Prudência e jurisprudência

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Prudncia e Jurisprudncia uma reflexo epistemolgica sobre a jurisprudentia romana a partir de Aristteles Luis Fernando Barzotto O conhecimento do direito que caracteriza o jurista segue chamando-se com boas razes jurisprudncia, literalmente, prudncia jurdica. Esta palavra recorda ainda o legado da filosofia prtica, que via na prudentia a virtude suprema de uma racionalidade prtica. O fato de que a expresso cincia do direito tenha prevalecido a partir do final do sculo XIX indica a perda da idia de uma peculiaridade metodolgica deste saber jurdico e de sua definio prtica. Hans-Georg Gadamer O direito romano parece surgir na histria como a aplicao da doutrina aristotlica. O renascimento do direito romano na Europa a partir do sculo XIII estar ligado ao renascimento de Aristteles. Michel Villey 1 INTRODUO No foi o acaso que fez os romanos, os inventores da cincia do direito, a chamar a sua disciplina de jurisprudentia (a prudncia do direito) e o jurista de prudens (prudente). A influncia grega se faz sentir aqui. Como os romanos no eram dados a abstraes, nunca criaram uma teoria da cincia jurdica, que explicitasse a sua natureza e funo. Em parte, verdade, isso no se fazia necessrio, uma vez que o que pretendiam expressar como termo prudentia no era seno uma traduo do termo grego phronesis. Esse, em toda cultura grega, de Homero a Aristteles, pretende designar um tipo de saber que orienta a ao (prxis), sendo, portanto, o prudente (phronimos) aquele que sabe agir, que sabe tomar as decises corretas nas diversas situaes da vida humana. O conceito grego de phronesis (prudncia) origina-se na cultura popular grega, e podemos encontrar vestgios dele em Homero, na religio dlfica e nas tragdias. Ele encontra o seu sistematizador em Aristteles. Para examinar o pensamento deste ltimo, necessrio proceder a uma anlise do termo phronesis na cultura grega, segundo a advertncia de Jaeger: Nenhuma filosofia vive da pura razo. Ela apenas a forma conceitual e sublimada da cultura e da civilizao, tais como se desenrolam na histria. 2 OS PRECURSORES DE ARISTTELES 2.1 O conceito de phronesis na cultura grega 2.1.1 Homero Homero teve um papel mpar como poeta. No era sem motivo que ele era denominado o educador da Hlade. Homero era invocado como autoridade em todas as questes, especialmente naquelas que diziam respeito moral e religio. Em Atenas, a Ilada e a Odissia eram memorizadas pelos jovens, determinando todo o vocabulrio moral, poltico, esttico e religioso. Nesse contexto, os conceitos filosficos no escaparam influncia homrica. em Homero, portanto, que deve iniciar a tentativa de determinao do conceito de prudncia. Embora Homero no utilize o termo phronesis na Ilada, nela esto presentes termos da mesma raiz, como sophrosyne (moderao) e euphronein (pensar corretamente). Na Odissia j se encontra o termo phronis, a forma primitiva do termo phronesis. Em todos os casos de uso dos termos desta famlia, o que est em jogo a atitude da pessoa diante do papel social que lhe cabe desempenhar. Isso relevante se atentarmos que, para Homero, a ordem social faz parte da ordem csmica, e essa ordem conservada quando cada um cumpre de

um modo adequado a sua funo. Aquele que no se atm ao seu papel, comete a hybris (o excesso, a desmedida), comprometendo a ordem e acarretando o castigo. O homem prudente aquele que conhece os deveres relativos posio que ocupa na ordem social, sabendo, portanto, como agir em conformidade com as exigncias do seu papel social nas diversas situaes concretas. O modelo de homem prudente para Homero Nestor, rei de Pilos. Nestor o mais velho dos gregos, um ancio que sobre a terceira gerao reinava (Ilada I, 245). Pela sua experincia, considerado o melhor dos gregos no conselho, assim como Aquiles o melhor na guerra. No conflito entre Agamemnon e Aquiles, que abre a Ilada, Nestor aquele que aponta a causa do conflito: a desero em relao aos deveres da sua funo. Agamemnon, apropriando-se da escrava de Aquiles, transgride a funo de um rei, a saber, governar com justia; Aquiles, mostrando insubordinao e abandonando a batalha, transgride a funo do soldado, obedecer ao chefe. Nestor aconselha a Agamemnon que no tome a escrava de Aquiles e a esse que no desobedea ao comandante-em-chefe dos gregos. Homero afirma de Nestor que esse pensa bem, euphronein (Ilada, I, 253), na medida em que conhece o papel que cabe a cada um. Tambm na Odissia (III, 244), Telmaco afirma que deve buscar o conselho de Nestor, pois ele mais do que os outros, possui justia e prudncia (phronis). Homero inaugura, portanto, a idia de um saber prtico, nascido da experincia, que permite ao homem conhecer seu lugar na ordem do mundo, orientando-o nas suas decises concretas. 2.1.2 A religio dlfica Como em qualquer anlise da filosofia grega, tambm aqui se faz sentir a solidez da opinio de Jaeger: Devemos encarar a histria da filosofia grega como o processo de racionalizao progressiva da concepo religiosa do mundo implcita nos mitos. De fato, o exame do conceito de prudncia no deve descuidar a doutrina ligada ao culto de Apolo, o deus do sol, da luz e da clareza racional, no santurio de Delfos, desde o sculo VIII a.C. A sntese desta doutrina encontra-se nas mximas gravadas no prtico do templo de Apolo: Conhece-te a ti mesmo e Nada em excesso. A mxima Conhece-te a ti mesmo convida o homem a proceder a um exame de si, no de um modo introspectivo, mas tomando conscincia do seu lugar na ordem csmica, como em Homero. Deste modo, o seu sentido pode ser enunciado assim: Lembra-te que s um mortal ou No ultrapasses a medida do humano, ou ainda Lembra-te dos teus limites, tu, um mortal. Ao homem lembrado o fato de que encontra-se inserido em uma ordem que no obra sua, da qual ele apenas uma parte que deve adequar-se ao todo. O homem que conhece a si mesmo e, portanto, est consciente dos limites impostos pela sua condio humana, pensa as questes prticas de um modo correto, consegue apreender o que deve fazer. Segundo Aubenque, ele pensa de um modo correto, pensa sensatamente porque pensa humanamente, afastando a tentao do sobre-humano, adaptando seu comportamento a uma ordem anterior e superior a ele. A mxima Nada em excesso recorda o carter objetivo da ordem e a necessidade de conformar-se a ela, ao mesmo tempo em que convida o homem a buscar conhecer a justa medida da ao, e nunca transgredi-la, guardando-se da hybris. Esse ideal expresso pelo termo sophrosyne, a moderao, o respeito aos limites, evitando o desejo de se ter mais que a sua parte (pleonexia), curvando-se ordem do mundo. A religio de Delfos contribui para a formao do conceito de prudncia com duas noes expressas por termos da mesma raiz lingstica de phronesis: phronein, o respeito aos limites, e sophrosyne, a busca do equilbrio entre os extremos. O termo phronesis vai incorporar estas duas noes. 2.1.3 A contribuio dos trgicos poca em que escreve squilo (525-456 a.C.), o termo phronesis j corrente. squilo

tem uma f cega na ordem do mundo. Para ele, como para Homero e a tradio popular, a phronesis consiste em respeitar os limites impostos pela ordem divina e no ultrapassar a medida do humano. Na tragdia Os Persas, o fantasma de Dario reprova nestes termos a atitude do exrcito do seu filho Xerxes, que pilhou os templos ao invadir a Grcia: Montes de cadveres, at a terceira gerao, indicaro sem palavras aos olhos dos mortais que quando se mortal no se deve abrigar pensamentos que ultrapassem a prpria condio (...). Acima est Zeus, juiz rigoroso, que castiga os pensamentos soberbos. Em conseqncia, porque Xerxes no tem prudncia, levai-o razo por prudentes conselhos, a fim de que deixe de ofender os deuses com uma audcia cheia de insolncia. Mas Sfocles (496-406 a. C.), entre os trgicos gregos, aquele que insiste de modo mais veemente na prudncia como obedincia aos mandatos que cristalizam a ordem do mundo. A sua tragdia mais clebre, Antgona, pode ser lida como uma advertncia catstrofe provocada pela ausncia de prudncia no agir. De fato, a tragdia est mais centrada no tirano Creonte do que propriamente na herona Antgona. Ao condenar esta ltima morte, por ter enterrado o irmo traidor da ptria, Creonte rompe com a ordem do mundo, porque Antgona agia em conformidade com as leis divinas, no escritas, inevitveis. Agir com prudncia saber o que a ordem do mundo exige em cada situao. A imprudncia de Creonte no est, como pensam alguns intrpretes, em ter transposto as fronteiras da vida ao condenar um morto. A ordem de Creonte, no horizonte grego, perfeitamente aceitvel: o direito penal ateniense conhecia a pena de privao de sepultura. O erro de Creonte foi punir algum que tinha o dever religioso de enterrar seus familiares. Ele no consegue discernir que nesse caso, a pena no deve ser aplicada. Aqui est o ato de hybris de Creonte, que leva catstrofe. No final da tragdia, seu filho, Hmon, noivo de Antgona, e sua mulher Eurdice, suicidam-se. Na ltima estrofe da pea, o coro lembra o papel central da prudncia na vida humana: A prudncia a primeira condio da felicidade. No se deve ofender os deuses em nada. A desmedida empfia nas palavras reverte em desmedidos golpes contra os orgulhosos e no seno na velhice, que eles aprendem afinal a prudncia. Os trgicos desenvolvem a noo de limite, limite que o prudente conhece e respeita. A tragdia nada mais do que a catstrofe ocasionada pela hybris, a transgresso dos limites imanentes da ordem csmica. A prudncia o conhecimento desses limites e das exigncias da ordem em cada situao. 2.2 O conceito de phronesis na filosofia grega A filosofia grega nasce como transcrio para linguagem racional da experincia religiosa da ordem do mundo. O mundo um cosmos, no um caos. Essa ordem abarca o mundo divino e humano. Em filosofia, a experincia da ordem ser pensada como a experincia da ordem do ser. Os filsofos da natureza (Tales, Anaximandro, etc) investigaram a ordem do Ser. Mas a sua viso do Ser estava separada do mundo humano. Segundo JAEGER, Herclito (Sc VI a.C.) o primeiro filsofo a utilizar o conceito de phronesis e o seu verbo correlato phronein (pensar sensatamente, pensar corretamente). Herclito o primeiro a deduzir as conseqncias da ordem do ser para a vida do homem. O termo phronesis vai expressar no seu pensamento o conhecimento das exigncias da ordem csmica para a prxis. A phronesis opera a medio entre a ordem do ser e a ordem que deve reinar no mundo humano. Para Herclito, a ordem do ser total, e os limites impostos por ela so intransponveis: O sol no ultrapassar seus limites; se isso acontecer, as Ernias, auxiliares da Justia, sabero descobri-lo. Nada, no mundo divino ou humano, escapa ordem do ser. O homem, pelo conhecimento dessa ordem e do seu lugar nela (autoconhecimento) ter o critrio para a sua ao: Pensar sensatamente (phronein) a mais alta virtude; e a sabedoria consiste em dizer a verdade e em agir conforme a natureza, ouvindo a sua voz. Esse conhecimento no est reservado a uma elite de filsofos, mas est aberto a todos: A todos os homens permitido o conhecimento de si mesmos e o pensar sensatamente (phronein). Aps Herclito, constata-se no ensinamento de Scrates que o conhecimento que este ltimo

identifica com a virtude seja precisamente a phronesis. Mas o seu conceito de prudncia no ser examinado, pelas dificuldades inerentes determinao do contedo do seu pensamento. Plato, por sua vez, prega o predomnio da razo teortica, a contemplao das Idias, em detrimento do conhecimento prtico. Da ser nula a sua contribuio para o tema. Aristteles o filsofo que retomar a investigao sobre o conceito de phronesis. 3 A TEORIA DA PRUDNCIA DE ARISTTELES 3.1 A tica aristotlica Como a maioria dos seus contemporneos, Aristteles aceitava o trusmo de que h uma ordem no universo. Sem transcender o horizonte de racionalidade imposto pela filosofia, Aristteles vai alm do senso comum, recusando uma explicao religiosa do fenmeno da ordem. A ordem presente no universo no a ordem imposta por Zeus, a ordem do ser. A ordem do ser para Aristteles uma ordem teleolgica, onde todos os entes tendem para o bem/fim que lhes prprio. Entre as causas que constituem todos os entes, a mais importante a causa final ou o bem (pois o bem o fim de toda gerao e de todo o movimento). sobre essa concepo metafsica que Aristteles edifica a sua teoria moral. A tica a Nicmaco inicia com a seguinte assero: O bem aquilo para o qual todas as coisas tendem. A partir do postulado metafsico de que o bem de uma coisa o seu fim (telos), Aristteles perguntase qual o telos da vida humana. O fim ou o bem supremo do homem a felicidade, a vida plenamente realizada segundo a razo (eudaimonia). Para alcan-la, o homem deve submeter seus impulsos e instintos orientao da razo, um esforo que implica o cultivo das virtudes morais (justia, coragem, temperatura, etc.). A tica aristotlica teleolgica: aquilo que colabora para o homem alcanar o seu fim deve ser evitado. Note-se que este fim objetivo, no estando ao arbtrio do sujeito determin-lo. O fim da vida humana est inscrito na ordem do ser, no podendo criar a sua ordem. Essa idia a anttese da idia moderna de autonomia moral. Para Aristteles, no o sujeito que pode dispor a seu arbtrio os critrios de correo moral. o telos objetivo do homem que determina o bem moral. Essa discrepncia entre a tica clssica e a tica moderna descrita por Lima Vaz nos seguintes termos: A tica moderna , assim, uma tica constitutivamente autnoma ao fazer do sujeito, em ltima instncia, o legislador moral, em contraste com a tica clssica, essencialmente ontonmica, pois nela o ser objetivo, mediatizado pela reta razo (orths lgos), a fonte da moralidade. necessrio frisar esse fundamento metafsico da tica aristotlica, sob o risco de no compreender o papel da prudncia (a reta razo), que no fundar o bem moral, mas descobri-lo na realidade. Mas o que bem moral? O bem moral consiste na ao virtuosa. Para Aristteles, nas aes ns podemos ter o excesso, a falta e o justo meio. A temeridade um excesso, a covardia uma falta e a coragem o justo meio. A ao virtuosa quando atinge o justo meio entre dois vcios. A ao virtuosa quando atinge o justo meio entre dois vcios. A ao virtuosa a ao nacional, elemento constitutivo da eudaimonia, a vida feliz. Obviamente, o justo meio no determinado aritmeticamente. A sua determinao envolve uma srie de questes: O justo meio consiste em fazer o que se deve, quando se deve, nas circunstncias em que se deve, s pessoas a quem se deve, pelo fim pelo qual se deve e como se deve. De fato, para alcanar a medida da ao que justo meio, necessrio um tipo de saber prtico, que determine, em cada caso concreto, qual o justo meio que deve ser realizado. Um tipo de saber que no esteja voltado determinao da essncia do bem (tarefa da filosofia), mas determinao do que o bem aqui e agora, considerando todas as circunstncias. Esse saber prtico a phronesis, a prudncia. 3.2 O conceito de phronesis

O conceito popular de prudncia tem dois elementos constitutivos: as noes de limite e de equilbrio, que se fundem na exigncia de moderao, de respeito medida. Aristteles recolhe essa tradio no seu conceito de prudncia, ao mesmo tempo em que determina qual a medida da ao: no o papel social como em Homero, nem a ordem instituda pelos deuses dos trgicos, nem a Idia do Bem de Plato. A medida da ao o justo meio. Ora, para realizar o justo meio preciso conhec-lo. por isso que a prudncia necessria, sendo o seu papel determinar o justo meio no caso concreto. Sem a prudncia, a virtude cega e pode levar s piores catstrofes: sob o pretexto de ser corajoso, eu seria temerrio e me perderia por nada. A prudncia se distingue assim do saber terico, que trata das realidades necessrias. A prudncia, por versar sobre a ao humana, tem como objeto o singular e o contingente. As concluses da prudncia no so universais e necessrias como as concluses do saber teortico (as concluses da matemtica so vlidas em toda a parte e sempre), mas so to contingentes como as situaes s quais ela se aplica (o que pode ser um ato de coragem em uma situao, ser um ato de covardia ou temeridade em outra situao). Aristteles tem o cuidado de distinguir a prudncia que caracteriza o homem de ao, da sabedoria (sophia), virtude do filsofo. Ao passo que seu modelo de prudente Pricles, o modelo que ele aponta de sbio so os filsofos Anaxgoras e Tales de Mileto. Deles diz Aristteles que possuem a sabedoria, mas no a prudncia, porque ignoram as coisas que lhes so convenientes, e ns reconhecemos que eles possuem um saber mpar, admirvel, difcil e divino, mas sem proveito, porque no so bens propriamente humanos que eles buscam. Sem proveito para eles, porque no os ensinava como agir nas circunstncias concretas da vida. Note-se a distncia que separa Aristteles de Plato: para este ltimo, somente o filsofo, pelo saber teortico advindo da contemplao das Idias, que sabe como dever agir. O modelo de homem prudente de Aristteles no o filsofo, mas o poltico e o chefe de famlia, tipos sociais envolvidos com problemas prticos: so prudentes Pricles e outros homens como ele (...) na medida em que so capazes de perceber aquilo que bom para eles mesmos e aquilo que bom para o homem em geral. Ora, so os chefes de famlia e os polticos que so capazes disso. A prudncia se distingue tambm do saber tcnico. O saber tcnico est voltado ao fazer, ao passo que o saber prtico da prudncia dirigi-se ao agir. A diferena est em que o fazer tem por fim produzir uma perfeio exterior ao agente (ex., escultura), ao passo que a ao (prxis) tem como fim a perfeio do prprio agente. Pratica-se um ato de coragem com a finalidade de portar-se de um modo virtuoso. O fim da ao est na prpria ao. Agindo-se deste modo, vive-se a vida boa para o homem, alcana-se a eudaimonia. A prudncia aplica-se, assim, s realidades tico-polticas: a prudncia tem por objeto as coisas justas, belas e boas para o homem. O processo deliberativo no qual a prudncia est engajada pode ser descrito como um silogismo prtico em que a premissa maior constituda pelo fim moral a ser realizado (o universal) e a premissa menor pela descrio adequada das circunstncias do caso (o singular), seguindo-se a ao devida como concluso. Ora, a formao deste silogismo demanda dois tipos de conhecimento: o conhecimento do universal e o conhecimento do singular: A prudncia no tem por objeto somente o universal, mas ela deve tambm conhecer os singulares, pois ela dirige a ao e a ao dirigi-se aos singulares. O universal aprendido diretamente pelo ensino, e o particular pela experincia. O raciocnio estar viciado se no se tem o conhecimento adequado do universal ou do singular: O erro pode dizer respeito seja ao universal, seja ao singular. Pois pode-se ignorar tanto que as guas pesadas so prejudiciais sade, como o fato desta gua aqui ser uma gua pesada. A inclinao empirista que domina a reflexo aristotlica mostra-se aqui em toda sua intensidade, quando afirma que o conhecimento do singular mais importante que o conhecimento do universal para a formao de um juzo prudencial correto: Ns devemos ter os dois conhecimentos, aquele do universal, e do particular, ou, se devemos escolher, de preferncia este ltimo. O exemplo que Aristteles fornece para provar esta sua tese bastante simples.

Imagine-se um doente com problemas de digesto e que, portanto, deve ingerir somente carnes leves. O silogismo prtico dever ter a seguinte estrutura: Carnes leves so de fcil digesto premissa universal. A carne de frango uma carne leve premissa singular. A carne de frango de fcil digesto concluso. Aquele que conhece a premissa universal, mas no sabe que a carne de frango uma carne leve, est menos apto ao do que aquele que sabe, por experincia, que a carne de frango uma carne leve. Ou seja: o conhecimento do singular que provm da experincia suficiente para poder bem agir, ao passo que o conhecimento do universal aprendido pelo ensino insuficiente. Somente o saber que tem sua origem na experincia pode satisfazer a exigncia fundamental de todo saber prtico, dar conta dos detalhes da situao: Se aquilo que bom para o homem s parece na concretude da situao prtica na qual ele se encontra, ento o saber moral deve compreender na situao concreta o que que esta exige dele (...). Da a importncia dada por Aristteles experincia como meio de aquisio da prudncia. por isso, afirma ele, que um jovem no pode ser prudente, pois lhe falta a experincia. O jovem pode ser um grande matemtico, pois isso no requer experincia, pois a matemtica trata do universal, ao passo que a prudncia exige o conhecimento do particular. Aristteles vai ao ponto de equiparar em importncia o saber prtico derivado da experincia ao conhecimento cientfico, pois no mbito moral, quem possui a ltima palavra a experincia: As palavras e as opinies indemonstrveis das pessoas de experincia, aos idosos e das pessoas dotadas de prudncia so to dignas de ateno como aquelas que se apiam sobre demonstraes, pois a experincia lhes permite ver corretamente as coisas. Pela experincia alcana-se a verdade prtica. De fato, a prudncia, enquanto uma espcie de conhecimento, busca a verdade, mas esta verdade est ligada ao (prxis): Essa verdade de ordem prtica. A expresso verdade prtica soa mal aos ouvidos modernos, acostumados a restringir o conceito de verdade ao mbito terico, deixando a prxis deriva do no-cognitivismo tico. Faz-se necessrio, portanto, deter-se no esclarecimento desse conceito. Como se sabe, Aristteles sustenta a teoria da verdade-correspondncia, isto , a verdade consiste na correspondncia entre uma assero e a realidade: Dizer que o que no , ou o que no , falso; dizer ao contrrio, que o que ou o que no no , verdadeiro. A verdade prtica a conformidade entre o ditame da razo prtica e as exigncias da prpria realidade: O justo meio a conformidade do desejo e da ao regra racional, que a sua medida. Se esta regra tem tambm a sua prpria medida, esta medida no uma outra regra ir-se-ia assim at o infinito mas a prpria realidade das coisas e a conformidade do esprito realidade no o justo meio, mas a verdade. Isto , a regra racional emanada da prudncia, indicando qual o justo meio no caso, deve ser adequada realidade que ela pretende orientar. A prudncia, como conhecimento, tem por objeto a verdade, mas essa, diferena da verdade necessria buscada pelo pensamento filosfico-cientfico, uma verdade prtica, uma verdade contingente, mutvel segundo as diversas situaes. Espera-se que a anlise da prudncia limitada ao seu papel nas decises morais individuais no tenha feito perder de vista a sua relevncia poltica. Com efeito, Aristteles aponta espcies de prudncia, em conformidade com o mbito em que a racionalidade prtica deve ser exercida: a) prudncia individual orienta as decises do indivduo; b) economia domstica orienta as decises do chefe de famlia; c) prudncia legislativa orienta as decises do constituinte, isto , aquele que organiza os fundamentos do convvio poltico; d) prudncia poltica divide-se em deliberativa e judicial. A primeira a prudncia do cidado empenhado em tomar decises sobre os assuntos pblicos. A prudncia judicial aquela que orienta as decises dos juzes. O interesse dessa concepo que toda sociedade est engajada em um processo prudencial. Todos esto comprometidos com o uso da razo prtica. A prudncia de outrem pode fornecer uma norma minha ao, mas a minha prudncia que ir torn-la eficaz no caso concreto. No mbito

jurdico, tem-se a conseqncia de constatar que a prudncia do legislador no supre a prudncia do juiz e a do cidado. Cada situao exige do agente um juzo prtico orientado pela prudncia. Outro ponto a notar que a moral prudencial aristotlica diferencia-se da moral normativista moderna. Toda filosofia moral da modernidade, de Kant a Rawls discute a questo: Que regra eu devo seguir? A concepo aristotlica no est centrada na regra, mas no saber prtico que determina se uma regra ou no aplicvel ao caso. Assim, a questo central da teoria moral : que tipo de conhecimento torna o agente moral capaz de aplicar as regra ou agir na ausncia de regras? Afinal, a regra no determina seu caso de aplicao, isto , no h uma regra para a aplicao de regras. A concepo normativista da moral que impera na modernidade est ligada concepo normativista do direito como um conjunto de regras. A concepo clssica da moral, fundada na prudncia, est ligada a uma concepo do direito onde a regra no ocupa o papel central. Essa ltima concepo, que nega a identificao do direito com a norma, est na base da jurisprudentia romana. 4 A JURISPRUDENTIA ROMANA 4.1 Preliminares Uma determinada concepo dos saber jurdico est sempre ligada a uma determinada concepo do direito, pois, afinal, a partir da idia do objeto que se dispe dos procedimentos aptos a conhec-lo. Por exemplo, Kelsen parte da definio do direito como norma e coerentemente, determina que a cincia do direito deve ser um saber que descreve normas. a partir de uma determinada concepo do que seja o jus, o direito, que a constituio de um saber prudencial sobre ele, a jurisprudentia, foi possvel. o conceito romano do direito que cabe, portanto, inicialmente descrever. 4.2 O pressuposto do direito: a experincia da ordem Os romanos, como os gregos, eram um povo indo-europeu. Para eles, portanto, a experincia da ordem tambm constitua o fundamento da sociedade. Segundo Benveniste, na noo de ordem ns temos uma das noes cardeais do universo jurdico, e tambm religioso e moral, dos indo-europeus: a Ordem que governa tanto a disposio do universo, o movimento dos astros, a periodicidade das estaes e dos anos, quanto as relaes dos homens entre os deuses, e dos homens entre eles. Nada do que se refere ao homem, ao mundo, escapa ao imprio da Ordem. , portanto, o fundamento religioso e moral de toda a sociedade; sem esse princpio, tudo retornaria ao caos. Essa experincia da ordem, que entre os gregos passou rapidamente do domnio mticoreligioso dos poetas para a dimenso secularizada da reflexo filosfica, permaneceu em Roma por muito tempo sob a gide da religio. Isso foi devido em parte forte religiosidade dos romanos, de um lado, e, de outro, existncia de poderosas agremiaes sacerdotais, os colgios de sacerdotes. Os atos polticos em Roma contam sempre coma interveno de um magistrado e um sacerdote. O magistrado escolhe um curso de ao e consulta o sacerdote sobre a convenincia do seu ato. Os deuses simplesmente confirmam um determinado curso de ao, respondendo sim ou no. A interveno de um magistrado e de um sacerdote expressava a crena romana que os atos polticos, para serem perfeitos tm de usufruir do consenso dos homens e dos deuses (...) As lendas acerca dos primeiros reis de Roma, Rmulo, o rei jovem, vigoroso, ativo e violento fundador da cidade, e Numa, o velho pacfico, avesso ao, piedoso criador da religio e do direito, confirmam que essa bipartio de qualquer ato supremo estava profundamente enraizada na mentalidade romana. Entre as atividades polticas dos sacerdotes, estava aquela de dizer o jus. O direito/jus aparece em Roma, portanto, ligado funo sacerdotal, tendo um significado eminentemente

religioso. Os pontfices respondiam s questes colocadas pelos cidados que desejavam saber qual era o jus, isto , qual era a conduta gestual e verbal conveniente (...) em relao aos outros chefes de famlia e em relao aos deuses (...). Esta atividade de dizer o jus merece uma anlise mais detida. O termo jus vem constantemente unido ao verbo dicere. Esse, oriundo do indo-europeu deik, do qual se originou o grego dik, sempre significou mostrar de modo impositivo, pela palavra. Da as expresses jus dicere, judex, jurisdictio. O jus , portanto, algo que dito. Dele ir derivar o verbo jurare (jurar). Jurare pronunciar o jus proferido em um juramento, a frmula que expressa a ao a ser realizada. Pronunciando o jus, o sacerdote revela assim, o que deve ser feito em uma situao concreta, a partir das exigncias da ordem divina do mundo. Cada resposta (responsum) vale somente para o caso em que foi pronunciada. Assim, o pontfice dispunha sobre testamentos, a propriedade da terra, as alienaes, os vnculos patrimoniais e familiares, aquilo que ns conhecemos como direito privado. As respostas tinham um carter oracular e se impunham no pelo poder (competncia do magistrado), mas pela autoridade religiosa do pontfice. O que nos interessa aqui o tipo de saber que se forma a partir dessa atividade de dar respostas sobre o que deve ser feito em casos particulares. Schiavone descreve como lentamente vai se formando uma sabedoria (...) intrinsecamente casustica, local e como que pontual: um responsum diferente para cada pergunta. A noo de jus no aflorava em mais nenhum lado, nem tinha outro sentido, seno na soluo de problemas imediatos e concretos (...) Com o crescimento e desenvolvimento de Roma, alm da influncia da filosofia grega, a sociedade romana passa por um processo de secularizao que no deixar inclume o direito. A atividade do respondere, determinar o jus em cada caso concreto, passa a ser exercida por membros da aristocracia republicana. O jurisconsulto sacerdote, o pontfice, cede o lugar ao jurisconsulto leigo, o prudens. Mas a resposta deste ltimo, ainda que desprovida do matiz religioso, vinculante para os magistrados e os particulares, ainda que o seu carter obrigatrio seja no-oficial. Surge a jurisprudentia clssica, um saber laico voltado para a resoluo de problemas prticos. Corresponde a uma experincia tipicamente romana, cujos traos e caractersticas principais passamos a descrever, para, a seguir, determinarmos suas afinidades com a teoria aristotlica da prudncia. 4.3 Caractersticas do saber jurdico romano 4.3.1 Um saber realista O trao mais forte romano no apego realidade concreta, com o concomitante repdio atividade puramente especulativa e abstrao. Sua atitude espiritual a do campons-soldado, apegado ao seu mundo e s verdades de senso comum. A partir desse horizonte, no espanta que a nica definio que os romanos deixaram da jurisprudncia seja marcada pelo realismo: A jurisprudncia o conhecimento das coisas divinas e humanas, a cincia do justo e do injusto. O saber jurdico assim, um conhecimento da realidade, das coisas. Da dizer Michel Villey que a jurisprudncia primeiramente descrio do mundo existente. O direito est na realidade, e o faz o jurisconsulto precisamente desvelar, descobri a soluo justa que est nos prprios dados da res litigiosa. O romano cr em uma ordem do mundo, e o seu papel determinar a soluo em conformidade com as exigncias dessa ordem. Essa caracterstica de um saber descritivo da realidade est presente no Digesto, quando se define uma regra: A regra descreve brevemente como uma coisa. No que o direito derive da regra, mas esta extrada do direto existente. Assim, pois, mediante a regra transmitida uma breve descrio das coisas, e como diz Sabino, a ttulo de resumo, que se falha em algo, resulta intil. O direito est presente na realidade, e esta realidade descrita por meio das regras. Sendo assim, no o direto que deve ser extrado da regra, mas a regra do direito. V-se, por esse raciocnio, a recusa de qualquer normatividade que venha sobrepor-se, de fora, estrutura do real. Ao contrrio, esta

ltima elevada fonte de toas as normas. 4.3.2 Um saber prtico Dado o seu pragmatismo de camponeses-soldados, os romanos ocuparam-se das construes tericas dos gregos na estrita medida das suas necessidades prticas. A matemtica grega torna-se engenharia, a geografia grega torna-se um item da estratgia militar. Alm disso, a elite oligrquica que monopoliza os cargos religiosos, militares e polticos no tem interesse em especulaes. por isso que o saber grego que ela mais aprecia a retrica, vital para a atividade poltica. Mas a elite no pode abrir mo do fator de liderana que representa a posse de um saber voltado resoluo dos conflitos jurdicos: Entre os gregos, homens da mais baixa condio, impelidos pelo incentivo de um magro salrio, oferecem-se para assistir em justia aos oradores sobre as questes de direito: chamam-lhes prticos. Na nossa cidade, pelo contrrio, os mais ilustres personagens desempenham esse trabalho. entre os membros da elite dominante que Roma encontra os seus juristas. No poderia ser diferente, porque em Roma a jurisprudentia a principal fonte do direito. As responsa do jurisconsultos so obrigatrias para as partes e os magistrados, ainda que informalmente. A relevncia poltica do jurisconsulto manifesta-se em toda a sua extenso, quando consideramos que o papel subsidirio que a lei tinha como fonte do direito. A importncia da jurisprudentia para a formao do direito to manifesta que, por vezes, chega-se a identificar o jus civile, o direito aplicvel aos cidados, com a atividade do jurisconsulto, como nesta passagem de Pomponius: O jus civile propriamente dito aquele que, sem estar escrito, consiste na interpretao dos prudentes. A jurisprudncia passa a integrar a formao dos jovens da elite romana, como um elemento destinado ao exerccio da atividade poltica. A formao jurdica est voltada, portanto, no formao de juristas, mas de polticos. No h dedicao exclusiva profisso jurdica: todos os juriconsultos so polticos de carreira, e s passam a dar conselhos jurdicos depois que ganharam o reconhecimento popular no exerccio de magistraturas civis e militares. Essa intimidade com a atividade poltica radicalizou no jurisconsulto a orientao pragmtica prpria da cultura romana: Estes homens (os jurisconsultos) no eram menos especialistas; eles estavam, por suas posies e carreiras, em contato permanente com as realidades do governo para serem escravizados a tecnicidades. Eles desenvolveram o direito romano pari passu com as necessidades do Estado Romano. A jurisprudentia, refletindo os interesses prticos ligados ao papel de liderana social exercido pelos seus cultivadores, estava completamente alheia s divagaes descomprometidas com as necessidades da comunidade. 4.3.3 Um saber tico O Digesto inicia esboando uma definio do termo jus: Convm que aquele que vai dedicar-se ao direito conhea primeiramente de onde deriva o termo jus. chamado assim por derivar de justitia (...). fcil verificar que etimologicamente esta observao est equivocada; jus obviamente, o termo primrio e justitia (justia) o termo derivado. Mas importante notar que quando o jurisconsulto romano instado a definir o seu objeto, ele o conecta com a justia, mostrando a natureza moral da sua atividade. Essa compreenso do seu saber como estando a servio da realizao da justia leva Ulpiano a afirmar que podemos (os juriconsultos) ser chamados sacerdotes (da justia); com efeito, prestamos culto justia e professamos o conhecimento do bom e do eqitativo (bonum et aequum), separando o justo do injusto, discernido o lcito do ilcito (...). Aprofundemos a anlise conceitual das conexes entre justitia e jus. Segundo a definio de Ulpiano, A justitia a vontade constante e perptua de dar a cada um o seu jus. O jus a parte que cabe a cada um em uma partilha. Mas essa parte que cabe a cada

um deve ser a materializao do bom e do eqitativo, pois, segundo Celso: Jus est ars boni et aequi. O contedo do jus determinado assim, pelos valores do bonum e da aequitas. O jurista, ao investigar o jus no caso, no faz mais do que procurar determinar o que bom e eqitativo nas circunstncias dadas. por isso, que, como foi visto acima, a jurisprudncia, que tem como objeto o jus, definida como o conhecimento do bom e do eqitativo, pois o bom e o eqitativo so o contedo do jus. Aequitas uma palavra de raiz latina, ausente em outras lnguas indo-europias. a igualdade, o equilbrio, a proporo. Bonum aquilo que conveniente (bom para algo), no s para os envolvidos em uma lide, mas para toda a coletividade. a ateno ao bem comum que deve acompanhar a deciso do caso singular. O jus assim a materializao da aequitas no caso concreto, levando em considerao as exigncias do bem comum. Concebendo a sua atividade como a atribuio a cada pessoa do seu jus, entendendo este ltimo como o bom e o eqitativo, os jurisconsultos romanos configuraram a sua disciplina como um saber do tipo tico: Os jurisconsultos entendem o direito no como algo que se limitam a aceitar, mas como algo que eles constroem de uma maneira responsvel. Toda sua personalidade est comprometida nisso, e, como dizia Ihering, seu orgulho no somente de tipo intelectual, mas tambm de tipo moral. 4.3.4 Um saber casustico Ao contrrio da moderna cincia do direito, que tem como objeto a lei, a jurisprudncia romana antilegalista ao extremo. Isso porque em Roma o direito no obra do legislador, mas dos jurisconsultos (jus civile em sentido prprio) e da atividade jurisdicional orientada pelos jurisconsultos do pretor (jus honorarium). A lei praticamente no utilizada no mbito do direito privado, e a corporao dos juristas nutre forte oposio sua utilizao como fonte do direito: Em Roma a lei contrape-se ao direito dos juristas: ela e uma fonte de direito em virtude de uma imposio, ao passo que o direito dos juristas no seno a experincia derivada dos casos particulares e progressivamente consolidada. por isso que a lei pde parecer aos juristas romanos no tanto como cerne da sua ordem jurdica, mas antes como uma barreira limitando a liberdade de descoberta do direito pelos juristas. A formao jurdica consistia em assistir a um jurisconsulto dando conselhos jurdicos a particulares ou magistrados. Depois que o consulente se retirava, o jurisconsulto discutia o caso com seus discpulos. A jurisprudncia vai assim se consolidando como um saber derivado da experincia de tratamento de casos. Para solucionar um caso, o jurisconsulto no busca apoio em uma regra preexistente. Ele utiliza um mtodo casustico cuja essncia consiste em buscar a soluo nas circunstncias mesmas do problema ou nos casos mais prximos (...). O mtodo casustico utiliza os seguintes procedimentos: a) Busca-se a soluo mais razovel do ponto de vista prtico e que leva em considerao as circunstncias da causa. b) Invocam-se casos semelhantes (analogia). c) Invocam-se casos opostos (argumento a contrario). d) Utiliza-se o argumento ab absurdo, mostrando que uma outra soluo no seria razovel. A ateno do jurista est centrada sobre o caso, e no sobre a regra. A sua investigao consiste em um exame da realidade, e a sua proposta de soluo est comprometida com o fato, desconhecendo qualquer preocupao sistemtica. Para o jurisconsulto romano, as regras no so seno expresses abreviadas contendo as experincias adquiridas pela casustica. Essa formao das regras por generalizao emprica d origem a proposies como as seguintes: Ningum pode transferir a outro mais direito do que tem; No se considera que algum perca o que no era seu; nula a obrigao de objeto impossvel. Essas proposies

lembram o bom senso presente nos aforismos da sabedoria popular, como Quem v cara, no v corao e gua mole em pedra dura, tanto bate at que fura. Tanto uma como outra limitam-se a expressar verdades consensuais, conhecidas pela experincia. O pensamento jurdico permanece, assim, concreto e emprico, mesmo quando formula regras. O recurso regra nada mais do que o recurso s solues, comprovadas pela experincia, de uma srie de casos. 4.3.5 Um saber tradicionalista O jurista moderno, acostumado com idia de sistema, fica desnorteado diante de uma cultura jurdica baseada em um mtodo casustico. Para ele, o casusmo torna a experincia jurdica anrquica. Os seus temores so fundados. Com efeito, deve haver um vnculo entre o tratamento dado a casos semelhantes, sob pena de a insegurana jurdica se alastrar. A jurisprudncia romana, mesmo sem transcender o horizonte do caso concreto, encontrou no respeito tradio esse vnculo que d coerncia e organicidade s solues particulares. O romano extremamente apegado ao passado. Para ele, a moral e o direito tm suas fontes nos mores maiorum, os costumes dos antepassados. Esse um dos motivos que leva a resistir a utilizao da lei como fonte do direito, pois essa sempre representa uma inovao. A insero do tratamento casusta dos problemas no esteio da tradio assim descrito por Schiavone: Os responsa constituam cada vez mais o jus vivo da cidade, a ossatura descontnua mas slida das relaes que a se cristalizavam. Todavia, no estabeleciam como podia fazer a lex publica regras gerais. S eram vlidos para a pergunta feita. A pronncia, em certo sentido, dissolvia-os e s duravam enquanto durava a sua atuao. Mas no eram esquecidas: a sua memria era confiada em primeiro lugar tradio oral do colgio dos pontfices e depois das famlias aristocrticas. Qualquer nova pergunta era imediatamente avaliada pela existncia de precedentes, pela massa sedimentada dos pareceres j dados. O caso insere-se em uma cadeia de precedentes, uma teia de solues que se expande de modo lento, porm seguro. 5 A PHRONESIS ARISTOTLICA E A JURISPRUDENTIA Neste tpico, vamos explorar as afinidades eletivas entre a phronesis aristotlica e a jurisprudentia romana. Como foi dito, no se trata de estabelecer um nexo histrico, mas de lanar luz sobre a natureza do saber jurdico romano a partir de uma teoria da razo prtica que descreva o tipo de racionalidade efetivamente empregada pelos juristas romanos. Explicitam-se de um modo sinttico as aproximaes j presentes no texto. 5.1 Realismo Tornou-se um lugar-comum retratar a prudncia aristotlica como o emprego de uma razoabilidade desprovida de qualquer compromisso metafsico. Isso tpico daqueles intrpretes que caem no erro denunciado por MacIntyre, de ler a tica a Nicmaco desvinculada do conjunto da obra aristotlica. Particularmente grave ler a tica a Nicmaco desvinculando-a da Metafsica. Esta abordagem cria a iluso de que a teoria da razo prtica de Aristteles no est solidamente ancorada sobre fundamentos metafsicos. Mas como foi visto, toda tica aristotlica est baseada em uma tese metafsica: o fim de uma coisa o seu bem. E esse fim est dado, no podendo ser posto por um agente que goza de autonomia moral. A prudncia o saber que permite determinar em cada caso quais as exigncias que a realidade impe prxis orientada a atingir o telos do homem. Ou seja, ele dedica-se a conhecer uma verdade, a verdade prtica, que, por ser contingente, no menos objetiva. Para os romanos, a idia de que o mundo possui uma ordem o fundamento da sua experincia jurdica. O tratamento casustico dos problemas nada mais seno a tateante e

incessante das exigncias dessa ordem para o caso. Havendo um consenso em torno do contedo dessa ordem, no difcil imaginar que a coerncia entre as solues dos vrios casos no faa necessrio um sistema. dentro dessa concepo que a jurisprudncia vem definida como o conhecimento das coisas divinas e humanas, o que poderia ser traduzido como conhecimento da ordem do mundo. E no outro o motivo que leva Ulpiano a dizer que os juristas praticam uma verdadeira e no simulada filosofia. As suas solues no so baseadas em abstraes, mas no exame paciente da realidade. 5.2 Pragmatismo A phronesis distingue-se do saber teortico da filosofia, pois este, como dia Aristteles, embora seja um saber divino, sem proveito para homem, pois no trata de bens humanos. A prudncia, pelo contrrio, trata de conhecer o bem do homem concreto e da plis concreta. O bem que est presente no cotidiano e impe-se como um objetivo para todos. A jurisprudentia no trata de construir uma teoria da justia ou uma utopia jurdico-poltica. Ela est orientada para a soluo de problemas prticos. No se trata de saber o que a justia, mas de realiz-la nas circunstncias do caso presente. 5.4 Carter tico A phronesis no techn, no um saber tcnico voltado realizao de uma finalidade moralmente neutra. Ela busca o bem, seja do indivduo, da famlia ou da plis. O homem prudente no o astuto, aquele que dispe dos meios para obter alguma vantagem material. O phronimos o homem que alcanou a excelncia moral. A jurisprudentia romana no poderia ter se tornado fonte do direito se no reproduzisse nas suas solues os padres morais da comunidade. A sua autocompreenso, explicitada no Digesto como um saber moral, no tem um carter propagandstico. Basta um exame das solues fornecidas pelos juriconsultos. Toda a atividade dos juristas, como no caso da proteo dos menores e da boa-f, etc, revela uma constante preocupao em alcanar a soluo mais adequada, do ponto de vista moral, para os problemas prticos. No sentido do aprimoramento moral do direito, vemos os juristas alterarem usos consagrados, negarem o cumprimento de leis, introduzirem mudanas radicais na praxe jurdica dominante. No se perde de vista que a tarefa da jurisprudncia alcanar o bom e o eqitativo no caso em exame. 5.4 Casusmo A phronesis advm da experincia. Como foi visto, Aristteles nega a existncia da prudncia nos jovens pela sua ausncia de experincia. o trato constante com os fatos da vida que permite ao agente moral ver de um modo correto as coisas. Ao mesmo tempo, a phronesis um saber ad hoc, cujos ditames so contingentes quanto a situao que eles regulam. Para o jurisconsulto romano, como afirma Kser, a regra no uma fonte autnoma do conhecimento do direito. Conhecer o direito no conhecer regras. Conhecer o direito conhecer a realidade, pela experincia. No h jurisconsultos jovens em Roma, apenas oradores (advogados) jovens. Sem o contato demorado com as realidades da vida, no h como descobrir o direito presente nos casos. E o saber que se adquire consciente das suas limitaes. No aspira a ir alm do caso, criando um sistema dentro do qual os problemas seriam inseridos desfigurados e resolvidos. A jurisprudentia no consiste em um conjunto de informaes, mas em um modo de ver e tratar os problemas. 5.5 Tradicionalismo A phronesis demanda experincia, essa s se encontra nos mais velhos. Da a ateno que a

opinio destes merece nos variados problemas da vida. A mentalidade que informa a jurisprudentia est sintetizada nesta frase do Digesto: No se pode dar razo de tudo o que estabeleceram os antepassados. A jurisprudentia trabalha com resultados da experincia de vrias geraes de juristas. Essa experincia a garantia da solidez das suas solues. Seria leviano questionar sem razes fundadas.

6 CONCLUSO Se a adequada compreenso de um fenmeno supe o conhecimento da sua histria, a integral compreenso da cincia do direito ocidental passa pelo estudo da jurisprudentia romana. Nesse sentido, mostra-se oportuno que as discusses de Epistemologia Jurdica passem por uma determinao do estatuto terico do saber jurdico ao longo da sua evoluo histrica. Ocorre que as categorias e os pressupostos da investigao epistemolgica moderna mostram-se incapazes de dar conta de experincia jurdica romana. Um exemplo clssico dessa incapacidade de compreender a natureza do saber jurdico romano a interpretao fornecida por Kelsen. Na sua Teoria geral do direito e do estado. Ele afirma: Uma jurisprudncia normativa tendo como objeto uma anlise estrutural do direito como sistema de normas vlidas tambm possvel, assim como indispensvel. Durante dois mil anos, esta tem sido, de fato, a nica abordagem intelectual do fenmeno do Direito, alm da abordagem puramente histrica; e no h nenhum fundamento razovel pelo qual devamos negar o nome de cincia a essa tradio contnua de tratamento intelectual do direito. Kelsen deixa claro que a jurisprudentia romana (nos ltimos dois mil anos, nica abordagem intelectual, tradio contnua) uma cincia do direito normativa, ou seja, ocupase em descrever o direito como sistema de normas vlidas. Espera-se que a falsidade dessa interpretao tenha sido demonstrada no corpo do artigo. Mas, dada a autoridade de Kelsen, deixemos a palavra a Max Kser, um dos maiores romanistas do sculo: Paulo (D. 50, 17, 1) ensina com efeito: o direito no tirado da regra, mas a regra do direito. Desse texto resulta claramente que os jurisconsultos no viam de modo algum as regras como uma fonte autnoma do conhecimento do direito; para eles, elas no faziam seno refletir o direito tal como ele se manifestava nas solues dos casos particulares obtidos pelo mtodo casustico. Nunca demais repetir: o saber jurdico romano no consiste em uma disciplina voltada ao conhecimento de normas. Para a jurisprudentia romana, o direito no um conjunto de normas, mas o bom e o eqitativo realizado em um caso concreto. A incapacidade das categorias epistemolgicas modernas para darem conta do saber jurdico romano nos leva concluso de que, se desejamos fazer um exame epistemolgico adequado desse saber, devemos lanar mo de outros esquemas conceituais. O presente trabalho pretendeu apenas demonstrar a fecundidade da reflexo aristotlica sobre a prudncia na determinao da natureza do sabe jurdico romano. Fica o desafio de buscar uma teoria que se aproxime ainda mais da experincia jurdica romana do que aquela fornecida por Aristteles. Referncias Bibliogrficas ARENDT, Hannah O que autoridade in Entre o passado e o futuro. So Paulo: Perspectiva, 1992. ARISTTELES. thique a Nicomaque. Paris: Vrin, 1994. ____ . La politique. Paris: Vrin, 1995. AUBENQUE, Pierre. La prudence chez Aristote. Paris: PUF, 1993. BARROW, R. H. Los romanos. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1990. BENVENISTE, mile. O vocabulrio das instituies indo-europias, v. 2. Campinas: Editora da

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