PSICOLOGIA, SELF E COMUNIDADE

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PSICOLOGIA, SELF E PSICOLOGIA, SELF E COMUNIDADE COMUNIDADE Caminhos para estabelecer uma ligação entre a psicoterapia e a mudança social James Hillman: Cambridge, 1993 1

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PSICOLOGIA, SELF E COMUNIDADE Caminhos para estabelecer uma ligação entre a psicoterapia e a mudança social James Hillman: Cambridge, 1993

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PSICOLOGIA, SELF E COMUNIDADEPSICOLOGIA, SELF E COMUNIDADE

Caminhos para estabelecer uma ligação entre a psicoterapia e a mudança social

James Hillman: Cambridge, 1993

Este é um dos mais importantes textos de James Hillman para entender a

revisão que faz do conceito de Self a partir das idéias da Psicologia

Arquetípica. Aqui, Hillman desdobra com maior precisão uma idéia que já

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havia apresentado no livro "Cem anos de psicoterapia e o mundo continua

cada vez pior", ou seja, reimaginar o Self como "a interiorização da

comunidade". Este é o momento da Anima Mundi, uma nova reviravolta

no pensamento de Hillman com a criação de um discurso eco-político e

um ataque inovador e furioso ao aspecto subjetivo e intrapsíquico

existente em todas as psicoterapias. Uma crítica à ênfase hipervalorizada

da subjetividade em detrimento dos problemas reais do mundo. Ao

personalizar e subjetivar todas as questões do mundo, a psicoterapia

acaba por despolitizar o sujeito, retirando-lhe a condição de cidadão.

Hillman Também propõe uma nova releitura da Psicologia Arquetípica, ao

afirmar que o que deseja neste momento, sustentado pela ideias

presentes na retórica da Anima Mundi - beleza, estética, profundidade,

interioridade, exercício político - é criar uma profunda psicologia da

extroversão.

Originalmente, este texto foi um discurso durante o Jantar do Prêmio

Cambridge, 17 de novembro de 1993.

Marcus Quintaes

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PSICOLOGIA, SELF E COMUNIDADE

James Hillman (1993)

“Na idéia há muito tempo apreciada de um indivíduo particular, o conceito

de Self não é a prova d’água; é uma decepção”.

Vocês não podem imaginar o quanto eu me sinto honrado, porque vocês

não podem imaginar o quanto eu fiquei surpreso ao ser comunicado desta

noite. Foi, e ainda é, inacreditável. Terei sido sequestrado? Uma das

minhas defesas tradicionais: eu tenho dificuldades em receber coisas. E é

porque eu não recebo com facilidade que eu tenho que me explicar,

explicar a vocês como a maior parte da minha vida e minha forma de

pensar e a satisfação de escrever e a forma como desempenho minha

profissão, tudo combinado para oferecer resistência contra as mudanças

sociais e daí que esta premiação é um espantoso erro da parte de vocês.

Vocês pegaram o homem errado.

O dilema implícito no seu título organizacional — psicologia e as

mudanças sociais — requer, para melhor ou para pior, um pouco de

história pessoal e de filosofia.

A ideia na qual eu mais eu acreditei na maior parte de minha vida, e meu

trabalho, e na qual desde então tornei-me mais suspeito é a da

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individualidade, individualismo ou individuação. Não é curioso, que aquilo

em que você mais acredita, é também o que você mais desconfia? Curioso

que Confiança e Traição sejam aliados. Ou talvez não tão curioso para uma

personalidade esquizo-paranoide.

Quando eu entrei em análise em 1953, eu fui completamente tomado

pelas idéias de Jung sobre individuação, de um Self inerente dentro do

seio que urge a cada ser humano que saia do envoltório coletivo para um

destino individual — mais um exemplo de sentimentos e ideais

apropriados a um intelectual de vinte e seis anos, frágil, esquizoide, que

havia se mudado para a Europa logo após a dispensa pela Marinha e que

havia vagado como um pré-hippie ou um estudante aventureiro pós

romântico, passado por prisão domiciliar atrás da Cortina de Ferro, subido

o Rio Nilo até as origens de sua nascente, e percorrido o Himalaia até os

limites de Ladakh.

O sentimento de ser um Self à parte, particularmente reservado,

protegido, abençoado — e ansioso — com crença numa força invisível ou

numa sorte incomum para mim — chame-a de Puer Eternus, Complexo de

Mãe, Arrogância americana, Privilégio branco, Personalidade de estrutura

narcisística, ou a conjunção do Sol e da Lua em Áries — quem sabe?. Mas

quão satisfatórias e congruentes eram as idéias de Jung de um Self

individualizante que poderia propiciar um fundamento teórico e até

mesmo teológico aos desesperos da nossa sensibilidade, infrequente,

alienado e tão ativamente negada.

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A idéia da individuação me privilegiou viver “meu próprio estilo” de

obsessões mentais. É claro que eu fiz essas coisas que a minha família

havia feito antes de mim, e que se costumava fazer nos anos cinqüenta —

um grande casamento, quatro crianças, análises demoradas, clínicas,

práticas, publicações — para manter e para alavancar a carreira — mas

tudo isto era apenas uma capa da personalidade que manteve seguro e

escondido o heróico isolamento de uma mente escrivinhadora que

transformou a vida em fórmulas. Estas coisas “externas” eram apenas os

necessários acompanhamentos ou as realizações — a esposa, os filhos, os

pacientes — para o mais íntimo reduto dos pensamentos e imagens no

espaço de si mesmo, o espaço da individuação.

A Suíça era o lugar ideal para isto: o estranho Giacometti, Honegger,

Dürrenmatt e Max Frisch. Lenin havia ficado escondido perto de onde eu

almocei; Dada foi fundado logo abaixo do morro; o apartamento de

Wagner no outro lado do meu escritório; Nietzsche in Basel, Einstein in

Berna, Paul Klee; Corbusier em Genebra — os bancos particulares

secretos, cronometria, ferramentas de precisão — não alinhamento

político, refúgio montanhoso para Rilke, Hesse, Kirchner, o exílio final e a

sepultura de Thomas Mann, Joyce enterrado a cerca de 300 metros de

onde eu dormia a noite, e é claro, Jung e a psiquiatria na Clínica Burgholzli

de Zurique — Bleuler, Adolf Meyer, Binswanger, Rorschach — e por aí

afora. Lembrem-se: foi em Zurique que a esquizofrenia foi inventada; e

em Basel, o LSD.

Eu permaneci por lá até 1978, incapaz de diferenciar individuação de

alienação.

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Uma das mais apreciadas formulações que me sustentou durante a

extrema introversão anti-social dos anos 50 e 60 era esta: Quando tudo

desmorona, o que eu tenho no final das contas para sustentar a mim?

Qual é a essência incontestável da qual se pode viver? A pergunta reflete

um contexto social e político, o qual eu, imerso no individualismo, então

não havia reconhecido. (A própria filosofia do individualismo resiste a ver

o contexto social).

Agora, no entanto, eu vejo esta questão sobre o derradeiro apoio

existencial que surgiu em minha vacilante personalidade suportando o

colapso da análise e a loucura do casamento dentro do clima do término

da Segunda Guerra Mundial e o mundo da guerra fria —o contexto dos

fantasmas dos campos de concentração, os deslocados de guerra, e os

acampamentos (Stalin morreu na semana em que tive a minha primeira

hora de análise), filosofias do existencialismo, tanques na Hungria, guerras

em Israel, a Baía dos Porcos, as cidades européias arruinadas, as cidades

americanas incendiadas, os testes nucleares, abrigos anti bombas,

precipitação radioativa, despensas Suíças estocadas com rações de

emergência, os tumultos na Argélia e os tiroteios em Paris; Alabama,

Arkansas, Mississipi; Coréia, Praga, prisões, evacuações, pânico, ruína, e o

crescente horror do Vietnam, distante da Suíça.

O que aconteceria se eu fosse preso? O que cada um tem quando tudo

está perdido e a alma está in extremis? Sozinha. Existe apenas o mundo

interior de cada um de nós, o processo de individuação na alma revelando

os significados de seu destino. Apenas as suas imagens permanecem.

Apenas suas vozes interiores, somente os espíritos que vêm até você em

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sua cela. Nada mais pode ser confiável uma vez que nada mais é

autenticamente e individualmente meu. Dentro estão os repositórios que

legitimam a razão e justificam a ação — um centro individualizado, a única

base de sustentação quando tudo o mais se foi. Então era assim que eu

pensava; tal era a minha conclusão.

Este centro fixo, chamado de Self por Jung, e por muitas disciplinas

religiosas e tradições filosóficas, também aparece na definição de herói

por Emerson. O herói, diz Emerson, é aquele que é impassivelmente

centrado. Emerson faz coro para uma antiga tradição, que floresceu no

Protestantismo, e devotadamente mantida pela maioria das variantes da

psicoterapia, a fé no individualismo heróico, no homem sozinho — e a

mulher também — centrada numa centelha divina dentro do seio que

guia, e pode até salvar. A pessoa certa, o herói, vive sempre

impassivelmente centrado em sua centelha.

E — antes que nós terminemos esta noite, eu vou levantar sérias dúvidas

sobre esta ontologia individualista que foi a minha fé e que permanece

sendo a fé silenciosa da psicoterapia em geral.

Mas primeiramente, para aderir à nossa tradição terapêutica, eu irei

trazer um caso de absoluto isolamento, um caso que estabelece

exatamente nosso ponto sobre o Self que sustenta a alma in extremis. O

caso do Sr. Liu Qing tal como foi relatado no “New York Times” em 30 de

março de 1993, por Michael Kaufman.

O caso que estou usando deriva mais da patologia da cultura do que da

patologia do indivíduo. Eu faço isto propositadamente para libertar a

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psicopatologia de seu cerco no Self individual onde ela é atribuída ao

desenvolvimento, estrutura e reações da personalidade. Se nós, desta

Sociedade, buscamos caminhos para estabelecer uma ligação entre a

psicoterapia e a mudança social, devemos também repensar ”caso

clínico”. Se desejamos liberar a psicologia em profundidade de seus

limites na personalidade humana e retornar ao estudo da alma, logos , da

psique, ao mundo maior além do humano, devemos também retirar

nossos casos das patologias em culturas tais como a tortura das criaturas

vivas, como o Sr. Liu Qing, por motivo das idéias doutrinárias na política,

mas também na ciência, religião, medicina e na arte. O Sr. Liu cumpriu 11

anos na prisão Weinan nº2 na Povíncia de Shaanxi, onde por cerca de

quatro anos e meio ele esteve literalmente centralizado de forma imóvel,

forçado a permanecer sentado sem se mover, num banquinho com 8

polegadas de altura, das 8:00 até 12:00h, e das 13:30 até as 17:00h, e

depois ainda até as 21:00h. Ele podia deitar-se a noite. “Não era permitido

que eu me movesse ou que falasse com os prisioneiros que me vigiavam.

Se eu o fizesse, levava uma surra”.

O que ensejou o artigo de Kaufman foi a aceitação pelo Sr. Liu, de um

prêmio em nome de seu mentor, o Sr. Wei, um dissidente que ainda está

numa prisão chinesa. Foi em razão das atividades do Sr. Liu e sua ligação

com este mentor que o Sr. Liu foi colocado nesta cadeia e submetido a

esta tortura. Quando foi solto ele se casou com a mulher que o esperou

durante a prisão.

O Sr. Liu relata que enquanto ele sentava por todos estes anos no

banquinho, olhando para uma parede, ele tentava se matar, não

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comendo, com jogos mentais, ele evocava visões de alimentos , ele

contava os minutos, especulava sobre astronomia e buracos negros, e

muitas outras coisas.

Agora um importante pedaço de informação: O Sr. Liu disse que

freqüentemente considerou a idéia de escapar do banquinho, assinando

uma declaração de auto-crítica. “Pessoas vieram de Beijing e me disseram

que tudo o que eu teria que fazer para me assegurar um futuro de sucesso

era assinar uma declaração afirmando que eu cometera alguns enganos

nos meus pensamentos. Isto não envolveria nenhuma delação. Enquanto

eu sentava alí eu pensava “É uma mentira, e eles sabem que é uma

mentira, por que não fazê-lo e acabar com o sofrimento”. Mas então eu

imaginava a chegada deles na minha cela, colocando o papel na minha

frente e neste ponto eu sabia que não poderia fazê-lo”.

Vamos agora entender a notável persistência do Sr. Liu e sua recusa em

assinar uma mentira, a partir das duas idéias contrastante de Self.

Primeiramente da ontologia heróica do individualismo que eu já descrevi e

depois a partir de uma definição de Self como sendo “a interiorização da

comunidade”, a qual é introduzida, e apenas elaborada em forma de

esboço em “Nós tivemos cem anos de psicoterapia e o mundo está

ficando pior”. O que “dentro“ do Sr. Liu impediu que ele assinasse aquele

papel? Em que o Sr. Liu confiava? E o Sr. Liu é apenas um dentre milhares

de indivíduos isolados, mesmo enquanto estamos juntos sentados aqui,

em cadeias similares, em situações semelhantes.

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Uma clássica resposta freudiana seria: a ainda pequena voz do Self único

anterior a todas as contingências. Este Superego, derivado diretamente

das autoridades parentais introjetadas. Ele estabelece os padrões internos

chamado de consciência. Uma clássica resposta junguiana seria: a voz fala

como o famoso daimon de Sócrates. Ele não lhe diz o que fazer, mas o que

não fazer, uma voz inibidora. Ela não chega a propor um ação correta, mas

impede uma ação errada, desta forma evitando que uma pessoa se

extravie mas que permaneça corretamente centrada. Esta é a verdade

interna do arquétipo do herói. Da mesma forma como ela não induziu

Sócrates a escapar da prisão, ela não pressionou o Sr. Liu a fazer uma falsa

confissão para aliviar seu sofrimento.

Além das explicações freudianas e junguianas, existe uma terceira. Este

ponto de vista se inicia do fato de que a recusa do Sr. Liu em assinar foi

basicamente um ato imaginário. Ele imaginou o papel que iria assinar.

Alguma coisa a ver com a imaginação, alguma coisa imaginária não

permitiu a falsa confissão. Isto sugere que a imaginação pode ser uma

força, até mesmo uma força moral, superior a contingências externas,

porque — eu vou afirmar agora — ela supre uma comunidade de seres

que não permitiriam que ele os traísse.

Estou tentando sugerir a vocês que o centro imóvel heróico é menos uma

única partícula, uma réplica interna de um único Deus, do que um ethos

grupal composto de imagos de seu também aprisionado mentor Sr. Wei, e

da mulher que o esperava, sua esposa, e das figuras que incorporavam os

princípios, ideais e valores que ele compartilhava, tal como imagos de

Verdade, Justiça, Dignidade, Honra que na civilização clássica são

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configurados como pessoas com estátuas e altares, e talvez seus

antepassados mortos do outro lado do túmulo assim como seus

compatriotas dissidentes do outro lado da parede.

Essas figuras são presenças imaginárias. Mary Watkins as chama de

“convidados invisíveis”. Eles não são pessoas de verdade cujos nomes o Sr.

Liu poderia ter sido solicitado a trair. Apesar de “apenas” imaginárias, elas

eram mais persuasivas do que seu sofrimento físico. Imagine-as como um

pelotão interno, uma sociedade secreta, uma unidade tribal assim como

um grupo de iniciação, uma companhia de mártires, uma cidade interna

de antepassados e descendentes — e nós, ouvindo a história contada pelo

Sr. Liu através do Sr. Kaufman, somos descendentes mais distantes e, de

alguma maneira estranha, agora associados com esta companhia. Talvez

seja por isto que é tão importante para a alma ouvir as histórias de

coragem e de glória, de beleza e de fé, porque estas recordações heróicas

e honoríficas fortalecem e alimentam — não os centros isolados e imóveis

na imitação heróica — mas os convidados invisíveis. Por esta razão,

Homero e as narrativas épicas da Bíblia mantém a civilização humana em

andamento ao nutrir os espíritos desumanos. Eles parecem amar uma boa

história; eles parecem gostar especialmente de ouvir sobre eles mesmos.

Esta interpretação da recusa do Sr. Liu convida a uma reflexão sobre a

importância dos antepassados que lhe dão apoio. Como se pode observá-

los no seu dia? A importância dos grupos aos quais você se junta, os

amores que você curte, os mentores dos quais você aprende, as figuras

que vocês veneram e a articulação de seus ideais. Você tem mantido os

seus espíritos vivos? Até que ponto a forma como você vive seus ideais

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encoraja uma presença imaginária que poderia se tornar um membro de

uma comunidade interior de uma pessoa, como a do Sr. Liu, in extremis?

Como nos imaginamos a nós mesmos vivendo de forma tal a nos

tornarmos membros do mundo espiritual, antepassados? E como esta

questão tem ligação com a busca por ética que tanto absorve nosso

mundo político?

A história do Sr. Liu ainda levanta uma questão para a psicologia. Como o

Self aparece sob a forma de um fenômeno quando uma pessoa está mais

sozinha? Desde Boethius jogado numa prisão no século sexto, ao

Almirante Byrd no Polo Sul, aos reféns de olhos vendados no Líbano,

existe muita coisa a se examinar com relação ao sistema de suporte

interior do indivíduo isolado. Um explorador polar e um navegador

solitário ao redor do mundo já relataram companhias imaginárias no meio

de vastidões desabitadas.

Tantas são as novas implicações que começam a surgir e que poderiam

me levar para tantas outras direções que eu tenho que convocar um dos

dois necessários anjos de um escritor, o Deus da supressão (o outro é

Fortuna, o Deus que nos faz tropeçar em algum tesouro). Apenas através

da supressão poderemos chegar a um final. O final ao qual eu estou

chegando nos leva de volta aos meus exemplos miseráveis e pouco

profundos dos meus anos 50 e 60. Apesar de totalmente distintos em

graus de coação, eu também, no meu individualismo alienado, estava

atuando na interiorização de uma comunidade: minha primeira esposa e

os nosso ideais; os ídolos dos mentores heróicos que eu colei nas paredes

do meu banheiro; a comunidade dos companheiros de jornada junguiana

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de Zurique; as idealizações das minhas leituras espirituais e históricas, a

imagem de Jung em sua torre e do orgulho estóico de Freud face à dor; os

vultos que apareceram em meus sonhos; meus dois avós que ascenderam

do fundo e escalaram a tocha da liberdade — isto é, aquilo que eu

acreditava então que era meu Self individualizado, na verdade era uma

multidão, uma sociedade imaginária invisível.

Se o meu raciocínio, retirado de minha patologia pessoal e o feito

extraordinário do Sr. Liu forem à prova d’água, então nesta água estará

dissolvida a idéia apreciada, talvez decepcionante, de um Self individual e

particular. Nós nunca estamos sozinhos; não num confinamento solitário,

não numa meditação contemplativa, não no leito da morte. Nenhuma

torre e nenhuma parede podem manter os espíritos de fora — e também

o autismo necessita de uma re-leitura.

Poderemos então re-imaginar a idéia de Self como o ponto focal ou o local

exato de visitações e residências semi permanentes de habitantes mortos

e vivos, tanto mais velhos do que nós quanto ainda não nascidos, tanto

deste quanto de outros mundos — e interiorizações assim como as de

várias comunidades às quais nós devemos fidelidade na vida diária.

Comunidades, não apenas de pessoas, mas de valores, figuras, animais,

ideais, lugares e coisas. A liberdade do indivíduo se torna o seu ou a sua

maneira idiossincrática de interpretar o ethos deste grupo em qualquer

situação particular na função completa da integridade pessoal justo no

meio de maus tratos externos. A não aquiescência do Sr. Liu com a

comunidade dos carcereiros e as autoridades de Beijing foi tornada

possível por sua comunidade imaginária. Este Self combinado de várias

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vozes em vários quartos o mantiveram um homem livre em meio ao

isolamento, degradação e dor.

O caso do Sr. Liu é político, e então nós somos obrigados a chegar a uma

conclusão por psicologia política. A antiga polis foi fundada num culto a

um herói morto. Eu costumava pensar que as proezas de um herói, como

Hércules, tais como eram contadas nas narrativas e interpretadas em

rituais e limitadas a uma geografia local, eram as fantasias inspiradoras

para as cidades, servindo de base para novas histórias. Todos os cidadãos

poderiam voltar, eu costumava pensar, às histórias e ritualisticamente

interpretar de novo o mito da criação da sua polis e reivindicar sua

descendência comum tal como de um ancestral totêmico. A comunidade

derivada de um indivíduo heróico.

Agora eu acho que o contexto de qualquer comunidade faz o seu herói.

“Faz” no sentido da palavra grega poiesis para construir mitos. O herói não

originou a cidade. Foram os atos coletivos da cidade que a atribuíram a ele

ou a ela, como um foco coletivo. O herói é menos um solitário manancial

da polis e mais propriamente a “representação coletiva”, o vínculo

personificado de sua alma. Seus cidadãos o fazem da mesma forma como

ele os faz. Ele ou ela é a alma comum epitomizada como uma

personificação individualizada. O herói é simplesmente a interiorização

idealizada da comunidade — daí o herói cultuado estar sempre “morto”,

isto é, interiorizado, não presente, vivo apenas como uma imagem, como

imagem da comunidade, vivendo na cidade como a corporificação de seus

ideais. Então Los Angeles achou o Sr. Reginald Denny para incorporar seus

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sentimentos de justiça e produzir a derrubada do tirânico chefe de polícia

Sr. Gates.

Como nós imaginamos nossas cidades, como nós visualizamos seus

objetivos e valores e realçamos sua beleza define o Self de cada pessoa

desta cidade, pois a cidade é a exibição sólida da alma comum. Isto

significa que você acha a você mesmo ao entrar na multidão — o que é o

significado básico da palavra polis — fluxo e muitos. Para melhorar a você

mesmo, você melhora a sua cidade. Esta idéia é tão intolerável ao Self

individualizado que ele prefere a decepção do isolamento tranqüilo e do

retiro meditativo como o caminho para o Self. Eu estou sugerindo o

contrário. Self é o verdadeiro caminho, as ruas da cidade.

Eu gostaria de deixar esta última idéia de uma forma mais clara — mas

ainda não está terminada. Fortuna me deixou tropeçando, e a Supressão

diz “pare”. Mas a intenção de minha desconstrução do individualismo é

uma exortação: nós nunca poderemos fazer o suficiente pela cidade,

porque ela é, e assim tem sido desde os gregos, o heroico caminho do

fazedor de alma. Que nossas cidades hoje em dia, nossa vida política,

esteja nesta tal desordem resulta de um profundo erro psicológico: a

internalização dos ideais do herói num culto a personalidade do Self

individual que deixa a cidade sem alicerces e nossa psicologia terapêutica

frustrada.

Obrigado a vocês por me premiarem com sua atenção. A atenção de vocês

é o mais generoso dos reconhecimentos.

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Postado por Himma

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