PSD, Estado de Emergência

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Espaço público 36 Público Quinta-feira 22 Outubro 2009 O actual PSD só em divagação nostálgica pode ainda ser apelidado de partido de poder PSD, estado de emergência O PSD perdeu quatro de cinco eleições legislativas, realizadas no pós-cavaquismo. Em 14 anos de exercício de poder governativo, esteve na sua liderança menos de três anos. Com a derrota nas legislativas de Setembro vão passar 18 anos em que se limitará a ter exercido res- ponsabilidades governativas em escassos 16 por cento desse período temporal! Em 27 de Setembro obteve 29 por cento de votos, o pior desempenho em 30 anos, enquanto par- tido de oposição (igualando o resultado da injustamente “diabolizada” liderança de Pedro Santana Lopes)! Tudo isto após quatro anos de governação socialista crispada, tur- bulenta e contestada, como nenhuma outra o havia sido antes. José Sócrates, em pouco mais de quatro anos, confrontou- se com cinco presidentes do PSD (Durão Barroso, Santana Lopes, Marques Mendes, Ferreira Leite e comigo próprio)! Nos últimos seis anos a oposição democrática espanhola é liderada pelo mesmo político, Mariano Rajoy, que já perdeu duas eleições legislativas e que se prepara para ser candidato de novo a chefe do Governo daqui a três anos! Se enquadrarmos todo o período pós-cavaquista, con- firma-se a regra da instabilidade doentia. O PS teve, desde então, três secretários-gerais (Guterres, Ferro Rodrigues e Sócrates) e os sociais-democratas tiveram “só” sete presi- dentes (os atrás referidos e ainda Marcelo Rebelo de Sousa e Fernando Nogueira). Paradoxalmente, três deles não ti- veram sequer a oportunidade de sobreviver à permanente conspiração intrapartidária e submeterem-se ao sufrágio do eleitorado. Se este quadro é por si só muito preocupante, a situação actual somou-lhe novos ingredientes que o tornam pré-apo- calíptico. No Parlamento, ganharam um novo protagonismo quantitativo os partidos minoritários das franjas do sistema (CDS e BE). O Presidente da República fragilizou-se com as últimas intervenções públicas e colocou-se em dificuldade para a corrida da reeleição. O PS, ao recuperar um diferencial de 18 presidências de câmara, posicionou-se na pole position para o próximo embate autárquico, estruturante, porque vão sair de cena mais de uma centena de autarcas – a larga maioria, cerca de oitenta, sociais-democratas. Ou seja, um PSD fragilizado na importante frente parlamentar vê amea- çados os seus outros redutos de afirmação de soberania – a Presidência da República e o poder local. O cenário da de- sagregação, ainda não evidente, tem que ser imediatamente contrariado. O sistema político português pode, a partir de agora, seguir dois caminhos: o da consolidação de um partido hegemónico que se apoia circunstancialmente em partidos minoritários da esquerda e da direita, ou o de retomar um bipartidarismo consistente. O segundo cenário é o ideal e o que mais preserva a defesa de uma sociedade plural. Para isso é necessário um PSD forte, credível e renovado. Alguns que têm teorizado sobre a crise do maior parti- do da oposição referem que ela nada tem de ideológico, estratégico ou programático. Afirmam que se trata de uma complexa teia de inimizades pessoais fratricidas. Discordo em absoluto. Ao contrário, as divisões resultam da ausência prolongada de um cimento aglutinador que tem a ver com ideias, propostas e idiossincrasia comportamental. O PSD precisa pois de ser refundado, apelando ao que de mais pro- fundo existe na sua alma. O PSD das legislativas de 2009 tem que ser esquecido. Esse PSD anti-Estado social, anti-ousadia económica e timorato nas questões de costumes e valores, nunca mais voltará a ganhar uma única eleição. Refundação significa afirmar uma visão social-democrata moderna na defesa do núcleo central dos Direitos Sociais – Educação, Saúde, Segurança Social. Uma visão liberal quanto baste na defesa de um modelo de organização e dinamismo das actividades económicas. Uma atitude tolerante na leitura e na compreensão dos comportamentos humanos. Refundação significa ter a coragem de avançar – esta é uma legislatura com esses poderes – com uma profunda reforma constitucional / uma nova Constituição, que reformasse a Segunda República. Tudo pode e deve ser debatido, a co- meçar pelo ultrapassado sistema semipresidencial herdado da Revolução de Abril. Refundação significa lucidez estratégica na co-responsa- bilização com as grandes questões de Estado. Sentido de responsabilidade que levou o PSD a viabilizar os orçamentos que conduziram à moeda única, sentido de oportunidade que não é compatível com o actual discurso tremendista, que parece querer fazer o favor de derrubar o Governo de José Sócrates, por forma a oferecer-lhe de bandeja uma nova maioria absoluta. Refundação significa um programa eleitoral perene e claro, que transmita confiança e possibilite a opção dos cidadãos. Não é mais possível ser pró-TGV, pró-estabilidade fiscal e pró-avaliação dos professores às segundas, quartas e sextas e defender o oposto às terças, quintas e sábados. Refundação significa dar o estatuto de senadores à geração que conduziu às vitórias eleitorais das décadas de 80 e 90, mas abrir as portas a uma nova geração de quadros, descom- prometidos com o melhor, mas também com o pior – a última década e meia – desse período da nossa vida democrática. Refundação significa respeitar e apoiar Cavaco Silva, mas perceber que o PSD não pode ficar refém das suas estraté- gias pessoais. Finalmente, é uma enorme insensatez defender que o PSD pode viver esta agonia até Maio, ou seja, mais sete meses – 1/6 da legislatura, metade do tempo que vai decorrer até ao próximo embate eleitoral, as presidenciais de Janeiro de 2011. Um partido alternativo não pode estar mais de meio ano em desconto de tempo. A política não é basquetebol! O actual PSD só em divagação nostálgica pode ainda ser apelidado de partido de poder. Não queiram transformar esta circunstância numa verdade permanente. A actual direcção deve ter a seriedade de promover o debate interno susceptível de colocar o partido e o país a discutir esta realidade, colocar as secções, as distritais e os militantes a conversar sobre elas, deixar que todos os que se consideram “notáveis” se reúnam da forma que entenderem e quiserem. Mas deve fazer tudo isto com a celeridade possí- vel. O ideal seria até que, tal como já aconteceu no passado, este período de reflexão e debate ficasse nas mãos do Pre- sidente do Congresso com uma equipa por ele constituída em Conselho Nacional. A escolha do novo líder, assente nos novos pressupostos atrás expostos, nunca deveria ir para além de Janeiro. Em 2010 para o PSD devia prevalecer o lema Ano Novo, Vida Nova. Ex-líder do PSD Luis Filipe Menezes Fruto dos seus próprios êxitos, o PSD tem hoje um problema acrescido na definição do seu programa ideológico Que partido é esse? 1. Para dar o título a esta reflexão sobre o PSD no rescaldo do ciclo eleitoral que terminou com as escolhas autárquicas vem-me à memória o nome de uma canção do grupo brasileiro Legião Urbana, em cuja letra se reconhecia que a Nação brasileira, não obstante os seus muitos males, sairia sempre vitoriosa. Creio que é isso o que se passa no PSD agora que entramos numa fase interrogativa, simultaneamente de balanço e de futuro: sempre acreditando que o PSD é o partido da al- ternativa em Portugal, não se deixa de apontar erros, num clima que, no passado recente das escolhas dos sucessivos líderes, não foi propriamente edificante. Como militante social-democrata desde os meus 18 anos e com intervenção activa em múltiplos dos seus momentos, como no caso das eleições directas, espero bem que desta vez não seja assim. Contra aqueles que vaticinam o afundamento do PSD e a sua irrelevância política, basta lembrar algo de indes- mentível da aritmética parlamentar actual para confirmar a posição ímpar do PSD no jogo político-democrático: o facto de o PSD ter maioria de dois terços com o PS – o que é decisivo nalgumas decisões de regime, como a revisão constitucional – e o facto de o PSD ter, sozinho, mais man- datos do que as outras três oposições juntas. 2. Fruto dos seus próprios êxitos, o PSD tem hoje um problema acrescido na definição do seu programa ideoló- gico, dificuldade que se mostra ser tanto mais forte quanto é certo as ideologias serem na actualidade muito mais vagas e difusas. O PSD, porém, jamais pode renunciar à sua marca original, que sempre encarnou uma “social-democracia à portuguesa”, em que avultam as orientações do persona- lismo e do humanismo, com uma forte tónica nas preocu- pações sociais. Quer isto dizer que o PSD não é nem nunca foi um partido colectivista e sempre respeitou a economia de mercado, ao mesmo tempo que não se identifica com qualquer liberalismo, por mais recente que ele seja, advo- gando intervenções económicas e sociais, e não apenas deferindo ao Estado um papel de mero regulador. É certo que hoje o PSD, sobretudo depois das duas maio- rias absolutas de que beneficiou com Cavaco Silva, se tornou ideologicamente abrangente e plástico, com o aparecimento de múltiplas correntes, até certo ponto contraditórias. Alguns dirão que esse é o preço a pagar pelo poder exer- cido e é o preço a pagar para chegar de novo ao poder, em que surgem os partidos do centro político. Não julgo que seja assim: o centro político não equiva- le a uma mistura indigesta de orientações programáticas incoerentes. 3. Como se isso não bastasse, a definição político-ide- ológica nas democracias ocidentais vive o tormento da diluição das ideologias sob o ponto de vista da captação dos votos dos eleitores. Sucede aqui algo de parecido com o futebol: marca-se menos golos e às vezes um empate é uma vitória: na ânsia de conquistar os votos ao centro, em cujo âmbito os eleitores moderados flutuam, entra-se numa filigrana de acertos e de medidas concretas, muito bem calibradas frente ao principal adversário. Noutra perspectiva, a publicização do espaço privado traz à superfície do mercado político outra racionalidade que já não é político-ideológica: a persuasão dos cidadãos depende também das pessoas, dos carismas pessoais, dos métodos de fazer política, das equipas que rodeiam os lí- deres, dos pequenos acasos e azares, até de aspectos mais prosaicos da vida privada e pessoal de cada liderança. O esvaziamento da centralidade ideológica da mensa- gem partidária foi ocupado por outras mensagens, não já ideológicas, mas que igualmente determinam a escolha dos eleitores, ou ficou prisioneiro de particularismos e tecnicismos com um peso desmesurado em relação a um projecto de sociedade que os partidos políticos têm difi- culdade em oferecer. 4. O PSD tem de dar o exemplo uma vez mais, como o fez em momentos decisivos na história da nossa III Repú- blica, liderando reformas importantíssimas para Portugal: clarificar o seu programa ideológico e actualizar o seu dis- curso perante uma sociedade progressivamente descrente dos políticos. Professor catedrático de Direito, deputado à Assembleia da República pelo PSD Jorge Bacelar Gouveia

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Artigo de opinião de Luís Filipe Menezes, no Jornal Público. 22 de Outubro de 2009

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Espaçopúblico36 • Público • Quinta-feira 22 Outubro 2009

O actual PSD só em divagação nostálgica pode ainda ser apelidado de partido de poder

PSD, estado de emergência

O PSD perdeu quatro de cinco eleições legislativas, realizadas no pós-cavaquismo. Em 14 anos de exercício de poder governativo, esteve na sua liderança menos de três anos.

Com a derrota nas legislativas de Setembro vão passar 18 anos em que se limitará a ter exercido res-ponsabilidades governativas em escassos 16 por cento desse período temporal! Em 27 de Setembro obteve 29 por cento de votos, o pior desempenho em 30 anos, enquanto par-tido de oposição (igualando o resultado da injustamente “diabolizada” liderança de Pedro Santana Lopes)! Tudo isto após quatro anos de governação socialista crispada, tur-bulenta e contestada, como nenhuma outra o havia sido antes.

José Sócrates, em pouco mais de quatro anos, confrontou-se com cinco presidentes do PSD (Durão Barroso, Santana Lopes, Marques Mendes, Ferreira Leite e comigo próprio)! Nos últimos seis anos a oposição democrática espanhola é liderada pelo mesmo político, Mariano Rajoy, que já perdeu duas eleições legislativas e que se prepara para ser candidato de novo a chefe do Governo daqui a três anos!

Se enquadrarmos todo o período pós-cavaquista, con-fi rma-se a regra da instabilidade doentia. O PS teve, desde então, três secretários-gerais (Guterres, Ferro Rodrigues e Sócrates) e os sociais-democratas tiveram “só” sete presi-dentes (os atrás referidos e ainda Marcelo Rebelo de Sousa e Fernando Nogueira). Paradoxalmente, três deles não ti-veram sequer a oportunidade de sobreviver à permanente conspiração intrapartidária e submeterem-se ao sufrágio do eleitorado.

Se este quadro é por si só muito preocupante, a situação actual somou-lhe novos ingredientes que o tornam pré-apo-calíptico. No Parlamento, ganharam um novo protagonismo quantitativo os partidos minoritários das franjas do sistema (CDS e BE). O Presidente da República fragilizou-se com as últimas intervenções públicas e colocou-se em difi culdade para a corrida da reeleição. O PS, ao recuperar um diferencial de 18 presidências de câmara, posicionou-se na pole position para o próximo embate autárquico, estruturante, porque vão sair de cena mais de uma centena de autarcas – a larga

maioria, cerca de oitenta, sociais-democratas. Ou seja, um PSD fragilizado na importante frente parlamentar vê amea-çados os seus outros redutos de afi rmação de soberania – a Presidência da República e o poder local. O cenário da de-sagregação, ainda não evidente, tem que ser imediatamente contrariado. O sistema político português pode, a partir de agora, seguir dois caminhos: o da consolidação de um partido hegemónico que se apoia circunstancialmente em partidos minoritários da esquerda e da direita, ou o de retomar um bipartidarismo consistente. O segundo cenário é o ideal e o que mais preserva a defesa de uma sociedade plural. Para isso é necessário um PSD forte, credível e renovado.

Alguns que têm teorizado sobre a crise do maior parti-do da oposição referem que ela nada tem de ideológico, estratégico ou programático. Afi rmam que se trata de uma complexa teia de inimizades pessoais fratricidas. Discordo em absoluto. Ao contrário, as divisões resultam da ausência prolongada de um cimento aglutinador que tem a ver com ideias, propostas e idiossincrasia comportamental. O PSD precisa pois de ser refundado, apelando ao que de mais pro-fundo existe na sua alma. O PSD das legislativas de 2009 tem que ser esquecido. Esse PSD anti-Estado social, anti-ousadia económica e timorato nas questões de costumes e valores, nunca mais voltará a ganhar uma única eleição.

Refundação signifi ca afi rmar uma visão social-democrata moderna na defesa do núcleo central dos Direitos Sociais – Educação, Saúde, Segurança Social. Uma visão liberal quanto baste na defesa de um modelo de organização e dinamismo das actividades económicas. Uma atitude tolerante na leitura e na compreensão dos comportamentos humanos.

Refundação signifi ca ter a coragem de avançar – esta é uma legislatura com esses poderes – com uma profunda reforma constitucional / uma nova Constituição, que reformasse a Segunda República. Tudo pode e deve ser debatido, a co-meçar pelo ultrapassado sistema semipresidencial herdado da Revolução de Abril.

Refundação signifi ca lucidez estratégica na co-responsa-bilização com as grandes questões de Estado. Sentido de responsabilidade que levou o PSD a viabilizar os orçamentos que conduziram à moeda única, sentido de oportunidade

que não é compatível com o actual discurso tremendista, que parece querer fazer o favor de derrubar o Governo de José Sócrates, por forma a oferecer-lhe de bandeja uma nova maioria absoluta.

Refundação signifi ca um programa eleitoral perene e claro, que transmita confi ança e possibilite a opção dos cidadãos. Não é mais possível ser pró-TGV, pró-estabilidade fi scal e pró-avaliação dos professores às segundas, quartas e sextas e defender o oposto às terças, quintas e sábados.

Refundação signifi ca dar o estatuto de senadores à geração que conduziu às vitórias eleitorais das décadas de 80 e 90, mas abrir as portas a uma nova geração de quadros, descom-prometidos com o melhor, mas também com o pior – a última década e meia – desse período da nossa vida democrática.

Refundação signifi ca respeitar e apoiar Cavaco Silva, mas perceber que o PSD não pode fi car refém das suas estraté-gias pessoais.

Finalmente, é uma enorme insensatez defender que o PSD pode viver esta agonia até Maio, ou seja, mais sete meses – 1/6 da legislatura, metade do tempo que vai decorrer até ao próximo embate eleitoral, as presidenciais de Janeiro de 2011. Um partido alternativo não pode estar mais de meio ano em desconto de tempo. A política não é basquetebol!

O actual PSD só em divagação nostálgica pode ainda ser apelidado de partido de poder. Não queiram transformar esta circunstância numa verdade permanente.

A actual direcção deve ter a seriedade de promover o debate interno susceptível de colocar o partido e o país a discutir esta realidade, colocar as secções, as distritais e os militantes a conversar sobre elas, deixar que todos os que se consideram “notáveis” se reúnam da forma que entenderem e quiserem. Mas deve fazer tudo isto com a celeridade possí-vel. O ideal seria até que, tal como já aconteceu no passado, este período de refl exão e debate fi casse nas mãos do Pre-sidente do Congresso com uma equipa por ele constituída em Conselho Nacional.

A escolha do novo líder, assente nos novos pressupostos atrás expostos, nunca deveria ir para além de Janeiro. Em 2010 para o PSD devia prevalecer o lema Ano Novo, Vida Nova. Ex-líder do PSD

Luis Filipe Menezes

Fruto dos seus próprios êxitos, o PSD tem hoje um problema acrescido na definição do seu programa ideológico

Que partido é esse?

1. Para dar o título a esta refl exão sobre o PSD no rescaldo do ciclo eleitoral que terminou com as escolhas autárquicas vem-me à memória o nome de uma canção do grupo brasileiro Legião Urbana, em cuja letra se reconhecia que a Nação brasileira,

não obstante os seus muitos males, sairia sempre vitoriosa. Creio que é isso o que se passa no PSD agora que entramos numa fase interrogativa, simultaneamente de balanço e de futuro: sempre acreditando que o PSD é o partido da al-ternativa em Portugal, não se deixa de apontar erros, num clima que, no passado recente das escolhas dos sucessivos líderes, não foi propriamente edifi cante.

Como militante social-democrata desde os meus 18 anos e com intervenção activa em múltiplos dos seus momentos, como no caso das eleições directas, espero bem que desta vez não seja assim.

Contra aqueles que vaticinam o afundamento do PSD e a sua irrelevância política, basta lembrar algo de indes-mentível da aritmética parlamentar actual para confi rmar a posição ímpar do PSD no jogo político-democrático: o facto de o PSD ter maioria de dois terços com o PS – o que é decisivo nalgumas decisões de regime, como a revisão constitucional – e o facto de o PSD ter, sozinho, mais man-datos do que as outras três oposições juntas.

2. Fruto dos seus próprios êxitos, o PSD tem hoje um problema acrescido na defi nição do seu programa ideoló-

gico, difi culdade que se mostra ser tanto mais forte quanto é certo as ideologias serem na actualidade muito mais vagas e difusas. O PSD, porém, jamais pode renunciar à sua marca original, que sempre encarnou uma “social-democracia à portuguesa”, em que avultam as orientações do persona-lismo e do humanismo, com uma forte tónica nas preocu-pações sociais. Quer isto dizer que o PSD não é nem nunca foi um partido colectivista e sempre respeitou a economia de mercado, ao mesmo tempo que não se identifi ca com qualquer liberalismo, por mais recente que ele seja, advo-gando intervenções económicas e sociais, e não apenas deferindo ao Estado um papel de mero regulador.

É certo que hoje o PSD, sobretudo depois das duas maio-rias absolutas de que benefi ciou com Cavaco Silva, se tornou ideologicamente abrangente e plástico, com o aparecimento de múltiplas correntes, até certo ponto contraditórias.

Alguns dirão que esse é o preço a pagar pelo poder exer-cido e é o preço a pagar para chegar de novo ao poder, em que surgem os partidos do centro político.

Não julgo que seja assim: o centro político não equiva-le a uma mistura indigesta de orientações programáticas incoerentes.

3. Como se isso não bastasse, a defi nição político-ide-ológica nas democracias ocidentais vive o tormento da diluição das ideologias sob o ponto de vista da captação dos votos dos eleitores. Sucede aqui algo de parecido com

o futebol: marca-se menos golos e às vezes um empate é uma vitória: na ânsia de conquistar os votos ao centro, em cujo âmbito os eleitores moderados fl utuam, entra-se numa fi ligrana de acertos e de medidas concretas, muito bem calibradas frente ao principal adversário.

Noutra perspectiva, a publicização do espaço privado traz à superfície do mercado político outra racionalidade que já não é político-ideológica: a persuasão dos cidadãos depende também das pessoas, dos carismas pessoais, dos métodos de fazer política, das equipas que rodeiam os lí-deres, dos pequenos acasos e azares, até de aspectos mais prosaicos da vida privada e pessoal de cada liderança.

O esvaziamento da centralidade ideológica da mensa-gem partidária foi ocupado por outras mensagens, não já ideológicas, mas que igualmente determinam a escolha dos eleitores, ou fi cou prisioneiro de particularismos e tecnicismos com um peso desmesurado em relação a um projecto de sociedade que os partidos políticos têm difi -culdade em oferecer.

4. O PSD tem de dar o exemplo uma vez mais, como o fez em momentos decisivos na história da nossa III Repú-blica, liderando reformas importantíssimas para Portugal: clarifi car o seu programa ideológico e actualizar o seu dis-curso perante uma sociedade progressivamente descrente dos políticos. Professor catedrático de Direito, deputado à Assembleia da República pelo PSD

Jorge Bacelar Gouveia