1- Psicologia na Comunidade, Psicologia da Comunidade e Psicologia (Social) Comunitária
Psicologia Oncologica
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CADERNOS DE PSICOLOGIA Sofrimento psquico do paciente oncolgico:
o que h de especfico?
Nmero 2
Verso Eletrnica Verso Impressa
CADERN
OS D
E PSICOLO
GIA - Sofrim
ento psquico do paciente oncolgico: o que h de especfico? / Nm
ero 2
MINISTRIO DA SADE
Instituto Nacional de Cncer Jos Alencar Gomes da Silva (INCA)
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MINISTRIO DA SADE
Instituto Nacional de Cncer Jos Alencar Gomes da Silva (INCA)
SOFRIMENTO PSQUICO DO PACIENTE ONCOLGICO: O QUE H DE ESPECFICO?
CADERNOS DE PSICOLOGIA - Nmero 2
Rio de Janeiro, RJINCA2014
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2014 Instituto Nacional de Cncer Jos Alencar Gomes da Silva/ Ministrio da Sade.Todos os direitos reservados. A reproduo, adaptao, modificao ou utilizao deste contedo, parcial ou integralmente, so expressamente proibidas sem a permisso prvia, por escrito, do INCA e desde que no seja para qualquer fim comercial. Venda proibida. Distribuio gratuita.Esta obra pode ser acessada, na ntegra, na Biblioteca Virtual em Sade Preveno e Controle de Cncer (http://controlecancer.bvs.br/) e no Portal do INCA (http://www.inca.gov.br).
Esta obra disponibilizada nos termos da Licena Creative Commons Atribuio No Comercial Sem Derivaes 4.0 Internacional.
Tiragem: 600 exemplares
Elaborao, distribuio e informaesMINISTRIO DA SADEINSTITUTO NACIONAL DE CNCER JOS ALENCAR GOMES DA SILVA (INCA)Hospital do Cncer ISeo de PsicologiaRua Washington Luiz, 35Centro Rio de Janeiro RJTel.: (21) 3207-4510/ 3207-4511E-mail: [email protected]; [email protected], [email protected]
EdioCOORDENAO DE PREVENO E VIGILNCIAServio de Edio e Informao Tcnico-CientficaRua Marqus de Pombal, 125Centro Rio de Janeiro RJCep 20230-240
Tel.: (21) 3207-5500
OrganizadorasAna Beatriz Rocha BernatDaphne Rodrigues PereiraMonica Marchese Swinerd
Equipe de ElaboraoNo anexoReviso tcnicaLuciana da Silva Alcntara
Superviso EditorialLetcia Casado
Edio e Produo EditorialTas FacinaRevisoRita Rangel de S. MachadoCapa, Projeto Grfico e DiagramaoCeclia Pach
Normalizao Bibliogrfica e Ficha CatalogrficaMarcus Vincius Pereira da Silva / CRB:7/6619
Ficha Catalogrfica Camila Belo / CRB:7/5755
Impresso no Brasil / Printed in BrazilFlama
FICHA CATALOGRFICA
I59s Instituto Nacional de Cncer Jos Alencar Gomes da Silva.Hospital do Cncer I. Seo de Psicologia. Sofrimento psquico do paciente oncolgico : o que h de especfico? / Instituto Nacional de Cncer Jos Alencar Gomes da Silva; Ana Beatriz Rocha Bernat, Daphne Rodrigues Pereira, Monica Marchese Swinerd (organizadores). Rio de Janeiro: INCA, 2014.
168 p. : il. (Cadernos de Psicologia ; 2)
ISBN 978-85-7318-246-0 (verso impressa) ISBN 978-85-7318-247-7 (verso eletrnica)
1. Neoplasias psicologia. 2. Estresse psicolgico. I. Bernat, Ana Beatriz Rocha. II. Pereira, Daphne Rodrigues. III. Swinerd, Monica Marchese. IV. Ttulo. V. Srie.
CDD 616.994019
Catalogao na fonte Servio de Edio e Informao Tcnico-Cientfica
Ttulos para indexaoEm ingls: Psychology Logbooks - Psychological distress of cancer patients: whats specific? - Number 2 Em espanhol: Cuadernos de Psicologa - El sufrimiento psicolgico de los pacientes con cncer: lo que es especfico? - Nmero 2
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Apresentao
Apresentamos o segundo nmero do Cadernos de Psicologia, que traz o tema: Sofrimento psquico do paciente oncolgico: o que h de especfico? Esse tema convoca reflexo acerca do cuidado
dirio com o sujeito frente dor, no cabendo aqui nenhuma distino entre as dimenses fsica
ou psquica, pois ambas possuem o mesmo destino, isso , aquele que as sofre. tambm um convite a considerar que os diferentes aspectos do sofrimento no concernem somente rea da
psicologia. Pelo contrrio, nossos parceiros de trabalho vm aqui apresentar suas experincias e
mostrar como cada um tocado por aquilo que afeta o paciente oncolgico. No primeiro Caderno, apresentamos textos que traziam um pouco da histria da psicologia no Instituto Nacional de Cncer Jos Alencar Gomes da Silva (INCA). Agora, damos mais um passo e concitamos no apenas nossos pares de dentro e de fora da instituio, assim como os
que aqui passam pela Residncia Multiprofissional , mas tambm profissionais de outras reas
a contarem como so atravessados e como atuam diante de uma doena to grave e que pode trazer consequncias to devastadoras como o cncer. No queremos dizer com isso que a clnica
do sofrimento psquico, na oncologia, uma especialidade conforme compreendida na rea
biomdica. Nosso intuito, porm, ressaltar que, se no uma subespecialidade, nem por isso deixa de ter sua singularidade. O sujeito sempre de quem se trata, no importa se atravessado pelo cncer, por outra doena orgnica ou por um transtorno mental. Mas o que singular nessa prxis? Somente ao pensar o trabalho e isso inclui a pesquisa, o ensino e as outras atividades
relacionadas transmisso , pode-se caminhar um pouco no sentido de responder questo
levantada de incio e que d ttulo ao trabalho.
Para simples fim de organizao, optou-se por dividir a publicao em duas partes: a
primeira refere-se ao tratamento oncolgico sob diferentes perspectivas dentro da rea da
psicologia e, a segunda, ao olhar multidisciplinar acerca do sofrimento do sujeito. Assim, a autora Monica Pinheiro relata a experincia de atendimento a mulheres com diagnstico de cncer do
colo do tero, destacando a sutileza em ouvir o impacto emocional no s frente doena, mas
tambm aos desafios do acesso ao atendimento de qualidade e excelncia pelo Sistema nico
de Sade (SUS), um tempo que urge. sobre essa urgncia que fala Deborah Melo ao trazer a
rica experincia de atendimentos a pacientes em vias de algum tipo de interveno cirrgica no corpo, os impactos no psquico, fazendo aparecer, no contexto hospitalar imerso em urgncias
de diferentes ordens , a urgncia subjetiva, destacada pela autora, que s pode ser acolhida
com a presena atenta do psiclogo. O sofrimento psquico produzido pela enfermidade e pelo
tratamento, muitas vezes invasivo e mutilador, tambm apontado por Mrcia Costa, Mariana
Rabello e Ingrid Raiol, ao relatarem a experincia com mulheres em tratamento de cncer de mama, que incide no corpo, chamando a ateno para esse corpo que mais do que biolgico, sobretudo um corpo marcado por histrias, imagens, afetos e simbolismos. Marcelo Chahon traz
reflexes sobre as perdas trazidas pela doena, sendo o diagnstico oncolgico, em qualquer idade,
um tipo de evento imprevisto e idiossincrtico, que desafia os recursos cognitivos e emocionais,
trazendo para a cena os desafios da doena no momento da velhice, etapa do desenvolvimento j
marcada por perdas estruturais e ritos de passagem. Ainda nesse contexto, Jaqueline Romariz e colaboradores indicam, em seu captulo, as
especificidades do diagnstico em psicologia no contexto hospitalar, apontando que se trata de
um trabalho de sustentar uma escuta. Acompanhar os pacientes de forma dinmica em suas
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invenes no enfrentamento de tratamentos mdicos, que tomam os pacientes, muitas vezes, como
objeto de interveno, caberia ao psiclogo, ao guardar um lugar para o sujeito na instituio e acompanh-lo nesse percurso. Nina Gomes Costa escreve sobre as especificidades do sofrimento
apresentado por crianas e adolescentes ao longo do tratamento onco-hematolgico, destacando
a relevncia do encontro com um clnico, de modo a favorecer as invenes que esses pacientes
fazem para tornar esse tratamento menos inspito enquanto sujeitos de desejo. Marcia Azevedo e
Carolina Barbosa falam sobre a importncia de respeitar e valorizar os recursos psquicos dos quais
o paciente se utiliza no enfrentamento da doena. Marlia Neves, por sua vez, tambm discorre
sobre o assunto, trazendo um estudo sobre a abertura de quadro psictico aps diagnstico
de cncer e a importncia da rede de apoio. Monica Marchese traz, ao narrar sua experincia
como psicloga na hematologia, a indagao de que ou de quem se trata quando o hospital
recebe o sujeito que adoece, marcando a importncia da escuta da subjetividade no tratamento. Finalmente, Juliana de Castro-Arantes disserta sobre a especificidade da escuta da angstia no
contexto da clnica da dor em um hospital oncolgico, concluindo que a angstia, mesmo nesse contexto, sempre singular, sublinhando a importncia de escutar o sujeito em seu sofrimento. Na segunda parte deste volume, esto os trabalhos dos parceiros em suas experincias na assistncia. Cludia Rabello traz indagaes importantes acerca do poder de deciso de
crianas e adolescentes no que concerne s intervenes que trazem alteraes indelveis em seus
corpos e vidas, consideradas pelo vis da fisioterapia. Ana Beatriz Rocha Bernat e colaboradores
apresentam um artigo, produzido pelo ncleo de pesquisa Impasses no Reingresso Escola de Crianas e Adolescentes Sobreviventes do Cncer, acerca da importncia do estudar como possibilidade de manter a criana e o adolescente como sujeitos do desejo e sustentar para eles uma perspectiva de futuro, de vir a ser, ainda que isso seja sem garantias. Ana Maria Quintela e Clarissa Ruback
fazem um breve histrico da assistncia na sade, primeiro centrada na figura do mdico, depois
com a gradativa abertura para a insero de outros profissionais e suas contribuies no cuidado
prestado, em especial no que concerne terapia ocupacional, rea em que ainda se encontra
pouca produo cientfica a respeito. Luciana Alcntara e Ana Celina partem da experincia
com pacientes com cncer de laringe para abordarem e trazerem reflexo a singularidade do
cuidado no que tange aos efeitos e s repercusses de uma doena oncolgica, com o cuidado de
no separar o sujeito que sofre de seu contexto social e familiar. Ernani Mendes e Ana Paula Santos, por sua vez, abordam o sofrimento psquico do
paciente oncolgico a partir do conceito de dor total, introduzido pela mdica inglesa Cicely
Saunders, na dcada de 1960, resgatando o que h de especfico no sofrimento provocado pela dor
fsica. Nesse sentido, o artigo de Andra Ladislau traz a concepo de que os aspectos psicolgicos
que envolvem o sofrimento fsico pressupem a necessidade de valorizao das vivncias
relacionadas ao adoecimento por parte da equipe multiprofissional no ambiente hospitalar. No
que tange estrutura hospitalar, o artigo de Kssia Siqueira traz como contribuio um olhar
atento s dinmicas e rotinas rgidas que fazem do hospital o espao de construo da identidade
do paciente, ressaltando, em sua anlise, a importncia do direito de escolha do sujeito que adoece
frente ao seu tratamento. Ana Raquel de M. Chaves e Laura Freitas, ao analisarem os rebatimentos
sociais presentes na realidade dos usurios da clnica de Hematologia do Hospital do Cncer I
(HCI), trazem uma abordagem primorosa dos aspectos sociais que permeiam o tratamento e
de como esses, a partir de uma perspectiva interdisciplinar, podem ser amenizados, trazendo
menos sofrimento psquico ao paciente e sua famlia. Por fim, Andressa Freitas discorre acerca
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dos papis da fala e da deglutio para o homem, muito alm do aspecto meramente funcional. Pontuando o lugar que essas funes ocupam na vida em sociedade, sinaliza o quanto o sujeito
pode vir a ficar margem dessa sociedade em razo das sequelas de um cncer e do sofrimento
que da advm. Como texto suplementar, Romildo do Rego Barros oferece uma reflexo acerca da
especificidade da escuta do psiclogo diante do paciente gravemente enfermo e, por vezes,
terminal. O psicanalista sublinha, em sua interveno, a balana que h na vida entre angstia e
desejo. Tece consideraes acerca da terminalidade e de um manejo especfico do tempo nesses
casos, manejo esse que visa a favorecer a afirmao do desejo do paciente por meio de uma
escuta singular e que confere dignidade travessia de um processo to difcil. Romildo cita La
Rochefoucauld e sublinha que Para o sol e para a morte, no podemos olhar de frente, logo,
h que se construir um vu, alguma mediao junto ao paciente para velar o real que se torna
presente de forma contundente nessa travessia. Finalizando, que essa leitura produza muitos efeitos para cada um que encetar essa
viagem. Mas que, acima de tudo, ela traga a possibilidade de gerar ainda mais trabalho para todos os que esto comprometidos com a clnica.
Organizadoras
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Sumrio
Apresentao 3
Lista de tabelas 9
Lista de siglas 10
Parte I Experincias diversas na Clnica de Psicologia
Captulo 1 Cncer, corpo, feminilidade: o que h de especfico? 13
Captulo 2 Algumas consideraes sobre a urgncia subjetiva em uma instituio de
tratamento oncolgico 21
Captulo 3 Cncer de mama: os impactos subjetivos causados pela mastectomia e o
lugar da palavra 29
Captulo 4 Consideraes sobre o adoecimento oncolgico na velhice 33
Captulo 5 O diagnstico em psicologia 39
Captulo 6 A questo do sofrimento psquico na clnica oncolgica: um relato da
experincia com crianas e adolescentes 45
Captulo 7 O sujeito e o combate ao cncer: possibilidades de defesa contra o ataque
de um inimigo silencioso 53
Captulo 8 O que fazer quando o paciente oncolgico torna-se psictico e recusa
tratamento psiquitrico? O estudo de um caso sobre a colaborao
multidisciplinar e a integrao do support system 59
Captulo 9 Corpo e sujeito no tratamento do cncer hematolgico: de que(m) se trata? 67
Captulo 10 Escuta do sujeito 75
Texto suplementar Redes e laos: impasses e desafios 83
Parte 2 Um olhar multiprofissional
Captulo 11 Os aspectos que permeiam o sofrimento das crianas e dos
Adolescentes: percepes vivenciadas em vinte anos de assistncia no Instituto
Nacional de Cncer Jos Alencar Gomes da Silva 93
Captulo 12 Especificidades do sofrimento psquico apresentado por crianas e
adolescentes ao longo do tratamento onco-hematolgico: impasses e invenes
por que estudar to importante? 101
Captulo 13 Terapia ocupacional e oncologia: sutilezas de uma clnica atravessada
pela vida 109
Captulo 14 Implicaes da doena oncolgica entre pacientes com cncer de
laringe: a singularidade do cuidado 115
Captulo 15 Dor total e sofrimento psquico no paciente oncolgico 127
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Captulo 16 Um olhar sobre os aspectos relevantes que envolvem o sofrimento
psquico do paciente oncolgico 133
Captulo 17 O hospital como lugar de produo da identidade paciente:
problematizando discursos e prticas de sade 139
Captulo 18 Rebatimentos sociais do tratamento oncolgico: reflexes do servio
social na clnica de hematologia 147
Captulo 19 A vida aps o cncer: consideraes sobre a comunicao, a alimentao
e o trabalho da fonoaudiologia com pacientes aps o tratamento oncolgico 153
Anexo Equipe de elaborao 161
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9Lista de Tabelas
Tabela 1. Distribuio segundo as caractersticas dos portadores de cncer de laringe matriculados no perodo de 1 de maro de 2012 a 23 de maio de 2013 120
Tabela 2. Distribuio segundo as caractersticas scio-habitacionais, trabalhistas e
previdencirias 121
Tabela 3. Distribuio segundo a existncia de renda familiar participativa e da
condio de provedor da famlia 122
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Lista de Siglas
AMP Associao Mundial de Psicanlise
BPC Benefcio de prestao continuada
CBT Cognitive Behavioral Therapy Cemo Centro de Transplante de Medula ssea
CEP Comit de tica em Pesquisa
CID Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas Relacionados Sade
DCNT Doena crnica no transmissvel
Ensp Escola Nacional de Sade Pblica Srgio Arouca
EPCI cole de propdeutique `a la connaissance dinconscient
Fiocruz - Fundao Oswaldo Cruz
HCI Hospital do Cncer I
HCII Hospital do Cncer II
HCIII Hospital do Cncer III
HCIV Hospital do Cncer IV
HEGV Hospital Estadual Getlio Vargas
HFSE Hospital Federal dos Servidores do Estado
HPV Papilomavrus humano
IASP International Association for the Study of PainICP Instituto de Clnica Psicanaltica
IFF Instituto Nacional de Sade da Mulher, da Criana e do Adolescente Fernandes Figueira
ILP Instituio de Longa Permanncia
IMS Instituto de Medicina Social
INCA Instituto Nacional de Cncer Jos Alencar Gomes da Silva
INSS Instituto Nacional do Seguro Social
IP Instituto de Psicologia
IPUB Instituto de Psiquiatria da UFRJ
LMC Leucemia mieloide crnica
OMS Organizao Mundial da Sade
PNH Poltica Nacional de Humanizao
PUC Pontifcia Universidade Catlica
SMSDC Secretaria Municipal de Sade e Defesa Civil
SNC Sistema Nervoso Central
SUS Sistema nico de Sade
TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Uerj Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFF Universidade Federal Fluminense
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
Unesa Universidade Estcio de S
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PARTE I
EXPERINCIAS DIVERSAS NA CLNICA DE PSICOLOGIA
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Cncer, Corpo, Feminilidade: O Que H
De Especfico?
Captulo
1
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15
O cncer do colo do tero tem alto ndice de prevalncia entre as mulheres, logo, um problema de sade pblica. Essa patologia tem como causa principal, mas no nica, a infeco pelo papilomavrus humano (HPV). Dados do INCA apontam que esse
o terceiro tumor mais frequente na populao feminina, atrs do cncer de
mama e do colorretal, e a quarta causa de morte de mulheres por cncer no Brasil. Prova de que o pas avanou na sua capacidade de realizar diagnstico precoce
que, na dcada de 1990, 70% dos casos diagnosticados eram da doena invasiva.
Ou seja: o estgio mais agressivo da doena. Atualmente 44% dos casos so de
leso precursora do cncer, chamada in situ. Esse tipo de leso localizada.
Mulheres diagnosticadas precocemente, se tratadas adequadamente, tm praticamente 100% de chance de cura (INSTITUTO NACIONAL DE CNCER
JOS ALENCAR GOMES DA SILVA, [200?]).
Apesar do alto potencial de cura, quando descoberto inicialmente, infelizmente existe uma
triste realidade: mulheres, atendidas em grupo pela psicologia no Hospital do Cncer II (HCII) (grupo pr-radioterapia), trazem, em seus discursos, falhas e demora no diagnstico, tanto na
rede pblica quanto na rede privada. H relatos de mulheres atendidas pelo SUS, que aguardam
seis meses para receberem o resultado do exame Papanicolaou, conhecido popularmente como
exame preventivo.Tal situao acaba por agravar no s o quadro clnico dessas mulheres pela demora no
incio do tratamento especializado, o que pode acarretar o avano da doena, diminuindo ou at
impossibilitando as chances de cura mas tambm o seu sofrimento psquico, j que, por estarem
impactadas emocionalmente frente ao diagnstico de cncer, lamentam-se ou mesmo se culpam
pelo tempo perdido.Receber um diagnstico de cncer remete a pessoa sua prpria finitude, ao temor da
morte, mas no s dela. Muitos referem-se, em especial, ao medo do sofrimento produzido pela
enfermidade e pelo prprio tratamento, que invasivo e mutilador. Em especial, quando se trata do cncer que atinge reas como o tero ou mamas, que so consideradas como smbolos do
feminino, existem algumas especificidades.
O momento do diagnstico relembrado, pelas mulheres acometidas, como uma experincia dramtica, e considerado o mais estressante de todos, estando
associado insegurana e incerteza tanto em relao ao tratamento e sua
eficcia quanto convivncia com a falta da mama e suas conseqncias para o
relacionamento conjugal (FERREIRA et al., 2008).
O tero um rgo biologicamente associado reproduo e socialmente vinculado feminilidade e sexualidade, por isso sua extirpao, alm de constituir-se em
ato agressivo e mutilante, interfere tanto na expresso da sexualidade feminina quanto na imagem corporal e na vida social [...]. Culturalmente, embora haja
o reconhecimento da dissociao entre reproduo e sexualidade, o trmino da capacidade para gerar, gestar e parir ainda muito valorizado e pode simbolizar
o fim da vida sexual. No entanto, inegvel que a sexualidade de modo geral
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e o ato sexual em particular integram o elenco de elementos que interferem no processo de viver e na qualidade de vida e sade das pessoas, inclusive das que se submeteram a histerectomia (NUNES et al., 2009).
A histerectomia (retirada do tero), ou a mastectomia (retirada da mama), produz, em
muitas mulheres, um sentimento de insegurana, medo de serem abandonadas pelos seus companheiros, como se, junto com o tero ou a mama, lhe tivessem extirpado a feminilidade e, por isso, tornassem-se menos mulheres, menos atraentes.
[...] a cirurgia de remoo da massa tumoral bastante freqente, acarretando
uma mutilao (parcial ou total) da mama. Esse procedimento altamente invasivo traz repercusses emocionais importantes, danificando no somente a
integridade fsica, como tambm alterando a imagem psquica que a mulher tem de si mesma e de sua sexualidade. Esse evento acompanhado, geralmente, de vivncias extremamente dolorosas relacionadas a uma sensao de perda interna do prprio self, como Parkes (1998) salienta, alterando a relao que a paciente
estabelece com seu corpo e sua mente (ROSSI; SANTOS, 2003).
Assim como a mama, o tero possui um simbolismo muito grande para as mulheres, sendo representativo da sua feminilidade.
Aristteles, citado em Lemgruber e Lemgruber (2001), acreditava que o tero seria o
ponto central da feminilidade, representando o esprito da mulher. Desde a Antiguidade o mistrio e o tabu cercam o corpo da mulher. Ainda na atualidade, a anatomia dos rgos sexuais e reprodutivos femininos desconhecida por muitas mulheres. Nomear o corpo feminino tambm afirmar sua existncia, sua complexidade, e no
conhecer o prprio corpo pode implicar em no reconhecer o seu funcionamento e a sua sexualidade. Embora a sexualidade no se restrinja apenas aos rgos sexuais, ela perpassa por todo o corpo e est intimamente ligada subjetividade, o conhecimento
dos rgos contribui para desmistificar e quebrar os tabus que envolvem o corpo da
mulher e sua relao com o sexo (MELO; BARROS, 2009).
Os efeitos da histerectomia so ainda maiores naquelas mulheres que ainda no tm filhos, que veem o sonho da maternidade (um filho biolgico) ser destrudo. Elas expressam um
sentimento de vazio, de tristeza e de incompletude, o que, no raras vezes, faz com que se sintam
envergonhadas de sua condio.
Para mulheres que no tm filhos, a perda do tero poder causar um impacto
emocional, pois a falta de opo e a falta do rgo podem despertar sentimentos de perda, de inutilidade, de destituio da condio feminina, isto porque para
muitas mulheres a feminilidade est intimamente associada capacidade de
conceber (ANGERAMI-CAMON, 1998).
Este conceito de feminilidade associado ao tero parte de um ponto histrico, onde h muitos sculos tm sido construdos vrios significados em torno dele,
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mas todos eles sempre do relevncia ao papel da mulher como reprodutora, praticamente resumindo a razo da sua existncia na maternidade (MEAD, 1971
apud SBROGIO, 2008).
Percebemos ento que o diagnstico e o tratamento do cncer trazem considerveis
repercusses na rea da sexualidade feminina, a qual no se limita a sexo (coito), mas envolve a
sensualidade, a feminilidade, o relacionamento com o companheiro.
Hoje, a sexualidade concebida como aspecto do eu que conecta corpo, identidade e normas sociais, adquirindo importncia social e poltica, alm da moral. Se na poca vitoriana o erotismo envolvia relacionamentos sociais, hoje a sexualidade envolve a identidade pessoal.
Apenas quando ela toma esta dimenso incorporada como aspecto definidor
do sujeito, central na estruturao de sua subjetividade e manifestao, inclusive, de seu carter. (UZIEL, 2002)
Durante o tratamento, podem ocorrer o surgimento de fstulas.1 Nesse caso, pode ser necessria a realizao de ostomias para correo. O apoio do parceiro de fundamental
importncia para aquela que precisa dessa cirurgia, a fim de que possa ser minimizado o impacto
psicolgico do procedimento.
A inexistncia do apoio familiar associada ausncia de envolvimento dos familiares no processo de adaptao resultou na adoo de comportamentos de isolamento, afastamento do convvio social, laboral e da expresso da sua sexualidade, que caracterizaram negao ou no aceitao da doena e do estoma
(PAULA; TAKAHASHI; PAULA, 2009).
Se o parceiro sexual no consegue olhar o estoma, isso certamente ser entendido
como rejeio e se o parceiro presta um cuidado fsico demonstrando no querer, sentindo nojo ou demonstrando estar rejeitando [...] (FREITAS; PEL, 2000).
O processo de aceitao e adaptao ao estoma evolutivo e sequencial, durante o qual, a pessoa desenvolve mecanismos de defesa, em que h negao e represso
das emoes, resultando em atitudes confusas, de regresso e hostilidade,
geralmente direcionadas as pessoas mais prximas e afetivamente importantes. (...) Essas consideraes corroboram com a percepo de que o apoio familiar/
parceiro foi essencial neste processo, somados qualidade das relaes a
estabelecidas (PAULA; TAKAHASHI; PAULA, 2009).
Alm da fstula, pode ocorrer, durante o tratamento, como efeito da radioterapia, a estenose (estreitamento) do canal vaginal, que se fecha, impedindo a penetrao do pnis ou at
1 Canal acidental que se comunica com uma glndula ou uma cavidade natural, e que d sada a secrees. Fonte: DICIONRIO online de Portugus. Disponvel em: . Acesso em: 10 ago 2013
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mesmo do dedo. O casal precisa ento encontrar formas diferentes e criativas para o exerccio da sua sexualidade, o que nem sempre fcil. As mulheres, dessa forma, podem ter afetada a sua
autoestima, e expressam sentimentos de insegurana, de medo da rejeio e do abandono,2 por no se sentirem atraentes, sentimentos esses presentes tambm aps a histerectomia, como visto acima.
Somem-se a isso as mudanas corporais, como emagrecimento e queda do cabelo, que
fazem com que algumas mulheres evitem se olhar no espelho, a fim de no se depararem com
aquela imagem que remete ao estranhamento de si mesma, degradao do corpo, finitude. O
cncer visto como uma doena impiedosa, cruel, temida, estigmatizante.
As fantasias inspiradas pela tuberculose no sculo passado, e pelo cncer agora, constituem reflexos de uma concepo segundo a qual a doena intratvel e
caprichosa ou seja, um mal no compreendido numa era em que a premissa bsica da medicina a de que todas as doenas podem ser curadas. Tal tipo de
enfermidade misterioso por definio. Pois enquanto no se compreendeu a
sua causa, e as prescries dos mdicos mostraram-se ineficazes, a tuberculose foi
considerada uma insidiosa e implacvel ladra de vidas. Agora a vez do cncer
ser a doena que no bate a porta antes de entrar. o cncer que desempenha o papel de enfermidade cruel e furtiva [...] (SONTAG, 1984).
Como consequncia, no raramente, as mulheres acometidas pelo cncer entram em um quadro de depresso (apresentando sintomas como irritabilidade, insnia ou hipersonia, perda
do apetite hiporexia ou aumento da ingesta alimentar, isolamento social e perda do sentido da
vida, podendo ocorrer ideias suicidas) em virtude do adoecimento e do tratamento, que trazem
repercusses em vrios aspectos da vida da mulher.
O cncer de mama possui um estigma muito forte devido s repercusses
decorrentes do tratamento abalar a imagem corporal com repercusses na
interao social. Em nossa cultura, a aparncia visual representada como belo e elegante, logo quando algo foge desse padro de beleza criado pela sociedade,
a pessoa passa a carregar consigo o estigma de ser diferente. O cncer de mama temido pelo fato de acometer uma parte valorizada do corpo da mulher e que
em muitas culturas desempenham uma funo significativa da sexualidade
da mulher e sua identidade a mama. A representao social do cncer como
algo ruim, expressa um sentimento de desvalorizao social, pois a doena
no apenas uma alterao biolgica, mas tambm interfere no meio social em que vive essa pessoa. Ela se v como um ser desvalorizado pelas limitaes e
mutilaes impostas pela doena. Enfrentar o preconceito de viver com uma
doena estigmatizante o que algumas mulheres estudadas vivenciaram na sua
rotina. O cncer uma doena que afeta profundamente a pessoa acometida e as que fazem parte de suas relaes sociais (SILVA et al., 2012).
2 Pude observar, em minha prtica profissional, que muitas mulheres so abandonadas durante o diagnstico e o tratamento (que so extremamente impactantes) pelos seus companheiros.
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REFERNCIAS
ANGERAMI-CAMON, V. A. (Org.). Urgncias psicolgicas no hospital. So Paulo: Pioneira, 1998.
FERREIRA et. al. Sentidos do Diagnstico por Cncer de Mama Feminino para Casais que o Vivenciaram. Interface: comunicao, sade, educao, Botucatu, v. 12, n. 27, out./dez. 2008
FREITAS, M. R. I.; PEL, N. T. R. Subsdios para a compreenso da sexualidade do parceiro do
sujeito portador de colostomia definitiva. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeiro Preto, v. 8, n. 5, p. 28-33, out. 2000.
INSTITUTO NACIONAL DE CNCER JOS ALENCAR GOMES DA SILVA. Tipos de Cncer: colo de tero. Rio de Janeiro, [200?]. Disponvel em: . Acesso em: 23 mar. 2014
MELO, M. C. B.; BARROS, E N de. Histerectomia e Simbolismo do tero: Possveis Repercusses
na Sexualidade Feminina. Revista SBPH, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, dez. 2009.
NUNES, M. P. R. S. et al. Representaes de Mulheres Acerca da Histerectomia em seu Processo
de Viver. Escola Anna Nery: revista de enfermagem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, jul./set. 2009.
PAULA, M. A. B.; TAKAHASHI, R. F.; PAULA, P. R. Os Significados da Sexualidade para a
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Algumas Consideraes sobre a Urgncia Subjetiva
em uma Instituio de Tratamento Oncolgico
Captulo
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No mbito hospitalar, no processo de tratamento do cncer, so trilhadas vias de intervenes, em que a agilidade assume fator imprescindvel, de forma que, o quanto antes o
plano teraputico for iniciado, maior a probabilidade de eliminao da doena. Pode acontecer de
a confirmao do diagnstico ser imediatamente seguida pelo incio de um tratamento invasivo.
Trata-se da urgncia mdica em jogo. Pode-se localizar ainda outras urgncias no trabalho em
uma instituio mdica. O controle dos sintomas, por meio do uso de protocolos na padronizao
de condutas visando a uma resposta positiva do paciente, surge, muitas vezes, no contexto das
internaes hospitalares, sob o compartilhamento de uma orientao de trabalho. Nesse sentido,
recorrente que a equipe de sade vise tambm alta hospitalar, com o objetivo de diminuir os riscos fsicos de uma internao prolongada, tal como infeces. Com isso, o tratamento orgnico
constitui um enfoque importante na dinmica hospitalar, com diversas urgncias do ponto de vista fisiolgico.
Entretanto, vemos que, pela sua especificidade, isso , pela incidncia da dor no processo,
pelas mutilaes e pelas alteraes da imagem corporal, entre outros aspectos, o tratamento pode
produzir marcas psquicas, e cada um apresenta uma forma singular de posicionar-se diante delas
durante o processo. Assim, acompanham-se pacientes com suas mais diversas questes diante da
emergncia do cncer e de seu tratamento, quando se deflagra outra urgncia. As urgncias do
sujeito so aquelas que escapam conduo do tratamento orgnico. Vemos, na clnica, que, j no
encontro com o diagnstico, a angstia pode aparecer como o nico recurso do sujeito, uma vez
que se introduz uma quebra na sua vida diante desse cenrio.
Frente oferta de um espao para onde possam enderear toda ordem de sofrimento psquico inerente a esse momento, no incomum escutar dos pacientes que perderam o cho
ou um buraco foi aberto diante de seus ps. A radicalidade, expressa nesses termos, aponta para
a perda de um suporte simblico que tem a funo de ancorar o sujeito em um lugar especfico.
Entendemos aqui que a perda do cho, da qual nos falam, remete falta de representao para a notcia recebida, enfim, para a experincia de descobrir um cncer na prpria carne. Com isso, a
resultante de atravessar esse espinhoso momento pode ser um certo descarrilamento da cadeia significante.
Com Lacan (1998a), entendemos que o sujeito no est pronto a priori, mas constitudo,
desde o nascimento biolgico, a partir do banho de linguagem recebido pelos que se ocupam de seus cuidados. por ter sido falado, idealizado, imaginado pelos pais, o que acontece mesmo
antes de sua concepo, que o sujeito poder advir, o que equivale a dizer que esse advento ,
portanto, em meio a palavras, ou melhor, significantes. Assim, temos a frmula lacaniana de que
o sujeito representado por um significante para outro significante (LACAN, 1998a), ou seja, ele
precisa estar entre significantes para localizar-se na vida. isso o que d origem representao
do sujeito, os significantes vindos do Outro. Quando, por algum motivo, esses significantes
que o sustentam no bastam e caem, o sujeito tambm cai. Essa desarticulao de uma cadeia significante pode ser desencadeada em momentos de crise, que fazem vacilar os significantes, ou
seja, situaes que marcam para o sujeito que algo escapa ao processo de simbolizao, excedendo
ao campo das representaes.
Nestes momentos, as respostas que o sujeito sustenta j no so suficientes,
pois algo aconteceu que vacilou suas certezas. A surpresa, o acaso da doena, a
possibilidade da morte, podem caracterizar um momento de crise. Em uma crise,
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a experincia traumtica irrompe na vida da pessoa, quebrando violentamente
esse transcorrer natural (MOHALLEM; SOUZA, 2000).
Pensamos que, com a falta de significantes, o sujeito pode perder o cho, ou seja, aquilo
que o sustenta, como nos falam nossos pacientes, o que s pode ser percebido quando h algum
ali escutando aquele sujeito que sofre. Com isso, emergem algumas questes que tentaremos
trabalhar ao longo do texto. Ser que a enunciao dessa experincia a algum j no consiste em
um primeiro ensaio para colocar palavras ali onde havia vazio? Uma primeira tentativa de tratar
esse encontro com o real?
Estamos chamando de encontro com o real os diversos momentos do tratamento do cncer, no apenas ao primeiro momento do diagnstico. Com Freud (1996a), temos, no conceito de
trauma, uma primeira apresentao disso que concerne ao real na leitura lacaniana. Ele consiste em algo que escapa simbolizao, sendo, portanto, inapreensvel ao sujeito. Emerge na forma
de susto (FREUD, 1996a), instaurando a dimenso da surpresa, do encontro com algo inesperado.
Sendo uma experincia que, na maioria das vezes, atropela o sujeito e deixa-o sem proteo, o
encontro com o cncer pode estar associado dimenso de trauma, aquilo sobre o qual o sujeito nada sabe, ainda que busque compartilhar respostas informativas sobre a doena. Para alm
disso, vemos, no enfrentamento do prprio tratamento, como a quimioterapia, a radioterapia ou as cirurgias mutiladoras, o encontro com algo inconcebvel. Para Lacan (1998a), o real o que
retorna sempre ao mesmo lugar (LACAN, 1998a, p. 52), o que faz o sujeito ficar tomado por
uma dimenso de inassimilvel diante de algo vivenciado enquanto excesso, um resto ao seu
mundo de representaes imaginrias e simblicas. Um encontro traumtico na medida em que
aparece uma viso nua e crua do real, em que o vu imaginrio no d conta da sua cobertura e
o real escancarado. Em muitos casos, abordamos o paciente nesse momento, de se submeter a um tratamento
do qual no se sabe as consequncias, e que fica, muitas vezes, irrepresentvel. Com isso, no
incomum que no chegue um pedido de socorro, na forma de palavra, pelo paciente, que se encontra assolado pelo real, perdido. Escutamos de muitos o desespero diante de constataes
do tipo eu no sei mais quem eu sou, eu no era assim, minha vida acabou. Dessa forma,
propomos aqui uma leitura dessa perda dos ancoramentos, o que fragiliza o sujeito durante o
encontro com o cncer e seu tratamento, pela via da urgncia subjetiva. A urgncia subjetiva disparada quando a dimenso do real est em jogo, quando,
frente a um sofrimento inefvel, incontornvel, em que faltam imagens para representar o que
acontece e palavras para signific-lo, o sujeito cai em um mutismo, sendo substitudo por atos
de desespero, que so a mais prxima representao da angstia (SELDES, 2004). Essa urgncia
surge, ento, com a ruptura abrupta da cadeia significante, tendo como consequncia uma falta
de lugar para o sujeito, o que pode ser representado pela sensao de estar perdido, na medida em que so os significantes que lhe do existncia. Sem um significante para represent-lo, o
sujeito fica atrelado ao puro ato, que possui efeito de mortificao (SELDES, 2004). No contexto
hospitalar de tratamento, isso tem consequncia em certa objetalizao do sujeito, que se deixa
levar pelos cuidados da equipe, totalmente entregue aos procedimentos, desapropriado de si. Nas situaes mais graves, para de comer, desiste do tratamento, o que sempre lhe imputar
uma responsabilidade, deixa-se morrer, desiste. Tal apagamento subjetivo exige uma interveno
(MARON, 2008) na tentativa de resgatar o sujeito.
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A urgncia subjetiva se define, nesse sentido, como o estado agudo de um sujeito
cuja questo no se prende diretamente nem a uma leso ou disfuno no corpo, nem a algum problema de ordem pblica ou seja, um sujeito que nos traz uma
terceira dimenso, entre a dimenso mdica e a dimenso jurdica (BARROS, 2008, p. 52).
Dizer que o encontro com o traumtico, na experincia do cncer, pode fazer emergir uma
urgncia subjetiva, aponta para uma carncia de tratamento do sujeito que sofre, pois, para alm da urgncia de tratamento da doena, h as urgncias do sujeito. Do tratamento orgnico, escapam
as marcas psquicas da doena. A urgncia subjetiva disparada quando algo do imprevisvel apresenta-se (MARON, 2008), tal como acontece em relao ao trauma, deixando o sujeito sem
respostas.Como tratar a urgncia subjetiva em meio a tantas demandas e urgncias de outras ordens,
como leitos, procedimentos, cirurgias ou diversos protocolos de tratamento? O tratamento da
urgncia subjetiva pressupe que o sujeito possa ter a quem enderear seu sofrimento psquico.
O desafio consiste, portanto, em sustentar a singularidade do caso clnico no trabalho em uma
equipe multiprofissional, dando lugar aos impasses do sujeito, que geram impasses na equipe,
em meio a outras urgncias no tratamento. Muitas vezes, o paciente nos ensinar que uma
determinada interveno funcionar melhor no controle de sua dor, mas, sobretudo, que a dor
no apenas orgnica, isso precisar ser considerado em seu tratamento.
Tendo em vista a emergncia de uma urgncia subjetiva, a angstia pode se instalar na tentativa de proteo contra novas surpresas desagradveis. Ela ganha consistncia na tentativa
de construir um remendo frente ao estrago produzido pelo real, com o objetivo de estruturar uma
proteo do sujeito frente a novas surpresas, novos sustos (FREUD, 1996a). Podemos associ-la
a um estado de alerta em relao ao que pode vir na direo do sujeito, um ensaio diante do encontro com o intolervel, que sempre repentino. Frente ao escancaramento do real, ou seja,
queda dos vus que o encobriam ao longo da vida, a angstia pode ser o preo pago pelo sujeito para se defender do traumtico. um preo alto, na medida em que no se trata de uma cobertura
agradvel. A angstia o afeto que no engana, nos dir Lacan (2005), que toma o sujeito de forma
que ele saber imediatamente identific-la. Barros (2008) descreve que a urgncia do sujeito pode
se manifestar tanto na forma da passagem ao ato, em que o sujeito sai de cena, sendo o suicdio sua representao mais drstica, quanto na crise de angstia, que deixa o sujeito sem cho. Apesar de
angstia e ato estarem em posies opostas na tentativa de responder ao traumtico, em ambos
estaria embutida certa desarticulao no funcionamento particular daquele sujeito.Quando Seldes (2004) aponta que o trabalho sustenta-se pela frmula saber ao invs de atuar,
o autor indica que escutar o que urge para o sujeito, nesse momento especfico de sua vida, pode
fazer funo de provocar seu advento, na medida em que falar do que lhe acomete constitui uma
via para a rearticulao da cadeia, uma via de tratamento do real. Assim, no h uma rede de
significantes e um sujeito que se associa ou se dissocia dela, mas, no ato de dizer, o sujeito e as
associaes significantes emergem ao mesmo tempo.
Muitas vezes, no ser na primeira oferta de escuta que o paciente falar. Nesse sentido,
localizamos a importncia na sustentao da oferta, abrindo caminho para que o paciente possa
enderear seu sofrimento, o que remete disponibilidade em retornar ao paciente at que ele possa confiar e compartilhar sua angstia, ao que pode nunca ter sido feita ao longo de sua vida.
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Sabemos que o enlaamento pela transferncia pode se dar ou no. Por outro lado, o inconsciente
emergir, em sua evanescncia (LACAN, 1998a), apenas se houver algum ali para escut-lo,
funo sustentada, na psicanlise, pelo desejo do analista (LACAN, 1998a), que tem relao com
um compromisso com o saber inconsciente. Em decorrncia do mal-estar fsico da doena, o paciente pode vir a exilar-se nela, como
Freud (1996d) alerta acerca da dor de dente, que capaz de envolver o sujeito de tal forma que
causa um desinteresse em relao a qualquer outro aspecto da vida, tamanha proporo de sua incidncia. Tal caminho , muitas vezes, a comprovao de que o paciente no est na posio de
quem apresentar uma demanda de fala, no enderear seu sofrimento, assim como o faz aquele
que procura o analista em seu consultrio. Freud (1996b) aponta para a necessidade de ajustes da
tcnica da psicanlise a partir das especificidades das instituies em que o analista est inserido.
Frente ao avassalamento do sujeito, pego de surpresa pelo avano do cncer, produzindo
alteraes drsticas na sua vida, muitas vezes, ele paralisado pelo silncio do vazio, da falta de
representao, pelo encontro com o traumtico. Tal condio pode andar na contramo de um
trabalho de enderear seu sofrimento a algum, na forma de uma demanda falada: me ajuda?.
Ao mesmo tempo, a urgncia subjetiva j uma localizao que requer algum que a escute.
Maron (2008) levanta a seguinte questo: no caberia escut-la, ento, como uma demanda de
atendimento, um pedido silencioso de socorro, algo que ressalta que aquele sujeito precisa ser considerado?
A introduo de um tempo de pausa (SELDES, 2004) no contexto da pressa pela cura do
cncer articula, na clnica, a importncia da dimenso do tempo. O tempo de tratamento da doena da ordem de uma urgncia orgnica que podemos localizar, de certa forma, em um tempo de
emergncia, do quanto antes. Ele no coincide com o tempo que o sujeito leva para reestruturar-
se diante da ideia de ter um cncer, o tempo de compreender (LACAN, 1998c). Vemos que uma
das consequncias dessa no correspondncia entre o tempo do tratamento fsico e o tempo do sujeito incide, muitas vezes, em um incio tardio do tratamento, o que pode trazer complicaes
do ponto de vista do prognstico da doena. Tal passo pode ser efeito de uma solido do sujeito em sua angstia, sem conseguir dar sentido ao que se passa. Por outro lado, a insero da escuta
no momento de uma urgncia que paralisa o sujeito visa restaurao do tempo de compreender, tambm congelado diante do traumtico, diante do vazio de representao que o habita. Apesar
do encontro com o real ser sempre um encontro solitrio, uma vez que o sujeito no conta com
seus recursos simblicos, atravess-lo acompanhado por um analista pode fazer diferena. Nesse
sentido, a direo do trabalho clnico no deslizar sem que aquele que ocupa essa funo, o
lugar de analista, suporte que o sujeito, diante do encontro com o inesperado, se pronuncie no seu tempo, sem pressa e sem abandono: o analista se coloca como parceiro para as invenes que
cada sujeito lana mo para se aparelhar e se a ver com o fora do sentido (MARON, 2008, p. 20).
Apostamos, ento, que o trabalho nessa clnica parte de um acolhimento desse vazio de
palavra, o que implica ofertar-se sem esperar uma demanda pronta, mas na criao de condies,
na aposta de que uma demanda possa ser estruturada. E a condio fundamental, na psicanlise,
disponibilizar-se como objeto da transferncia, em que nunca sabemos em que srie o sujeito nos
colocar. Por meio da fala, o real pode ser tratado pelos significantes, o que quer dizer que aquilo
que o deixou sem lugar pode retornar pela palavra, movimento concomitante com a rearticulao da cadeia. Falar tem efeitos para o sujeito (LACAN, 1998b), distanciando-o do seu sofrimento
(MOHALLEM; SOUZA, 2000), na produo de um dizer em torno da experincia vivenciada.
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Dessa operao, o sujeito pode emergir novamente. O ato anula a palavra e a palavra faz o vazio
do ato ser preenchido pelos significantes, o que se mostra uma sada frente urgncia. Por isso,
apostamos que a urgncia precisa ser escutada, caso contrrio, predomina o puro vazio, puro
automatismo, sem a presena do sujeito. O sujeito precisa ser suposto para advir, sendo a oferta de um lugar de fala, em meio a um cenrio de urgncia, tal como a oncologia pode montar, a
autenticao dessa suposio. Portanto, oferecer um lugar de palavra no pouca coisa. A escuta
convoca o sujeito em meio ao tratamento orgnico, considerando o campo do desejo em jogo sempre, inclusive durante todo o tratamento, fazendo valer seu direito.
apenas quando se considera a histria singular do sujeito, ou seja, quando se trabalha na lgica do caso a caso, que se viabiliza um trabalho frente urgncia subjetiva (SELDES, 2004),
pois a interveno daquele que escuta aponta para a urgncia do sujeito que est diante dele, e a
urgncia sempre autntica. Antes de o sujeito tomar a palavra, nada se sabe a seu respeito. ao convoc-lo a falar que a construo de uma histria pode ser tecida, com a circulao articulada
dos significantes, por meio do nosso instrumento de trabalho: a associao-livre (FREUD, 1996c).
Assim, a verdade do sujeito aparece na mesma proporo em que ele fala de como cortado pelo traumtico, retomando um saber sobre si, que sempre inconsciente.
Vemos, assim, a importncia de uma oferta de atravessar junto ao sujeito a angstia que
pode estar atrelada ao tratamento do cncer, na aposta de que esse (novo) encontro possa ter desdobramentos. Aos poucos, o paciente lana mo de uma palavra, outra e outra, e ento uma demanda de trabalho psquico pode se fazer e o sujeito pode vir a produzir um dizer sobre sua
experincia, na construo de um contorno ao real pela via do simblico. O manejo da urgncia coincide com a oferta de escuta do que acomete o sujeito que invalida seus recursos subjetivos anteriores. Ali, onde havia o vazio, o sujeito deve advir. Certa vez, o atendimento ao leito realizado
a uma paciente em acompanhamento foi conduzido em torno de uma solicitao de que a ajudasse
a se virar na cama, pois encontrava-se impossibilitada de faz-lo sozinha, aps a concretizao
de um procedimento mdico invasivo. Podemos ler tal circunstncia, na transferncia, como uma
demanda do sujeito, um pedido de ajuda para se virar diante da condio em que o cncer a
deixou. Nas palavras de Seldes (2008, p. 102), pensamos que cada um pode chegar, no tratamento da urgncia, a um ponto em que a vida seja um pouco mais possvel (SELDES, 2008, p. 102). A
aposta de que, a partir da urgncia, possa surgir um novo (MARON, 2008), uma inveno indita de vida.
REFERNCIAS
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LACAN, J. O tempo lgico e a assero da certeza antecipada. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998b. 1998c
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DO RIO DE JANEIRO. Urgncia sem emergncia? Rio de Janeiro: Subversos, 2008. p. 10-12.
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SELDES, R. La urgencia subjetiva: um nuevo tiempo. In: BELAGA, G. (Org.). La urgencia generalizada. Buenos Aires: Grama, 2004. p.31-42.
SELDES, R. Pausa: uma porta para a subjetividade hoje. In: INSTITUTO DE CLNICA PSICANALTICA
DO RIO DE JANEIRO. Urgncia sem emergncia? Rio de Janeiro: Subversos, 2008. p. 100-103.
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Cncer de Mama: os Impactos Subjetivos
Causados pela Mastectomia e o Lugar da
Palavra
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O sofrimento psicolgico da mulher que passa pela circunstncia de ser portadora de um cncer de mama e de ter de acolher um tratamento difcil [...] transcende ao sofrimento configurado pela doena em si. um
sofrimento que comporta representaes e significados
atribudos doena ao longo da histria e da cultura e adentra as dimenses das propriedades do ser feminino, interferindo nas relaes interpessoais, principalmente nas mais ntimas e bsicas da mulher (SILVA, 2008, p. 236).
O cncer de mama um importante problema de sade pblica e, segundo estimativas brasileiras, o segundo tipo mais frequente no mundo e o primeiro quando se trata de mulheres (INSTITUTO NACIONAL DE CNCER JOS ALENCAR GOMES DA SILVA, 2014). Os
tratamentos, geralmente invasivos, implicam alteraes significativas no corpo e nos diversos
laos construdos ao longo do percurso de vida de cada sujeito. Nesse artigo, propomo-nos a
discutir os impactos subjetivos causados pelo tratamento do cncer de mama, especificamente
pelo procedimento cirrgico de mastectomia, pois cerca de 70% daquelas que nos procuram
chegam em estadiamento avanado (INSTITUTO NACIONAL DE CNCER JOS ALENCAR
GOMES DA SILVA, 2014). A escolha desse tema tem uma relevncia para a prxis, como
psiclogos com atuao em uma instituio oncolgica, pois testemunhamos a reviravolta que
esse tratamento traz para a vida dessas mulheres e as marcas que ele deixa, tanto no corpo quanto
na subjetividade. A mastectomia, tratamento cirrgico de retirada da mama, para alm do impacto advindo
do diagnstico, que traz tona a possibilidade de morte, parece presentificar uma ameaa
preservao do corpo da mulher, ao colocar em xeque a sexualidade, a maternidade e a feminilidade. Isso nos faz considerar, portanto, o cncer de mama como uma doena que coloca
o dedo em feridas psquicas sempre abertas (QUINTANA, 1999, p. 108).
A alterao vivida no corpo parece refletir perdas em outras reas da vida, uma vez que
a partir dele que nos constitumos, estabelecemos laos e ocupamos lugares e funes. No caso
da mulher mastectomizada, podemos pensar que as relaes ficam comprometidas, uma vez que
haver uma modificao abrupta no modo pelo qual ela se reconhecia at ento. Quintana (1999)
alerta que o corpo referido pela imagem corporal, termo definido como uma figurao de nosso
corpo em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para ns (SCHILDER, 1999,
p. 7), um corpo singular, construdo pelo sujeito por meio de identificaes, que se diferencia do
corpo orgnico, fisiolgico, marcado por um comeo, meio e fim.
Diante disso, a perda da mama vai alm de uma mera perda de uma parte do corpo, uma vez que est culturalmente associada aos simbolismos j citados, bem como ao fato de que, na
contemporaneidade, vivemos um momento de exigncias no qual o corpo mais um gadget,3 uma prtese do sujeito. Isso se evidencia pelo nmero, cada vez mais crescente, das cirurgias
plsticas, dos tratamentos estticos, das academias de ginstica (LIPOVETKKY, 2007).
Defrontamo-nos, assim, com situaes no atendimento mulher que falam de um
sentimento de desvalorizao, de impotncia, do temor do abandono por seus parceiros e
3 uma gria tecnolgica relacionada a qualquer equipamento que tenha uma funo especfica e que constantemente atualizada (traduo livre).
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familiares, ou seja, situaes que falam do quanto seus papis de me, mulher, profissional e
esposa foram atingidos. O que fica claro para ns que os fatores que envolvem a experincia de
um tratamento cirrgico to radical, como o que discorremos, favorecem que esse seja vivenciado como um trauma, um encontro com algo que nos situa fora da curva e desancora nossas certezas,
torna invivel a simbolizao, rompe o sentido dentro do qual o sujeito encontra alguma
homeostase e introduz uma falta de sentido, um no-senso (JORGE, 2007, p. 38).
Apostamos que o fazer dos psiclogos que atuam na rea oncolgica seria, nesse sentido,
acompanhar a mulher em sua tentativa de dar palavras a essa experincia, pois, no momento em que for possvel associar um afeto a um representante, um contorno pode se dar, minimizando
o nvel de angstia dessa vivncia, dessa sensao que poderamos chamar, por uma leitura freudiana, de estranhamento. Faz-se necessrio ficarmos alertas para o fato de que cada mulher
vai vivenciar esse instante de forma singular e dinmica, da nossa organizao de trabalho
procurar incluir a avaliao e a entrevista psicolgica desde os momentos iniciais da deliberao do tratamento, como um dispositivo que pode facilitar a elaborao do diagnstico e as propostas de tratamento (VENNCIO; LEAL, 2004).
Enfim, a dificuldade a ser enfrentada pelas mulheres aps uma mastectomia sua prpria
aceitao, como do olhar no espelho, ainda que esse seja o olhar do cnjuge, o olhar da famlia, o
olhar da cultura e, ainda assim, ser capaz de construir um novo significado para essa experincia
e de lidar com uma modificao no seu corpo. Ressignificar a experincia de um adoecimento,
alm do exposto acima, pode possibilitar uma participao ativa, enquanto sujeito, nas decises
teraputicas a que se submeter no curso do tratamento.
REFERNCIAS
INSTITUTO NACIONAL DE CNCER JOS ALENCAR GOMES DA SILVA. Estimativa 2014: incidncia de cncer no Brasil. Rio de Janeiro: Inca, 2014.
JORGE, M. A. C. Angstia e castrao. Reverso, Belo Horizonte, ano 29, n. 54, p. 37-42, set. 2007.
LIPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. So Paulo: Barcarolla, 2007.
QUINTANA, A. M. Traumatismo e simbolizao em pacientes com cncer de mama. Temas em
Psicologia, v. 7, n. 2, p. 107-118, 1999.
SCHILDER, P. Imagem do corpo: energias construtivas da psique. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1999.
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VENNCIO, J. L.; LEAL, V. M. S. Importncia da atuao do psiclogo no tratamento de mulheres
com cncer de mama. Revista Brasileira de Cancerologia, v. 50, n. 1, p. 55-63, 2004.
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Consideraes sobre o Adoecimento Oncolgico
na Velhice
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A motivao para o presente texto decorre da experincia profissional anterior junto
Enfermaria de Cirurgia Vascular do Hospital Federal dos Servidores do Estado (HFSE), assistindo
populao predominantemente idosa, somado ao interesse de alguns outros profissionais do
Servio de Psicologia pelo estudo do tema da velhice, a par da vivncia especfica do adoecimento
orgnico.Em vista de trabalho atual como profissional do INCA, no setor de oncologia clnica, e a
despeito da doena oncolgica compreender uma distribuio etria bem menos caracterstica, as
atividades de ensino junto aos residentes reatualizaram o desejo de sistematizar leituras realizadas
antes, com vistas ao planejamento de aula dentro do Curso de Residncia Multiprofissional,
finalmente estimulando a escrita dessa breve sntese para efeito de reflexo e divulgao.
Se existe uma decadncia psquica no velho doente, isolado ou mal tolerado em sua famlia ou na instituio, porque, na sua relao com o outro, a pessoa idosa no mais tratada como um sujeito, mas torna-se unicamente objeto de cuidados (MANNONI, 1995, p. 29).
A citao acima foi extrada do captulo inicial da obra escrita pela brilhante psicanalista Maud Mannoni, no por acaso, nos anos finais de sua vida, em que, de forma muito pessoal,
pde articular perdas sofridas recentemente expresso de uma justa revolta frente realidade
do idoso em seu meio. Um livro triste e corajoso, erigido por uma autora privilegiada pela capacidade de traduzir em produo terica (psicanaltica) as inquietaes que a experincia
clnica lhe transmitiu acerca de crianas, famlia, sociedade e educao. Para ela, velhice e morte
no poderiam ser fonte de novos no ditos.
De um modo diverso, configurando um pano de fundo abrangente concepo da
velhice em nossos dias, Birman (1997) elege tal assunto entre tantos outros, no contexto de obra
em que busca conciliar a teoria freudiana, sua historiografia e conceitos essenciais temtica
da modernidade, da qual a prpria psicanlise fruto. Em particular, as transformaes atuais
na relao da cultura com a velhice so analisadas, evidenciando um reconhecimento tardio da subjetividade do idoso, atravessada por mudanas recentes no mbito sociofamiliar que impossibilitam sua temporalizao, gerando estilos psicopatolgicos vivncia da finitude na
ausncia de uma perspectiva simbolizvel de futuro.
Desamparo, despersonalizao, depresso, paranoia, mania, so assim marcas que a
tica moderna do individualismo assenta sobre nossos velhos. Mas Birman (1997) aponta, nas
consideraes finais do captulo, a clnica (psicanaltica) como possvel via de resgate memria
do sujeito. por meio de pesquisa da clnica de idosos que Kamkhagi (2008) busca encontrar
processos curativos diante das muitas perdas vivenciadas pelo indivduo ao longo do
envelhecimento.Confrontados as perdas corporais, o estreitamento de possibilidades, o temor do
adoecimento incapacitante, a perspectiva de proximidade da morte e as perdas de referncias frente contemporaneidade, diante desses enfrentamentos estruturais evocados na escuta do idoso, a autora reflete alternativas na aquisio de maior independncia com relao ao status
social, de tolerncia para com as fraquezas de si e do outro, de um maior pragmatismo e maior
flexibilidade na experincia do prazer, em vivncias estticas amplas voltadas ao coletivo,
natureza ou s msticas, e no encontro de novas fontes de satisfao, buscando um sentido tico
s suas aes.
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Ao lado de referncias de ordem clnica, cabe serem mencionadas diferentes abordagens de pesquisa voltadas ao envelhecimento, buscando examinar, a par das diferenas individuais na representao da velhice e das presses do meio circundante, caractersticas que se conservam
estveis ou se transformam na personalidade e cognio ao longo do tempo, e, sobretudo, visando
a estabelecer os atributos de uma velhice bem-sucedida (para uma sntese desses estudos, cf.
FONTAINE, 2010).Entre teorias de cunho desenvolvimentista, estruturadas em torno do conceito de estgio,
pode-se identificar o conhecido modelo de Erikson, que considera a vida humana em toda a sua
extenso. O autor situa, no perodo da velhice, uma crise evolutiva marcada pela contradio integridade-desesperana, cuja possvel resoluo se d por um sentimento dominante de sabedoria,
fruto de um balano de vida em que o indivduo alcana certo distanciamento das relaes
sociais imediatas. Ainda, a viso psicanaltica de Jung evoca um modelo de desenvolvimento que se prolonga vida adulta, atribuindo ao envelhecimento caractersticas prprias de crescente introverso e androginia (melhor equilbrio entre os gneros no plano das representaes).
Entretanto, outros paradigmas criticam a centralidade do critrio de estgio, por ignorar
a histria do indivduo na anlise do desenvolvimento e do envelhecimento (posio das
abordagens cognitiva e sociocognitiva) (FONTAINE, 2010). Notadamente, do ponto de vista metodolgico, a perspectiva de curso de vida destaca a importncia de ocorrncias histricas e expectativas sociais na origem (sociogentica) dos estgios, e a perspectiva life-span atenta para
o contexto (coorte) como fundamental pesquisa psicolgica (NERI, 2001).Tais pressupostos salientam a maior variabilidade interindividual que parece caracterizar
o idoso em comparao s etapas anteriores do ciclo vital, tendo por base a vivncia de eventos crticos ou no normativos, cujo controle remete avaliao cognitiva e s estratgias de enfrentamento empregadas (FORTES; NERI, 2004).
Em particular, o conceito de resilincia, recorrente em pesquisas voltadas preveno em sade mental, designa uma competncia individual face ao estresse, sendo esta associada, por sua vez, a constructos diversos, como autoeficcia, lcus de controle interno, reminiscncias (processo
de reinterpretao de eventos passados) e suporte social (FALCO; BUCHER-MALUSCHKE,
2010). Enquanto processo dinmico, o modelo de resilincia aqui especialmente importante por enfatizar fatores de proteo (plasticidade) que vo de encontro ao esteretipo de vulnerabilidade
comumente atribudo ao idoso (LARANJEIRA, 2007).
O diagnstico oncolgico, em qualquer idade, exemplifica evidentemente o tipo de
evento imprevisto e idiossincrtico que desafia os recursos cognitivos e emocionais do sujeito,
a par de outras vivncias caractersticas de etapas do ciclo vital. Na velhice, a doena vem se somar a necessidades muito prprias de comunicao com o outro, agravando o sentimento de desesperana do idoso, em lugar de propiciar ocasio a um rito de passagem dos laos familiares a uma busca pessoal de sentido (transcendncia) (BARROS, 2004).
Tal vivncia do cncer entre idosos carrega, por fim, diferentes significados para o
paciente em tratamento, desde a aceitao e a busca de compartilhamento, at a resignao (por vis religioso) ou o medo diante do estigma da doena. Seu enfrentamento atravessado por discursos contraditrios do paciente, notadamente a tentativa racional de exercer controle sobre o sofrimento (SOARES; SANTANA; MUNIZ, 2010).
No ambulatrio de psicologia do INCA (como nas enfermarias), acompanhando pacientes em vigncia de tratamento clnico ou em controle, possvel reconhecer no idoso muitas das
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consideraes aqui reunidas. Embora haja o risco em generalizar traos de maturidade que
naturalmente se espera observar nessa etapa da vida, a assistncia prestada permite testemunhar, no sem admirao, como frequentemente a vivncia do cncer , de certa forma, temperada no conjunto das experincias pessoais acumuladas (vida conjugal, profissional, perdas e ganhos),
favorecendo algo no gnero do que diferentes autores sugerem como uma desacelerao e uma ressignificao global do passado e do presente, no rumo de uma aceitao possvel do
diagnstico, do tratamento e dos cuidados.
REFERNCIAS
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BIRMAN, J. Estilo e Modernidade em Psicanlise. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
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FORTES, A. C. G.; NERI, A. L. Enfrentamento de Eventos Estressantes e Depresso em Idosos.
In: FALCO, D. V. S; ARAJO, L. F. (Org.). Idosos e Sade Mental. Campinas: Papirus, 2010. p. 107-124.
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SOARES, L. C.; SANTANA, M. G.; MUNIZ, R. M. O fenmeno do cncer na vida dos idoses.
Cincia, Cuidado e Sade, Maring, v. 9, n. 4, p. 660-667, out./dez. 2010.
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O Diagnstico em Psicologia
Captulo
5
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Psicologia: pensando o hospitalNo contexto do hospital, a rapidez de obter um diagnstico clnico e um tratamento
imperativa tanto para a instituio, interessada em diminuir o tempo de permanncia de seus pacientes, quanto para o doente que, estando longe do seu ambiente familiar, quer ver o seu caso encaminhado e resolvido. No mundo contemporneo, alguns mtodos e valores so paradigmas. Um grande exemplo disso o prprio saber cientfico. Ele possui suas particularidades, suas
caractersticas e seus valores, como o mtodo da racionalizao, a busca por respostas exatas e
reprodutveis e a clara distino e o afastamento entre cientista e objeto de estudo. Afinal, tempos
maiores de permanncia aumentam a possibilidade de intercorrncias, o que permite inmeras variveis no relacionamento da equipe de sade com o paciente. Situaes como essa colocam a
psicologia numa zona crepuscular do saber cientfico tradicional, na qual sujeito e objeto no se
veem mais to separados, mas atravessados por situaes de estresse e mesmo pela criao de um
vnculo, que significa o estabelecimento do paciente como um sujeito.
Foucault (1987) discorre, no decorrer de seus estudos, sobre uma disciplina que se refere
vigilncia e ao monitoramento dos corpos, a fim de domestic-los, isso , de faz-los agir e pensar
de acordo com determinado saber-poder vigente em cada poca e contexto. Foucault chamou
esses corpos j treinados de corpos dceis corpos que cumprem exatamente com aquilo que se
espera deles, com o que aquele contexto precisa e exige. No entanto, essa docilidade vai alm: ela diz respeito a corpos que so normatizados pelo poder que est atento a qualquer deslize ,
mas tambm domados o tempo todo por si mesmos, por uma autovigilncia. Estamos inseridos numa cultura em que, a todo o tempo, somos vigiados, e essa situao chega a um nvel tal que ns mesmos acabamos por nos controlar e docilizar. Tendemos a esperar e exigir essa docilidade,
muitas vezes sem nos perguntarmos a que contexto de poder e saber isso atende. Devemos pensar
essa dinmica no cenrio que nos compete: o hospitalar.
O imperativo da eficincia mdica, da rotina e da tcnica contm essa exigncia por
corpos dceis, aderidos ao seu tratamento. No entanto, sempre que ocorre certo rudo na relao ideal com o paciente em tratamento, vemo-nos no limiar entre a tcnica e a subjetividade. So
inmeras as situaes que podem mobilizar a equipe de sade nesse sentido: uma identificao,
uma simpatia, uma angstia. De repente, a equipe de sade e no s o paciente v-se em
outra dimenso, diferente da percia da enfermagem ou de um manejo cirrgico, mas o mundo do afeto, da ansiedade, da frustrao e da dor. nesse desconcerto, tanto para o paciente quanto para a equipe, que a psicologia atua.
Nesse campo, nem sempre todas as questes e denominaes podem ser respondidas
com a preciso e a urgncia de um diagnstico clnico. Embora esse trabalho se d no sentido de facilitar uma internao mais serena e um tratamento com menos sofrimento emocional, em certos momentos, docilizar o paciente quando, por exemplo, ele se mostra mais resistente seria o
mesmo que silenci-lo, enquanto dar voz a sua angstia pode fazer parte do seu processo de cura.
De acordo com Simonetti (2004), preciso descobrir a verdade do paciente sobre a doena. O psiclogo trabalha com o sentido das coisas, no com a verdade das coisas. Assim, preciso pensar se, dentro dessa atuao, a elaborao de um diagnstico ou uma definio precisa sobre
como encaminhar um tratamento psicolgico seriam o mais importante. A psicologia pretende, antes de tudo, escutar o que se passa com o sujeito, quais suas expectativas, medos, o que pensa de
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si, dos outros e do mundo, como conta sua histria, quais so suas experincias etc. Tudo isso nos fornece conhecimento sobre que imagem ele tem de seu quadro clnico e de sua hospitalizao,
bem como de seu tratamento e de sua relao com a equipe. Exatamente por cada experincia ser to particular, a questo do diagnstico sempre
muito delicada para a psicologia. Esse modo de pensar nosso objeto de trabalho e estudo
que, no caso, sempre um sujeito coloca-nos diante de intervenes que precisam, o tempo
todo, negociar com o timing da rotina clnica do hospital. Em certos momentos, a resposta a um pedido de parecer pode no ser precisa, sendo o acompanhamento a nica garantia. O ritmo de tratamento , aqui, sempre tecido numa confluncia do tempo institucional com o tempo
emocional do paciente. Nessa convergncia, cada encontro nico e indito.Diante dessas reflexes iniciais, cabe-nos questionar sobre o limite do poder de resposta
que tem um diagnstico. Nesse momento, necessrio pensar: o que se espera da psicologia? O
que ns oferecemos para o benefcio do paciente e da equipe de sade?
A abordagem do psiclogo no contexto hospitalar De acordo com Arajo (2007), o conceito de diagnstico tem origem na palavra grega
diagnstiks, que significa discernimento, faculdade de conhecer, ou ver atravs de. Na forma como vem sendo utilizado, significa estudo aprofundado, realizado com o objetivo de conhecer
determinado fenmeno por meio de um conjunto de procedimentos tericos, tcnicos e
metodolgicos. Tradicionalmente usado na medicina, o termo foi incorporado aos discursos e s prticas profissionais de diferentes reas de conhecimento. Para a psicologia hospitalar, segundo
Simonetti (2004), o diagnstico o conhecimento da situao existencial e subjetiva da pessoa adoentada em sua relao com a doena.
O hospital rene diversos profissionais envolvidos no cuidado sade de um indivduo.
Esse ambiente rotineiramente sistematizado em torno de procedimentos que envolvem
observao, diagnstico e tratamento de sintomas ou doenas. Para que um plano de tratamento
seja elaborado, crucial o momento do diagnstico que, do ponto de vista mdico, consiste em hipteses baseadas na sintomatologia apresentada pelo paciente durante o exame, direcionando a investigao clnica para um grupo de possveis doenas, posteriormente analisadas a partir de exames complementares. Na confirmao da hiptese investigada, elaborado um plano
teraputico, visando ao tratamento da doena ou eliminao dos sintomas.Como a psicologia se insere nessa estrutura? Primeiramente, o cenrio o seguinte: o
indivduo hospitalizado pode atravessar um momento de crise ao adoecer, uma vez que teve
sua rotina interrompida, necessitando deslocar-se para um ambiente que geralmente remete
insegurana, ansiedade, ao medo e angstia, alm de, no raro, exigir-lhe uma postura
passiva. Nesse contexto, dadas as circunstncias, o olhar psicolgico diferenciado, diante de reaes do paciente doena e hospitalizao, que no raro afetam seu tratamento e adeso. E
assim, nos diz Simonetti (2004), quando um psiclogo entrevista um paciente pela primeira vez,
procurando diagnosticar sua forma de reao doena, ao mesmo tempo j est oferecendo a ele
uma escuta que o permite falar, o que, por si s, j produz efeitos teraputicos.
O lugar, a importncia e as caractersticas do processo diagnstico dentro de um sistema teraputico dependem da matriz epistemolgica, tica e poltica de cada sistema. Nesse sentido,
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vale a reflexo de Foucault sobre que saber-poder estamos veiculando com o nosso discurso. E
possveis discursos so analisados, por exemplo, no trabalho de Figueiredo e Tenrio (2002), em que so comparados o diagnstico psiquitrico e o diagnstico psicanaltico. Para esses autores,
o primeiro fundamentalmente fenomenolgico e, nos ltimos anos, tem apresentado uma tendncia de substituio das grandes sndromes (esquizofrenia, psicose manaco-depressiva,
neurose) por descries cada vez mais especficas de fenmenos objetivos. Para ilustrar essa
tendncia, temos o transtorno mental e de comportamento decorrente do uso de solventes volteis, sndrome de dependncia, atualmente abstinente, porm em ambiente protegido. Esse
um diagnstico encontrado na Classificao Estatstica Internacional de Doenas e Problemas
Relacionados Sade (CID), com o cdigo F18.2.21. Essa aproximao descritiva e taxonmica
dos transtornos mentais ilustra a necessidade de transformar em objeto o sofrimento psquico, com a finalidade de torn-lo manipulvel e controlvel, objetivo prprio de uma psiquiatria
biomdica, de matriz cartesiana, referindo-se queles sujeitos e objetos separadamente.
Por outro lado, Figueiredo e Tenrio (2002), citando Leguil (1986 apud FIGUEIREDO;
TENRIO, 2002), apontam como o diagnstico psicanaltico procura o mais-alm dos
fenmenos. O diagnstico teraputico e demanda o encontro, o dilogo, a clnica (reclinar-se
sobre) como escuta profunda beira do leito do sujeito em tratamento. Enquanto Saraceno et al. (1994) afirmam que, na psiquiatria biomdica, o diagnstico serve principalmente para definir
a estratgia farmacolgica adequada, o diagnstico de matriz psicanaltica parte intrnseca
da prpria terapia, no se reduz a uma descrio e demanda um processo de produo de
subjetividade entre terapeuta e paciente. A autorizao e a escuta dessa subjetividade possibilitam um elo que acolhe demandas
que no so mdicas, como a do paciente se sentir olhado e cuidado e, alm disso, possibilita ao profissional da psicologia reconhecer as peculiaridades das reaes do paciente: como ocorre a
sua adaptao, como respondem as suas resistncias, de que esperanas e medos elas falam e, principalmente, como tudo isso estrutura sua individualidade. A ateno no que est mais alm
dos fenmenos permite explorar potenciais criativos seja a internao, o tratamento, sejam as
representaes feitas sobre a doena que at ento no eram vistos pelo paciente e pela equipe
mdica.A devolutiva em psicologia, portanto, presume muito mais uma anlise das relaes
e o papel de todos diante delas , questionando, constantemente, que discurso cada um est
veiculando, ou que papel estamos representando. O diagnstico psicolgico, nesse processo, deve ser mais um balizador do que um fechamento. Do contrrio, pecaramos contra a abordagem
psicodinmica que convida o paciente a tambm se questionar e interrogar qual a sua posio em relao sua internao e ao seu processo de adoecimento.
ConclusoA busca pelo diagnstico em psicologia menos uma concluso e mais uma oferta da
escuta como oportunidade de o paciente elaborar seu conflito de maneira dinmica. Cabe-nos
resgatar o significado da palavra diagnstico como o conhecimento de algo, um aprofundar-se ou
um ver atravs do que est exposto. Pensando dessa forma, fazemos diagnstico o tempo inteiro.
A nossa devoluo para a equipe multidisciplinar pode ser situacional, mas a nossa escuta tem de
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ser ampla. Sendo a psicologia o estudo da alma, para fazer um diagnstico da alma, precisamos
estar abertos sua linguagem. Para ns, tudo o que o paciente diz sinaliza suas sadas criativas para tempos de crise.
Dar voz ao paciente no hospital buscar entender como ele vive sua doena e seu tratamento, e
nisso pode residir a diferena entre adeso ao tratamento ou um estado de isolamento, dvida e desconfiana. Certas perguntas permeiam o plano de fundo de nossa escuta: como o paciente
vive a internao? Como ele experimenta o contato com a equipe? De que forma as prescries
mdicas entram na sua vida? Do que ele precisa abrir mo e que importncia isso tem para ele e,
da mesma forma, quais novos hbitos ele precisa tomar, o que deve acrescentar em sua rotina e
quais os desdobramentos disso?
Nosso trabalho se concentra nesse olhar para alm do corpo, para alm do que est
escrito, prescrito e dito. Isso redimensiona o que parecia evidente. O diagnstico na nossa rea
pode contribuir como um plano que salvaguarda manobras para o encontro entre o paciente e a instituio. Isso, no entanto, no mais primordial que a singularidade do encontro em si.
REFERNCIAS
ARAJO, M. F. Estratgias de diagnstico e avaliao. Psicologia: teoria e prtica, So Paulo, v. 9, n. 2, p. 126-141, 2007.
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SARACENO, B.; ASIOLI, F.; TOGNONI, G. Manual de sade mental: guia bsico para ateno primria. So Paulo: Hicitec, 1994.
SIMONETTI, A. Manual de Psicologia Hospitalar: o mapa da doena. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2004.
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A Questo do Sofrimento Psquico na Clnica
Oncolgica: um Relato da Experincia com Crianas e
Adolescentes
Captulo
6
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O trabalho clnico com crianas e adolescentes no setor de oncologia peditrica faz
suscitar diversas questes acerca do tema sofrimento psquico. Trata-se de uma clnica na qual o
sofrimento aparece e faz rudos no apenas para os pacientes infantojuvenis, mas tambm para
seus pais e familiares mais prximos e para a prpria equipe assistente, uma vez que cuidar de
crianas e adolescentes com cncer, e, eventualmente, ver esses pacientes morrerem no tarefa fcil. Assim sendo, o sofrimento psquico est sempre colocado nessa clnica.
O presente relato de experincia pretende debruar-se sobre o sofrimento na perspectiva
dos pacientes, procurando identificar as particularidades desse tema no contexto oncolgico.
A experincia a ser relatada refere-se ao perodo de trabalho como residente de psicologia no
servio de oncologia peditrica do INCA. Nesse perodo, por meio da realizao da pesquisa
Da sobrevida vida: consideraes sobre crianas e adolescentes com cncer a partir da Psicanlise4, os pacientes foram atendidos ambulatorialmente e tambm durante suas internaes hospitalares
na enfermaria, de modo que seu acompanhamento deu-se de maneira longitudinal e bastante
prxima, possibilitando algumas reflexes sobre o tema. Os fragmentos clnicos utilizados aqui
tm o aval dos responsveis legais dos pacientes, que concordaram em participar da pesquisa por
meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), fornecido pelo Comit de tica e
Pesquisa (CEP) do INCA.
Para crianas e adolescentes, o adoecimento por cncer surge em meio ao processo de
constituio de uma imagem, de uma unidade e de um lugar para si no mundo, isso , em meio ao processo de constituio do sujeito. A partir da leitura da psicanlise, compreendemos que o
beb humano chega ao mundo inacabado e marcado por um desamparo primordial, uma vez
que, sozinho, no tem recursos para lidar com as tenses que o agitam e que atravessam seu
corpo. O beb, portanto, depende dos cuidados do Outro5, que, nesse primeiro momento da vida, representado pela funo materna.
Freud (1996c) circunscreve esse momento da chegada do beb ao mundo e assinala o
estado de desamparo primordial, afirmando que o organismo humano necessita de um elemento
externo a ele prprio para obter o equilbrio de suas tenses, que nesse momento encontram-se
totalmente desordenadas. O desamparo, portanto, diz respeito ao desconforto do sujeito frente
a um excesso de tenses e excitaes com as quais ele prprio no encontra recursos para lidar.
somente a partir de uma ajuda alheia (FREUD, 1996c, p. 24) que o desamparo pode ganhar
algum destino. No processo de constituio do sujeito, a partir da relao que se estabelece entre o beb
e o Outro materno, o estado de desamparo vai dando lugar constituio de uma imagem na qual o beb se identifica e, a partir da qual, reconhece uma unidade, afastando-se, ento, da
experincia de corpo despedaado (LACAN, 1998b, p. 100). Trata-se do estdio do espelho e
do primeiro esboo do Eu, como assinalou Lacan (1998b).
Eis que a ocorrncia do cncer e do tratamento oncolgico d-se em meio a esse processo
de construo de uma imagem e, posteriomente, de um lugar para si no mundo simblico. Assim, um Eu que vem se constituindo, repentinamente se v diante de um acometimento orgnico
4Pesquisa aprovada pelo CEP/INCA e desenvolvida ao longo de um ano como requisito de obteno de grau no Programa de Residncia Multiprofissional em Oncologia do INCA.
5Trata-se do Grande Outro, lugar de constituio do sujeito, de seu corpo e de seu sintoma, bem como lugar de endereamento sustentado pelo analista na conduo do tratamento (LACAN, 1958/1998).
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severo e potencialmente letal. O cenrio das alteraes provocadas pelo surgimento inesperado
do cncer parece colocar o sujeito, que ainda se encontra em constituio, novamente frente a um acmulo de excitao com o qual no pode lidar (FREUD, 1969). Diante do efeito potencialmente
mortal e destruidor do cncer, o estado de desamparo parece se reatualizar e se colocar como
uma das principais marcas do sofrimento psquico nessa clnica. Todavia, cabe assinalar, o desamparo vivenciado no contexto da oncologia d-se sob
circunstncias bastante diferentes do desamparo experimentado em adoecimentos neurticos, por exemplo. No cncer, algo escapa simbolizao do aparato psquico e permanece como um
excesso que inassimilvel (LACAN, [1998c], p. 60) para o sujeito, pois, por mais que se tente,
no possvel encontrar palavras que deem conta de represent-lo por completo. Ainda assim,
o que parece apaziguar esse sofrimento justo a tentativa e o esforo do sujeito de procurar
construir algum sentido e algumas sadas diante daquilo que abalou suas referncias e sua prpria imagem.
Na clnica com crianas e adolescentes, escutamos algumas referncias no discurso de nossos pacientes que nos remetem dimenso de inassimilvel desse adoecimento. Alguns fragmentos
auxiliam essa ilustrao, como o caso de L., uma adolescente de 17 anos, que tem o diagnstico
de osteossarcoma e, em sua primeira internao, encontra-se extremamente angustiada diante da
possibilidade de amputao da perna. L. esfora-se para encontrar palavras que definam e dem
algum sentido a seu estado naquele momento e, ento, diz: eu no sei, mas parece que tiraram
meus ps do cho e parece que eles esto flutuando. Eu t desesperada!. Outro adolescente, A.,
16 anos, durante o atendimento, relata o que experimenta diante do mesmo diagnstico: estou confuso, pensando um monte de coisa, um monte de pensamento, tanta coisa que eu no sei nem dizer, no consigo falar nada. Segundo Costa e Cohen (2012), a doena oncolgica na
infncia e na juventude um acontecimento que dificulta a simbolizao e que se caracteriza pelo
encontro com o real (tych), j que o sujeito est sem palavras (COSTA; COHEN, 2012, p. 60).
Frente ao sofrimento sob a forma de desamparo, a possibilidade de construir um vnculo com o Outro fundamental. No desamparo, ocorre uma abertura ao Outro, que reconhecido como aquele que supostamente tem a possibilidade de nomear e dar algum destino ao desconforto experimentado pelo sujeito. Assim, a experincia de desamparo remete no s ao caos psquico, mas tambm a um movimento do sujeito, que enderea ao Outro seu desconforto, abrindo espao para que alguma construo de sentido da experincia desprazerosa acontea. Barros (2000)
considera que, diante de uma situao traumtica, o que a psicanlise pode oferecer uma
escuta que possibilite criana/sujeito simbolizar pela palavra, nomeando esta ruptura (...) e
significando sua perda, de modo a integr-la na sua histria, no seu discurso (BARROS, 2000,
p. 91).
Na clnic