola”, a não ser que o

cidadão benemérito peça um comprovativo de situação, seja

para certificação do estatuto, para verificação da validade do

documento ou para efeitos de IRS.

4 – Todos os mendigos que aderirem a esta medida deverão

dirigir-se à repartição de Finanças da sua área de pedinchice e

requisitar uma senha para poder emitir recibos electrónicos.

5 – Por cada esmola recebida, o Estado cobrará 10% sobre

o valor total.

6 – Todos os mendigos que não cumprirem estas normas

serão considerados ilegais e, como tal, proibidos de receber

qualquer tipo de esmola. Todos aqueles que, ainda que sem

conhecimento, derem esmola a mendigos ilegais poderão ser

Page 87: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 87

considerados cúmplices de crime de burla.

7 – As penalizações relativas à violação das directrizes aqui

propostas serão aplicadas conforme a legislação a ser aprovada

na Assembleia da República.

(Agora é esperar que ninguém leve isto a sério.)

Page 88: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

88 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 238

ANTES DAS ELEIÇÕES #2 - QUANTO DEVO AFINAL?

A dívida pública não pára de aumentar. É um crescimento que

não se aguenta. Ao todo, a Administração Central já deve mais

de 154,6 mil milhões de euros. O que dá à volta de 15 mil

euros por português. Woo! Woo! (que onamatopeia mais

estúpida esta!, e também a mais apropriada) Nunca imaginei

que tivesse tanto dinheiro no bolso! Deixa cá ver quanto é que

ainda tenho e...

Ah...! Devo tê-lo gasto todo no meu T-1 (lê-se “menos 1”)

e em gomas. Ou será que não? Não me lembro de ter

emprestado 15 mil euros a ninguém. Será que assinei alguma

coisa que não devia? Vai na volta, fui fiador de alguém sem o

saber. Ou então trocaram os números lá na Repartição.

Também já tem acontecido.

Eu sei que o acto eleitoral não serve só para escolher os

nossos representantes: serve também para dizer “É este que eu

quero que gaste o meu dinheiro à parva. A gente depois paga.”

Mas não deve ser daí que vem a dívida, espero eu. Porque,

parecendo que não, ainda é um númerozinho simpático.

Era giro era saber quem é que abriu esta conta. Se for ainda

do tempo da outra senhora, eu não pago. Uma coisa são

dívidas contraídas quando eu já era contribuínte, outra coisa

são dívidas contraídas quando eu nem sequer era projecto de

gente.

A dívida dos Caminhos de Ferro, contraída no século XIX,

só foi saldada no início deste milénio. Quanto à dívida actual,

as opiniões dividem-se sobre se o FMI deve vir para cá ou não.

Eu não tenho nada contra os senhores do FMI virem para cá.

Desde que venham como turistas e que sejam tratados assim.

Desvio por Queluz, Sintra, Massamá, no trajecto Portela-Ritz;

IVA a 157% em todos os produtos que adquiram cá, etc.

Tragam cá o FMI todo e levem-nos a conhecer os sítios que

Page 89: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 89

dão prejuízo. Façam-nos gastar dinheiro aí. É uma aposta no

turismo e pode ser que resolva o problema das contas públicas.

Essa malta do FMI irrita-me. A lata deles a dizerem-nos

onde é que podemos gastar o nosso dinheiro. Era a mesma

coisa que chamarmos um tio contabilista para gerir o nosso

dinheiro. Podemos estar endividados até aos ossos, mas ainda

temos o nosso orgulho. E sabemos que as pessoas que nos

conduziram a esta situação, com um pouco de amor e

compreensão, serão capazes de nos tirar dela. Infelizmente,

também sabemos que não vai ser para melhor.

Uma última nota: nunca empreguei tantas vezes o verbo

“contraír”. Julgo que seja um sinal dos tempos. Ou então um

mero acaso. Tirem as vossas ilações.

Page 90: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

90 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 239

ANTES DAS ELEIÇÕES 3: ESTAMO AQUI

Uma notícia publicada recentemente dava conta que o

Ministério das Finanças, com o propósito de aumentar a

receita do Estado, andou a vender imóveis públicos a várias

entidades. Ao todo, o Estado encaixou 355 milhões de euros

por 466 imóveis. Nada mau! A notícia não teria nada de

relevante, não fosse o facto de apenas 24 imóveis terem sido

vendidos a entidades privadas. Os restantes 442 foram todos

vendidos à Estamo, empresa pública do grupo Sagestamo.

Para quem está distraído com o pequeno-almoço ou com o

semáforo que ficou verde (eu já não disse que ler o jornal no

trânsito não é o mesmo que ouvir rádio?), aqui vai uma

explicação mais simples. Imaginem que tenho duas canetas e

que só me faz falta uma. E que preciso de dinheiro para

comprar papel. Como tenho duas canetas, vendo uma. A

quem? Sucede que tenho um porquinho mealheiro, com

dinheiro meu. Parto o porquinho e tiro de lá o dinheiro para

pagar a caneta e comprar o papel. Virtualmente, fico com

papel e uma caneta, na realidade, fico com papel e duas

canetas. Ora, eu não quero apontar o dedo a ninguém, nem tão

pouco chamar nomes feios, mas... qual é a diferença entre isto

e fraude?

A resposta é: azul. E azul porquê? Não sei. Mas é uma

resposta que faz quase tanto sentido quanto este enredo. E o

azul é uma cor que alguns autarcas gostam tanto. Está tudo

ligado. Na verdade, não é que a situação me incomode ou me

surpreenda muito. Os subterfúgios político-financeiros a que

um Governo se presta já só surpreendem os mais incautos.

Incomoda-me um pouco, mas é aquele tipo de incómodo que

mais vale ignorar. A razão principal deste artigo tem a ver com

empenho. Leu bem: empenho.

Page 91: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 91

Estamos em Abril de 2011 e a notícia são os 355 milhões

que o Estado pagou ao Estado. Em 2008 houve outro negócio

igual, no qual o Estado encaixou (apenas) 147 milhões. Em

três anos, o Estado conseguiu duplicar o valor da sua receita.

Se isto não é empenho, não sei o que seja.

Dos 355 milhões de euros “lucrados”, apenas 7 milhões são

reais, isto é, facturados a privados e não ao próprio Estado. O

que significa que o Estado pagou-se 348 milhões. Tanto

quanto sei o Estado não tem dupla personalidade. Uma coisa é

o Primeiro-Ministro dizer cá dentro que está tudo bem e

depois ir lá para fora dizer que está tudo mal; outra coisa são

estes negócios.

O elemento semi-oculto nesta engrenagem é o défice. Vale

tudo para reduzir o défice e a receita obtida (real e fictícia)

neste negócio vai contribuir para isso. É uma maneira tão boa

como qualquer outra de resolver o problema. O único senão é

que não resolve nada. Vemos situações parecidas no CSI,

quando criminosos tentam lavar o sangue das mãos, apenas

para descobrirem que apenas disfarçaram, não resolveram

nada. Aqui passa-se o mesmo. Estamos a embelezar os

números. E quando o efeito do creme passar é que vamos

penar.

Page 92: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

92 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 240

MEMÓRIAS DE INFÂNCIA #2: FERNANDO NOBRE

Quando eu era pequeno, tinha um casaco que era um dois em

um. Não me recordo das cores, lembro-me que podia usá-lo do

avesso, ou melhor, não podia, porque ele não tinha avesso.

Este meu casaco de infância era das peças de roupa que eu

mais apreciava e que estava arredado da minha mente

consciente.

Até hoje.

Fernando Nobre, ex-candidato independente (sponsorado

por alguns socialistas) à Presidência da República, foi

convidado por Pedro Passos Coelho para ser o cabeça de lista

por Lisboa e candidato a Presidente da Assembleia da

República. O senhor da AMI aceitou o convite e depressa

vieram as críticas. Houve até quem o chamasse “vira-casacas”.

E foi aí que me lembrei do meu casaco.

Pronto, a parte da memória de infância já está. Vamos à

parte actual.

Fernando Nobre aceitou ser candidato pelo PSD. E depois?

É preciso enervar o homem ao ponto de ele se sentir obrigado

a encerrar a sua página no Facebook? (Será que ninguém o

ensinou a apagar comentários?). Na sua anterior candidatura,

Fernando Nobre era apoiado por alguns históricos socialistas.

É assim tão diferente de ser apoiado pelo PSD? Não me

parece.

O que ninguém quer admitir é isto: ao aceitar o convite de

Passos Coelho, Nobre demonstrou ter a postura de alguém que

não se dá bem apenas com um nicho. Nobre já esteve ao lado

dos Monárquicos, do PS, do BE, do PSD. É verdade que

ignora muitos dos aspectos dos cargos a que se candidata. É o

primeiro candidato a Presidente da Assembleia da República a

apresentar um programa; imagino-o no seu primeiro dia de

Page 93: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 93

trabalho: “Onde é que eu me sento? E agora, que faço?”

Apesar de tudo isto, ninguém o pode acusar de não ser um

candidato de todos os portugueses. Pelo contrário: Nobre não

tem o problema de estar associado a um único partido, tem o

problema exactamente oposto.

Por isso, não concordo que lhe chamem “vira-casacas”. Eu

era um “vira-casacas”, casacos melhor dizendo, porque tinha

um casaco que permitia isso. Não creio que Fernando Nobre

tenha um desses casacos. Como tal, o termo pejorativo

correcto a aplicar a senhor é “troca-casacos”. Perceberam?

Page 94: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

94 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 241

FUI AO JARDIM DACELESTE...

Esta semana, um agente da PSP foi louvado pelo director

nacional da PSP, pelos 18 anos de serviço prestados nas

instalações da Direcção Nacional da Polícia, em Lisboa. Esta

breve notícia, apresentada na última página do mais popular

dos jornais de café, teria passado despercebida, não fosse o

insólito dos motivos do louvor.

Perguntam vocês, os que não leram a notícia, por que razão

foi condecorado este agente?

Pelo seu elevado zelo profissional, trato com os colegas e

sentido de responsabilidade cívica?

Não.

Pelo número de casos que ajudou a encerrar?

Também não.

Pela celeridade com que preenchia os seus relatórios e o

grau de objectividade que impunha nos mesmos?

Também não.

Pela sua bonita caligrafia?

Podia ser. Mas não foi.

Foi por algo muito mais bonito e bem cheiroso: flores. Este

agente foi louvado pelo director nacional da PSP “pela forma

hábil como fazia centros de mesa, usando flores e verduras

colhidas nestas mesmas instalações”.

Os colegas souberam que um deles ia ser louvado, só não

se sabia quem, e começaram logo a fazer apostas. A cara com

que devem ter ficado ao chegar à cerimónia, todos ansiosos

por ouvir o seu nome pronunciado, e...

“Então, mas eu farto-me de trabalhar, fico até às tantas a

fazer relatórios, a mulher deixou-me, não tiro férias há três

anos e o Jardim da Celeste é que é louvado?”

Page 95: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 95

Não está certo.

Não contesto o empenho que este agente dedica aos seus

trabalhos mas, do ponto de vista de relações públicas, não me

sinto mais seguro por ter uma Polícia de Segurança Pública

que distingue agentes por arranjos de flores e centros de mesa,

por muito bonitos que sejam.

Outra coisa que me faz confusão nesta história. O agente

fazia os seus trabalhos com flores e verduras colhidas naquelas

instalações. Desde quando é que a Direcção Nacional da

Polícia fica numa horta? Talvez a palavra correcta não fosse

“colhidas” e sim “obtidas”. Continua a não fazer muito

sentido. A Direcção Nacional da Polícia não fica num mercado

municipal nem numa florista.

O único local, dentro da instituição, onde este agente pode

ter obtido o seu material só pode ter sido na sala onde guardam

as provas apreendidas. Se os tais centros de mesa foram feitos

à base de papoilas, erva seca para dar um toquezinho e uma

velinha para enfeitar, já não me choca ele ter sido louvado.

Choca-me ter sido o único.

Page 96: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

96 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 242

JESUS, COMO O QUEREMOS?

Um estudo publicado no International Journal of Obesity

(Revista Internacional da Obesidade, aka Gordo's Digest), fez

saber que a comida representada em imagens da Última Ceia

quase que duplicou de proporção no último milénio. As

imagens de Jesus e de outras figuras bíblicas sempre foram

adaptadas à época em que eram criadas. Antigamente havia

escassez de alimentos, hoje há abundância (ou, pelo menos,

ideia de); é natural que o Jesus antigo comparado com o nosso

seja um lingrinhas. A questão é: será que estas representações

limitam-se a acompanhar a evolução dos tempos?

Desenhar muita comida na mesa da Última Ceia é a última

etapa antes de começar a representar Jesus gordo. Depois disso

surgirão as dúvidas: como é que o colocaram lá em cima na

cruz?, será que fizeram como os egípcios?. Mas não é isso que

me incomoda, melhor dizendo, não é isso que vos devia

incomodar. O que vos devia incomodar são os pecados.

A gula, por exemplo. Representar daquela maneira Jesus na

sua última refeição, com um farto banquete à frente, é fazer

Dele, passe a expressão, um javardo à mesa. O Homem tem de

aspirar a ser como Ele, não rebaixá-Lo até Ele ficar ao nível do

Homem.

Outro pecado: o orgulho. Ter um Jesus orgulhoso da

companhia e do catering e da música ambiente e dos cocktails

não se coaduna com a imagem do Jesus humilde e simples que

nos foi dado a conhecer.

Por fim, se os pecados não vos convencem, que tal um

pouco de moral e bom senso?

As imagens de comida, por muito reais que pareçam, não

matam fome. Mas podem influenciar pessoas a comer. Se a

imagem estiver a ser vista por alguém com problemas de peso,

Page 97: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 97

apenas servirá para que a pessoa fique ainda mais gorda; se,

pelo contrário, estiver a ser vista por alguém que não tem nada

para comer, apenas será interpretada como um gesto de

pirraça.

Jesus foi aquela figura, real ou mítica não interessa, que

votava o abandono dos bens materiais em prol da

solidariedade. É aquela figura que suscita esperança nas

pessoas porque o que é divino Nele é a Sua proximidade com

o Homem comum. Jesus era pobre, não era rico, não comia

pão de sementes, nem bolos de cenoura, nem enguias, nem

porco. O tipo era judeu! Um judeu a comer carne de porco? Já

agora punham lá coelho e caranguejo também! Se é para

contradizer, contradigam a sério!

O que estas imagens nos transmitem é um afastamento

daquilo que era a mensagem de Jesus e uma aproximação

àquilo que é a mensagem da Igreja Católica. Já falei nisto

antes e torno a falar: se Jesus votava o abandono dos bens

materiais, por que razão é que o seu representante máximo na

Terra anda com roupas de seda, debruadas com fios de ouro,

sapatos italianos do mais caro que há, mora num palácio e tem

um ceptro de ouro a imitar o Gandalf?

Page 98: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

98 PROTUBERÂNCIA – Volume III

ESPECIAL

PONTE SALAZAR

Esta semana dei por mim a visitar o site Salazar, o Obreiro da

Pátria. A razão da minha visita a esta site é facilmente

explicável: cliquei num link para aceder a um site de bom

cinema e em vez da Kate Frost ou da Lisa Ann, o que me

apareceu foi o “Botas”.

A minha visita a este site, apesar de acidental, não foi em

vão. Serviu para relembrar a existência de uma petição para

renomear a Ponte 25 de Abril para Ponte Salazar. Antes de

desbaratarmos a questão, é preciso tomarmos em consideração

os argumentos apresentados. O que é que os defensores desta

petição defendem? Muito sucintamente, defendem quatro

pontos que todos nós podemos apreciar, ainda que possamos

não concordar com eles quando aplicados a este contexto.

Vejamos o texto da petição:

VAMOS REPÔR O NOME À PONTE SALAZAR

Meus amigos, vai sendo tempo de dizermos! É urgente que as gerações não cresçam sobre a mentira; Se para si a verdade histórica é importante; Se o nome dos nossos maiores tem alguma importância histórica; Se a justiça é elemento importante e determinante; Se a verdade deve fazer parte de um Estado de Direito; Então, lute pela verdade!

O primeiro aspecto que salta à vista é a existência de duas

verdades: uma histórica e outra que talvez seja futurista. Sobre

um facto podem existir várias opiniões, mas a informação

Page 99: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 99

objectiva é apenas uma. Exemplo: Portugal faz parte da União

Europeia. Existem várias opiniões quanto a esta matéria, mas a

verdade é apenas uma. Esclareçam lá isso, está bem?

O segundo aspecto a observar é este: Sidónio Pais foi

ditador, Hintze Ribeiro queria ser ditador. E no entanto, temos

toponímia e pontes (tínhamos) nomeadas por eles. Já escrevi

sobre isto num artigo antigo: nós adoramos as pessoas da terra,

nem que sejam o Hitler. É gente da terra, a malta gosta.

Salazar ter uma ponte com o seu nome... pode ser. Mas na

terra dele. É verdade que temos uma tendência para nos

esquecermos de algumas figuras importantes da nossa história.

E uma das razões pelas quais isso acontece é porque o passado

é escamoteado e o ensino da História é sujeito ao crivo de

quem está no poder. O ditado assim o afirma, “Dos fracos não

reza a História.” A não ser quando têm algum amigo defensor

no poder.

Por fim, justiça. É verdade que nem tudo foi mau durante

os anos do Estado Novo. Assim como nem tudo foi mau nos

últimos anos da Monarquia ou bom nos 16 anos da I

República. Qualquer regime está sujeito a falhas; o problema é

quando está fechado em si mesmo. Uma democracia que

funciona mal, seja com Rei ou Presidente, é sempre preferível

a uma ditadura que funciona bem.

As pessoas dizem que antigamente é que se estava bem,

não havia nada destas poucas vergonhas. O “Ballett Rose”,

para quem não sabe, não aconteceu a semana passada. O mal

humano sempre existiu. Talvez não existisse tanto no tempo do

senhor Oliveira Salazar e seu sucessor Marcelo porque o relato

dos factos era condicionado. Quem diz que antigamente se

vivia melhor, só pode ser porque conhecia pouco do mundo à

sua volta. Hoje em dia, sabemos tudo. E só acreditamos que as

coisas eram melhores naquela altura se formos ingénuos. Eram

diferentes, ponto.

Em resumo, não concordo com esta petição. Todavia, não é

tanto pelos argumentos que acabei de refutar. É por um motivo

Page 100: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

100 PROTUBERÂNCIA – Volume III

bem mais simples. Este ano não se vai assinalar o dia 25 de

Abril na Assembleia da República. Parece que a realização da

habitual sessão solene viola qualquer coisa na constituição,

porque o Parlamento está dissolvido. Enfim, eles lá sabem.

Para mim, a ponte sobre o Tejo deve continuar a ser Ponte 25

de Abril, mais que não seja para não corrermos o risco de a

única referência à Revolução dos Cravos ser uma data no

calendário.

Page 101: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 101

TERMINUS 244

O JOGO DAS APARÊNCIAS

Não gosto de subentendidos na vida real. Também não gosto

de excesso de exposição. Tal como em tudo na vida, aprecio o

equilíbrio. Não dizemos o que pensamos, tentamos não

transparecer aquilo que não estamos mas queríamos dizer.

As mulheres, por exemplo. Não só mulheres, homens

também. Quando alguém vos diz, num tom casual, “Não é

querer ser indiscreto”, vocês não notam a ansiedade na voz,

como se vos estivessem a perguntar, “Conta! Conta! Vá lá!”?

Ou por exemplo, “Tás a olhar pra onde?” E aquela verruga

enorme no nariz da qual vocês não conseguem desviar os

olhos. Não é o mesmo que dizer, “Sim, sou feio! E depois?”

Nós humanos, somos superficiais. Elogiamos sempre o

interior da pessoa. Dizemos que o que está dentro é que conta.

Costuma-se dizer "quem vê caras, não vê corações". Óbvio.

Quando olho para a cara de alguém espero ver uma cara e não

um órgão interno. Mesmo quando falamos daquelas pessoas

com as chamadas faces de glúteos (não é assim que se chama,

mas vocês perceberam onde eu quis chegar e não foi preciso

baixar o nível), mesmo nessas alturas, é apenas uma

expressão. Não passa daí. Nós somos assim: superficiais. Não

há como negar.

Gastam-se rios de dinheiro em cosmética – a fabricar, a

divulgar e a consumir. E é um investimento supérfluo.

Ninguém morre se não usar creme hidratante. É o luxo. A

preocupação em parecer o que não somos. Quem é feio, é feio.

Ponto final. Não há nada a fazer.

Irrita-me esta preocupação estúpida com o aspecto. Porque

há pessoas com doenças de pele mais graves do que pele

oleosa e o argumento para a falta de tratamento é o pouco

número de casos existentes. No entanto, são gastos rios de

Page 102: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

102 PROTUBERÂNCIA – Volume III

dinheiro na investigação de novos hidratantes e cremes anti-

rugas. Fingimos que somos sensíveis a estes problemas,

dizemos "que horror", mas a verdade é que só nos

preocupamos com o aspecto físico. Só.

Todos os dias surgem produtos novos. E a cosmética

chegou a um novo extremo que... Eu espero que fiquemos por

aqui. A sério. Acho que não vale a pena continuarmos mais.

Vejam o caso dos transplantes de cara. Transplantes de cara! Já

se fazem. Fizeram o primeiro em França há uns anos atrás.

Dizem que correu bem, com a excepção da senhora parecer

uma mistura de monstro de Frankenstein com poodle.

Resultados faciais à parte, isto preocupa-me bastante. E é

engraçado quando pensamos nisto da evolução. Vejam bem:

antigamente, não se gostava do nariz, fazia-se uma operação

plástica; a cor dos olhos não agrada, põem-se lentes de

contacto coloridas; os lábios eram muito finos, vai de botox

pras beiças. E a coisa mudava. Agora pode-se mudar a cara

toda.

Quem é que tem a ganhar com isto? Consigo pensar em

dois óptimos clientes: pessoal com dívidas ao fisco e

criminosos.

Há um assalto, a polícia investiga e vai ter à casa do

suspeito.

"Você foi visto a assaltar uma loja. Temos aqui uma foto

como prova."

E o gajo: "Esse não sou eu. Não se vê logo pela cara?"

"Tem toda a razão. Peço imenso desculpa."

Por fim, uma pergunta pertinente: Será que isto da beleza

também acontece com os orgãos internos? Será possível, um

sujeito ir ao médico e dizer, "Doutor, o meu intestino é

demasiado delgado. Não dá pra arranjar um assim mais

esguio?"

Page 103: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 103

TERMINUS 245

UMA NOVA OPORTUNIDADE

Passos Coelho disse que a Iniciativa Novas Oportunidades é

“paga a peso de ouro (…) para passar certificados à

ignorância”. Ui!, o que ele foi dizer! Não podes dizer isso,

Pedrito. Dizer a verdade é só para os outros meninos que vão

para profissões honradas, não é para os políticos. Os políticos

têm de dizer aquilo que as pessoas querem ouvir, o que não

implica que isso seja verdadeiro.

Ainda agora aqui chegaste e já te achas capaz de mudar isto

tudo? Desengana-te, meu menino. Não podes ir pelo bom

senso ou por aquilo que as pessoas te dizem na rua. Por muito

que o digam, as pessoas não esperam honestidade e

sinceridade dum político. Ninguém gosta de ouvir as verdades.

Só as verdades boas. As más, ninguém quer saber. Tu disseste

uma verdade má e foste criticado por isso. Se tivesses dito que

as Novas Oportunidades não conferem o grau de saber

necessário para o desempenho de certos cargos, ainda vá. Ou

que as Novas Oportunidades são a oportunidade que muita

gente não teve, pronto.

Agora, nem pensar em dizer que a maioria dos

frequentadores das Novas Oportunidades vai para lá porque

senão cortam-lhe o subsídio de desemprego, ou que os

formadores desistem de dar formação porque o critério com

que são avaliados é apenas o número de formandos que

certificam, ou ainda (este nem pensar!) que basta fazer um

Powerpoint ou um vídeo com as fotos da família, dos

cãezinhos e das férias e está o 12º feito. Isso está fora de

questão. Isso e dizeres, por exemplo, que esses Powerpoint e

esses vídeos, na sua maioria são feitos pelos filhos ou por

pessoas que sabem mexer em computadores.

Muita gente sabe que o problema é a ilusão que esta

Page 104: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

104 PROTUBERÂNCIA – Volume III

qualificação confere. Para aquelas pessoas já empregadas, que

fazem o curso por meras razões protocolares, com a finalidade

de manterem o emprego, está tudo bem. O pior é para aquelas

que não têm trabalho ou aquelas que tendo, dum momento

para o outro, deixam de ter. Uma director de Recursos

Humanos numa empresa de vendas tem três currículos para

avaliar. Um deles tem o 12º normal na Área Comercial; o

segundo tem o 12º de Humanidades, mas já trabalhou em

vendas e tem muita experiência na área; o terceiro sabe fazer

Powerpoints e gosta de passear e de estar com a família.

Ninguém quer saber disto. É preferível a ilusão.

Houve quem te criticasse por estas afirmações, e tu sabes

que eu já te critiquei por outros motivos, mas quem criticou

sabe que isto é verdade. Devo dizer, porém, que estás errado

em alguns aspectos. As Novas Oportunidades não passam

“certificados à ignorância”: elas ensinam-nos o

chicoespertismo, essa habilidade tão necessária para singrar na

vida política. Ou já te esqueceste como já chegaste onde estás?

Page 105: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 105

TERMINUS 246

MEMÓRIAS DE INFÂNCIA #3: UM ANIMAL DE ESTIMAÇÃO

Desde tenra idade que sempre quis ter um cão. O problema

era que não tinha espaço para ter um cão em casa. Conclui, por

isso, que era melhor arranjar um aquário e comprar um peixe.

Mas, por muito que tentasse, eu não me conseguia habituar ao

peixe. Não é que eu não gostasse do peixe, que gostava, mas

continuava a querer ter um cão. Olhava para o aquário e

pensava em tudo o que poderia fazer com um cão e que nunca

iria conseguir fazer com aquele peixe. Em primeiro lugar, não

lhe podia chamar Bóbi ou Snoopy. Se esses nomes, apesar de

cliché, são habituais em cães, são também exclusivo da

espécie canina. Não que isso me tenha impedido...

Sim. É isso mesmo que estão a pensar. O meu peixe

chamava-se Bidu. E não fiquei por aí. Se tivesse sido só o

nome, ainda vá. Eu queria ter um cão e era isso que ia ter. De

tal modo que cheguei mesmo a experimentar tratar o peixe

como se fosse um cão, mas o resultado não foi dos melhores.

Primeiro tirei–o do aquário. Ele começou aos saltos, devia

ser de estar cá fora pela primeira vez. Estava contente, o

malandro. Até dava gosto ver aqueles olhinhos todos

esbugalhados de alegria. Às tantas o bicho não parava quieto e

eu vi–me obrigado a usar da minha autoridade de dono e

mandei–o parar. Por fim, ele lá se acalmou e comecei a pedir–

lhe para dar a pata ou, neste caso, a barbatana.

“Dá a barbatana, Bidu! Bidu, dá a barbatana!”

Foi então que descobri, com alguma desilusão, que o Bidu

tinha adormecido e não queria brincar mais comigo.

Aborrecido, voltei a pô-lo no aquário. Foi aí que eu me

apercebi: se calhar o que ele precisa era de espaço. Com esta

nova suposição em mente, resolvi levar o Bidu a passear ao

parque. Pus–lhe um fio de costura à volta da zona do pescoço

Page 106: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

106 PROTUBERÂNCIA – Volume III

para que ele não fugisse e atirei um pau para ele ir buscar.

Era escusado. Sacana do peixe mal se esforçava para

compreender o meu ponto de vista. De repente, apareceu um

gato. E eu pensei cá para comigo:

“É agora.”

Peguei no peixe, abanei–o bem e disse–lhe:

“Olha o gato! Olha o gato! Vai ao gato! Vai!”

Percebendo que o meu Bidu não teria pujança para dar

cabo do gato apenas pelos seus próprios meios, peguei na

minha fisga, coloquei o peixe lá, apontei e... zás! O meu Bidu

foi lançado em direcção ao gato e eu fiquei a ver, esperando

que a Natureza fizesse o seu dever.

Pois sabem o que é que aconteceu depois?

O gato comeu–me o peixe. Fiquei todo lixado, até que me

apercebi duma coisa: se calhar, um gato era capaz de aprender

a ser um cão melhor do que um peixe. E resultou. Hoje em dia,

o meu Piloto pode cuspir uma bola de pelo de vez em quando,

mas levanta a patinha sempre que precisa de ir à casa de

banho.

Page 107: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 107

TERMINUS 247

DO PREÇO CERTO AO SEXO RADIOFÓNICO

Porque é que o Preço Certo em Euros ainda está no ar? Anda

tudo a falar do FMI e do Bin Laden e dos pintelhos do outro e

ninguém fala do que realmente interessa. É assim tão difícil

fazer um concurso a sério? Aqui há uns anos houve um

programa de televisão que terminou um pouco antes do

previsto por causa de um incêndio no estúdio. Não interessa o

nome do programa, o canal que o exibiu, se foi um bom ou

mau programa, interessa a ideia: o incêndio.

Pode não parecer mas isto, pelo menos para mim, é um

incentivo. É possível acabar com a má televisão em Portugal.

Só precisamos duma caixa de fósforos. Pensava que tinha de

ganhar o Euromilhões, para poder comprar o canal e mandar

cortar o sinal. Pelos vistos estava enganado.

Atenção! Há coisas que eu gosto no Preço Certo em Euros.

As assistentes, por exemplo. Hão de reparar que, em qualquer

concurso televisivo, sempre que oferecem electrodomésticos

ou qualquer outro produto, há sempre uma gaja boa por perto.

Pode ser um carro, mas pode ser também a porcaria mais inútil

do mundo, como um descascador de azeitonas; ao lado está

sempre uma gaja boa.

E o que eu não gosto no Preço Certo é isto! Não gosto de

ser confundido. O que é que eles estão a oferecer afinal? Será

que estão a mostrar que a gaja fica bem com a máquina de

lavar, do género, “veja que bem que ficará a sua esposa com

esta máquina ao lado!”, ou será o contrário? É que muitos

homens não têm mulheres daquelas.

Da minha parte, estou safo. Tenho máquina de lavar e a

minha mulher põe aquelas a um canto. Mas continua-me a

fazer a confusão. Será que deixam os concorrentes escolher a

gaja? De certeza que a alguns dava mais jeito.

Page 108: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

108 PROTUBERÂNCIA – Volume III

Isto claro, partindo do princípio que ela não via

telenovelas. Era o que faltava. O senhor Amílcar Almiro

levava a gaja boa para casa e depois ela passa o tempo todo a

ver telenovelas. Nada contra as telenovelas... antigas. O

“Roque Santeiro”, o “Sassaricando”, a “Tieta”, essas eram

para ver; as de agora, vão-me desculpar, mas... Não valem um

chavo. Apesar de serem antigas, nos três exemplos que dei, as

histórias duravam o tempo que tinham que durar, não é como

agora.

Seria melhor se ouvisse rádio. Só que hoje em dia a rádio

também já não é o que era. Não vale a pena dizer que não.

Perdeu o seu brilho, o carisma dos tempos antigos. É preciso

inovar. Eu tenho algumas ideias.

A primeira é: sexo radiofónico. O pessoal gosta de sexo,

não ouve rádio, o que é que se faz? Uma radionovela para

adultos, como se fazia antigamente; só que faz-se a cena

codificada – por causa dos putos.

E a cena até era capaz de pegar. Não tenho dúvidas que há

pessoal capaz de estar horas e horas a ouvir estática a ver se

percebe alguma coisa. Assim tipo o pessoal que vê os canais

de sexo e a SporTv codificados. Os amigos olham pra ele:

"Eh pá, larga isso!"

E o gajo: "Shiu!"

"Deixa de ser parvo."

"Acho que a gaja tá a gemer agora, meu. Man, esta cena..."

Outra ideia, também para uma radionovela: uma

radionovela muda. Para quê?

Pensem naquelas pessoas assim um bocado burras que

perdem facilmente o rumo da história. O que é que se faz?

Acaba-se com a história. Não é novidade. Basta ver algumas

telenovelas para vermos que história é coisa que não existe.

E então seria assim: entra a música do genérico. Hum....

Precisamos dum nome. Já sei! Podia-se chamar "Jacinta,

Tulipa e Noz-Moscada"! Que tal? 3, 5 minutos de silêncio.

Punha-se uma música nas cenas com maior carga emocional

Page 109: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 109

para o pessoal não se perder. E no fim: créditos finais.

"Não perca amanhã, mais um episódio de "Jacinta, Tulipa e

Noz-Moscada"

No dia seguinte era ouvir o pessoal a falar do episódio

anterior.

"Então e aquela parte assim?"

[silêncio prolongado]

"Tcham!!!"

"Iá! E curtiste daquela em que se só ouve...?

[silêncio ainda mais prolongado]

"Ouve, eu arrepiei-me todo com essa cena, meu."

Page 110: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

110 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 248

A TROIKA E O DESEMPREGO

Quando tudo parece mau, quando olhamos à nossa volta e

nada do que vemos nos anima, é sempre bom receber

mensagens tranquilizadoras de pessoas de séria referência.

Estou a um mês de fazer parte das estatísticas do desemprego

e, tendo em conta a actual situação do país e as dificuldades

crescentes para conseguir trabalho (já nem digo emprego),

teria todas as razões para entrar em pânico. Felizmente para o

meu espírito, a ministra do Trabalho, Helena André, assegurou

publicamente que o acordo com a troika aumenta a protecção

aos trabalhadores. Posso ficar descansado. Vindo de quem

vem.

Ouvindo isto e olhando para o documento, a coisa até

promete. O problema é que... Recuemos cento e dois anos.

Enquanto não passava duma força clandestina, o Partido

Republicano Português prometia Educação para todos, fossem

ricos ou pobres. Chegados ao poder, tentaram dar início a esse

projecto. Pode-se dizer que cometeram um retrocesso ao

acabar com as escolas dos jesuítas, mas isso é outra história.

O ponto a considerar aqui é a diferença entre aquilo que os

republicanos intentavam fazer e aquilo que conseguiram

realmente fazer. Como em tudo na vida, há que fazer a

necessária separação entre aquilo que não se faz porque não se

pode ou não se consegue fazer e aquilo que não se faz porque

não se quer fazer.

Graças à lei de 30 de Março de 1911, o ensino público

passava a ser gratuito. No entanto, como saber ler ou escrever

não mata a fome, muitas famílias continuavam a enviar os seus

filhos trabalhar. Este cenário não é assim tão antigo. Quem não

o viveu, de certeza que conhece alguém que passou por isto.

No fundo, o que eu pretendo dizer com isto é que, pode

Page 111: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 111

haver um fundo de verdade e de boas intenções no que diz a

ministra Helena André. Só depende do ponto de vista. Do

ponto de vista de alguém que pertence a um governo

demissionário e que pretende salvaguardar o seu cargo, seja no

Governo ou numa empresa associada, faz todo o sentido

positivar as medidas da troika para que o PS seja reeleito. Do

meu ponto de vista, como alguém que está prestes a ficar sem

trabalho, só consigo ler aquela parte relativa à facilitação do

despedimento individual. É a velha história do copo meio

vazio ou meio cheio, com a diferença de muitos já não terem

copo sequer.

Page 112: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

112 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 249

PURA E SIMPLES IMPLICÂNCIA

A pouco tempo do final da campanha para as Legislativas

2011, vale a pena olhar para o novato e troçar das suas

propostas e das suas declarações. Pedrito, não é nada contra ti

meu querido. Acredita que se o Louçã ou o Jerónimo ou o

Paulinho ou o Zé fossem os estreantes, eu troçaria deles da

mesma maneira que vou troçar de ti. E repara também como

eu digo troçar e não gozar, prova de que embora faça uma

crítica mordaz, ela é também inteligente ao invés de idiota.

Pronto, a primeira lição foi grátes. Não vás directo ao

assunto. Enrola. Queimas tempo. Vamos às declarações? 'Bora.

“A esperança vai vencer o medo”, frase dita a 25 de Maio

na Guarda. Diz-me uma coisa, Pedrito. Qual foi o partido que

chumbou o PEC IV por ser exigente demais e que no dia

seguinte afirmou que tinha vetado esse documento por ser

exigente de menos? Isso também assusta as pessoas. Entre os

que saem e os que querem entrar, só muda a cor adicional.

O Governo quer “lançar o medo” porque não consegue

fazer a “mudança”? E que mudança é essa, meu estimado líder

dum partido que, tal como o partido do Governo, concordou

com as medidas da troika? Mais uma vez, falho em ver essa tal

mudança.

Ainda no mesmo dia, e no mesmo local, Passos Coelho

prometeu criar um site para tornar públicas todas as

nomeações. Não terás querido dizer, criar um site para tornar

todas as nomeações públicas? Ou, porventura, um site para

todas as nomeações, mas só as públicas? É muito bonito

quereres nomear as pessoas apenas com base no mérito e na

competências, mas lembra-te que precisas de pessoas para

trabalhar. Se te orientares apenas por esses critérios, como é

que vai ser a tua vida?

Page 113: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 113

Outra coisa. Quando puderes, sem pressa, explicas aos

portugueses a diferença entre ser nomeado, indicado ou

apontado para um cargo. Aqui vai uma dica para te poupar o

trabalho. O Ricardo (nome fictício) é nomeado, o Troll é

indicado e aquele é apontado.

Antes de passar na Guarda, Passos Coelho esteve em

Gouveia onde disse que não está “pensado” nenhum

agravamento dos impostos sobre os combustíveis. O que me

tranquiliza tanto como “não estão em causa os

despedimentos.” Não. Atenção à frase: Há cafés para toda a

gente? Sim. Os cafés não estão em causa. Agora troca os cafés

por despedimentos. Vês?

Mas a frase em concreto foi sobre os combustíveis e há

algo nela que revela um descuido preocupante. No caso de não

saberes, existe uma diferença entre dizer que não se vai fazer e

não se pensou em fazer. Nota que, apesar de sabermos que é

peta, a primeira dá-nos mais segurança porque é uma

afirmação – não se vai fazer – enquanto que a segunda suscita

algumas dúvidas. Quando alguém diz que ainda não pensou

em fazer algo, isso significa que ou vai pensar em fazer ou vai

fazer sem pensar.

Em que é que ficamos?

Page 114: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

114 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 250

DA CAMPANHA E DOUTRAS COISAS

Existe uma pergunta que grasa pela cabeça de muitos

portugueses: para quê uma campanha eleitoral? Eu sei que

estamos em época de eleições, mas o que é que isso tem a ver?

Não, não tem nada a ver com aquela história de ganharem

sempre os mesmos. Passo a explicar.

Numa qualquer campanha temos os vários partidos

políticos a apresentarem os seus diferentes (ou não assim tão

diferentes) programas eleitorais. Os portugueses fazem a sua

escolha e o partido com mais votos (ou melhores condições) é

convidado pelo Presidente da República a formar Governo.

Duma forma simples (talvez simplista) é isto que acontece.

Na prática, não há grandes diferenças entre ganhar o senhor

licenciado ao Domingo e o senhor licenciado aos 37. O

problema é aquele papelito que anda por aí a circular. Sejamos

sinceros. O memorando da troika pode não ser um programa

de Governo, mas anda lá perto. Imaginem que, em vez do

memorando, a troika entregava-nos uma série de ingredientes

– legumes, ovos, leite, carne, peixe, açúcar, etc. - e mandava-

nos fazer um bolo de chocolate. Há várias maneiras de fazer

um bolo de chocolate, mas são poucas as hipóteses de divergir

do memorando.

Tenho andado a pensar nisto e estou indeciso quanto à sua

aplicação. Não recuso a necessidade de maior rigo e controlo

do erário público, embora não me pareça que sejam os

funcionários que levam canetas para casa ou aqueles que tiram

fotocópias no serviço os grandes responsáveis. Até aceito que

algumas das medidas sejam tomadas porque não há outra

hipótese. O que me incomoda é a falta de consequências. Eu

aceitaria que o processo de despedimento individual fosse

facilitado, se o Estado desse o exemplo e, a começar por si,

Page 115: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 115

acabasse com os falsos recibos verdes. Por exemplo.

O PS, o PSD e o CDS ora divergem, ora convergem em

relação às medidas previstas no memorando. Consoante os

dividendos que daí possam tirar, a coisa é boa ou má e eu acho

isso bonito. Acho bonito que José Sócrates antes gostasse de

dançar com Passos Coelho e agora quase que não se podem

ver. Paulo Portas, que em tempos fartou-se de dizer a José

Sócrates para se demitir, é elogiado pelo próprio José Sócrates

pela sua postura. Falta contexto aqui, eu sei. Azar. Também

falta muito contexto na campanha e não é isso que os pára.

A conivência entre estre trio faz-me sentir uma sardinha.

Cada um discute que parte do meu corpo quer, mas todos

querem ferrar o dente. Posso fazer a observação de outra

maneira: o CDS já esteve coligado com o PS e com o PSD.

Haverão assim tão grandes diferenças entre estes três partidos?

É uma resposta que não é fácil.

O Governo que nos calhar (ou já calhou, conforme o dia e a

hora em que leia isto), concorde ou não com o acordo, terá que

respeitá-lo. No fundo é um empréstimo como qualquer outro.

Com a diferença que fomos apontados como fiadores sem

termos tido voto na matéria. A verdade é esta. As eleições são

uma mera formalidade.

Uma nota final: Gabriela Canavilhas não aprovou as verbas

destinadas ao FICA por estar em governo de gestão. Eis o que

deviam ter dito a José Sócrates antes de ele ter chamado o

FMI. E assim já se teria justificado a campanha.

Page 116: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

116 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 251

VAI UMA SALADINHA?

Ontem ao jantar comi uma salada de pepino e continuo aqui.

Por acaso até foi frango, mas tenho quase a certeza que o

resultado seria o mesmo. Vamos lá a saber: que raio de

mariquinhas são vocês para deixarem de comprar legumes

portugueses? Desde que começou esta história da bactéria que

os produtores nacionais se queixam da falta de vendas.

Quinhentas toneladas de legumes são deitadas fora todos os

dias porque ficou tudo com o rabinho apertado. Porquê?

Pensem um pouco antes de entrarem em pânico! Os

alemães começaram por dizer que a culpa era dos pepinos

espanhóis e a coisa pegou bem. Até se descobrir que a maioria

dos infectados era alemão, tinha estado na Alemanha ou

consumira produtos de origem alemã. Espanha e Alemanha.

Quem é que falou em Portugal? Foram tantos anos a ouvir

dizer que Portugal era uma província de Espanha que até já

nem sabem em que país estão?

A Ministra da Agricultura espanhola vai exigir uma

indemnização à Alemanha pelos danos causados. Não seria

mal pensado nós fazermos o mesmo. Afinal de contas, também

estamos a ter prejuízo com esta história. O problema é que, ao

contrário de Espanha, nós só estamos a ter prejuízo porque

temos uns media que exarcebam e um povo que reage sem

pensar. Sim, foi isso mesmo que leram. Insultei-vos, para ver

se abrem os olhos.

Não ponho de parte a hipótese de isto ser o último

estratagema do governo Sócrates para reduzir o valor da dívida

da troika, nomeadamente a parte que os alemães emprestaram.

Se o argumento utlizado for qualquer coisa como “Espanha e

Portugal são como gémeos siameses, o que afecta um afecta o

outro”, pode ser que a coisa pegue. Tenho as minhas dúvidas.

Page 117: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 117

Por outro lado, seja a propagação do problema feita por

alemães ou portugueses, é inegável que o problema existe. E

isso remete-me para a próxima questão: de onde surgiu o

problema? Não é preciso pensar muito para descobrir.

Quais são as medidas recomendadas para evitar

contaminação? Lavar muito bem os legumes e lavar muito

bem as mãos antes e depois de manusear os legumes. E

quando se diz lavar muito bem as mãos não se está a falar de

água e sabão apenas. Lembram-se do desinfectante para as

mãos que foi vendido o ano passado por causa da constipação

dos porcos? Vendeu-se muito, não foi? Pois, mas parece que

não se vendeu tanto quanto se esperava. Muitas lojas,

farmácias e grandes superfícies ficaram com stocks enormes

de desinfectante para as mãos e não foi só em Portugal. Era

mais do que certo que não tardaria a aparecer o próximo surto.

Respiremos de alívio por ter sido a bactéria do pepino e não a

febre das borboletas.

Page 118: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

118 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 252

QUANDO O EXEMPLO VEM DE FORA

Embora faça parte daquela geração dos anos 80 e 90 para

quem ir fazer compras a Espanha era todo um ritual revestido

de secretismo e perigos, tenho de confessar que nunca viajei

ao nosso país vizinho em modo clandestino. Para o bem e para

o mal sou um tenrinho da época Schengen. Quer isto dizer que

já fui a Espanha sim, mas não fui obrigado a viajar no porta-

bagagem ou memorizar sequências infinitas de senha e contra-

senha.

Estou só a repetir aquilo que o bêbado da rua me contou.

Se alguma coisa não corresponder à verdade é a ele que se têm

de queixar. Só não o façam se ele estiver com a camisola verde

e o chapéu de alumínio.

Seja como for, hoje em dia, não só atravessamos a Europa

quase duma ponta à outra apenas com o B.I, ou o Cartão de

Cidadão para os mais modernos (sempre conseguiram votar no

dia 5?), como podemos comprar tudo o que quiseremos sem

levantar o rabo do sofá. O mundo está à distância dum clique e

isso facilitou muita coisa, embora nem todas sejam boas.

Há dois anos foi noticiada a descoberta duma base da ETA

na zona das Caldas da Rainha. Apesar das evidências, a notícia

foi desmentida pelas autoridades portuguesas. Em muitos

casos é indiscutível que as nossas autoridades procederam

mal: este não é um deles. Sim, estava lá material para fazer

explosivos, bastante dinheiro, telemóveis, armas e munição.

Para as autoridades espanholas era uma base da ETA, para as

autoridades portuguesas, e para mim, era uma arrecadação.

Sucede que, é raro mas acontece, eu estava errado e a ETA

tem mesmo uma base em território português. Tomemos uns

instantes para nos congratularmos pelo trabalho que fizemos

Podemos ser maus em muita coisa, mas somos óptimos

Page 119: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 119

anfitriãos. É pena a coisa só ter sido descoberta agora, mas

mais vale tarde que nunca.

Ao que parece, em Setembro de 2009, portanto, ao mesmo

tempo que as autoridades portuguesas negavam a presença da

ETA em Portugal, um membro dessa organização servia-se

duma identidade falsa para ir à repartição das Finanças de

Chaves e tratar do cartão de contribuinte. Isto é vergonhoso!

Receber lições de moral de estrangeiros já é mau, recebê-las

de terroristas é inqualificável. É quase o mesmo que a Elsa

Raposo a dar conselhos sobre promiscuidade.

Perante este exemplo que moral temos nós para fugir aos

impostos se os terroristas fazem tudo para ter a sua situação

fiscal regularizada? Qual era o português que de livre vontade

iria tratar do cartão de contribuinte? Tomara muitos não o

terem. Se fosse um português, quanto muito falsificava um

Master Card ou um Visa. O pessoal da ETA não vai por aí. São

terroristas, fazem bombas, matam pessoas, só que sabem bem

que tudo isso é desvalorizado quando comparado com a fuga

aos impostos. Lembrem-se como é que apanharam o Al

Capone. Eles são bascos, mas não são parvos.

Page 120: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

120 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 253

SEGREDOS DO NEGÓCIO

Ser um mau exemplo, seja no que for, quando tantos deram tão

bons contributos para o correcto desempenho de determinada

actividade é algo que devia fazer corar de vergonha muita

gente. Tolera-se a má televisão, a má educação, o mau

desempenho, o péssimo empenho, mas há coisas que não se

toleram. Ou não se deviam tolerar. Há limites!

Quando não há bons exemplos a seguir, é diferente.

Estamos num campo novo, não sabemos o que andamos fazer,

tudo bem. Mas há sectores onde é indesculpável qualquer

prestação menos que perfeita. Um exemplo claro disso está no

sector da lavagem de roupa, onde figuras como o actor Paulo

Matos, ou a jornalista Manuela Moura Guedes conferiam a

devida credibilidade a um sector tão competitivo.

Mas onde o escândalo é maior é no igualmente competitivo

sector da lavagem de dinheiro. Aqui, é impossível não referir

Oliveira e Costa, Dias Loureiro, João Rendeiro, Vale e

Azevedo e tantos outros. Exemplos não faltam. Como é

possível, então, termos tão má imagem lá fora no que concerne

à lavagem de dinheiro que se faz por cá? Que homenagem

estamos a prestar ao trabalho que estas pessoas fizeram?

Lembram-se das idas de Dias Loureiro e de Oliveira e

Costa à comissão de inquérito (vulgo enrolanço) convocada a

propósito do BPN? Houve quem achasse que esses senhores

não se lembravam ou não tinham certeza ou ainda que não

podiam afirmar de forma exacta porque estavam a tentar

esconder o que tinham feito. Eu concordo que eles até estavam

a tentar esconder qualquer coisa, mas não acho que fosse nada

criminoso, e sim vergonha. Vergonha não do que fizeram, mas

de verem os seus segredos de profissão escrutinados e

dissecados de forma impiedosa, sem qualquer consideração

pelos danos que isso poderia causar.

Page 121: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 121

Recordo um programa que a SIC transmitiu aqui há

tempos, em que vários truques de ilusionismo eram

descontruídos até ao ponto em que um analfabeto funcional ou

mesmo um assessor de secretário de Estado seria capaz de

rivalizar com o Luís de Matos. O programa gerou alguma

controvérsia junto da comunidade dos ilusionistas (deve haver,

não sei) que se queixou dos problemas que poderiam advir

para o sector a partir do momento em que pessoas não

qualificadas começassem a praticar magia.

Revendo as imagens de Dias Loureiro e de Oliveira e Costa

no Parlamento, já não consigo ver dois senhores com vergonha

de terem sido apanhados. Nem tão pouco consigo ver dois

senhores com vergonha de estarem a revelar algo muito

íntimo. Apenas vejo dois homens tristes por saberem que

aquilo que estão a contar vai ser utilizado por pessoas

despreparadas, pessoas que vão dar mau nome a uma

actividade tão franca. E isso deixa-me também triste.

Page 122: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

122 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 254

MARAVILHAS DE ANDAR DE TRANSPORTES PÚBLICOS

Sempre que viajo em transportes públicos tenho por hábito

ouvir conversas alheias. Não é que eu goste, ou que eu queira,

mas as pessoas falam tão alto que não tenho outro remédio

senão ouvir. No outro dia vinham duas mulheres à minha

frente a conversar. O assunto era o seguinte:

“As pessoas hoje em dia falam tanto da vida umas das

outras...”

“Sim, são todas umas cuscas. Até fazem impressão.”

Até aqui nada de especial, estavam-me a atrapalhar a

leitura, mas isso não era nada que não fosse normal. Até que

houve uma delas que disse uma coisa que mudou por completo

o rumo da conversa; algo que me ficou na memória. Ela disse

e eu cito na íntegra:

“Eu acho que isto devia estar dividido por secções. Devia

haver uma secção para as pessoas que gostam de conversar e

outra para as pessoas que gostam de ler.”

E a outra respondeu:

“Sim, tem toda a razão.”

E eu disse “Então não seria mau pensado porem-se a andar

daqui para fora.”

Não acharam piada, chamaram-me mal-educado e foram-se

embora.

„Ganhei‟, pensei eu.

Mas estas não são as piores. As piores são aquelas que vão

quietas, com o telemóvel nas mãos, sempre a olhar para o

telemóvel. Depois recebem um toque. E ficam a olhar feitas

parvas. Aquela porcaria a tocar e elas a olhar. Dá vontade dum

gajo levantar-se e gritar “Atende essa porcaria!”

E depois quando atendem, das duas uma, ou é engano e

voltam ao mesmo ou ficam a conversar a viagem toda. É

Page 123: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 123

nessas alturas que me apetece partir a janela e saltar dali pra

fora.

Raios parta os toques. Porque é que quando ouvimos o

telemóvel tocar nunca atendemos à primeira? Nunca sabemos

se aquele toque, o mais estúpido que já se ouviu, se é mesmo o

nosso.

“O toque é igual ao meu, mas será que é mesmo?”

E quando finalmente resolvemos atender, a pessoa ao nosso

lado atende. É frustrante. Porque mais uma vez vamos ter que

percorrer a lista de toques do princípio ao fim em busca de um

toque que ninguém use. Acho que é por isso que existem

tantos toques estúpidos hoje em dia.

Mas isto era antes. Agora temos algo muito pior: música.

Música em transportes públicos. Ou música em sítios públicos

em geral. Mas agora fiquemos pelos transportes.

Quem anda neles, sabe do que eu estou a falar. Aquela

musiquinha parva que não se percebe nada. Só a escolha é

cinco estrelas e depois vem a qualidade do som. Lembram-se

quando costumávamos ver os velhos na rua a ouvir o relato da

bola? Aquele som todo fanhoso que não se percebia nada? A

música nos transportes públicos é isto: uma estação mal

sintonizada num aparelho de rádio desses antigos e a coluna

apontada para um megafone ligado ao amplificador. Bela

ideia, sim senhor. Não chegava ter de ouvir conversas parvas à

nossa volta. Agora é mais esta.

E daqui partimos para música nos telemóveis. Quero dizer

isto: EU NÃO QUERO OUVIR A VOSSA MÚSICA

QUANDO VOU NA RUA! E não é por não gostar da música

em si. É porque não se percebe nada. Eu gosto de música. E se

há uma coisa em que eu acredito é que a Soraia Chaves só de

pantufinhas fica um mimo. A outra é que música é para se

ouvir com boa qualidade. Não é assim.

A minha vontade era pegar no sujeito que resolveu juntar as

duas coisas, telemóveis e música, e enfiar-lhe um piano de

cauda e um telefone dos antigos pelo esfíncter adentro.

Page 124: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

124 PROTUBERÂNCIA – Volume III

“Eh pá! Isso não que suja o telefone todo!”

“Pois é! Ainda por cima há pessoas com toques muito

giros.”

Deve haver. Eu próprio já ouvi. Mas são tão poucas! E cada

vez menos...

Onde é que andam os toques simples? O que foi que lhes

aconteceu? É raro nos dias de hoje o toque de telemóvel que

não é uma música. São as boomboxs do século XXI. Portanto,

temos a rádio do velho sintonizada na Renascença, dezenas de

pessoas a ouvir música do telemóvel e... E querem que o

pessoal ande mais de transportes públicos? Deve ser...

Page 125: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 125

TERMINUS 255

O QUE (AINDA) NÃO SABEMOS

Por esta altura pouco ou nada se sabe sobre o novo governo

PSD/CDS-PP.

Sabe-se que conseguiram ultrapassar a sua primeira

contenda, que tinha que ver com a estrutura do executivo. Era

uma questão delicada e que foi resolvida atempadamente,

embora nem tudo tenha ficado explicado. Passos queria 10

ministros e Portas queria 12 ministérios. O primeiro elemento

de clivagem é óbvio: depois do que se passou com os

sobreiros, Portas quer dois ministérios sem ministros para

assim não haver ninguém para acusar de qualquer eventual

irregularidade. É uma medida sábia, mas que Passos não

gostou.

Outra coisa que já se sabe, o próximo ministro vai ser um

independente, sem qualquer ligação partidária, que esteja a par

do programa do PSD e que tenha representado o partido nas

“negociações” com a troika (a assinatura era para ter sido feita

com uma caneta Parker de ponta fina azul, mas este senhor

conseguiu fazer prevalecer a sua opção de assinar com uma

caneta Molin de cor preta) e que, para os que ainda não

adivinharam, utilize a forma popular de pronunciar “pelos

púbicos”. Ou então Vitor Bento.

Sabe-se também que Passos vai continuar a apoiar

Fernando Nobre. Tivemos a confirmação desse apoio ainda

ontem, durante a visita dos representantes dos partidos com

assento parlamentar ao Palácio de Belém, quando Passos

Coelho disse, “É uma matéria do foro parlamentar, não cabe

ao futuro Governo estar a envolver-se na escolha do presidente

da AR.”

Aqueles que apontam a inexperiência de Passos Coelho

como um forte handicap governamental, têm aqui um grande

argumento. Uma coisa é cumprir promessas eleitorais, outra

Page 126: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

126 PROTUBERÂNCIA – Volume III

coisa é apoiar Fernando Nobre para presidente da Assembleia

da República. Pode parecer, analisando as suas declarações de

forma superficial, que Passos Coelho se está a descartar do

apoio ao senhor da AMI; cabe a mim fazer a tão necessária

análise mais aprofundada. É tão simples como isto: Passos

Coelho é o presidente de qual partido? Qual foi o partido que

conquistou mais votos e, em consequência, maior

representatividade parlamentar? Quer isto dizer que Fernando

Nobre vai mesmo ser eleito presidente da Assembleia da

República, segunda figura do Estado, capaz(?) de

desempenhar funções de Presidente da República caso o

senhor de Boliqueime dê um jeito às costas ao mudar a

lâmpada da sua marquise? Esperemos que não. Esperemos que

a inexperiência de Passos não ofusce a experiência dos demais

deputados.

E daí... até pode ser interessante ter o senhor Fernando

Nobre a dirigir o hemiciclo. Relembrando o caso do protocolo

com Valter Lemos, seria engraçado ver situação idêntica ou

semelhante a acontecer em sentido inverso. “Não, senhor

presidente. Primeiro tem de me dar a palavra e só depois é que

me manda calar. Não é antes.”

Agora que penso bem, ter Fernando Nobre como presidente

da Assembleia da República é o primeiro passo para conseguir

a tão discutida (sempre que há eleições) redução do número de

deputados. Com Mota Amaral e Jaime Gama havia muitos

deputados a dormir e o trabalho aparecia feito. Passos quer que

a Assembleia seja presidida por alguém capaz de adormecer

todo o parlamento e verificar se as coisas continuam a

funcionar ou não. É uma medida arriscada, principalmente

porque pode resultar.

Page 127: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 127

TERMINUS 256

O PORQUÊ DO EMPRÉSTIMO AOS BANCOS

Quando se discutiu o último Orçamento de Estado, houve

quem achasse suspeito os encontros que os presidentes dos

principais bancos privados portugueses tiveram, à vez, com

José Sócrates e Passos Coelho. Quando ainda não falava da

vinda do FMI para Portugal, muitos questionaram as tomadas

de posição dos senhores dos bancos de não terem capacidade

de ajudar o Estado português, após terem anunciado um forte

crescimento dos seus lucros. Quando se negociava o acordo

com a troika e estes senhores foram beneficiados com 12 mil

dos 78 mil milhões de euros de empréstimo, muitos

questionaram a justiça de tal medida. Durante muito tempo,

estas questões têm permanecido sem resposta. Até hoje.

Consideremos, em primeiro lugar, o porquê do empréstimo

aos bancos. A lógica dita que, para emprestarem dinheiro, os

bancos precisam de o ter primeiro. Ora, como os lucros dos

principais bancos portugueses cresceram muito no último ano,

é mais que evidente a falta de capital financeiro de que

dispõem. Portanto, como deixaram de ganhar alguns milhões

para passar a ganhar muitos milhões, as troikas acharam que

era preciso ajudar estas carentes entidades empresariais e

resolveram dar-lhes alguns milhõezitos para se governarem.

Atendido o problema da falta de dinheiro dos bancos

portugueses, estes ficaram em condições de fazer empréstimos

a quem pedisse. O problema é que o banco para fazer um

empréstimo precisa de ter garantias mínimas de retorno; caso

contrário, não é um empréstimo, é uma oferta. Uma vez que se

prevê o congelamento do salário mínimo, o aumento do IVA, o

aumento do custo de vida, a facilitação do despedimento e o

crescimento do desemprego, tenho algumas dúvidas que sobre

muita gente com capacidade financeira de contrair um

Page 128: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

128 PROTUBERÂNCIA – Volume III

empréstimo. O que acontecerá a esse dinheiro então?

Não existem dúvidas de quem vai pagar os juros do

empréstimo feito pela troika, seja da parte que foi para o

Estado, seja da parte que foi para os bancos: é o mesmo otário

que vai pagar ainda mais juros caso consiga contrair um

empréstimo bancário. Também não existem dúvidas quanto à

injustiça desta medida, bem como à necessidade de aplicação

da mesma.

Segundo notícias publicadas esta semana, o Banco de

Portugal emitiu uma nota de recomendação para que os bancos

passassem a carregar os multibancos com menos dinheiro. Diz

a nota que é para combater os constantes assaltos, mas não é

só disso que se trata.

Já estive muitas vezes na fila para levantar dinheiro no

multibanco e ter no início da fila uma daquelas bestas que leva

para lá uma repartição de pagamentos. Sou daqueles

retrógados que acha que uma hora a pôr cartão, marcar código,

fazer operação, verificar talão, verificar saldo, verificar

movimentos de conta, trocar cartão, marcar código e repetir

operação durante mais de uma hora é um bocadinho

demasiado. Por vezes, passa-me pela cabeça a ideia de

abandonar a fila e me dirigir ao balcão de atendimento que

está vazio para efectuar aí o levantamento. Porém, antes de

fazer isso, resolvo fazer uma trepanação e a ideia deixa de

fazer sentido. Pagar para levantar dinheiro? Não me parece.

Menos dinheiro nos multibancos significa que as caixas

vão ficar vazias mais depressa. Significa também que haverá

quem opte por fazer levantamentos mais avultados e outros

por ter a carteira a criar bicho. Os primeiros serão fáceis de

identificar, uma vez que terão um ar desconfiado de tudo e de

todos; os segundos, em maior número, correrão menos riscos

de serem assaltados. Houve quem falasse que o empréstimo

aos bancos era uma vergonhosa rapinagem quando, na

verdade, era uma eficaz medida de combate ao crime.

As pessoas andarão com (ainda) menos dinheiro no bolso e

Page 129: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 129

não haverá razão para serem assaltadas. Os bancos terão

dinheiro ao seu dispor para investir nas empresas de que são

accionistas e assim aumentar um pouco mais os seus lucros, de

modo a que na eventualidade dum próximo empréstimo

internacional estejam em condições de beneficiar de mais um

pouco da caridade internacional.

Page 130: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

130 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 257

CENAS DE CAFÉ

Uma coisa engraçada sobre as gorjetas é o facto de as únicas

pessoas que têm direito a ela serem aquelas que nos servem

café ou as que nos carregam as malas. Existem muitas

profissões que deviam ter direito a receber gorjeta, mas, por

razões desconhecidas, não é isso que acontece.

Se estivermos num hospital, algures entre a vida e a morte,

à espera duma transfusão quase impossível de obter porque o

nosso tipo de sangue só existe numa em cada dez pessoas, nós

não damos uma gorjeta se o médico nos salvar a vida; nem tão

pouco agradecemos ao tipo que nos deu o sangue dele. Essa

pessoa é-nos completamente desconhecida mas, mesmo que

fosse conhecida, não teria mais importância que um

empregado de mesa ou um taxista.

Dito isto, já repararam na cara dos empregados quando

vamos pagar o café e só temos uma nota de 50 euros? Um café

custa em média 55 cêntimos. E nós só temos 50 euros. E

depois? Qual é o problema?

Eu acho que não é nenhum. Mas para eles não. Eles ficam

sempre a olhar com uma cara que até parece que estamos a

fazer alguma coisa de mal. Nós estamos a pagar! É isso que

estamos a fazer! A pagar! Isso é errado? Há pessoas que

pedem desculpa! Quando vão para pagar o café e não têm

dinheiro certo, quase que se ajoelham.

“Peço imensa desculpa. Só tenho esta nota. Não posso

gastar mais que este dinheiro. Por favor, perdoe-me. É só hoje.

Não volta a acontecer. Prometo. Por favor, não me flagele.”

O que é isto?! Por acaso, pensam que estão a tirar dinheiro?

Não estão! O dinheiro do troco é vosso! Vosso! Não é deles!

Outra situação que também acontece quando pedimos um

café é a seguinte. Vamos supor que o café custa 50 cêntimos,

Page 131: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 131

só para o exemplo funcionar. O café vem, eu bebo o café,

tranquilo da vida. Acabo de beber o café, tiro uma moeda de

50 cêntimos do bolso e coloco-a em cima do balcão.

O que é que o empregado diz?

“É pra pagar o café?”

O que é que eu respondo?

“Não. 'Tou só a pôr a moeda em contacto com o ar. É pra

ver se ela cresce. 'Tou à espera que se transforme numa nota de

50 euros.

Depois abano a moeda.

“'Tá quase. Já faltou mais.”

Há outros, mais inteligentes, que ainda perguntam:

“É só pra pagar o café?”

Eu não sei o que é que se passa lá nos bastidores, mas eu

quando vou a algum estabelecimento comercial e dou dinheiro

certo para pagar um produto, é porque não quero pagar mais

nada além disso.

Page 132: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

132 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 258

PELA REVISÃO DOS DITADOS POPULARES

O mal de Portugal são os ditados populares. Influenciados por

esses saberes antigos, planeamos e agimos de forma errada.

Quão diferentes seriam as nossas vidas, o nosso país, se em

vez de ditados como Devagar se vai ao longe ou A pressa é

inimiga da perfeição, tivéssemos, por exemplo, Quem chega

no fim come restos ou Vem devagar e depois queixa-te que és o

último?

Vem isto a propósito do Cartão do Cidadão. De acordo com

testes realizados na Faculdade de Ciências e Tecnologia da

Universidade de Coimbra, chegou-se à conclusão que esse

moderno e prático documento não confere ao seu titular a

segurança que é exigida a um documento do género. Não se

trata de duplicar o cartão fisicamente (essa parte, até ver, está

salvaguardada), trata-se da possibilidade de clonar os seus

dados por via electrónica.

Ou seja. O Cartão do Cidadão dispõe de dois tipos de

informação: a que está registada no plástico, como o nome,

data de nascimento, etc. e a que está registada no chip, cuja

leitura só pode ser feita através de um aparelho de custo

acessível que todos os serviços dispõem. O portador do Cartão

do Cidadão pode ainda aceder aos sites dos organismos

públicos e tratar do que tiver a tratar a partir de casa.

Qual é o problema? Parece que os sites estão protegidos e o

cartão também, mas se o computador estiver vulnerável a

viroses, aí é que é o bom e o bonito. Se o nosso Magalhães não

tiver as vacinas em dia, corremos o risco de alguém copiar o

nosso PIN ou a nossa assinatura electrónica e fazer-se passar

por nós. Pessoalmente, não me preocupo muito com isso, uma

vez que há dias em que eu próprio não quero ser eu e não

estou a ver qual é o fétiche de alguém se passar por mim. No

Page 133: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 133

entanto, há muita gente em risco e é preciso encontrar uma

forma de proteger melhor os dados registados no chip.

Francisco Rente, o investigador da Faculdade de Ciências e

Tecnologia da Universidade de Coimbra que apurou estas

falhas de segurança, diz que já alertou a Agência para a

Modernização Administrativa, durante um seminário técnico

sobre o cartão do cidadão. O alerta foi dado em 2007, estamos

em 2011, e nada foi feito para resolver o problema.

Concordo com Francisco Rente em tudo o que ele apontou

sobre esta matéria, mas discordo dele num aspecto em

particular. Diz ele que é necessário e urgente resolver este

problema. Necessário sim, urgente discordo. Estamos a falar

dum problema que afecta muitas pessoas e muitas famílias; é

para fazer com calma, não é às três pancadas. Quatro anos mal

chega para fazer um estudo sobre a matéria, analisar os dados,

efectuar um inquérito para apurar responsabilidades e traçar

uma metodologia que permita verificar as incompatibilidades

existentes nas diversas plataformas de acesso, quanto mais

fazer alguma coisa que se veja.

Porque é que eu digo que o mal de Portugal são os ditados

populares? É que tanto eu, como eles, insistimos no

prolongamento do problema. A diferença é que eu faço isso

como recurso e eles fazem-no porque é isso que determinam.

Fosse a tradição outra, fossem os ditados outros, e não só

estaria Francisco Rente mais compatível com os padrões de

estar e agir do português, como já estaria o problema

resolvido.

Page 134: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

134 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 259

CHAMADAS PARA AS URGÊNCIAS

Para começar, duas questões. Primeira: as chamadas de

emergência são pagas? Não sei. O 0800 eu tenho a certeza que

é grátis, o 112 não sei. Sei que dá para fazermos uma chamada

quando não temos saldo, mas quem me diz que o dinheiro

dessa chamada não é descontado assim que fazemos um

carregamento? Outra: o que é uma urgência? Quando uma

mulher está com seis meses de gravidez e às quatro da manhã

apetece-lhe gelado de rúcula, como é que o homem se

desenrasca? Isso é urgência, mas para eles não.

Estou-me a desviar do tema. Já volto a isto. Primeiro o

preço. Não interessa se é grátis ou não. O mais certo é ser a

pagar. Isto porque a pensar no novo sistema de filtragem de

chamadas que estão a instalar, ou que já instalaram, vão

precisar de pessoal para analisar a dialéctica, a metafísica, a

síntaxe, etc. E isso sai caro.

Inquéritos para avaliar veracidade e estabelecer prioridades.

É o que se quer fazer e em parte é pelo que eu escrevi há

pouco. Nunca tive que ligar por causa de desejos de uma

mulher grávida, isso cada um que se desenrasque, mas já

liguei para pedir uma grade de minis. Pumba! Queixa crime

em cima! Não é urgência. Não é urgência?! Sete gajos lá em

casa para ver o jogo e só havia uma grade e estava tudo

fechado e não é urgência? O quê? É só para os aleijados?

Um polígrafo por telefone. Fazia mais falta isso. Quantas

vezes é que um operador do 112 terá pensado, “Este tipo 'tá-

me a querer dar a tanga e eu a ver.” Mas ficava-se pelas

pragas. Não tinha como saber quem mentia. Até agora.

“Mas eu já lhe disse! O meu marido caiu e não consegue

respirar!”

“Pois, já disse. E como é que eu sei que isso é verdade?”

Page 135: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 135

“Eu juro por tudo o que é mais sagrado--”

“Bom, leve lá o telefone até ele para eu ouvir a respiração.”

(...)

“Ó minha senhora, eu assim não oiço nada. Importa-se de

parar com esse arfar?”

“É o meu marido!”

“Então diga a ele para parar! Assim não oiço nada!”

“O meu marido não consegue respirar!”

“E ela a dar-lhe com o marido! Oiça lá, esse telemóvel tem

câmara?”

“Isto não é telemóvel, é telefone.”

“Mais essa. Não tem ninguém que tenha telemóvel com

câmara?”

“O meu mais novo tem, mas ele mora longe.”

“Não tem importância, eu espero. Vai ter com ele, pede-lhe

o telemóvel emprestado e filma o seu marido a estrebuchar.

Envia o vídeo por MMS e nós enviamos a ambulância.

“Mas isso assim fica muito caro!”

“Então é porque não é uma coisa assim tão urgente!

Apanhei-a!”

“Mas apanhou o quê? Você é que está apanhado! O meu

marido está prestes a morrer e você está aí com parvoíces?”

“Se é assim deixe-me avisá-la que, caso o seu marido

morra mesmo, agradecia que me ligasse novamente a cancelar

o pedido de ambulância. Agora com as Urgências, as

Maternidades e os SAPs, tudo a fechar, há muita gente à

espera de uma ambulância. Muito obrigado e tenha um resto

de dia bem passado.”

CLIC!

Page 136: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

136 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 260

TERCEIRA IDADE DE TERCEIRA

Um estudo concluiu que a generalidade da população prefere

ser trancada numa jaula com gralhas do que andar num

autocarro cheio de velhas eufóricas, acabadinhas de sair dum

concerto do Marco Paulo. Não percebo a viabilidade deste

estudo. Qual é a diferença entre uma situação e outra? Tirando

o facto das gralhas serem bichos mais sossegados, não sei.

Para mim, os velhos que viajam no autocarro, no banco

atrás de nós, são a nossa voz da consciência. Quando os oiço

fico sempre consciente que ainda falta muito para o fim da

viagem.

O pior é que um dia eu também me vou sentar ali. Eu vou-

me sentar no banco de trás. Eu vou ser a voz da consciência de

alguém. É o momento pelo qual todos ansiamos: a reforma!

Ah! Que ansiedade! Deixamos de trabalhar e podemos gozar

os últimos anos de vida!

Mas quais últimos anos? São dias, semanas, no máximo

meses! Não são anos! A não ser que sejamos políticos. Bastam

dois mandatos, dez anos no máximo e lá vem uma reforma

cheia de regalias. Quem trabalha a sério é que sabe. E... "gozar

a reforma"?

Que gozo se pode ter com 60 e tal anos, quase 70? O que se

vê mais por aí são velhos no engate, a andar atrás de gajas;

velhos na má vida, por assim dizer. Os adolescentes passam

por eles e abanam a cabeça.

"Vão mas é trabalhar. Estes velhos só sabem é gozar a

vida."

A reforma não é para os reformados, para os verdadeiros

reformados, aqueles que trabalharam, não é para eles gozarem

a vida; é o último gozo do Estado. Goza com o pessoal

enquanto trabalha e quando o pessoal está com os pés prá

cova, manda-os embora e diz: "Vá, vão curtir a vida!"

Page 137: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 137

Os políticos reformam-se mais cedo. Têm direito à reforma

antecipada. Será que existe uma reforma atrasada? Há pessoas

que começam a trabalhar antes da idade legal; porque não

reformarem-se depois? Porque as há. Há pessoas que não

conseguem largar o trabalho. Podem obrigá-las, podem

processá-las; não adianta, elas continuam.

"Eu ainda consigo."

Não desistem por muito que seja altura de o fazerem.

Eu não tenho que me preocupar com isto. Felizmente.

Ainda sou um rapaz novo, mas hei-de chegar a velho. Tenho

até um pequeno desejo, um último desejo que é viver até aos

100 anos. Não é por nada. É só para ver se a Segurança Social

está preparada para uma situação destas. É que, normalmente,

as pessoas reformam-se entre os 65 e os 70, vivem mais um ou

dois anos e depois morrem.

Quando conseguem chegar aos 70, é um caso raro. Aos 80,

o caso começa a tornar-se preocupante, são feitos os primeiros

contactos com assassinos particulares. Aos 90, começa a haver

escassez de fundos, é feito um orçamento. E aos 100?

Aos 100, imagino-me internado num hospital, ligado a uma

máquina. Algures num gabinete secreto, um membro do

governo dá ordem para avançar. Horas depois, uma equipa de

ninjas, vinda de helicóptero, invade o meu quarto pela janela e

corta-me às fatias com as suas katanas. Zás! Ou isso ou

enfermeiras subornadas injectam-me uma dose tripla de

morfina. Qualquer coisa para aliviar a sobrecarga da

Segurança Social.

Page 138: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

138 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 261

INCONGRUÊNCIAS ETNOGEOGRÁFICAS

Jesus era monhê. O que era normal naquela zona. E era normal

também o pessoal consumir a sua ervazinha aromática. Não

admira que vissem tantos milagres naquela época. Imagino

Jesus e os seus apóstolos, tudo ali numa rodinha e Jesus a fazer

o milagre do pão.

"Ena man, tanto pão!"

"Este Jesus é uma moca!"

"Tá-se bem..."

Até aposto que houve um, pelo menos um, apóstolo que

chegou junto de Jesus quando este estava crucificado, para lhe

cravar mortalhas. E Jesus, cheio de mágoa, ainda dorido dos

ferimentos que lhe haviam sido infligidos, terá respondido,

"Vê-me aí no bolso de trás."

O pior que Jesus terá sofrido durante a crucificação deve

ter sido as moscas. Porque ele não se conseguia coçar. E quem

já esteve crucificado, com moscas no nariz, sabe que é uma

tortura dos diabos. Ou, neste caso, dos romanos. E morreu ao

sol, o que sugere que não terá posto protector solar. Assim é

claro que ia morrer. Estava à espera do quê? De um milagre?

Ainda assim, Jesus ser monhé não é grave. Desde que a

Igreja não o admita. O que faltava aí eram padres na rua a

vender flores. Se bem que seria mais estranho se Jesus fosse

dread e os padres tivessem que falar na mensagem divina em

modo freestyle. Imaginem como seria nas missas. Em vez do

padre, haveria um DJ. A marcha nupcial seria feita ao som de

beatbox.

Apesar das evidências, a Igreja não reconhece as origens

etnogeográficas de Jesus. O que é estranho, uma vez que a

figura de Jesus teve várias interpretações ao longo dos séculos.

Os nazis, por exemplo, acreditavam na existência de um Jesus

Page 139: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 139

loiro e de olhos azuis. Era assim que eles o viam, o que não

abona muito a favor do ensino da Geografia na Alemanha. Até

existem alguns quadros de séculos anteriores que retratam

Jesus com esse aspecto. Era a imagem do homem perfeito:

alto, loiro, de olhos azuis. Todos os que não fossem assim,

eram impuros e deviam ser mortos. Principalmente os judeus.

Os nazis, como toda a gente sabe, eram liderados por um

senhor chamado Adolfo, Hitler para os historiadores, que não

era judeu, mas também não era exactamente alto, loiro e de

olhos azuis. Deve ter sido por isso que ele se matou.

No dia do seu aniversário, a Eva Braun, não confundir com

as depiladoras nem com as batedeiras, chega-se ao pé dele e

diz, "Tens a cara cheia de pontos negros. Vou-te oferecer um

creme para pores nisso."

E ele, que era o líder do Terceiro Reich, disse, "Não.

Homem que é homem não usa creme."

"Então, vou-te oferecer um espelho."

E assim foi. Eva ofereceu-lhe um espelho e a primeira vez

que Hitler se viu ao espelho percebeu que não era loiro e...

bang!

Page 140: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

140 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 262

OS ANOS PASSAM E...

NETOS E AVÓS

Não importa a idade que temos, para os avós, um neto tem

sempre dois anos. Não passa daí. Pode já ser casado. Ser

doutorado em engenharia astrofísica. Os avós continuam

sempre a tratá-lo como se fosse um atrasado mental. E, por

causa disso, continuam a causar embaraços nas piores

situações.

Um homem feito, no fim da licenciatura, que viva com os

avós, leva a namorada a casa para conhecer os pais e a avó

aparece com um par de cuecas sujas a perguntar, “Estas cuecas

são tuas?”

Fica logo tudo estragado. Não interessa se as cuecas são ou

não são dele. Se forem é mau. E mesmo que não sejam, é mau

na mesma. Porque não há como voltar atrás. E não há nada

que se possa dizer.

Imaginem que ele está numa situação delicada. Mas qual?

Não existem situações indelicadas para uma avó. As avós são

como os MIB. Entram em todo o lado. Atrevam-se a dizer

“Não pode entrar” a uma avó e vão ver a sorte que vos calha.

Pode acontecer por exemplo, como já deve acontecido a

muita gente, a avó entrar no quarto, quando se está a tentar

aumentar a taxa de natalidade no nosso país, e dizer:

“Não te esqueças da televisão acesa como é teu hábito.

Olha que eu tenho mais que fazer do que vir aqui às quatro da

manhã para apagar a apagar a televisão.”

Tenta-se manter a calma, só que não há muito por onde

escolher. Porque, se não lhe respondem, ela começa logo,

“Não me ouves a falar contigo?”

Por outro lado, se lhe respondem, aí é que tá tudo

Page 141: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 141

estragado. Basta dizerem uma coisinha simples como, “Avó,

importa-se? Eu e a minha mulher estamos a tentar fazer um

filho.”

“Pronto. Não posso dizer nada que fica todo enxonfrado!”

E depois sai. Mas continua-se a ouvir em toda a casa.

AS IDOSAS DE SATÃ

Irritam-me aquelas velhas beatas que me aparecem à frente

para impigir a porcaria do Sentinela. Detesto. Nada contra a

religião, nada contra a revista, mas os fiéis... Custa muito tirar

um curso de técnica de vendas? Eu acho que não. E por

enquanto são só essas. Eu quero ver se isto alastra a outros

credos. Tipo, pessoal satânico. Aquilo não é só malta nova.

Também há velhos lá. O pessoal que é marado para entrar lá,

fica lá pra sempre; não se cura assim muito facilmente.

Tenho medo do dia em que me apareça uma velha à frente

com uma t-shirt de Cradle a dizer: "O sangue! O sangue!"

Mais uma vez, cá temos o problema da técnica de venda.

E esta da roupa é outra. Habitualmente, eu visto-me de

preto. Quantas vezes é que não há um palhaço qualquer que se

chega ao pé de mim e pergunta: "És satânico?" ou “És

gótico?” É sempre! E no entanto, nunca vi ninguém a

perguntar isso a uma dessas velhas que se vestem de preto.

Porquê?

Sabem o que é que respondo quando me perguntam porque

é que me visto de preto? É porque não se notam tanto as

manchas de sangue.

Se eu me vestisse de branco, será que me interpelariam

com dúvidas do género, "Doutor, não me estou a sentir bem.

Será que me podia passar qualquer coisa?"

Roupa é apenas roupa. Eu sempre que vejo um gajo de

calças pretas e camisa branca, não me aproximo dele e peço

um café e um copo de água, só porque parece um empregado

Page 142: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

142 PROTUBERÂNCIA – Volume III

de café. Pode não ser. Roupa é apenas roupa.

Page 143: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 143

TERMINUS 263

ANDAR A PÉ

Porque é que dizemos "eu, pessoalmente" quando estamos a

falar de nós próprios? Será que o facto de se estar a falar na

primeira pessoa não chega para se perceber que é uma opinião

pessoal? Não se diz "ele, pessoalmente" ou "tu, pessoalmente".

O "pessoalmente" é sempre eu. E eu pessoalmente acho isto

estúpido.

Como é que eu lido com isto? Praticando desporto. Ou

melhor, andando a pé. Não é um desporto, mas também cansa.

E parece fácil, só que não é. Tirar a carta e andar de carro

daqui para ali, qualquer um faz, agora andar a pé... é preciso

saber. Vê-se só por isto: um gajo demora quase um ano para

aprender a andar a pé. Quanto tempo é que demora para

aprender a andar de carro?

E andar a pé não cria vícios. Eu vejo o que acontece aos

condutores quando ficam proibidos de conduzir. Geralmente

são aqueles que viajam nos lugares da frente dos autocarros e

vão a viagem toda a pedir ao motorista.

"Deixe-me conduzir só um bocadinho, vá lá! Eu sei o

caminho!"

É a ressaca. A malta que anda a pé não sofre disso. Outra

coisa boa de andar a pé: costuma ser grátis, não quer dizer que

seja sempre. Há quem goste de pagar 25 euros para subir e

descer degraus ao som de música ritmada. “Desde que

comecei que me sinto muito mais leve,” diz o cachalote que

vai do segundo andar para o rés-do-chão de elevador e depois

de cada aula repõe as calorias perdidas com uma injecção de

calda de açúcar.

Quem foi a alminha que chamou ao step desporto? Aquilo é

subir e descer um degrau. Mais nada. Passadeira rolantes.

Andar devagar, andar depressa. É preciso gastar dinheiro

nisso?

Page 144: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

144 PROTUBERÂNCIA – Volume III

O tempo que uma pessoa gasta de casa até ao ginásio, a

subir e descer as escadas, quando finalmente chega lá já não

precisa de treinar mais.

Eu vejo as coisas da seguinte forma: se for possível

organizar um campeonato, é desporto; senão é perda de tempo

e dinheiro. Imagino como será um campeonato de step. Nem

ponho a hipótese de não existir. É uma ideia estúpida, logo

existe. O que é que avaliam? São pessoas a andar. Categorias:

coxos, mutilados e pessoal com duas pernas. Seria uma

competição interessante de se ver. Bizarra, mas interessante.

Page 145: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 145

TERMINUS 264

CHAVÕES DE MORTE E REENCARNAÇÃO

Bom dia, senhora algo forte que está a beber o cafezinho com

adoçante depois de ter emborcado um mil folhas e uma bola de

berlim. Os outros também são bonitos, mas precisam de cortar

os pelos do nariz. Vamos falar de morte? Vamos!

Há expressões que dá gosto ouvir sempre que alguém

morre. Uma delas é “Tinha uma saúde de ferro.” É gira,

porque quem a costuma ouvir mais são as pessoas que nunca

vão ao médico. Não é porque não precisem, é porque não

querem. Não querem, não vão e as pessoas todas pensam que é

uma pessoa muito saudável. E tem um tumor do tamanho do

pâncreas a lixá-lo todo por dentro.

Mas faz bem em não ir ao médico. Se for ao médico, o que

é que acontece? “O senhor está muito doente! Tem de ficar

acamado, a tomar estes vinte e sete comprimidos, dos quais só

três fazem falta, e ficar assim até morrer daqui a dois meses!”

Não indo ao médico, talvez morra num mês, talvez dois, talvez

três. Mas ao menos curte a vida. E é isso que interessa.

Outra expressão muito comum e também muita gira é esta:

“Coitado. Ao menos morreu depressa.” Quantas vezes é que

ouviram isto? O que é que significa? Nada. Morreu depressa.

Há aqueles que morrem devagar. Aquele morreu depressa. Foi

de quê? Jacto? TGV?

Faz-me confusão isto. A morte não é rápida, não é lenta. É.

A pessoa está viva e depois está morta. Não há meio termo.

“Tem a ver com o tempo que demoramos a morrer.”

Nós começamos a morrer a partir do momento em que

nascemos. Vejam a comparação. Um recém-nascido é jogado

para o lixo, morre à fome ao fim de um dia, talvez dois. Um

velho de 97 anos leva um balázio na cabeça e tem morte quase

imediata. Qual deles é que teve uma morte lenta?

Page 146: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

146 PROTUBERÂNCIA – Volume III

Há quem diga que, depois da morte, vem a reencarnação.

Segundo algumas culturas, a espécie em que nós reencarnamos

depende dos actos que fizemos na vida anterior. Se formos

ladrões, poderemos reencarnar como políticos. Se formos

mulheres, na próxima vida provavelmente seremos um creme

hidratante à base de extractos naturais de plantas.

Voltando ao exemplo de há pouco, o que é que acontecerá

quando se morre à nascença? Será que reencarnamos num

órgão interno? Num germe?

Há quem diga que nestes casos, já que a pessoa não fez

nada de mal, é considerada uma pessoa pura e vai para o

Paraíso. Eu digo que esta apatia aos problemas da sociedade

faz deles uns parasitas sociais. Se eles são puros por não

fazerem nada na vida, o que é que podemos dizer das centenas

de pessoas que vivem à custa do trabalho dos outros? São os

nossos anjos da guarda? Pessoalmente prefiro a reencarnação à

ressurreição. Sempre dá para fugir ao Fisco.

Page 147: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 147

TERMINUS 265

A OPÇÃO E A INDECISÃO

Como não militante ou simpatizante socialista possuo as

valências necessárias para comentar a luta (renhida?) que

decorre entre os dois candidatos principais, António José

Seguro e Francisco Assis, ao cargo de secretário-geral do PS.

Declaro aqui publicamente a minha não-militância e a minha

não-simpatia, para que não me acusem de denegrir um

candidato em relação ao outro. A minha intenção é denegrir os

dois. Comecemos por Francisco Assis.

Uma coisa que me irrita na política e nos políticos não é

tanto o que eles fazem ou dizem, mas o que utilizam para

justificar essas acções. Francisco Assis fez parte do governo

que aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo. O

diploma, de acordo com as partes interessadas, ficou

incompleto, porque não abordou a questão da adopção.

Enquanto governante, a opinião de Assis era a opinião do

Governo, ou vice-versa; enquanto candidato, já pensa de

maneira diferente. Diz ele que “Durante muito tempo tive

dúvidas [sobre a adopção de crianças por casais do mesmo

sexo], mas neste momento sou favorável, porque percebi que

essas dúvidas se alicerçavam no mais puro preconceito.”

Naturalmente que Assis tem todo o direito de mudar de

opinião. A questão é... porque é que muda? Será uma mudança

genuína ou será calculada? A causa gay, chamemos-lhe assim,

era um dos galões do Bloco de Esquerda e o PS apoderou-se

disso. Tirou ao Bloco uma das suas causas e fez aquilo que

tinha poder para fazer. Não fez tudo. Preferiu deixar um pouco

para mais tarde.

A pergunta que eu faço é: se os skinheads estivessem em

maior número na nossa sociedade, será que Francisco Assis

estaria a dizer “Essa escória da estrangeirada, se fosse eu a

Page 148: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

148 PROTUBERÂNCIA – Volume III

mandar, era tudo corrido lá pra terra deles.” Até que ponto ele

expressa a sua opinião, até que ponto ele joga com simpatias

alheias?

Sobre António José Seguro, estou à espera que se decida,

duma vez por todas, se a regionalização é uma prioridade ou

não. Parece que, em algumas terras, ao almoço, é um

compromisso inadiável; noutras, ao jantar, deixa de ser uma

prioridade. Dava-me jeito saber em que é que ficamos.

É fácil escrever um artigo tendo por base uma mudança de

opinião de um político. Contudo, se o político for António José

Seguro, corre-se o risco de ele mudar de opinião entretanto. Se

a mudança ocorrer a meio do artigo é menos grave. Pode ser

que, chegando ao fim, ele tenha retornado à opinião anterior.

Ao contrário de Assis que assume as reinvidicações duma

classe como sendo as suas, Seguro anda de terra em terra,

como um verdadeiro arauto das suas exigências regionais.

“Vocês aqui são contra ou favor da regionalização?”, dirá num

discurso hipotético. E as pessoas, pensando que é uma

pergunta de retórica, do género “Vocês estão aqui?”,

respondem “Sim!”. Ou não, se forem contra. Seguro fica

seguro da posição popular e opina em conformidade.

Page 149: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 149

TERMINUS 266

A CARTA

Quando algo fora do comum é noticiado, é habitual as pessoas

mais perto do acontecimento, mesmo não fazendo parte dele,

manifestarem-se publicamente com expressões do calibre de

“Eu já estava mesmo ver.”, “Ainda no outro dia lhe disse.” ou

“Já cá andava desconfiado.” Esta emissão de opinião que não

diz nada em concreto faz parte do ser humano e, acima de

tudo, do ser português. O fenómeno torna-se tão ou mais

curioso quando aplicado a algo que... não constitui qualquer

surpresa.

Na minha formação básica de jornalista, aprendi que

noticiar é relatar os factos, tal e qual eles acontecem. Há, no

entanto, alguns critérios essenciais a serem seguidos, tais

como a proximidade, a actualidade e a relevância. Na época

que se avizinha, estou certo de que não faltarão notícias em

que nenhum destes critérios é observado.

Dou-vos exemplos. Uma mulher cair do sexto andar e

morrer não é notícia. Seria notícia ela cair do sexto andar e

sobreviver sem ferimentos. Ou cair do sexto andar e a meio da

queda abrir-se um portal e ela passar para outra dimensão. Ou

levantar voo. Isto seria notícia, a causa conhecida procedida

por um efeito inesperado.

Um outro exemplo tem que ver com uma carta divulgada

publicamente. A carta, assinada por notáveis socialistas,

incluíndo ex-ministros do governo de Sócrates, faz saber das

coisas que correram mal no governo que ocuparam.

Naturalmente que isto não é notícia porque já toda a gente

sabia que as coisas não estavam a correr bem.

É uma atitude que, por princípio não lhes fica bem, mas faz

parte de ser político. Quando era secretário-geral, estava tudo

bem, estavam todos bem com ele; assim que sai, começam

Page 150: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

150 PROTUBERÂNCIA – Volume III

logo a falar mal. É um pouco mesquinho, talvez. Todavia,

consigo entender a posição destes ex-governantes e apoiantes

socráticos. É difícil estar no centro dos acontecimentos e

descrevê-los de forma objectiva; mais difícil ainda se torna

quando somos parte interveniente nos mesmos. O ex-ministro

da Economia, Vieira da Silva, ou a ex-ministra do Trabalho,

Helena André, por exemplo, estavam demasiado próximos

para pensar e falar livremente.

Tempo e distância. Por vezes é tudo o que precisamos para

pôr as coisas em perspectiva. É o que nos permite falar dos

acontecimentos com descontração, avaliar o que fizemos bem

e o que fizemos mal.É o que nos permite fazer um balanço

apurado e isento de especulação.

Mas admito que teria sido bem mais interessante, quiçá,

mais produtivo, esta missiva ter sido escrita e divulgada há

mais tempo. Porventura, antes disto tudo ter descambado da

maneira como descambou. No tempo do conde D. Henrique,

por exemplo.

Page 151: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 151

TERMINUS 267

O NOME DIZ TUDO

Embora seja uma cidade que aprecio muito e que conheço

relativamente bem, não sou lisboeta. Como tal, apesar de não

ficar alheio às mudanças que ocorrem na cidade, as mesmas

não me deixam tão afectado como deixam aos seus residentes.

Destas mudanças, aquelas que incomodam mais as pessoas

não são aquelas inesperadas, são aquelas que, apesar de

expectáveis, se acredita nunca virem a acontecer.

No programa do governo, perdão, no memorando da

Troika, a redução do número de freguesias era uma das

medidas mais polémicas. Assim como praticamente tudo o

resto no memorando, esta é mais uma que se sabia inevitável,

embora houvesse a esperança de que não passasse do papel.

Não foi o caso.

A operação de junção, reformulação e eliminação já

começou e Lisboa parece ter sido o concelho escolhido para os

primeiros ensaios. De 53 passará ter 24 freguesias. Menos de

metade. Será criada uma freguesia nova chamada Parque das

Nações. Alguém quer adivinhar onde será? As doze freguesias

da Baixa Lisboeta juntam-se na freguesia de Santa Maria

Maior. E as marchas, senhores? E as marchas? A Mouraria e

Alfama no mesmo desfile? Vai haver porrada na certa.

Esta opção de agrupar freguesias e atribuir um novo nome,

sem ter em conta as suas diferenças culturais e territoriais é

insuficiente. Na minha opinião, faria mais sentido agrupar, não

só a freguesia, mas também o nome. Por exemplo, no concelho

da Moita, onde resido, mantinha-se a freguesia sede de

concelho e juntavam-se as restantes. Passar-se-ia então a ter

Sarilhos do Gaio-Rosário e Vale de Alhos da Banheira. No

Barreiro, terra que me viu nascer, o mesmo princípio.

Mantinha-se a sede de concelho e agrupavam-se as restantes

Page 152: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

152 PROTUBERÂNCIA – Volume III

freguesias, ficando com Alto de Coina do Lavradio, Verderena

de Santo André da Charneca de Palhais.

Outra opção, em vez de nomes compostos, seria recorrer à

junção. Recorrerei de novo aos concelhos da Moita e Barreiro

para exemplificar. Na Moita teríamos as freguesias de Moita,

Saráiorio e Valhoseira; no Barreiro, o Barreiro, Altoinadio e

Versanecalhais. Com o tempo as pessoa habituar-se-iam e

daqui a tempos estaríamos a ouvir frases do género, “Sou

versanecalhaiense com muito gosto!” E o senhor Bento? Mora

na Valhoseira desde pequeno e todos os dias vai trabalhar para

Altoinadio.

Seria um processo capaz de suscitar tumultos, mas que

daria nomes bem mais interessantes do que aqueles que

resultaram da reunião camarária em Lisboa. O PCP votou

contra, o PSD e o CDS-PP abstiveram-se. Há quem diga que

foi por discordarem da medida. Eu digo que foi por causa dos

nomes. Morar em Santa Maria Maior é um pouco parvo, morar

em Alfamaria já é um pouco menos.

Page 153: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 153

TERMINUS 268

MÉRITO E COPIANÇO

Depois dos juízes foi agora a vez dos pretendentes a

advogados serem apanhados a copiar em exames. Este tipo de

situação demonstra bem o estado do ensino em Portugal.

Estamos a falar de pessoas com, pelo menos, quinze anos de

estudos. Quinze anos! E ainda não aprenderam a copiar sem

serem apanhados? Isto deixa-me seriamente preocupado.

Como cidadão não me interessa saber se determinado juiz ou

advogado cabularam para chegarem onde chegarão. Prefiro

não saber. Prefiro acreditar que sabem o que estão ali a fazer,

que chegaram ali por mérito próprio. Se foram apanhados em

falta, castigue-se. Se não, aprove-se.

Estenda-se isto a outras profissões. Quando vamos ao

médico queremos acreditar que estamos a ser atendidos por

alguém que trabalhou para chegar ali. Saber que o sujeito de

branco que nos está a cobrar 60€ pela consulta desconhece a

diferença entre a omoplata e a tíbia é coisa para nos deixar

inquietos.

Mas existe um outro aspecto que me inquieta ainda mais no

caso da justiça e seus elementos. Em Portugal pode não existir

– tanto quanto sei – a figura do precedente jurídico, mas isso

não impede que seja aqui criado um precedente. Já foi a vez

dos juízes e dos advogados; pelo andar da carruagem, a seguir

será a vez dos réus. Todos nós somos inocentes, até prova em

contrário, logo todos nós somos passíveis de sermos acusados.

Como tal, é preciso estar à altura das expectativas.

Como se sentiriam os advogados e o juiz se soubessem que

o réu que está a ser julgado cabulou para chegar ali? Estou

certo de que não iriam gostar. Para evitar esse tipo de

constrangimentos, resolvi enunciar algumas dicas ao futuros

candidatos a exame da Ordem dos Réus.

1 – Não ser apanhado a copiar. Se for, dar uma carga de

Page 154: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

154 PROTUBERÂNCIA – Volume III

porrada ao examinador, habilitando-se assim à primeira

acusação por agressão.

2 – Tentar desviar as atenções do examinador para outra

situação. Uma bomba de pequena alcance colocada

previamente num contentor de lixo fora da sala costuma

chegar.

3 – Quando não souber uma resposta, aposte com o

examinador em como ele também não sabe. Aposte também

em como é capaz de fazer o exame sem copiar se ele

abandonar a sala durante vinte minutos.

Enfim, são dicas básicas, aplicáveis a qualquer exame.

Espero que vos sirvam de alguma coisa.

Page 155: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 155

TERMINUS 269

PRESUNÇÃO DE CULPABILIDADE

A vida às vezes surpreende-nos. Tão habituados estamos a que

a classe política não faça nada que ficamos sem reacção

perante certas situações. Em Oliveira do Bairro um vereador

resolveu suspender o seu mandato e pediu para ser constituído

arguido. Foi isso mesmo que leu. Um autarca foi acusado de

falta de transparência na atribuição de fundos e a autarquia

resolveu não avançar com queixa criminal. E o que é que este

senhor fez? Demonstrou o maior desrespeito pelo

funcionamento das instituições e democráticas e pediu para ser

ser julgado! Não se compreende esta atitude. E além de não se

compreender não é aceitável.

Quando um vereador é acusado de desviar fundos, a atitude

correcta é negar. Eu sei que esta não é a opção mais certa do

ponto de vista legal ou moral, mas é sem dúvida o melhor a

fazer em termos sociais. Fomos tão habituados a falcatruas e a

negociatas que é impossível prever o efeito que a idoneidade

teria nas nossas psiques.

Não me entendam mal. Eu não sou contra a condenação do

peculato. Há, todavia, valores mais altos a serem respeitados.

A começar pela difamação. Vamos supor que este vereador,

acusado anonimamente de desviar fundos, vai a julgamento e é

dado como inocente de todas as acusações. A sua inocência é

demonstrada de forma tão efectiva que até o procurador

acredita nele. Pensem na pessoa mais céptica que conheçam;

até ela acreditará na inocência deste vereador.

Isto é tudo muito bonito na ficção. Na realidade há outras

problemáticas a ter em consideração. O que é que resta aos

populares para falarem na praça pública? Não vão, certamente,

falar da inocência do senhor. Nós, povo, precisamos da

suspeita, da calúnia. Queremos algo que sustente o acto de

falar mal. Não que isto seja um elemento imprescindível,

Page 156: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

156 PROTUBERÂNCIA – Volume III

atenção.

Este caso é localizado, mas temo que se possa alastrar ao

país. E se isso acontecer, o que será de nós? O que será das

Fátimas, dos Isaltinos, dos Avelinos, dos Valentins e de tantos

outros exemplos menos conhecidos? Porque o problema não

seria só ficarmos sem alvos para caluniar, seria ficarmos

também sem bodes expiatórios. Podemos não assumi-lo, mas é

impossível negarmos que a classe política sustenta as nossas

próprias prevaricações.

Fugimos aos impostos porque eles também o fazem,

cometemos algumas infracções porque eles também o fazem.

Criticamo-los publicamente por fazerem em grande escala

aquilo que nós fazemos numa escala mais pequena. Quem é

que nunca levou uma caneta da empresa para casa, por

exemplo? Quem é que nunca tirou fotocópias no escritório de

graça? A classe política serve para nos absolver a consciência

desses irregularidades. É o que nos permite dizer, “Fiquei a

dever 2€ no café, mas aquele lá outro lá não sei donde ficou a

dever 2 milhões.” (Não referi nomes, nem lugares, para não ter

chatices.) Se os políticos começam a ser honestos, estaremos à

altura de seguir-lhes o exemplo?

Page 157: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 157

TERMINUS 270

MENOS TRANSPARÊNCIA, POR FAVOR

Um motorista da Secretaria de Estado da Cultura recebe 1866

euros mensais. Um especialista no Ministério do Ambiente

recebe 3069 euros mensais. Um adjunto desse mesmo

especialista recebe o mesmo valor. Uma adjunta, novamente

na Secretaria de Estado da Cultura, recebe 4724 euros

mensais.

Estas informações foram retiradas do site criado pelo

governo de Passos Coelho para tornar o mais transparente

possível as nomeações feitas pelo executivo. Em ocasiões

prévias abordei o problema da idoneidade política. Escrevi

então que a desonestidade de alguns elementos da classe

política é o que nos inibe a consciência das pequenas infrações

que cometemos. Por outras palavras, não nos sentimos

culpados por não declarar cem euros às Finanças, porque de

certeza que há um político que meteu cem mil ao bolso.

No caso das nomeações, a situação torna-se bastante mais

grave. É, por assim dizer, o fim dum sonho. Mais trágico ainda

que descobrir que não existe Pai Natal, coelho da Páscoa, fada

dos dentes ou senhores invisíveis no céu é perceber que não

vale a pena estudar para ser doutor quando se ganha mais em

ser chauffeur.

Felizmente, temos também os especialistas. O especialista

está para a política como o trolha está para a obra. Um

especialista está apto a desempenhar funções muito

específicas, ou seja, nenhumas. Qualquer pessoa é especialista

na sua profissão. Pode fazer bem ou mal, mas é especialista

nisso. A diferença entre essa pessoa e um especialista é que a

primeira não precisa de referir isso, enquanto que a segunda

refere para que fique bem claro que “a sua especialidade não é

aquela”.

Outra coisa que também me alivia é saber que há limites

Page 158: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

158 PROTUBERÂNCIA – Volume III

para toda esta transparência. No site das nomeações estão lá

todos os nomeados e seus vencimentos. Com algumas

excepções, claro. No Gabinete do Secretário de Estado da

Solidariedade e Segurança Social sabemos que existe um

assessor técnico que recebe o mesmo que recebia no seu cargo

anterior nos CTT. Não sabemos é quanto. A mesma coisa para

o Chefe de Gabinete do Ministério da Solidariedade e

Segurança Social. Sabemos que recebe o mesmo que recebia

na empresa HS – Consultores de Gestão, as. Falta saber é

quanto. De certeza que há mais casos além destes e ainda bem.

Pior que não acabarem com o despesismo é não o esconderem.

Page 159: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 159

TERMINUS 271

NOTÍCIAS DE AGOSTO

Agosto é e será sempre a época das notícias parvas. Vamos a

elas.

Numa entrevista à revista da Ordem dos Advogados, D.

José Policarpo afirmou que não existe impedimento teológico

à ordenação das mulheres. Em audiência com o secretário de

Estado do Vaticano, D. Policarpo esclareceu que, quando falou

em ordenar as mulheres, referia-se a ordená-las por ordem

alfabética e não por ordem de idade, como havia sido

divulgado previamente.

Já está a funcionar no Dubai o primeiro spa automóvel. Por

apenas onze mil euros, Ferraris, Lamborghinis e outros

calhambeques recebem uma lavagem em condições. O tempo

para cada lavagem ronda uma semana e serve-se dos mais

recentes avanços na área da nanotecnologia. O serviço vem ao

encontro das necessidades de todos aqueles que se queixavam

da sujidade ao nível subatómico.

Prevê-se também para breve a abertura do primeiro salão

de massagem para automóveis, em vez do tradicional bate-

chapas. Um serviço que vem ao encontro de todos aqueles que

consideram a existência de atrito prejudicial à durabilidade do

veículo.

Continuando a falar de gente pobre, uma garrafa de vinho

branco de duzentos anos foi vendido por 85 453,50€, entrando

assim para o livro do Guiness. Christian Vanneque pediu

desculpa pelo nome e disse estar ansioso por abrir a garrafa.

“O último que comprei, gastei só trinta mil euros e era uma

zurrapa autêntica. A ver se este é melhor.”

Ainda nas antiguidades, depois de ter sido mãe aos 66, a

romena Adriana Iliescu quer repetir a proeza aos 72. Diz que

se sente “como uma jovem”. Nos seus projectos futuros inclui-

se fumar um charro, ir a um concerto dos Bon Jovi ou pedir

Page 160: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

160 PROTUBERÂNCIA – Volume III

um crédito à habitação.

Espaço agora para a justiça.

Os guardas prisionais da cadeia de Sintra passaram a

dormir nos carros porque a camarata não possui condições.

Parte do telhado tem telhas de amianto, não existe ventilação

no quarto e a casa de banho está completamente degradada. Já

chegaram a aparecer pulgas na sala onde os guardas tomam as

suas refeições, mas nem isso foi suficiente para se mandar

fazer uma desinfesta--

As minhas desculpas. Parece que peguei numa notícia de

finais do século XIX por engano. Passemos à ciência.

Um estudo publicado no Journal of Thoracic Oncology

afirma que muitos fumadores de longa duração conseguem

deixar de fumar com facilidade antes de lhes ser

diagonosticado cancro do pulmão. Fica assim provado que o

tabaco ajuda a prever o futuro. O estudo não quantifica

quantos fumadores conseguem desistir depois de lhes ser

diagonosticada essa doença.

De acordo com um inquérito da construtora de pneus

Goodyear sobre comportamentos impróprios ao volante,

descobriu-se que 43% dos condutores portugueses falam ao

telemóvel, 63% mexem no rádio, 45% ajustam a temperatura e

56% afirmam nunca teerem ingerido álcool antes de conduzir.

Ainda de acordo com este estudo, descobriu-se que 57% dos

condutores portugueses não possuem telemóvel, 37% não sabe

mexer no rádio, 55% não sabe regular a temperatura e 44%

está neste momento a beber enquanto conduz.

Num outro estudo, cientistas descobriram que, nos últimos

trinta mil anos, o cérebro encolheu cerca de 10%, passando de

1600 para 1359 centímetros cúbicos.

Terminamos as notícias de hoje com os parabéns à menina

Silly Season, que comemora a bonita idade de trinta mil anos,

e algumas sugestões de leitura para aqueles que têm tempo

para isso.

Page 161: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 161

1. NOVO ESTUDO PARA PONTE CASAL DO MARCO-MOSCAVIDE

2. PORTUGAL PRECISA DE MAIS SUBMARINOS! 3. TUDO O QUE PRECISA SABER SOBRE TUDO 4. APRENDA A NÃO FICAR HISTÉRICO À TOA 5. EXERCÍCIOS PARA FAZER DEITADO NO SOFÁ 6. MIL E UMA DICAS PARA A BISCA LAMBIDA 7. CANTIGAS DE EMBALAR PRISIONEIROS NO

CORREDOR DA MORTE 8. À VOLTA DO MUNDO EM PÉ COXINHO 9. DEUS PRECISA DE DINHEIRO 10. CARTOONS DE MAOMÉ QUE NÃO OFENDEM

NINGUÉM 11. COMO ENRIQUECER URÂNIO NA SUA CAVE 12. O MEU ESCROTO É BONITO DE SE VER: MEMÓRIAS

DE UM EXIBICIONISTA 13. ANFETAMINAS: FAÇA VOCÊ MESMO 14. PEIXE BOM PARA COMER CRUDE BUCHAS E

ANILHAS: UMA INTRODUÇÃO AO COMÉRCIO DE FERRAGENS

15. LEITURA PARA TANSOS 16. O QUE FOI FEITO DE MIM? : A HISTÓRIA DE UM

MECÂNICO AUTOMÓVEL CONTADA NA SEGUNDA PESSOA

Page 162: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

162 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 272

ADOECER EM PÚBLICO

Um médico oftalmologista foi despedido do Hospital Sousa

Martins. O Conselho de Administração do referido hospital

acusou o médico de faltas injustificadas e obrigou-o a repor

todos os salários recebidos desde o início da sua baixa médica,

em Junho de 2010. Como justificação serviu-se do argumento

“se está doente para trabalhar no público, também tem de estar

doente para trabalhar no privado”. É caso para perguntar: mas

que porcaria é esta?! Sempre a falar que nunca se faz nada,

que somos uma cambada de calões. Este senhor está doente e,

mesmo assim, vai trabalhar. E o que é que lhe fazem?

Castigam-no. Belo exemplo. Reparem que não estamos a falar

dum profissional que recebe pouco por mês. Um médico

recebe bem o suficiente para poder ficar em casa sem fazer

nada. Além disso, é qualificado para saber até que ponto ir

trabalhar pode ser prejudicial para a sua saúde. Fazê-lo,

mesmo ciente destas condições, é um exemplo de integridade.

Com um percurso profissional equilibrado entre o público e

o privado estou em condições de defender este senhor.

Acredito que muitos não saibam, e que mais ainda me

critiquem por revelar isto, mas a verdade é que ficar doente no

público não tem nada a ver com ficar doente no privado.

Um funcionário público entra em depressão. Fala com os

seus superiores. É feita uma avaliação do seu estado

psicológico e decidem que o melhor a fazer é ir para casa até

ficar bom. O tempo de permanência é equivalente ao cargo

que ocupe ou ao número de anos de militância do partido em

maioria. Um funcionário privado entra em depressão. Deixa-se

estar calado. Ou fala com os seus superiores. E quando fala, é

feita uma avaliação ao seu desempenho para se perceber até

Page 163: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 163

que ponto aquele funcionário é indispensável. Pode acontecer,

também, fingirem que não se passa nada, e deixar o

funcionário entrar em colapso até ao ponto em que seja

justificado despedi-lo.

Este médico da Guarda adoeceu no público, mas continuou

a trabalhar no privado por isto. Não foi por dinheiro. Foi por

receio. Vamos a um consulta do médico de família no Centro

de Saúde e ele não aparece porque teve uma emergência

familiar. Partimos para o seu consultório privado e lá está ele a

atender um sujeito que, a julgar pelo tamanho, deve comer que

nem uma família inteira.

Durante um ano este médico esteve doente e, mesmo

assim, ia todos os dias trabalhar. Admire-se o sacrifício e tire-

se daqui uma lição. Se não fosse pelo sacrifício destes

funcionários públicos, o sector privado seria uma miséria.

Page 164: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

164 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 273

QUINZE MINUTOS

Quando tinha 15, 16 anos costumava gravar rábulas com

amigos e colegas de escola. Cada um de nós fazia figura de

parvo, fosse através do que dizia ou do que vestia para dar

corpo aos personagens a que dávamos vida. Compreendo, por

isso, o fascínio que os jovens de hoje em dia têm com a

Internet e com o Youtube em particular. Tal como eu há quinze

anos, também eles hoje fazem figura de parvo e gravam isso

para a posteridade. O que distingue uma geração de outra, no

entanto, é a partilha. Nós gravávamos para nós, para o grupo e

amigos próximos do grupo; eles gravam para o mundo.

Naquele tempo não havia Internet como há hoje. Eram

tempos em que um download de 50 megas era coisa para levar

seis meses ou mais. Mas só não ajuda a explicar a propagação

do fenómeno. Podia não haver partilha online, mas partilha

offline sempre houve. Quantos de nós é que não levavam o

vídeo para a casa de amigos para gravar filmes do clube de

vídeo? Quantos de nós não gravávamos vinis para cassete e

depois fazíamos uma cópia num deck duplo? A partilha

sempre existiu. A razão de ser é que mudou.

O nosso processo era elaborado, baseava-se num guião e

havia preparação, o dos jovens de hoje é espontâneo. Pegam

numa câmara e vão, por assim dizer (ou mesmo literalmente),

para a estrada. Nós procurávamos a diversão e tentávamos

manter a coisa em privado. Não queríamos gente de fora a ver.

Os jovens de hoje apenas procuram a fama temporária, mesmo

que isso lhes custe a vida. Existem excepções, claro. Tal como

no meu tempo, também hoje existem jovens que procuram

gravar vídeos de humor de forma mais ou menos séria.

Infelizmente, não são esses que fazem manchete.

Jovens a morrer enquanto executam façanhas para as quais

Page 165: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 165

não estão minimamente preparados sempre houve. Sempre

haverá. O problema é que muitos dos jovens de hoje cometem

esses actos motivados pela popularidade que a Internet gera. E

eu não aprecio isso. Parece-me injusto acusar a Internet de ser

responsável quando situações semelhantes sempre ocorreram.

A busca pela fama faz parte do ser humano, o bom senso de

cada um é que deve estabelecer uma linha.

Uma vez contaram-me a história de um fotógrafo famoso

que resolveu saltar dum prédio e fotografar a sua própria

queda. Ele não sobreviveu, mas a foto ficou para a História

como símbolo de determinação. No caso dele não era o risco

que o motivava, era o registo dum momento único. Ele sabia

que ia morrer e estava disposto a isso. A sua última fotografia

é mundialmente famosa, mas daqui por uns anos quem se

lembrará dos jovens que entopem o Youtube com vídeos que

os deixaram marcados para a vida?

Page 166: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

166 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 274

BOM PORTUGUÊS

Sou só eu que ando lixado com o “Bom Português”? Até há

coisa de meses atrás, antes de se começarem a preocupar com

o Acordo Ortográfico, era uma rubrica interessante. Não só

dava a conhecer palavras pouco utilizadas da nossa língua,

como denunciava erros comuns do dia a dia. Sendo o

Português, tal como a Matemática, uma das disciplinas base da

aprendizagem escolar – e também uma das mais maltratadas –

qualquer programa que se prestasse à correcção da ortografia e

da gramática seria bem vindo. Tudo estava bem... até

descambar.

De rubrica didáctica e curiosa, o “Bom Português” passou a

manual do enfado. Eu percebo a necessidade de explicar às

pessoas como é que o Acordo Ortográfico funciona. Não que

isso as vá ensinar a escrever bem, mas enfim... Compreendo a

intenção e apoio-a. Mas é preciso ir tanto ao pormenor? Posso

não concordar com o Acordo Ortográfico, mas percebo as suas

regras principais. Palavras com consoante muda (óptimo,

director, Egipto) passam a ser escritas sem essa letra (ótimo,

diretor, Egito). Para quem passou a sua infância e boa parte da

sua juventude a ler banda desenhada brasileira, esta grafia não

me incomoda nada. Outra regra: palavras como egípcio,

factual ou opção escrevem-se tal como se dizem. Depois

temos os acentos, que ora se colocam, ora se tiram. Com maior

ou menor dificuldade, explicando bem a regra, basta um ou

dois exemplos para a coisa encaixar.

O que me irrita no “Bom Português”, contudo, é a

insistência. Parece que querem dar todos os exemplos

possíveis para cada regra. Aceito que é preciso insistir para

que as regras peguem. O problema é quando as regras não

fazem sentido. Quando as palavras têm dupla grafia, por

Page 167: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 167

exemplo. Aí todos acertam. Não sabem se estão a responder

bem ou mal porque ambas as respostas estão certas. O que é

que se aprende com isto? Nada.

Ou, pior, quando ninguém acerta e a jornalista vê-se

forçada a perguntar “Tem a certeza? Veja lá bem...” Só falta

dizer, “Vá, repita comigo.” Ditam as regras que a rubrica

encerre com um cidadão a enunciar a forma correcta de

escrever ou dizer certa palavra ou expressão. Graças às regras

algo estranhas e contraditórias do Acordo Ortográfico, boa

parte dos entrevistados adivinha à sorte; os restantes têm de

ser ensinados até acertarem.

O propósito continua a ser bom, apesar da parvoíce que o

circunda, mas penso que não se deveria limitar ao Português.

Seria bom, ainda para mais agora que temos um Matemático

como Ministro da Educação, que o “Bom Português” ganhasse

uma irmã sexy chamada “Matemática Boazuda”.

Começaríamos pela base. “2+2=?” e depois iríamos para a

tabuada. A criatividade não está apenas nas palavras, está

também nos números. As estatísticas do sucesso escolar assim

o demonstram.

Page 168: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

168 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 275

BIPOLARISMO POLÍTICO

Alguém me sabe dizer qual é o partido com que o CDS-PP

está coligado no Governo? Por acaso tem alguma coisa a ver

com o partido que está no poder do Governo Regional da

Madeira há mais de trinta anos? Reparem que eu não sou por

um ou por outro; só estou a perguntar.

O Paulinho das feiras deu um saltinho à Madeira para

comparar Alberto João Jardim a José Sócrates. Acho estranho

que ele tenha lá ido fazer um discurso de cinco minutos para

depois regressar logo ao continente. Sempre julguei que o

zapping desse até meia hora.

Ora bem, à primeira vista diria que não há com que

comparar Alberto João Jardim e José Sócrates. Mas basta

olharmos com alguma atenção para percebermos as

semelhanças. Para começar, ambos são políticos e ambos têm

PSD como matriz ideológica. Se os observarmos com ainda

mais atenção, percebemos um comportamento padrão. Quando

acusados de algo, é costume tentarem desviar as atenções

dizendo que os seus acusadores estão a acusá-los para tentar

desviar as atenções. A chamada campanha negra. É

complicado, mas isto da política não é para todos.

Paulo Portas acusou Alberto João Jardim de ser despesista

como Sócrates. Por outras palavras, o PSD Madeira é igual ao

PS do continente. O problema, quer queiramos quer não, é que

o PSD Madeira faz parte do PSD do continente. O que é o

mesmo que dizer que o PSD do continente é o mesmo que o

PS do continente e eu não acho que seja correcto comparar

Pedro Passos Coelho a António José Seguro. É verdade que

ambos começaram nas Jotas dos seus partidos, é verdade que

Seguro, tal como Passos Coelho quando estava na oposição,

tem o hábito de mudar de opinião a cada almoço que realiza,

Page 169: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 169

mas só isso não chega.

Faz-me confusão, embora não tenha nada a ver com isso, o

nível de esquizofrenia com que os líderes políticos

estabelecem e desfazem alianças. Que o adversário de ontem

seja um aliado hoje contra um adversário mais perigoso, como

costuma acontecer nas Presidenciais, entende-se. É uma

aliança temporária para evitar um mal maior. Custa-me a

perceber, no entanto, que o adversário de hoje seja também o

aliado de hoje. Talvez seja bipolarismo político.

E no fim de contas isto resulta no quê? Em nada. Basta ver

quem ganhou as eleições no passado Domingo.

Page 170: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

170 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 276

CRITÉRIO SEGURO

Numa intervenção recente o secretário-geral do PS, António

José Seguro, afirmou não aceitar a redução do número de

freguesias no Interior do País com base no critério do número

de habitantes. Acho bem. Vindo de quem vem, provavelmente

terá dito o contrário ao jantar, mas concordo com as razões

desta sua recusa.

Extinguir freguesias, anexando rivalidades e ódios

históricos só por causa dos números é um erro crasso. Qual é o

mal de ter freguesias com 150 habitantes ou menos? Para mim,

que andei a percorrer Portugal de lés a lés e vi como é que o

País (não) funciona, não vejo qualquer problema nisso.

Consideremos, por exemplo, a freguesia de Fajão na

Pampilhosa da Serra. De acordo com os Censos de 2001, esta

freguesia tem 295 habitantes. Será isso razão suficiente para

anexá-la à freguesia do Macchio (146 habitantes) e à freguesia

do Vidual (93 habitantes)? Se a iniciativa partir dos habitantes

e todos estiverem de acordo que é o melhor a fazer, não tenho

nada contra. Mas não obriguem as pessoas a isso.

Principalmente com base no critério dos números.

Se tiverem que utilizar algum critério, podem dizer que a

redução do número de freguesias e concelhos é uma das

contrapartidas do empréstimo que fizemos à troika. Podemos

não concordar com isso, mas não podemos dizer que é uma

desculpa não-existente.

A certa altura utilizou-se o argumento “A estas pessoas já

tiraram o professor, o médico. Não lhes deixem tirar o

presidente da Junta.” Porque não? Em que medida é que

perder um presidente da Junta é o mesmo que perder um

médico ou um professor? Se alguém ficar doente ou

analfabeto, não é um presidente da Junta que vai ajudar. A não

Page 171: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 171

ser que seja médico ou professor.

Sejamos honestos, praticamente todos nós somos a favor da

união ou extinção de freguesias e concelhos. Quando

apresentada a ideia, até somos capazes de dizer “Hum... Juntar

freguesias com número reduzido de habitantes para poupar

recursos? Não está mal pensado, não senhor.” No entanto, a

conversa muda de figura assim que percebemos que a nossa

freguesia, o nosso concelho, é um dos visados pela medida. “O

quê? Nem pensar! Nunca na vida os habitantes de Boi Coxo se

juntarão com esses atrasados mentais de Cabra Manca!

E a identidade histórica destas pessoas? Alguém pensa

nisso? António José Seguro pensa. Ele sabe que uma forma

segura de conquistar apoios é apelar ao bairrismo de cada um.

Tanto faz que seja no Interior ou no Litoral. As ideias são

sempre todas boas... desde que sejam para os outros.

Page 172: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

172 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 277

HISTÓRIAS DE (DES)ENCANTAR

Era uma vez um menino chamado Pedrito. O Pedrito era muito

traquinas, mas era um bom menino. Cumprimentava as

pessoas e dizia “por favor” e “obrigado”. Durante o dia,

enquanto os pais estavam a trabalhar, o Pedrito ia para uma

Creche muito bonita e colorida. O Pedrito tinha muitos

coleguinhas nessa Creche, com os quais brincava o dia todo.

Todos os dias, ao final da tarde, o pai ou a mãe do Pedrito

iam buscá-lo à Creche. Depois duma boa banhoca e dum

delicioso jantar, o Pedrito ia para a cama fazer óó. Antes de

adormecer, o Pedrito gostava sempre de ouvir uma história de

encantar. O pai ou a mãe diziam-lhe então para ele escolher

que história ele queria ouvir.

O Pedrito tinha um quarto muito grande, com muitos e

muitos livros. O Pedrito gostava de todos os livros que tinha.

Mas só havia um que ele gostava de ouvir antes de fazer óó.

Apesar de já saber a história de cor e salteado, o Pedrito não

escolhia outro livro senão aquele e os pais não insistiam.

Apoiavam o filho nessa escolha e sentavam-se ao seu lado

para contar essa tal história.

E a história dizia assim:

Há muito, muito tempo, numa ilha muito distante, vivia um

rei que se gostava de vestir de Carmen Miranda e de Pipa (de

vinho, não diminutivo de Filipa, embora quem se vista de

Carmen também se possa vestir de Filipa). Nessa ilha viviam

muitas pessoas, muitos animais e também o rei. A ilha era

muito bonita e as pessoas gostavam de viver lá, mas o rei

nunca estava satisfeito.

De vez em quando as pessoas tinham de dizer se gostavam

daquele rei ou se queriam outro. Como a ilha era muito

grande, o rei enviava carroças a casa de todas as pessoas que

Page 173: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 173

moravam longe. Àquelas que ficavam satisfeitas com este

gesto de boa vontade do rei dizendo que queriam que ele fosse

rei por mais quatro anos, o rei dava-lhes boleia de volta para

casa. As outras iam a pé.

A cada convocação, as pessoas apareciam para dizer que

queriam que o rei ficasse. E todas podiam voltar para casa,

manter os empregos, não perder pensões ou subsídios ou não

cair, sem querer, duma ravina abaixo.

As pessoas voltavam às suas vidas e o rei sentava-se no

trono porque ele era bom para as pessoas e as pessoas eram

boas para ele.

Quando acabava a história, o Pedrito já dormia

profundamente. Com muito cuidado, o pai ou a mãe pousava o

livro na estante e saía do quarto de mansinho. Na sala

encontrava-se com a sua cara metade e suspirava:

“Porra que já não posso mais com esta história! Ainda

gostava de saber quem foi a besta que decidiu escrever um

livro infantil com base nas eleições na Madeira.”

Page 174: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

174 PROTUBERÂNCIA – Volume III

TERMINUS 278

CULTURA, SUBSÍDIOS E OUTRAS CENAS

Há uns meses atrás resolvi concorrer ao Programa de Apoio

à Escrita de Argumentos para Longas Metragens de Ficção

promovido pelo ICA. Foi a primeira vez que concorri a tal

concurso e, embora não tenha sido contemplado com nada, a

experiência não foi tão má quanto isso.

Não muito tempo depois de apresentar a minha

candidatura, recebi (eu e os restantes candidatos) as avaliações

do júri. Tendo tempo para as contestar, não o fiz. Com base

nos critérios de avaliação e nas suas notas, a avaliação que

faziam do meu trabalho era justa.

Dos que venceram, apenas conheço o trabalho de um deles

e já o congratulei por isso; dos restantes, há um em particular

que merece um olhar mais aprofundado: João Canijo.

João Canijo irá receber 9500€ para escrever um guião para o

seu próximo filme intitulado "Fátima". À partida, esta

informação parece ficar por aqui. Ele candidatou-se a um

subsídio para escrever um argumento, recebeu o subsídio e

agora vai escrever o argumento.

O João Canijo tem um filme nas salas de cinema ("Sangue

do Meu Sangue") de que toda a gente anda a falar. Confesso

que me estou a mentalizar para o ir ver mas, por enquanto,

ainda não consegui ultrapassar a inovação da narrativa que é

aquele trailer com a Rita Blanco.

Rita Blanco, numa entrevista recente ao Jornal I, falou

deste filme, como decorreram as filmagens, o modo de

trabalhar do realizador, a forma como desenvolveu a

personagem e o processo de criação da história. Foquemos-nos

nos últimos aspectos que são aqueles que me dizem mais

respeito.

Em primeiro lugar, não cabe à actriz desenvolver a

personagem, cabe ao argumentista. Dito de outra forma, a

Page 175: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 175

actriz pode trabalhar no perfil e características que o

argumentista apresenta, pode apresentar sugestões, melhorar

alguns aspectos, corrigir outros, eliminar outros, etc. O que

não pode acontecer, como é mencionado na entrevista é isto:

O seu papel é o da Márcia, a mãe. A

personagem foi criada por si?

O João Canijo disse-me para inventar uma

situação em que pudéssemos ir ao encontro do que

queríamos. Inventei e, até certa altura, ele não

percebia porque é que eu queria esta história.

Discutimos muito, mas lá nos explicámos e

percebemos que fazia sentido para os dois. E para

todos os outros actores. As personagens foram

entrando e, cada uma, adaptando-se às histórias.

O filme construiu-se neste puzzle.

Não é actriz que cria a personagem! É o argumentista! A

actriz deve-se "limitar" a dar corpo à figura que vem no papel.

Depois temos o processo de criação. Um filme, seja ele curto

ou longo, é feito, deve ser feito, com base num guião. Guião

esse que habitualmente é escrito antes do filme ser realizado.

Em 2007 João Canijo foi contemplado com um subsídio do

ICA no valor de 10.000€ para escrever o argumento para este

filme. Um argumento, para quem não sabe, deve ter a história

do filme, desconstruída cena a cena, com os respectivos

diálogos. Ora, como se poderá ler pela já mencionada

entrevista à protagonista do filme, o filme foi feito com

ensaios e improvisos, não com um guião. Aos actores não era

dado um perfil para trabalharem, era-lhes dito "Tu hoje vais

ser um gajo de óculos!", ou "Agora faz de conta que 'tás

constipado!".

Onde é que eu quero chegar com isto? Pretendo contestar a

decisão do ICA de atribuir um subsídio de apoio à escrita de

um guião a quem depois não escreve nada? Não exactamente.

Apenas pretendo perceber o que se passou.

Page 176: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

176 PROTUBERÂNCIA – Volume III

Uma das cláusulas impostas aos vencedores é a

obrigatoriedade de apresentar um guião, sob pena de lhes ser

retirado o subsídio. Considerando isto e o que é mencionado

na entrevista, temos três hipóteses à escolha. A primeira é:

João Canijo não escreveu o argumento contratualizado e teve

de devolver o dinheiro; a segunda: João Canijo escreveu o

argumento contratualizado, mas ficou tão mau que resolveu

fazer o filme sem ele; terceira: João Canijo não escreveu o

argumento contratualizado e não teve de devolver o dinheiro.

Recapitulando, em 2007 João Canijo recebeu 10.000€ do

ICA para escrever um guião para o filme "Sangue do Meu

Sangue". De acordo com Rita Blanco, a protagonista do filme,

este foi feito sem guião. Em Junho de 2011, o ICA decidiu

atribuir 9.500€ a João Canijo para escrever o argumento para o

seu próximo filme, "Fátima."

Conclusões? É melhor não. Mas posso deixar aqui um

"cheirinho" daquilo que me parece que vai ser este argumento.

FÁTIMA

Um filme de João Canijo

Cena 1 – Filmar peregrinos

Cena 2 – Falar com peregrinos

Cena 3 – Filmar Santinhas

Cena 4 – Filmar velinhas

Cena 5 – Pôr música sacra na banda-sonora

Cena 6 – Pedir a outra pessoa que escreva o

guião

Page 177: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 177

TERMINUS 279

CONFIANÇA

Quando se está afastado algum tempo é sempre difícil

encontrar o tema certo para abordar num artigo de análise.

Felizmente temos o Expresso, esse jornal grande, onde se

encontra sempre qualquer coisa.

No site do Expresso (são oito da manhã, está a chover

como o caraças, ainda não saí de casa e não vou sair só para ir

comprar o jornal) vinha hoje (dia 9 de Novembro) uma

pequena... peça informativa sobre a relação de confiança que

nós temos com as instituições conotadas com o Governo.

O artigo, apesar de pequeno (tem apenas três parágrafos),

possui uma complexidade de ideias tão bizarras que quase que

parece que é sério. Tão sério que me atrevo a dizer que se isto

fosse um estudo elaborado por algum instituto público, o mais

certo era fechar portas depois. Como é só uma opinião, o

máximo que conseguimos é colocar alguém a fazer transfusões

de sangue sob a vigília de Leonor Beleza. Já lá vamos, calma.

Diz então o sociólogo José Manuel Mendes que nós

desconfiamos, ou temos pouca confiança nas instituições

ligadas ao Governo. Excepção feita àquelas ligadas à

protecção e socorro. Subscrevo mais ou menos. Basta pensar

nas inundações que acontecem todos os anos assim que

começa a chover, ou nos incêndios que arrasam o país, ou no

quizz a que é preciso responder sempre que se chama uma

ambulância para nos apercebermos que a nossa confiança

nestas instituições é um bocado como dar dinheiro a um

arrumador para que não nos risquem o carro.

No entanto, apesar destas falhas, depositamos mais

confiança nas instituições ligadas à protecção e ao socorro do

que nas outras. Porquê? O Instituto Português do Livro e da

Biblioteca, o organismo que tutela as bibliotecas públicas, tem

Page 178: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

178 PROTUBERÂNCIA – Volume III

feito um bom trabalho. Talvez não tenha sido perfeito para

todos, mas se nos lembrarmos como eram as bibliotecas há

vinte, ou mesmo dez anos, e como são agora, a diferença é...

colossal.

O que é que nos faz confiar nesta gente? Diz José Manuel

Mendes que em Portugal "não houve nenhum episódio que

desconstruísse a confiança das pessoas" como aconteceu

noutros países da Europa, com o sangue contaminado.

A resposta de José Manuel Mendes é simples e elucidativa.

O complemento que se segue à citação é que não sei se

pertence ao próprio ou se foi alguém que não estava cá nos

anos 80 que acrescentou.

Caro José Manuel Mendes, ou outra pessoa que diz

basearmos a nossa confiança nas instituições públicas de

protecção e socorro no facto de, em Portugal, não ter havido

nenhum caso de sangue contaminado, só vos digo isto: vão ao

Google e pesquisem por “hemofílicos + Leonor Beleza”. Não

se resolveu, apenas prescreveu. Como é tradição. E nem

sempre as tradições são de confiança.

Page 179: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 179

TERMINUS 280

QUANTAS VEZES?

Quantas vezes é que, na estação de Metro do Marquês de

Pombal, na Linha Azul, é proferido o seguinte aviso: “Atenção

ao intervalo entre o cais e o comboio”? Antes de responder a

esta questão, importa analisar o aviso e as circunstâncias em

que o mesmo é dito.

Em primeiro lugar, a distância que vai do cais ao comboio

nesta estação é igual a todas as outras. Não andei a medir, mas

quer me parecer que a necessidade de um aviso de segurança

só seria justificável se estivéssemos a falar de diferenças

verificáveis a olho nu. Milímetros, parafraseando o outro, são

pintelhos.

Temos depois a questão das circunstâncias. O aviso é dito

apenas numa estação e, dentro dessa estação, apenas na Linha

Azul. Se não é possível identificar as razões por detrás disto, é

possível apontar as consequências.

Por norma, o aviso deveria ser feito em todas as situações –

neste caso, em todas as estações – ou, em alternativa, na

presença duma série de critérios, facilmente observáveis, que o

justifiquem. A exclusividade deve ser, por isso, apenas

aplicada quando há uma distinção inequívoca entre o caso ou

casos em questão e todos os demais.

Implantar uma diferença ou sugerir uma cautela numa

estação, numa linha, em deterimento de todas as outras, é

influenciar as pessoas a que só tomem cuidado naquele caso

em especial e se desleixem nos restantes.

Ainda por cima estamos a falar duma distância que para

cair lá para dentro é preciso ser-se subnutrido ou, mais magro

ainda, uma top-model. Pessoas normais não caem ali. Podem

tropeçar, mas tropeçam mais vezes devido aos empurrões nas

entradas e saidas do que àquele espacinho entre o cais e o

comboio.

Page 180: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

180 PROTUBERÂNCIA – Volume III

A solução? Dar o aviso em todas as estações e em todas as

linhas. Ou não avisar em nenhuma e colocar autocolantes nas

portas. O aviso para não forçar as portas é accionado pelo

condutor da composição apenas quando este decide. Na

maioria das vezes, o autocolante é aviso suficiente.

Na estação do Marquês de Pombal, como se não bastasse

avisar uma vez, avisam quatro, cinco e seis. O metro já vai na

Pontinha e ainda estão avisar os passageiros que saíram e

entraram no Marquês de Pombal para terem cuidado.

A resposta à pergunta inicial, “Quantas vezes é que, na

estação de Metro do Marquês de Pombal, na Linha Azul, é

proferido o seguinte aviso: “Atenção ao intervalo entre o cais e

o comboio”?” só pode ser, portanto: DEMASIADAS.

Page 181: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 181

TERMINUS 281

UMA (ENGRAÇADA) IDA ÀS FINANÇAS

Gosto de ir às Finanças. Muita gente detesta ter de ir às

Finanças, mas eu não. Eu gosto mesmo de ir lá. E gosto

particularmente quando tenho de ir lá sem razão. Há alturas

em que preciso ir lá, há outras em que vou lá só para dar um

“olá” e depois vou à minha vida. Mas as alturas que eu gosto

mesmo mesmo de ir é quando não deveria ter de ir.

Nomeadamente, quando recebo a cartinha em casa com uma

coima choruda para pagar.

Já tenho recebido dessas cartinhas em casa – quem não

recebeu? – e é com um grande sorriso que vou à Repartição

mais próxima efectuar o pagamento. Poderia ir a um

Multibanco, ou pagar via Internet, mas o estar à espera para

dizer que se quer fazer o pagamento e depois esperar

novamente para pagar de facto é outra alegria. Principalmente

quando sou atendido por alguém carrancudo. Acredito que a

minha boa-disposição ao sair dali terá contribuído para

melhorar o estado de espírito de quem me atendeu.

Sempre que recebo uma cartinha das Finanças em casa sou

logo tomado duma grande ansiedade. A maior parte das vezes

são cobranças justificadas – tipo não assinalar a alínea c) do

número 17 do impresso 24, que refere o desejo de não ser

cobrado indevidamente – e, por isso, sem surpresa. De vez em

quando, a surpresa surge e sou intimado a pagar dívidas

contraídas por pessoas com nomes parecidos ou iguais aos

meus.

Já vos aconteceu isto? É tão bom, não é? Ao menos não nos

trocaram o nome todo, foi só uma parte. A bem da verdade,

confesso que tal situação nunca me aconteceu. Com grande

pena minha. Só me leva a crer que a minha combinação de

nomes e apelidos encontra poucos exemplares no nosso país.

Imagino que seja uma situação povoada de momentos de

Page 182: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

182 PROTUBERÂNCIA – Volume III

grande comicidade. O senhor Arlindo Batata recebe uma

notificação das Finanças para efectuar o pagamento duma

coima de 300 euros. No dia seguinte outra notificação, desta

vez relativa a uma coima de 413 euros. E por aí fora. Ao fim

de cinco dias consecutivos de coimas, o senhor Arlindo Batata

começa a achar que aquilo não é normal e resolve ir às

Finanças.

O senhor Batata vai para lá logo de manhã e, após esperar

três horas na fila errada, lá tira a senha certa e consegue ser a

terceira pessoa a ser atendida depois de almoço. O simpático

funcionário limita-se a dizer que ali não podem fazer nada,

apenas cobrar. Se o senhor Arlindo não pagar a dívida, o seu

ordenado será penhorado.

O senhor Arlindo Batata esclarece que as notificações

foram enviadas para o contribuinte errado, um tal Arlindo

Batata-Doce, mas esse esclarecimento cai em saco roto. Ou

paga ou fica sem ordenado. O senhor Arlindo Batata decide

então perguntar se as Finanças lhe irão providenciar trabalho,

na medida em que ele está desempregado e não dispõe de

ordenado para ser penhorado.

As Finanças riem-se.

Page 183: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

Joel G. Gomes 183

TERMINUS 282

O TERCEIRO F

Dos três grandes Fs que compõem a nossa identidade nacional

– Fátima, Futebol e Fado – havia um que, embora não

esquecido, era o menos divulgado dos três. Essa lacuna chegou

finalmente ao fim com a eleição do Fado como património

imaterial da humanidade. E assim como o futebol e Fátima nos

têm proporcionado momentos de grande relevância

informativa – os directos de Centros de Estágio da Selecção

onde um repórter tenta adivinhar a equipa e a táctica que o

seleccionador vai usar, as perguntas aos peregrinos a caminho

do santuário, “Vai porque tem fé, não é?”, “Não, vou porque

não tenho carro.” - não tardou muito para que o mesmo

acontecesse com o Fado.

Eu previ, embora não se possa dizer que tenha sido uma

grande previsão, que com esta vitória não tardariam a surgir

reportagens e programas especiais sobre Fado. Já para não

falar de todos aqueles que, dum dia para o outro, passaram a

adorar o fado. (Pessoalmente, não gosto nem desgosto. Não

sou de géneros, sou de músicas. Se gostar da música, não me

interessa que seja fado, trance, pimba, ou rock.)

Um dos primeiros programas a comprovar a minha teoria

do ridículo foi uma entrevista a Celeste Rodrigues, emitida no

passado Domingo na RTP 1. De forma a demonstrar o justo

agradecimento aos fadistas que mais têm trabalhado nos

últimos anos, não apenas por esta candidatura recém-

vencedora, mas pela divulgação do fado a nível internacional e

pela sua expansão a novas linguagens musicais – entre outros,

Carlos do Carmo, Mariza e Camané – a RTP decidiu

entrevistar a fadista Celeste Rodrigues. O erro de casting,

chamemos assim, não tem que ver com a escolha da

entrevistada. Celeste Rodrigues é uma fadista com uma longa

Page 184: PROTUBERÂNCIA · 2016-07-28 · 6 PROTUBERÂNCIA – Volume III Paremos um pouco com a brincadeira, porque este é um assunto sério, e passemos à parte delicada da questão. Eu

184 PROTUBERÂNCIA – Volume III

carreira e, embora não seja tão mediática como os fadistas já

referidos, certamente que tem algo a dizer sobre este

reconhecimento do fado. No entanto, o canal de todos os

portugueses não quer saber da opinião da pessoa viva e com

carreira que está no estúdio.

A entrevista começou bem, com a entrevistadora a dar as

boas noites à entrevistada. A partir daí, descambou. “Celeste,

se a irmã fosse viva o que diria ela acerca disto?”

Não obstante a falta de respeito demonstrada para com que

todos aqueles que desempenharam um trabalho imenso nestes

últimos anos pelo crescimento do fado, e naquele momento em

particular por Celeste Rodrigues, há que perceber isto duma

vez por todas: a Amália morreu aos 79 anos. E num mundo

real, a partir do momento em que as pessoas morrem, a

relevância informativa deste tipo de perguntas é zero.

Mas para fins de exercício especulativo, façamos uma

excepção. Se a Amália fosse viva teria hoje 91 anos e, sabendo

a tendência que muitos fadistas têm pela copofonia, não sei se

iríamos escutar uma opinião muito lúcida. Porque, quer

queiramos quer não, os ídolos caem, extinguem-se.

Principalmente quando puxamos muito por eles. Amália tem e

terá sempre o seu valor, mas no presente, na realidade, seria

melhor que guardássemos estas indagações para quando

fôssemos à bruxa. O Fado é um dos três Fs, mas não o

tratemos como o Futebol ou Fátima. Tratemo-lo com mais

respeito.

FIM DO VOLUME III