Psicoterapia existencial Camon

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Este livro foi concebido e idealizado para suprir a lacuna existente nas obras que dão concretude à Psicoterapia Existencial no Brasil. Ele dá parâmetros precisos sobre a prática e o caminho percorrido por seus pre- cursores na construção dessa vertente psicoterápica. É um livro escrito com irreverência, amor e paixão. E, mesmo estando dentro das normalizações vigentes que norteiam as produções científicas, não houve a intenção de torná-lo ou até mesmo enquadrá-lo dentro de uma óptica estritamente academicista. Ao contrário, houve até mesmo uma ten- tativa de quebra da aridez temática, introduzindo-se, entre alguns capítulos, parêmias repletas de nuanças e formas poéticas. E mesmo de citações poé- ticas antes do início das reflexões sobre as temáticas existencialistas. É um livro direcionado para as lides universitárias que buscam subsí- dios teóricos para uma compreensão mais abrangente das diversas corren- tes psicoterápicas. E também para os inúmeros profissionais que buscam embasamento para suas práticas profissionais. Muitos livros e muitas buscas fazem com que a vida seja direcionada para questionamentos sobre o próprio sentido dessas buscas. Que níveis do conhecimento são atingidos por este livro é algo tangível apenas em algum ponto da reflexão pormenorizada que certamente abrangerá. Em que aspecto, por outro lado, contribuirá para o abrandamento das ques- tões e críticas que gravitam em torno da Psicoterapia Existencial é, igual- mente, outro aspecto que apenas se tornará transparente a partir da criti- cidade que incide sobre ele. VII Apresentação

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Psicoterapia

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Este livro foi concebido e idealizado para suprir a lacuna existente nasobras que dão concretude à Psicoterapia Existencial no Brasil. Ele dáparâmetros precisos sobre a prática e o caminho percorrido por seus pre-cursores na construção dessa vertente psicoterápica.

É um livro escrito com irreverência, amor e paixão. E, mesmo estandodentro das normalizações vigentes que norteiam as produções científicas,não houve a intenção de torná-lo ou até mesmo enquadrá-lo dentro de umaóptica estritamente academicista. Ao contrário, houve até mesmo uma ten-tativa de quebra da aridez temática, introduzindo-se, entre alguns capítulos,parêmias repletas de nuanças e formas poéticas. E mesmo de citações poé-ticas antes do início das reflexões sobre as temáticas existencialistas.

É um livro direcionado para as lides universitárias que buscam subsí-dios teóricos para uma compreensão mais abrangente das diversas corren-tes psicoterápicas. E também para os inúmeros profissionais que buscamembasamento para suas práticas profissionais.

Muitos livros e muitas buscas fazem com que a vida seja direcionadapara questionamentos sobre o próprio sentido dessas buscas. Que níveisdo conhecimento são atingidos por este livro é algo tangível apenas emalgum ponto da reflexão pormenorizada que certamente abrangerá. Emque aspecto, por outro lado, contribuirá para o abrandamento das ques-tões e críticas que gravitam em torno da Psicoterapia Existencial é, igual-mente, outro aspecto que apenas se tornará transparente a partir da criti-cidade que incide sobre ele.

VII

Apresentação

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Um livro sempre traz em seu bojo algo maior do que o seu mero ali-nhavo teórico; como um objeto lançado rumo a uma determinada dire-ção e que encontra obstáculos em seu percurso, igualmente um livroapresenta desvios em seu percurso que, ao se tornarem transitórios, ouentão definitivos, fazem dele uma simples fragrância que se perde e semistura ao deleite de outras essências.

Novamente estamos indo ao encontro de algo que se funde entre res-quícios de críticas anteriores e de elogios e entusiasmo pelo tanto que jáfoi vivido. A produção acadêmica e a reflexão sistematizada pairando emníveis intelectuais sobre determinados ponteamentos é apenas e tão-somente digressão teórica e até mesmo filosófica que incide sobre a vida,mas que não tem como configurar-lhe forma e contornos específicos. A essência da vida talvez esteja muito mais exuberante no céu azul con-tornado apenas pelo espasmo de algumas nuvens brancas a emoldurar aflorada da sibipiruna e do jacarandá-mimoso. Escrevo e tenho a consciên-cia de que um texto que reflete sobre temas existenciais também é, ouentão deveria ser, algo que inserisse a própria vida numa amplitude ondenenhum elemento da Natureza fosse isolado ou deixado numa condiçãode ostracismo. Passeio um longo passear.

Passeio pela minha imaginação e concebo a percepção dos meus lei-tores deparando com um texto que insiste em ser livre e desprendido deamarras formais, embora abordando questões complexas e cruciais noemaranhado da condição humana. É como se num repente pudesseenvolver cada leitor e esclarecê-lo não apenas das dúvidas suscitadas notexto, como também, e, principalmente, pudesse vagar ainda sobre ques-tões pessoais e individuais de cada um.

De maneira mágica seria, então, um autor que saltaria das páginas dolivro e se transformaria num amigo, confidente, amante e companheirode desatinos e alegrias. Percorreria cada leitor em seus caminhos e ilusão.E daria configuração ao irreal da tentativa de abstração feita pelo leitor dafigura do autor. E também convidaria cada leitor para ajudar no enrique-cimento do próprio livro através da contribuição de depoimentos, expe-riências pessoais e situações vivenciais inerentes a cada um. Teríamos,assim, um livro no qual eu seria apenas o organizador, com cada leitor tor-nando-se co-autor na busca e construção de novas formas e buscas existen-ciais. E cada leitor, ao colocar o livro na sua cabeceira, mesa, prateleira,pasta para levá-lo juntamente com outros materiais acadêmicos, não

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tivesse junto de si apenas uma produção gráfica, mas sim um amigo queestivesse a repartir preciosamente o universo pessoal de cada um.

Passeio agora pelo meu ontem. O meu ontem é o meu hoje mistura-do ao meu amanhã. Tudo foi e ainda é na essência de um suave vir-a-ser.E de tudo sempre fica um pouco. Um pouquinho que seja. Um poucode vida, de felicidade, da lágrima, da alegria, da dor e do riso. Você queme lê nesse momento é o meu próprio sentido de vida neste instante.Certamente a razão de ser destas letras e reflexões. Sinta-se, então, nãoapenas enriquecido e energizado com as reflexões teóricas apresentadas,mas também e, principalmente, acarinhado em cada letra, linha, pará-grafo e página deste livro. Ele é o seu, o meu, o nosso livro. Foi escritopelas minhas mãos, mas seguramente teve a contribuição da sua emoçãoem sua elaboração astral. E observe-o atentamente: ele não é mais umlivro acadêmico, ou filosófico, ou teórico. Ele é o livro de nossas vidas,escrito com muito amor e paixão.

São Paulo, em uma manhã de primavera.

Valdemar Augusto Angerami – Camon

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Existencialismo: um breve esboço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3

1. Temas existenciais: conceitos fundamentais . . . . . . . . . . . . . . . .13

Existência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 Liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 Solidão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19Essência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21O ser-no-mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25Morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28O sentido da vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .34Transcendência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .38 Autenticidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .40Angústia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .42Amor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .47Tédio existencial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53Culpa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .55Felicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56

2. Fenomenologia: métodos e pressupostos . . . . . . . . . . . . . . . . . .73

A Base Fenomenológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .74O Método Fenomenológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77A Análise Intencional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .77A Redução Fenomenológica e seu Resíduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .78A Ontologia Fenomenológica de Sartre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .79A Ontologia Fenomenológica de Heidegger . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .80

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Sumário

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3. Psicologia e pressupostos existencialistas . . . . . . . . . . . . . . . . .85

Psicologia como Ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .85

As Teorizações Psicológicas e o Pensamento Existencialista . . . . . . . . . . . . . .88

4. Humanismo e existencialismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .91

5. Psicanálise e existencialismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .97

O Projeto de Ser . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .99A Questão do “Inconsciente” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .100

6. Convergência do pensamento existencialista na prática psicoterápica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .103

Rollo May . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .103Victor Emanuel Frankl . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .105Ludwig Binswanger . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .106Medard Boss . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .108J. H. Van Den Berg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109Ronald Laing . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .111

7. Perspectivas da psicoterapia existencial . . . . . . . . . . . . . . . . . .117

Bibliografia existencialista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .121

Filósofos Existencialistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .121Sören Kierkegaard . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .121Martin Heidegger . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .121Jean-Paul Sartre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .122

Fenomenologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .122Edmund Husserl . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .122

Psiquiatria Fenomenológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .122Ludwig Binswanger . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .122J. H. Van Den Berg . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .123

Psiquiatria e Psicoterapia Existencialistas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .123Victor Emanuel Frankl . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .123Medard Boss . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .123Ronald Laing . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .123Yolanda Cintrão Forghieri . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .124Valdemar Augusto Angerami . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .124

Obras Introdutórias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .125

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PARÊMIAS DO TERAPEUTA EXISTENCIALO Terapeuta Existencial é assim como o Sol: irradia luz e inspiração.É a primavera que desabrocha em flores, cheia de cor.São pássaros que cantam o alvorecer de um novo dia.É o rio que corre para o mar dissipando tormentas e entulho.É o orvalho da manhã que se faz criança e encanta a dor.É o mandacaru anunciando, depois de uma longa estiagem no sertão, aschuvas e a esperança.É a sinceridade que sabe corresponder à fraqueza das atitudes e àsexcelsitudes dos ideais.É a flor que desabrocha. É a estrela que cintila na imensidão da noite. É o prenúncio de novas formas poéticas. É o bálsamo que cicatriza as chagas existenciais. É o mar em sua imensidão: ondas calmas e revoltas.

O Terapeuta Existencial é o compreender.É o clarificar, o elucidar.É a vida. A morte.É bonanza, harmonia, paz e turbulência.É a Lua com as estrelas dominando o firmamento.São plantas que, molhadas pelo aguaceiro, cintilam com o surgimento do Sol.É a dor em cada sorriso e o sorriso em cada dor.É o Ipê-Roxo, no início da Primavera, anunciando o tempomaravilhoso das flores. É a música de Mozart em suas nuanças maravilhosas.

O Terapeuta Existencial é o refletir de sentimento.É o tiziu voando ligeiro e rasteiro.São as cores negras do anu.É a paz da oração.São folhas secas, encarquilhadas pelo tempo.É a pureza melódica das cantatas de Bach.E o céu azul, sereno e sem nuvens.É o luar de agosto.É a chuva de Outono. As noites de Verão.

O Terapeuta Existencial é o codificar e o decodificar de emoções.É o ar. O ser. O Nada. O existir.É o dia que termina em cada entardecer.É o muçum, peixe que, na seca, cava um buraco no barro e aí permanece

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até que as águas reapareçam. É a margarida desfolhada depois da Primavera. São as lágrimas, o sorriso. O pranto de dor e de alegria.

O Terapeuta Existencial é a busca de um processo.É um pedido de ajuda.É a noite de tranqüilidade.É a relva verde crescendo, crescendo, crescendo... crescendo no seupróprio tempo...É o pôr-do-sol colorido de vermelho. É a borboleta lilás. O cedro, o chorão e a pinha. É a hortênsia, são as orquídeas.É um corpo que fala, mãos que gesticulam, palavras que se calam... É a situação terapêutica em esplendor. É o exilado que volta ao seu porto natal.

O Terapeuta Existencial é o buscar da compreensão.É a serenidade de quem sabe enfrentar as adversidades da existência demaneira plena e autêntica. É o guerrilheiro lutando pela construção de uma sociedade mais justae humana.É o ser que dimensiona o existir.É o existir frente às possibilidades segundo as quais o mundo se apresenta.É a praia com crianças correndo na areia.É a arte de relacionar-se com pessoas; uma arte única e incomparável. É o tudo, mas acima de tudo e por tudo, é amor...

Valdemar Augusto Angerami

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A tentativa de se compreender o Existencialismo enquanto correntefilosófica se reveste de dificuldades bastante complexas, além das dificulda-des inerentes ao pensamento filosófico em geral. Tendo como agravante ofato de não sermos filósofos, essa incumbência é ainda mais onerosa.

Uma primeira questão: O que é Existencialismo? E na seqüênciaoutra dúvida se faz presente: A que nos referimos quando falamos emPsicoterapia Existencial?

A Psicoterapia Existencial no Brasil, e segundo dados citados por RolloMay1, também nos Estados Unidos e na Europa, tornou-se área de domí-nio público. Muitas práticas, ao se tornarem precárias em termos de orien-tação teórica, são definidas indevidamente como sendo práticas determi-nadas pela vertente existencialista. Desde práticas como Biodança atéoutras que sequer merecem ser chamadas de psicoterapia, o jargão existen-cial é, na maioria das vezes, utilizado sem nenhuma correlação com ospressupostos da filosofia existencialista.

Nesse sentido, é imprescindível uma pequena incursão histórica sobrea produção filosófica para melhor compreensão da temática; nossa inten-ção é apenas considerar o Existencialismo em seu surgimento histórico,e jamais o estabelecimento de uma história da Filosofia.

Os pensadores existencialistas, em sua grande maioria, são considera-dos ateus. Se alguns definiram-se como sendo ateus, outros, ao contrário,definiram-se claramente por vertentes religiosas bastante definidas.

Essa abrangência do Existencialismo como sendo uma corrente do ateís-mo deve-se principalmente ao fato de Sartre, um dos principais arautos do

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Existencialismo: um breve esboço

O essencial não é aquilo que se fez do homem, mas aquilo que ele fez daquilo que fizeram dele.

Sartre

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Existencialismo, ter-se posicionado em diversas ocasiões contra a existênciade Deus. “Deus está morto!” foi entoado por Nietzsche e posteriormentepelas reflexões de Sartre. No entanto, por mais paradoxal que possa parecer,estudos recentes sobre a filosofia sartreana mostram que, apesar de trabalharno sentido de negar a existência de Deus, Sartre foi o filósofo contemporâ-neo que, embora na negação, mais trouxe reflexões sobre Deus, mostrandoaos estudiosos da filosofia contemporânea reflexões pormenorizadas sobre acrença humana e a própria deificação da condição do homem.Especialistas em Nietzsche também demonstram que o filósofo nuncanegou ou afirmou realmente a existência de Deus. Sua intenção com essafrase proferida por um “louco” era demonstrar o abandono e o vazio do serhumano na Modernidade2.

É totalmente indevida essa justaposição que se faz ao Existencialismocomo sendo uma corrente filosófica do ateísmo.

Os principais pensadores existencialistas são Sören Kierkegaard (dina-marquês, 1813-1855), Friedrich Nietzsche (alemão, 1844-1900), MartinHeidegger (alemão, 1889-1976) e Jean-Paul Sartre (francês, 1905-1980)3.

Dos quatro principais expoentes, Kierkegaard foi cristão e confessoprotestante, e os demais, classificados como ateus. Entre os vultos secun-dários, predominam os existencialistas religiosos. Miguel de Unamuno(espanhol, 1864-1936) e Gabriel Marcel (francês, 1889-1973) são católi-cos romanos, Leon Chestov (russo, 1868-1938) e Nicolau Berdiáiev(russo, 1874-1948) são católicos orientais ou ortodoxos. O judaísmo érepresentado por Martin Buber (1878-1965), que nasceu na Alemanha emais tarde fixou-se em Israel. Existencialistas ateus de importância secun-dária são Simone de Beauvoir (francesa, 1908-1986), Albert Camus (fran-cês, 1913-1960) e Maurice Merleau-Ponty (francês, 1908-1961). Camus,entretanto, afastou-se do Existencialismo nos anos imediatamente ante-riores à sua morte; e Merleau-Ponty, que para alguns críticos nunca foraum representante típico do movimento, abandonou-o muito antes. KarlJaspers (alemão, 1883-1969), que grande número de pessoas considerariaum dos principais pensadores existencialistas, é difícil de ser classificado.Edmund Husserl (alemão, 1859-1938), fundador do movimento conhe-cido como Fenomenologia, também merece referência. Embora nãofosse ele próprio existencialista, Husserl foi por muito tempo guia deHeidegger, e tanto Sartre como Merleau-Ponty afirmaram estar em dívidacom ele, especialmente no que se refere a questões de método. Contudo,

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dado o fato de que Husserl é passível de interpretações diversas, não épossível determinar com segurança quer a natureza precisa, quer a ampli-tude de sua influência sobre o Existencialismo4.

A própria aceitação da expressão filosofia da existência é revestida dealguma polêmica. Ao proferirmos a palavra existencialismo, a primeiraentoação a ser destacada é existência. Existência, de outra parte, contra-põe essência5.

Historicamente, a palavra essência é anterior. Essentia, forma latinaderivada do verbo esse, ser. Quando os antigos se entregavam à meditaçãofilosófica, a pensar aquilo que é, diziam estar pensando na essência dacoisa. Uma analogia lingüística em português atual diria que a essência serefere ao “sendo” da coisa. Por exemplo: saber a essência de um pássaro ésaber quais os elementos fundamentais para a experiência de se estar“sendo” um pássaro. Só muito mais tarde surgiria, também em latim, apalavra existentia, existência, derivada de existere, que significa sair deuma casa, de um domínio, de um esconderijo. Mais precisamente, exis-tência, na origem, é sinônimo de mostrar-se, exibir-se; é um movimentopara fora. Daí denominar-se existencialista toda filosofia que trata direta-mente da existência humana, visto que tal movimento é inevitável e ine-rente ao ser humano6.

Apesar dos inúmeros autores definidos como existencialistas, na aná-lise amiúde dos fatos, as obras de Sartre e Heidegger destacam-se dasdemais e praticamente dividem em duas as vertentes principais doExistencialismo. Embora Heidegger não tenha se definido como adeptodo Existencialismo, atribuindo à parte mais conhecida de sua obra adenominação análise existencial, ainda assim é muito difícil, se nãoimpossível, encontrar citações e obras que se referem ao Existencialismonas quais ele não seja mencionado como um dos principais expoentesexistencialistas.

Embora Kierkegaard seja considerado um dos iniciadores do movi-mento, existem citações que mostram antecedentes: o grito de Sócratesopondo-se a um pensamento de base dos físicos jônicos e determinandoo imperativo interior “conhece-te a ti mesmo”; a mensagem dos estóicospropondo o domínio sobre si diante do enfrentamento do destino; Pascallevantando-se contra a grande aventura cartesiana, priorizando ohomem, sua vida e sua morte7; também a pobreza de São Francisco deAssis, um acinte diante da Igreja dos papas revestidos de luxo e poder.

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No campo da literatura, vamos encontrar autores que, embora nãotenham sido filósofos, seguramente aprofundaram temas existencialistas demaneira ímpar. Nesse rol, encontramos Dostoiévski, Leon Tolstói, OscarWilde, George Sand, Graciliano Ramos, Vinícius de Morais, GuimarãesRosa, Fernando Pessoa, Rainer Maria Rilke, Lygia Fagundes Telles, entreoutros.

Fiodor Dostoiévski, em termos literários, talvez seja o autor que maisprofundamente refletiu sobre a condição humana em seus aspectos maisíntimos e subjetivos. De sua vasta obra, podemos destacar O Sonho doPríncipe, no qual praticamente é feito um tratado sobre a antipsiquiatriaa partir da alteração de consciência apresentada pelo personagem princi-pal; e O Idiota, no qual a condição humana de virtude e dignidade é con-frontada e encarada diante das vicissitudes sociais. A obra de Dostoiévskié leitura obrigatória para todos que, de alguma maneira, se interessampela compreensão abrangente da condição humana.

Da obra de Leon Tolstói, destaca-se Senhor e Servo, em que a con-gruência das relações humanas é exposta de maneira contundente e refle-xiva, levando a um sem-número de reflexões. Oscar Wilde desponta comO Retrato de Dorian Gray, no qual o autor discorre de maneira magistralsobre questões, como paixão, afeto, amizade, desejo, ambição, como pou-cas vezes registradas na literatura mundial.

George Sand destaca-se também pelo aspecto visionário de sua obra.Tendo escrito numa época em que precisou emprestar um nome masculi-no para ter suas obras publicadas, essa autora notável escreveu preciosida-des, como A Pequena Fadete e Ele e Ela, nas quais questões como o surgi-mento de doenças orgânicas a partir do sofrimento espiritual e aspectos sub-jetivos presentes numa relação amorosa são mostradas de maneira soberba,evidenciando um apurado nível de conhecimento da condição humana.

Na literatura nacional, encontramos Graciliano Ramos, com destaquepara Vidas Secas, no qual o sofrimento e a esperança do homem dianteda diversidade são mostrados de maneira contundente e real; Vinícius deMorais escreveu como poucos sobre a paixão, destacando esse aspecto dacondição humana, mostrando assim a importância de dar-se um sentidoà vida a partir da paixão; em Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosadescreve em detalhes profundos os aspectos mais singulares da existência.Já em Lygia Fagundes Telles vamos encontrar Antes do Baile Verde, um

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conto em que a exuberância da condição humana diante do prazer e dosofrimento confronta-se num contraponto de intensa pulsação e ardorexistencial.

Fernando Pessoa e Rainer Maria Rilke, por outro lado, incontestavel-mente são nomes que escreveram com ardor sobre o pulsar de umaintensa emoção, dando à condição humana a própria dimensão da trans-cendência.

O Existencialismo moderno, por outro lado, surge num momento degrande inquietação diante dos pressupostos da Filosofia e de movimen-tos que abalaram o mundo – de modo significativo, as grandes guerrasmundiais.

E, num momento em que a Filosofia fez do conhecimento sua razãoe fim, construindo sistemas que, ao tentarem atingir a essência das coisas,perderam a proximidade e, por que não dizer, o próprio contato com asexistências, surge Kierkegaard. Homem angustiado, espírito rebelde, sen-sibilidade fina e hiperestésica, gritando seu inconformismo, troca perspec-tivas e propõe novos valores. Citemos algumas de suas frases para nos apro-ximarmos um pouco do seu pensamento: “a busca da essência não é senãoum artifício dos homens que tratam de ruir com a realidade esquemati-zando-a; o pensamento não possui validade se não se tem em conta quemo pensa; as generalizações são apenas modos de esconder os verdadeirosproblemas, que são sempre individuais e únicos. Não me interessa amorte; é a minha morte que interessa”, afirma. “O conhecimento não é,não pode ser, a meta do homem, senão como um meio de evolução; é avida, a existência, a minha e tua que contam. O mundo não é objetivida-de, nem conjunto de essência; o mundo para mim e para você é uma exis-tência frente à existência, existências que todo sistema e todo pensamentoseparam ao invés de unir, e escondem em lugar de descobrir. A verdadenão me interessa, se existe; minha angústia é minha verdade; ... os filóso-fos, os professores, são aqueles que, como Hegel, sabem tudo melhor quevocê, porém ignoram um único problema: você”8.

Desde Kierkegaard, um dos pontos predominantes dos pensadoresexistencialistas é a valorização da própria existência pessoal como pontofundamental na análise dos pressupostos filosóficos que possam determi-nar contrapontos existenciais. Esse aspecto está presente na totalidade dasobras existencialistas, e, por assim dizer, juntamente com a liberdade

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individual dos pensadores existencialistas de escrever sem se ater a regrasformais utilizando-se de formas e nuanças poéticas, é uma das principaiscaracterísticas do Existencialismo. Sartre, como mera citação, além defilósofo, foi um grande dramaturgo e romancista, com uma produção lite-rária muito grande e de excelente qualidade. Foi inclusive indicado aoprêmio Nobel de Literatura no ano de 1964. No entanto, recusou-se arecebê-lo, afirmando: “Se eu tivesse aceitado, os outros diriam: ‘agora elejá é um dos nossos’. Eu jamais teria suportado algo assim”.

Assim, para alguns autores, o Existencialismo seria menos uma doutri-na, no sentido estrito do termo, do que um filosofar, uma maneira de ohomem expor a si mesmo, reconhecendo-se automaticamente nesse ato.Basicamente, portanto, o Existencialismo seria a expressão de uma expe-riência singular, individual, um pensamento motivado por uma situaçãomuito particular9.

Praticamente no eco de Kierkegaard surge Nietzsche, que propagaafirmações que questionam a estrutura filosófica de então. “O segredo damaior fecundidade e do gozo mais intenso da vida é viver perigosamen-te”10, ou ainda a expressão que tornou famosa e que foi acolhida emdiversas ramificações do Existencialismo: “Deus está morto”11.

Se a diferença entre os existencialistas ateus e religiosos torna-se míni-ma, por outro lado, faz-se secundária a questão de suprimir sua similarida-de essencial, afirmando que os existencialistas religiosos estão próximos doateísmo ou que os existencialistas ateus são essencialmente religiosos.

A contingência radical e a carência essencial de significação, tanto dohomem quanto do mundo, levam o ser humano a uma angústia deser, expressa nas reflexões dos pensadores existencialistas, de acordo coma peculiaridade individual de cada um. Dizer que o ser do homem é radi-calmente contingente e essencialmente sem sentido é dizer que ohomem não sabe o que existe e não pode alar-se ao conhecimento do seudestino. Na linguagem de Heidegger, é como se o homem fosse “aban-donado” da mesma forma que Cristo foi abandonado na cruz12.

A mesma idéia pode ser encontrada em diversos escritos existencialis-tas, mostrando uma maneira singular de reflexão sobre a existência a par-tir da própria existência.

Entretanto, é errônea a idéia vulgar de que os existencialistas escre-vem apenas com o “coração”. Ao contrário, são essencialmente pensado-

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res. E não há como negar esse fato diante da forma como as obras exis-tencialistas são construídas: extremamente complexas em termos de refle-xões filosóficas, audácia arquitetônica com o uso de artifícios poéticos eextremamente dialéticas.

O pensamento existencialista é aquele que se rebela contra o quietis-mo e a resignação propostos por certas correntes filosóficas.

Os gritos de Kierkegaard e Nietzsche pareciam ter se exaurido nasentrelinhas do tempo e do espaço; suas obras demoraram a ter a devidaressonância, ficando isoladas nessa dimensão13.

Somente depois da primeira grande guerra surge a obra do filósofo ale-mão Martin Heidegger, discípulo de Husserl, que cria o existencialismoalemão.

Posteriormente, por ocasião da segunda grande guerra, surgem as teo-rias de outro pensador fortemente influenciado por Husserl, Jean-PaulSartre, que dá novas vertentes ao pensamento existencialista, tornando-se,ao lado de Heidegger, um dos principais expoentes do movimento. Tantopelo peso de suas obras como pela vida exemplar — paradigma de parti-cipação e coragem ponteado por tomadas de posição corajosas diante delutas pelas causas de dignidade humana —, tornou-se um dos maioresdestaques deste século. É Sartre testemunho moral contra o ultraje daHistória do século XX.14

Outras vozes existencialistas se fazem ouvir ganhando uma dimensãoapaixonante e irreverente. A discussão de seus pressupostos transcende aárea da Filosofia e torna-se igualmente eloqüente em outros campos.

“Deus está morto”, mais do que contraponto a posições religiosas oumísticas, põe às claras a situação do homem abandonado a si mesmo eescravo da própria subjetividade, mergulhado nessa conseqüência extre-ma da Metafísica, que é o subjetivismo: as almas são desertas porque nãopassa por eles senão elas mesmas. Instalado nesse deserto, nesse vazio, onada do ser do homem descortina todo um mundo lancinante e agônico.A grandeza da alma está aí: ela vislumbra uma totalidade de sentido, masuma totalidade que morreu; tudo consegue ver, e tudo morreu. O homemde nosso tempo é esse homem que habita o intervalo de duas grandezas:um passado que se vai, irrepetível, e um futuro que permanece umaincógnita15.

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Em seguida, descreveremos alguns dos principais conceitos existencialis-tas para, na seqüência, adentrarmos no campo específico da Psicoterapia.

Notas

11 May, R. Peligros en la Relación entre el Existencialismo y la Psicoterapia, inH. M. Ruitembreek (org.) Psicoanálise y Filosofia Existencial. Buenos Aires:Paidós, 1965.

12 Giacoia Jr., O. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000. (Folha Explica).

13 Olson, R. G. Introdução ao Existencialismo. São Paulo: Brasiliense, 1970.

14 Ibid. Op. cit.

15 No capítulo “Temas Existenciais” é feita uma reflexão sobre a essência.

16 Penha, J. O Que é Existencialismo. São Paulo: Brasiliense, 1982.

17 Mounier, G. Introducción al Existencialismo. Madri: Rev. de Ocidente, 1957.

18 Seguim, C. A. Existencialismo y Psiquiatría. Buenos Aires: Paidós, 1960.

19 Introdução ao Existencialismo. Op. cit.

10 Nietzsche, F. Vontade de Potência. Porto Alegre: Livraria Globo, 1945.

11 Em termos de literatura, vamos encontrar vestígios da obra de Nietzsche nade Milan Kundera. Sua principal obra, A Insustentável Leveza do Ser, é pra-ticamente calcada nos escritos de Nietzsche.

12 Introdução ao Existencialismo. Op. cit.

13 Evidentemente nos referimos a obras estritamente filosóficas, pois, nesseespaço de tempo, gigantes da literatura, como Dostoiévski, Tolstói e outros,estavam produzindo os romances que dariam formas e contornos a outrasmanifestações existencialistas.

14 Danto, C. A. As Idéias de Sartre. São Paulo: Cultrix, 1978.

15 Bornheim, A. G. Sartre. São Paulo: Perspectiva, 1984.

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PARÊMIA DE INVERNOSexta Lua do anoNo céu, logo depois do Pôr-do-sol,surge a Arturusuma das mais brilhantes elindas estrelas que se pode sonhar.Mais noitinha aindasurge a Constelação do Escorpião e a Antarisradiante e afirmando ser a própria essência da vida.E estamos novamente no Inverno.

Deixe a tua dor um pouquinho de ladoesquece dos problemas do cotidiano.Largue tua mágoa, teu desalento.Põe um sorriso na alegria,e viva o Inverno com sua florada exuberante.

Veja o vermelho da suinã,o amarelo do girassol,o vermelho e amarelo do bico-de-papagaio,as cores vivas da azaléia,o esplendor do Ipê-Roxoe tantas outras flores e coresdesse nosso momento de vida.

Inverno com suas noites frias e estreladas.Inverno do luamento mais brilhante, mais intenso e harmonioso com o pulsar do coração.

Inverno das fogueiras juninas aquecendo o coração, o corpo e a alma. Inverno das manhãs azuis, do sol radiante e das tardes frias.

Inverno da vida que passa lá de fora pra dentro do coração acalentando a esperança e a ilusão.

Inverno das noites aquecidas pelo orvalhar e pelo olor dos craveiros. E pelo brilho de um doce e meigo olhar.

Valdemar Augusto Angerami