Psicanálise ciência

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 2 A teoria psicanalítica e o debate epistemológico anglo- saxão contemporâneo Como mencionamos na Introdução, procuraremos sumariar e atualizar o que constituiu a nossa fase inicial da pesquisa. Talvez, uma forma mais viva de introduzir o leitor neste debate seja apresentarmos as diversas avaliações que então discutimos: a de Popper, Grünbaum e Klimovsky, seguidas da crítica que realizamos às suas insuficiências e impasses. Contudo, parece-nos imprescindível uma breve apresentação das fases em que dividimos a obra de Popper, pois, elas já são frutos dos questionamentos que suas teses iniciais despertaram. Assim, vemos na vasta obra de Popper três momentos distintos, a cada deles assinalamos uma obra central: 1 – A Racionalidade Científica. A crítica à lógica indutiva. O critério de demarcação entre ciência e pseudociência. A noção de refutabilidade.  A  Lógica da Pesquisa Cien tífica [(1934) 1974]. 2 – O Racionalismo Crítico. O método de conjecturas e refutações. Introdução da noção de “lógica situacional”. Conjecturas e Refutações [(1963) 1972]. 3 – A Epistemologia Evolucionária. A objetividade do conhecimento: A Teoria dos Três Mundos. Os Programas de Pesquisa Metafísica. Conhecimento Objetivo [(1973) 1975]. Neste trajeto, observamos que as noções de cientificidade e de racionalidade vão sofisticando-se e, em certa medida, adquirindo uma independência, de modo a última incluir também os problemas metafísicos como passíveis de crítica e desenvolvimento. A nosso ver, duas ordens de fatores influiram na evolução da obra de Popper: em primeiro lugar, as críticas recebidas pelo seu critério de demarcação, como as de Lakatos e Feyerabend; em segundo, por sua pretensão de levar a campos muito distantes da ciência empírica – como a problemas metafísicos e à estética (tema que lhe interessava em particular) – um método de avaliação que considerasse confiável e objetivo.     P    U    C      R    i   o      C   e   r    t    i    f    i   c   a   ç    ã   o    D    i   g    i    t   a    l    N       0    2    1    0    6    0    7    /    C    A

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2 A teoria psicanaltica e o debate epistemolgico anglosaxo contemporneoComo mencionamos na Introduo, procuraremos sumariar e atualizar o que constituiu a nossa fase inicial da pesquisa. Talvez, uma forma mais viva de introduzir o leitor neste debate seja apresentarmos as diversas avaliaes que ento discutimos: a de Popper, Grnbaum e Klimovsky, seguidas da crtica que realizamos s suas insuficincias e impasses. Contudo, parece-nos imprescindvel uma breve apresentao das fases em que dividimos a obra de Popper, pois, elas j so frutos dos questionamentos que suas teses iniciais despertaram. Assim, vemos na vasta obra de Popper trs momentos distintos, aPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

cada deles assinalamos uma obra central: 1 A Racionalidade Cientfica. A crtica lgica indutiva. O critrio de demarcao entre cincia e pseudocincia. A noo de refutabilidade. A Lgica da Pesquisa Cientfica [(1934) 1974]. 2 O Racionalismo Crtico. O mtodo de conjecturas e refutaes. Introduo da noo de lgica situacional. Conjecturas e Refutaes [(1963) 1972]. 3 A Epistemologia Evolucionria. A objetividade do conhecimento: A Teoria dos Trs Mundos. Os Programas de Pesquisa Metafsica. Conhecimento Objetivo [(1973) 1975]. Neste trajeto, observamos que as noes de cientificidade e de racionalidade vo sofisticando-se e, em certa medida, adquirindo uma independncia, de modo a ltima incluir tambm os problemas metafsicos como passveis de crtica e desenvolvimento. A nosso ver, duas ordens de fatores influiram na evoluo da obra de Popper: em primeiro lugar, as crticas recebidas pelo seu critrio de demarcao, como as de Lakatos e Feyerabend; em segundo, por sua pretenso de levar a campos muito distantes da cincia emprica como a problemas metafsicos e esttica (tema que lhe interessava em particular) um mtodo de avaliao que considerasse confivel e objetivo.

33 2.1 Popper e a psicanlise[...] Aps o colapso do Imprio Austraco, a ustria havia passado por uma revoluo: a atmosfera estava carregada de slogans e idias revolucionrias; circulavam teorias novas e freqentemente extravagantes. Dentre as que me interessavam, a teoria da relatividade de Einstein era sem dvida a mais importante; outras trs eram a teoria da histria de Marx, a psicanlise de Freud e a psicologia individual de Alfred Adler. [...] Durante o vero de 1919, comecei a me sentir cada vez mais insatisfeito com essas trs teorias ... passei a ter dvidas sobre seu status cientfico. Meu problema assumiu, primeiramente, uma forma simples: O que estar de errado com o marxismo, a psicanlise e a psicologia individual? Por que sero to diferentes da teoria de Newton e especialmente da teoria da relatividade? (Popper, 1972, 64)

A psicanlise uma questo para Popper desde sua juventude (17 anos), quando precocemente foi despertado para o problema de traar uma distinoPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

entre a cincia e a pseudocincia. Contudo, ao contrrio do que ocorreu em relao teoria de Einstein e ao marxismo, aos quais dedicou inmeros textos, pouco encontramos em Popper sobre a psicanlise. As referncias so esparsas, ligeiras e, at certo ponto, pouco significativas, ou mesmo, ambivalentes. Talvez, a esteja a origem de avaliaes em relao psicanlise, to dspares, inspiradas na epistemologia popperiana, quanto s de Grnbaum e Klimovsky. no primeiro captulo de Conjecturas e Refutaes (Popper,1972) que vamos encontrar suas crticas mais extensas psicanlise. Estas podem ser agrupadas nos seguintes itens: Uma excessiva capacidade de explicao. No conseguia imaginar qualquer tipo de comportamento humano que ambas as teorias (refere-se a de Freud e a de Adler) fossem incapazes de explicar. (1972:65) A idia de uma confirmao da teoria a partir de experincias anteriores. Neste caso a referncia que faz diretamente a uma conversa com Alfred Adler, embora sugira que a atitude dos adeptos de Freud fosse a mesma:Os analistas freudianos afirmavam que suas teorias eram constantemente verificadas por observaes clnicas. Quanto a Adler, fiquei muito impressionado por uma experincia pessoal. Certa vez, em 1919, informei-o de um caso que no me parecia ser particularmente adleriano, mas que ele no teve qualquer dificuldade em analisar nos termos da sua teoria do sentimento de inferioridade, embora nem mesmo tivesse visto a criana em questo.

34Ligeiramente chocado, perguntei como podia ter tanta certeza. Porque j tive mil experincias desse tipo - respondeu; ao que no pude deixar de retrucar: Com este novo caso, o nmero passar ento a mil e um ... O que queria dizer era que suas observaes anteriores podiam no merecer muito mais certeza do que a ltima; que cada observao havia sido examinada luz da experincia anterior, somando-se ao mesmo tempo s outras como confirmao adicional (1972,65).

A utilizao de observaes clnicas. As observaes clnicas, como qualquer tipo de observao, so interpretaes empreendidas luz das teorias, por esta razo podem parecer sustentar as teorias luz das quais foram interpretadas. (1972:67, nota3) Alm da circularidade das observaes clnicas, critica a falta de observaes que fossem empreendidas como testes (tentativas de refutao). Pede tambm critrios de refutao que estabelecessem as condies em que a teoria, no um diagnstico emPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

particular, fosse passvel de ser refutada. O Efeito de dipo. Expresso que cunhou para caracterizar a influncia exercida por uma teoria, expectativa ou predio sobre o acontecimento previsto ou descrito (1972, 67, nota3). Lembra a srie de acontecimentos casuais que levaram dipo ao parricdio, a partir da predio deste evento pelo orculo. Cita Freud: ... do ponto de vista da teoria analtica, nenhuma objeo pode ser feita afirmativa de que a maioria dos sonhos usados durante uma anlise ... devem sua origem sugesto (do analista) ... no h nada neste fato que possa prejudicar a confiabilidade dos resultados obtidos. (1972, 67, nota 3) Como teremos oportunidade de discutir adiante, esta uma citao truncada, que vai ser corrigida por Grnbaum, em sua crtica no menos contundente, porm mais rigorosa, psicanlise. Aceitando, provisoriamente a leitura que Popper faz de Freud, o que desejamos registrar sua afirmao de que tal impossibilidade de uma previso arriscada, por parte da teoria psicanaltica, torna-a uma teoria irrefutvel. Em que pese tais crticas que embora gerais so incisivas, acredita Popper que ... Pessoalmente, no duvido da importncia de muito do que afirmam (refere-se a Freud e Adler) e acredito que algum dia essas afirmaes tero um papel importante numa cincia psicolgica testvel (1972, 67). Examinaremos as objees de Popper em trs momentos:

35 A Nesta seo pretendemos discuti-las aceitando suas formulaes e explicitando-as, dentro da epistemologia popperiana, baseados no sumrio que fizemos no item anterior. B Na prxima examinaremos as mesmas objees, agora melhor formuladas por Adolf Grnbaum, que chega a concluses anlogas a Popper, quando levantaremos nossos questionamentos s mesmas. C Num terceiro momento, seo 4 deste captulo, examinaremos os prprios fundamentos da epistemologia popperiana, quando aplicado s cincias humanas e, em particular, psicanlise, contrastando-a com a proposta epistemolgica de Larry Laudan. As objees que Popper faz cientificidade da psicanlise so compatveis com os pontos de vista que desenvolve no que consideramos aPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

primeira fase de sua epistemologia. Estava ento voltado para o estabelecimento de um critrio de demarcao entre cincia e pseudocincia, servindo a psicanlise assim como a astrologia como um bom exemplo da segunda, sobretudo, por no oferecer possibilidade de ser testada por algum enunciado bsico que a refutasse. No teria a psicanlise previses arriscadas que pudessem servir como experincias cruciais refutadoras. Alm do mais, o que insinua na crtica s observaes clnicas que estas no s seriam teorias que interpretariam os dados, mas que na melhor das hipteses cairiam nos velhos vcios dos processos indutivos. Lembremos de uma de suas famosas frases: Pode ser til colecionar insetos, mas no observaes. Est tambm implcito na primeira objeo excessiva capacidade explicativa o uso de hipteses ad hoc pela psicanlise, pois, s assim poderia explicar tantos fenmenos. O uso de tal tipo de hiptese ou seja: hipteses auxiliares que no podem ser testadas independentemente imunizaria a teoria psicanaltica de qualquer refutao. Lembremos algumas das crticas ante este to rigoroso critrio de demarcao. Referimo-nos, em especial, s crticas de Lakatos e Feyerabend que, utilizando exemplos de outros campos do conhecimento (cincias naturais), recusam que os cientistas trabalhem como prope Popper e, Lakatos em particular, considera ingnuo (ou dogmtico) o falseacionismo desta fase da obra de Popper. Acrescentaramos que Gregrio Klimovsky (in, Las Desventuras Del Conocimiento Cientfico), autor de declarada orientao

36 popperiana, aps discutir minuciosamente as dificuldades de utilizao de experincias cruciais, assim como o carter necessariamente convencional dos enunciados de primeiro nvel (observacionais), conclui: ... toda afirmao acerca da base emprica de natureza hipottica e , portanto, revisvel ... Se isto assim, o que resta da ambio da cincia de dispor de uma srie de conhecimentos indiscutveis a partir dos quais se possam contrastar hipteses e teorias? Desde o ponto de vista filosfico, a resposta que tal conhecimento indiscutvel no existe. (op.cit.; p.223) Popper certamente concordaria com tais afirmaes. Contudo, seu critrio de demarcao foi excessivo, a nosso ver, no tanto pelo rigor, mas por substituir a questo da racionalidade pela da cientificidade, ou, pelo menos, borrar tal distino num primeiro momento de sua obra. Mesmo que aceitemos o critrio proposto com todo o necessrioPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

carter hipottico dos refutadores no nos satisfaz a vasta gama de produo cientfica que ficaria relegada pseudocincia, num limbo epistemolgico pouco diferenciado: psicanlise/astrologia/teoria da seleo natural de Darwin. Pensamos que a mesma insatisfao acometeu a Popper, da propor o mtodo de conjecturas e refutaes e a anlise ou lgica situacional. Uma vez que neste momento nos propusemos a manter o exame dentro da prpria obra popperiana, vamos investigar como a psicanlise poderia receber outro tratamento. Curiosamente, Popper no retoma o tema da teoria psicanaltica no restante de sua obra. Entretanto, a proposta de utilizao da anlise situacional visa exatamente fornecer um espao mais amplo para a discusso daquelas teorias que embora no testveis metafsicas, na terminologia popperiana - so passveis de discusso racional, uma vez que se propem a dar conta de problemas reconhecidos pela comunidade cientfica. Lembraramos que, nesta segunda fase, Popper passa a falar com maior insistncia de escolha entre teorias rivais. Na fase anterior, talvez, o que avalizasse mais a crtica de Lakatos seria o fato da pretenso, dogmtica, de refutao de uma teoria isolada. Neste sentido, oferecemos um exemplo, a partir de Freud, de uma das teorias componentes da teoria psicanaltica que, exatamente, pretende dar conta de uma situao-problema. No entraremos na discusso da soluo dada por Freud, porm registramos sua formulao, uma

37 vez que corresponde a nosso ver ao modelo que Popper espera encontrar nas legtimas teorias metafsicas. Referimo-nos obra de Freud: Anlise do Ego e Psicologia do Grupo (Freud, 1921, S.E. 18: 66-143). Vejamos como enquadra-se o texto freudiano numa anlise situacional:13 Problema (P1): Os indivduos quando em grupo, sob certas condies, se comportam, sentem, pensam, de forma muito diversa do que seria esperado por suas formas usuais de comportamento, sentimento e pensamento.E esta condio (pertencer a um determinado grupo) sua insero numa coleo de pessoas que adquiriram as caractersticas de um grupo psicolgico. O que , ento, um grupo? Como ele adquire a capacidade de exercer uma to decisiva influncia sobre a vida mental do indivduo? E qual a natureza da mudana mental que ele impe ao indivduo? (Freud, S.E. 18:72)PUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

Freud considera que tarefa de uma teoria psicolgica sobre grupos dar conta destas trs questes. A validade do problema e a pertinncia das questes so dados pelo reconhecimento da comunidade cientfica, que apresentou vrias teorias a respeito, e pela observao cotidiana. No correr do texto, Freud examina as principais teorias disponveis, a de Le Bon, a de McDougall e a de Trotter. Aponta concordncias e assinala as insuficincias de tais teorias, como a incapacidade de darem resposta adequada ao fenmeno do pnico. Este ocorreria de forma desproporcional ao perigo existente. Assim, as teorias que atribuiam o pnico ao contgio (induo primria), como a de McDougall, no dariam conta do contra-exemplo de estados de pnico em ausncia de graves perigos, ou, da capacidade do grupo de enfrentar estados de reais graves ameaas. Teoria Proposta ou Teoria a ser testada (TT): Os grupos psicolgicos se formam por desenvolver uma ligao entre seus membros de carter libidinal14 e seu lder representar para cada membro seu prprio ideal.A anlise situacional expressa por Popper, atravs da frmula muitas vezes repetida: P1 TT EE P2 Em que: P1: Problema apresentado TT: Teoria ou Soluo Experimental EE: Eliminao de erros (por discusso crtica ou por teste experimentais) P2: Novo problema surgido 14 Libido uma expresso tomada da teoria das emoes. Chamamos por este nome a energia, vista como uma magnitude quantitativa (ainda que no momento no seja realmente mensurvel), daqueles instintos relacionados com tudo o que pode ser compreendido sob a palavra amor. O13

38 Tal teoria d conta das trs perguntas acima levantadas, esclarece o papel do lder melhor que as anteriores e deu margem a experincias de tratamento psicanaltico em grupo, assim como da utilizao de tcnicas grupais para diversas formas de assistncia. Foi o caso das experincias de W. R. Bion e Jonh Rickman (Bion, 1970)15 no exrcito britnico na recuperao psicolgica de combatentes e de W. R. Bion tambm na Tavistock Clinic (Bion, 1970). Eliminao de erros (EE): As experincias citadas exigiram a correo da teoria original (T1), a qual no dava suficientemente conta do papel e do processo de escolha do lder, entre outros problemas (P2). Novos problemas (P2): Como escolhido o lder num grupo? Qual o seu papel (alm do que Freud havia sugerido)? Como explicar a formao e oPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

papel que exercem os sub-grupos, dentro do grupo maior? Nova teoria (T2): Para dar conta dessas questes uma nova teoria foi formulada (Bion, 1970), colocada a teste, atravs da aplicao de sua metodologia em grupos variados, surgindo novos problemas (P3) que exigiram repensar e formular nova teoria (T3),16 a partir da correo de erros (EE). A experincia psicanaltica com grupos, somente possvel a partir do trabalho original de Freud, permitiu a formulao de novas teorias, eliminando erros anteriores, ou seja, tendo uma maior capacidade explicativa e abrindo

ncleo do que queremos dizer por amor consiste (e isto o que comumente chamado amor, e aquilo que os poetas cantam) naturalmente do amor sexual com a unio sexual como seu objetivo. Mas no separamos disto o que em qualquer caso tem uma participao no termo amor- quer o amor por si mesmo (self-love), quer o amor pelos pais ou filhos, amizade e amor pela humanidade em geral, e tambm a devoo a objetos concretos e a idias abstratas. Nossa justificao jaz no fato de que a pesquisa psicanaltica nos ensinou que todas essas tendncias so uma expresso dos mesmos impulsos instintivos; nas relaes entre os sexos esses impulsos foram seu caminho em direo unio sexual, mas em outras circunstncias eles se afastam de seu objetivo ou so impedidos de alcan-lo, ainda que sempre preservem bastante de sua natureza original para manter sua identidade reconhecvel (em traos como o anseio pela proximidade, e o autosacrifcio). (op. cit. 90-91) 15 As experincias foram realizadas na dcada de 40 e, inicialmente, publicadas no incio dos anos 50. 16 Sua primeira publicao foi em 1970 in Ateno e Interpretao onde, atravs da utilizao de novos conceitos (como: continente/contido; mudanas catastrficas, etc.), estuda certos problemas da psicologia dos grupos at ento no enfrentados pelas teorias psicolgicas. Referimo-nos a questes do tipo: qual o mecanismo de mudanas sbitas nos grupos, dos cismas, ou, da substituio de lideranas; problemas to freqentes como primeira vista inexplicveis, embora reconhecidos como tais pela comunidade cientfica. Seria ento um exemplo tpico de desenvolvimento de uma teoria, a partir correo pela experincia, nos moldes propostos por Popper.

39 novos campos de investigao. Os resultados empricos se expressaram pela capacidade que a experincia citada forneceu de uma mais rpida e melhor recuperao de combatentes, assim como pela possibilidade de utilizao de tcnicas grupais no tratamento de pacientes internados em hospitais psiquitricos (a experincia de comunidades teraputicas, na qual a prpria vida comunitria representava um importante fator teraputico, reduzindo o tempo tradicional de internao e facilitando a ressocializao), e ainda nos tratamentos em hospitais gerais de pacientes com distrbios psicossomticos ou com resistncia a tratamentos de enfermidades crnicas (como a diabetes), entre outras aplicaes de teraputicas grupais. Citamos, muito sumariamente, este exemplo de anlise situacional de uma das teorias componentes da teoria psicanaltica, apenas para registrar umPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

ponto ao qual voltaremos, quando discutirmos as insuficincias da epistemologia popperiana, e a tradio na qual est inserida, para lidar com as cincias humanas e, em particular, com a psicanlise. Conforme procuramos mostrar, h um espao que no foi explorado por Popper para uma aproximao mais criativa e menos dogmtica da questo da psicanlise. A fim de suprir a ausncia de comentrios mais extensos e consistentes a respeito da psicanlise, na obra de Popper, utilizaremos o seu texto A Lgica das Cincias Sociais (traduo brasileira da participao de Popper in The Positivist Dispute in German Sociology, Braslia: Ed. universidade de Braslia, 1978) como fonte de discusso do padro de racionalidade que prope para as cincias humanas. Neste trabalho, em que expe seu ponto de vista em vinte e sete teses, encontramos uma subordinao da psicologia sociologia, o que a nosso ver descaracteriza o seu objeto de estudo, ou, para usar uma linguagem popperiana, a prpria natureza dos problemas com que a psicologia se defronta. Na vigsima-segunda tese diz:A psicologia uma cincia social visto dependerem, grandemente, nossos pensamentos e aes de nossas condies sociais. Idias como (a) a imitao, (b) a linguagem, (c) a famlia, so obviamente idias sociais; est claro que a psicologia da aprendizagem e do pensamento e tambm, por exemplo, a psicanlise, no podem existir sem utilizar uma ou outra dessas idias sociais, o que demonstra ser impossvel explicar a sociedade exclusivamente em termos psicolgicos, ou reduzi-la psicologia. Logo, no podemos considerar a psicologia como a base das cincias sociais.

40O que no podemos, a princpio, explicar psicologicamente, e o que devemos pressupor em toda explicao psicolgica o ambiente social do homem. A misso de descrever esse ambiente social (isto , com a ajuda de teorias explicativas como declaradas anteriormente visto que descries livres de teorias no existem) a tarefa fundamental da cincia social (p. 30).

Tais afirmaes, primeira vista, chocantes, se tornam mais coerentes (talvez, excessivamente) quando articuladas com as demais teses em que faz sua proposta de uma lgica situacional, para as cincias sociais. Este ponto fica mais claro na vigsima-quinta tese:A investigao lgica da Economia culmina com um resultado que pode ser aplicado a todas as cincias sociais. Este resultado mostra que existe um mtodo puramente objetivo nas cincias sociais, que bem pode ser chamado de mtodo de compreenso objetiva, ou de lgica situacional. Uma cincia orientada para a compreenso objetiva ou lgica situacional pode ser desenvolvida independentemente de todas as idias subjetivas ou psicolgicas. Este mtodo consiste em analisar suficientemente a situao social dos homens ativos para explicar a ao com a ajuda da situao, sem outra ajuda maior da psicologia. A compreenso objetiva consiste em considerar que a ao foi objetivamente apropriada situao. Em outras palavras, a situao analisada o bastante para que os elementos que parecem, inicialmente, ser psicolgicos (como desejos, motivos, lembranas e associaes), sejam transformados em elementos da situao. O homem com determinados desejos, portanto, torna-se um homem cuja situao pode ser caracterizada pelo fato de que persegue certos alvos objetivos; e um homem com determinadas lembranas ou associaes torna-se um homem cuja situao pode ser caracterizada pelo fato de que equipado, objetivamente, com outras teorias ou com certas informaes (p. 31 e 32).

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A seguir, na mesma tese, Popper vai dar o exemplo de Carlos Magno, ou seja, a possibilidade de compreendermos objetivamente as aes de Carlos Magno caso possussemos todas as informaes de que o personagem dispunha e assim estabelecermos seus alvos e objetivos. Acha que esse mtodo lgica situacional :...racional, empiricamente criticvel, e capaz de melhorias. Podemos, por exemplo, encontrar uma carta que demonstre que o conhecimento disposio de Carlos Magno era diferente do que admitimos em nossa anlise. Por contraste, as hipteses psicolgicas ou caracterolgicas so dificilmente criticveis por argumentos racionais ( Vigsima-sexta tese, p. 32).

O exemplo acima de aplicao da anlise situacional s cincias humanas levanta uma gama de problemas que tocam as bases da epistemologia popperiana. Como reservamos um espao para a discusso mais abrangente da mesma, registramo-lo apenas para ilustrar como Popper tenta lidar com a questo h uma referncia en passant psicanlise nesta fase de pleno desenvolvimento de seu racionalismo crtico e epistemologia

41 evolucionria. Por ora, interessa-nos encontrar um lugar para a discusso da racionalidade da psicanlise. Pensamos t-lo encontrado em sua proposta de Programas de Pesquisa Metafsica. Como j assinalamos no item anterior, foi este o espao que Popper reservou para a teoria da seleo natural de Darwin, teoria no-testvel, portanto, metafsica, mas que recebeu um tratamento mais atencioso por parte de Popper. Chegou mesmo este a sugerir aperfeioamentos na teoria darwiniana, bastante ousados, porm preciosos para alguns comentadores, como Watkins. Quando lembramos o texto de Freud sobre grupos, acima citado, pensvamos precisamente na possibilidade da epistemologia popperiana aproveit-lo para uma interlocuo que poderia superar dificuldades mtuas. Em resumo: entendemos que a teoria psicanaltica, dentro de critrios dePUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

cientificidade estritamente popperianos, no se sustenta como cincia. Dever a psicanlise encontrar sua racionalidade, na proposta popperiana, como um Programa de Pesquisa Metafsica. Posio idntica encontramos entre popperianos, como Rene Bouveresse Quilliot e Roland Quilliot que so citados por Elizabeth Saporiti (1997: 69), partilhando a mesma opinio:Assim sendo, a Psicanlise poderia ter pretenses de racionalidade, mesmo no sendo cientfica. (Passa a citar os Quilliot): E, quando Popper aproxima Freud de Darwin, alegando que a teoria freudiana, da mesma forma que a darwiniana, oferece o que ele chama de uma lgica das situaes, ele est reconhecendo abertamente o carter racional da teoria freudiana. Pode-se assim concluir que, na posio de Popper, nada impediu jamais que se atribusse teoria freudiana o mesmo estatuto que o prprio Popper vem atribuindo h muito tempo teoria da evoluo: o de ser um programa de pesquisa metafsica til cincia.17

Resta ainda um comentrio sobre a ambivalncia de Popper em relao psicanlise. No mesmo captulo j citado de Conjecturas e Refutaes, diz:Mencionaria aqui um ponto de concordncia com a psicanlise. Esta afirma que os neurticos interpretam o mundo de acordo com um modelo pessoal fixo, que no facilmente abandonado, e cujas razes podem remontar s primeiras fases da infncia. Um modelo ou esquema adotado muito cedo se mantm e serve como padro interpretativo para toda experincia nova, verificando-a, por assim dizer, e contribuindo para enrijec-la. Esta uma descrio do que chamei de atitude dogmtica, por comparao com a atitude crtica que tem em comum com ela a facilidade da adoo de um sistema de expectativas um mito, talvez: hiptese ou conjectura -, mas que estar sempre pronta a modific-lo, a corrigi-lo e at mesmo a abandon-lo. Estou inclinado a achar que a maioriaA Cientificidade da Psicanlise Popper e Pierce, de Saporiti, E. So Paulo: Editora Escuta, 1994.17

42das neuroses podem ser devidas ao no desenvolvimento da atitude crtica a um dogmatismo enrijecido (e no natural); resistncia s exigncias de adaptaes de certas interpretaes e respostas esquemticas. Resistncias que em si pode ser explicada, em certos casos, por uma injria ou um choque que provocou medo e o aumento da necessidade de segurana, analogamente ao que acontece quando ferimos um membro, que depois temos medo de usar o que o enrijece. (Pode-se at mesmo argumentar que o caso do membro no s analgico resposta dogmtica, mas um exemplo desse tipo de resposta). Em qualquer caso concreto, a explicao precisar levar em conta o peso das dificuldades que podem ser considerveis, especialmente num mundo complexo e cambiante: experincias feitas com animais nos ensinam que variando as dificuldades impostas, podemos provocar vrios graus de comportamento neurtico (p.79).

Infelizmente, Popper no explorou esse seu insight sobre a importncia, para a psicanlise, da distino entre um pensamento dogmtico e um pensamento crtico, que ser um dos pontos fundamentais para a compreenso das psicoses, assim como do tipo de racionalidade que aPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

psicanlise utiliza. A explorao deste ponto poderia tambm atender sugesto de Klimovsky (1987:282) quanto psicanlise poder oferecer alguma contribuio epistemologia. Reservamos para o final desta seo nossos comentrios sobre duas noes que aparecem com freqncia nas crticas de Popper e que retornaro nas de Grnbaum, principalmente a primeira. Referimo-nos s noes de sugesto e de ambivalncia. Tais conceitos merecem um lugar especial dada a forma bastante equivocada como que so tradicionalmente tratados pelos crticos da psicanlise. Quanto ao problema da sugesto, Freud se defrontou com o mesmo desde cedo e discute-o em vrios momentos, dos quais vamos selecionar: duas de suas Conferncias Introdutrias (Freud, 1916/7; S. E. XVI) as de nmero XXVII e XXVIII e seu texto j citado sobre os grupos humanos (Freud,1921; S.E. XVIII). Nestas obras reconhece o fenmeno da sugesto como um fenmeno universal, ou seja, que ocorre em qualquer situao, tanto nas relaes do indivduo consigo mesmo (auto-sugesto), como com um outro (hipnotizador, parceiro amoroso), quanto nos grupos.18 A rigor, a teoria psicanaltica nasceu da tentativa de superar certos problemas tanto clnicos18

A complexidade do problema da sugesto, que est indissoluvelmente ligado ao da afetividade, pode ser constatada no texto de Eugen Bleuler : Afetividade, Sugestibilidade e Parania (Bleuler, 1962). Adiantamos, a guisa de exemplo, o fato de fenmenos prximos sugesto serem observados tambm em animais (estouro da boiada, latidos de ces a partir de um latido inicial, etc.); assim como os tnues limites entre as noes de crena, f e sugesto.

43 como tericos que os diversos mtodos teraputicos baseados no uso da sugesto, que surgiram no final do sculo XIX, ofereciam. Do ponto de vista terico, a noo de sugesto se fez presente em todas as teorias sobre os grupos humanos em voga na poca, sob diversos nomes: imitao (Tarde), contgio (Mc Dougall), prestgio (Le Bon), como bem assinala Freud; a respeito do que comenta:Devemos, pois, estar preparados para a afirmao que a sugesto (ou mais corretamente a sugestibilidade) realmente um irredutvel e primitivo fenmeno, um fato fundamental na vida do homem. Tal, tambm, era a opinio de Berheim, de cujas impressionantes artes fui uma testemunha no ano de 1889. Contudo, posso recordar de mesmo ento ter tido um sentimento de abafada hostilidade a esta tirania da sugesto. Quando um paciente que se mostrava inacessvel, ouvia o grito: O que voc est fazendo? Vous vous contresuggestionez! , eu dizia para mim mesmo que isto era uma evidente injustia e um ato de violncia. Pois, o homem certamente tinha o direito a contra-sugestes se estavam tentando subjug-lo com sugestes. Mais tarde, minha resistncia tomou a direo de protestar contra a viso de que a sugesto, que tudo explicava, fosse ela prpria isenta de explicao. Eu repetia o velho quebra-caba: Christophorus Christum, sed Christus sustulit orbem: Constiterit pedibus dic ubi Christophorus? (Cristovo sustentava Cristo; Cristo sustentava o mundo; Diga, onde Cristovo punha ento seu p?) (Freud, 1921; S.E. XVIII:89).

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Freud vai propor como fundamento da sugesto a libido, cujo papel na dinmica dos grupos j comentamos anteriormente. Em qualquer relao pessoal a libido se faz tambm presente pelo fenmeno da transferncia, ou seja, o paciente, como qualquer pessoa, transfere para a relao com o outro vnculos afetivos que reproduzem relaes anteriores, sendo as mais bsicas as relaes com os primeiros objetos de amor e dio: pais e irmos, por exemplo. Segundo a concepo freudiana, a possibilidade de alguma forma de influncia, e no nos referimos somente teraputica, est matizada pelo fenmeno da transferncia. Esta pode ser positiva (amorosa) ou negativa (agressiva). Quando consideramos como muito equivocadas e superficiais as crticas que se baseiam no papel da sugesto, assim o julgamos pelos seguintes motivos: A Ignoram a universalidade do fenmeno. B No discutem a teoria psicanaltica da sugesto, que envolve o fenmeno da transferncia e sua teoria da libido, da mesma forma que no apresentam outra teoria concorrente.

44 C No discutem a sugesto e a resistncia mesma, ou seja, as duas formas de transferncia que Freud prope. Importante lembrar que no s na psicanlise, mas tambm na tradio psiquitrica, to importante quanto a sugestibilidade o seu oposto: o negativismo, freqente em quadros psicticos. Da mesma forma, no discutido o aspecto seletivo da sugesto, isto : o paciente no aceita qualquer interpretao ou explicao. D Como h pouco mencionamos, ao citar Popper sobre o pensamento dogmtico (neurtico) e o pensamento crtico (normal), no pretende a teoria psicanaltica explicar o sintoma ou a histria do paciente, mas sim permitir que este encontre significaes, as quais sero sempre provisrias, permitindo re-significaes, o que o pensamento dogmtico no possibilita. Lembramos que um dos sintomas caractersticos patognommico dasPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

psicoses a impossibilidade de um pensamento crtico. O delrio para tomarmos a forma paradigmtica do pensamento psictico necessariamente irredutvel argumentao racional; sua verdade evidente e manifesta, suas idias so, muitas vezes, claras e distintas, no dando margem a dvidas, segundo o ponto de vista do paciente. Neste sentido que pensamos ter escapado a Popper, como a outros epistemlogos da mesma tradio, que desprezam o irracional, a contribuio fundamental da psicanlise ao problema da psicose: o seu carter de um pretenso conhecimento privado.19 Quanto noo de ambivalncia, Popper admite a existncia do fenmeno, mas o considera um obstculo testabilidade da psicanlise:Mas que resultados clnicos poderiam refutar satisfatoriamente no s um diagnstico analtico em particular mas a prpria psicanlise? Os analistas tm discutido critrios e concordado com eles? No existir, ao contrrio, toda uma srie de conceitos analticos como, por exemplo, o conceito de ambivalncia (no estou sugerindo que esse conceito no exista) que tornariam difcil, se no impossvel, chegar a um acordo sobre tais critrios? (Popper, 1972:67).

Poderamos pensar que um psicanalista de inclinao popperiana responderia s inquietaes de Popper, sugerindo a aplicao do mtodo da anlise situacional, prprio para as teorias no testveis (metafsicas, segundo Popper) pelos mtodos das cincias empricas. Contudo, este pontoVoltaremos ao tema, principalmente, no Captulo 5. Dado carter o sinttico deste captulo, indicamos aos interessados o Anexo III da Dissertao de Mestrado, onde tambm desenvolvemos nossa compreenso do problema do conhecimento privado nas psicoses, a partir de uma discusso de textos de Descartes, Wittgenstein e Borges.19

45 escapa a Popper que na continuao do trecho acima citado vai mostrar sua surpresa, aps uma citao um tanto truncada de Freud, pelo fato deste reconhecer que muitos dos sonhos usados nas anlises devem-se sugesto do analista. Como procuramos h pouco esclarecer o fenmeno da sugesto reconhecido pela teoria psicanaltica e um de seus problemas.20 O mesmo ocorre com a noo de ambivalncia. A psicanlise no pretende elimin-la de sua ontologia, pelo contrrio, mas oferecer uma teoria que lhe d sentido. O termo ambivalncia foi utilizado por Freud, tornando-se progressivamente mais relevante em sua teoria, a partir da introduo do mesmo na psiquiatria, por Eugen Bleuler, como nos conta Laplanche e Pontalis (1970):O termo ambivalncia foi por Freud tomado a Bleuler, que o criou. Bleuler considera a ambivalncia em trs domnios. Voluntrio (Ambitendentz): o indivduo quer ao mesmo tempo comer e no comer, por exemplo. Intelectual: o indivduo enuncia ao mesmo tempo uma proposio e o seu contrrio. Afectivo: ama e odeia num s movimento a mesma pessoa. Bleuler faz da ambivalncia um sintoma preponderante da esquizofrenia, mas reconhece a existncia de uma ambivalncia normal. ... Bleuler acaba por privilegiar a ambivalncia afectiva, e este sentido que orienta a utilizao freudiana (Laplanche e Pontalis, 1970, 49).

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Como comum ocorrer na histria da psiquiatria, uma noo como a de ambivalncia surge, inicialmente, na descrio de quadros graves, sendo mesmo um dos sintomas bsicos da esquizofrenia [Bleuler (1911), 1960], e aos poucos identificada como constituinte da vida psquica normal. Como registramos na Introduo o inusitado daqueles fenmenos que no so absorvidos pela psicologia normal seriam os tipicamente psicticos, como o caso das idias delirantes. Coube teoria psicanaltica fazer uma radical aproximao entre essas duas classes de fenmenos psicticos e normais embora mantendo um diferencial. neste sentido que a ambivalncia vai aparecer na teoria psicanaltica como uma manifestao de um permanente conflito entre tendncias pulsionais amor e dio pelo mesmo objeto, por exemplo. Est tal conceito ambivalncia tambm na base da noo de conflito mental, sem a qual ficaria ininteligvel a proposta psicanaltica e, segundo esta, a prpria compreenso da vida psquica. Consideramos20

Utilizamos aqui o termo problema na acepo que ampla que lhe d Larry Laudan, ou seja: como uma das questes que uma determinada tradio de pesquisa se prope a resolver. Tais noes so discutidas detalhadamente na seo 2 do CAPTULO III de nossa disssertao de mestrado e, de uma forma mais sinttica, na seo 2.5 deste captulo.

46 extremamente equivocada a crtica epistemolgica, baseada no fato da teoria psicanaltica utilizar o conceito de ambivalncia, quando tal crtica no apresenta outra teoria rival para dar conta do problema, ao mesmo tempo que reconhece a legitimidade de sua existncia.

2.2 A avaliao de Adolf Grnbaum No domnio do debate epistemolgico que envolve a tradio popperiana, Adolf Grnbaum um prestigiado nome da filosofia da cincia contemporneaPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

realizou a mais minuciosa e consistente

crtica

epistemolgica teoria psicanaltica de que temos conhecimento. Dentro de uma perspectiva prpria utiliza concepes popperianas, corrigindo muitas vezes as afirmaes imprecisas e esparsas de Popper a respeito da psicanlise. Tomaremos como referncia o seu texto mais longo e detalhado: The Foundations of Psychoanalysis A Philosophical Critique (Grnbaum, 1984), no s pela abrangncia de sua crtica, como pela grande repercusso que teve e ainda tem no ambiente psicanaltico. No temos notcia de alguma resposta s suas crticas com igual amplitude. Como no temos a pretenso de preencher esta lacuna, o que exigiria um trabalho especfico, limitar-nos-emos a articular suas crticas s de Popper, apontar nossas concordncias e discordncias, e, seguindo nossa metodologia deixar nossos questionamentos para a seo dedicada crtica tradio epistemolgica anglo-sax. Julgamos mais objetivo apresentar a avaliao de Grnbaum a partir de suas concluses:Trs principais concluses emergem das avaliaes que fiz nos captulos precedentes. 1 Na medida em que a evidncia para o corpo psicanaltico atualmente tida como derivar das produes dos pacientes em anlise, esta garantia acentuadamente fraca. 2 Em vista do meu relato das falhas epistmicas inerentes ao mtodo psicanaltico, pareceria que a validao das hipteses cardinais de Freud tem que vir, se possvel, principalmente de estudos extra-clnicos, ou epidemiolgicos, ou mesmo experimentais, bem configurados (ver Masling 1983; Eysenck e Wilson 1973). Contudo esta avaliao uma tarefa para o futuro.

473 Apesar da pobreza das credenciais clnicas, talvez possa ocorrer que a brilhante imaginao terica de Freud tenha sido real e fortuitamente bem sucedida para a psicopatologia ou a compreenso de alguma sub-classe de atos falhos. Entretanto, enquanto a psicanlise possa assim ser vista como cientificamente viva, ela no est atualmente nada bem, pelo menos no que diz respeito aos seus fundamentos clnicos. Nem h um favorvel veredito de tais achados experimentais como tivemos ocasio de discutir em profundidade no captulo 3 (pg. 188-89), cap. 4 (pg. 202-05) e cap. 9 (p. 270).

A crtica de Grnbaum, em sua obra principal, se divide em duas partes: uma longa introduo, na qual procura contestar a viso hermenutica da psicanlise, e o corpo central do livro, no qual discute sempre a partir dos prprios textos freudianos os standards epistemolgicos de Freud. A crtica hermenutica foge ao escopo de nosso trabalho e registramos apenas a estratgia fundamental da argumentao de Grnbaum, que se dirige sobretudo a Habermas e Paul Ricoeur.PUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

A idia que Grnbaum atribui aos hermeneutas a de que Freud teria se auto-equivocado, propondo ser a psicanlise uma cincia natural, obedecendo a leis causais semelhantes s utilizadas na fsica ou qumica, enquanto o mtodo que emprega seria na realidade o das cincias humanas. Estas no se enquadrariam no mesmo tipo de leis que as cincias naturais, uma vez que obedeceriam causalidade do destino. Termo que Habermas tomaria de Hegel e, aplicando psicanlise, sugeriria que a mesma procura compreender os sintomas, quadros clnicos, luz de uma narrativa histrica do indivduo. Assim, os resultados teraputicos segundo o entendimento de Grnbaum da posio dos hermeneutas seriam fruto da liberao, pela dissoluo da represso (isto , dos contedos ideativos de que o paciente no tem conscincia), de uma mais livre capacidade de auto-reflexo. Grnbaum vai criticar, desde a dicotomia cincias naturais e cincias humanas at o papel da auto-reflexo. Considera que Habermas tem uma viso equivocada da metodologia das cincias naturais, uma vez que estas tambm dependeriam do contexto histrico, no diferindo das cincias humanas a este respeito. O contexto histrico de que Grnbaum fala refere-se s ocorrncias dos eventos fsicos, materiais num determinado tempo, sob certas condies, ligados a um passado de outros eventos. Quanto crtica auto-reflexo, o papel da conscincia no abordado, sendo a crtica centrada na incompetncia do

48 paciente de ter um papel privilegiado no processo de avaliao epistemolgica do trabalho psicanaltico. Tais objees so mais voltadas a Habermas. Em relao a Ricoeur, as crticas vo dirigir-se ao fato de restringir o domnio de conhecimento do objeto psicanaltico linguagem. Ou seja, Ricoeur considera que o campo epistemolgico da psicanlise, por excelncia, o dilogo clnico, sendo que somente por seu intermdio poder-se-ia fazer uma avaliao da validade da teoria psicanaltica. Grnbaum rejeita tal limitao e faz referncia aos elementos no-verbais dos quais a psicanlise faz extenso uso. O ponto que Grnbaum enfatiza, em sua crtica, o fato de que: ... Ricoeur insiste que a psicanlise no satisfaz os standards da cincia de observao e os fatos com que ela lida no so verificveis por mltiplos, independentes observadores ... no h fatos nem qualquer observao dePUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

fatos em psicanlise mas a interpretao de uma narrativa histrica. (p.44/5) Dentro de sua proposta epistemolgica, que no distingue cincias naturais e humanas, Grnbaum ora reduz as formulaes de Ricoeur a um modelo explicativo causal, ora vai apontar o que entende ser incoerncias na investigao de Ricoeur, como quando: ... ele (Ricoeur) nada oferece em relao validao de hipteses causais, das quais, ele reconhece, a teoria de Freud est repleta ! (p.68). Ainda nesta parte introdutria, de crtica aos hermeneutas, vai Grnbaum negar a distino entre razes e causas. Sua crtica a tal distino se remete ao trabalho de von Wright (1977) Explanation and Understanding que caracteriza as explicaes sobre as aes humanas como ... fazendo os fenmenos teleologicamente inteligveis mais do que previsveis (ou explicveis) a partir do conhecimento de suas causas eficientes. (citao que faz de von Wright 1977:8, na p.69). Sua discusso deste ponto de vista fica bastante prejudicada, pois, como em outras ocasies, procura reduzir a argumentao oponente a explicaes causais, sem contudo examinar detalhadamente os fundamentos do texto de von Wright. Mesmo que isto ocorra pelo fato do tema ser tratado numa introduo, pareceu-nos tambm indicativo o papel secundrio que d linguagem. A respeito do silogismo prtico, exposto por von Wright, Grnbaum formula-o da seguinte maneira:A questo da razo versus causa (r vs. c) se desenvolve por referncia ao assim chamado silogismo prtico, que tem a seguinte forma: uma ao A tida

49como levada a efeito porque o agente objetiva alcanar o alvo G e acredita que realizando A atingir G. E, indicando estas razes estabelecidas para fazer A, R vs. C nega que um estado de um agente de ter uma razo para ao (no sentido explicativo) possa pertencer a uma espcie do gnero causa (p.70).

Grnbaum critica a especificidade do silogismo prtico para a compreenso do agir humano sem, entretanto, discutir os pontos fundamentais da argumentao de von Wright que envolvem, por exemplo, o espao da liberdade (o agente poder ou no realizar a ao A, embora tenha todos os motivos, ou razes, para tal) e a distino lgico-lingustica das descries, que tomam as formas: causais ou teleolgicas, segundo estruturas lgicas distintas que as sustentam. A linha argumentativa de Grnbaum, nesta introduo, est dirigida no somente crtica das teorias hermenuticas da psicanlise, mas aoPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

estabelecimento do mtodo que ir empregar na parte principal de seu livro:Declaradamente, seus (de Freud) critrios de validao so essencialmente aqueles do indutivismo hipottico-dedutivo (Freud, S.E. 1914, 14:77; 1915, 14:117; 1923, 20:32). E a adeso a eles a marca distintiva da probidade cientfica que requeria para sua teoria. Da, cumpre a mim avaliar os argumentos de Freud em favor de sua monumental teoria clnica e terapia da personalidade, segundo seus prprios standards (p.93/4).

Antes de entrarmos na avaliao de Grnbaum, gostaramos de assinalar que, pelo afirmado acima, o autor seguir uma metodologia prpria, diversa da de Popper, em sua crtica. Utilizar o que entende, a nosso ver, com uma boa fundamentao nos textos que cita de Freud, ser os prprios standards deste. No toma, portanto, como Popper supostamente faria, a psicanlise como uma teoria do Mundo 3, passvel de ser investigada independente das intenes de seu criador. A propsito, bom lembrar que outros autores, como von Wright (1977), consideram que Freud utiliza tanto formulaes causalistas como teleolgicas, ou seja, tanto explica, como compreende. Grnbaum desenvolve a parte mais substantiva de sua crtica aos fundamentos da psicanlise em duas etapas: inicialmente, vai defender em oposio a Popper que a teoria psicanaltica uma teoria testvel e, em seguida, que os testes baseados na experincia clnica a refutam. Vejamos esses dois momentos. A refutabilidade da psicanlise evidenciada por diversas citaes de Freud, nas quais este prope possibilidades de ocorrncias clnicas que

50 invalidariam a teoria psicanaltica. Grnbaum d como exemplo o texto: Um Caso de Parania que Contraria a Teoria Psicanaltica da Doena (Freud, 1915, S.E. XIV: 263-272). Vamos deter-nos neste exemplo, uma vez que o autor o utiliza com freqncia, assim como o tema da parania, e serve de paradigma para a sua tese quanto refutabilidade da teoria psicanaltica. Cita Freud: A teoria psicanaltica da parania, que est em questo no trabalho, a hiptese que o amor homossexual reprimido causalmente necessrio para o sofrimento por delrios paranides (Freud, 1915, S.E. XIV: 265-266). (p. 108) Por outro lado, o caso clnico descrito o de uma jovem que se sente perseguida por seu amante, ou seja, por uma pessoa do sexo oposto, enquanto que, segundo a teoria psicanaltica da doena, o perseguidor deveria ser do mesmo sexo. Tal previso seria possvel, pois, o amorPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

homossexual reprimido apareceria conscincia como o seu oposto em vez de eu o(a) amo , eu o(a) odeio e/ou ele(ela) me persegue. O caso, descrito de uma forma brilhantemente sucinta por Freud, esclarecido por este uma vez que surge uma figura feminina, na segunda entrevista que tem com a paciente que se revela, segundo a interpretao freudiana, como a verdadeira perseguidora. Tratar-se-ia de um final feliz. Para Freud, estaria salva a teoria psicanaltica da paranoia e, para Grnbaum, estaria demonstrada a possibilidade de refutao da psicanlise que, ao contrrio do que afirmava Popper, prev situaes em que a teoria poderia ser refutada, alm de apresentar-se como uma teoria baseada em nexos causais necessrios, contrariando a posio dos hermeneutas. Entretanto, julgamos que um exame mais cuidadoso de toda a situao pode levar mais a dvidas do que a confirmaes, neste ou naquele sentido. Grnbaum retira importantes implicaes para a sua tese deste exemplo, resumindo-as no seguinte trecho:Da, este exemplo tem uma ampla e importante moral: sempre que indicadores empricos possam garantir a ausncia de um determinado fator patognico terico P, assim como um diagnstico diferencial pela presena de uma determinada neurose terica N, ento uma hiptese etiolgica de uma forte forma P causalmente necessria para N clara e empiricamente falsevel. Seria falsevel para qualquer vtima de N que no tivesse sido sujeita a P. Pois, a hiptese prediz que qualquer um que no esteja assim sujeito (ao fator P) ser poupado dos tormentos de N, uma predio que tem uma implicao profiltica significativa. Da mesma forma, a hiptese retrocede que qualquer caso de N foi tambm um caso de P. Da, se h indicadores empricos para a presena de P,

51ento esta retrocedncia pode ser empiricamente instanciada por uma pessoa que exemplifica tanto N quanto P. (p.109).

Mesmo reconhecendo as ressalvas que Freud faz, no trabalho estudado, quanto ao papel do fator patognico amor homossexual reprimido no desenvolvimento da parania, insiste Grnbaum que tal situao paradigmtica da refutabilidade da teoria psicanaltica, ao contrrio do que postulava Popper. Vai mais longe: ... se a homossexualidade reprimida realmente um fator etiolgico especfico na parania, ento o declnio do tabu que cerca a homossexualidade em nossa sociedade deveria ser acompanhado por decrscimo de incidncia de parania masculina. (p. 111) No mesmo local, pouco adiante, faz tambm suas ressalvas, quanto ao teste que prope, acrescentando a clusula ceteris paribus, ou seja, no havendo outrosPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

elementos propiciadores da enfermidade operando. No considera, porm, que tal restrio seja significativa, tal o carter de conditio sine qua non (sic) do fator patognico. Acrescenta, sempre citando a obra de Freud, vrios outros momentos em que Freud coloca sua teoria em posio suscetvel de teste emprico, que o tema de toda essa seo de seu livro (p. 97-126). Seu dilogo com Popper, chegando inclusive a criticar a inconsistncia do caso imaginado em Conjecturas e Refutaes o da criana sendo afogada ou salva por algum (para ambas as situaes a psicanlise teria explicaes) mostrando sua fragilidade epistemolgica. Tudo isso o leva a formular uma das teses centrais de seu livro: uma tese central deste ensaio que o mtodo clnico psicanaltico e as inferncias causais (etiolgicas) baseadas nele so fundamentalmente falhos, sob o ponto de vista epistemolgico, por razes outras que no a sua nofalseabilidade (p.124).

Antes de entrarmos nas outras razes de Grnbaum, julgamos conveniente examinar a situao que toma como modelo para demonstrar a falseabilidade da teoria psicanaltica, a fim de no acumularmos tantas questes como as que surgiro quando de nossa avaliao da proposta epistemolgica da tradio popperiana. Vamos listar concordncias, discordncias e, sobretudo, questionamentos acerca de pontos que achamos indecidveis:

52 A - Concordamos com Grnbaum que a teoria psicanaltica, tal como foi formulada por Freud, se prope a ser testada nos moldes tradicionais, ou seja: por induo e por refutao, de forma categrica. Considerar o mtodo freudiano como indutivismo hipottico-dedutivo, tudo indica corresponder a uma posio pessoal de Freud. Isto no impede que ela seja tratada de outros ngulos e que o prprio Freud tenha utilizado, por exemplo, o mtodo de conjecturas e refutaes. Um bom exemplo deste ltimo procedimento o famoso Caso Schreber, onde Freud aps a exposio do livro de memrias de Schreber conjectura interpretaes, luz da psicanlise, do relato de Schreber e salta para uma teoria explicativa da parania. Neste exemplo, a induo no desempenhou papel algum e temos uma teoria, que se no se oferece a teste, se oferece anlise crtica.PUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

B - Por outro lado, discordamos de Grnbaum no que diz respeito ao seu entendimento da teoria psicanaltica da parania. No texto que tomado como modelo h comentrios de Freud que podem esclarecer-nos quanto complexidade do fenmeno e a impossibilidade de reduzi-lo to simplesmente ao esquema: P (fator patognico: amor homossexual reprimido) (parania). Vejamos o que diz Freud:... A literatura psicanaltica j havia colocado o ponto de vista de que pacientes sofrendo de parania esto em luta contra a intensificao de suas tendncias homossexuais um fato indicativo de uma escolha de objeto narcsica. E mais uma outra interpretao havia sido feita: que o perseguidor no fundo algum a quem ama ou amou no passado. [nota de rodap do editor: Ver Parte III da anlise de Freud de Schereber (1911c)] Uma sntese das duas proposies conduziria-nos necessria concluso que o perseguidor deveria ser do mesmo sexo da pessoa perseguida. Ns no mantnhamos, verdade, como sem exceo e universalmente vlida a tese que a parania determinada pela homossexualidade; mas isto era somente porque nossas observaes no eram suficientemente numerosas; a tese era uma daquelas que em vista de certas consideraes somente se torna importante quando pode reivindicar aplicao universal. Na literatura psiquitrica no h certamente falta de casos em que o paciente se imagina perseguido por uma pessoa do sexo oposto. Contudo, uma coisa ler tais casos, e outra completamente diferente vir a ter contato pessoal com um desses pacientes. Minha prpria observao e anlises, assim como aquelas de amigos tinham at ento confirmado a relao entre parania e homossexualidade sem qualquer dificuldade (p. 265).

N

Esta citao, to na linha da compreenso de Grnbaum, precisa ser vista luz da seguinte, duas pginas aps:

53O perseguidor original (itlico de Freud) a agncia de cuja influncia o paciente deseja escapar aqui, mais uma vez, no um homem mas uma mulher. A chefe sabia acerca do caso amoroso da jovem, desaprovava-o, e mostrava sua desaprovao atravs de misteriosos indcios. A fixao da paciente a seu prprio sexo opunha-se a suas tentativas de adotar uma pessoa do outro sexo como um objeto amoroso. Seu amor por sua me tinha se tornado o porta-voz de todas aquelas tendncias que, representando a parte de uma conscincia, procuram deter um primeiro passo da jovem no sentido do novo caminho para a satisfao sexual normal em muitos aspectos um caminho perigoso; e realmente ela (conscincia) foi bem sucedida em perturbar a relao da jovem com os homens (p. 267).

Quando Freud fala de escolha objetal narcsica, refere-se a uma forma de eleio do objeto ao qual a libido vai dirigir-se que, de alguma forma, representa o prprio paciente como ele , como ele foi ou como ele gostaria de ser. No se trataria necessariamente de uma ligao homossexual (no sentido coloquial da expresso), o que importa o carter indicativo de umaPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

regresso ao narcisismo, noo que Freud desenvolveu aps formular sua teoria acerca da parania. A rigor, em seu estudo de um caso de parania, o j mencionado Caso Schreber, em 1911, j surge o embrio do conceito que vai ser desenvolvido em 1914 (Uma Introduo ao Narcisismo). Importante frisar a noo de conflito mental que a citao acima evidencia. Tal conflito ocorre na intimidade do indivduo, inconscientemente, e independe de fatores externos, como os tabus sociais. De nada adiantaria, no caso estudado, que houvesse uma aceitao social de suas tendncias homossexuais, pois, quem no as aceitava era a prpria paciente! Isto, por um lado, invalidaria a proposta de teste feita por Grnbaum e reforaria a suposio de Popper, quanto a notestabilidade da teoria psicanaltica. Este um dos motivos de termos anteriormente sugerido a anlise situacional como melhor mtodo de avaliao da teoria psicanaltica, dentro dos parmetros popperianos. C O comentrio anterior nos leva a algumas consideraes sobre a proposta epistemolgica de Grnbaum que parece instanciar o que Lakatos denominou de falseacionismo dogmtico. Sua tentativa de isolar uma hiptese para testar toda a teoria mostra-se invivel. Apesar de adiante retomarmos este ponto, gostaramos de fazer alguns comentrios sobre a parania que um quadro mental muito propcio discusso dos limites da razo, do uso de padres de racionalidade e temas afins que interessam pesquisa da qual esta tese faz parte.

54 D - Restringindo-nos ao campo da psicanlise e, em particular, s formulaes de Freud, concordamos com Laplanche e Pontalis (1970) no sentido de que ele usa o termo parania - tal como a tradio kraepeliniana. Ou seja: parania seria um delrio sistematizado que se organizaria numa personalidade que permanece conservada, no apresentando portanto deteriorao (por exemplo: uma pseudo-demncia, como ocorre no caso das esquizofrenias), assim como distrbios da senso-percepo (alucinaes). Por este motivo, os verdadeiros casos de parania so de difcil diagnstico e, raramente, so encontrados em pacientes que procuram tratamento, psiquitrico ou psicanaltico. Em geral, vamos encontrar paranicos no forum (eternos reivindicadores de heranas, de indenizaes, ou outras questes sempre obscuras, quanto a seus fundamentos), nos movimentos msticos,PUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

polticos, ou, em casos policiais (principalmente, em crimes passionais, por delrio de cimes). Lembremos que o caso a que Grnbaum se refere, um caso em que Freud foi chamado a entrevistar a cliente de um advogado. No se tratava de algum que procurou tratamento, devido a um sofrimento mental, mas uma jovem que desejava resguardar sua honra, atravs da justia. Julgamos oportuno este breve registro por considerar que qualquer que seja a teoria psicanaltica ou psiquitrica que se proponha a dar conta do fenmeno da parania ser de problemtica testabilidade emprica, devendo explicitar o contexto em que o problema surge e os padres de racionalidade em jogo. Grnbaum continua sua crtica filosfica aos fundamentos da psicanlise, examinando a validade da investigao clnica proposta por Freud e a teoria da represso. Discutiremos estes dois pontos de forma um tanto sucinta, uma vez que como j dissemos mereceriam uma resposta to extensa quanto o trabalho do autor, que bastante minucioso. Nosso interesse, contudo, mais geral: explicitar a racionalidade de sua crtica, no mbito da tradio popperiana. O Argumento de Correspondncia (Tally Argument) Esta uma expresso criada por Grnbaum, a partir de sua leitura de Freud, para caracterizar os pressupostos de Freud para validar epistemologicamente o mtodo psicanaltico de investigao clnica. Tais pressupostos seriam:

55 A Negao de contaminao epistmica irremedivel dos dados clnicos, pela sugesto. B Distino fundamental entre o tratamento psicanaltico e as terapias rivais que trabalham essencialmente por sugesto. C Afirmao da validade dos principais fundamentos do mtodo psicanaltico como a etiologia especfica sexual das diversas psiconeuroses por mtodos retrospectivos, ou seja, reconstituies das origens da enfermidade. D Possibilidade de garantia, independente de controle estatstico, de resultados favorveis da interveno psicanaltica, assim como de comparao com grupos de controle no tratados psicanaliticamente. E Reconhecimento de que o paciente, uma vez livre de conflitosPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

reprimidos, est credenciado a dar informaes fidedignas por autoobservao introspectiva acerca de suas motivaes. Grnbaum vai procurar demonstrar que tais pressupostos so falhos, fundamentalmente, pelo papel decisivo da sugesto. Admite que Freud est atento a tal objeo, quando afirma: Afinal, seus conflitos (do paciente) somente sero satisfatoriamente resolvidos e suas resistncias superadas se as idias antecipatrias que lhe so dadas correspondam com o que real nele. Tudo aquilo que nas conjecturas do mdico inadequado desaparece no curso da anlise ... deve ser retirado e substitudo por algo mais correto. (Freud, S.E. 1917, 16: 452) (grifo nosso). a partir dessa citao que surge a idia de argumento de correspondncia, pois, a mera sugesto no daria conta da remisso do quadro patolgico, o qual teria suas razes na atividade inconsciente. Precisa haver uma correspondncia, entre a interpretao e o real conflito inconsciente. Grnbaum vai tirar da tambm outras exigncias epistemolgicas, como a que chamou: Tese da Condio Necessria (NCT Necessary Condition Thesis) Acredita Grnbaum, a partir principalmente das leituras de duas conferncias de Freud (Sobre a Transferncia e A Terapia Analtica, in S.E. XVI), poder afirmar que segundo Freud:

561) somente o mtodo psicanaltico de interpretao e tratamento pode permitir ou mediar ao paciente o insight correto dos fatores patognicos inconscientes de sua psiconeurose; 2) o correto insight da etiologia de seu sofrimento e da dinmica inconsciente de seu carter , por sua vez, causalmente necessrio para a conquista teraputica de sua neurose. Eu me referirei conjuno destas duas reivindicaes freudianas com sua Tese da Condio Necessria ou, por brevidade, NCT (p. 140).

Julga Grnbaum que Freud, com o correr de sua obra, abandonou estes princpios epistemolgicos (Tese da Condio Necessria), tornando seu projeto muito frgil em relao a outras terapias e mesmo remisso espontnea de sintomas. As crticas se dirigem a dois pontos: subestimao do papel da sugesto na terapia analtica e aceitao da substituio de sintomas. Tal substituio, ou mesmo manuteno de sintomas (como resqucios de represses), comprometeria as exigncias epistemolgicas de validao daPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

teoria e tcnica psicanalticas, propostas pelo prprio Freud. Grnbaum dedica toda a segunda parte de seu livro a questionar a teoria da represso, uma vez que para Freud: A teoria da represso a pedra fundamental em que repousa toda a estrutura da psicanlise. a sua parte mais essencial. (Freud, S.E. 1914, XIV:16) Segundo tal teoria, contedos ideativos no aceitos pelo ego consciente, seriam recalcados para o inconsciente, ou, a rigor, no alcanariam a conscincia, permanecendo inconscientes, enquanto os afetos a eles ligados se manifestariam de formas variadas: ligar-se-iam aos sintomas, somticos (como no caso das histerias), ou, a outras idias muito afastadas das originais recalcadas (como no caso das obsesses). Deste modo, os sintomas satisfariam de alguma forma a necessidade de expresso daquilo que foi recalcado. Tal mecanismo estaria na base tambm dos sonhos (cujos contedos de que temos lembrana contedo manifesto representam de forma quase que alegrica, contedos, ou desejos, a que no podemos ter acesso direto o contedo latente), nos lapsos de linguagem ou nos atos falhos. Como Freud prope que a associao livre o falar livremente do analisando, sem preocupao de articulao consciente de temas ou restries de qualquer ordem a interpretao dos sonhos, dos lapsos de linguagem e das parapraxias seriam o meio, por excelncia, de atingirmos os tais contedos inconscientes, vai Grnbaum questionar a validade de tal metodologia. No

57 acredita encontrar nexo causal no processo de associao de idias, o qual alm de estar contaminado pela sugesto do analista, inclusive a oriunda das interpretaes (que propiciariam certa linha de associao), incidiria no erro lgico do post hoc ergo propter hoc (depois disso, logo por causa disso), da confuso do antecedente com causa. Considera Grnbaum que as teorias rivais como as de base psicolingsticas ofereceriam explicaes melhores para os lapsos, prescindindo das obscuras noes de contedos inconscientes. Uma vez que foge aos interesses desta tese discutir especificamente o exame de Grnbaum, mas tom-lo como um modelo de teoria epistemolgica dentro da tradio popperiana, embora com ela muitas vezes conflitante que refuta a teoria psicanaltica, pensamos poder encerrar a apresentao de suas crticas, acrescentando apenas os comentrios que faz sobre as teoriasPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

ps-freudianas da psicanlise. A rigor, Grnbaum no as examina, pois considera que:[...] uma vez que estas teorias neo-revisionistas ps-freudianas so, em realidade, psicanalticas, elas abraam alguma verso etiolgica da teoria da represso. Mais ainda, elas se baseiam epistemicamente na livre associao para a investigao clnica por fatores patognicos propostos e outros determinantes inconscientes do comportamento, e a suspenso das represses como um meio de efetuar a terapia ... minha crtica epistmica das hipteses originais de Freud aplica-se com igual fora s bases etiolgicas, desenvolvimentistas e teraputicas destes sucessores (p.246-7).

Grnbaum reitera tal posio em outros textos (1983), o que nos parece devido a duas ordens de fatores: o restrito contato que teve com a teoria de relaes de objeto, principalmente a chamada escola inglesa (Melanie Klein, Money-Kyrle, W.R.Bion, por exemplo), e o carter fortemente prescritivo de sua proposta epistemolgica, que o impede de observar outras possibilidades de racionalidade e, sobretudo, como realmente os cientistas trabalham. Lembremos neste ltimo caso os questionamentos de Lakatos e Feyerabend a Popper. Melvin Lansky (1997)21 faz uma esclarecedora sntese sobre a crise filosfica da psicanlise produzida a partir das contribuies de Melanie

21

Melvin Lansky professor de psiquiatria (UCLA Medical School), psicanalista (Los Angeles Psychoanalitic Society) e tem formao filosfica (Doutorado em Berkeley, CA). Desenvolve h vrios anos um trabalho, atravs de grupos de estudo e cursos com psicanalistas de formao semelhante, de investigao das relaes psicanlise e filosofia.

58 Klein (teoria das relaes de objeto).22 Estas contribuies, embora se mantenham dentro do paradigma freudiano, levantam novas questes para a epistemologia da psicanlise, tais como: as origens das fantasias inconscientes, o processo de formao de smbolos, o papel da experincia, entre outras, que vm ao encontro de questes da tradio filosfica. Considera Lansky que esses temas, no entanto, no foram tratados filosoficamente por Melanie Klein, mas por alguns de seus seguidores, como Money Kyrle (a partir de uma perspectiva humeana) e, em especial, por W. R. Bion (com forte influncia kantiana). Como voltaremos a este ponto no decorrer da tese, especialmente quando discutirmos a avaliao de Marcia Cavell, deixamos apenas o registro no sentido de assinalar a equivocada apreciao de Grnbaum dos desenvolvimentos da teoria psicanaltica.PUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

2.3 A avaliao de Klimovsky Gregorio Klimovsky, epistemlogo argentino, matemtico de formao, acerca de trinta anos vem participando de um grupo de estudos, com psicanalistas de vasta experincia e respeitabilidade, sobre epistemologia e psicanlise. Klimovsky se dedica histria da filosofia da cincia, tendo publicado: Las Desventuras del Conocimiento Cientfico Una introduccin a la epistemologa (Buenos Aires: A-Z editora, 1994) e, mais recentemente, em colaborao com Cecilia Hidalgo, antroploga que trabalha em epistemologia das cincias sociais, La Inexplicable Sociedad Cuestiones de epistemologa de las ciencias sociales (Buenos Aires: A-Z editora, 1998). Ambos os livros so de orientao popperiana. Contudo, em seu ensaio Aspectos Epistemolgicos da Interpretao Psicanaltica (in, Fundamentos da TcnicaA Teoria das Relaes de Objeto foi inicialmente formulada na Inglaterra, por Fairbain e Melanie Klein, com caractersticas diferentes, assim como quando adotada por outras correntes psicanalticas. Tal teoria privilegia, para a compreenso psicanaltica dos conflitos mentais, as relaes inconscientes que o paciente mantm com suas figuras internas significativas me, pai, irmos, ou com objetos parciais: seio, pnis, me-boa (gratificadora), me-m (frustradora), etc. que constituiriam o mundo interno do paciente. As correntes que utilizam, fundamentalmente, as relaes de objeto para a compreenso clnica e mesmo para o entendimento da estruturao mental, do relevo s ltimas formulaes de Freud, em que divide o psiquismo em: ego, id e super-ego.22

59 Psicanaltica, cap. 34, de Horcio Etchegoyen), que vai expor mais detalhadamente sua proposta epistemolgica para a psicanlise:[...] cremos que a psicanlise mais exatamente uma teoria modelstica: proporciona um modelo de funcionamento do aparato psquico do qual se desprendem certas conseqncias sobre a conduta manifesta dos seres humanos e, em particular, dos pacientes. Nesse sentido, parece que em psicanlise mais freqente, ainda que no obrigatrio, que operem leis do tipo que estamos agora estudando; se ocorre internamente algo do tipo B, que se vai observar algo do tipo A. Na classe de casos que nos est preocupando, portanto, interpretar ser propor uma hiptese e ver como dela sai, dedutivamente, com o auxlio de leis, o que queramos explicar (op. cit., p. 275).

Julgamos que uma melhor compreenso da proposta de Klimovsky, exige que esclareamos sua posio mais ampla em relao epistemologia e aos problemas que se colocam filosofia da cincia, dentro da tradio angloPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

sax a que nos restringimos. Klimovsky defende a adoo do mtodo hipottico-dedutivo em sua verso complexa esta a terminologia que emprega quer para as cincias naturais, quer para as humanas. Em sua obra maior (Klimovsky, 1994), a psicanlise freqentemente citada como um dos empreendimentos cientficos que levanta questes ao emprego do mtodo hipottico-dedutivo em sua verso simples. Tal distino corresponde, em grande parte, a que Lakatos faz entre o falseacionismo dogmtico ou ingnuo (mtodo hipottico-dedutivo em sua verso simples) e o falseacionismo sofisticado (mtodo hipottico-dedutivo em sua verso complexa), o qual seria uma espcie de desenvolvimento natural do pensamento popperiano. (Klimovsky, 1994: 217) Embora Klimovsky encampe tal posio de Lakatos, no se identifica necessariamente com o restante da proposta lakatosiana, mantendo-se mais fiel linha de pensamento de Popper. As razes que levaram Klimovsky a postular uma nova verso para o mtodo hipottico-dedutivo so semelhantes s de Lakatos e prendem-se s insuperveis dificuldades que cercam as experincias cruciais. Estas so examinadas em detalhes, tanto no plano terico como atravs da discusso de exemplos histricos. Do ponto de vista terico, o esquema abaixo mostra a complexidade do problema e a conseqente questionabilidade da refutao dogmtica (ingnua ou naturalista, na terminologia de Lakatos):

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Figura 1 - Esquema de Klimovsky de tipos de hipteses, dados e conseqncias observacionais

Hipteses e Teorias Pressupostas Constituem o marco terico que envolve a Teoria Especfica que est sendo testada. Nesta ltima surgem sempre termos que provm de outras teorias dadas como aceitas. Exemplifica, mostrando que uma teoria qumica que fale de tomos e valncias, no poder deixar de utilizar termos como massa e fora que provm da mecnica newtoniana. Esta, por sua vez, emprega noes geomtricas baseadas na geometria euclidiana. Estaramos, assim, sempre pressupondo vrias teorias, prvias especfica. Hipteses Colaterais Abarcaria as hipteses vinculadas ao material de trabalho escolhido para o teste. Compreenderiam as j suficientemente corroboradas e aceitas (Hipteses Subsidirias) e as que aceitamos provisria e transitoriamente a fim de que a investigao possa ser realizada (Hipteses Auxiliares). Klimovsky chama a ateno para esta distino entre as hipteses subsidirias e as auxiliares uma vez que nem sempre os epistemlogos (como Hempel, in Filosofia da Cincia Natural) o fazem, tornando-as inquestionveis. Contudo, lembra que as Hipteses Subsidirias apontam para o nosso conhecimento do material empregado, enquanto as Hipteses Auxiliares revelam nossa ignorncia do mesmo, no tendo sido, previamente, contrastadas com outras.

61 Dados Observacionais Seriam as condies iniciais, as condies de contorno e outros enunciados singulares de primeiro nvel que informam acerca da base emprica e, portanto, do contexto particular no qual se organiza a investigao. (p. 213) Conseqncias Observacionais Seriam os dados observacionais que poderiam ser deduzidos de todas as hipteses acima listadas, incluindo as que constituem a Teoria Especfica, alm dos Dados Observacionais. A verdade ou falsidade das Conseqncias Observacionais determinaria, no falseacionismo ingnuo, a corroborao ou refutao da Teoria Especfica; por outro lado, como o esquema abaixo mostra, tal afirmao est muito distante das reais possibilidades da investigao que, para os defensores do holismo, o que estaria em jogo seria todo, ou, pelo menos, uma boa parte doPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

conhecimento humano.

Figura 2 - Esquema de Klimovsky quanto ao teste de teorias

Klimovsky apresenta exemplos histricos em que o enunciado observacional era, em realidade, falso ou no pertinente.23 Entretanto, julgamos mais significativa a discusso que o autor faz do carter hipottico dos enunciados de primeiro nvel, quando afirma ser esta tambm a posio de Popper. Isto o leva a dizer que:Dentre os exemplos citados A experincia de Michelson, Os canais de Marte e a gua contaminada o ltimo o mais simples e impactante: Koch apresentou na Academia de Medicina da Prssia material com cultivo de bacilos de clera. Durante sua exposio, o Dr. Pepperkorn, um ardoroso opositor a tudo que dizia respeito a microrganismos, arrebatou o tubo de ensaio e o ingeriu. Nada lhe ocorreu e vrias hipteses foram formuladas, desde seus estranhos hbitos alimentares que poderiam t-lo vacinado contra o clera.23

62Se o que estamos dizendo certo, toda afirmao acerca da base emprica tem natureza hipottica e , portanto, revisvel ... Se isto assim, o que resta da ambio da cincia de dispor de uma srie de conhecimentos indiscutveis a partir dos quais se possam contrastar hipteses e teorias ? Desde o ponto de vista filosfico, a resposta que tal conhecimento indiscutvel no existe (p.223).

Entretanto, Klimovsky ao mesmo tempo que concorda com o falibilismo popperiano sustenta, na mesma linha de Popper, o aspecto racional, objetivo e progressista do empreendimento cientfico. Isto fica explicitado no eplogo de sua obra, o qual denomina: A cincia no banco dos rus, quando diz:Admitimos, portanto, sem disfarces, que perante posio ctica de certos pensadores inovadores ... que preferimos sustentar a tese reacionria daqueles que pensam que na histria da cincia se observa uma marcha zigzagueante porm progressiva em direo a resultados cognoscitivos e prticos cada vez mais confiveis, de importncia crucial para a compreenso da realidade natural, humana e social, e tambm para a formulao de estratgias destinadas a atuar sobre ela em benefcio de nossa espcie. ... a experincia no arbitrria: permite-nos adotar uma base emprica, que logo se ver se adequada, ou, no (p. 399).

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Klimovsky radica a racionalidade cientfica em sua metodologia, na medida em que considera que esta garante a objetividade cientfica. Neste sentido, valoriza a experincia e o papel da observao, por razes metodolgicas. Uma vez feita esta breve resenha da posio epistemolgica esposada por Gregrio Klimovsky, pensamos poder apresentar com maior clareza sua especfica discusso sobre a teoria psicanaltica para, em seguida, contrast-la com a de Grnbaum. Como j foi mencionado, no exame dos fundamentos epistemolgicos da interpretao psicanaltica que vamos encontrar sua avaliao da psicanlise. Registra a pequena ocorrncia do termo interpretao na obra de Freud, em que pese sua obra mais famosa ser A Interpretao dos Sonhos (Freud, S.E. IV e V), mas a interpretao quer dizer algo assim como uma chave explicativa do que est ocorrendo na psique ou na conduta do sujeito e no outra coisa. (p. 269) Entretanto, interpretao vai aparecer com vrios outros sentidos, que vai agrupar segundo os seguintes aspectos: - Epistemolgico: ... e se relaciona com o tipo de conhecimento que a interpretao oferece. Uma interpretao uma espcie de teoria em miniatura a respeito do que h por trs de um fenmeno manifesto.

63 Desse modo, interpretar implica produzir um modelo ou uma hiptese de modo semelhante ao que faria um fsico, quando quer destacar o que h por trs de um efeito. A isso poderamos chamar de a vertente gnoseolgica da interpretao, que coloca problemas epistemolgicos tpicos (p.270). - Semntico: ... tem a ver com significaes. O que aqui se faz algo parecido com a captao de significados que o material ao qual a interpretao se refere est oferecendo. Aqui o trabalho se parece ao de um lingista ou de um semitico, e de uma ordem diferente da gnoseolgica, apesar de que no se pode deixar de reconhecer que h aspectos comuns (p. 270). - Instrumental: ..., talvez, em certo sentido, teraputico, onde aPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

interpretao psicanaltica uma ao: o que interpreta est fazendo algo com o fim de produzir uma modificao ou um determinado efeito no paciente (p. 270). Klimovsky vai deter-se, fundamentalmente, no aspecto epistemolgico. Distingue o material observvel do no-observvel. No caso da psicanlise, o material manifesto seria o emprico, o observvel; o discurso, a conduta do paciente, por exemplo. O material no-observvel corresponderia ao material latente, inconsciente. Este material latente da psicanlise corresponderia ao que, na epistemologia anglo-saxnica, se denomina objetos tericos: aqueles que se conjecturam com auxlio da teoria, mas que no so diretamente observveis. Na medida em que o inconsciente o objeto terico, por excelncia, da psicanlise, a questo para o psicanalista a de sustentar o que disser a respeito do inconsciente. Se chamarmos A o material observvel (manifesto) e B, o inobservvel (latente), a interpretao o que vincula A com B. O autor distingue dois tipos bsicos de interpretao: a interpretaoleitura e a interpretao-explicao. No caso da interpretao-leitura, A condio suficiente para B, enquanto B condio necessria para A. D um exemplo, que considera ingnuo mas esclarecedor, baseado nas teorias de Freud sobre a inibio que o superego exerceria sobre o ego:

64Na realidade, do ponto de vista epistemolgico, o superego e a ao inibitria no so material manifesto, material emprico. Para uma fundamentao epistemolgica da psicanlise, o superego no dado, sim o fato que se deixou de fazer uma ao que a situao favorecia e que havia interesse manifesto por parte do agente em faz-la: est o rapaz, est a moa nas circunstncias apropriadas, ela desejosa e com o maior beneplcito, ele gosta da moa, mas sem saber o que ocorreu, de imediato ele toma um livro e se pe a ler. Esses so os dados, no o superego e sua ao inibitria (p. 272).

O exemplo pode, de fato, ser ingnuo mas o registramos uma vez que o autor no o v muito diferente de quando um bilogo olha por um microscpio e v uma clula. Um leigo, sem acesso teoria psicanaltica, veria simplesmente a conduta acima descrita, como intrigante, incompreensvel. Contudo, este no o caso tpico da interpretao psicanaltica, mas sim a interpretao-explicao.PUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

No caso da interpretao-explicao a relao entre A e B de condio necessria; sendo por outro lado B (material latente) condio suficiente para A (material manifesto). O autor d um exemplo, no qual poderiam ocorrer outras causas (como C, no material latente) para o surgimento de A. Contudo, o psicanalista pode insistir em que seja somente B, por considerar que este constitui um modelo mais adequado para a situao a ser interpretada. Quando faz isso, o psicanalista no leu o material latente, o que realmente fez foi formular uma hiptese; a hiptese, muito til, de supor que o material latente assim. (p. 274) Neste sentido que Klimovsky considera a psicanlise uma teoria modelstica. O psicanalista estaria sempre escolhendo modelos explicativos para formular sua interpretao e testando tais modelos que funcionam como hipteses. Klimovsky faz referncia tambm a um tipo misto: interpretaoexplicao-leitura. Seriam aquelas em que a relao A e B constituiria uma conexo necessria e suficiente. D como exemplo as manifestaes de narcisismo (Freud, S.E. XIV):Por exemplo, arma-se de leitura (utiliza Freud), quando v um indivduo muito interessado em si mesmo, com grande superestima e preocupao por si mesmo, ele entende que a libido deve estar investindo o ego: a libido desse homem est posta em seu ego, porque esse homem se est superestimando. Essa a parte de leitura: vendo o que o sujeito est fazendo, damo-nos conta onde est a libido. Em algumas circunstncias, sobretudo em relao conduta narcisstica, o contrrio: se supomos que a libido narcisista, poderemos deduzir que esse indivduo tende a superestimar-se. Estaramos explicando sua conduta (p. 276).

65 Sob o ponto de vista epistemolgico, julgamos que a que mais nos interessa a interpretao-explicao, por ser a melhor candidata a testes. A este respeito duas objees podem ser levantadas: a questo das hipteses autopreditivas (profecias autocumpridas ou hipteses suicidas) e o problema da sugesto. Klimovsky reconhece serem dificuldades comuns nas cincias sociais, tambm. Entretanto, no as julga insuperveis. Quanto crtica a um possvel aspecto autopreditivo, que seria inerente s interpretaes psicanalticas (Nagel), o autor busca no prprio exemplo que Nagel utiliza em seu livro A Estrutura da Cincia a superao do obstculo epistemolgico. O exemplo a que se refere, baseado num fato real, o da notcia divulgada por um peridico novaiorquino das dificuldades financeiras de um banco e sua provvel falncia. A prpria notcia provocouPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

uma corrida dos depositantes ao banco e sua conseqente falncia. Klimovsky vai criticar tal exemplo em trs pontos: a) A hiptese da insolvncia do banco no foi na realidade contrastada, pois, a divulgao da notcia, em realidade, testou outra lei: a do efeito da propagao de rumores; b) Qualquer hiptese cientfica s pode ser testada em ausncia de perturbaes que no permitam a regncia da lei cientfica a que se liga. A rigor, a hiptese no foi sequer testada; c) No caso da interpretao psicanaltica, este obstculo pode ser evitado, simplesmente, pela no formulao da interpretao. A interpretao pode ser retida pelo analista que observaria a reao do paciente, testando sua hiptese in pectore, por meio de uma conduta futura. No que tange ao fenmeno da sugesto, lembra os comentrios de Freud em Construes em Psicanlise (Freud, S.E. XXIII), onde insiste em que o sim e o no do paciente, em resposta a uma interpretao, no podem ser confundidos com corroborao e refutao. No acredita, Klimovsky, tratar-se de um problema insupervel, lembrando que a conduta adaptativa do paciente bastante estreita, limitando-se ao material verbal manifesto, havendo muitos outros canais de comunicao com o paciente verbais e no-verbais, condusticos capazes de fornecer elementos de avaliao. Lembra tambm a proposta de Wisdom (1976). Esta, em resumo, consistiria em testar a interpretao a partir do tipo de defesa que o paciente utiliza, ou seja: a defesa (com que o paciente reagiria interpretao) deve ser abordada com a mesma teoria com que se formulou a primeira hiptese interpretativa, de modo

66 que o analista no poderia utilizar o material associativo (e defensivo) para formular uma interpretao alheia teoria que originou a primeira (p. 278). Os aspectos semnticos e instrumentais da interpretao so tratados de forma rpida. Contudo, h certos comentrios de Klimovsky que merecem ser registrados por dizerem respeito diretamente ao nosso tema. Referimo-nos, em especial, ao desenvolvimento que faz do comentrio de Freud quanto aos efeitos de pequena monta que uma interpretao equivocada acarreta, em contraposio ao tipo de mudana ou reao que produz a interpretao acertada. V a o autor os limites da ideologia do paciente uso a palavra ideologia em um sentido metafrico e geral, como tudo que o paciente cr ... assim como suas defesa e suas sugestionabilidades (p. 281) chamando a ateno dos epistemlogos para a importncia deste ponto. Resume como v aPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

questo epistemolgica da teoria psicanaltica, tomada a partir da interpretao, no que se segue:Cremos que o que foi dito basta para mostrar as trs zonas em que se move a epistemologia da psicanlise: o problema da teoria (explicao e leitura), o problema da ao racional (com a teoria que a respalda) e o imenso problema de como notamos a qualidade simblica (convencional ou natural) que leva do material manifesto ao latente. Esses so os trs problemas tpicos, mas de distinta ordem, com os quais se v o epistemlogo frente a essa espinhosa questo (p. 281).

H ainda duas questes que Klimovsky registra: a) No v maior diferena, exceto no mtodo, da teoria psicanaltica para outras teorias cientficas, uma vez que a seu ver muitas utilizam modelos tericos que se oferecem a testes; b) Indaga se no haver algo ... no modo psicanaltico de pensar que influa na prpria viso que o epistemlogo tem da marcha da cincia? (p. 282) Considera que da mesma forma que a fsica e a matemtica deram contribuies epistemologia, o mesmo poderia ocorrer com a psicanlise. Cita os psicanalistas ingleses: Money-Kyrle (de orientao humeana) e W. R. Bion (de orientao kantiana) como autores que tentaram avanar neste caminho. Seguindo a sistemtica que propomos, caberia agora examinar criticamente a proposta de Klimovsky. Entretanto, julgamos mais til faz-lo, contrastando-a com a de Grnbaum, principalmente, porque muitas das restries que teramos a fazer prendem-se mais prpria epistemologia (ou

67 tradio) popperiana, o que ser objeto da prxima seo. Reconhecemos, no entanto, que Klimovsky supera o marco popperiano, em especial, no que diz respeito s cincias humanas e psicanlise, em particular. Listamos os seguintes pontos de contato e conflito das duas avaliaes: A Grnbaum e Klimovsky consideram a teoria psicanaltica passvel de testabilidade. B Grnbaum utiliza, como metodologia para os testes, o que chama de indutivismo hipottico-dedutivo. Klimovsky sugere que os testes se faam a partir de conseqncias deduzidas dos modelos psicanalticos apresentados. C Grnbaum considera que as observaes clnicas no se prestam a testes, dada a contaminao epistmica da sugesto e do carter de hiptesesPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

autopreditivas das interpretaes psicanalticas. Klimovsky considera que a experincia clnica passvel de teste, sendo superveis as dificuldades que envolvem o problema da sugesto e do possvel carter autopreditivo das interpretaes psicanalticas. D Grnbaum julga que, at o momento, a teoria psicanaltica foi refutada nos testes a que se ofereceu. Klimovsky considera que a teoria psicanaltica se sai to bem nos testes a que pode ser submetida como qualquer outra cincia humana. E Grnbaum no diferencia a teoria freudiana dos desenvolvimentos de seus continuadores como os da teoria de relao de objeto quanto aos problemas epistemolgicos que levantam. Klimovsky assinala a importncia de que os testes dos modelos psicanalticos sejam realizados levando-se em conta a teoria da corrente psicanaltica que est em jogo. Prope que se investigue a contribuio que a teoria psicanaltica possa dar epistemologia. F Grnbaum exemplifica, por sua proposta, o que Lakatos denomina: falseacionismo dogmtico (ingnuo ou naturalista), dentro do marco popperiano. Klimovsky exemplifica, se ainda utilizarmos a terminologia de Lakatos, o falseacionismo sofisticado, desenvolvimento natural, segundo este autor, do pensamento popperiano.

68 Evidentemente, a lista acima fruto de nossa particular avaliao de ambos os autores. Julgamos que a divergncia bsica se origina do item F. Reconhecemos tambm a influncia de outros fatores, dos quais destacamos: o fato de Klimovsky ter trabalhado durante muitos anos com psicanalistas de grande experincia e respeitabilidade cientfica, em Buenos Aires, onde a psicanlise teve um peculiar desenvolvimento, florescendo as mais diversas correntes do pensamento psicanaltico. Desta forma, pde o autor, a nosso ver, observar como realmente os psicanalistas trabalham. Frisamos este ponto, pois, uma constante nas crticas de Lakatos, Kuhn e Feyerabend tradio popperiana que, dado o seu j assinalado carter fortemente prescritivo, perde a possibilidade de avaliar certas caractersticas do empreendimento cientfico, principalmente, na rea das cincias humanas. No campo de interesse de nossaPUC-Rio - Certificao Digital N 0210607/CA

pesquisa, damos como exemplo a compreenso equivocada que Grnbaum tem da teoria da represso atribuindo a fatores externos um papel que, consensualmente, no reconhecido pelos psicanalistas (da certas propostas de testes que seriam inviveis, como a da diminuio da parania em virtude da perda da fora dos preconceitos anti-homossexuais) assim como sua no percepo de inovaes marcantes no desenvolvimento da psicanlise, com conseqncias epistemolgicas, como j assinalamos ao referirmo-nos ao trabalho de Melvin Lansky. Uma discusso mais aprofundada deste ponto nos levaria alm de nossos imediatos propsitos, pois, tocaria na prpria questo do papel e validade da chamada filosofia da cincia. Sem entrar nesta complexa questo, adiantamos o ponto de vista, segundo o qual consideramos que as imprecises de Grnbaum no invalidam o cerne de sua crtica filosfica. Em conseqncia, nossa crtica avaliao de Grnbaum ser a partir de um ponto de vista estritamente filosfico, onde vemos equvocos que independem de sua leitura da teoria psicanaltica. Lembraramos que o prprio Popper foi desaconselhado, por Peter Medawar, a publicar sua conferncia sobre a teoria da evoluo de Darwin, apresentada na Conferncia Herbert Spencer, em 1961, da o motivo de somente uma dcada depois, mesmo assim sem maiores correes, ter sido publicada em Conhecimento Objetivo. o que nos conta Jonh Watkins (Watkins, Popper e o Darwinismo, in Karl Popper Filosofia e Problemas, org. Anthony OHear). Por outro lado, as incorrees que por

69 ventura os bilogos constataram, no impedem que usufruamos das estimulantes conjecturas de Popper. Acrescentaramos ainda, remetendo o leitor Introduo, que no vemos quem poderia fazer a avaliao epistemolgica de qualquer empreendimento cientfico, ou, metafsico (no sentido que Popper d expresso) que no um filsofo, portador que de um instrumental crtico que no familiar ao cientista.

2.4 Impasses e limitaes da tradio epistemolgica anglo-sax em relao teoria psicanaltica Observamos nos autores de tradio popperiana limitaes e impasses quando tratam da teoria psicanaltica, o que nos parece ser reconhecido pelo prprio Klimovsky que sugere aproximaes alternativas a teoria modelstica assim como incorpora as crticas de Lakatos. Mais adiante na seo 1 do Captulo 4 comentaremos algo semelhante ao discutirmos a leitura de Bouveresse sobre as consideraes de Wittgenstein a respeito de Freud. Julgamos que estas dificuldades se radicam em vrias fontes, a comear pela prpria concepo de cincia que aquela tradio esposa. Deste modo, fomos encontrar nas formulaes de Larr