Pública 26.10 - Notícias de Portugal e do mundo...

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Pública 26.10.08 Paul Hagstrom Quantas Américas existem hoje? Pele A raça ainda importa? Portugal Americanos à distância Ficção E se Al Gore tivesse ganho Mais O mamilo americano

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Pública 26.10.08

Paul Hagstrom Quantas Américas existem hoje? Pele A raça ainda importa? PortugalAmericanos à distância Ficção E se Al Gore tivesse ganho Mais O mamilo americano

06 Porque simA América e euDaniel Sampaio

8 Aconteceu — AméricaAlexandre Soares

10 Vai acontecer — AméricaUm debate na quinta-feira: Eleições americanas para principiantes

12 CapaA reinvenção da AméricaRita Siza em Washington

18 Jerry HagstromHá cada vez mais AméricasTeresa de Sousa e Nuno Ferreira Santos

26 PeleA raça ainda conta?Rita Siza em Memphis

32 Comunidades swingOs quatro retalhos que podem ser decisivosMaria João Guimarães nos EUA

40 Opinião“Interesses do mundo”ou um “mundo americano”João Marques de Almeida

42 Mundo multipolarJosé Vítor Malheiros

45 OpiniãoO efeito ObamaÁlvaro Vasconcelos

46 ExpatriadosEles votam em PortugalKathleen Gomes

54 PresidenteÉ o carácter, estúpido!Miguel Gaspar

58 A vida em imagensBarack Obama

60 A vida em imagensJohn McCain

62 W.Julgamento sumário para George BushPaulo Moura

64 LiteraturaSilêncio e boomAlexandra Lucas Coelho

66 História virtualE se Al Gore tivesse ganho?Paulo Moura

73 A nuvem de calçasO fim do chicoteRui Cardoso Martins

74 O mundo à mesaO melhor hambúrguer de Lisboa e o seu vinhoFernando Melo e Enric Vives-Rubio

76 GastarShopping eleitoral

79 SexoO mamilo americanoNuno Nodin

80 ManiasSarah Palin Joana Amaral Cardoso

81 Nós no mundoBush, Obama, McCain e o ambienteRicardo Garcia

84 TarotMaya

DirectorJosé Manuel FernandesEditoresAna Gomes Ferreira e Marco VazaProdutoraMaria Antónia AscensãoCopydeskRita PimentaDesignMark PorterDirectorade ArteSónia MatosDesignersAna Carvalho, Carla Noronha, Jorge Guimarães, Mariana Soares [email protected]

ESTE SUPLEMENTO É PARTE INTEGRANTE DO PÚBLICO DO DIA 26/10/08 E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

No início do século passado, a economia americana representava 16 por cento

da economia mundial de acordo com uma estimativa da Universidade de Groningen. E os países da Europa Ocidental pesavam 27 por cento. O Império Britânico vivia o seu apogeu.

A meio do século duas guerras tinham devastado a Europa e o peso económico dos Estados Unidos saltara para 33 por cento. O seu máximo. Mas a sua hegemonia mundial era então desafiada pela União Soviética.

Quando entrámos no século XXI acreditou-se que eram a “hiperpotência”. O peso da sua economia à escala global caíra para 22 por cento, mas só eles conseguiam projectar a sua força militar para qualquer parte do globo, “Império sem império” que gozava do mesmo tipo de hegemonia que, um século antes, pertencera aos britânicos.

Só que o sonho de uma hegemonia benigna ruiu depois do 11 de Setembro e da forma desordenada como a ele se reagiu nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia. No auge do seu poder político, mas já na curva descendente do seu poder económico, os EUA entraram mal no que alguns haviam previsto vir a ser o “século americano”.

Pelo poder que têm, e pelo que não têm, pelo que fazem ou não fazem, pela influência da sua cultura de massas e das suas universidades, os EUA não deixaram de ser a “nação indispensável” e de assim serem vistos até pelos seus inimigos. Daí que todo o mundo gostasse de poder votar a 4 de Novembro, que até vê como a eleição mais importante de sempre. Mas o mundo não pode votar. Nós não podemos votar. Podemos é observar estas eleições mais de perto e mais bem informados. a

EditorialA naçãoindispensável

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Sumário

José Manuel Fernandes

6 • 26 Outubro 2008 • Pública

A América e eu

S a voz de Sinatra em My way; o cinema de Orson Welles, sobretudo o genial Citizen Kane, filme por mim revisitado dezenas de vezes e onde está tudo, até a chave para compreendermos a América. E as orquestras americanas de música clássica. E as cidades americanas, Nova Iorque e S. Francisco, com os seus museus e restaurantes acessíveis. E a Coca-Cola, dizia um doente meu que quem tinha inventado essa bebida merecia o Prémio Nobel.

O que eu não gosto na América: o complexo deles face à Europa, invejosos da nossa História, sempre a dizerem que são melhores. O seu nacionalismo exagerado e o imperialismo que os fazem sentir-se donos do mundo (com as consequências que estão à vista). O criacionismo serôdio de Sarah Palin, na pretensão de combater a teoria da evolução, uma das mais brilhantes da humanidade. Os hambúrgueres com molho de tomate, um alimento sem arte nem poesia. O café americano, que eu e o José Gameiro tornámos mais forte à socapa, causando algumas insónias aos colaboradores de Whitaker. E detesto o Presidente George W. Bush, o pior de sempre, uma mistura do americano rígido e provinciano do Texas com uns tiques aprendidos a custo na universidade, actualizados ao minuto por conselheiros providenciais para ele (e não para o mundo). Feito o balanço, o fascínio mantém-se: gosto dos EUA. E fico contente porque Obama vai ganhar — uma questão de dignidade para os americanos —, ao contrário do que previram os nossos analistas de direita. E acredito que tudo vai ser diferente, porque a sua vitória significa aquilo que ele nos repete desde o primeiro momento: é preciso Mudar. A América e o mundo. a

crónica porque sim

Daniel Sampaio

empre tive uma relação ambivalente com a América, uma espécie de amor-ódio que o tempo não tem desvanecido.

Tudo começou com um ano de idade, quando fiquei por cá e não acompanhei a família no mestrado paterno: se por um lado lamentei não ter logo realizado a ambição de conhecer os EUA, tão frequente nos anos 50, vim a ganhar uma relação de sonho com a minha avó, de que dou conta no meu recente livro A Razão dos Avós.

Em minha casa sempre ouvi glorificar a América. O meu pai atribuía aos seus estudos americanos a notoriedade e saber que veio a alcançar como médico de Saúde Pública. A minha mãe ilustrava com exemplos a capacidade de trabalho, a solidariedade de vizinhança e as oportunidades aos artistas que a tinham marcado na sua vida americana. Mesmo o meu irmão, sempre mais crítico pela sua visão de esquerda, trazia-me uns EUA em que as oportunidades de realização, a participação cívica, a democracia no quotidiano e o apreço pela ciência eram bandeiras a elogiar.

Quando em 1963 vi América, América, de Elia Kazan, compreendi como o sonho americano persistia em muitos: também me passou pela cabeça ir estudar para os EUA, onde a Medicina era o exemplo do melhor que se fazia “lá fora”. Na América existiam hospitais a sério, onde todos os meios eram postos ao alcance de profissionais bem treinados: estávamos longe das actuais séries da televisão, mas dizia-se ser lá que se “curavam” doenças nem sequer diagnosticadas entre nós.

Mas, ao contrário do grego do filme, resolvi ficar quase 20 anos. Só em 1980 fui para Madison, Wisconsin, aprender com Carl Whitaker, um dos pioneiros da terapia familiar. E o amor renasceu: devo a esse treino uma autêntica revolução na minha vida profissional, pois compreendi que não se pode tratar ninguém sem pelo menos compreender o seu sistema familiar (presente e passado); e entendi que a família, espaço emocional com diversas configurações, é o que restará quando tudo nos parecer submerso. E sou devedor da América na minha vida pessoal, pois com Whitaker compreendi que a melhor forma de sermos livres é conseguida com o amor sustentado para com os nossos familiares (o que pressupõe podermos expressar também que há momentos em que os detestamos).

O que gosto na América: a literatura, Faulkner, Bellow, agora Roth; Elvis Presley, The King, em Love me tender, a melhor canção de amor de todos os tempos;

A vitória [de Obama] significaaquiloque ele nos repete desde o primeiro momento: é preciso Mudar. A América e o mundo

aconteceu américa

visitaramSean Penn com Chávez O actor e o político visitaram juntos a obra que decorre no gasoduto da Venezuela. Na mesma semana em que Sarah Palin chamou “ditador” a Chávez, o Presidente venezuelano mostrou que tem boas relações com alguns actores norte-americanos — foi a segunda visita de Sean Penn àquele país em pouco mais de um ano.

compraramEllen e o casamento gayA actriz e apresentadora Ellen

Degeneres comprou tempo de antena numa estação de televisão da Califórnia para convencer os espectadores a defender a institucionalização

do casamento entre pessoas do

mesmo sexo no referendo que se realiza em Novembro. DeGeneres, que casou em Agosto com a

actriz Portia de Rossi,

gastou 75 mil euros.

acusaramMadonna lava roupa sujaA cantora americana Madonna acusou o ainda marido Guy Ritchie de ser um caçador de fortunas. “Pensei que estávamos a viver uma viagem espiritual, mas estava enganada.” Ritchie respondeu, através de amigos, que ela nunca queria sexo — estava sempre cansada das quatro horas diárias de exercício. Ritchie (a quem Madonna poderá ter de pagar 44,5 milhões de euros no divórcio) disse: “Abraçá-la era como abraçar um monte de cartilagem.”

Hugo Chávez fez de cicerone ao seu amigo Penn

A Google é neutra, Eric não

anunciaramGoogle com Obama? O chefe executivo da Google, Eric Schmidt, disse que a empresa tem uma posição “oficialmente neutra” em relação aos candidatos à presidência, mas anunciou que, “a título pessoal”, apoia Obama. Schmidt tem assessorado Obama em assuntos tecnológicos.

angariaramDemocratas batem recordeA campanha democrata angariou em Setembro mais de 150 milhões de dólares. Com este valor,

mais do que duplicou o anterior recorde que já lhes pertencia, quando no mês de Agosto conseguiu recolher 66 milhões de dólares.

participaramPalin faz bem às audiênciasA candidata republicana à vice-presidência, Sarah Palin, fez uma participação especial no Saturday Night Live. Durante o programa de humor, brincou com a actriz Tina Fey que tem feito imitações de Palin, e o actor Alec Baldwin disse-lhe que era “muito mais sexy em pessoa” . Resposta: “O seu irmão Stephen é que é o meu Baldwin preferido.” Há 14 anos que o programa não tinha audiências tão altas.

suspenderamAvó de Obama adoeceO candidato democrata fez uma pausa na campanha esta semana para visitar a avó doente no Havai. Madelyn Dunham, que faz hoje 86 anos, ajudou a criar Barack Obama. O político costuma fazer referências à avó nos seus discursos, contando que Madelyn trabalhou na montagem de bombas durante a II Guerra Mundial. a Alexandre Soares

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Hoje

vai acontecer América

A fechar o Doclisboa, há uma maratona de obras do mestre norte-americano do documentário Frederick Wiseman, no cinema Londres. Os EUA em diversas vertentes: da educação (vista em 1968 e revista em 1994) ao militarismo, do lazer de Aspen a uma prisão para doentes psiquiátricos. Mais EUA encerram o DocLisboa no São Jorge: Primary de Robert Drew sobre o casal Kennedy (22h00) e The War Room de Chris Hegedus e D. A. Pennebaker sobre os bastidores da eleição de Clinton em 1992. www.doclisboa.org

2aAmbiente

rock’n’roll, uma ementa a fazer justiça ao cená-rio e um nome irresistível. É o The Great American Disaster, diner saído do imaginário EUA de todos nós para o Marquês de Pombal (Lisboa). Mesmo que não seja pela comi-da — hambúr-gueres, pizzas,bifes, milk shakes...—, o cenário merece a visita. Todos os dias das 12h00 às 24h00. www.mys-pace.com/thegreata-mericandisaster

3aOliver Stone volta

à carga com “W” e aponta agora a câmara ao homem que está prestes a deixar o “trono”. Uma crónica sobre a vida e mandatos de George W. Bush que acaba de se estrear nas salas portuguesas. http://cinecartaz.publico.pt

5aEleições Americanas para Principiantes junta, às 18h30 na Fnac do CC Vasco da Gama (Parque das Nações, Lisboa), os investigadores José Gomes André e Pedro Magalhães, a jornalista Patrícia Fonseca (Visão) e Sara Pina (FLAD — Fundação Luso-Americana). À mesma hora na FLAD (Lisboa) é lanaldo o livro Carlucci vs. Kissinger — Os EUA e a Revolução Portuguesa, de Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá.

SábEnquanto os EUA

se divertem com o seu Halloween, o Seixal dedica-se à grande invenção musical dos EUA que enfeitiçaria o mundo inteiro. O Seixal Jazz, que prossegue até dia 1, oferece hoje dois grupos de músicos exímios: o sexteto all-stars The Leaders no Fórum Cultural do Seixal (21h30 e 23h30) e os The Fringe, lendário trio com 36 anos de entrega ao jazz, na Mundet (23h00 e 24h00). www.cm-seixal.pt/seixaljazz

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Broadway e Hollywood encontram-se no Teatro Maria Matos (Lisboa) num dos grandes musicais americanos. Cabaret mostra uma visão americana da ascensão nazi ao poder e acompanha o amor de Sally, jovem cantora inglesa, e um escritor americano na Berlim dos anos de 1930. Ana Lúcia Palminha é a estrela desta obra que, no cinema, confirmou Liza Minnelli como diva. http://teatromariamatos.egeac.pt

4aNo espaço

que celebra a cultura rock norte-americana junta-se uma conjugação musical que tem dado frutos: Açores e EUA. O Hard Rock Café lisboeta recebe um showcase de Nuno Bettencourt e os seus Extreme, que na quinta actuam no Coliseu à luz do novo disco, Saudades do Rock.www.hardrock.com

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É agora. Consumo combinado de 4.2 l/100km a 5.7 l/100km e emissões CO2 de 110 g/km a 133 g/km.

A reinvençãoda América

capa

Os americanos estão abatidos, desmotivados, aterrorizados. Vivem num turbilhão emocional. O mal-estar é indisfarçável e alguma coisa tem de mudar. Porque a crença no “sonho americano” é fundamental.

Texto Rita Siza em Washington

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Infelizes, furiosos, preocupados, descrentes, ansiosos, pessimis-tas, inconformados, deprimi-dos, frustrados, desiludidos… Nunca como hoje os america-nos se mostraram tão descon-tentes e insatisfeitos com o rumo do seu país — de acordo com a Gallup Poll, o mais anti-go instituto de sondagens dos

Estados Unidos, só uma minoria de nove por cento da população considera que actualmente a América está no bom caminho.

A principal razão para este sentimento é ób-via: a crise económica que se abateu sobre o país, identifica Ruy Teixeira, professor univer-sitário e fellow da The Century Foundation and American Progress, do New Politics Institute e da Brookings Institution.

O investigador assinala que este descrédito não é de hoje; já há uns anos se tem vindo a acentuar a tendência de descrédito, alimentada pela crescente oposição à guerra do Iraque e pela avaliação consistentemente negativa do desempenho do Presidente George W. Bush. “Havia muitas coisas a não correr bem há de-masiado tempo”, lembra.

Além do Iraque, uma sucessão de notícias nos últimos anos preocuparam e desanima-ram o país — notoriamente, a divulgação das imagens de tortura em prisões militares ame-ricanas, da existência de um programa secre-to de vigilância electrónica doméstica, ou do aumento galopante da dívida externa e do dé-fice orçamental, para enumerar algumas. Mais importante, a deterioração das condições de vida para grande parte das famílias alimentou lentamente o ressentimento: mais desemprego, menos poder de compra.

“Mas, muito claramente, foi o rebentar da bolha do mercado imobiliário, o colapso do sis-tema financeiro e a ameaça da paralisação total da actividade económica da América que leva-ram os americanos a parar e pensar: ‘Estamos no fundo do poço’”, repete Teixeira, que acaba de lançar o livro Red, Blue and Purple America: The Future of Election Demographics.

“Corre por aí a ideia de que os americanos estão zangados. Mas não estão: estão abatidos. E estão aterrorizados. Estão com medo de per-der o emprego, ou a casa, ou a pensão de re-

forma. Estão com medo de não poder mandar os filhos para a faculdade, de não conseguirem tratar-se se tiverem uma doença séria”, resumia na semana passada a escritora e realizadora Norah Ephron.

Mas, descontando a crise económica, será que existem outras razões, mais subterrâne-as, que expliquem o actual desconforto dos americanos?

Em Julho de 1979, num célebre discurso em que a palavra nunca foi pronunciada, o Presidente Jimmy Carter falou da malaise da América. O seu argumento: o país, agitado por uma sucessão de acontecimentos nefastos co-mo o assassínio de John e Robert Kennedy, a guerra do Vietname, o escândalo Watergate e o choque petrolífero que provocara uma crise energética sem precedentes, mergulhara na depressão e atravessava um momento de falta de confiança.

“Tenho de vos falar sobre uma ameaça fun-damental à democracia americana”, declarou Carter solenemente ao país, numa mensagem transmitida pelas televisões. “É uma ameaça in-visível. É uma crise de confiança, uma crise que ataca na alma e coração e no espírito do nosso dever nacional. Podemos reconhecer esta cri-se na crescente dúvida sobre o significado das nossas vidas e na perda da unidade do nosso propósito enquanto nação”, prosseguiu.

O discurso revelou-se um desastre político para Carter, que nas eleições seguintes foi der-rotado pelo seu optimista adversário republi-cano, Ronald Reagan: o país não estava prepa-rado para pôr em causa os seus limites e a sua grandeza. Décadas mais tarde, porém, as suas palavras têm vindo a ser reavaliadas por comen-tadores e analistas políticos, que destacam a “complexidade” da análise política de Carter e também a “humildade” da sua retórica: os americanos têm de perceber que enfrentam desafios difíceis e precisam de reexaminar a sua vida, fazer escolhas e mudar de rumo.

Turbilhão de sentimentosPoderá a América de 2008, confrontada com duas guerras aparentemente infindáveis, a constante ameaça do terrorismo, o colapso do sistema financeiro, a variação do preço dos combustíveis, a avalancha da imigração ilegal, a perda de competitividade do seu sec-

tor industrial, o aumento do desemprego, a concorrência internacional no recrutamento dos melhores investigadores universitários, a crise da saúde, o recrudescimento da animo-sidade contra os Estados Unidos sofrer dessa tal malaise definida por Carter?

“Não creio”, reflecte John K. White, professor de Ciência Política na Universidade Católica da América em Washington DC e especialis-ta no comportamento do eleitorado. “Malaiseimplica uma falta de paixão, um niilismo ou ambivalência de sentimentos, um estado que vai mais além do encolher de ombros, quase uma desistência. E neste momento o que existe no país é muita emoção”, compara. Não é uma emoção positiva, reconhece — é, como descre-ve, um turbilhão de sentimentos.

“As pessoas começam a pensar que o país não é respeitado no mundo, que não tem soluções para a economia, que os dirigentes nos cargos de topo não são de confiança nem estão a fazer muito bom trabalho. A crença no ‘sonho ameri-cano’ é fundamental, mas começa a ser muito difícil ser superoptimista nesta situação. O de-sapontamento e a crise de confiança são mais do que naturais”, concorda Ruy Teixeira.

Para Todd Gitlin, professor de Jornalismo e Sociologia na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, o mal-estar da sociedade ameri-cana é indisfarçável. “Há, obviamente, uma crise de confiança, por duas razões principais: a guerra no Iraque é um desastre e a economia é um desastre”, sublinha, em declarações à Pú-blica. Outros motivos confirmam o diagnóstico. “Podemos falar da corrupção flagrante, do abu-so de poder”, prossegue. “Estes oito anos da Administração Bush exauriram por completo o reservatório de confiança nos republicanos. E assim chegamos a esta situação de vácuo ide-ológico. A malaise é enorme!”, conclui.

Howard Wolfson, antigo director de comuni-cações da campanha da senadora democrata Hillary Clinton, aponta as mesmas duas razões para explicar o sentimento negativo que tomou conta da América. “No dia-a-dia da cobertura presidencial, é difícil ter uma perspectiva geral do estado das coisas, mas podemos desde já antecipar o colapso da Wall Street do passa-do mês de Setembro como um acontecimento seminal na história dos Estados Unidos e da política americana”, considerou. E assim, “se

O discurso de Carter revelou-se um desastre político. Foi derrotado pelo republicano optimista Reagan

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as políticas falhadas da Administração Bush na guerra do Iraque já tinham minado a confian-ça dos americanos relativamente às questões de segurança nacional, agora esta calamidade financeira veio ter implicações ainda mais rui-nosas”, acrescentou.

Fim e princípio de uma eraNum artigo publicado no jornal The Washington Post, David Rothkopf, autor do livro Superclass: The Global Power Elite and the World They Are Making e afiliado do Carnegie Endowment for International Peace, concorda que, “da mesma maneira que o 11 de Setembro mudou a manei-ra como a América vê o mundo, a actual crise financeira mudou a maneira como o mundo vê a América” (e já agora, mudou, de forma significativa, a maneira como a América e o mundo funcionam).

“O débacle económico será muito provavel-mente interpretado pelos historiadores como um verdadeira linha de divisão a nível global: o fim de um período e o princípio de outro. Um dos efeitos imediatos desta crise foi que já dei-xou tanto os inimigos dos Estados Unidos como também alguns dos seus mais próximos aliados a questionar-se sobre o fim do capitalismo e da supremacia americana”, escreveu.

Para este especialista, a crise financeira (que num único dia custou ao mercado mais dinheiro do que todo aquele que já foi gasto no Afeganistão e Iraque desde o princípio da guerra) veio expor as fragilidades do sistema capitalista que está no cerne da vida americana — e, por isso, a sua resolução necessariamente implicará um rearranjo ideológico tão profun-do como aquele que ocorreu com a falência do comunismo soviético.

Essa foi uma ideia que começou a ser deba-tida nas secções económicas dos jornais e ra-pidamente tomou conta das páginas editoriais — a cobertura jornalística foi evoluindo até cul-minar no epitáfio do capitalismo de mercado livre. “A maior baixa da pior crise financeira desde a Grande Depressão? O capitalismo ao estilo americano”, declarou o Washington Post.O Christian Science Monitor analisou a situação do ponto de vista da Europa, “um bastião de desconfiança do sistema capitalista”. “A mesma questão está na base de todas as teorias para explicar a crise financeira: será que a era c

Vietname, funeral de J.F.K. e Watergate (Nixon) — três factores com que Carter explicou a malaiseda América

REUTERS/ARCHITECT OF THE CAPITOL’S OFFICE/JFK LIBRARY

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dos mercados livres onde vale tudo chegou fi-nalmente ao fim?”

Talvez por isso, para David Rothkopf, “a questão fundamental nesta eleição é saber se os Estados Unidos estão preparados para se-guir um novo caminho e definir um novo tipo de capitalismo americano, que ultrapassa o dogma instituído por Reagan [e na Europa por Thatcher], que reconhece a necessidade de no-vas instituições internacionais para gerir a cada vez mais complexa economia global e aceita a intervenção governamental”.

Que posição no mundo?No que diz respeito à situação dos Estados Uni-dos, eis como Todd Gitlin enquadra a questão. “Nestes últimos tempos, temos visto uma in-segurança a alimentar outra insegurança a ali-mentar outra insegurança. É um ciclo, e é neste cenário que a América está a tentar reimaginar-se e reinventar-se a si própria”, contextualiza. “Agora, o que eu acho é que ainda há uma tre-menda dificuldade em perceber que a posição da América no mundo vai ter de declinar — que o domínio americano era demasiado grande para poder ser sustentável, tanto do ponto de vista militar como do ponto de vista económi-co. Vamos precisar de um longo, muito longo período de adaptação”, estima.

Como escreveu numa crónica recente para o diário The Los Angeles Times (e que indicou à Pública como uma boa citação), as eleições presidenciais são sempre momentos em que o país procura fazer as contas com o seu pas-sado e projectar a sua esperança no futuro. “A cada quatro anos, as várias versões da Amé-rica lutam umas contra as outras e é através desse combate que a nação se avalia e inspec-ciona, dando voltas e voltas sobre si própria, procurando escolher não só o seu líder mas a sua afirmação, a sua identidade — na realidade aquilo que ela quer ser, aquilo por que ficará conhecida”, escreveu.

À Pública, o professor explicou que há uma narrativa “subliminar” no relato da campanha eleitoral, um outro enredo que não pode ser resumido a cada dia pelos jornais e que tem a ver não com o que os candidatos dizem e o que propõem, mas sim o que eles simbolizam. “Os candidatos são, num certo sentido, arquétipos falantes. A decisão de apoiar um ou outro é um

alinhamento com uma pessoa mas sobretudo um mito, um ideal”, teoriza.

As duas figuras em contenda nesta corrida presidencial tornam esta decisão difícil — e ex-plicam, de certa forma, a tensão, emoção e vo-latilidade da campanha. “É a América em busca de um nome para a sua alma”, escreve Gitlin. “McCain é o herdeiro da tradição do Oeste; ele é o rebelde que respeita o papel da justiça e da lei, que é impetuoso em combate, mas também firme na protecção do seu território contra o inimigo. Obama é o desconhecido, o estranho quintessencial, o filho do imigrante. Como fi-gura mítica, é mais esquivo: ele é do exótico Havai, da estrangeira Indonésia, da elegante Harvard, da suja e dura Chicago, tudo ao mes-mo tempo”.

Christopher Hull, assistente do departamen-to de Governo da Universidade de Georgetown, explica que, acima de tudo, “a América é uma ideia: a ideia de que, com liberdade individual e política, qualquer pessoa de qualquer lugar que trabalhe duro terá a sua oportunidade de sucesso”.

O professor, que é também comentador da fileira republicana, usa a noção da liberdade como base de partida na sua análise do pon-to em que se encontram os Estados Unidos. “Benjamin Franklin, um dos chamados ‘pais fundadores’, disse que ‘qualquer sociedade que aceita perder alguma liberdade em troca de pouca segurança não merece nenhuma e perderá as duas”, cita. “Infelizmente, acredito que em 2008 a América está num caminho de perda de liberdade”, completa.

É assim que explica a próxima eleição pre-sidencial de 4 de Novembro. “A eleição repre-senta claramente uma escolha: abrir mão de alguma da liberdade individual e política e dei-xar o Governo ajudar os americanos nos seus esforços de sucesso, ou aumentar o nível de liberdade e deixar os indivíduos assumir mais riscos em busca desse sucesso. Nesta época de perigo financeiro e internacional, os america-nos parecem estar em busca de abrigo, dispos-tos a uma retirada tanto a nível internacional como internamente”, elabora. “Falo de retirada em termos das batalhas contra o terror; de reti-rada em termos de comércio livre com outras nações; retirada do funcionamento liberaliza-do dos mercados imobiliários, financeiros, do

Estes oito anos Bush exauriram o reservatório de confiança nos republicanos

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sistema de saúde”, concretiza.

Mudança é inevitávelO democrata Howard Wolfson acredita que será esse o caminho (e, acrescente-se, regozija com essa perspectiva). “Os republicanos e democra-tas têm andado a discutir o modelo do governo há mais de um século. Na década de 1980, o país alinhou pela teoria de Ronald Reagan, que considerava que o governo se tinha tornado de-masiado grande e intruso na vida das pessoas. Nessa altura, a economia funcionava a favor dos republicanos. Agora, o pêndulo voltou a balançar para o lado democrata. A filosofia de Reagan e dos republicanos foi desacreditada pelos últimos acontecimentos. A mudança é inevitável”, conclui.

Ao contrário, Alan Wolfe, professor de Ci-ência Política e director do Boisi Center for Religion and American Public Life, do Boston College, acha que a crise de 2008 não produzirá os mesmos efeitos políticos nem terá as mes-mas consequências culturais de outras — no-meadamente as da Grande Depressão. Como explica, as condições económicas dos anos 1930 levaram uma geração de americanos “a votar democrata, a optar pela Segurança Social sobre a liberdade económica, a acreditar na capacidade do governo para ajudar a resolver os seus problemas”.

Mas, de então para cá, o país mudou tão sig-nificativamente que “é difícil ver a história re-petir-se nesse sentido”, considera. A diferença, na opinião deste investigador, tem a ver com o ambiente de polarização política que agora caracteriza a América. “A democracia sofreu grandes danos nesta era de divisão partidária, soundbites e ruído no acesso à informação. Não espero que a actual crise termine com o triunfo de um novo modelo coerente e disciplinado”, como aconteceu com a Grande Depressão.

Wolfe, tal como John K. White e Ruy Teixei-ra, diz que a raiva que a população americana exibe neste momento tem uma “qualidade” diferente daquela que consumiu os Estados Unidos no princípio do século passado. “Tal como então, as pessoas diabolizam Wall Street, mas a sua hostilidade é francamente difusa e incoerente. Os protestos são mais simbólicos do que concretos”, entende.

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esmagadora maioria da população agora faz da performance da Administração Bush, Alan Wol-fe lembra que o país aceitou e “aguentou” as políticas ditadas pelos grupos de lobby, os cor-tes fiscais para as grandes empresas e os contri-buintes mais ricos e a perda de rendimentos da classe média. “Em 2004 as sondagens davam conta da relativa insatisfação do eleitorado, mas a tendência era para não culpar o Presidente”, recorda John K. White. “Agora, de repente, a opinião pública e publicada reencontrou a sua veia populista, atacando a ganância do sistema financeiro, exigindo regulação e transparência no governo. Mas, quando acabar o susto, vol-taremos à política do costume num piscar de olhos”, antevê Alan Wolfe.

O sistema ainda funciona“As pessoas podem estar com medo da ascen-são económica da China ou da ameaça do mun-do islâmico e até podem achar que os Estados Unidos não são respeitados no mundo. Mas não deixaram de acreditar que este país é o poder dominante, isso não está em causa”, diz Ruy Teixeira.

Na opinião de White, a insatisfação dos ame-ricanos é muito direccionada: o descontenta-mento não tem a ver necessariamente com os

princípios e valores que definem o país, mas com as pessoas nas posições-chave. “Os ame-ricanos ainda acreditam que o sistema funcio-na, ninguém diz que o que é preciso é rasgar a Constituição e encontrar outro modelo”, asse-gura. “Talvez um dia cheguemos a esse ponto, mas a mudança de que se fala nesta eleição tem mais a ver com uma mudança de personalida-des e partidos do que com uma revolução do sistema político”, considera.

Steve Clark, consultor político e colunista do Boston Globe, fala da “consistência” da política presidencial americana, frisando que por de-trás da ascensão e queda de um determinado partido estão sempre “traumas nacionais”. A Guerra Civil, exemplifica, deu origem ao Par-tido Republicano moderno, produziu um dos seus líderes mais icónicos, Abraham Lincoln, e inaugurou uma era presidencial que durou desde 1860 até 1928: durante esse período, os republicanos dominaram, ganhando 14 das 18 eleições.

A Grande Depressão, continua, voltou a al-terar a paisagem política, desta vez com a pre-dominância dos democratas, que entre 1932 e 1964 conquistaram sete das nove eleições. E no final da década de 1970, conclui, os repu-blicanos souberam aproveitar a reacção con-

servadora ao movimento dos direitos cívicos, o desânimo do Vietname e a guerra fria para voltar a ganhar vantagem, cultural e demogra-ficamente. Os únicos candidatos presidenciais democratas que singraram desde então vieram do Sul conservador, Jimmy Carter e Bill Clinton; de resto, os republicanos prevaleceram em oito das onze corridas.

Daí, defende, a presente conjuntura favorece uma nova configuração política da América. “Por mais ou menos anúncios negativos ou dis-cursos positivos que os candidatos façam, as suas acções não transformam a evolução polí-tica da mesma maneira que as circunstâncias e os acontecimentos externos”, sublinha. Com o país em crise, Barack Obama pode “alcançar uma vitória substancial que, de novo, vire a página na história política, com profundos efei-tos que se podem estender por mais de uma geração”, observa.

Por seu lado, Chalmers Johnson, comenta-dor e autor de três livros sobre o militarismo americano (Blowback, The Sorrows of Empire e Nemesis: The Last Days of the American Repu-blic), encontra tantos paralelos entre as condi-ções socioeconómicas de 1932 e de 2008 que, especula, é possível encarar a próxima eleição presidencial como uma espécie de “renasci-mento”: o analista arrisca dizer que as condi-ções favorecem um realinhamento na política americana semelhante àquele que aconteceu no século passado.

As pressões económicas de hoje ainda não se manifestam com a mesma severidade que destruiu por completo o tecido social, econó-mico e político na época da Grande Depressão — ao contrário de 1932, em que a taxa de de-semprego atingiu mais de 30 por cento, a falta de trabalho afecta seis por cento da população. Mas, enumera Johnson, abundam os indica-dores negativos: “A execução maciça de hipo-tecas, a falência de bancos de investimento, a inflação dos preços da comida e dos combus-tíveis, o fracasso na garantia de um sistema de saúde que abarque todos os americanos, uma catástrofe ambiental, os exorbitantes custos das operações militares no Iraque e Afeganis-tão (e a perspectiva de novos focos na Geórgia, Ucrânia, Palestina, Líbano, Irão, Paquistão) e dois défices recorde na balança comercial e no orçamento federal.” a

As mudanças de que se fala têm mais a ver com uma mudança de personalidades do que com a revolução do sistema político

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Jerry Hagstrom“Não há duas Américas. Há muitas Américas. Cada vez mais”A América mudou? Muito? Quase nada? Em que sentido? Ao ponto de se preparar para eleger Barack Obama? Em Novembro de 1932, também ninguém sabia. “Por isso, quem sabe?” Daí a esperança.

Texto Teresa de Sousa Fotografia Nuno Ferreira Santos

entrevista

22 • 26 Outubro 2008 • Pública

Aconversa começa in-formalmente, ain-da sem o gravador ligado, num hotel de Lisboa, a meio da tarde do dia 17 de Outubro. “Ex-celentes notícias para Obama”, diz Jerry Hagstrom,

editorialista da National Journal, jornalista vá-rias vezes premiado, especialista na política in-terna norte-americana, sediado em Washington. Esteve em Portugal para falar das eleições ame-ricanas em várias universidades. “Obama tem agora a mesma percentagem de votos dos elei-tores brancos que apoiaram John Kerry.” Não há sequer tempo para ligar o gravador quando se trata das eleições americanas. A conversa não pode parar. “O maior desafio para Obama, nestes últimos dias, é garantir que as pessoas que o apoiam vão mesmo votar.” Sobretudo os jovens. “O que seria uma enorme mudança desde 1972”, quando os EUA decidiram baixar a idade de voto dos 21 para os 18 anos. Irão? O gravador já está ligado. É este precisamente o tema central desta entrevista: o que mudou na América para que Barack Obama tenha as mais altas probabilidade de vir a ser o próximo Presidente americano. A conversa nem sempre é fácil, demonstrando como, por vezes, as inter-rogações de um europeu continuam a não fazer sentido para um americano. Mesmo as palavras podem ter diferentes significados. Mudança, por exemplo. Nós, do lado de cá, sonhamos com uma. Eles, do lado de lá, estão a pensar noutra coisa. A América mudou? Muito? Quase nada? Ao ponto de se preparar para eleger Barack Oba-ma? Em que sentido? Quem é que sabe? Daí a esperança. “Pode haver demasiadas expecta-tivas que redundem em desilusão.” Mas, em Novembro de 1932, também ninguém sabia. “Portanto, quem sabe?”

O extraordinário apoio a Barack Obama quer dizer que a América mudou ou traduz a so-bretudo a decepção com George W. Bush de que qualquer candidato democrata poderia beneficiar? Penso sinceramente que traduz uma mudança na América. Mas iria um pouco mais atrás pa-ra dizer que essa mudança começou quando os dois principais candidatos do Partido De-mocrata que concorrem nas primárias foram uma mulher, Hillary Clinton, e um negro, Ba-rack Obama. Ambos eliminaram desde o início todos os candidatos brancos homens, o que foi, só por si, extraordinário num país que, ao longo da sua história, só teve homens brancos como presidentes.Isso prova que pelo menos o Partido Democrata acreditava mesmo que Hillary e Obama eram os dois melhores candidatos para vencer as elei-ções. Os mais famosos, os mais inspiradores, os mais qualificados. Isso foi em metade dos eleitores. Agora es-

tamos a falar da América, no seu conjunto. Há um ano, alguém imaginaria que os ame-ricanos se virariam para um negro para lide-rá-los através de uma crise financeira desta dimensão? Eu nunca imaginaria, de facto. Nessa altura, quase toda a gente ainda acreditava que Hillary Clinton iria ser a nomeada e a questão era: o país vai votar por uma mulher?

Esta mudança de que fala é fundamental-mente uma mudança cultural? Podemos di-zer que a raça deixou de ser um problema? Não, não penso isso. Ainda é um problema. Sondagens feitas há cerca de duas semanas mostravam que há perto de seis por cento de votantes americanos que levam a raça em conta no seu voto. As mesmas sondagens mostravam também que dois ou três por cento dos ameri-canos nunca votariam num negro. Mas mesmo estas sondagens já podem estar ultrapassadas, de tal forma as coisas estão a mudar. Mas tenho de acrescentar que 80 por cento do crédito dessa mudança tem de ir para o próprio Barack Obama. Ele conduziu uma campanha de tal modo inteligente que acabou por ganhar o voto de muita gente que nunca na vida pensaria votar num negro. E é preciso também entender que ele é um negro dotado de uma excelente educação, que fala muito bem e que não dá a menor impressão de ser um homem revoltado. Pelo contrário, transformou-se na força tranqui-la no meio deste caos financeiro.

Isso quer dizer que o “Bradley effect” já pas-sou à história? Só saberemos responder no dia 4 de Novembro, mas o meu sentimento é o de que, nas duas úl-timas semanas, com esta crise, os americanos estão de tal modo determinados em eleger um democrata que podem ignorar a questão da raça. Não tenho qualquer prova do que estou a dizer, é apenas aquilo que pressinto. Voltando à sua questão inicial, claro que as pes-soas estão desapontadas com a performance do Presidente Bush. E também estão perfeitamente cientes de que foi a filosofia dos republicanos no sentido da desregulação [dos mercados] que nos levou a esta crise financeira. Há, pois, neste momento uma forte tendência para responsa-bilizar os republicanos por isto tudo. Mais forte do que a pessoa do seu candidato. É há também a memória de que a última vez que estivemos numa situação semelhante foi em 1929, que Herbert Hoover, o Presidente republi-cano, não soube reagir devidamente à situação, que foi preciso eleger Franklin Delano Roose-velt (F.D.R.) em 1932, que foi ele que fechou os bancos, que regulou as coisas de outra maneira e que garantiu a rede social de que ainda hoje dispomos. Isto também reforça o desejo de ele-ger um democrata.

Obama não é um democrata qualquer. Isso significa que os americanos têm hoje uma percepção de si próprios que é diferente? Como uma nação que tem outros valores?

entrevista

Há um sentimento mais forte de que devemos consultar mais os outros, aprender mais sobre os outros

Kennedy também era muito jovem e era diferente na medida em que era católico. E essa eleição pela primeira vez é sempre importante para nós

McCain é o herói tradicional. Obama não é propriamente o estereótipo desse herói ame-ricano. A sua não é uma história americana típica.É verdade. Não é típico ter uma mãe branca do Kansas e um pai negro do Quénia ou ser criado no Havai e acabar por frequentar as melhores escolas do país. Mas também é, de algum modo, uma parte do sonho americano. A América é uma grande mistura. Não tanto uma mistura racial mas uma mistura. Quando me pergunta se os americanos têm hoje uma percepção diferente de si próprios, eu diria que não creio que os americanos se vejam a mudar assim tão dramaticamente. Na sua maioria, estão preocupados com os seus interesses individuais. Mas temos de voltar ao princípio desta história, que começou com o Iraque. Temos de nos lem-brar que Obama foi, desde o início, um opositor da guerra e que Hillary, pelo contrário, votou nos poderes de Bush para desencadear a guer-ra. Ora, esta questão atraiu uma parte muito significativa dos jovens, que, na sua maioria, nunca tinham votado. A segunda coisa que conta é a capacidade na-tural de Obama para inspirar as pessoas. Tive a oportunidade de ver isso logo no célebre caucusdo Iowa. Nesse dia, Hillary Clinton falou como se estivesse a candidatar-se a um emprego. Oba-ma falou como se estivesse a candidatar-se a Presidente. Estou a pensar na sua outra questão... Não foi uma mudança assim tão brusca. Há negros no

me a atenção. Quando eu era novo, as pessoas conformavam-se com o que era considerado normal. Isso acabou. O fundamentalismo reli-gioso desenvolveu-se mas, ao mesmo tempo, aceita-se os casamentos entre homossexuais ou a adopção por homossexuais. O que quero dizer é que os americanos vivem de maneiras muito diferentes e essa variedade está a aumentar muito. Isso torna, de algum modo, a política mais difícil. Porque há muito menos conformidade ao centro e os candidatos têm de unir pessoas com opções de vida muito diferentes.

Mas culturalmente como é que explica o fe-nómeno Palin? Está a falar dela como mulher ou como can-didata?

Sobretudo como candidata. Deixe-me falar dela como ser humano. Dizer que ela representa o fundamentalismo religio-so é apenas uma parte da sua personalidade pública. É verdade que frequentou uma Igreja fundamentalista e que se opõe ao aborto mes-mo no caso de violação ou incesto. Mas, como política, o seu apelo é um pouco mais amplo. Também é verdade que atacou o seu próprio partido no estado do Alasca, expondo vários casos de corrupção que envolviam republica-nos. O facto de ser uma caçadora e uma atleta também permite que possa ser vista como uma mulher moderna. Não são características que associemos aos conservadores religiosos.

Congresso, governadores negros...

Secretários de Estado negros, como Colin Powell e Condoleezza Rice. Mas não um Pre-sidente. Não um Presidente. Mas, ao longo do tempo, os americanos foram-se progressivamente habitu-ando à ideia de que os negros podem ser líderes. Eu diria que esta percepção teve o seu avanço mais significativo com a administração Clinton, que escolheu negros mas também hispânicos e mulheres para posições proeminentes, e que George W. Bush continuou no mesmo sentido. As pessoas habituaram-se à ideia. Deixou de ser estranha. Não representa, afinal, um sal-to assim tão grande, como poderia parecer à primeira vista.

Em termos culturais, é muito interessante, pelo menos para um europeu, olhar para o que Obama representa e olhar para o que Sarah Palin representa, que é precisamente aquilo que temos mais dificuldade em en-tender na América. Continua a haver duas Américas?Eu diria que temos muitas Américas. Cada vez mais. Fala-se muito do facto de os americanos irem muito mais à igreja do que os europeus. Temos essa imagem de um país muito religio-so. Queria dizer-lhe que até isso está a mudar e pude verificá-lo eu próprio. Nos últimos três ou quatro anos, fui convidado para vários casamen-tos em que não havia nenhum representante de nenhuma Igreja ou religião. Isso chamou- c

24 • 26 Outubro 2008 • Pública

Nada disso quer dizer que a decisão de John McCain não seja vista por muitos americanos, incluindo muitos republicanos, como uma deci-são criticável. Mas, como sabe, ela não era a sua primeira escolha. Ao princípio, até pareceu que tinha sido uma boa ideia. Houve democratas que tiveram medo que a eleição estivesse perdida.Mas as pessoas mais racionais disseram: espe-rem para ver o que ela faz. E ela cometeu os erros que nós conhecemos. Hoje, é um peso morto na campanha do senador McCain. Os independentes não gostam dela. Os inde-cisos dizem que ela não tem a experiência ne-cessária.

Em termos políticos, estas eleições também parece que marcam o fim de um ciclo conser-vador, que começou com Ronald Reagan. Já tinha mencionado o que significou a eleição de Roosevelt. Estamos numa mudança de idêntica dimensão?É sempre difícil saber quando estamos real-mente no início de um novo ciclo. Estamos, de certeza, num momento em que a fé no sistema de mercado livre é questionada. Mas, no lon-go prazo, tenho dificuldade em imaginar que os americanos realmente desejem um sistema económico em que o Governo passe a ter um grande papel nos seus negócios e nas suas em-presas. Nós gostamos do dinamismo inerente à liberdade das pessoas e das empresas. Mas é óbvio que as pessoas também percebem que estes banqueiros cometeram grandes er-ros e que há um limite para aquilo que podem fazer. Para onde é que vamos a partir daqui? Não sei.

Pensa que as pessoas estão, mesmo assim, preparadas para aceitar um papel maior por parte do Estado? Ainda não sei. E posso dizer que não há ne-nhum político, incluindo Barack Obama, que realmente esteja a defender isso.

Obama disse, de resto numa tradição muito europeia, que todos os americanos devem ter direito a um seguro de saúde. Estava a referir-me à economia, onde os ame-ricanos são de facto muito resistentes à ideia de que o Governo interfira. O que creio é que estão agora mais preparados para aceitar mais regulação na economia. Estão em estado de cho-que com aquilo que viram do funcionamento do sistema financeiro. Em termos sociais, acredito que os america-nos vão querer continuar agarrados à ideia de que têm o direito de escolher os seus médicos e temem que um sistema mais socializado lhes possa tirar esse direito.

Pensa que esta crise, com o que revelou, le-vará os americanos a serem mais sensíveis em relação às desigualdades? Penso que o que verdadeiramente enfurece os americanos é o facto de esses banqueiros terem feito mal o seu trabalho e não os salários que usufruíam. Aceitam perfeitamente o que eles

ganham desde que façam bem o seu trabalho. O que podem querer não é que ganhem menos, é que vão para a cadeia. A opinião pública vai concentrar-se mais em pessoas concretas que tomaram decisões erradas e que merecem cas-tigo do que no facto de serem ricas. Mas há outra coisa que as pessoas sentem mui-to: o facto de tantos empregos na indústria transformadora estarem a sair do país para o estrangeiro. Do que eles se ressentem é de que os bons empregos, que garantiam o sustento da família, férias, conforto e seguro de saúde, estejam a desaparecer porque as coisas passa-ram a ser feitas na China ou no México. E não compreendem isso.

Mas as pessoas não ficaram chocadas, por exemplo, com as imagens de pobreza e de-sespero que viram em Nova Orleães, na se-quência do Katrina, inimagináveis num país tão rico e poderoso? Sim, as pessoas ficaram chocadas. Mas em certo medida culparam o governo do Luisiana, que sempre teve problemas de corrupção. Não cul-pam as pessoas ricas, culpam um governo que funcionava mal. Os americanos não detestam os ricos porque desejam ser ricos. Toda a gente tem a esperan-ça de que os seus filhos venham a sê-lo. Ainda temos esse sonho.

Mesmo quando, nas últimas duas décadas, as pessoas começaram a sentir que provavel-mente os seus filhos não iam viver melhor do que eles? Pode ser um problema, mas o que eu enten-do que aconteceu nos últimos 20 anos foi que a classe média alta, que é diferente dos ricos, cresceu muito em número e em rendimentos. Em certo sentido, cumpriu o sonho americano. São sobretudo os filhos dos trabalhadores das fábricas, os blues colours, que não foram para a universidade, que estão a sair-se pior. Os dois fenómenos coexistem. É por tudo isto que eu digo que estamos, tal-vez, no início de uma nova era mas ainda não sei em que direcção iremos. Se eu vivesse em Novembro de 1932 [data da primeira eleição de Roosevelt], não creio que tivesse compre-endido imediatamente o que representaria o novo Presidente e em que direcção iríamos a partir dali. Mas diria com alguma segurança que estamos no termo de uma era conservadora que come-çou em 1973 com a decisão do Supremo Tribu-nal sobre o aborto e que deu origem ao movi-mento social conservador. Foi preciso esperar por 1980 para que esse movimento tivesse um papel na eleição de um Presidente. Isso significa que o futuro do Partido Republicano é também uma questão muito interessante.

Zbigniew Brzezinski dizia recentemente, nu-ma entrevista à BBC, que o próximo Presi-dente tem de ensinar as pessoas a conhecer melhor e a compreender melhor o mundo. A América está em condições de mudar a sua

entrevista

Com muito menos conformidade ao centro, os candidatos têm de unir pessoas com opções de vida muito diferentes

O que enfurece os americanos é os banqueiros terem feito mal o seu trabalho e não os seus salários

Pública • 26 Outubro 2008 • 25

relação com o mundo? Não se esqueça que, na América como na Eu-ropa, as eleições são sempre domésticas. Não espero grandes transformações nesse domínio. Mas há, de facto, um sentimento muito forte entre os americanos de que o Presidente Bush foi um go it alone, que é explicada também por uma certa mentalidade muito texana. O Texas foi parte do México antes de ser membro dos Estados Unidos [em 1845] e mantém um olhar muito peculiar sobre o mundo. Há hoje um sentimento mais forte de que de-vemos consultar mais os outros, que devemos aprender mais sobre os outros. Mas essa não é a questão fundamental. A questão é que são precisos líderes que tenham a coragem de con-trariar a ideia de que só devemos fazer aquilo que é bom para nós.

Os americanos continuam a ver-se como a nação excepcional? Indispensável? Penso que a ideia de que a América tem o de-ver de fazer o bem no mundo é ainda forte. A questão é saber como é que definimos esse “bem”. Durante as guerras nos Balcãs, fiquei espantado ao constatar que muita gente que se tinha oposto à guerra do Vietname achava que devíamos intervir. E também que devía-mos intervir no Ruanda ou, agora, no Darfur.

Também o acha fascinante? Eu recomendo-o a toda a gente.

Acho. Compreendemos através dele que ele teve uma vida, apesar de tudo, pouco comum para um americano. Isso também pode influenciar a forma como lidará com o mundo? Deixe-me dizer-lhe antes que há uma parte da sua vida que as pessoas não levam tanto em consideração e que é muito importante.A sua mãe nasceu no Kansas e foi com os pais para Seattle, Washington, onde acabou o liceu em 1959, tendo sido aceite na Universidade de Chicago. Como sabe, só não foi para lá porque os pais tiveram medo de mandá-la tão jovem para uma cidade tão grande. Isto também representa uma parte muito im-portante das raízes de Obama. Eu cresci no Dacota do Norte, um estado junto da fronteira canadiana um pouco acima do Kansas. A minha família ficou por lá, mas eu consigo compre-ender muito bem o que significa o percurso de uma pessoa que vai do Kansas para Seattle nos anos ‘50. São pessoas que andavam em busca de uma vida mais liberal. E que a en-contraram. Não creio que a compreensão de Obama esteja apenas no seu pai queniano ou no seu padrasto indonésio. É preciso ver tudo no seu conjunto e valorizar devidamente o papel da mãe. Mas reconheço que o seu percurso, filho de um queniano que vai para a Indonésia e que volta para o Havai é muito, muito particular. Repre-senta uma nova abertura, um novo interesse no mundo.

O americano normal percebe o efeito de Oba-ma fora da América? Eu diria que o americano normal não está a pensar nisso mas na sua situação financeira. Mas há um reconhecimento generalizado de que a nossa reputação no mundo caiu muito e que devemos tratar disso. Claro que as elites políticas estão muito conscientes desse facto e do potencial enorme deste momento. Que pode ser comparado, talvez, com a eleição de John Kennedy.Kennedy também era muito jovem e era dife-rente na medida em que era católico. E a elei-ção de um certo tipo de pessoa pela primeira vez é sempre muito importante para nós. Para podermos dizer aos nossos filhos que também eles podem ser tudo. Hoje, já ninguém liga ao facto de Kennedy ter sido o primeiro católico a chegar à Casa Bran-ca. Mas muita gente liga ao facto de termos um jovem negro prestes a poder fazer o mesmo. Isso também vai significar muita coisa para muita gente. Claro que pode haver demasiadas expectativas que acabem por redundar em desilusão. Mas, em 1932, F.D.R. também foi eleito numa situa-ção muito difícil, também havia imensa gente que o criticava e até que o odiava, e ele venceu. Portanto, quem sabe? a

Creio que este será um dos temas mais difíceis de tratar no futuro. Mas não vislumbro, apesar do Iraque, nenhuma tendência para os EUA se isolarem do mundo. Aliás, se há algo que toda a gente aprendeu nas duas últimas semanas, foi que a economia é global e que o que cada país faz tem necessa-riamente um efeito nos outros.

Os americanos estão mais preparados para aceitar as Nações Unidas, por exemplo? O Presidente Bush, sobretudo no segundo man-dato, tem feito mais coisas através das Nações Unidas do que alguma vez esperaríamos. Fala pouco disso porque sabe que isso é muito pouco popular entre os republicanos.

Mas qual é o sentimento dos americanos...O que lhe posso dizer é que precisamos de lide-ranças que lhes digam que as Nações Unidas, o FMI, o Banco Mundial são instituições importan-tes. E que, nos últimos anos, tivemos lideran-ças mais dispostas a criticar essas instituições. Penso que esse, sim, é um assunto em que os americanos precisam de ser ensinados.

Voltemos a Obama. Lendo a sua autobiogra-fia, The Dreams of My Father, um livro fasci-nante...

26 • 26 Outubro 2008 • Pública

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A raça aindaimporta?A partir do momento em que apareceu um candidato negro, era impossível ignorar esta questão, dizem uns. Não, a América já não é um país racialmente dividido, dizem outros. O país está dividido em “estados azuis” e “estados vermelhos”. O discurso do branco contra o negro e vice-versa é passado.

Texto Rita Siza em Memphis, Tennessee

Bang! “Virei-me para começar a descer as escadas e ouvi um tiro”, gesticula o reverendo Billie Kyles, o polegar e o indicador levantados sob a forma de uma arma de fogo. Ao

voltar-se, Kyles viu Martin Luther King caído no chão, coberto de sangue. “Corri para o telefone, mas a telefonista que fazia a ligação tinha saído da recepção para ver o que era aquele barulho. Quando se aproximou e viu o reverendo no chão, teve um ataque cardíaco instantâneo. Morreu dois dias depois”, recorda.

No fim daquela tarde do dia 4 de Abril de 1968, Martin Luther King devia ter ido jantar a casa de Billie Kyles. O jovem pastor, hoje com 73 anos, fora buscar o líder do movimento pelos direitos cívicos dos afro-americanos ao Lorraine Motel de Memphis, onde sempre se hospedava — King regressara àquela cidade para apoiar a greve dos trabalhadores da recolha do lixo,

depois de uma primeira manifestação ter ter-minado em violência e frustração.

O enorme automóvel branco que teria condu-zido o grupo de Luther King para a casa de Kyles ainda está estacionado por baixo do quarto 306 do motel — na varanda, há uma coroa de flores, vermelha e branca, que assinala o preciso lugar onde tombou o reverendo; o edifício, entretanto, foi assimilado pelo Museu Nacional dos Direitos Cívicos, inaugurado em 1991.

Para este histórico do movimento, o museu do Lorraine Motel é o melhor de Memphis, a maior cidade do estado do Tennessee. A cidade, que deve o seu nome à antiga capital do Egipto, prosperou, como muitas cidades do Sul dos Es-tados Unidos, no século XIX com a economia do algodão e o comércio de escravos (um passado bem patente na demografia: cerca de 60 por cento da população é negra). “Gosto de olhar para este edifício e ver como foi possível pegar numa coisa tão negativa para esta cidade e c

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Pele

este país e transformá-la em algo tão positivo”, explica.

Hoje em dia, é a música a principal razão pela qual milhares e milhares de turistas visitam a cidade — foi Memphis que deu ao mundo Muddy Waters, B.B. King, Johnny Cash e Isaac Hayes; foi aqui que Elvis Presley se radicou, e ninguém dispensa uma visita à sua Graceland (a casa do músico era a segunda mais visitada de todos os Estados Unidos, e seguramente passará para primeiro lugar porque a outra, a Casa Branca, em Washington, deixou de estar aberta ao pú-blico depois dos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001).

Mas, nota Billie Kyles, “muita gente acaba por vir aqui ao museu dar uma olhadela”. E, garante, ninguém sai indiferente. “As pessoas chegam aqui e finalmente percebem que, se não fosse o papel pacifista de Martin Luther King e do movimento pelos direitos cívicos, a América não ia conseguir escapar de uma segunda revolução sangrenta”, nota.

Uma conclusão quase inevitável para quem visita a exposição, organizada cronologicamente para documentar a luta da população afro-ameri-cana pela igualdade de direitos desde os tempos da escravatura. Podem parecer factos de épocas remotas, mas, como repara Kyles, não estão as-sim tão distantes. “Para mim isto não é história, isto aconteceu em frente aos meus olhos”, refere. “Quando eu cheguei aqui, em 1959, estava tudo segregado. Tudo, do berço ao caixão, o hospital era segregado e o cemitério era segregado: os brancos para um lado e os pretos para o outro”, lembra o reverendo.

Kyles discute animadamente os momentos vividos com Martin Luther King e os “extraordi-nários progressos” alcançados nos últimos 40 anos. “A única coisa que posso fazer é falar

de todas as coisas que ele [Martin Luther King] fez, todos os seus talentos que eu conheci. Com ele, eu fui um pioneiro. Agora sou uma testemu-nha: eu sei qual era o seu sonho e sei como esse sonho ainda está vivo. Todos os dias, eu caminho os trilhos que ele abriu neste país.”

Billie Kyles reconhece sentir alguma dificulda-de em comentar a histórica campanha eleitoral que está prestes a terminar. Para alguém que, como ele, esteve tão envolvido com o movimento de Luther King, às vezes é difícil acompanhar a realidade — nem que seja do ponto de vista do investimento emocional. “É verdade que para a minha geração tem sido muito difícil ultrapassar o passado”, admite. “Por exemplo, eu comecei por apoiar a candidatura da senadora Hillary Clinton”, informa, “porque já não tinha coração para mais uma ‘corrida simbólica’ de um candi-dato afro-americano”, explica.

“Depois Obama começou a ganhar as primá-rias em todos aqueles estados maioritariamente brancos e eu dei por mim a parar e pensar: o que é isto?, será que é desta? Este país mudou, esta-mos a avançar. O sonho continua vivo”, declara. E, por estes dias, o reverendo não sai de casa sem alfinetar um enorme pin com a fotografia de Barack Obama na lapela do casaco.

Greg Ducket, o presidente da administração do museu, confirma que, apesar de não envergar as mesmas “cicatrizes” daqueles que lutaram nas décadas de 1950 e 1960, sente a mesma dificuldade de Kyles no momento de avaliar a situação. “É quase impossível explicar o que a candidatura de Barack Obama representa para a comunidade afro-americana”, reconhece. “Olhando para trás, podemos reclamar muitas conquistas nestes últimos 40 anos, mas nenhu-ma como esta”, reflecte.

Desde o arranque da campanha, a raça tem sido o grande imponderável da presente corrida presidencial. Assim que Barack Obama garantiu a nomeação democrata, imediatamente os co-mentadores se interrogaram se “a América está finalmente preparada para ter um Presidente

negro”. Nesta recta final, quando o senador do Illinois surge como favorito nas sondagens, a pergunta é outra: qual vai ser o papel da raça nesta eleição?

“A discussão sobre a raça e a eleição tem-se desenvolvi-do em torno de dois

Martin Luther King em Washington, proferindo o discurso I Have a Dream (28 de Agosto de 1963)

A Remington 30-06 com que James Earl Ray assassinou Luther King em 1968, em Memphis

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pontos: um tem a ver com a noção de que uma grande parte dos eleitores brancos são, no fundo, uns racistas encapotados que nunca votarão por um negro; e o outro que as sondagens de opinião pública não representam a realidade porque as pessoas têm vergonha de admitir os seus precon-ceitos”, nota Michael A. Cohen, investigador da New America Foundation e autor do livro Life From the Campaign Trail: The Greatest Presiden-tial Campaign Speeches of the 20th Century and How They Shaped Modern America.

Mas, considera, a realidade é bastante mais fluída. É verdade que, em inquéritos de resposta aberta, um terço de eleitores brancos que se definem como democratas ou indecisos usa pelo menos uma palavra negativa para descrever afro-americanos, mas isso não significa que estejam menos inclinados a votar por Barack Obama (que, ironicamente, chegou a ser criticado por não ser “suficientemente” negro no início da campanha).

Também há estudos que demonstram que o antagonismo racial estará a custar seis pontos percentuais a Barack Obama — mas nem por isso o senador do Illinois deixa de estar na liderança das preferências de voto.

As sondagens das primárias permitiram con-cluir que o chamado “efeito Bradley” [em 1982, as sondagens relativas à corrida para governador da Califórnia apontavam uma confortável lide-rança ao negro Thomas Bradley, que acabou por ser surpreendentemente derrotado] não se está a verificar nesta campanha.

No último estudo da Gallup, realizado pre-cisamente para detectar a possibilidade de as sondagens nacionais poderem estar contami-nadas pelo “efeito Bradley”, seis por cento dos eleitores confessaram que o facto de Obama ser negro tornava mais improvável que votassem por ele, enquanto nove por cento apontaram a raça como a razão que tornava o voto em Obama mais provável. “O impacto da raça é um factor neutral senão ligeiramente positivo nas atitudes manifestadas pelos eleitores”, assinalam os res-ponsáveis do inquérito.

Os especialistas alertam, todavia, para o outro lado da equação: o comportamento dos eleitores não-brancos, que compõem sensivelmente um terço do total da população. É um dado adqui-rido que cerca de 95 por cento dos eleitores negros apoiam Barack Obama. É verdade que, historicamente, a participação eleitoral dos afro-americanos é muito baixa, mas a adesão em mas-sa deste bloco à candidatura democrata poderá ser um factor decisivo no dia da eleição.

Alguns números para ilustrar como o factor racial pode funcionar a favor de Obama. No Nevada, um aumento de menos de dez por cento na participação dos afro-americanos face a 2004 pode garantir a mudança do estado da coluna republicana para a democrata. No Ohio, que George W. Bush ganhou há quatro anos com 16 por cento do voto negro, basta que os tais 95 por cento do eleitorado afro-americano votem no democrata para Obama carregar o estado, sem ter de disputar os eleitores indecisos c

Todas as eleições são apresentadas como as mais importantes. Mas este ano estaremos a fazer História

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Pele

brancos com o seu adversário republicano.“Na realidade, poderá ser impossível discer-

nir exactamente qual o impacto que o facto de Obama ser negro e McCain branco venha a ter no resultado da eleição de 4 de Novembro. Os resultados da sondagem indicam que uma larga maioria de eleitores americanos diz que a raça dos dois candidatos não será um factor na hora de decidir em quem votar”, conclui a Gallup.

Entre os comentadores e analistas políticos parece haver consenso relativamente ao facto de que, perante a vantagem de Barack Obama nas sondagens nacionais e estaduais, só uma “reacção” racial poderá impedir a vitória do senador democrata na próxima terça-feira. A “chave”, opina Greg Ducket, serão os eleitores que não viveram na pele o movimento dos di-reitos cívicos. “A realidade actual é a de um país mais diverso e mais aberto às possibilidades da inclusão”, observa.

Ao longo da campanha, houve um esforço concertado das duas candidaturas (dos próprios candidatos e dos seus porta-vozes) para ignorar ou abordar a questão de forma positiva. “Não é um problema que me faça perder o sono”, co-mentou recentemente David Axelrod, o director da campanha de Barack Obama. “Se não ganhar-mos a eleição, não creio que será por causa da raça. Passamos muito tempo a falar sobre muitas coisas; essa não é uma delas”, garantia.

Mas, se o resultado da votação acabar por desmentir ou contrariar as previsões baseadas

nas sondagens, a tampa desta panela de pressão poderá saltar com estrondo. “Se Obama perder, de certeza que o racismo vai ser apontado como a principal explicação”, garante James Carville, um dos mais famosos estrategos políticos norte-americanos.

Em Memphis, Andre Gibson, director de uma associação constituída para promover a parti-cipação dos jovens na vida da cidade (Impact Memphis), quer acreditar que a raça não virá a desempenhar um papel decisivo no desfecho da corrida. Mas não aposta que venha a suceder. “Infelizmente, só vamos poder quantificar até que ponto teve implicações ou não quando tivermos os resultados. Se tivermos sorte, esta será a última vez que o preconceito racial — ou também a discriminação das mulheres — é um factor importante numa campanha eleitoral.”

“Espero não estar a ser ingénuo, espero que os corações das pessoas sejam tocados por esta

campanha. Porque, qualquer que seja o final des-ta história, muitas barreiras foram derrubadas nestes meses. No princípio da corrida, ninguém antecipava que pudéssemos estar aqui hoje nem que dentro de dias um negro pudesse vir a ser eleito Presidente”, prossegue Greg Ducket.

A Pública falou também com Charles Blat-teis, um dos sócios da firma de advogados que representou o movimento dos direitos cívicos no julgamento do assassínio de Martin Luther King. Habituado a discutir as questões ligadas ao racismo e à intolerância racial, diz desassom-bradamente estar “seguro de que a raça será um factor nesta eleição” — “Todos nós gostaríamos que não fosse, mas essa é uma ilusão. A partir do momento em que tínhamos um candidato negro, era impossível ignorar a questão”, observa.

Porém, Blatteis considera que, apesar das bolsas de preconceito, a América já não é um país racialmente dividido. “Nestes dias de ca-tegorizações mediáticas, constatamos que o país está dividido em ‘estados azuis’ e ‘estados vermelhos’. Que arrumamos a realidade em opostos do tipo liberais versus conservadores ou rurais versus urbanos. O discurso não é o do branco contra o negro e vice-versa, como era no passado”, nota.

Por isso, o advogado partilha o tom optimista de tantos outros intervenientes políticos de Mem-phis. “Se Obama ganhar, será uma evidência do dinamismo da nossa cultura e da capacidade de regeneração da nossa sociedade. Para mim, será um grande testamento desta capacidade que a América tem de olhar menos para o passado e mais para o futuro”, considera.

E se o candidato democrata perder? “Se isso acontecer, continuamos a sonhar. Até porque agora sabemos com certeza absoluta que um dia, sim, vai ser possível”, responde Billie Kyles. “Martin Luther King dizia que devíamos prepa-rar-nos para a oportunidade. Obama prova que, se jogarmos pelas regras, essa oportunidade se manifesta”, acrescenta Ducket.

Kemp Conrad, um empresário de Memphis que é candidato a um assento no City Council numa eleição local extraordinária também no dia 4 de Novembro, é um apoiante do republicano John McCain, mas está satisfeito com os efeitos positivos da candidatura de Barack Obama no avanço do debate sobre a raça. “É algo que vimos acontecer na evolução política da nossa própria cidade, marcada por muitos líderes afro-ameri-canos carismáticos”, atesta.

Conrad salienta ainda dois factos que, no seu entender, levarão os historiadores a estudar exaustivamente esta eleição presidencial en-quanto momento refundador da democracia americana. “Antes de mais nada, esta eleição já veio reverter a dinâmica de apatia e desinteresse do eleitorado. Todas as eleições são apresenta-das como as mais importantes de sempre, mas este ano sabemos que, independentemente do resultado, estaremos a fazer História nos Estados Unidos, elegendo pela primeira vez um afro-americano ou uma mulher para a Casa Branca”, declara. a

Comecei por apoiar Hillary. Já não tinha coração para mais uma “corrida simbólica” de um afro-americano

Obama e Hillary Clinton durante um debate, quando ainda disputavam a candidatura democrata à presidência

AFP PHOTO/FILES/GABRIEL BOUYS

32 • 26 Outubro 2008 • Pública

comunidades

Os quatro retalhos que serão decisivosNo site Patchwork Nation, o mapa dos EUA não é o vermelho ou azul dos dois grandes partidos. Há uma América com cores que se sobrepõem, estados com matizes, um país-caleidoscópio. A Pública serviu-se deste guia para explorar quatro comunidades-chave que podem decidir quem será o próximo Presidente.

Texto Maria João Guimarães nos EUA

Omapa americano começa, neste período eleitoral, a dividir-se em estados marcados em tons mais fortes de azul e vermelho, e outros a púrpura. Diferenças

para além da clássica oposição zonas urbanas/zonas rurais ficavam normalmente de fora. Dante Chinni quis mudar isso com o projecto Patchwork Nation (qualquer coisa como “nação-manta de retalhos”) em que cruzando uma série de estatísticas se chega a 11 comunidades-tipo da América num mapa dividido por condados.

“As pessoas tentam categorizar estados ou grandes regiões metropolitanas e sabemos que lhes estavam a escapar algumas subtilezas”, disse Chinni à Pública. “Ainda não as conse-guimos captar todas com o Patchwork, mas já vemos mais. Conseguimos ver diferenças dentro dos estados e dentro das grandes áreas metropolitanas.”

No site, Chinni, director do projecto e jor-nalista, explica que a ideia “tem como base a prova de que os padrões de votos são, pelo menos em parte, influenciados pelo local on-de vivem”. Assim, “pessoas da mesma raça e idade e situação familiar podem votar de modo diferente dependendo das pessoas com quem contactam e do que vêem nas ruas e nas suas

notícias locais”, prossegue. “Em algumas zo-nas, vivem para as corridas de carros, noutras, gostam de ópera. Algumas cidades começam a sua vida cedo e outras continuam até tarde. Algumas, só aos domingos de manhã à hora da missa, outras vêem-se a si próprias como um brunch de 30 dólares. E o Starbucks e Wall Mart não estão em todo o lado... ainda.”

As onze comunidades têm nomes diferentes, desde bastiões militares a metrópoles indus-triais, de centros de nação imigrante a ninhos que se esvaziam, de centros de minorias ao país de tractores, passando pelos campus uni-versitários e carreiras.

Mas não são estes os tipos de comunidades que Dante Chinni indicou, à Pública, que se-riam decisivas para estas eleições. O modo como vão votar os habitantes dos subúrbios endinheirados, cidades em crescimento, cen-tros de trabalhadores de serviços e epicentros evangélicos é que será de ter em conta.

“As comunidades-chave serão os centros de trabalhadores de serviços, cidades em cresci-mento [ambas votaram Bush mas por uma pe-quena margem] e os subúrbios endinheirados. Os subúrbios, em especial, são importantes porque têm um grande número de pessoas e estão muito divididos. A diferença de votos en-tre George Bush e John Kerry em 2004 foi abai-

xo de um por cento.” Os centros evangélicos também. “Foram território sólido para Bush, mas McCain tem tido grandes problemas aqui. Ainda não garantiu estes lugares, onde uma grande afluência às urnas foi essencial para a vitória de Bush na última eleição.”

Dante Chinni diz que o que o surpreendeu mais durante o processo de criação do projecto foi perceber melhor “quão grande e vasta é a América”. “Às vezes pensamos na nação como estando a tornar-se completamente homogénea — com toda a gente a ver as mesmas coisas, a comer nos mesmos sítios — mas quando se vê melhor percebe-se que ainda há muitas versões diferentes dos Estados Unidos.

No site, para além da acumulação de dados e retratos das diferentes comunidades, pode ver-se em que tipos de comunidades os candi-datos andam a fazer campanha, e há ainda dois blogues por cada tipo de comunidade onde os residentes expressam as suas opiniões sobre a campanha — e recentemente sobre a crise económica.

A Pública seguiu as indicações de Chinni para os locais-chave perto da zona da capital norte-americana e visitou um subúrbio endinheirado em Maryland, um epicentro evangélico e uma ci-dade em crescimento na Virgínia, e um centro de trabalhadores de serviços na Pensilvânia. c

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34 • 26 Outubro 2008 • Pública

Madison, VirgíniaEste país é de gente esperta, diz SusanO condado de Madison parece ter as suas es-tradas perdidas numa competição cerrada, tão cerrada como os números do estado da Virgínia: ao entrar na zona mais rural, os car-tazes de McCain-Palin que dominavam a via principal dão lugar a um número maior dos de Obama-Biden, num despique quase caden-ciado — um democrata, um republicano. Em Madison encontrámos um casal republicano numa venda de quintal, uma indecisa dona de uma loja na Main Street, e uma voluntária da campanha de Barack Obama. Todos a residir no condado há menos de três anos.

Madison é, estatisticamente, uma cidade em

crescimento. A viver mesmo na fronteira do condado, o casal Dotty Bradley e Frank Her-man garante que a mudança não tem gerado os problemas habituais: “Não há crime, não temos invasões de imigrantes”, explica Dotty com um sorriso, entre várias bancas de tralha da venda de quintal.

Ambos se mudaram para o sossego depois de anos mais perto de Washington, onde traba-lhavam — ela era funcionária da NASA (“Nunca fui ao espaço”, avança logo Dotty, a evitar mais perguntas) e ele era funcionário no Capitólio. Mas ao começar a falar de política e da actual campanha, ela suspira: “Espero que isto acabe depressa! E claro, gostava que a campanha fos-se mais digna.” Ele é ainda mais crítico: “Gas-tam muito dinheiro. Obama, por exemplo, tem feito aqui anúncios que nunca mais acabam. Está mesmo a tentar ganhar a Virgínia.” Algo

cabeça

que nenhum deles gostaria que acontecesse — votam McCain-Palin. “Gosto da história de vida do McCain, da sua experiência”, sublinha ela. “Gosto da sua ideia de governo pequeno, de menos impostos”, justifica ele.

E regressam para as arrumações da enor-me vivenda de quintal, que fica perto da casa da filha, de um lado, e da do filho, do outro, com um pequeno campo de futebol no meio. “Já vivemos em vários lugares, mas este é o final”, relata Dotty. “Vamos ficar aqui com os nossos filhos e netos: já são cinco, dos dois aos 17 anos.” Cresça Madison à taxa a que crescer, o casal e os filhos têm ali terreno com espaço suficiente.

Para se chegar a Madison passa-se por es-tradas que têm caixas de correio como vultos na berma, uma até está empoleirada em duas rodas de uma carroça, às vezes as caixas têm

Madison está em crescimento, mas ainda é muito rural: há bancas de maçãs e bandeiras em vedações

Pública • 26 Outubro 2008 • 35

ao lado uma bandeira americana, às vezes es-tão no final do caminho para a estrada, outras espreitam pelo meio das árvores que estão já com uma tonalidade de Outono, verde-verde mas também amarelo e, de repente, vermelho. Menos românticos são os animais pequenos e peludos que vão aparecendo atropelados à beira da estrada. Esta começa a estreitar-se mais para o interior do condado e pode acontecer que o trânsito se interrompa por momentos porque o motorista da carrinha da escola parou para trocar impressões com o condutor do camião do lixo.

Também a viver em Madison, mas do ou-tro lado da campanha política, está Barbara Flynn, 60 anos, que vive aqui há dois anos (antes vivia mais a sul no mesmo estado) e que decidiu este ano ser voluntária da campanha do democrata.

Tem havido uma série de mudanças na vi-da desta mulher pequena, de cabelo branco cortado curto: de casa, de comunidade, de entusiasmo político. É a primeira vez que é vo-luntária numa campanha, porque agora acha que pode “fazer a diferença”. Uma diferença que começa a notar-se neste condado: “Achava que seriam sobretudo republicanos, mas há muitos democratas”, nota.

Chegando à cidade de Madison propriamen-te dita, enfim, ela não é mais do que uma rua. Uma rua que vem a seguir a um daqueles par-ques com bomba de gasolina, cadeias de lojas de comida e lojas de conveniência, e a um grande McDonald’s.

Na rua que é a cidade, está a loja Your Last Nickel. Para Susan Bernhardt, a dona, o cres-cimento de Madison ainda não está a ser su-ficiente. “No condado sim, na cidade não.” Bernhardt mudou-se para esta zona depois de ter passado a vida a andar de um lado pa-ra o outro — “família de militar”. O pai esteve pela última vez em serviço na Virgínia e Su-san acabou por decidir viver em Madison, um “sítio lindo”.

Lindo e ainda muito rural: há um veteri-nário especializado em vacas e cavalos, ou uma banca de abóboras e maçãs onde o pro-prietário deixou uma balança e sacos, com a frase: “Cumpram o sistema quando não es-tiver ninguém.” Um casal chega e serve-se, pesando fruta e legumes, e deixa o dinheiro na banca.

“Uma coisa é certa”, continua Susan Ber-nhardt. “Quem ganhar, quem quer que seja, vai ter tanto trabalho... Os bancos, a saúde, a segurança social... tudo!” Vai votar? “Claro”, responde, quase indignada perante a ideia de não o fazer. “Mas estou indecisa. Ainda tenho tempo para escolher.” E ao que é que vai estar atenta na sua decisão? “Vou ver que tipos de políticas vão saindo dos dois lados.”

Pequena empresária, Susan é afectada pela crise económica. “As pessoas consomem me-nos, nós vendemos menos, criamos menos emprego, cria-se um ciclo vicioso. Não há nada que nós, os pequenos como nós, possamos fa-

zer — é esperar que passe”, diz. Mas ela é tudo menos pessimista. “Somos um país cheio de gente esperta. Acho que conseguimos dar a volta a isto”, diz, num tom combativo. “Sabe que mais? Se calhar já era tempo de isto acon-tecer. E talvez daqui a dez anos digamos que foi o melhor que nos aconteceu.”

Culpeper, VirginiaMorton e Brown vão rezar por quem ganharEm Culpeper há um grupo que se junta para rezar: todos juntos, acreditam ter “a força de um raio laser” — e acham que estão a trans-formar a comunidade. Virginia Morton é uma delas, o reverendo Ludwell Brown é outra. Ela ruiva, ele negro, juntam-se e falam de re-conciliação entre brancos e afro-americanos (afinal, lembram, Culpeper foi “o epicentro da guerra civil”), da aproximação entre as suas igrejas e da importância da religião na comunidade.

Num encontro num café em Culpeper, en-quanto os dois falam de Deus, há pessoas com computadores portáteis, que trabalham perto de Washington e podem fazer trabalho à dis-tância alguns dias por semana e que, debru-çadas sobre os teclados, vão continuando as suas tarefas enquanto comem a sopa do dia, de vegetais com rosmaninho, feitas com pro-dutos de agricultores da região. Culpeper é ainda rural, mas tem crescido muito: estima-se que 60 por cento dos habitantes trabalhem na zona da capital, a cerca de duas horas de distância.

Virginia Morton, magra, com gestos mais rápidos, conta que começou a participar no grupo de oração conjunta “por egoísmo”: “Soube que estavam a rezar para que o meu livro, Marching Through Culpeper, fosse trans-formado num filme — e assim, transformaram a minha vida.” O livro conta a guerra civil na perspectiva de uma jovem mulher em Culpe-per, “o condado por onde marcharam mais tropas durante a guerra civil, um dos mais destruídos” (e ainda não foi adaptado ao cine-ma). Virginia Morton também participa num grupo de pessoas por todo o país que reza em videoconferência, “para ajudar a sarar o coração da América”.

Virginia mora em Culpeper há 39 anos — exactamente ao mesmo tempo que o re-verendo Brown, descobrem agora os dois, e espantam-se pela coincidência.

Ludwell Brown, tom de voz e entoação de pastor, tem passado militar — “estive 32 anos no Exército” — e veio para Culpeper por causa da sua mulher. “É um dos melhores condados para se viver”, diz Brown. Morton acrescenta que é “o berço da liberdade religiosa”: foi uma lei com origem neste condado, adoptada pelo estado da Virgínia, que deu origem à pri-

Cidades em crescimentoHá 160 condados destes nos EUA, com 38,5 milhões de habitantes. Em geral, os residentes nas cidades em crescimento, pequenas localidades que se estão a transformar, estão bem economicamente, mas começam a ter cada vez mais habitantes com trabalhos menos qualificados e com vencimentos reduzidos — e um aumento nas minorias. As cidades em crescimento votaram em George W. Bush em 2004 por uma pequena margem.

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Culpeper: “Não queremos dependerdo Governo, queremos depender de Deus”

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meira emenda da Constituição americana, que fala da liberdade religiosa e de expressão.

Até agora, sobre política, Virginia disse ape-nas: “Não queremos depender do Governo, queremos depender de Deus.” E ainda: “Não interessa quem for eleito, vamos rezar por ele, pois terá de passar por muito.”

A curiosidade começa a aumentar. Em que votarão estas duas pessoas? Perante a per-gunta, Brown lá acaba por dizer: “Vou votar Obama por várias razões. Ele fala no dinheiro mal gasto no Iraque — na bolsa de Bagdad eles estão a ganhar muito! — e acho que é tempo para a mudança de que ele fala. Antes achava que o líder devia vir de West Point [academia militar], agora acho que deve vir de Harvard ou Yale.”

Já Virginia começa por advertir: “Não es-tou entusiasmada com nenhum dos candi-datos.” Essencial, para ela, era “uma forma mais limitada de governo”. Mas, como acha que “McCain tem um melhor entendimento de política externa” e a sua parceira no ticket(boletim de voto), Sarah Palin, “tem uma fé e empenho na família admiráveis”, já escolheu os republicanos.

“Não é nada racial”, apressa-se a explicar, dirigindo-se especialmente ao reverendo Bro-wn. Ele acena, “certo”, diz. Não há o mínimo de animosidade aparente ou vontade de dis-cutir entre os dois. O reverendo conclui: “Es-tamos em lados diferentes mas somos amigos. Isso é a beleza da América.”

Culpeper, pelo menos nos sinais que se vê-em nos quintais das casas, está bastante dividi-da. É um local tendencialmente conservador, mas Obama parece ter um grupo alargado de fãs por aqui, com um gabinete de campanha na cidade — o primeiro desde a campanha de J.F.K. nos anos 1960. O candidato democrata é também o preferido da dona do café Raven’s Nest, Jessica Hall, que vai à mesma igreja que Virginia Morton — não parece que os evangé-licos de Culpeper sejam um bloco a votar em McCain-Palin.

E isso é algo que desagrada a Gary Close, que é o delegado do Ministério Público da cidade e responsável pela campanha de Mc-Cain. “Ainda não posso acreditar que estamos sequer a considerar eleger alguém com um

passado tão assustador — ele mal viveu como americano”, diz Close, numa alusão a Obama. O republicano nega que se esteja a referir à cor de pele: “Ele viveu na Indonésia”, declara simplesmente.

“Na actual situação internacional, com dois tipos como Putin e Adine... Ahmajine...” — Ah-madinejad? — “Sim, esse, dois tipos como esses não vão meter-se com John McCain. Mas vão ver até onde conseguem ir com Obama.”

Como cristão evangélico, Close, que tem um ar muito bonacheirão e vai dizendo tudo isto sem se exaltar, também se preocupa com os democratas defenderem “um tipo de socieda-de mais secular — sem ofensa, mais europeia”. Em Culpeper, por exemplo, há pessoas a lutar contra esta tendência, e apesar de haver na comunidade muitas escolas religiosas, optam por ensinar os filhos em casa. “Se todas as crianças que estão a ser ensinadas em casa nesta comunidade fossem para a escola, pre-cisaríamos de uma escola para todas elas”, nota Gary Close.

“Esta continua a ser uma cidade do Sul, dá valor às relações interpessoais, à civilidade, tem respeito pela sua História e tem-se man-tido assim.”

Wilkes-Barre, PensilvâniaDebbie não sabe como vai pagar as contasNas ruas cinzentas de Wilkes-Barre (Pensilvâ-nia), vêem-se muitas pessoas, mas poucos pa-recem viver aqui: vêm para trabalhar, vender ou estudar. Também são muito poucos os que parecem já ter escolhido um candidato — e há quem diga mesmo que nem sequer vai votar. Wilkes-Barre é uma zona sem muito dinheiro, taciturna, deprimida e um pouco deprimente. É a cidade gémea de Scranton, de onde é o candidato democrata a vice-presidente Joe Biden, e onde se passa a versão americana da série de televisão The Office.

Na praça central da cidade está Debbie Lu-dden, um dos exemplos perfeitos da classe média que se tornou baixa. É mãe de quatro filhos, um deles autista, e divide a vida entre o trabalho de casa, os filhos e a luta pela inves-tigação sobre o autismo. Divorciada, diz que há muito está habituada a poupar mas nunca se viu numa situação como esta. “Ainda hoje paguei as contas do mês e não faço ideia co-mo vou pagar o aquecimento deste Inverno”, lamenta. “Já decidi que não o vou ligar, pelo menos até Novembro, e estou a planear usar a lareira. Ainda devo 150 dólares da conta do mês passado.”

Karen McCabe, que é gerente numa loja de donuts, conta que está a tentar arranjar um segundo trabalho em part-time para lhe per-mitir ir além do paycheck-to-paycheck, o que quer dizer gastar o dinheiro todo do ordenado

até chegar o outro. Karen esconde a sweat-shirt rota com um casaco largueirão enquanto espera um autocarro para casa — também já fora de Wilkes-Barre. “Tenho dois filhos, dois adolescentes, que querem ir para a faculdade. O meu marido trabalha, mas só em part-time,e começamos a precisar de mais dinheiro para eles poderem estudar.”

Já não é a primeira vez que Karen trabalha em dois empregos. “Estou à procura de algu-ma coisa que seja três horas por dia. Trabalho oito nos donuts; por isso trabalharia outras três. Mais não pode ser porque os meus fi-lhos são adolescentes, há que estar alguém por perto.”

Karen revela ainda que, na família, apenas o filho tem seguro de saúde. “Dão-lhe no tra-balho. Como podemos ter seguro? É mais do que uma renda de casa”, queixa-se.

A economia favorece os democratas e por isso seria de esperar que Debbie e Karen votas-sem democrata. Mas não. Estão ambas indeci-sas, como muitas outras pessoas nesta cidade de casas descaracterizadas, onde parece que, prédio sim, prédio não, há um lote para esta-cionamento, e em cada quarteirão surge uma loja com aspecto de já ter fechado há anos.

Debbie gostava que a sua situação económi-ca desse uma volta. “Mas não tenho a certeza se vou votar democrata para isso. Ainda es-tou a decidir. As coisas mudam até ao último momento.”

Karen não acredita que “qualquer um deles [dos candidatos] consiga fazer o que prome-teu”. “Normalmente, por esta altura, já sei em quem votar.” Mas desta vez não. “Estou regis-tada como democrata. Mas não sei se Obama tem experiência suficiente para chegar lá e fazer o que diz.”

Debbie confessa que, apesar de não gostar “nada” de John McCain, a candidata a vice do partido republicano merece a sua simpatia. “Sarah Palin é interessante para mim. Eu era enfermeira e tinha um estilo de vida acelera-do, revejo-me na figura dela, uma mãe de uma criança com necessidades especiais.”

Os seus filhos registaram-se como democra-tas e é assim que deverão votar, menos um. “O meu filho com 20 anos, autista, diz que não vai votar este ano. Nenhum candidato lhe agrada.”

No centro de Wilkes-Barre (há quem pro-nuncie “wilkes-barry” ou “wilks-barr”), há uma praça que, como muitas outras, junta muitos reformados e grupos de jovens com bonés a falar demasiado alto. Ali estão dois amigos que vão votar pela primeira vez este ano. Walter Eaton, 19 anos, e Kirk Rily, 20, esperam um autocarro. Kirk, de boné ver-de-azeitona e barba, está a tentar encontrar trabalho numa empresa de computadores; Walter, T-shirt dos Ramones e corte de cabelo a condizer, estuda Biologia na universidade local. Ambos vão votar. “Eu McCain”, diz Ki-rk. “Eu Obama”, diz Walter. Kirk começa por explicar: “Acho que o Obama não está a

Epicentros evangélicosCom 27 milhões de habitantes em 564 condados, são lugares com maior proporção de evangélicos do que a média nacional. Normalmente pequenas cidades ou subúrbios, têm uma maioria de famílias jovens. Foram um bastião de Bush em 2004, mas McCain, apesar de ter escolhido Palin para vice, ainda não conseguiu garantir um voto entusiasta nestes locais.

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par de tudo e vai tremer, vai gaguejar. Além disso, ele não nasceu nos EUA.” “Claro que nasceu”, contrapõe Walter. “O Havai é um estado, man!”, exclama, antes de dizer por que é que ele vai votar Obama: “Gosto das ideias dele, do sistema de saúde, de criação de empregos, de deixar a dependência do pe-tróleo estrangeiro. Coisas dessas.”

Mas, apesar das divergências, os dois con-tinuam amigos, a esperar juntos o autocar-ro e a jogar bowling. “Nem nunca falamos de política.”

Na Main Street, de repente, de um dos pré-dios que parecem abandonados, sai um ho-mem com manchas nas mãos e na roupa. É o canalizador Joseph Jackamovicz, que viveu “toda a vida” na área de Wilkes-Barre (mas

mora a cinco quilómetros da cidade). Jacka-movicz diz que a situação económica não está a afectar o seu negócio e a crise não o incomo-da — “não jogo na bolsa”, dispara, a boca com poucos dentes. A conversa foi no dia seguinte ao último debate, e Joseph não sabia ainda que Obama e McCain tinham falado muito da figura de Joe the Plumber. “Podia ser eu!”, espanta-se. Mas este canalizador diz também que, este ano, não vai votar. “Não estou para me chatear. Não gosto de nenhum deles.”

Bethesda, MarylandAqui não há donas de casa desesperadasO subúrbio endinheirado de Bethesda, Ma-ryland, não é bem o subúrbio de séries de televisão como Donas de Casa Desesperadas ou Erva. Em Bethesda há prédios altos, embora com rendas caras, o ambiente é mais urbano, mais cosmopolita — diz-se que tem a maior concentração de restaurantes internacionais da zona — mas entrando no bairro de Chevy Chase, a rua de casas espaçosas com jardins e árvores frondosas está tão sossegada que o barulho de um esquilo a roer um fruto seco parece altíssimo.

Garret Huntress viveu toda a vida aqui em Bethesda mas, “por razões ambientais”, está a mudar para Washington: “Não quero ir de carro para o trabalho, quero viver mais perto do emprego.” Huntress, informático num la-

boratório científico, tem 26 anos e é um dos muitos democratas desta zona, considerada mais liberal. Sentado num banco ao sol de Outono, diz: “Vou votar Obama. Sempre que vem uma eleição tentamos alguém novo... Mas não temos conseguido mudar.”

A política externa da América é, para ele, “uma vergonha”. “A seguir ao 11 de Setem-bro foi uma loucura. Mas já é tempo de parar e olhar as coisas com calma”, afirma Hun-tress.

Quanto à economia, o informático não acha que a culpa do estado actual seja apenas do actual Governo, mas constata: “Este só agiu quando já era uma questão com uma enorme dimensão. Devia ter agido mais cedo. A ad-ministração Bush passou demasiado tempo a olhar para fora e descurou o que se passava cá dentro.”

Mas mesmo com discursos mais ou menos apaixonados dos seus residentes, chegando a esta zona rica parece que a campanha abran-dou. Quase não há sinais nos pátios com ca-deiras de baloiço e jipes em frente à garagem. Não se vê ninguém com pins na lapela. Isto até que, de repente, aparece John Midlen, com um crachá McCain-Palin na camisola XL.

O reformado, que tem ainda investimen-tos em propriedades (no bairro de Georgeto-wn, em Washington, e a salvo, portanto, de qualquer crise no mercado imobiliário, “a não ser que o mundo acabe”), diz que não se vê campanha “porque as pessoas partem do princípio de que esta zona vai ser ganha

cabeça

Centro de trabalhadores de serviçosSão 278 condados com 12 milhões de habitantes. São cidades médias ou pequenas que oferecem serviços, sejam oficinas ou postos de saúde, ou ainda centros turísticos com lojas e hotéis. Têm populações envelhecidas comparadas com a média nacional, e rendimentos, em média, também mais baixos. Votaram em Bush, mas não por muito, em 2004.

Cupões para comprar comida. Wilkes-Barre viu empobrecer a classe média

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pelos democratas”. Ele acha que “não vai ser bem assim”, embora admita mais tarde que no seu bairro a proporção de democratas para republicanos é de “3 para 1”.

John Midlen explica o seu voto em partes. Pró-McCain: “As suas ideias para resolução da guerra no Iraque são correctas.” Anti-Oba-ma: “Ele é um socialista que quer distribuir a riqueza.” Pró-Palin: “É maravilhosa, é uma lufada de ar fresco, conseguiu mostrar que uma hockey mom [mãe que leva os filhos ao hóquei, termo usado para descrever mulheres comuns, dedicadas à família] pode conseguir coisas fenomenais.”

Midlen, que vive em Bethesda desde 1974, altura em que ainda votava democrata. “Mu-dei para o Reagan [nas eleições de 1980] e desde então voto republicano.”

A andar na rua de calções e boné, Ronald Connor diz que apenas mora nesta zona, “cada vez mais rica e sofisticada”, porque herdou uma casa. Connor acabou de sair da missa — é um pároco anglicano — e vai votar republica-no, como fez a vida toda — excepto, confessa com um ar embaraçado, quando votou em Hubert Humphrey, que perdeu para Richard Nixon em 1968. “Desde então os candidatos democratas têm sido cada vez mais tolos”, acrescenta, sorrindo. Mas Connor prefere falar desta eleição, e para explicar por que vota em McCain exemplifica porque é que não gosta de

Obama: “É uma criação dos media, e incompe-tente.” Além disso, defende “um comunismo europeu desvalorizado”. E, por último, “é uma imagem ambulante — tenta passar por algo que não é: a gravata está demasiado apertada, os sapatos também, há algo ali que não está bem”. Já McCain “não é suave, é irreverente: é o meu estilo de autêntico”, conclui.

Numa conversa animada em frente ao “clu-be dos escritores” de Bethesda está um grupo de improvisação de teatro. A primeira coisa que dizem é em quem vão votar: “Obama, Obama, Obama!”, repetem. Atropelam-se pa-ra dizer porquê. Towuanda Underdue quei-xa-se da má fama que os Estados Unidos têm

no mundo. “Como americanos, não temos boa reputação. Temos medo de ir a certos países.”

“Sinto-me culpado por associação”, acres-centa Steven Mumford, cabelo louro pentea-do-despenteado, olhos azuis com uns peque-nos óculos redondos de aros de tartaruga. E começam a atirar pedras a Bush: “Roubou a eleição — os registos vão dizer que a vitória foi ilegítima”; “a seguir ao 11 de Setembro foi atrás de Saddam, como se quisesse terminar o que o pai começou”; “não agiu depressa quando foi o [furacão] Katrina”, enfim, “há tantas coisas a dizer que dava para encher o jornal”, conclui Vanessa Richardson, a entrar na conversa sobre política, o seu assunto pre-ferido — depois do teatro, claro.

De resto, o grupo mostra algum nervosis-mo: “Queremos que Obama ganhe, mas te-mos medo do que possa acontecer”, admite Towuanda. “Não queremos voltar a 2000”, sublinha Vanessa, “a eleição que Bush rou-bou”.

E se voltar a haver uma corrida cerrada com suspeitas de irregularidades e o Supre-mo decidir a favor de John McCain? “Vai haver motins”, assegura Towuanda, a única negra do grupo. “Eu entro num motim”, promete Vanessa, perante o espanto de Towuanda. “Um motim a sério. O que aconteceu em 2000 não pode voltar a acontecer.” a

Subúrbios endinheiradosSão a maior e mais rica comunidade entre as 11 do projecto Patchwork Nation, com 304 condados e mais de 84 milhões de pessoas. O grupo é, além de mais rico do que a média nacional, bastante mais jovem e com mais formação universitária. Em 2004 foi o grupo que menos diferença teve entre Kerry e Bush (49,6 para o primeiro, 49,4 para o segundo).

Bethesda não é bem o cenário de Donas de Casa Desesperadas,mas é parecido

BR

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40 • 26 Outubro 2008 • Pública

“Interesses do mundo” ou um “mundo americano”?

C sair vitoriosos. Podem não ter o mesmo plano para lidar com o Irão, mas farão tudo para evitar que o regime ira-niano adquira armas nucleares. Israel continuará a ser o principal aliado no Médio Oriente. A China e a Rússia serão os principais rivais estratégicos. A Aliança Atlântica continuará a ser importante e a Austrália, o Japão e a Índia serão os principais parceiros na Ásia. Todas as deci-sões a tomar visarão um único objectivo: a renovação da liderança dos Estados Unidos. O próximo Presidente dos Estados Unidos irá defender os interesses norte-america-nos e não os “interesses do mundo”.

Podemos, contudo, perguntar: será o mundo mais receptivo aos interesses norte-americanos do que foi nos últimos oito anos? Durante as Presidências de Bush, quase todo o mundo, de Moscovo a Pequim, de Caracas a Teerão, atacou a “hegemonia americana” e defendeu um “mundo multipolar”. Claramente, os “interesses do mundo” não corresponderam aos interesses norte-ame-ricanos. E a verdade é que Bush foi, paradoxalmente, um “óptimo” Presidente para os interesses de grande parte do mundo. A China e a Rússia aumentaram o seu poder, tornando o mundo menos hegemónico e mais multipolar, o Irão expandiu a sua influência no Médio Oriente e até a Venezuela se tornou numa potência regional que exporta revoluções. Certamente que os líderes destes países esta-rão, mais uma vez, aborrecidos com a democracia ameri-cana. O ideal seria Bush continuar, durante muito tempo, no poder.

Para os “multipolaristas”, a chegada de um Presidente que consiga convencer que os interesses dos Estados Unidos são os “interesses do mundo” será a pior das situações. Pelas sondagens que se vão fazendo no “resto do mundo” (esse grande “estado” democrata e anti-repu-blicano), é seguro que Obama será o candidato ideal para “americanizar” os “interesses do mundo”. Se Obama

ganhar no dia 4 de Novembro, por todo o mundo mui-tos vão dizer ou pensar: “Somos todos americanos.” Obama responderá que entende bem os “interesses do mundo”. Um dia, percebe-se que, afinal, Obama é um “Presidente americano” e que, no mundo, há muito menos “americanos” do que no dia 4 de Novembro. Os “interesses do mundo” voltarão a ser substituídos pelos interesses americanos. E a polí-

tica voltará a ocupar o lugar dos dese-jos. Nessa altura é que se verá quem é que apoia, verdadeiramente, o

Presidente Obama. a

Analista político e académico

opinião

João Marques de Almeida

onfesso que o PÚBLICO me surpreen-deu. Depois de oito anos de Bush que transformaram o nosso globo num “mundo antiamericano”, ainda há quem acredite na liderança americana. Só quem pertence a esta minoria de crentes é que me pode perguntar, como fez o PÚBLICO, “qual o candidato [norte-americano] que serve melhor os interesses do mundo?” O pressuposto é, obviamente, que muito do de bom ou de mau que se passa no mundo depende de quem governa os Estados Unidos.

O desafio do PÚBLICO levanta ainda outra questão: há “interesses do mundo”? A um nível abstracto, todos que-rem, por exemplo, paz, segurança, prosperidade e jus-tiça. Mas a verdadeira questão não é o que aspiramos em geral, mas o que pretendemos hoje, de acordo com a rea-lidade actual. Será que todos querem a paz, a segurança, a prosperidade e a justiça que existem hoje? Há quem queira, há quem queira mais ou menos e há quem não queira. Antes de chegarmos aos “interesses do mundo”, temos de pensar nos interesses de cada país. O primeiro interesse de Washington é manter a sua liderança no sis-tema político internacional. Desde o actual Presidente aos dois candidatos, todos estão de acordo. Nas coisas essen-ciais, como o poder e a liderança, nenhum Presidente norte-americano se engana na ordem das prioridades. A grande diferença será a estratégia e a táctica para manter o poder e renovar a liderança.

Há uma diferença maior entre o actual Presidente e os dois candidatos do que aquela que existe entre Obama e McCain. O que mudou, de um modo significativo, nos últimos quatro anos foi a percepção de que os america-nos têm do seu poder e da sua liderança. Ambos os aspirantes à Casa Branca sabem que os Estados Unidos perderam capacidade e influência nos últimos anos. Vão ter de ajustar a sua estratégia política a esta nova realidade. Serão mais multilateralistas e menos unilateralistas, falarão mais e ouvirão melhor os alia-dos, usarão mais a diplomacia do que a força militar. As diferenças entre eles serão mais de detalhe do que de substância.

Em relação ao Iraque, podem estar em desacordo quanto ao ano da retirada, mas ambos vão querer

A verdade é que Bush foi, paradoxal-mente, um “óptimo” Presidente para os interesses de grande parte do mundo

42 • 26 Outubro 2008 • Pública

Luxembur

México

Brasil

Canadá

Estados Unidos

103

45.725

6.937

43.674

13.807

1.022

1.313

1.436

PIB em milhares de milhões de dólares

Ranking das mega-cidades do mundo (2007)

PIB per capita em dólares (2007)

Gastos em defesa(em milhares de milhões de dólares - 2007)

2

3

8

9

Boston–NovaIorque–Washington

Toronto, Buffalo,Rochester

Chicago, DetroitCleveland, Pittsburgh

Londres, Leeds, MancLiverpool, Birmin

12 P

Charlotte, Atlanta

Southern California

14 San Francisco,Silicon Valley

15 Miami, Orlando,Tampa

20 Cidade do México

21 Portland, Seattle,Vancouver

22

28

Rio-S. Paulo

Lisboa 33

18 19Dallas, AustinHouston,

New Orleans

Buenos Aires

Um mundo multipolarOs EUA continuam a liderar o mundo em termosmilitares, económicos e científicos, mas a UniãoEuropeia,o Japão e os BRIC (Brasil, Rússia, Índiae China) disputam a liderança em muitas áreas

547

R

53,6

França

15,3

15,2

FONTES: FMI; OCDE; CNPq; Airports Council International; World Database of Happiness; Observatoire européen de láudiovisuel; WIPO; Fundação Nobel; Academic Ranking of World Universities; Institute of Higher Education;

Cinema - filmes produzidos por ano(Últimos dados disponíveis: 2005, 2006 ou 2007)

Aeroportos (tráfego total)Milhões de passageiros/ano

Universidades(as melhores 101 em 2008)

PatentesEm 2006

Austrália4.163

Japão217.364

EUA154.760

EU132.921

Coreia102.633

China26.292

Rússia19.641

Canadá7.533

Austrália

Brasil

México

Argentina

China

Japão

EUA

UE

Índia

22

51

53

80

402

407

521

921

1091

Rússia

Noruega

Israel

Austrália

Suíça

Canadá

Japão

UE

EUA

6

29

54

1

1

1

2

3

4

Rússia

Japão

China

França

Brasil

Reino Unido

Alemanha

EUA

Holanda

México

Finlândia

Islândia

Áustria

Suíça

Dinamarca

Felicidade Interna Bruta(Bem-estar)

Muito feliz (10)(0) Muito infeliz

4,4

6,2

6,3

6,5

6,8

7,1

7,2

7,4

7,5

7,6

7,7

7,8

8,0

8,1

8,2 Madrid52

Pequim54

Frankfurt54

Dallas60

Paris60

LosAngeles62

Tóquio67

Londres68

Chicago76

Atlanta89

Pública • 26 Outubro 2008 • 43

Qatar

Noruega

burgo

Indonésia

Turquia

Austrália

Coreiado Sul

Índia

Rússia

China

JapãoUnião Europeia

38.861

103.124

78.754

951.557

43.163

2.483

34.296

9.074

83.484

14.753

659

1.100

969

432

908

1.289

4.381

3.280 1

4

5

6

7

AmesterdãoBruxelas, Antuérpia

Grande Tóquio

Osaka, Nagoya16Fukuyama,Kyushu

Manchester,Birmingham

Roma, Milão,Turim11

17

Barcelona, Lyon

Paris

13

Seoul-San

10

Frankfurt, Stuttgart,Mannheim

Viena

23

24

Telavive,Amã, Beirute

25

3

Hong Kong,Shenzhen

31Xangai, Nanjing,Hangzhou

34Pequim

35 Nova Deli, Lahore

38

40

Singapura

Banguecoque

24 Sapporo

59,7

R. Unido

43,6

36,935,4

Alemanha

33,8

Arábia Saudita

24,2

33,1

Itália

14,6

15,1

58,3Espanha

22,6

11,6

10,8

8,9

4,1

3,0

3,0

2,9

2,6

2,3

2,1

1,75 1,7 1,3

1,3

Japão

EUA

China

6,2

Alemanha

Coreia do Sul

França

Brasil

Espanha

Canadá

Índia

México

R. Unido Rússia Tailândia

Itália

Produção automóvelEm milhões de unidades/ano (2007)

cation; “ The rise of the mega region”, Richard Florida, Tim Gulden e Charlotta Mellander (Out. 2007); CIA - The Factbook; OICA

Investimentoem IDMihões de PPP correntes em 2007

CanadáTaiwan

Coreia

China

Rússia

Japão

UE

EUA

35.885,823.838,9

86.758,2

20 154,9

16.552,9

138.782,1

242.815,6

343.747,5

Prémios Nobel

Ch

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Jap

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EU

A

489916172225

309

UE

434

44 • 26 Outubro 2008 • Pública

á é um lugar-comum dizer que o novo Presidente dos Estados Uni-dos irá herdar a liderança da úni-ca superpotência planetária num mundo que é, paradoxalmente, cada vez mais multipolar. Como se coadunam estes dois concei-

tos: “única superpotência” e “mundo mul-tipolar”?

Durante décadas os Estados Unidos foram líderes incontestados na economia e na tecno-logia e líderes igualmente — mas contestados — na capacidade militar e na influência geo-política. Foi o tempo da guerra fria, quando o mundo político se distribuía entre dois pólos opostos e aceitava um equilíbrio de terror que tinha como cúmulo o poder nuclear. A disso-lução da União Soviética, o amadurecimento e alargamento da União Europeia, o crescimen-to da China e das outras grandes economias emergentes — o chamado grupo BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) — deram origem a novos pólos de poder que, se ainda não ultrapassa-ram os Estados Unidos, dão sinais de o ir fazer em breve em muitos domínios, tais são as suas taxas de crescimento. Para ter uma ideia desse crescimento basta saber que, nos primeiros seis anos desde que surgiu a expressão BRIC (de 2001 a 2007), o mercado de acções do Bra-sil cresceu 369 por cento, o da Índia 499 por cento, o da Rússia 630 por cento e o da China 201 por cento. Em 2050, segundo previsões da Goldman Sachs, as seis maiores economias do Mundo serão, por ordem, a China, os EUA, a Índia, seguidos a grande distância do Japão, Brasil e Rússia (o estudo da Goldman Sachs considera as economias da União Europeia de-sagregadas por países e não em bloco). Resta lembrar que, quando o PIB da China igualar o dos EUA, o seu PIB per capita será um quarto do dos americanos.

Como se situam actualmente os EUA neste mundo que já chamamos “multipolar”? Na maioria das áreas, mantendo uma liderança clara: na economia, nas finanças, no poderio militar, na educação superior, na investigação. O que acontece é que os países que ocupam os lugares seguintes não se encontram hoje tão distantes, nalguns casos mostram taxas

de crescimento muito superiores às do líder e possuem um poder combinado superior ao dos EUA. Num mundo onde a UE, a Rússia e a China constituíam blocos irreconciliáveis isso era menos relevante; num mundo cimentado pela globalização do comércio e das comuni-cações o facto conta de outra forma. E a União Europeia, só por si, globalmente considerada, já aparece nos rankings à frente dos EUA em domínios como o PIB ou o número de pré-mios Nobel.

O mundo multipolar de hoje é um mundo onde os EUA ainda são líderes mas onde a superpotência tem de dialogar, de negociar, de cooperar. Onde está então a marca da su-perpotência? Antes de mais, no poder militar: 45% da despesa militar do mundo é feita por Washington. E a despesa traduz-se numa eficá-cia que é várias ordens de grandeza superior à dos seus concorrentes. A “projecção” dessa força militar é incomparável com a de outros países: os EUA gostam de referir que a super-fície total de aterragem dos seus porta-aviões é superior a 300.000 metros quadrados. O resto do mundo reunido tem 60.000 metros quadrados.

Um trabalho que chamou a atenção de for-ma clara para a multipolaridade do mundo actual foi o famoso estudo das megacidades ou mega-regiões realizado pelo urbanista ame-

ricano Richard Florida.Usando a medição das zonas da terra que,

vistas do espaço, exibem uma luminosidade contínua e avaliando o peso dessas regiões através de factores como o seu produto, popu-lação, e indicadores de inovação tecnológica e produção científica, Florida identificou 40 regiões que reúnem 18 por cento da popu-lação mundial mas que representam 66 por cento da produção económica e 85 por cento da inovação científica e tecnológica.

A primeira dessas regiões não está nos EUA: é Tóquio. No top ten há 4 regiões americanas, 2 asiáticas ( japonesas) e 4 europeias (todas da UE). No top 40 há 12 regiões norte-america-nas (EUA e Canadá), 12 asiáticas (China, Índia, Japão, Coreia, Taiwan, Singapura, Tailândia), 1 no Médio Oriente (Telavive), 12 europeias (todas da UE), 3 latino-americanas (Brasil, Ar-gentina, México).

O indicador de Richard Florida é interessan-te — apesar de ser incessantemente atacado por razões metodológicas, políticas e outras — porque, a par de dados duros, integra facto-res culturais como a tolerância, diversidade e a inclusão social — factores que, afirma Florida, promovem a criatividade. Mas é principalmen-te importante por ter mostrado de uma forma graficamente clara algo que todos sabíamos mas que era necessário provar: que existem actualmente no mundo muitos pólos de cria-tividade e actividade económica fervilhante, que possuem as condições objectivas e a massa crítica necessárias para constituírem pólos de atracção de direito próprio.

Fazer rankings é sempre uma tarefa arris-cada. Há inúmeras formas de quantificar a dimensão de uma empresa, por exemplo, e mesmo as fontes mais idóneas contradi-zem-se com frequência. Mas o risco mais co-mum é o de utilizarmos indicadores feridos de parcialidade, etnocêntricos, demasiado ocidentais. As mega-regiões de Florida, iden-tificadas antes de mais pela sua emissão lu-minosa, possuem pelo menos essa âncora na realidade. Quem tiver dúvidas na existência deste mundo multipolar, não tem mais que ir para o espaço e olhar para a face nocturna da Terra. a

um mundo multipolar

A superpotência tem de negociarTexto José Vítor Malheiros

Quem tiver dúvidas não tem mais que ir para o espaço e olhar para a face nocturna da Terra

O efeito Obama

D que valoriza a diplomacia e o multilateralismo. São pois de esperar mudanças de vulto no dossier do Irão de uma participação americana de alto nível nas negociações. A prometida retirada do Iraque é também importante para diminuir as tensões na região e obrigar os políticos iraquianos a procurar os compromissos internos necessá-rios à reconciliação. No Iraque, como diz Obama, já não há vitória possível porque a tragédia humana já teve lugar. Mais problemática é a defesa de uma solução militar no Afeganistão. A maioria dos especialistas e um número crescente de políticos e responsáveis militares, inclusive americanos, consideram que a solução definitiva do con-flito tem de ser política. É preciso falar com os talibãs, e envolver os países vizinhos, o Paquistão e o Irão, tirando também partido da disponibilidade da Índia. Quanto à questão palestina, Obama não tem sido muito claro e chegou a defender a indivisibilidade de Jerusalém. Retó-rica de campanha, talvez, mas sobre a qual não é possível construir a paz. Em muitos temas, como as crises humani-tárias, a crise financeira ou o meio ambiente, Obama tem posições próximas das europeias. Mas não noutras, como seja a possibilidade de um muito maior envolvimento europeu num esforço militar suplementar no Afeganis-tão.

O mundo que o novo presidente americano irá encon-trar é bem diferente do que deixou Clinton. Nos anos ’90, o mundo era ainda antes de tudo ocidental e a solução das crises dependia do bom entendimento transatlântico. Em menos de dez anos, tornou-se evidente que para resolver os problemas do mundo e as crises regionais são precisas novas potências como a China e a Índia e uma Rússia mais afirmativa.

A estratégia de Clinton era a da hegemonia benigna; a de Obama terá de ser a de assentar as estruturas de uma governançao global, como tem preconizado a União

Europeia, capazes de envolver as outras potências num esforço comum. A provável eleição de Obama abre uma enorme oportunidade para concretizar os objectivos internacionais da política europeia. É tempo de a União Europeia definir o que espera do novo Presidente dos Estados Unidos. Talvez

isso não seja indiferente ao rumo futuro da política americana. a

Director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia

opinião

Álvaro Vasconcelos

os vários défices legados pela Administra-ção Bush, o mais grave é a queda do poder de atracção em relação a outros pontos do globo. Os Estados Unidos passaram a ser olhados como uma nação arrogante, que privilegia a força sobre o direito e despreza o consenso e, talvez mais grave, como uma nação em guerra não com o terror, mas com o Islão. Sondagem após sondagem, é esta a imagem que se acentua desde 2003. Não mais a de cam-peã do multilateralismo, da democracia e da liberdade, mas a do reino da arbitrariedade e da prepotência, desde a teia de falsidades da guerra no Iraque, aos espaços de não direito, como Guantánamo, Abu Ghraib ou a justifi-cação da tortura. As violações dos direitos fundamentais minaram a credibilidade dos Estados Unidos para promo-ver a democratização.

Se o mundo inteiro votasse nas presidenciais ame-ricanas, Obama obteria, de acordo com sondagens feitas em muitos países, uma vitória esmagadora. É tal a desconfiança em relação à América, porém, que alguns descrêem da possibilidade de triunfar a política de aber-tura e de procura de consensos que defende. Há também forte cepticismo, entre os muçulmanos sobretudo, de que Obama, sendo negro e tendo o nome que tem, tenha reais hipóteses de ser eleito. O candidato democrata projecta uma imagem em tudo oposta à de uma América arro-gante, agressiva e militarista, e corporiza a tradição da luta pelos direitos cívicos. Recorde-se a clamorosa recep-ção popular em Berlim, em completo contraste com as visitas de Bush, em que foi preciso fechar bairros inteiros.

Se Obama for o Presidente eleito, como tudo leva a crer, a onda de forte alívio e geral entusiasmo abrirá uma enorme oportunidade para a América, que reconquistará, quase instanta-neamente, a imagem e a confiança perdida. Chegado à Casa Branca, porém, encontrará, intacta, a pesadíssima herança legada por Bush: a economia de rastos, a finança arrui-nada, a dívida ameaçadora; duas guerras acesas, no Iraque e no Afeganistão, e a paz no Médio Oriente em estado paraplégico. As esperanças pos-tas em Obama e, com ele eleito, na mudança vinda da América são tão altas que é quase impossível que se cumpram.

Obama tem em política internacional uma atitude

É tempo de a União Europeia definir o que espera do novo Presidente dosEstadosUnidos

46 • 26 Outubro 2008 • Pública

expatriados

Eles votam em PortugalSe pudesse, a Europa votava nas eleições de 4 de Novembro. Eles são os únicos que podem fazê-lo, do lado de cá: americanos expatriados. Quatro americanos que vivem em Portugal mostram o boletim de voto. Maioria democrata, minoria republicana. Mas, antes de mais, o que fazem em Portugal?

Texto Kathleen Gomes

Martin EarlPorquê votar na América quando se devia votar em CoimbraFato cinzento, camisa azul com quadrados brancos. Mesmo sem a descrição prévia, feita ao telefone, um americano sobressai sempre numa estação de comboios de Coimbra. Falta completar o retrato: alto, um tufo de cabelos brancos sem corte, olhos azuis, óculos com fita, casaco folgado. Martin Earl, 51 anos, não corre o risco de ser confundido com um por-tuguês.

É o único, dos americanos presentes nestas páginas, que escolhe falar em português.

Chegou a Coimbra em 1986, vindo de Nova Iorque, para dar aulas de inglês. “Dentro da universidade falava inglês com os colegas e

alunos. Nos primeiros tempos, ninguém queria falar português comigo. Aprendi a língua em casa sozinho, a ler jornais e a ver televisão, nas lojas e nos restaurantes. Até hoje, tenho amigos dessa altura que se recusam falar co-migo em português.” Martin tem uma teoria: “Os portugueses têm uma certa dificuldade em acreditar que os estrangeiros podem falar a língua deles. É um país pequeno, e estão mais acostumados a ir lá fora e falar a língua dos outros.” A primeira namorada portuguesa não ajudou. “O pretexto era aprender a língua. Mas o romance substituiu as lições e não aprendi nada com ela.”

No entanto, Martin viria a casar com uma portuguesa. O primeiro encontro foi aqui, no Tropical, um café académico ainda mal refeito da noite anterior. “A primeira pergunta que lhe fiz foi: ‘Vamos falar em português ou inglês?’ Ela pensou dois segundos e respondeu ‘portu-guês’. Martin conta tudo numa divertida cró-nica intitulada Marrying a language (casar c

[Obama] é a pessoa mais saudável, mais viva. E, com Joe Biden, criou uma espécie de dream team

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MIR

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Martin Earl, tradutor, vive em Coimbra há 21 anos

AD

RIA

NO

MIR

AN

DA

48 • 26 Outubro 2008 • Pública

com uma língua): sem dúvida que ela pensou na vantagem linguística que teria sobre ele... Martin e Luísa estão juntos há 12 anos.

“Eu penso em português. Quando estou nos Estados Unidos e sou surpreendido por alguma coisa, sai em português. O português quer sem-pre sair e tenho de reverter para inglês.”

Deixou a universidade há seis anos para se tornar tradutor freelancer — traduz poesia, en-saio, filosofia; também fez a legendagem em inglês dos filmes Juventude em Marcha, de Pe-dro Costa, e Aquele Querido Mês de Agosto, de Miguel Gomes, antes do Festival de Cannes. Além disso, é poeta. “Fernando Pessoa foi uma influência enorme, mesmo antes de chegar cá. Na minha primeira viagem à Europa, em 1979, tinha comigo o primeiro livro traduzido nos Estados Unidos do Fernando Pessoa. Quase sabia os poemas de cor.”

Está na altura de pedir nacionalidade por-tuguesa, diz.

“Thomas Jefferson, que passou vários anos como diplomata em Paris, tinha esta fórmu-la: depois de um ano fora, são precisos dois anos para nos sentirmos confortáveis no nosso próprio país; se estamos fora cinco anos, são precisos dez; mas depois de dez anos fora é im-possível regressar e sentirmo-nos em casa.”

Além do mais, quer votar em Portugal. “Sei que sou das poucas pessoas fora da Améri-ca que têm a possibilidade de votar [nestas eleições]. Mas o meu voto é um bocadinho abstracto. Votar em Coimbra teria mais peso para mim.”

Quis esperar pelo último debate para votar, apesar de o seu candidato estar decidido há muito. “Segunda-feira [dia 20] vou votar em casa. E depois vou aos Correios enviar o bole-tim de voto. É sempre o meu trauma: de cada vez que entro nos Correios levo meia hora pa-ra chegar ao balcão.” Obamania à parte, vota Obama. “É a pessoa mais saudável, mais fresca, mais viva. E, com a escolha de Joe Biden, criou uma espécie de dream team.”

Martin Earl considera que as duas adminis-trações Bush inauguraram uma espécie de novo paradigma na relação entre Presidente e vice-presidente.

“Dick Cheney é o mais poderoso vice-presi-dente na História da América. Foi ele, junta-mente com Wolfowitz, Rumsfeld e um bando de conservadores que decidiram responder ao 11 de Setembro daquela maneira. Acho que com Obama vai ser da mesma maneira. Ele simplesmente não tem experiência, é muito jovem. Mais jovem do que eu. Ele sabia que precisava de alguém como Biden, um perito em relações externas, nos bastidores.”

O que parece fazer de Martin um caso ra-ro é que, apesar de votar Barack Obama, não embarca no fervor obamaníaco, nem deixa de ter distância crítica. Nota que a atitude de Obama relativamente ao Iraque, outrora tão radical — “retirar, já” —, tem evoluído para a percepção de que a guerra implica uma certa obrigação para com o povo iraquiano. Se for

eleito, Obama “vai aproximar-se muito mais da política de Bush do que tentou demonstrar na campanha”, antecipa Martin. “Do que o país precisa agora é de uma figura como Obama. Mas tenho receio porque os carismáticos não têm os pés assentes no chão. Obama está a pro-por coisas completamente impossíveis.”

O pai de Martin às vezes inclina-se para os republicanos, mas nestas eleições não votará neles. “Ele ficou lívido com o facto de Bush ter enviado as tropas mal equipadas para a linha da frente no Iraque. Lívido, essa palavra existe em português?!”

Um americano também sobressai a falar português.

Martha de La CalMário Soares votes for ObamaMartha de La Cal não mandou vir T-shirts Oba-ma da América. Pô-las a fazer, numa tipogra-

fia na Avenida Infante Santo, em Lisboa, com o rosto do candidato democrata estampado. Uma para ela, outra para Mário Soares. Tem uma fotografia para prová-lo: Soares, ao lado de Martha, segurando a T-shirt à frente do pei-to. “Ele é qualquer coisa. Estou sempre a dar-lhe T-shirts. Ele e a mulher são como família. Votaria nele, se fosse portuguesa. Também gostava do presidente Eanes. Gosto deles to-dos.” Martha também mandou fazer uma T-shirt para o angolano Bonga. “E tenho o meu autocolante Barack Obama na parte de trás do carro, não reparou?” Um no pára-choques traseiro do Hyundai, outro à frente.

Martha chegou a Portugal em 1967 e é corres-pondente da revista Time desde 1972. Escreveu sobre o julgamento das Três Marias, a Revo-lução, os judeus de Belmonte, as gravuras de Foz Côa, as “mães de Bragança”, Maddie. Não podia ser mais americana, mas com George Bush ponderou renunciar a sua nacionalidade. “Pensei tornar-me portuguesa. Ou espanhola. Mas acabei por desistir. Estou desejosa de ver

expatriados

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Pública • 26 Outubro 2008 • 49

aquele filme, W. [filme de Oliver Stone sobre Bush filho]. Já está nas salas?”

Antes de vir para Portugal, viveu em Espa-nha, e antes de Espanha vivera 15 anos em Cuba — o primeiro marido, que conheceu na universidade, era cubano. No final de 1960, abandonaram a ilha por causa de Fidel Castro. Aparentemente, Martha, licenciada em Psico-logia Clínica, escreveu um artigo para o Times of Havana em que descrevia as características de um paranóico. As parecenças com Fidel não eram pura coincidência. E não passaram despercebidas ao próprio. Martha nunca mais voltou a Cuba.

Já viveu mais tempo em Portugal do que em qualquer outro lugar. Mas a conversa decorre em inglês. “Si, eu falo português. Muito mal, pero... Confundo espanhol com português. Porque es similar. Semejante?”

Na sua casa, em Carnaxide, há quatro gatos e uma cadela, Caixote, em minoria.

“Eu já votei. Recebi o meu boletim de voto do Missuri, onde não vivo desde os 19 anos”,

ri-se. Mas a maior parte das vezes não se in-comodou em votar nas eleições americanas. Diz que o último Presidente que realmente a entusiasmou — antes de aparecer Obama, claro — foi Franklin D. Roosevelt, quando ainda an-dava na universidade. Não gostou de nenhum outro, desde então? “Bem, talvez... O Clinton não era mau.” Kennedy? “A história dele era horrível. Toda a família dele, os Kennedys... O avô materno, Honey Fitzgerald, era o dono de Boston, um corrupto. O pai fez dinheiro a contrabandear whisky... Era um milionário e por isso pôde fazer uma propaganda tremenda para que o filho fosse eleito.” A última vez que votou? “Acho que foi no Carter.” Ri e é uma criança travessa.

Maria Justina Wells, secretária da Democrats Abroad em Portugal, o braço oficial do Partido Democrata para americanos expatriados, con-firma o fastio político de Martha de La Cal na era pré-Obama. “Este ano, foi a primeira vez que ela se inscreveu para poder votar nas Pri-márias. E eu conheço a Martha há anos. Nem sequer sabia que ela era democrata, antes de se inscrever.” Mas o que aconteceu com Martha aconteceu com outros. A Democrats Abroad em Portugal registou 45 novos eleitores demo-cratas para votar nestas eleições.

E se Obama não ganhar?“Não temos de deixar o país, já estamos fo-

ra.” Um KO de vivacidade.“Antigamente havia uma canção nos Estados

Unidos chamada Pistol packin’ mama, que quer dizer uma mãe armada até aos dentes. É o que nós chamamos àquela mulher horrível, Sarah Palin, pistol packin’ mama...”

Em Portugal, Martha avistou uns quantos presidentes americanos. “Nixon esteve cá. Não me parece que fosse muito brilhante. Ele foi aos Açores encontrar-se com o Presi-dente Spínola. A fotografia do Spínola, com o seu monóculo, tinha saído em tudo o que era revista. Nunca mais me esqueço que estáva-mos no aeroporto, eu, um grupo de jornalistas portugueses e alguns estrangeiros, e o Nixon sai do avião e cumprimenta um general em vez do Spínola. Ele não sabia! Terrível!” Ri-sos. “O Reagan também esteve cá. Acho que ele já tinha Alzheimer porque ao discursar no Parlamento ele teve de ler o teleponto, que falhou, e ele ficou ali, sem nada para dizer. Tive pena dele.”

Martha tem visto os debates presidenciais, que começam às duas da manhã, hora portu-guesa. Antes de se deitar, pede à companhia telefónica para lhe ligar a acordar, dez minutos antes. “Assim, não perco o meu sono. Nunca faz isso?” Esta madrugada, 16 de Outubro, é o último debate. “Não sei se vou ver. Fico tão danada com o McCain que tenho medo de ati-rar alguma coisa à televisão e parti-la”, ri-se. “No caso do Bush, não aguento olhar para ele. Ele aparece e eu desligo a televisão.” A menos que seja um filme de Michael Moore. “Oh, ado-ro o Michael Moore. Você não? Ele diz coisas terríveis de toda a gente que eu não gosto

Eu já votei. Recebi o meu boletim de voto do Missuri, onde não vivo desde os 19 anos

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Martha de La Cal chegou a Portugal em 1972

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[risos]. Ele é engraçado. Tenho todos os DVD dele ali.”

Chris ThurlbyEle votou Bush e sobreviveuChristopher Thurlby prepara-se para reabrir um restaurante de luxo no Chiado, em Lisboa, porque uma noite bebeu um copo de vinho a mais. É um gracejo, mas a verdade é que ele está aqui, nas entranhas desactivadas de um estabelecimento que parece um clube privado por dentro e tem uma fachada art nouveau.Uma noite, ao jantar, o proprietário do edifício contou-lhe que tinha um restaurante abando-nado no rés-do-chão e Chris Thurlby viu ali uma oportunidade de negócio. Planeia abrir antes ou depois do Natal, com bar americano

e cozinha portuguesa de qualidade. Será como o Tavares Rico?, pergunta uma curiosa. Não tão caro, diz Thurlby.

O negócio anterior deste americano de 71 anos não podia ser mais diferente. E foi o que trouxe para Portugal, numa idade em que outros pensam na reforma. “Tinha um amigo russo que casou pela sexta vez e a sua nova mulher queria estabelecer o primeiro jornal de língua russa em Portugal. Ela nunca tinha estado cá, mas tinha visto as estatís-ticas. Havia imensos falantes de russo aqui [risos]. O meu amigo ligou-me: ‘Chris, isto é lindo aqui. Temos falado com pessoas, devias vir. Obviamente há coisas que podes fazer.’ E eu vim. O timing parecia perfeito. Temos quatro filhos e o último tinha acabado de sair de casa e a minha mulher disse: ‘Porque é que não saímos de casa também e vamos ter uma aventura?’ Viemos em Julho de 2002 e

Expatriados

Tenho críticas a fazer [a Bush] mas não correspondem ao que é a crítica de salão na Europa

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apaixonámo-nos por este país. Montámos uma série de cursos em português e russo, para ensinar as mulheres dos imigrantes que tinham vindo para cá trabalhar. Muitas delas tinham um background académico considerá-vel e qualificações que não eram transferíveis para cá. Montámos um curso sobre cultura empresarial: o que se passa num escritório, como é que se atendem telefonemas, noções de informática, etc.”

Em Portugal, ele e a mulher apaixonaram-se pelas touradas. “Se for preciso, vamos até ao Alentejo para ver uma tourada.” Portugal é uma fiesta. “Para mim, essa é a essência de Portugal porque é uma tradição antiga mas ao mesmo tempo é uma coisa viva e nova e pobres e ricos, toda a gente se senta com toda a gente.” Quando os amigos vêm visitá-los, levam-nos a almoçar a Ourém, vão a Tomar, Fátima... “Em Fátima, mesmo os nossos amigos que não são

católicos interessam-se [pelo fenómeno]; nor-malmente adoptam uma atitude de respeito e não de incredulidade.”

Thurlby foi-nos recomendado como o líder da Republicans Abroad em Portugal, mas a organização não está oficialmente estabele-cida no país.

“Os republicanos tendem a ser discretos, especialmente nos últimos quatro anos”, brin-ca.

Os tempos não têm sido de feição para Bush, logo, não têm sido de feição para quem o ele-geu. Thurlby votou nele das duas vezes.

“Existe a percepção de que não estamos a fazer as coisas bem. Portanto, em vez de passar o tempo todo a discutir... [risos] Mas digo-lhe uma coisa: acho que esta oposição visceral ao Bush pelos seus opositores americanos aqui ultrapassa os limites nalguns casos. Tenho razões pelas quais nunca votaria em Obama, mas se ele ganhar irei reservá-las para mim. A minha mãe, que era católica, costumava di-zer: ‘Agora que só restamos nós, católicos, na sala, falemos do Papa.’ Com Bush é a mesma coisa: se formos só americanos, podemos fa-lar à vontade. Quando oiço americanos que vivem cá dizer que ele é o pior Presidente de sempre... Todos sabemos o que acontece aos ‘piores presidentes’: às vezes acabam no top 15, anos mais tarde. Vou votar em John McCain. Se ganhar o senador Obama, não vou dizer que tudo o que ele diz é fantástico mas sobretudo em círculos não-americanos teria cuidado com as palavras. Era isso que eu queria dizer com o exemplo dos católicos. Quando eles estão com protestantes, o Papa é infalível. Mas quando estão sozinhos...”

Portanto, Chris Thurlby nunca nos dirá se tem críticas a apontar à presidência de George W. Bush?

“Tenho críticas a fazer mas não correspon-dem ao que é a crítica de salão na Europa — a opção pelas políticas erradas, o unilateralismo, a guerra do Iraque... Acho que o Iraque, pro-vavelmente, foi a melhor resposta ao 11 de Se-tembro e a um novo contexto mundial em que pequenos terroristas podem infligir um dano espectacular e levar a economia a uma para-gem momentânea. Deve haver outra maneira de resolver as coisas sem ser: ‘Não gostamos que façam isso, vamos falar com as Nações Unidas a ver se conseguimos umas resoluções que possam impedir que isto aconteça outra vez.’ Acho que o ponto mais fraco é ele não ser um bom líder político. Porque um bom líder político — e aponto Abraham Lincoln como exemplo — conseguiria manter uma maioria do país e daqueles que precisa, incluindo uma maioria da imprensa, do lado dele. E Bush, ou não prestou a atenção necessária ou não soube como fazê-lo, ou não quis saber. E não se pode ignorar isso.”

Previsões para 4 de Novembro? “Bem, neste momento estou com um proble-

ma porque a minha equipa de basebal perdeu ontem à noite”, brinca. “Vamos pôr as coisas

assim: se McCain e Palin ganharem, será uma surpresa maior do que se Obama ganhar.”

Julie DeffenseHillary para Presidente, Palin para quê?Há, pelo menos, uma coisa que um portu-guês e uma americana em Portugal têm em comum.

“O que eu não suporto aqui é a burocracia. Levou-me seis ou sete anos para conseguir o meu estatuto de residência permanente. Dão-nos uma lista e dizem: ‘Isto é o que tem de fazer para obter o cartão.’ Nós fazemos as coisas todas, mas, quando voltamos, dizem: ‘Bom, se ler nas entrelinhas diz aqui que pre-cisa disto...’ E nós: ‘Mas não me disse isso da outra vez.’ E quando finalmente conseguimos aquilo que faltava, as outras coisas expiraram e são dos Estados Unidos e temos de repetir o processo...”

Julie Deffense, 35 anos, é uma americana em Portugal e foi por isso que, recentemente, apareceu no New York Times: ela e o marido conceberam e construíram uma casa na zona de Cascais que, como ela diz, é muito ameri-cana por dentro e portuguesa por fora. Preci-sando: interior espaçoso, cozinha desafogada com balcão central e muita arrumação, papel de parede ornamental; exterior com pintura cor-de-rosa, telha e pavimento em calçada. A metáfora é tentadora: uma Xanadu que mate-rializa o encontro das duas culturas presentes na vida de Julie.

“Antes de fazermos obras, era uma típica casa portuguesa, com um pouco de tudo: uma parede tinha azulejos, outra tinha pedras en-castradas, outra era lisa. O interior era bastante escuro, frio e húmido. Era muito diferente do que eu estava habituada. A cozinha ficava na parte de trás da casa e tinha uma janela mi-núscula. Na América, a cozinha é o centro da casa, a parte mais luminosa e aquela em que se passa mais tempo.”

A nova cozinha, diz Julie, “é enorme, é uma cozinha americana”, uma cópia exacta da que os seus pais têm na Pensilvânia, com electro-domésticos importados dos Estados Unidos, mas armários cem por centro portugueses, feitos à mão em Colares. “Acho que o traba-lho de pormenores neste país é incomparável. Ainda têm todos estes artesãos à antiga que trabalham a madeira ou a pedra... Nos Esta-dos Unidos é tudo pré-fabricado ou custa uma enormidade.”

Julie chegou a Portugal em 1998 para tra-balhar três meses no departamento de web design de uma empresa. “Quando estava na universidade passei um semestre em Florença a estudar arquitectura. Foi tão bom que achei que um dia gostaria de voltar à Europa. Depois do curso trabalhei como ilustradora téc- c

Chris Thurlby, 71 anos, vai abrir um restaurante no Chiado

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nica e depois como designer gráfica. Quando me convidaram para vir para cá três meses, pensei: ‘Óptimo! Portugal, Itália, fica tudo do mesmo lado do oceano. É a minha chance de voltar para lá.’ Estava farta do meu trabalho, apesar de estar a fazer mais dinheiro do que ganho aqui hoje.”

Quando os três meses chegaram ao fim, já era demasiado tarde para voltar aos Estados Unidos: um mês depois de ter chegado, Julie conheceu o seu futuro marido, Jacques, que nasceu em Portugal, mas é filho de uma irlan-desa e de um belga. Decidiu ficar, mesmo sem emprego. “Enviei 350 currículos, para tudo o que pudesse ter qualquer relação com designe fui arranjando trabalho graças a isso.” Tre-zentos e cinquenta currículos — não convém subestimar a determinação americana. Pouco tempo depois, estava a trabalhar como desig-ner em regime de colaboração com a revista de negócio imobiliário People & Business, escri-ta em inglês. Desde há dois anos, é directora e proprietária da revista. “Quando cheguei a Portugal, um amigo disse-me que eu nunca ia ter uma carreira cá como teria nos Estados Uni-dos. Não sabia o que é que o comentário queria dizer: é por ser mulher? é por ser estrangeira? Pensei: ‘Vou provar que ele não tem razão.’ Quando surgiu a oportunidade de comprar a revista, pensei: é a minha oportunidade. E já lá vão dois anos.”

É no escritório da People & Business que estamos, uma casa térrea nas imediações de Cascais, num sábado de manhã. “Perguntei ao meu marido se devia trazer o meu crachá

Clinton/Gore”, diz Julie, com um sorriso. “Fui a Washington assistir aos dois discursos inau-gurais de Clinton, em 1993 e 1997. O crachá é do segundo.”

Julie é democrata e teria votado em Hillary Clinton, se ela não tivesse perdido as Primárias para Obama. Sentiu-se desapontada quando Hillary ficou pelo caminho? “Um pouco. Eu estava a torcer tanto por ela que não tinha feito nenhum trabalho de casa sobre o Obama.” Dito isso, considera que, nesta eleição, “tal como nas últimas duas ou três, é evidente quem de-via ganhar”.

“A América está pronta para uma mudança, o mundo está pronto para uma mudança. Mal posso esperar para que a próxima semana che-gue ao fim.” Ansiosa? “O Obama tem uma clara vantagem mas como as duas últimas eleições não foram ganhas de forma justa, nada garante que essa vantagem o vai ajudar. Se McCain for eleito, Deus queira que nada lhe aconteça por-que veja só quem ficaria à frente do país.” A go-vernadora do Alasca. “Fico arrepiada quando ela abre a boca. Parece uma pessoa simpática, mas não tem o que é preciso para chefiar o país no presente contexto mundial.”

Quem é mais americano, Obama ou Palin?“Bem, Obama é o resultado de um melting

pot e toda a gente na América faz parte do mel-ting pot, certo? Sarah Palin representa mais o americano médio — como quando vemos o Jay Leno, que entrevista pessoas na rua, e pergun-ta quem é o vice-presidente do país e cinco em seis não sabem. Acho que Obama representa uma melhor selecção do que um americano é e pode ser.” a

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A América está pronta para uma mudança. Mal posso esperar para que a próxima semana chegue ao fim

Julie Deffense chegou por três meses, mas apaixonou-se

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presidente

É o carácter, estúpido!Texto Miguel Gaspar

Os EUA foram criados como uma república em que o poder emanava do povo e não da graça divina, como acontecia no modelo das monarquias europeias, contra o qual a

nova nação nasceu em 1776. Mas pelo menos um Presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, acreditou um dia que corrigir a graça divina estava ao alcance dos seus poderes.

Após a guerra mundial de 1914-1918, o Pre-sidente democrata que envolvera os EUA no conflito falava assim do projecto de uma nova estratégia para a paz mundial, os 14 Pontos, que ia apresentar aos aliados europeus: “Por que é que Jesus Cristo não conseguiu convencer o mundo a seguir os seus ensinamentos nestes assuntos [da guerra e da paz]? Foi porque Ele ensinou um ideal sem divisar os meios práticos para os alcançar. É por isso que estou a propor um esquema prático para levar por diante os Seus objectivos.”

Woodrow Wilson falhou estrondosamente no seu projecto de convencer os homens a aceitar o esquema prático que não ocorrera a Cristo, tanto na Europa como nos Estados Unidos — o próprio Senado americano recusou-se a aceitar a proposta do Presidente.

Esta história é contada por James David Barber, num livro de 1972 intitulado The Pre-sidential Character/Predicting Performance in the White House (O Carácter dos Presidentes/Antecipando a Performance na Casa Branca). O autor, um professor de Ciência Política, fa-lecido em 2004, tenta mostrar que todos os presidentes encaixam em quatro categorias de comportamento definidas. Há uma categoria de excelência (os “activos positivos”, onde o autor coloca Franklin Delano Roosevelt, Har-ry Truman e John Kennedy) e uma categoria

“negra” (os “activos negativos”, em que cabem Woodrow Wilson, Herbert Hoover, Lyndon Jo-hnson e Richard Nixon).

O idealismo teimoso que permitiu a Woo-drow Wilson imaginar que o Presidente dos Estados Unidos tinha o poder de tornar reali-záveis os ensinamentos de Cristo é paradoxal num país onde, como em 1835 lembrava Alexis de Tocqueville, nas páginas de A Democracia na América, “o Governo não é um bem mas um mal necessário”. Na visão original dos fundado-res, como explica o historiador Hugh Brogan, não havia sequer um consenso quanto à preva-lência do poder federal sobre o poder dos Esta-dos, quanto mais achar que o Presidente podia assumir a dimensão imperial, na expressão de Arthur Schlessinger Jr., antigo conselheiro de John Kennedy. O cargo tornou-se tão especial que passou a existir um hino presidencial, Hail to the Chief, que é tocado em todas as aparições públicas do Presidente.

O enorme poder que se foi concentrando na Casa Branca também motivou Barber a criar um modelo que permitisse precaver a escolha de maus presidentes através da análise do tipo de carácter a que pertencem — mais exactamente, um modelo capaz de impedir que alguém como Richard Nixon voltasse a ser eleito. Ele reflecte também sobre o carácter singular da instituição

presidencial americana e tenta explicar porque ocupa ela um lugar tão importante no contex-to político americano. “Não temos um rei. O Presidente é o único objecto disponível para o sentimento nacional-religioso-monárquico que o americano possui. O Presidente ajuda as pessoas a construir um sentido para a política. É um homem sozinho que tenta fazer um tra-balho — um quadro muito mais compreensível [do que a política do congresso] para a massa de pessoas que estão no mesmo barco.”

Os valores acima das políticasQuanto pesam as questões de carácter? Karl Rove, o estratega das campanhas de Bush, é enfático: “Quando se trata de escolher um pre-sidente, o povo americano quer saber mais so-bre um candidato do que sobre posições po-líticas. Quer saber sobre o carácter, sobre os valores que existem no seu coração”, escreveu num texto no Wall Street Journal, onde lamen-tava que McCain fosse tão reservado sobre a sua história pessoal, em particular quanto ao período em que foi prisioneiro de guerra no Vietname.

Jeremy Mayer, professor de Política Ameri-cana da George Mason University da Virgínia, numa entrevista por e-mail, diz que a impor-tância das questões relativas ao carácter dos candidatos aumentou. “O carácter sempre in-teressou nas eleições presidenciais, mas tor-nou-se mais importante na era da televisão, desde 1960. A investigação mostra de forma consistente um declínio na importância dos temas e um aumento da importância de ca-racterísticas pessoais como a honestidade, a simpatia e a questão de saber se o candidato partilha os valores dos eleitores.”

Mayer sublinha ainda a existência de um esti-lo padrão: “Existe o desafio vago de parecer c

Numa eleição em que a economia parece mais importante do que nunca, o carácter dos candidatos pesa substancialmente nas contas dos eleitores.

“O Presidente é o único objecto disponível para o sentimento nacional-religioso-monárquico que o americano possui”

‘presidenciável’. Isto mistura capacidade de li-derança, dignidade, inteligência, temperamen-to e gravitas. Isto está fortemente relacionado com o papel simbólico das imagens. Em 1988, [o candidato democrata] Mike Dukakis prejudicou as suas hipóteses só porque ficava ridículo de capacete dentro de um tanque M-1.”

O carácter conta — mas e os problemas em jogo? As chaves desta eleição são a economia — como em 1932, três anos após o início da Grande Depressão, quando o republicano Hum-phrey foi varrido pelo democrata Roosevelt — e uma guerra impopular — como em 1952, quan-do o democrata Harry Truman foi batido pelo republicano Dwight Eisenhower, por causa da Guerra da Coreia. Será que desta vez o contex-to e a substância são mais relevantes do que a personalidade dos dois candidatos?

É preciso lembrar que estes estão longe de ser figuras consensuais nos seus campos polí-ticos. Obama teve de vencer os obstáculos para se tornar no primeiro candidato negro à Casa Branca, o maior dos quais foi a primeira mulher a aspirar seriamente a essa candidatura, Hillary Clinton. John McCain venceu uma nomeação à qual não era favorito, por ter um perfil dema-siado liberal para as bases do partido.

“Hollywood para os feios”Mas não é surpreendente que a adesão dos eleitores aos candidatos seja apenas relativa. Apenas a história transforma os líderes políti-cos em ícones reverenciáveis. “Os americanos vêem os políticos como um tipo de celebridades que está algures entre um comentador da rádio pública e uma actriz secundária de uma soapopera”, dizia o escritor P. J. O’ Rourke num texto de 2002, em que lembrava que “Washington é Hollywood para os feios”.

O jogo das personalidades teve ainda outro actor, George W. Bush. Sendo uma campanha sem incumbente ou era um referendo a Bara-ck Obama (o que os republicanos queriam) ou

era um referendo a George W. Bush: quando McCain, no último debate, declarou ao adver-sário “eu não sou George Bush”, percebeu-se que a crise transformara de vez a eleição num referendo ao Presidente que está de saída.

O contexto em que decorre uma campanha acaba por construir, como nota James Barber, um jogo de expectativas ao qual cada candidato tenta corresponder. Para ele, o importante é compreender o carácter, a visão do mundo e o estilo de cada candidato. Isto quer dizer uma história pessoal, uma visão do mundo e um estilo. Os programas eleitorais são uma aposta no escuro, mas uma campanha pode revelar a personalidade de quem se propõe governar. O carácter não é uma condição suficiente pa-ra ganhar, mas é sem dúvida uma condição necessária.

Nos EUA, isso traduz-se na partilha de valores como a honestidade, o optimismo americano ou a religião e revelar capacidade de liderança política — o candidato que age é beneficiado em relação ao que não age, defende Barber —, a qual está intimamente associada ao papel de comandante-chefe.

Valores estranhos para os europeus que de um modo geral têm dificuldades em enten-der a política americana. Um problema que já existia no tempo de Tocqueville: “Para um estrangeiro, quase todas as querelas domésti-cas dos americanos parecem, à primeira vista, incompreensíveis ou pueris, e não sabemos se devemos apiedar-nos de um povo que se ocupa seriamente de misérias que tais, ou invejar-lhe a felicidade de poder ocupar-se delas.”

O americanismo e o optimismo são as cores do sonho americano — e qualquer candidato tem de os defender de forma convicta. “A inca-pacidade de abraçar a América afirmando God Bless America ou em dizer que somos a melhor nação sobre a Terra é perigosa. Os americanos esperam que os seus líderes lhes digam que são o povo mais livre do mundo, que intervém em

nome da justiça e da liberdade quando recorre à força militar”, afirma Jeremy Mayer.

Numa análise às eleições presidenciais de 2004, o jornalista Jonathan Chait notava, na Atlantic Monthly, que “o optimismo é um pré-requisito para qualquer aspirante à Sala Oval — quase uma questão de patriotismo”. Chait citava um estudo da Universidade de Pensil-vânia que mediu o “nível de optimismo” dos discursos de aceitação de todos os candidatos entre 1948 e 1984 e concluiu que só uma vez o menos optimista ganhou — foi Richard Nixon, em 1968. Candidatos zangados (como John Mc-Cain nos debates com Obama) não encaixam nesta ideia de optimismo, que Chait considera ser mais forte entre os republicanos, por re-meter para a “Revolução Reagan”. Mas o opti-mismo também pode ser expresso através da palavra “esperança”, dominante no discurso de Franklin Delano Roosevelt em 1932, nota. Precisamente uma das palavras-chave de que Obama se apropriou nesta eleição.

Deus também votaO optimismo e a esperança funcionam no qua-dro de uma religiosidade que é estrutural nos Estados Unidos. Tocqueville via-a como uma expressão da liberdade americana: “Não há ódios religiosos [na América] porque a religião é universalmente respeitada”, escrevia em 1835. No século XXI, o extremismo dos evangélicos

presidente

Lincoln, Wilson e Roosevelt — três presidentes-arquétipo quer para os republicanos quer para os democratas

O americanismo e o optimismo são as cores do sonho americano — e qualquer candidato tem de os defender

transformou a religião num factor de divisão. O cientista Richard Dawkins, um dos princi-pais adversários dos criacionistas, sublinha que “já foi suficientemente notado o paradoxo de que, tendo sido fundados no secularismo, os Estados Unidos são hoje o país mais religioso da Cristandade. (...). É universalmente aceite que admitir ser ateu é um suicídio político ins-tantâneo para qualquer candidato”, escreveu em The God Delusion.

Desde que lançou a sua candidatura, o sena-dor do Illinois teve de enfrentar os problemas colocados pelo factor racial — tal como Hillary teve de lutar contra os de género — e foi obri-gado a transformar o seu passado numa histó-ria verdadeiramente americana. Tarefa difícil quando tinha pela frente na corrida presiden-cial um prisioneiro de guerra do Vietname — um exemplo do heroísmo americano. As dúvidas colocadas pela campanha republicana sobre o carácter do adversário visavam explorar o medo da mudança e, também, questionar a ca-pacidade de liderança do candidato. E, duran-te as primárias democratas, a própria Hillary Clinton pôs em causa a capacidade de Obama para ser comandante-chefe.

Este papel colou-se ao cargo de Presidente ao longo da História — originalmente, o inqui-lino da Casa Branca não usava sequer o título. Isso aconteceu com Abraham Lincoln, durante a Guerra Civil (1861-1865). E o papel do Presi-dente como comandante-chefe intensificou-se a partir William McKinley (Presidente entre 1897 e 1901) e Theodore Roosevelt (1901-1908) durante o primeiro período de expansão dos EUA que o escritor Gore Vidal descreveu como o momento em que “a república cedeu o lugar ao Império”.

O heroísmo militar já fora decisivo para a vitória de Andrew Jackson, um herói da guerra de 1812 contra os ingleses, nas presidenciais de 1828. Mas numa era em que os media começa-ram a influenciar a política — foram os jornais

de William Hearst que empurraram os EUA pa-ra o conflito com Espanha em 1898 — Theodore Roosevelt construiu um personagem a partir do seu papel nos confrontos em Cuba: era o Rough Rider [o nome do seu regimento] e só tirava o chapéu para ser aclamado.

Em Empire, Vidal ficcionou a participação do coronel Roosevelt numa das primeiras con-venções modernas do Partido Republicano, em 1900: “Quem quer que tivesse ensaiado Roo-sevelt fora um mestre. Mais uma vez a banda tocou There’ll be a Hot Time, que já se tornara o hino da guerra hispano-americana. Erguendo bem alto o chapéu de Rough Rider, aquele ho-mem entroncado, baixo e míope correu pelo corredor, desde o seu lugar sob a bandeira do estado de Nova Iorque, e subiu a correr as es-cadas do palco. Mais uma vez a ovação atingiu um fortíssimo, e Roosevelt pareceu ficar ain-da mais volumoso, enquanto as aclamações o enchiam como o ar quente a um balão: (...) o chapéu estava suspenso da cabeça como os louros da vitória.”

Foi seguindo este modelo que George W. Bush se apresentou vestido de piloto de comba-te num porta-aviões para anunciar ao mundo a “vitória no Iraque”, em Maio de 2003. John Mc-Cain, que lhe seja feita a mais elementar justiça, não pertence a esta escola. Mas a sua simples história chega para despertar os medos dos de-mocratas naquilo a que o editor da Newsweek,Fareed Zakaria, chama “a competição para ser o tipo duro”, no livro The Post-American World:“Apesar de os democratas serem mais sensíveis hoje a este tipo de questões [relativas à defesa], o partido permanece consumido pelo medo de não ser visto como duro. Os seus candidatos lutaram uns com os outros [durante as primá-rias] para mostrar que podiam ser tão machos como o mais duro dos republicanos.”

Para Jeremy Mayer, este continua a ser um ponto fraco de Obama: “É extremamente im-portante que um candidato seja visto como ca-paz de ser comandante-chefe. Desde a II Guerra Mundial só foi eleito um Presidente que não tivesse alguma experiência militar — Obama poderá vir a ser o segundo. Ainda aparecem pessoas na televisão a dizer que não estão con-fortáveis com Obama porque ele não sabe o que é fazer o serviço militar. É uma das últimas vantagens que McCain preserva.”

Mitos históricosA História é a outra fonte para a construção de um mito heróico em torno da presidência. Cada candidato constrói-se em função de um arquéti-po, que lhe permite definir o carácter histórico da sua presidência. Uma história pessoal, um discurso, uma ideia do passado da América — é o momento em que a personalidade e a visão política do candidato se transformam numa narrativa.

“Penso que o arquétipo moderno mais co-mum, em particular para os republicanos, é Ronald Reagan. Para além disso, democratas e republicanos olham para Kennedy, os dois Ro-

osevelt ou mesmo Lincoln”, diz Joseph Mayer. Reagan é elogiado por Obama, mas McCain fa-lou sempre de si como “um soldado da revolu-ção Reagan” e isso define-o politicamente como um continuador. O impopular incumbente re-publicano foi sempre uma referência incómoda para McCain e o duelo com Hillary levou a que Obama não se alongasse de mais em elogios a Bill Clinton, preferindo valorizar Reagan.

Mas foi através da invocação de Abraham Lin-coln que Barack Obama conseguiu falar da sua campanha como um acontecimento histórico, um momento de redefinição da nação como foi o mandato do primeiro Presidente republicano. Reivindicando-se herdeiro do Presidente que arriscou a unidade da federação para combater a escravatura, Obama colocou em perspectiva o facto de ser um candidato negro — e as ques-tões dominantes desta campanha foram obvia-mente a raça e o género. A identificação com Martin Luther King — Obama fez o seu discurso de aceitação no dia em que passavam 40 anos da morte de King — funcionou também como um arquétipo espiritual.

Em Outubro de 1860, o poeta e editor da Atlantic Monthly, James Rusell Lowell, descre-via a eleição que se avizinhava como ocorrendo no contexto de “uma crise na nossa política doméstica mais grave do que qualquer outra desde que nos tornámos uma nação (...). Ou-vir dizer que não devemos agitar a questão da escravatura quando ela está desde sempre a agitar-nos é como dizer a um homem com febre que se parar de tremer ficará curado”. Para o jornalista, a resposta era votar em Abraham Lincoln: “Ele já provou a sua qualidade e a sua integridade; a experiência política suficiente dos negócios públicos é suficiente para fazer dele um homem de Estado e não é suficiente para fazer dele um político.”

O exemplo do senador do Illinois em 1858 serviu também para dizer ao senador do mes-mo estado 150 anos depois que um candidato inexperiente pode ser um grande Presidente. O combate pela abolição da escravatura permite não só enquadrar a legitimidade de um can-didato negro, como sustentar o paralelo com o discurso de mudança nas relações entre as raças e nas guerras bipartidárias que, segun-do o candidato, dividem a América como uma guerra civil desde os anos 1970.

Posto isto, que tipo de Presidente poderão vir a ser um ou outro dos candidatos? John McCain assume-se como um continuador do espírito de Reagan. Se vier a ser eleito, as dúvi-das estão no estilo da sua presidência. Obama defende a mudança. E a pergunta é se será um Presidente reformador e transformador, como Franklin Delano Roosevelt, eleito em tempo de depressão económica, ou um regenerador co-mo Jimmy Carter, Presidente numa era de crise moral da América? Mas a história, claro, nunca se repete. Sobretudo nesta “região feliz, o novo mundo”, onde, dizia Tocqueville, “os vícios do homem são quase tão úteis à sociedade como as suas virtudes”. a

Reagan é o grande modelo republicano

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vida em imagens

Barack ObamaMãe branca, pai queniano e padrasto indonésio, Barack Obama entrará na História se for o primeiro afro-americano eleito Presidente dos EUA.

O paic Barack Obama Sr. conheceu Ann Dunham quando ambos frequentavam a Universidade do Havai. Após o divórcio, regressou ao Quénia, onde serviu no governo de Jomo Kenyatta. Só viu o filho mais uma vez, antes de morrer num acidente de carro em 1982.

A mãed Barack Obama tinha dois anos quando os pais se divorciaram. A mãe, a antropóloga americana Ann Dunham (ao centro), casou-se depois com o indonésio Lolo Soetoro (à esq.) e todos foram viver para Jacarta em 1967, onde nasceu a sua irmã, Maya (ao colo).

Havaid Aos 10 anos, Barack Obama deixou Jacarta e foi viver com os avós maternos em Honolulu. A mãe juntou-se a ele em 1972, embora tenha voltado à Indonésia por alguns períodos para trabalho de campo e preparar a tese de doutoramento em Antropologia. Morreu de cancro nos ovários em 1995.

Wifec Michelle Obama conheceu Barack quando os dois eram os únicos afro-americanos na firma de advocacia onde trabalhavam. Ela era a “chefe”. No primeiro date foram ver Do the Right Thing, de Spike Lee. Casaram-se em 1992 e têm duas filhas.

Tootc Madelyn Payne e Stanley Armour, os avós maternos de Barack Obama, ainda hoje são uma inspiração de vida. Ela é a “toot” (palavra usada no Havai), que foi a primeira mulher vice-presidente de um banco local. Ele sobreviveu à Grande Depressão e serviu no exército de Patton durante a II Guerra Mundial.

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Sarahc Na sua aldeia no Quénia, chamam-lhe Mama Sarah e, embora os contactos com o seu neto candidato a Presidente dos EUA sejam raros, ela é uma avó orgulhosa. “Quando há um jogo de futebol, olhamos para os pés de quem joga”, disse à BBC. “No caso de Barack, ele está determinado e o resto será Deus a determinar.”

Coverc A intenção, justificou a New Yorker, na edição de 21 de Julho, intitulada Politics of Fear, era satirizar o modo como a direita americana atacava o candidato democrata. Mas a campanha de Barack Hussein Obama denunciou o cartoonda capa da revista como “ofensivo e de mau gosto”.

Reald Nativa de Chicago, formada em Direito em Princeton e Harvard, Michelle Obama tem sido descrita nas revistas como uma “princesa africana” que, com o seu 1,80 de altura, tem “um porte real”. Cativou pela inteligência e simplicidade, mas também franqueza do discurso, quando revelou à Vanity Fair as “misérias” do marido: “Ressona e cheira um bocado mal de manhã, ao acordar.”

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vida em imagens

John McCainCostuma dizer que é um milagre estar vivo. A auto-biografia que escreveu em 1999, Faith of My Fathers,é um autêntico livro de aventuras.

Sorted No dia 27 de Outubro de 1967 o caça de John Sydney McCain foi atingido sobre Hanói (Vietname do Norte). O piloto da marinha saltou de pára-quedas e caiu no meio da cidade inimiga, no lago Truc Bac, de onde foi retirado com vida.

Não!c Numa fila de prisioneiros que o Norte divulgou. Recusou várias vezes a libertação (a ideia era derrubar a moral dos outros presos deixando sair um ‘filho de papá’). Foi brutalmente espancado na prisão, onde ficou cinco anos e meio.

Filhod McCain foi identificado: filho do comandante da frota dos EUA no Pacífico ( já o avô fizera carreira na Marinha), era um prisioneiro importante. Na imagem está num hospital, na verdade foi torturado.

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Mudard A 2 de Maio de 1973 o mais antigo prisioneiro de guerra americano no Vietname regressa a casa e é recebido por Nixon. Voltou debilitado (nunca mais conseguiu levantar o braço esquerdo) e decidiu dedicar-se à política. Representa o Arizona no Senado e ganhou fama de maverick entre os republicanos pela sua independência.

Voltouc John e Cindy têm quatro filhos. Ele sobreviveu a um cancro na pele. Em 2000 perdeu a nomeação para candidato à presidência para George W. Bush. Este ano regressou e é o candidato. Tem 72 anos e diz que a sua vida é um milagre.

AmorJohn casou com

Carol em 1965. Adoptou os dois filhos dela e o casal teve Sidney. Viveram pouco tempo juntos. No regresso apaixonou-se por Cindy Hansley e casou com ela. Com separação de bens, pois Cindy tem uma fortuna colossal.

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AFP PHOTO / PAUL J. RICHARDS

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ARQUIVO DA FAMÍLIA MCCAIN

62 • 26 Outubro 2008 • Pública

filme

Julgamento sumário para George BushOliver Stone não quis esperar pela avaliação da História. Decidiu julgar George W. Bush enquanto ele está em funções. Não apenas para influenciar a votação de Novembro, mas para encerrar rapidamente uma fase negra da América e do mundo. Em crimes desta gravidade, o povo exige o julgamento sumário.

Texto Paulo Moura

OPresidente George W. Bush gosta de palitar os dentes com as unhas. E de o fazer durante importantes reuniões na Casa Branca, enquanto se discutem assuntos decisivos

para a América e para o mundo, como a invasão do Iraque. Também o faz nos primeiros momentos românticos com Laura, com quem viria a casar.

W. é desajeitado, grosseiro e estúpido todos os dias. Desde a juventude, em que se distin-guia pelas bebedeiras, o mau comportamento na escola e as aventuras amorosas com maus resultados. “Pai, ela diz que está grávida”, vi-nha W. choramingar para o gabinete de George Bush Senior. “Eu resolvo o assunto”, acaba-va por dizer Bush, depois de passar ao filho um raspanete. W. era o seu desespero e a sua vergonha. Não fazia nada de que a família se pudesse orgulhar. Só gostava de basebol, mas nem basebol sabia jogar. O seu sonho era ser treinador. Assim, não teria de trabalhar, pen-sava ele.

Este era um dos critérios que presidiam a to-das as suas decisões, tanto na atribulada juven-tude, como enquanto empresário falhado, ou na Presidência dos Estados Unidos: esforçar-se o mínimo possível. Outro dos critérios era o de agradar ao papá. Bush sempre preferiu o filho mais velho, em cuja carreira empresarial e política depositava grandes esperanças. W. tinha ciúmes. O pai desprezava-o e ele que-ria desesperadamente agradar-lhe. Por isso, converteu-se ao cristianismo, como newborn,acabou por se meter também nos negócios, e depois na política. Mas isso só exasperava ainda mais Bush Senior. “Mantém-te fora dis-to”, aconselhava ele, sempre que W. fazia um investimento, ou se candidatava a um cargo público. Bush Senior tinha medo que W. fizesse asneiras, e isso colocasse mal a família. O que de facto acontecia. Os vários empreendimentos de George W. Bush tinham algo sinistramente em comum: eram um fracasso. Na adolescên-cia, como na idade adulta. Quando chegou à Presidência, as coisas não melhoraram. Pelo contrário. W. tornou-se ainda mais cretino, mimado, desastrado e bazófias. Rodeou-se de conselheiros e funcionários, ou igualmente im-becis, ou mal-intencionados. O vice-presidente Dick Cheney, um facínora diabolicamente ma-nipulador, que tomava as decisões mas deixava que W. acreditasse ser ele próprio a tomá-las; Donald Rumsfeld, um criminoso vulgar, uma carcaça de fel e mau carácter; Condoleezza Rice, uma parola beata e lambe-botas, sem cérebro nem vontade própria.

Os destinos da América e do mundo estive-ram entregues a uma cambada de atrasados mentais, movidos por interesses inconfessá-veis ou incompreensíveis. É essa a imagem de George W. Bush e a sua Administração que os americanos podem ver nas salas de cinema desde a semana passada. Uma imagem igual à realidade, mas com um filtro de caricatu-

ra. No entanto, exposta em tempo real, de forma a confundir-se com a verdade política e histórica. O objectivo de Oliver Stone, o re-alizador de W, não pode ter sido outro. Ao decidir que o filme se estreasse ainda durante a vigência do mandato de George W. Bush, im-primiu-lhe um cunho documental. Um filme feito com alguma distanciação histórica é livre de apostar numa reinterpretação dos factos. Dentro de cinco ou dez anos, uma biografia de George W. Bush traduziria apenas a visão do seu autor. Uma visão possível, mas diferida, irremediavelmente apreendida como “ficção”. Fazer a biografia de George W. Bush enquanto estamos submetidos ao poder de George W. Bush é como dizer-lhe algumas verdades cara a cara. É como se lhe déssemos a oportunida-de de nos desmentir, por palavras e actos. E, por mais demagógico que seja o expediente, funciona como instrumento de intervenção e julgamento sumário.

Não é a primeira vez que se produzem filmes sobre presidentes americanos em exercício. Morte de Um Presidente, de Gabriel Range, con-ta, em 2006, a história de um atentado contra George W. Bush. Mas foi produzido na Grã-Bre-tanha e não teve distribuição nos EUA. E trata-va de um assassínio físico, não de carácter.

Já Wag the Dog (Manobras na Casa Branca)era mais contundente. Realizado por Barry Levinson em 1997, relatava as desventuras de um Presidente envolvido num escândalo de abuso sexual de uma rapariga que visitou a Casa Branca. Para desviar as atenções, a Admi-nistração contratou um especialista em media(interpretado por Robert de Niro) que inven-tou um rumor sobre uma crise com bombas nucleares chinesas. O escândalo sexual passou para segundo plano, mas por pouco tempo. Foi preciso então contratar um produtor de Hollywood (interpretado por Dustin Hoffman), que tratou de provocar uma guerra. A vítima foi a Albânia e o confli-to armado, que existiu na televisão, mas nunca

na realidade, salvou o Presidente. O filme foi distribuído quando Bill Clinton era Presiden-te, e a história era, ao pormenor, a história de Bill Clinton, que, para desviar as atenções do escândalo sexual com a estagiária Monica Lewinsky, lançou vários bombardeamentos sobre países estrangeiros.

De facto, entre 1998 e 1999, Clinton orde-nou um bombardeamento de três dias sobre o Iraque (no momento em que a Câmara dos Representantes debatia o impeachment do Pre-sidente), lançou dois ataques de mísseis contra alvos “terroristas” no Sudão e no Afeganistão (três dias depois de Clinton ter admitido, na televisão, que teve uma relação “inapropria-da” com Lewinsky), liderou, durante 78 dias, a operação de bombardeamento do Kosovo (semanas depois de o Senado ter discutido o impeachment).

Curioso é que tudo isto tenha acontecido depois do filme. O argumento foi escrito, por David Mamet e Hilary Henkin, com base no romance American Hero, de Larry Beinhart, muito antes de Clinton se ter encontrado com Monica Lewinsky. Dir-se-á que a história era tão verosímil que a realidade se encarregou de a confirmar. O Presidente assumiu alegre-mente o papel que lhe fora prescrito, e o filme, apesar de exacto, pode clamar inocência. Os seus autores não tinham culpa que a caricatu-ra tivesse sido copiada pelos seus alvos. Ain-da que o filme nunca tivesse mencionado Bill Clinton pelo nome e tivesse tornado claro que o protagonista não era George Bush, uma vez que fala da primeira guerra do Golfo como um acontecimento do passado.

W não está antes nem depois dos factos. So-brepõe-se-lhes. Finge ser um documentário. Substitui-se ao jornalismo. Cola uma máscara ao rosto de George W. Bush. Talvez a verdadei-ra, a máscara que o Presidente sempre usou e que alguns poderiam ser tentados a retirar-lhe. Hoje, já ninguém quer esperar para ver, dar o benefício da dúvida ou confiar em quem de direito. Já ninguém aceita ser manipulado. Responde-se à manipulação com manipulação. Faz-se justiça pelas próprias mãos. Oliver Stone quer mostrar o Presidente como ele é, enquan-to ele é. Uma parte da América e do mundo estão com ele. Querem fazer o julgamento já, antes que seja tarde. a

Fazer a biografia de George W. Bush com ele no poder é como dizer-lhe algumas verdades cara a cara

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literatura pós-11 de Setembro

Silêncio — e boomO romance é uma arte lenta. Entre Nova Iorque e Londres, autores célebres — DeLillo, Auster, McEwan, Amis — demoraram a recuperar do 11 de Setembro. Entretanto houve um “boom”, incluindo aspirantes como Jonathan Foer e alguns equívocos. É cedo para chegar longe. Mas decorem este nome, Joseph O’Neill.

Texto Alexandra Lucas Coelho

Aliteratura pós-11 de Setembro é certamente uma biblioteca mundial. De forma implícita ou em pormenores como fazer uma mala, todos os livros hoje serão pós-11 de Setembro. Mas

mesmo circunscrita a exemplos publicados na América, explícitos e com impacto crítico, essa biblioteca não se faz apenas com autores americanos.

A era Bush é também a era Bush-Blair. A “guerra contra o terror” de Bush tornou-se assunto doméstico em qualquer esquina bri-tânica. Os ingleses viveram um 7/7 e vivem diariamente na iminência de um novo ataque. Bush, encarnando uma era, tornou-se maté-ria íntima, visceral, de não-americanos, e em nenhum outro lugar isso será tão visível como em Londres.

Por isso, numa biblioteca rápida explicita-

mente pós-11 de Setembro, tanto aparecem os americanos Don DeLillo, Jonathan Safran Foer, John Updike ou Paul Auster como o muito inglês Ian McEwan e o não-é-possível-ser-mais-inglês Martin Amis.

E aquele que, até agora, é provavelmente o mais elogiado romance pós-11 de Setembro, Netherland (2008), foi escrito por um irlandês que cresceu na Holanda, estudou e trabalhou em Inglaterra e vive em Nova Iorque, Joseph O’Neill.

Não foram eles os primeiros a reflectir o 11 de Setembro na literatura. Antes dos roman-ces apareceram poemas, crónicas, memórias, contos como The Mutants, de Joyce Carol Oats (uma mulher encurralada no seu apartamen-to da Baixa de Manhattan no 11 de Setembro) ou a BD In The Shadow of No Towers, de Art Spiegelman.

Se a literatura é sempre lenta, o romance c

Antes dos romances apareceram poemas, crónicas, memórias, contos ou BD

In The Shadow of No Towers,de Art Spiegelman

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é por natureza particularmente lento. Grandes livros sobre o Vietname, o Holocausto, a Pri-meira ou Segunda Guerra Mundial demoraram décadas a vir ao de cima, e ainda estão a ca-minho, como prova o recente e monumental As Benevolentes, de Jonathan Littell, centrado num nazi.

E tanto mais lento será o romance quanto mais veloz é a informação. O romancista pós-11 de Setembro tem em mãos tudo o que os leito-res do seu tempo viram e ouviram em directo, e continua a ser multiplicado em milhares de for-matos, uma matéria simultaneamente exausta e permanente. Como conseguir torná-la nova hoje e mantê-la intacta amanhã?

Nobel na era BushFoi pela mão de um inglês, Harold Pinter, que a era Bush entrou no arquivo do Prémio Nobel da Literatura. “Quantas pessoas é preciso ma-tar para se ser classificado como criminoso de guerra ou assassino em massa?”, Pinter, poeta e dramaturgo, na sua muito política conferên-cia Nobel, em 2005.

Foi um ano de boom para romances sobre o 11 de Setembro.

Ian McEwan — que imediatamente depois do 11 de Setembro escrevera vários artigos sobre o choque brutal com a realidade: de repente, tudo o mais parecia fútil — publicou Sábado,protagonizado por um neurocirurgião londri-no que enfrenta penosamente o nada admirá-vel novo mundo, das Torres Gémeas à Guerra do Iraque.

2005 é também o ano do hit, Extremely Loud and Incredibly Close, de Jonathan Safran Foer. O protagonista deste romance é uma criança de nove anos, filha de uma das vítimas do 11 de Setembro, e o livro está cheio de efeitos especiais para reproduzir a atmosfera do tem-po, aceleração e desaceleração, cacofonias e zooms, através de páginas com uma só frase, partes em branco, partes sobrepostas, foto-grafias, números, pixelagens.

Em começos de 2006, Jay McInerney — um dos nomes da faixa americana sexo-drogas-e-materialismo, anos 80-90 — lançou The Good Life, história de dois casais abalados pelo 11 de Setembro, cada um dos quais com um vo-luntário no Ground Zero. Mas o grande livro do Outono seguinte é A Estrada do americano Cormac McCarthy, um romance onde pai e fi-lho enfrentam um universo pós-apocalíptico. Muitos leitores terão projectado aí, mais do que em livros explícitos sobre o 11 de Setem-bro, a vulnerabilidade que o ataque às Torres infiltrou nas sociedades abastadas.

2006 é também o ano de Terrorista, de John Updike, com um terrorista que os críticos em geral ridicularizaram. Mishiko Kakutani, no New York Times, falou dele como um robot,uma coisa de cartoon em que é difícil acre-ditar.

De acordo com os críticos, se Updike não teve unhas para fabricar um terrorista, Martin Amis não teve unhas para fabricar “o” terroris-

ta suicida. No conto The Last Days of Moham-med Atta, também de 2006, o sempre-bom-bástico ninguém-escreve-como-eu Amis levou pancada do New York Times ao Guardian, e em ambos os lados do Atlântico foi notada a sua obsessão pelo determinismo das hormonas: como a frustração sexual de Atta contribuiu para o maior ataque terrorista da história.

Este determinismo também atravessa The Second Plane (2008), colectânea de artigos de Amis pós-11 de Setembro, em que a fertilidade islâmica é um dos alarmes centrais. Furiosa-mente inglês e ocidental, Amis põe-se de um lado do mundo, o lado da razão. Do outro lado ele vê a religião em geral, doença infantil dos menos desenvolvidos, e no extremo desse lado o islamismo político.

E o veterano?Vários autores apanharam a América vanitaspré-11 de Setembro. É o caso do nova-iorquino-antes britânico-antes indiano Salman Rushdie, em livros como O Chão Que Ela Pisa e Fúria, e é o caso, muito diferente, do americano Don DeLillo, em Cosmopolis.

Mas DeLillo é, sobretudo, um veterano do medo terrorista. Toda a sua obra tem uma di-mensão pré ou pós-apocalíptica e em livros co-mo Mao II mergulhou fundo. Imediatamente a seguir ao 11 de Setembro, escreveu artigos perturbantes e esperava-se tudo, o melhor, do seu romance Falling Man, publicado em 2007. Mas as críticas variaram entre “pretensioso” e “grande desapontamento”. A implacável Kakutani perguntou como é possível que da mão de DeLillo saia um sobrevivente do 11 de Setembro que passa o tempo em Las Vegas e a enganar a mulher.

Até que em 2008 O’Neill publicou o seu Ne-therland: American dream, imigração, medo e críquete. Tem “mais vida dentro que 10 bons livros”, escreveu a mesma Kakutani, e a prai-se list é extensa. Consenso crítico, leitores en-tusiasmados. Esteve na corrida para o último Booker e quando não passou à short list hou-ve uma onda de indignação nos comentários online.

Entretanto, o sempre-empenhado Paul Aus-ter lançou este Outono Man in the Dark, aus-terianana história de um escritor que constrói um mundo alternativo onde a eleição Bush-Gore acabou em guerra civil e o 11 de Setembro nunca aconteceu.

E Philip Roth? Indignation acaba de sair, as críticas são boas, e tudo se passa na América — mas há décadas, durante a guerra da Coreia.

Confusão pós-traumáticaLendo os críticos americanos e ingleses, a im-pressão geral é que o 11 de Setembro produziu muitos equívocos, também literários. É cedo, muito cedo, para chegar longe.

“Um dos maiores temas na escrita sobre os ataques do 11 de Setembro é a tensão entre o impulso de alcançar o que realmente aconte-ceu e a noção de que ‘a verdade’ dos ataques é

literatura pós-11 de Setembro

As BenevolentesJonathan Littell escreveu um livro monumental centrado num nazi. Editado em Portugal pela Dom Quixote.

Saturday Um neurocirurgião enfrenta penosamente um novo mundo, das Torres Gémeas ao Iraque. Escrito por Ian McEwan foi editado em Portugal pela Gradiva.

Terrorist Os críticos em geral ridicularizaram o terrorista de John Updike.

The Second PlaneColectânea de artigos de Martin Amis em que a fertilidade islâmica é um dos alarmes centrais.

Netherland O mais elogiado romance pós 11 de Setembro foi escrito por Joseph O’Neil, um irlandês que cresceu na Holanda , estudou em Inglaterra e vive em Nova Iorque.

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impossível ou não pode ser alcançada”, resume à Pública Ann Keniston, escritora americana que, com Jeanne Follansbee Quin, organizou a antologia de estudos Literature After 9/11, pu-blicada este Verão.

“Romances, peças e poemas sobre os ataques tendem a focar-se nos problemas da represen-tação em si — as formas como o acontecimento resiste a ser descrito ou alcançado de uma for-ma clara ou simples. Isto é, em alguns casos, efeito de uma espécie de confusão pós-trau-mática. Outros casos resistem directamente às narrativas de vitimização e vingança montadas pela Administração Bush.”

Num ensaio publicado em 2007 no Guardian,o escritor indiano Pankaj Mishra é severo com boa parte da produção ocidental sobre o as-sunto, ou aquilo a que Don DeLillo chamou — e Mishra concorda — “o coração narcísico do Ocidente”. Começa por descrever a sensação de perplexidade confessada por romancistas como Jay McInerney ou McEwan (“Eu queria que me falassem do mundo. Eu queria ser in-formado.”)

O 11 de Setembro trouxe o perigo para o Ocidente, para a nossa rua, o nosso metro, a nossa casa. Depois dos material boys and girlsdos anos 80, depois das dotcom dos anos 90-00, de repente abriu-se “um lugar de perigo e raiva” (DeLillo).

E, como escreveu o turco Orhan Pamuk, lem-bra Mishra, o mundo ocidental não tinha no-ção do “esmagador sentimento de humilhação experienciado pela maior parte da população mundial”. Um sentimento global, potencial alimento do terrorismo global, perante o qual as noções de DeLilllo de terrorismo individual são “velhas”. Já não servem.

O que Mishra vê na ficção ocidental contem-porânea é uma incapacidade. McInerney e Foer não vão fundo, limitam-se a descrever a perda. A prosa ou é sentimental ou tem uma “urgência voyeurística”. No caso de Amis, enreda-se em trocadilhos sobre as virgens e as uvas sultanas no Corão (a questão de saber se a promessa das virgens no paraíso é na verdade a promessa de uvas, por má tradução).

Enquanto em relação à guerra dos seus tem-pos Thomas Mann ou Robert Musil fizeram “uma complexa investigação das ideologias, crenças, estruturas das suas sociedades”, com-para Mishra, alguns dos romancistas ocidentais contemporâneos “parecem ter visitado todos os mesmos sites corânicos pseudo-académicos”, tentando reduzir o que aconteceu “a raiva, in-veja, frustração sexual e obstipação”.

Boas excepções segundo este indiano? Moh-sin Hamid, Kiran Desai, David Mitchell, Jeffrey Eugenides, por evocarem uma “nova incoe-rência existencial”. E Netherland, de O’Neill. “Tem sido descrito como ‘pós-colonial’ e um grande romance americano.’ Mas transcende velhos confinamentos geográficos, políticos e temporais ao retratar todas as estranhas muta-ções, visões parciais e perplexidades do nosso mundo globalizado.” a

John UpdikeO seu livro de 2006 não foi bem recebido

Ian McEwanDepois do 11 de Setembro escreveu artigos sobre o choque brutal com a realidade

Paul Austerescreveu Man in the Dark, onde um escritor constrói um mundo alternativo

Jonathan LittellO seu livro tem sido descrito como “pós-colonial”, mas transcede as visões parciais

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história virtual

E se Al Gore tivesse ganho as eleições?Nunca teria havido guerra no Iraque. Nem Guantánamo, nem diferendo entre a América e a Europa, nem talvez a crise financeira. Ou teria havido uma guerra ainda mais violenta, com total apoio europeu? Qualquer dos cenários é (in)verosímil como o que de facto aconteceu nos últimos oito anos.

Texto Paulo Moura

Ahipótese não é inverosímil. Al Gore quase ganhou em 2000. Teve mais votos do que o candidato republicano, George W. Bush, e, não fosse o que alguns consideram um erro,

ou mesmo uma fraude na contagem dos votos da Florida, teria assumido a Presidência. Sim, o liberal, o conciliador, o progressista, o paladino do ambientalismo Al Gore esteve a uma unha negra de ser Presidente. Ele próprio gosta de apresentar-se assim, nas suas conferências sobre o aquecimento global: “Eu costumava ser o próximo Presidente dos EUA.”

O Presidente foi George W. e o resto é conhe-cido: o ataque às Torres Gémeas, o bombarde-amento do Afeganistão, a invasão e a guerra interminável no Iraque, Guantánamo, e, por fim, a crise financeira. Teria sido diferente com Gore na Casa Branca?

Sem dúvida. “É virtualmente inconcebível que ele tivesse seguido uma política externa

agressiva e unilateral, mesmo na sequência do 11 de Setembro”, responde Nigel Townson, historiador britânico e especialista em História Virtual. Townson, que escreveu História Vir-tual de Espanha e é um dos gurus da chamada História Contrafactual, pensa que tudo teria sido diferente se o homem mais poderoso do mundo fosse Gore, e não Bush. “Como foi de-monstrado por Thomas E. Ricks no livro Fias-co: The Americam Military Adventure in Iraq, a Administração Bush não atacou o Iraque por causa dos laços de Saddam Hussein com a Al-Qaeda ou as armas de destruição maciça, mas porque já o tinham decidido antes. O apoio britânico e espanhol ao empreendimento foi um bónus, mas nunca foi essencial. Gore teria, quase de certeza, rejeitado essa visão belicosa e ‘preventiva’ e nunca teria concordado com uma invasão que era tão obviamente mal fun-damentada, injusta e mal planeada, em termos de pós-guerra.”

Admitindo portanto que os atentados de 11 de

Setembro teriam ocorrido, independentemente de quem ocupasse a Casa Branca, a reacção de Gore nunca teria passado pelo Iraque, por razões ideológicas, mas também intelectuais. O Presidente democrata teria tido outro discer-nimento e os seus conselheiros teriam outra qualidade.

A História Contrafactual nunca se atreve a ir muito longe na especulação, a partir de um acontecimento alternativo. Mas Nigel Townson não tem dúvidas sobre o alcance da guerra do Iraque no futuro dos EUA e do mundo. “A in-vasão do Iraque foi um dos acontecimentos in-ternacionais mais desestabilizadores e destru-tivos desde a Segunda Guerra Mundial. As suas consequências vão perdurar durante séculos. Neste caso particular, a análise contrafactual mostra claramente a importância decisiva dos indivíduos em certos momentos da História.”

Já quanto à invasão do Afeganistão, Townson não tem tanta certeza. Talvez Al Gore o tivesse feito. Nesse caso, “teria procurado um maior

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apoio internacional, tanto no campo diplomá-tico como militar”. E depois, como se teria abs-tido de invadir o Iraque, poderia contar com mais recursos e mais tropas para as operações no Afeganistão, o que permitiria um fim mais rápido para a guerra.

De qualquer forma, com Gore, nunca teria existido Guantánamo, com as características que lhe conhecemos. “É difícil de imaginar que o Presidente Gore tivesse violado direitos polí-ticos e humanos, na sequência do 11 de Setem-bro.” Bush, segundo Townson, tem um “mani-festo desprezo pelas instituições internacionais como a ONU. Gore respeita-as e preocupa-se com os direitos humanos”. Por isso, “é muito improvável que Gore tivesse criado centros de tortura offshore, como Bush fez”.

Também na área do ambiente as coisas te-riam sido diferentes. “É inconcebível que o Pre-sidente Gore não tivesse feito mais pelo ambien-te, como ter assinado o acordo de Quioto”, diz o historiador. Na economia, “é menos provável

que Gore tivesse permitido a desregulação dos mercados financeiros, como Bush permitiu. Mas, nesse campo, talvez a diferença não ti-vesse sido muito grande”.

De facto, se pensarmos nas preocupações ambientalistas de Gore, podemos imaginar que ele teria usado o seu poder para tomar medidas nessa área. Mas uma imaginação mais cínica poderia acreditar que, se tivesse vencido as eleições, Gore estaria demasiado ocupado com a Presidência para se dedicar à sua cruzada contra a emissão de gases de estufa e o aqueci-mento global. O tema nunca teria portanto tido a repercussão mundial que teve e estaríamos ainda pior do que estamos, nessa área.

Quanto à inevitabilidade da crise financeira, nem todos os historiadores a quem pedimos este exercício de História Virtual estão de acor-do com Nigel Townson. José Manuel Medeiros Ferreira, ex-ministro dos Negócios Estrangei-ros, professor de História Contemporânea e de Relações Internacionais, acredita que

“É inconcebível que [Gore] tivesse seguido uma política externa agressiva na sequência do 11 de Setembro”

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história virtual

Se Gore fosse Presidente, não teria tempo para a cruzada antiaquecimento global

há uma relação de causalidade entre a guerra do Iraque e a actual crise financeira. “Há uma parte da crise que está relacionada com a falta de confiança dos mercados, derivada da per-cepção de que a guerra é e continuará a ser muito onerosa”, explicou Medeiros Ferreira à Pública. “Porque o colapso do subprime não explica tudo. Ainda não está analisada a impor-tância da guerra do Iraque nesta crise.”

Não está avaliada, mas tende a ser subestima-da, porque se fala mais dos aspectos militares, políticos e humanos da guerra do que do seu lado económico. “A guerra é também despesa. É cara. Principalmente este tipo de conflitos, como o do Iraque, que se arrastam sem fim à vista. São guerras de usura.”

Se não tivesse havido a guerra do Iraque, não teria surgido a actual crise, ou pelo menos não teria surgido com esta gravidade. E Al Gore, pensa Medeiros Ferreira, “nunca se teria lan-çado na aventura do Iraque”. Por várias razões. A primeira é que “o Partido Democrata teria tido uma hesitação fértil na escolha do princi-pal inimigo dos EUA, entre o Irão e o Iraque. Essa incapacidade de decidir, que é, por um lado, negativa, teria, por outro lado, impedi-do os EUA de se lançaram numa guerra como a do Iraque”.

Bush não hesitou na escolha do inimigo. “Os democratas no poder são, tradicionalmente, menos aventureiros.”

Outra razão é de ordem puramente regional. “Al Gore não seria tão texano na sua decisão”, diz Medeiros Ferreira. “Os interesses específi-cos de cada estado, dentro dos EUA, não são

foi por isso que ele bateu Hillary Clinton. Por se apresentar como um candidato exterior ao sistema”.

No plano externo, o antiamericanismo tam-bém não teria crescido como cresceu, caso Go-re fosse Presidente. “A imagem externa dos EUA nunca tinha sido tão má, desde a guerra do Vietname. Até 2001, tinham uma boa imagem no mundo. Após o 11 de Setembro, houve uma primeira fase, que incluiu o ataque ao Afega-nistão, em que Bush se manteve dentro dos limites.” Mas depois, com o Iraque, começou o descalabro. Guantánamo foi o cúmulo. “Foi uma dura machadada na imagem dos EUA. Al Gore não o teria permitido. Ter-se-ia ficado pelo Afeganistão, o que permitiria uma concentra-ção de recursos nessa operação. Teria jogado dentro das regras, promovido, na luta contra o terrorismo, uma aliança multinacional alargada à volta dos EUA.”

Uma aliança igual à que Bill Clinton conse-guiu para a sua campanha contra a Sérvia? Car-los Gaspar, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, usa o exemplo de Clinton para demonstrar que os democratas são muito mais intervencionistas e unilaterais do que os republicanos nos EUA. E este é um primeiro argumento a sustentar a convicção de que Al Gore teria também invadido o Iraque.

“O que Bush fez no Iraque foi apenas uma réplica, mais moderada, do que Clinton fez no Kosovo”, disse Carlos Gaspar à Pública. Com uma diferença: Bush tentou tudo para obter um aval do Conselho de Segurança da ONU. Clinton, com o Kosovo, nem tentou.

devidamente levados em conta nas análises que se fazem”. Os lobbies do Texas, leia-se os inte-resses da indústria petrolífera, foram decisivos na opção iraquiana. “O Iraque é o resultado de um lobby. Nós achamos sempre que há um pen-samento estratégico nas decisões americanas. Mas elas são tomadas, na maioria das vezes, por razões empíricas.”

Se o Presidente não fosse texano, as decisões americanas teriam sido outras, como teriam sido outras se o Presidente fosse dono de uma personalidade mais forte. “Al Gore seria mais independente dos lobbies. Por isso, as suas decisões teriam sido mais racionais. Com um Presidente menos fraco, menos influenciável, menos oco, a influência dos lobbies teria sido mais reduzida.”

Por outro lado, ainda segundo Medeiros Fer-reira, Gore, a julgar pelas promessas da sua campanha eleitoral, teria sido mais isolacio-nista, mais virado para as questões internas dos EUA, por exemplo, promovendo o federa-lismo. Tendo prosseguido essa política, “teria evitado o sentimento anti-Washington que se desenvolveu no país, e que agora Obama tão bem tem aproveitado. Na minha opinião, aliás,

A invasão do Afeganistão (que albergou Bin Laden) teria existido?

“Os democratas no poder são, tradicionalmente, menos aventureiros” na escolha do inimigo

REUTERS/BRIAN SNYDER

“Bush foi eleito pelas suas críticas aos ex-cessos intervencionistas dos democratas, que queriam impor os ‘valores democráticos’ ame-ricanos pelo mundo. Mas depois de eleito imi-tou Clinton.”

O aprendiz, no entanto, não chegou aos calcanhares do mestre. A conselho de Tony Blair, Bush foi pessoalmente ao Conselho de Segurança, em Setembro de 2002, tentar obter autorização para a invasão do Iraque. “Clinton, no Kosovo, não fez isso. Sabia que a Rússia ia vetar, mandou a ONU às urtigas.”

E este é o segundo argumento a favor da po-lítica iraquiana de Gore. É que um Presidente democrata teria conseguido convencer alemães e franceses a apoiarem-no no ataque ao Iraque (como apoiaram Clinton no caso do Kosovo, aliás, durante a crise na Bósnia, até o criticaram por não ter feito nada).

Os líderes europeus não teriam tido capa-cidade de resistir a Gore, como tiveram com Bush. Os argumentos do Presidente democrata teriam sido irrebatíveis: “A ONU é um obstáculo à democracia. O Conselho de Segurança é um covil de ladrões, dominado por duas potências autoritárias.”

E, ao conseguir “mobilizar as democracias” para a guerra contra o Iraque, “teria deixado o Conselho de Segurança do lado das tiranias”. Em consequência, o Conselho de Segurança e a ONU teriam ficado desacreditados, pro-vavelmente para sempre. Uma “Aliança das Democracias” talvez tivesse emergido como instância internacional alternativa, mais eficaz do que a NATO, que tem uma área de actuação

limitada.Outra consequência: ao apoiar a intervenção

no Iraque, os países europeus teriam ajudado com tropas. Quando as coisas começassem a correr mal e surgissem os primeiros mortos franceses e alemães, emergiria nas populações uma reacção antiguerra ainda maior do que a actual.

O sentimento antiamericano sempre exis-tiu na Europa e não apenas com presidentes republicanos, diz Carlos Gaspar. “Depois da Segunda Guerra, em plena aplicação do Plano Marshall, havia fortíssimas manifestações antia-mericanas por toda a Europa. É a visão beata da justiça universal, segundo a qual os ricos e podero-sos são maus e serão punidos.” A ideia de que os EUA estão em decadência também faz parte desse mito. “Em 1994, Paul Ken-nedy escreveu um livro intitulado Ascensão e Queda das

Grandes Potências. Todo um capítulo era dedi-cado à queda do império americano. Já a que-da da União Soviética quem é que a previu? Ninguém.”

Para Carlos Gaspar, tudo o que Bush fez teria sido feito por Gore com ainda mais convicção. “A política de Bush no Iraque começou a ser feita por Clinton no Kosovo”, lembra o inves-tigador, para sustentar que, excepto em casos excepcionais (que não o de Bush e muito me-nos o de Gore), as políticas são definidas pelas instituições e não pelos indivíduos.

Só uma coisa poderia ter sido diferente: Guantánamo. “Talvez não tivesse existido. Apesar de tudo, há uma certa cultura liberal entre os democratas que o poderia ter impedi-do.” Ou não. Talvez a Al Gore fosse reconhecida autoridade moral para torturar os terroristas.

Todas as conjecturas são igualmente plau-síveis e infundamentadas. Talvez tão invero-símeis como teria parecido a narração dos úl-timos oito anos de História real a alguém que tivesse vivido no mundo virtual da Presidência

de Al Gore. “O quê?”, perguntaria um cida-dão americano nas últimas semanas

do mandato de Gore. “George W. teria invadido o Iraque em re-acção a um atentado islamista contra o World Trade Center? Estes malucos da História Virtual...” a

Carlos Gaspar: com Gore, só Guantánamo teria sido diferente

Al Gore

AFP PHOTO /FILES/ US NAVYREUTERS

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O fim do chicote

negro que lhe pertence fugir-te mesmo debaixo dos olhos sem nunca dizeres uma única palavra? Que te fez essa pobre velha para a tratares com tanta deslealdade? O que ela fez foi tentar ensinar-te as lições, ensinar-te boas maneiras, tentar fazer-te todo o bem que sabia. Aí está o que ela te fez’.”Huckleberry quase deseja estar morto. Escreve uma carta a dizer onde está o escravo, mas não consegue enviá-la. Pode denunciá-lo a caçadores de prémios, mas cala-se. Huck sabe que vai para o Inferno, mas decide, contra a lógica instalada desde pequeno na sua cabeça, que prefere ir para o Inferno a trair o amigo negro. É das coisas mais comoventes que li.Thomas Jefferson, um dos “pais da Nação”, lamentou o silêncio do céu no dia em que o primeiro negreiro chegou carregado para as plantações do Sul, mas teve escravos em Monticello. George Washington não usava dentaduras de madeira, como se diz. Teve vários tipos de dentes postiços. Os melhores que o primeiro Presidente norte-americano usou eram mecanismos metálicos de mola rústica, para abrir e fechar a boca. Ali, incrustados como diamantes, estavam alguns dos melhores dentes brancos dos seus escravos negros (só libertos depois da sua morte). Washington comia o almoço com dentes escravos. A citação inicial de Lincoln fui buscá-la a um livro belo e angustiante: Os Dias do Chicote, Escravos Recordam, organizado por James Mellon. É uma história oral encomendada pela Works Program Administration, na Grande Depressão dos anos 30. Fizeram milhares de entrevistas aos últimos americanos que tinham sido escravos. Disse Charlie Moses sobre o seu masterRankin: “Oh Senhor! Posso contar muita coisa sobre as coisas que ele nos fazia, aos pobres pretos. Tratava-nos como aos seus cães de caça. Às vezes não nos tratava tão bem como tratava os cães. Eu rezo a Deus que não me deixe vê-lo quando eu morrer. Ele tinha o Diabo no coração.”Uma menina viu a mãe ser chicoteada pelo capataz, até lhe deixar as costas em sangue, quase morta. A humilhação racista, o abuso sexual, a morte por esgotamento e fome, ou capricho, escravos morriam porque aos donos lhes apetecia dar-lhes um tiro na cabeça ou enforcá-los. O açoite de tiras de couro cru era um instrumento de trabalho, nos campos de algodão. Passou muito tempo ou passou pouco tempo, desde esse tempo, Presidente Obama? a

crónica a nuvem de calças

Rui Cardoso Martins

Há uma diferença física entre as raças branca e negra que, para sempre, proibirá as duas raças de viverem juntas em termos de igualdade social e política” Quem disse isto? O presidente Abraham Lincoln, e mais do que uma vez. O grande, corajoso, honesto “Abe” que fez a guerra para acabar com a escravatura, e acabou com ela. O Lincoln que fez contas e disse que na “Terra da Liberdade” um sexto dos habitantes eram escravos. Isto é, propriedade de outra pessoa como um cão, um móvel, uma garrafa.A grande probabilidade de o “negro” Barack Obama chegar, dentro de dias, à Casa Branca fez-me procurar o velho caminho desta eleição. Para conhecer a gruta secreta que existe atrás da queda de água, é preciso atravessá-la. Temos de nos molhar. Tento passar por uma pequena queda de palavras, reais ou de romance, e descobrir o núcleo sujo da escravatura nos EUA. Os efeitos devastadores que tinha nos escravos, mas também nos donos. A acrobacia moral necessária para se ser cristão — “os homens são todos iguais” — e esclavagista. A maneira mais simples era negar humanidade aos negros. Quando um escravo fugia era caçado com cães, como se faz, por exemplo, aos coelhos. Ou com cães e cavalos, como nas batidas à raposa. A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, começa com a venda dum velho, Tomás, e duma criança de cinco anos, separada da mãe para pagar uma dívida. Foi publicado em 1852, nove anos antes da Guerra de Secessão, e lido por donos de escravos (a abolição total foi em 1865):— “Eu não pretendia intrometer-me nos seus negócios, senhor. Apenas pensei que poderia ser do seu interesse alugar-nos o seu homem nas condições que lhe propus.— Oh, eu sei muito bem o que pretende. Eu vi-o a piscar-lhe o olho e a sussurrar no dia em que o trouxe da fábrica. O senhor a mim não me engana. Estamos num país livre, senhor. O homem é meu e eu faço dele o que quiser. Tenho dito!”Num país livre, faço o que quiser aos meus escravos. N’As Aventuras de Hucleberry Finn (1884), de Mark Twain, um rapaz desce o Mississípi numa jangada com Jim, escravo foragido. Aprendemos que até os remorsos são invenções sociais, nem sempre aconselháveis: “(...) de todas as vezes lá se levantava a consciência a dizer: ‘Mas tu sabias que ele era um fugitivo que pretendia alcançar a liberdade; podias ter remado para terra e dado o alarme.’ Era assim mesmo — não havia meio de fugir àquilo. Sentia-me sempre apanhado. A consciência dizia-me: ‘Que mal te fez a pobre Miss Watson para que tu vejas um

Tento passar por uma pequena queda de palavras, reais ou de romance, e descobrir o núcleo sujo da escravatura nos EUA

74 • 26 Outubro 2008 • Pública

O melhor hambúrguer de LisboaEnsinamos a fazer o melhor hambúrguer e sugerimos um vinho para o acompanhar.

receita

Texto Fernando Melo Fotografia Enric Vives-Rubio

Pública • 26 Outubro 2008 • 75

Receita do chefe Nuno Diniz, da York House, Rua das Janelas Verdes, 32, Lisboa, Tel. 21 396 2435

Bife130g de vazia, 50g de alcatra e 10g de toucinho frescoSal e pimenta

Fritar em manteiga com um ramo de tomilho e um dente de alho.

Molho1 chalota muito bem picada, suada em manteiga durante 10 minutosJuntar um dente de alho esmagado com cascaJuntar uma pitada de orégãosJuntar pimenta rosa partidaJuntar uma colher de sopa de molho de pimento (ver abaixo)Juntar sumo de meio limãoJuntar uma colher de sopa de natas e um pouco de salsa muito bem picadaLigar com manteiga fria e rectificar os temperosRetirar o alho e a casca

Molho de pimento

Hidratar 2 ameixas secas num cálice de Porto LBV e numa colher de chá de

Com este prato recomendamos Gravato Palhete DOC Beira Interior 2004, €7

Nasceu no seio da multidão de alemães que co-fundou os Estados Unidos da

América (EUA) e que é hoje o principal paradigma da fast food e do american way of life: o hambúrguer. O nome diz tudo em relação à sua proveniência, significando “de Hamburgo”. A sua origem remonta ao tempo dos tártaros e trogloditas, que entre o pêlo e as selas das suas montadas colocavam o bife, picando-o depois para se conseguir mastigar; o sudado ácido equídeo fazia todo o trabalho culinário. Na vertente americana, o bife de formato redondo é adoptado na forma de sanduíche, sem mais complicações, para que se possa comer à mão por pessoas de todas as idades.

A marca McDonald’s, indelevelmente associada à brilhante carreira do hambúrguer nos EUA e não só, dispensa apresentações. Tão amada quão odiada, representa hoje um império global com embaixada segura em todos os países. A sua reputação não é a melhor, em grande parte pelo preconceito, mas o facto é que conseguiu a proeza de proporcionar refeições aceitáveis a muita gente em situação de pré-indigência. Além disso, juntamente com a Coca-Cola, representou em tempos diferidos a entrada de muitos povos na era moderna. Nem Portugal escapa nesse crivo. Fala-se muito de obesidade infantil e juvenil, sendo sempre apontado o dedo a esses dois gigantes da indústria alimentar. Nem sempre, contudo, isso está certo. Ao mesmo tempo, discutem-se os princípios éticos da criação animal, muito pressionada em preço e tempo, levando a situações

criminosas e inaceitáveis, condenadas pela comunidade internacional. Curiosamente, é a própria McDonald’s que tem hoje a liderança nas exigências que impõe à sua cadeia de fornecedores. Mais ainda: face à vulgarização e facilidade de preparação de um hambúrguer, pode ser bem mais perigoso consumi-lo numa cervejaria qualquer do que numa das lojas que ostentam o grande “M” na entrada. (Leitura aconselhada: The ethics of what we eat; Why our food choices matter, de Peter Singer e Jim Mason, Ed. Rodale, EUA, 2006.)

Ciente de todos estes factos e querendo ir contra a corrente, o chefe Nuno Diniz, da York House, em Lisboa, pôs mãos à obra para criar o que pudesse ser “o melhor hambúrguer de Portugal”. Cliente assíduo e contínuo dos mercados de produtos biológicos — destaque para os do Príncipe Real aos fins-de-semana —, achou que tinha condições para oferecer um grande hambúrguer aos seus clientes. Grande amante da vitela arouquesa — como o entendemos! —, criou este que aqui fica como, pelo menos, o melhor hambúrguer de Lisboa. Propomos, para acompanhar, uma outra “provocação séria”: o Gravato Palhete DOC Beira Interior 2004, produzido pela Quinta dos Barreiros, na Meda (€7 na York House), servido a 14ºC. A sua estrutura permite-lhe cortar a proteína animal, ao mesmo tempo que a riqueza aromática cria um balanço interessante com as ervas e a complexidade do molho. a

vinagre de vinho tinto.Suar em azeite um pimento vermelho previamente pelado e sem sementes.Juntar as ameixas e o seu líquido, o sumo e raspa de meio limão, meio talo de aipo picado e caldo de frango.Cozer em lume muito brando durante 1 hora.Temperar com sal, pimenta e desfazer tudo no mixer.

BatatasCortar em rectângulos altos de 2x7cmCozer em água com sal a 90ºC, durante 50 minutosRetirar e deixar arrefecer completamenteFritar a 125ºC durante 30 minutosRetirar e arrefecer completamenteFritar a 185ºCTemperar com flor de sal

AcabamentoColocar por ordem alface, meio bagel, o hambúrguer, uma rodela de tomate temperado com sal, o molho e um ovo estrelado aparado em círculo. Colocar três batatas ao lado.

00 • Mês XX 2008 • Pública

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Pública • 26 Outubro 2008 • 77

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Pública • 26 Outubro 2008 • 79

N O mais bizarro (e motivo para desconfiar da natureza acidental do evento) é que o mamilo da mana Jackson nem sequer foi exposto, uma vez que estava estrategica-mente coberto por uma peça de metal. Mas os pânicos morais são assim, cegos em relação aos mamilos escon-didos e prontos a encontrar bodes expiatórios que diver-gem a atenção de questões sociais de fundo. Se alguma coisa podemos aprender com os EUA, neste caso por opo-sição, é a tentar ter uma atitude mais reflexiva e menos histriónica a situações como o caso Casa Pia. É que todos ficamos a perder quando isso acontece. a

o início de cada ano a nação mais potente do mundo pára para ver a bola. Em Fevereiro, no outro lado do Atlântico, ocorre o Super Bowl, equiva-lente da final da Taça dos Campeões, elevada à décima potência e condimentada com folclore americano q.b. Em 2004, mais do que os resultados do jogo, o motivo de conversa nas semanas seguintes foi o que aconteceu no intervalo. Durante o tradicional espectáculo na pausa do jogo, num acto que tudo indica foi planeado, Justin Timberlake puxou a camisola de Janet Jackson, expondo o seu negro seio.

Se tal tivesse ocorrido em países como Inglaterra ou França, o caso teria direito a muitas anedotas e alimen-tado a imprensa cor-de-rosa durante umas semanas. Nos EUA, o incidente, que ficou conhecido como Nip-plegate, deu direito a vários processos em tribunal e a qualquer coisa como meio milhão de queixas de espec-tadores, culminando com um pedido de desculpas da cantora, que continuou a defender ter-se tudo tratado de um acidente.

Episódios como este não são novos nos EUA, não ao nível do significado real do evento (insignificante ou tão-só patético), mas na reacção desproporcionada que provocam. A caça às bruxas de 1692 em Massachusetts, bem como a caça aos comunistas da década de 1950 são pequenos grandes exemplos de como banais circunstân-cias se podem tornar em complexos fenómenos sociais e mediáticos na sociedade americana. E tal ocorre, normal-mente, à custa da racionalidade e também das liberdades mais fundamentais dos cidadãos. No caso Nipplegate, a liberdade de expressão foi, uma vez mais, coarctada. Numa de muitas consequências, desde 2004 que a emis-são dos Óscares e dos Grammys é feita com um atraso de dez minutos em relação ao tempo real. Assim, se alguém disser ou fizer algo que não deve, haverá sempre a pos-sibilidade de aplicar a poderosa tesoura da censura.

Stanley Cohen, um sociólogo sul-africano, desenvol-veu o conceito de “pânico moral”, muito apropriado a esse tipo de situações. De acordo com o autor, pânicos morais ocorrem quando muitas pessoas reagem de forma desproporcionada a um evento, ou indivíduo(s), considerados ameaçadores à ordem social. Assim como o mamilo da Janet Jackson.

Nos EUA, o incidente com o negro seio de Janet Jackson e que ficou conhecido como Nipplegate deu direito a vários processos judiciais

Mamilo americanoNuno Nodin

sexo

80 • 26 Outubro 2008 • Pública

manias

Todas as semanas há palavras ou expressões que saltam do vazio para o léxico do quotidiano.

Desde o subprime a Joe The Plumber ou os activos tóxicos, de repente há um dia em que à nossa volta, nos cafés ou no local de trabalho, termos até aí caídos para trás da nossa estante mental de referências se tornam “a” palavra da semana. Foi o que aconteceu nos EUA com alguns dos exemplos acima e com um nome que, há dois meses, entrou na verborreia americana. O seu nome é Sarah Palin. “Até agora, eu achava que o Palin mais engraçado na Terra era o Michael Palin”, diz o Monty Python John Cleese entre risos numa entrevista que pode ser vista no YouTube. Uma, aliás, de centenas de entradas relacionadas com Palin, e uma das mais partilhadas, mais virais e comentadas da Web nas últimas semanas. Juntamente com uma outra, feita por um videógrafo que decidiu questionar republicanos sobre o seu conhecimento de Obama e Palin e sobre se Barack Obama é ou não terrorista. Ambos estão no top dos vídeos mais virais de há uma semana, com milhões de visualizações e centenas de partilhas em blogues.Apesar de ser candidata à vice-presidência e não a Presidente, Palin concorre, na polémica, directamente com Barack Obama, porque Joe Biden, o seu homólogo democrata, não é tão escrutinado, apesar de uma gaffesimilar à de António Guterres com o complexo PIB (“É fazer as contas”) e de estar também nos tops do YouTube e de ser alvo de escárnio repetido no Daily Showde Jon Stewart. Programas como este, ou o Late Night de Conan O’Brien (fora

os que não são emitidos em Portugal, como o Saturday Night Live em que Tina Fey satirizou Palin) são um bom índice, posições políticas à parte, para perceber o apelo Palin. Esta expressão em nada fica a dever a outra: to pull a Palin (“dar uma de Palin”, tradução livre), que significa, segundo um cartoon da New Yorker, juntar uma série de coisas não relacionadas e usá-las como resposta... errada. Já lhe imitam os óculos, vigiam-lhe os hábitos de caça e conhecimentos de política internacional, mas sobretudo constrói-se o efeito Palin, da Net aos jornais, passando pelo olhar do mundo. O colunista Ivor Tossell, do canadiano Globe and Mail, aponta os motivos pelos quais estas eleições americanas são tão televisivas (e cibervisivas ou panvisuais, o que se quiser): “Tem um elenco de personagens que se sentiriam em casa numa sitcom — o orador que pode mudar o mundo, a autarca de uma pequena cidade e de mentalidade tacanha e o avôzinho.”Se o primeiro é visado pela cor de pele, alegada falta de experiência governativa e proximidade onomástica [Hussein] com o mundo árabe, e se o terceiro o é pela idade, a senhora do meio é julgada pela aparição repentina no palco político, pelo sotaque, pela suposta falta de opiniões e conhecimentos. E pela hipótese, jogando com a idade de McCain, de que possa ascender à presidência mais rápido do que se pensava, o que levou criativos publicitários a imaginar um mundo com Palin As President.Em suma, Palin vive numa Web muito mais agressiva do que Obama, embora a sua campanha também não tenha passado incólume aos ciberataques. Mas, tendo em conta o panorama no

YouTube, as entradas relativas a Palin são em menor quantidade, mas muito mais sobre o que estrelas como Matt Damon têm a dizer sobre ela, ou como lidou com a entrevista a Katie Couric e o que isso diz sobre ela. Já para Obama, saltam à vista hinos e tributos, desmistificações do que dizem os republicanos sobre ele, ultrapassado o problema Jeremiah Wright. Resultado: uma imagem mais positiva do candidato democrata do que da governadora do Alasca. Daqui a uma semana e meia, saber-se-á quem é o verdadeiro vencedor. a Joana Amaral Cardoso

Palin, Sarah Palin

www.youtube.com/watch?v=jMyNk8J1c8gwww.youtube.com/results?search_query=sarah+palin&search_type=&aq=fwww.ibelieveinadv.com/commons/palinjustimagine.jpg

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Pública • 26 Outubro 2008 • 81

Porquê

Há várias histórias sobre a origem do Uncle Sam, mas a única validada pelo Governo americano remonta à guerra de 1812, em que os soldados de Nova Iorque associavam em brincadeira o US dos caixotes de mantimentos ao seu fornecedor Samuel Wilson, o “Uncle Sam”. Em 1961, o Congresso aprovou uma resolução que reconhecia Samuel Wilson (1766-1854), o tal fornecedor de carne, como o responsável pela expressão “Uncle Sam” e como um homem de reputação venerada e um patriota. a Joana Amaral Cardoso

Por que é que o Tio Sam é um símbolo americano?

Nós no mundo

TRicardo Garcia

odos os que estimam o ambiente aprenderam a odiar George W. Bush e, por tabela, os Estados Unidos. Os últimos oito anos foram plenos de matéria-prima para este sentimento. Bush abandonou o Protocolo de Quioto, desconfiou dos cientistas, fraquejou em leis ambientais, tentou extrair petróleo de santuários naturais. A versão oficial, naturalmente, pinta o quadro com cores opostas. Mas Bush não escapa de deixar o posto de chefe do mundo com uma péssima reputação ecológica.Para os que prezam o planeta em paz e harmonia, a administração Bush também não ficou bem na fotografia, sobretudo pelos desastres cometidos à conta da luta antiterrorismo.O que fazer? Eu fiz um boicote. Prometi que não iria aos Estados Unidos enquanto Bush estivesse na Casa Branca. Além da motivação original, evitaria ainda os constrangimentos cada vez mais acrescidos de simplesmente entrar no país — com ou sem sapatos. É certo que não surgiram oportunidades, mas mantive a promessa. Agora, com Obama ou McCain, posso revogá-la.O efeito de um boicote individual pode ser nulo, mas muitas vezes é um imperativo de consciência. Faz-nos dormir tranquilos, mesmo que não mude em nada o rumo dos acontecimentos. Na sua versão colectiva, é uma faca de dois gumes. O seu poder de pressão — esmagador, se a coisa for muito bem feita — é passível de resultar tanto para o interesse colectivo como exclusivamente para o privado. Em meados dos anos 1990, uma campanha sugeria um boicote mundial a uma empresa petrolífera, pelos males ambientais e sociais que estaria a provocar na Nigéria.Já em Portugal, não percebi o boicote às gasolineiras, há uns meses, quando o preço dos combustíveis disparou. Para obrigá-las a baixar os preços, os consumidores estavam dispostos a não pôr gasolina nos seus automóveis. Mas se podem passar bem com isso, então por que não fazem boicotes todos os dias? O consumo cairia, o preço do petróleo idem e uma parte importante dos problemas ambientais do planeta ficava resolvida. a

O efeito de um boicote individual pode ser nulo, mas faz-nos dormirtranquilos

AFP PHOTO/JOE RAEDLE/GETTY IMAGES

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82 • 26 Outubro 2008 • Pública

tarot da maya

Carneiro21 de Março a 20 Abril II A PAPISAA evolução dos acontecimentos tende a ser pouco compatível com os seus desejos. No plano afectivo as relações tendem a passar por dificuldades em função de oscilações comportamentais. No plano material, apesar de pontuais, podem surgir melhoras profissionais. Na saúde semana sem problemas.

Touro21 de Abril a 21 de Maio XII O DEPENDURADO Algumas realidades poderão revelar-se duras e os assuntos tendem a desenrolar-se de uma forma lenta. No plano afectivo paute os seus comportamentos por segurança. No plano material algumas relações podem estar pesadas. Na saúde

plano material está menos favorecido, já que a tendência é para não dar a devida atenção à vida profissional. Na saúde está protegido.

Leão24 de Julho a 23 de Agosto I O MAGOA conjuntura, esta semana, é positiva, e repleta de diversidade; deve aproveitar para fazer opções. No plano afectivo momento muito propício ao estabelecimento de novos planos de vida. No plano material semana muito activa, mas não exagere no ritmo de trabalho. Na saúde sentirá energias ascendentes.

Virgem 24 de Agosto a 23 de Setembro XXI O MUNDO O Mundo leva-o a pensar mais em si e menos nos outros, mas não transgrida acordos assumidos. No plano afectivo não se preocupe muito, pois tudo vai acontecer com naturalidade. No plano material divergências com colegas podem comportar alguma adversidade. Na saúde semana de pequenas complicações.

Balança24 Setembro a 22 de Outubro V O PAPA A influência da conjuntura aumenta a sua serenidade. No plano afectivo dê especial atenção; este sector pode trazer-lhe surpresas muito agradáveis. No plano material terá de ser objectivo e tomar posições em função das análises que efectuar. Na saúde não tome medicamentos sem aconselhamento médico.

Escorpião23 de Outubro a 22 de Novembro IX O EREMITAEstará sob a influência de

uma conjuntura lenta em que qualquer definição poderá revelar-se mais demorada. No plano afectivo, embora com alguma lentidão, tudo tende a evoluir de forma positiva. No plano material terá de se esforçar muito mais no trabalho. Na saúde necessita de se movimentar mais.

Sagitário23 de Novembro a 21 de Dezembro XX O JULGAMENTO Algumas notícias surpreendentes poderão trazer modificações importantes à sua vida. No plano afectivo momento propício à evolução. No plano material vida sujeita a flutuações que merecerão medidas adequadas em cima dos acontecimentos. Na saúde tendência a problemas gastrointestinais.

Capricórnio22 de Dezembro a 20 de Janeiro XXII O LOUCO O Louco envolve sérios riscos, em particular no plano material. No plano afectivo a semana será de condução difícil. No plano material tendência a muita desorganização, próxima do caos. Não conceda empréstimos nem faça investimentos. Na saúde dedique mais tempo ao lazer.

Peixes 20 de Fevereiro a 20 Março XXI O MUNDOO Mundo coloca-o em posição de controlar a evolução dos acontecimentos e de sair favorecido de toda e qualquer ocorrência. No plano afectivo alguns relacionamentos podem acabar mal. No plano material estará sujeito a avaliações de mérito. Na saúde possíveis problemas renais.

Aquário21 de Janeiro a 19 de Fevereiro X Roda da FortunaA Roda da Fortuna traz uma corrente de mudança; poderá ter algumas mudanças de cariz positivo. No plano afectivo boas evoluções. No plano material poderá aceitar novas propostas; um desafio pode surgir feito à sua medida. De momento não se mostre ambicioso em questões económicas. Na saúde tendência para resultados rápidos.

tenha cuidado com consumo excessivo de gorduras.

Gémeos 22 de Maio a 21 de Junho XVI A TORRE Alguns problemas serão criados por terceiros e não por si e podem pôr em causa muito dos seus esforços. No plano afectivo riscos de sofrer um choque. No plano material a sua vida está bastante influenciada pela carta dominante. Na saúde deve acautelar-se com tudo o que se refere a deslocações.

Caranguejo22 de Junho a 23 de Julho I O MAGO O Mago traz uma semana de grandes impulsos e energia, mas que devem ser bem geridos. No plano afectivo semana positiva, com tendência para que tudo se harmonize. No

de 26 de Outubro a 1 Novembro

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