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PRÁXIS TRANSDISCIPLINAR. MÉTODOS INTERATIVOS: REPRODUÇÃO OU INOVAÇÃO? Helena Corrêa Vasconcelos (UFRRJ) Ana Cristina Souza dos Santos (UFRRJ) Akiko Santos (UFRRJ) Resumo: Esse artigo traz uma reflexão sobre os conceitos e lógicas que fundamentam as práticas educativas. Os métodos interativos considerados os mais adequados para a religação de saberes nos termos da teoria da Complexidade e Transdisciplinaridade, na prática, os conceitos nem sempre são devidamente compreendidos e aplicados. Nesse sentido, na história da educação há vários exemplos de reducionismo em se tratando de pedagogias alternativas surgidas em diferentes momentos históricos. O mesmo fenômeno repete-se com a emergência da teoria da Complexidade e Transdisciplinaridade. Quando uma teoria cai no domínio público, assim como alerta Morin, duas práticas radicalmente opostas podem ocorrer: ou ela sofre o fenômeno da “retroação”, ou o da “recursividade”. Nas tentativas de aplicação pedagógica dos ideários dessa nova teoria observam-se práticas desenvolvidas segundo os conceitos modernistas. Morin caracteriza tal fenômeno como “retroação”. Utiliza-se a lógica clássica de separação da teoria e método e os concebe em distintos compartimentos, conferindo ao método a conotação de “neutralidade”, operacionalizado com senso comum, o que leva à reprodução do sistema vigente. Não demonstra preocupações com a mudança epistemológica, apenas adapta o novo aos velhos conceitos da pedagogia tradicional tecnicista. No outro polo, observam-se práticas que mobilizam os novos conceitos como recursos para o diálogo (“recursividade”) redimensionando o sistema conceitual e cognitivo, com base na lógica do terceiro termo incluído (lógica da transdisciplinaridade). Por se tratar de uma teoria em construção, entre as duas acima referidas emerge uma variedade de construções aproximando-se mais, ou menos, de um, ou outro polo. Tais construções dependem do perfil epistemológico dos docentes que ousam enfrentar a prática pedagógica da teoria da transdisciplinaridade. Palavras-chave: Transdisciplinaridade; Métodos Interativos; Reducionismo. Introdução O presente texto traz uma reflexão sobre alguns conceitos e lógicas que fundamentam a práxis educativa dita transdisciplinar. Tais conceitos, por certo, mantêm estreita articulação com categorias mais amplas, tais como: mundo, ambiente, sociedade, pedagogia, didática. São relações que afirmam vínculos de recursividades e/ou retroação, manutenção e/ou rupturas em relação ao modus operandi na vida em geral e na vida educacional, em particular. Didática e Prática de Ensino na relação com a Escola EdUECE- Livro 1 03820

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PRÁXIS TRANSDISCIPLINAR. MÉTODOS INTERATIVOS:

REPRODUÇÃO OU INOVAÇÃO?

Helena Corrêa Vasconcelos (UFRRJ)

Ana Cristina Souza dos Santos (UFRRJ)

Akiko Santos (UFRRJ)

Resumo:

Esse artigo traz uma reflexão sobre os conceitos e lógicas que fundamentam as

práticas educativas. Os métodos interativos considerados os mais adequados

para a religação de saberes nos termos da teoria da Complexidade e

Transdisciplinaridade, na prática, os conceitos nem sempre são devidamente

compreendidos e aplicados. Nesse sentido, na história da educação há vários

exemplos de reducionismo em se tratando de pedagogias alternativas surgidas

em diferentes momentos históricos. O mesmo fenômeno repete-se com a

emergência da teoria da Complexidade e Transdisciplinaridade. Quando uma

teoria cai no domínio público, assim como alerta Morin, duas práticas

radicalmente opostas podem ocorrer: ou ela sofre o fenômeno da “retroação”, ou

o da “recursividade”. Nas tentativas de aplicação pedagógica dos ideários dessa

nova teoria observam-se práticas desenvolvidas segundo os conceitos

modernistas. Morin caracteriza tal fenômeno como “retroação”. Utiliza-se a

lógica clássica de separação da teoria e método e os concebe em distintos

compartimentos, conferindo ao método a conotação de “neutralidade”,

operacionalizado com senso comum, o que leva à reprodução do sistema

vigente. Não demonstra preocupações com a mudança epistemológica, apenas

adapta o novo aos velhos conceitos da pedagogia tradicional tecnicista. No outro

polo, observam-se práticas que mobilizam os novos conceitos como recursos

para o diálogo (“recursividade”) redimensionando o sistema conceitual e

cognitivo, com base na lógica do terceiro termo incluído (lógica da

transdisciplinaridade). Por se tratar de uma teoria em construção, entre as duas

acima referidas emerge uma variedade de construções aproximando-se mais, ou

menos, de um, ou outro polo. Tais construções dependem do perfil

epistemológico dos docentes que ousam enfrentar a prática pedagógica da teoria

da transdisciplinaridade.

Palavras-chave: Transdisciplinaridade; Métodos Interativos; Reducionismo.

Introdução

O presente texto traz uma reflexão sobre alguns conceitos e lógicas que

fundamentam a práxis educativa dita transdisciplinar. Tais conceitos, por certo, mantêm

estreita articulação com categorias mais amplas, tais como: mundo, ambiente,

sociedade, pedagogia, didática. São relações que afirmam vínculos de recursividades

e/ou retroação, manutenção e/ou rupturas em relação ao modus operandi na vida em

geral e na vida educacional, em particular.

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O texto está organizado em três tópicos. O primeiro deles discute a relação de

pertencimento e determinação entre teorias e metodologias, permitindo uma abertura

para se pensar os fundamentos da argumentação em foco. O segundo tópico explicita o

fenômeno do reducionismo, visando mostrar o movimento que se efetua entre

pensamento e ação. Finalmente, o terceiro tópico apresenta um resumo de duas

maneiras teóricas de conceber o Ser Humano, Conhecimento e Aprendizagem,

categorias fundamentais na prática pedagógica.

Trata-se, pois de uma reflexão suscitada pela questão dos paradigmas, nos

termos em que Morin (1997) os concebe, vale dizer como estruturas de pensamento que

de modo inconsciente comandam nosso discurso. Para o mesmo autor, o paradigma

efetua a seleção e a determinação da conceitualização e das operações lógicas. Designa

as categorias fundamentais da inteligibilidade e opera o controle de seu emprego.

Assim, os indivíduos conhecem, pensam e agem segundo os paradigmas inscritos

culturalmente neles (Morin, 2000).

Relação Entre Teoria & Método

A relação de pertencimento, determinação ou remissão recíproca entre teoria e

método é um tema recorrente na área do magistério. Existem vários exemplos na

história da educação de como uma nova teoria, na prática, sofre o fenômeno do

reducionismo. Reducionismo consiste no procedimento intencional ou não, através do

qual é efetuada uma simplificação excessiva de uma formulação teórica que se tome

como objeto de estudo, de onde pode resultar uma versão compacta, reduzida,

simplificada, distorcida, deformada.

Assim ocorreu, por exemplo, com a Pedagogia de Paulo Freire que se praticou

simplesmente como o Método Paulo Freire, omitindo a teoria que a fundamentava e

substituída pelos conceitos modernistas cartesianos. Este fenômeno repete-se, em

educação, cada vez que surge uma nova teoria pedagógica alternativa à tradicional – que

teima em se manter hegemônica no contexto da escola brasileira, com a mediação dos

educadores desavisados.

O reducionismo também vai marcar os ideários da Escola Nova no Brasil. Seu

impacto é ainda maior no período pós-64 com a imposição do tecnicismo na educação e

sua forma didática através de “instruções programadas”. O cerco parecia completo em

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matéria de dominação ideológica por meio de valores, conceitos, currículos escolares,

modus operandi, literaturas permitidas/proibidas, uso das técnicas e tecnologias.

Tais circunstâncias históricas lembram muito o que escreveu Marcuse sobre O

homem unidimensional (1964). No entanto, Habermas (1988) promove uma abertura

com sua ação comunicativa, sustentando a ideia de que a validade das técnicas e o seu

bom uso depende das normas sociais, as quais, por sua vez, se fundamentam na

intersubjetividade. A dialética habermasiana entre o sistema e o mundo da vida, alarga o

conceito de razão para além da razão instrumental e nos permite pensar na possibilidade

de dar outra direção no modus operandi estabelecido.

A concepção do agir comunicativo amplia a atividade do homem para além do

mundo econômico racional e justamente vem recuperar a característica autônoma dos

seres humanos, a sua capacidade de recriar em situações adversas. Trata-se de uma

conceituação que supera a visão unilateral do ser dominado pelo meio e fala de um ser

que interage com o mundo exterior mantendo a sua autonomia. A proposta

habermasiana sugere também uma orientação metodológica no sentido de interação

humana e no seu sentido político emancipatório.

As prescrições didáticas recomendadas nos manuais, geralmente, são

elaborações abstratas mesmo porque seguem a ideologia em voga, isto é, a ideologia

embutida na metodologia e nas técnicas didáticas. Em relação ao que nós chamamos de

métodos interativos também estão orientados por suas respectivas teorias. São os

métodos que objetivam aprendizagens por meio de interlocuções entre os participantes

dialogando com os diversos saberes e construindo significados humanos para o

conhecimento. Os métodos e as técnicas estão articulados à nossa maneira de ver

(Finkielkraut, 1996). Métodos e técnicas não são neutros, eles são o modus operandi de

uma visão teórica, tendo um sentido relacional, de conexões que o usuário estabelece –

consciente ou inconscientemente, nas suas construções.

Não querendo isto dizer que, já que a ideologia está inscrita nos métodos e nas

técnicas, estes devem ser simplesmente rejeitados. Os métodos precisam ser

reinventados ou rejeitados em função dos objetivos que se quer alcançar. Reinventados

para que permitam a manifestação livre do pensamento e a reelaboração a partir da

integração de novos saberes, em lugar de limitarem o pensamento e o comportamento,

previstos e incorporados na metodologia e técnicas didáticas. O gerenciamento dos

métodos e das técnicas apenas, leva à reprodução de um sistema ideológico, estando a

seu serviço. Se alguma alteração precisar ser feita, essa mudança deverá incidir

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principalmente na visão ideológica de mundo que as preside para ajustar a sua

materialização nas técnicas.

Os métodos, as técnicas e as prescrições didáticas - por estarem escritos de modo

racional e abstrato - geralmente são vistos pelos desavisados como neutros. A

neutralidade da técnica didática não é consistente se se pensar que método e técnica só

têm sentido no seu uso e que sempre são usados por alguém e não existe ninguém

destituído de finalidades supostamente próprias, mas que são ideologicamente

revestidas. Mesmo aquele que diz não tê-las, de fato, reproduz um senso comum que,

afinal, representa a condução política de um determinado grupo na sociedade. Assim,

um sistema técnico é um conjunto de estratégias operacionais, mobilizado para

realizar um fim desejado. Isto inclui tanto o pensamento e o imaginário como ações

sociais voltadas para o efeito definido (Brüseke, 1998: 35).

As teorias e os seus conceitos correlatos norteiam e orientam as práticas

pedagógicas. No entanto, é necessário atentar para o fato de que entre teoria e prática há

o mundo da vida, a condição humana e sua sobrevivência no sistema constituído. Essas

dimensões da vida fazem com que uma prática como a educativa nem sempre

corresponda, integralmente, à teoria que a constituiu, exigindo que se faça uma

transposição didática.

Devido à força que a lógica clássica ainda exerce de separar, simplificar e

reduzir quando um fenômeno é complexo (DESCARTES, 1973), persiste a dicotomia

entre teoria e método, sendo frequente aplicar-se o método com o senso comum, como

se fosse algo independente, neutro, um saber simplesmente técnico. A dicotomia entre

teoria e método leva a esse comportamento. Faz-se mudança metodológica e não

epistemológica.

Métodos de ensino são sistematizações construídas a partir dos ideários tecidos a

cada momento histórico da sociedade, dando sustentação e fundamentação conceitual à

educação no que se refere ao ser humano, à sociedade, à aprendizagem e ao próprio

conhecimento. Importante assinalar que no processo de construção do conhecimento o

ponto de partida poderá ser, prioritariamente, ou as partes ou o todo; ou seja, pode-se

assumir o todo e as partes como antagônicas, ou complementares e neste caso estará no

território epistemológico da complexidade, nos termos advogados pela obra de Morin

(1997, 2000).

Quando surge uma nova teoria, o ato de acomodar o novo à velha estrutura

fabrica a dicotomia teoria e método, que é um recurso fundamentado nas orientações

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banhadas na ideologia cartesiana - que está na raiz do Método Científico requerendo

dividir, simplificar, classificar e descontextualizar. É preciso ter clareza de que os

conceitos modernistas condicionam o nosso modo de pensar e deles somos reféns e

comandam nossas atitudes e tomadas de decisões, a despeito de nossa vontade de

romper com eles.

O Fenômeno do Reducionismo

Quando se pensa num processo educativo na perspectiva da Complexidade e

Transdisciplinaridade, voltar à história da educação é de grande valia, pois fornece

elementos para saber como os educadores que pioneiramente comungaram dessa

perspectiva teórico-metodológica, conseguiram romper com a ideologia cartesiana

hegemônica e passaram a adotar uma linha de trabalho didático na perspectiva

globalizante e renovadora, indicando modalidades metodológicas possíveis de resgatar e

recontextualizar segundo as necessidades do momento histórico contemporâneo.

Muitas são as possibilidades metodológicas para tratar o conhecimento como

uma rede. Citamos, por exemplo, os Métodos Globalizados [Método Decroly (Centros

de Interesse), Método Freinet, Método de Projetos, Método de Solução de Problemas]

(LIBÂNEO, 1991) construídos pelos seguidores da Escola Nova, um ramo da

Pedagogia Renovada que se consolidou no Brasil pelas atuações de Anísio Teixeira

(1900-1971), inspirado no ideário liberal de John Dewey (1859-1952); Método Paulo

Freire concebido para alfabetização de adultos, segundo a filosofia humanista deste

autor; Temas Transversais estruturados por César Coll dentro da concepção

construtivista e incluídos nos Parâmetro Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998);

Método dos Complexos de Blonsky, Pinkevich e Krupskaia com o referencial marxista

(GADOTTI, 1997).

No entanto, como diz Morin acerca da ecologia da ação, quando se difunde uma

teoria, ela será interpretada e praticada segundo o perfil intelectual dos educadores que a

tomam:

A partir do momento em que lançamos uma ação no mundo, essa vai deixar de

obedecer às nossas intenções, vai entrar num jogo de ações e interações do meio

social no qual acontece, e seguir direções muitas vezes contrárias daquela que era

nossa intenção (MORIN, 1997: p. 23).

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Quando a teoria cai no domínio público, duas práticas radicalmente distintas

podem ocorrer. Segundo Morin: ou ela sofre o fenômeno da “retroação”, ou o da

“recursividade”. Se tomarmos como exemplo a noção de “ensino integrado” (BRASIL,

Decreto-Lei 5154/2004), o fenômeno da “retroação” implicará na apropriação da

denominação da nova teoria, mas sua prática será desenvolvida dentro dos conceitos da

pedagogia tradicional, numa dicotomia teoria/método o que se verá acontecer será a

justaposição de conteúdos. Assim, o método toma a conotação “neutra” e é

operacionalizado com senso comum, reproduzindo o sistema vigente. A “recursividade”

consiste na prática reconstruída dialogando com os novos conceitos, avançando e

transformando o velho, evoluindo para novas estruturas cognitivas de explicação da

realidade. Por esse fenômeno, a noção de “ensino integrado” permearia a articulação

entre os diferentes conhecimentos.

Ao articular os conhecimentos escolares de modo integrado ao contexto, a vida,

aos fatos sociais e políticos, trabalhando os diversos conhecimentos disciplinares

integradamente, tal comportamento segue outra lógica, a Lógica do Terceiro Termo

Incluído, sistematizada por Nicolescu (1999). Como também requer ressignificação dos

conceitos de Ser Humano, Aprendizagem e Conhecimento.

Ao longo da nossa experiência de ensino transdisciplinar, temos observado os

dois tipos de práticas. Há aqueles que conseguem fazer uma prática que articula os

conceitos da teoria da Complexidade e Transdisciplinaridade, relacionando a teoria ao

método. Mas, há também, aqueles que organizam o projeto de trabalho considerando

somente as prescrições técnicas e se orientam por velhos conceitos da pedagogia

tradicional e tecnicista.

Entre uma e outra prática, nota-se uma variedade de construções. Nesse sentido,

Américo Sommerman (2006) tem se debruçado para a caracterização desses

comportamentos, classificando os que se aproximam mais da multidisciplinaridade, ou a

interdisciplinaridade propriamente dita, ou a interdisciplinaridade forte que se aproxima

da transdisciplinaridade e a transdisciplinaridade que também demonstra diferentes

graus.

Como diz Morin, os resultados são imprevisíveis, dependem dos perfis

epistemológicos dos docentes. No diálogo com os diferentes, os obstáculos são os

nossos próprios olhares condicionados pela cultura na qual nos criamos e sob a qual

vivemos. As atividades transdisciplinares desvelam nossa dificuldade em lidar com o

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diverso. Somos reféns de atitudes e conceitos modernistas traçando fronteiras, realçando

as diferenças e não as convergências.

Enfrentamos obstáculos internos e externos: as nossas próprias atitudes e

pensamento e a estrutura social consolidada. A dificuldade se deve à mudança

epistemológica: são duas lógicas e dois sistemas de pensamento e ação.

A nossa experiência tem nos mostrado que quando colocamos demasiada ênfase

nas possibilidades metodológicas, dando uma ideia mais acabada dos possíveis métodos

na aplicação do ensino transdisciplinar, no retorno das atividades elaboradas pelos

alunos, observa-se descuido na relação teoria/método. Isto é, aplica-se um ou outro

método interativo, porém, com o conceitual da pedagogia tradicional/tecnicista,

dicotomizando o binário teoria/método, simplificando, justapondo e não articulando os

saberes.

Devido a esse fato, para minimizar o fenômeno do reducionismo, trabalhar a

sensibilização inicial é fundamental. Trazer à consciência o que está inconsciente. Para

tanto, trabalhar com linguagem metafórica é mais eficiente para que cada um veja em si

próprio o condicionamento cultural sofrido durante seu crescimento. Discutir, por

exemplo, a leitura do livro de Leonardo Boff, A águia e a galinha para iniciar o

esclarecimento sobre o Ser Humano, desvelando a condição humana.

O uso das metáforas e analogias, ao mesmo tempo em que predispõe o espírito

para a abertura mental e percepção da possibilidade de uma educação de qualidade,

evita, no adiantar do curso, a emergência do sentimento, demasiadamente forte, de

angústia devido à amplitude de conhecimento exigido pela teoria e conflitos internos

pela incompatibilidade com os conceitos internalizados da ciência moderna. Ao

despertar a utopia ameniza a angústia, ficando o sentimento de ansiedade, o que leva à

busca de novas articulações.

Para fazer a transição, podem-se investigar os recursos didáticos que caberiam

para introduzir os conceitos de Ser Humano, Conhecimento e Aprendizagem. A seguir,

apresenta-se o contraste conceitual entre o sistema disciplinar e o transdisciplinar,

indicando duas lógicas e dois sistemas de pensamento que apesar de opostos são

complementares, sobretudo se for incluída a consideração do contexto histórico:

Ser Humano

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Enquanto a óptica disciplinar afirma a noção de “Homo sapiens/sapiens”,

concebendo o Homem como um ser racional que, deve ser considerado somente a

dimensão racional, não valorizando a dimensão emocional, inclusive a subjetividade, os

sentimentos, a sensibilidade, a intuição, a percepção e o espiritual.

Já na óptica transdisciplinar concebe-se o ser humano como Homo Complexus

pressupondo inclusive a noção de “Homo sapiens/demens/ludens/saccer”. Nessa

perspectiva o Homem é um ser paradoxal, articula os contrários, inclusive o uno e

múltiplo, sendo um sistema auto-eco-organizador. Um sistema autopoiético [que se

auto-constrói, se auto-levanta e se auto-organiza, tal como um ser crísico (de crise)].

Sua atuação é resultado da dimensão racional, emocional e espiritual, pois articula todas

as dimensões do homem – enquanto ser integral. O sujeito está lá e cá, no prosaico e no

poético, no racional e no passional. Um ser que se auto-organiza conforme o ambiente

com o qual interage. É ainda essa perspectiva que articula os opostos: bem/mal,

ordem/desordem, racional/irracional, certeza/incerteza, autônomo/dependente, em favor

de algo novo, criativo. Assim, constrói-se conhecimento dialogando com a diversidade

de influências experimentadas; não perdendo a sua integridade (UNO) apesar da

diversidade de referenciais (MÚLTIPLO).

Conhecimento

Segundo a práxis disciplinar o conhecimento é neutro e objetivo. O

conhecimento está fora do sujeito. Aqui existe uma dicotomia entre sujeito/objeto,

ser/saber. A fragmentação do conhecimento é que possibilita aprofundar o

conhecimento. No processo de produção do conhecimento o pesquisador constitui um

mero instrumento do método científico e nisso perde-se o sentido humano da produção.

Conhecimento é dividido, reduzido, classificado, hierarquizado e descontextualizado,

com grande ênfase no método científico, predominando a lógica cartesiana clássica,

mesmo que tenha havido atualizações históricas entre os cientistas, sobretudo a partir do

século passado. O conhecimento produzido cientificamente é entendido como verdade

absoluta, universal. Na lógica de fragmentação dos conhecimentos impera um sistema

de hierarquização onde existiriam as ciências nobres e as que não são nobres, com

valorização da hierarquia cognitiva. Predomina aqui a lógica linear, mecânico, usando

metáforas de naturalização, a exemplo da representação do conhecimento como uma

árvore, onde cada ciência constitui um ramo distinto que se mantêm incomunicáveis

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entre si. As linguagens e referências bibliográficas próprias de cada área de

conhecimento constituem fronteiras epistemológicas, ou obstáculo a possíveis

articulações e acabam construindo subculturas. Neste território considera-se apenas um

nível de realidade epistemológica: o da disciplinaridade com estrutura fechada.

Contrapondo-se a essa práxis, o pensar e o agir transdisciplinar afirmam que o

conhecimento não é neutro, antes, é objetivo e subjetivo ao mesmo tempo. O

conhecimento não está fora do sujeito, pois faz parte do sujeito. Daí lidar-se com

práticas de religação de saberes. Aqui existe uma busca incessante do sentido humano

do conhecimento. O conhecimento é construído tal como na metáfora da rede – que

interconecta os saberes acumulados pela humanidade em suas conexões. Contextualiza

os fenômenos sociais e naturais. Neste território o método transdisciplinar, enriquecida

pela lógica do Terceiro Termo Incluído, possibilita novos avanços de conhecimentos. A

“verdade” é dinâmica e provisória, sendo marcada como construção histórica. Nessa

perspectiva prima-se pela democracia cognitiva, onde todos os saberes são igualmente

importantes, não tendo porque manter hierarquias entre os saberes que, aliás, são

dinâmicos. Aqui é importante considerar a representação rizomática (raiz

interconectada, p.ex. das bananeiras) do conhecimento na qual tudo está interconectado,

transgredindo as fronteiras epistemológicas das disciplinas. Ainda nesta óptica o

diálogo entre os especialistas é valorizado, produtivo, pois supera a linguagem

especializada e unifocal (p.ex. economês). Mais que isso, considera-se aqui a existência

de vários níveis de Realidade, na qual os níveis da disciplinaridade e

transdisciplinaridade são complementares, mantendo-se uma estrutura aberta, em

permanente processo evolutivo.

Aprendizagem

O conceito em foco ganha todo um contorno próprio quando mediado pela

lógica disciplinar. Neste território aprender é memorizar. Acredita-se, aqui, que o

conhecimento está fora do sujeito, a maneira de se apropriar do conhecimento consiste

na memorização, nos exercícios de fixação, na repetição e nas cópias, num apelo

reiterado a memorização/repetição de conteúdos. A percepção é um fenômeno que

possui somente uma via que segue a trajetória de fora para dentro, reiterando a ideia de

transmissor/receptor. A aprendizagem faz-se aqui reiterando a dicotomia entre

sujeito/objeto, ser/saber.

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A aprendizagem, no contexto conceitual da lógica transdisciplinar, também

preserva determinados contornos ideológicos alinhados entre si que convergem para um

apreender que é dialógico, aprender é um ato autopoiético (Maturana e Varela, 1995).

Pois o conhecimento é parte do sujeito. Nesta perspectiva todo conhecimento é

reconstrução do conhecimento feita por um sujeito. Aprendizagem passa pela memória,

mas a esta não se restringe, mas a ultrapassa. Para aprender, o conhecimento precisa

fazer sentido ao aprendente. A percepção tem duas vias simultâneas e reversíveis: de

fora para dentro e de dentro para fora, isto é, reconhece a atividade mental que negocia

com as informações organizando e reorganizando o seu entendimento e as práticas. Não

faz qualquer dicotomia entre sujeito/objeto, ser/saber.

Não há como deixar de assinalar, a partir da leitura desta visão comparativa que

contempla os três conceitos focais de nosso interesse, que o fenômeno do reducionismo

parece evidenciado a partir de qualquer paradigma que se considere, pois o

reducionismo cumpre um papel nem sempre desvelado.

Considerações Finais

Na educação, as relações presentes na construção de conhecimentos foram sendo

esclarecidas progressivamente desde a nossa condição humana moderna: de

monodisciplinaridade à multidisciplinaridade, passamos posteriormente à prática da

pluridisciplinaridade, depois à da interdisciplinaridade e agora, a transdisciplinaridade.

Muitos foram os estudiosos que se debruçaram para o esclarecimento de como o

conhecimento foi sendo construído pela humanidade, bem como de como o

conhecimento pode ser produzido. Ao organizar a sociedade segundo tais

conhecimentos, os homens podem se tornar reféns do condicionamento sofrido,

raciocinando somente dentro das fronteiras traçadas, legitimadas e hegemônicas. Esse

fato explica o fenômeno do reducionismo que pode afetar as teorias pedagógicas

alternativas.

Ao escolher um método, certamente estamos fazendo, simultânea opção por uma

teoria filosófica. Método e teoria estão conectados. Ao separar o binário privilegia-se as

prescrições tecnicistas e muitas vezes alguns programas oficiais simplificam de tal

maneira que foge do âmbito de educação e se transformam em pseudo-educação. É o

caso de alguns programas que pretendem dar um ofício à população menos favorecida

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EdUECE- Livro 103829

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com o mínimo, ou nada, de teoria. São os práticos que se preocupam somente em como

fazer, desprovido da reflexão sobre o porquê fazer?

Os métodos interativos são a expressão visível da visão paradigmática defendida

por Morin, Nicolescu e tantos outros. Contudo, entre a concepção que explicita uma

visão de mundo e a transposição desta para metodologia, no sentido de tornar prática a

teoria, muitas interferências podem ocorrer oriundas do contexto, das relações entre os

homens (consigo mesmos, entre si e com a natureza) ou de outros fatores. O

reducionismo, de que tratamos nestas incursões textuais são apenas exemplos desse tipo

de interferência, e deve funcionar como alerta sobre o que e com que finalidade se adota

esta ou aquela prática.

Tais aspectos devem alertar a nós educadores de que a escolha e adoção de

determinadas estratégias de ensino é ação não-inocente, e por isso, temos que dispor de

uma formação – inicial e continuada, que contemple uma fundamentação consistente

acerca dos paradigmas básicos que se encontram atualmente em discussão, circulando

nos processos formativos, com a clareza de que a despeito de nosso querer estamos

sempre a serviço de um determinado projeto pedagógico, de um determinado projeto de

sociedade.

Referências

BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis,

RJ: Vozes, 1997.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. PCNs – Parâmetros Curriculares

Nacionais: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais. 3ª. ed.

Brasília: MEC/SEF, 1998.

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