Publicao Entrevista Mary Pratt

download Publicao Entrevista Mary Pratt

of 7

Transcript of Publicao Entrevista Mary Pratt

  • 7/21/2019 Publicao Entrevista Mary Pratt

    1/7

    ENTREVISTA COM MARY LOUISE PRATT

    Novembro de 2005

    Mary Louise Pratt nasceu no Canad, em 1948, e hoje reside em Palo Alto, no estado da Cali-

    frnia, onde professora de Literatura Latino-americana e Literatura Comparada na Univer-

    sidade de Stanford, e desenvolve pesquisas sobre Literatura Latino-americana, crtica e teoria

    literria ps-colonial; mulher e cultura na Amrica Latina; e multiculturalismos. Entre 1998-

    99 atuou como pesquisadora-visitante no Centro de Investigacin y Estdios Superiores de

    Antropologia Social (CIESAS-Occidente) em Guadalajara, Mxico. Seus livros incluem Toward

    a Speech Act Theory of Literary Discourse (1980) e Imperial Eyes: Travel Writing and Trans-

    culturation (1992) publicado no Brasil pela EDUSC, em 2005, com o ttulo Olhos do Imprio

    relatos de viagem e transculturao. Alm disso, co-autora de Women, Culture and Politics

    in Latin Amrica (1990) e possui dezenas de artigos publicados em revistas cientficas. Mary

    Louise Pratt considerada um dos principais expoentes da chamada "virada literria" ocorri-

    da na Antropologia. Nessa entrevista ela nos conta sobre sua formao acadmica, suas prin-

    cipais influncias, os problemas da reminiscncia do pensamento imperialista na prtica et-

    nogrfica e aborda questes sobre gnero e etnicidade. Tudo de maneira prazerosa e elucida-

    tiva. Esperamos que apreciem a entrevista tanto quanto apreciamos faz-la.

    REVISTA HABITUS: Voc teve uma formao, digamos, bem tradicional - fez o bacha-

    relado em lnguas e literaturas, mestrado em lingstica, e doutorado em Literatu-ra Contempornea -, mas suas obras abordam questes como cultura, transcultu-rao, questes de gnero etc. demonstrando um forte dilogo com a Histria eAntropologia, tornando-se, inclusive, um dos pilares da chamada "virada literria"desta ltima disciplina. Conte-nos um pouco sobre sua peculiar trajetria intelec-tual.

    MARY LOUISE:Primeiro devo confessar quanto me incomoda este tipo reflexo autobiogrfica -

    vai de encontro s normas culturais de minha formao cultural anglo-canadense, que tem uma

    proibio, tanto rural como victoriana, contra o narcisismo. Noto, porm, que s posso afirmar

    isso por meio de uma afirmao autobiogrfica, narcisista..., no tem jeito.

    Olhando no espelho, ento, acho que uma das respostas a esta pergunta tem que ser geracional.Minha gerao de intelectuais no Norte experimentou, como estudantes, a revoluo intelectual

    da interdisciplinaridade, fruto, entre outras coisas, da crise dos saberes marcada pelo 1968. Por

    exemplo, quando cheguei Universidade de Stanford, para fazer o doutorado em 1971, apenas

    comeava um programa de Literatura Comparada, onde acabei fazendo o doutorado, e outro

    programa chamado Literatura e Pensamento Modernos (Modern Thought and Literature), que

    combinava os estudos literrios com estudos de Filosofia, Histria de idias, cultura popular,

    muitas coisas. (De fato, uma das primeiras graduadas desse programa escreveu sua tese sobre

    Mrio de Andrade como escritor, promotor cultural, e musiclogo tese impensvel em qual-

    Revista Habitu Vol. 3 - N 1 - Ano 2005

    www.habitus.ifcs.ufrj.br 1

  • 7/21/2019 Publicao Entrevista Mary Pratt

    2/7

    quer departamento disciplinar. Seu nome Joan Dassin, que trabalhou muitos anos no Brasil

    dirigindo os programas da Fundao Ford).

    Naquele momento, nos departamentos de Espanhol e Portugus, a grande novidade era a possi-

    bilidade de escolher a Literatura Latino-americana como campo principal, e no secundria

    peninsular. Naquele ano de 1971, foi oferecido o primeiro curso de teoria literria em Stanford,sobre os formalistas russos, cuja obra comeava a ser traduzida ao ingls Bakhtin ainda era

    desconhecido. Naquele curso, me lembro, ns tnhamos a impresso de estar fazendo uma coisa

    plenamente subversiva. Era verdade. Aquela relativizao da literatura imposta pela tica teri-

    ca, e aquela teorizao sklovskiana e proppiana da narrativa, independentemente da litarie-

    dade abriram vistas novas que permitiram, no meu caso, cenificar no meu primeiro livro um

    encontro entre formalismo russo, teoria dos atos discursivos de Austen, narratologia de Todorov

    e Greimas, fico experimental, e o trabalho do scio-linguista William Labov sobre a narrao

    espontnea oral.

    Os estudos tnicos e o feminismo foram duas grandes foras protagonizadoras no desenvolvi-

    mento da transdisciplinaridade. Para compreender o poder constitutivo do gnero e da raa era

    preciso operar simultaneamente em todas as esferas da prtica humana, desde a cotidianidade,

    Esttica, Filosofia, Fisiologia, tudo. Esses projetos intelectuais e emancipadores chamavam e

    motivavam colaboraes entre todas as disciplinas. Eles criavam novos contatos, novos cenrios

    e imperativos intelectuais, revolucionrios.

    Tambm fundamental reconhecer o impacto revolucionrio de Foucault, quem conseguiu con-

    solidar as aberturas em novas metodologias, novos projetos intelectuais, inventando, sobretudo,

    o estudo da institucionalidade. Nada mais transformador, por exemplo, que sua observao

    sobre a produtividade do poder, o fato que o poder opera no s por meio da represso, mais

    tambm pela produo de saberes, prazeres, mitos, estticas, desejos, esquemas do futuro, iden-

    tidades densas ainda que oprimidas ou subordinadas. Talvez hoje seja difcil recuperar a fora

    simultaneamente demodeladora e iluminadora de uma observao assim. A interao quase

    qumica entre as propostas metodolgicas de Foucault, as revelaes feministas sobre o gnero

    como fora estruturante da sociedade e dos sujeitos, e um tipo de militncia intelectual exigida

    pelos imperativos dos processos de descolonizao e antiimperialismo, foi um coquetel aluci-

    nante que dissolvia de maneira castica e liberadora as fronteiras tradicionais das disciplinas.Momento apaixonante. Concretamente, em Stanford, por exemplo, a leitura de Foucault, Geertz,

    Greer, mais tarde Said, e outros, ocasionou a fundao de um Seminrio sobre a Interpretao

    que, pela primeira vez, juntou o pessoal de Literatura, Antropologia, Direito, Arte, Histria,

    Filosofia. Foi embriagante.

    E que bom. Porque acho agora que foi principalmente a anacronia das disciplinas que produziu

    minha formao literria. Quando cheguei Universidade de Toronto em 1966, no nvel pr-

    grado no existia a opo de fazer carreira em Antropologia nem em lingstica, sem pensar nos

    estudos culturais. Para gente como eu, fascinada pelas lnguas e as alteridades, s existia Ln-

    guas e Literaturas Modernas, aparato cannico, eurocntrico, exigente e colonial. Recebi uma

    educao literria sem par, impossvel hoje. A minha grande sorte foi um ano de estudo em Tou-

    Revista Habitu Vol. 3 - N 1 - Ano 2005

    www.habitus.ifcs.ufrj.br 2

  • 7/21/2019 Publicao Entrevista Mary Pratt

    3/7

    louse e Salamanca (1968-69), que resultou num encontro com a dispora estudantil rabe nos

    dois pases; o vero de 1968 no Mxico, inesquecvel; e um professor jamaicano, Keith Ellis, que

    trouxe Toronto a potica marxista de Neruda e Guilln. Tomei classes em Toronto com o gran-

    de crtico Northrop Frye, e lendo-o agora vejo a tenso entre as exigncias disciplinares e o inte-

    lecto amplo, generoso, ambicioso, sinttico, democrtico dele, que, como Clifford Geertz, encon-trava todos os fenmenos culturais interessantes e sagrados. Eu tambm.

    Como estudante de doutorado em Stanford, tive a sorte de coincidir com a chegada da grande

    latino-americanista britnica, Jean Franco, quem trouxe o projeto da sociocrtica baseada em

    Raymond Williams e no marxismo ingls, acompanhado por dois compromissos fundamentais:

    com o estudo srio da cultura popular e de massas; e com o aporte de uma tica de gnero sobre

    a anlise da cultura e da Literatura Latino-americanas. O fato de coincidir com a chegada dela

    em Stanford foi um ponto fundamental na minha formao intelectual.

    Talvez a pergunta tenha tambm uma resposta pessoal. Cresci numa comunidade pequena erural onde a gente vivia muito ativamente no espao e na ecologia locais. Construamos nossas

    prprias diverses. Todo mundo sabia, tinha que saber fazer muitas coisas. As atividades muda-

    vam com as estaes, a gente vivia desfrutando a vida de muitas maneiras diferentes. Meus pais

    eram pessoas extrovertidas, curiosos, muito ativas mental e fisicamente, anti-elitistas.

    Que concluir desta orgia to anti-canadense de narcisismo? Que me tocou viver um momento

    histrico revolucionrio, que tive professores incrveis, e muita sorte. Tudo imerecido e agrade-

    cido.

    REVISTA HABITUS: Voc inicia seu artigo Fieldwork in common places- publicadoem Writing Cultures- com uma anlise sobre o debate acerca do livro Shabono: Atrue adventure in the remote and magical heart of the south american Jungle deFlorinda Donner, onde voc afirma estar claro as confusas e ambguas relaes daescrita etnogrfica na Antropologia. Muito bem, fica a pergunta, o que a escritaetnogrfica para voc? Uma constante relao de poder entre observador/nativo,subjetivo/objetivo? E, nesse sentido, costuma-se citar a obra Fisrt Time, de Ri-chard Price, como um livro que conseguiu resolver esta problemtica, voc acredi-ta que isto seja de fato possvel?

    MARY LOUISE:Pelo que me lembro, o que eu argumentei no caso do Shabono foi que os argu-

    mentos e evidncias etnogrficas usadas para demonstrar sua falsidade ou distingui-lo de uma

    etnografia "real" no eram logicamente coerentes, por isso uma etnografia no pode basear sua

    autoridade simplesmente em uma distino entre verdade x falsidade, verdade x inveno, ou

    preciso x distoro. Mas algum tipo de reivindicao da verdade constitutiva da etnografia.

    Muitas pessoas refletiram sobre esse problema, e ele um dos mais interessantes...

    Mas deixe-me retornar e observar que sua questo comete um deslize que comum mas tem

    conseqncias trocar falar sobre Antropologia por falar sobre etnografia. Elas no so a mes-

    ma coisa. O que quer que Antropologia seja, etnografia a prtica da escrita cujo projeto a

    mediao cultural ou, como Geertz gosta de dizer, traduo. Mediao cultural ocorre de dife-

    rentes maneiras por entre grupos humanos aonde quer que diferenas coexistam em contato,

    mediadores e prticas de mediao surgem, comeando com os intermedirios bilnges. En-tendimento intercultural e o papel do intermedirio cultural no so invenes da etnografia. Ao

    Revista Habitu Vol. 3 - N 1 - Ano 2005

    www.habitus.ifcs.ufrj.br 3

  • 7/21/2019 Publicao Entrevista Mary Pratt

    4/7

    invs disso, a ltima uma particular articulao do primeiro. uma prtica formada pela ex-

    panso ocidental e pelas assimetrias de poder por ela produzidas cmplice e adversria das aspi-

    raes imperiais do ocidente.

    Nos termos que estou sugerindo, etnografia inevitvel, no sentido que o contato cultural ocasi-

    ona a mediao cultural, e a mediao ser duplamente formada pelas e nas relaes em que ocontato ocorre. Mas assim como toda mediao cultural, etnografia pode ser bem ou mal feita,

    melhor ou pior, e isso que etngrafos tm lutado contra desde que suas prticas escritas foram

    abertas nos anos de 1980. Isto , desde que os agentes da descolonizao chamaram a etnografia

    a descolonizar ela mesma. First Time de Price um dos muitos experimentos empreendidos

    nesse processo de descolonizao, e bem sucedido, no sentido em que prope novas prticas

    de mediao, e novas formas de lidar com assimetrias de poder. Seu mrito no apagar o papel

    do mediador, todavia, ou a eliminao da mediao. O mrito uma mudana na forma que a

    mediao se d, na prtica.

    Hoje a etnografia um dos mais vigorosos e criativos campos da experimentao discursiva. Eu

    estou particularmente fascinada pelo trabalho de Anna Lowenhaupt Tsing em dois livros

    notveis, In the Realm of the Diamond Queen: Marginality in an Out-of the Way Place, e o seu

    mais recente Friction: An Ethnography of Global Connection (Princeton 2005). Seu trabalho

    ancorado no na idia de um outro circunscrito, mas em um mundo de interconexo no qual

    alteridade consiste em enormes e diferentes modos nos quais processos planetrios so vivenci-

    ados em lugares particulares.

    Tendo dito que a etnografia inevitvel, eu tambm gostaria de dizer que penso que ela ines-

    timvel, e subestimada. Em nosso suposto estado ps-colonial, se voc interpreta o pensamento

    atual da Europa Ocidental, ele permanece to Eurocntrico, imperioso, e ignorante quanto era

    h cem anos atrs. Ele continua reclamando um monoplio tcito de pensamento, de conheci-

    mento, da racionalidade, da gerao de valores coletivos. No se pode exagerar quo ofensivo e

    imperdovel essa deliberada ignorncia . Talvez isso signifique que a etnografia falhou em sua

    tarefa, falhou em educar pensadores ocidentais, que afinal no leram sua etnografia. Minha

    convico, na viso otimista, que etnografia, particularmente nas experincias brilhantes como

    essas de Price, Tsing e tantos outros, ser o agente de um importante avano intelectual do eu-

    rocentrismo para uma planetariedade.REVISTA HABITUS: Em um recente livro, Richard e Sally Price analisam os dirios decampo de Melville Herskovits no Suriname, onde, na palavra dos autores, confir-mou-se que "basicamente, Herskovits descobriu o que se dispusera a demonstrar",isto parece nos levar de encontro ao seu trabalho em Olhos do Imprio e Field-work, voc acredita que assim como os "seus" viajantes dos sculos XVIII e XIX osantroplogos so apndices de suas culturas natais, empreendendo esforos queterminam por consolidar formas de subjetividade e poder, muitas vezes se valendodaquilo que voc classificou como retrica da anti-conquista?

    MARY LOUISE:Primeiro preciso afirmar que no sou antroploga nem etngrafa. No conheo

    o campo como o conhecem os Price. Mais, pensando nas concluses predeterminadas, acho

    importante reconhecer que tanto a viagem como o trabalho de campo tendem a ser experinciasbastante caticas e improvisadas, cheias de surpresas e contingncias impossveis de antecipar.

    Revista Habitu Vol. 3 - N 1 - Ano 2005

    www.habitus.ifcs.ufrj.br 4

  • 7/21/2019 Publicao Entrevista Mary Pratt

    5/7

    Ento, essa determinao anterior que voc sugere sempre vai ser tambm frustrada, desequili-

    brada na experincia, e esses momentos de desequilbrio so os momentos de iluminao. Ainda

    nesses momentos, ningum deixa de ser um "apndice de sua cultura," mais "sua cultura" no

    determina o que vai acontecer nem o que aquele "agente" vai fazer. Estou procurando enfatizar a

    radical indeterminao da experincia tanto da viagem como do trabalho de campo,indeterminao que s cresce com o tempo (porque estas experincias se desdobram no tempo).

    Provavelmente a etnografia, como prtica de escritura, cai dentro da retrica da anti-conquista,

    quer dizer, demonstra uma postura de inocncia onde o agente invisibiliza os aparatos imperiais

    que produzem sua mobilidade. Como disciplina, a Antropologia busca profissionalizar essa posi-

    o de sujeito. Mas difcil impor paradigmas profissionais sobre o caos e a imprevisibilidade do

    trabalho de campo como mecanismo de construir saberes. Um dos elementos, para mim, mais

    engraados dessa profissionalizao justamente o fato de que o etngrafo, para fazer trabalho

    de campo, tem que apresentar uma proposta formal muito elaborada, explicando o que ele ou

    ela pensa fazer e descobrir na comunidade desconhecida que vai estudar. De fora, parece um

    ritual completamente irracional, louco. E verdade que produz exemplos, como o Herskovits

    estudado pelos Price, onde se descobre o que se buscava: a equipe de Harvard em Botswana

    queria descobrir nos bosqumanos um resto de uma etapa anterior da existncia humana e, nos

    escritos, declararam comprovar sua hiptese, a custo de negar a experincia histrica dos bos-

    qumanos e a historicidade de suas prprias relaes com eles. Mas tambm muito comum, no

    trabalho de campo, que o projeto proposto, na ignorncia, fique completamente abandonado

    nos primeiros meses, quando a aprendizagem do etngrafo o leva a rumos completamente dis-

    tintos. Esse o lado improvisado, imprevisvel que falei no comeo, que to essencial na etno-grafia como a predeterminao. Afirmar isso no idealizar. A leitora treinada em literatura

    tambm diria que, nos textos de Herskovits e companhia, as contradies entre o que insistiam

    em encontrar e as experincias que viviam so recuperveis nos prprios textos, mas isso no

    uma tarefa para o etngrafo, e tampouco contradiz as concluses dos Price.

    REVISTA HABITUS: Ao meu ver, um dos grandes mritos de Olhos do Imprio nun-ca abandonar uma viso analtica relacional, considero a utilizao do conceito detransculturao do cubano Fernando Ortiz sintomtico deste aspecto de sua obra.Gostaria de falar um pouco sobre isto. Pareceu-me que a sua obra avana um pou-co mais dentro deste conceito do que o que foi originalmente previsto por Ortiz.

    MARY LOUISE:Como voc assinala, acho fundamental desenvolver o pensamento relacional, euma de minhas grandes frustraes no ter avanado suficientemente nessa direo. Trabalhei

    trs anos num projeto para desenvolver uma teoria relacional e global da modernidade. Os an-

    troplogos sempre gostavam muito, mas entre historiadores e filsofos o trabalho provocava

    tanta raiva e agressividade que deixei de apresent-lo em pblico.

    REVISTA HABITUS: Algumas feministas celebram a literatura do sculo XIX comomarca da construo do "sujeito feminino" nesse mbito; um outro ponto de vistaconcebe essa construo como resultante do processo imperialista baseado numanoo de sujeito individualista. Tendo em vista a atual reviso da literatura impe-rialista desse sculo, como voc (re)coloca a questo da construo do "sujeito

    feminino" no gnero literrio?

    Revista Habitu Vol. 3 - N 1 - Ano 2005

    www.habitus.ifcs.ufrj.br 5

  • 7/21/2019 Publicao Entrevista Mary Pratt

    6/7

    MARY LOUISE:Eu tenho um ponto de vista um pouco mais complexo desta questo. Na minha

    opinio o que produz o "sujeito feminino" no sculo 19 precisamente as contradies gritantes

    entre, de um lado, a promessa do individualismo com seu corolrio, igualitarismo, e, de outro, a

    marginalizao e privatizao da mulher. Isto influiu nas vidas e obras de quase toda mulher

    escritora e intelectual que voc pode pensar do sculo 19, de Flora Tristan a Mary Shelley e Clo-rinda Matto de Turner.

    Eu tendo a concordar com a historiadora Joan Landis que a democratizao de polticas obtidas

    depois da Revoluo Francesa foi consolidada no sculo 19 s custas da mulher, que teve que ser

    excluda desse processo para que a hegemonia burguesa fosse consolidada. Seno, uma revolu-

    o social muito mais radical teria se seguido. No bvio que as mulheres eram mais livres no

    sculo 19 do que elas eram no sculo 18, e claro que, ao longo do sculo XIX, os esforos das

    mulheres para reclamar os frutos da democratizao resultaram em crescentes formas de re-

    presso, de movimentos sociais higienizadores at prises para mulheres, sanatrios e sistema

    de ensino emburrecedor.

    afortunado, na minha opinio, que as mulheres tenham estabelecido suas queixas por alfabe-

    tizao e erudio antes do sculo 19. Foi isso que tornou possvel exigir acesso ao contrato soci-

    al, contra os esforos que tentavam imobiliz-las em uma domesticidade privatizada. O fato de

    que as mulheres s podiam falar como mulheres, e tendiam a falar de e para mulheres, signifi-

    cava que elas no podiam perceber o paradigma individualista do mesmo modo que os homens.

    Elas eram sempre marcadas como membros de uma categoria coletiva. Em figuras como Flora

    Tristan ou Gertrudis Gmez de Avellaneda, inquestionavelmente individualistas radicais, tanto

    individualismo e identidade coletiva aparecem simultaneamente.

    O imperialismo deu poder s mulheres como indivduos ou individualistas? Isso pde ser feito

    mais claramente quando foi permitido a elas viajar, isto , a adentrar espaos geogrficos e soci-

    ais no governados pelas regras de domesticidade e do regime de reproduo heterossexual.

    Alguns tipos de viagem ofereciam formas particulares de liberao para mulheres e gays, e mui-

    tos deles nunca retornavam para suas casas. O imperialismo deu poder as mulheres como impe-

    rialistas? Inquestionavelmente. Seja viajando como exploradoras, aventureiras, ou como espo-

    sas de oficiais colonizadores, a experincia do poder imperial era suas vidas. Essas formas gene-

    rificadas do poder imperial contriburam para criar e dar poder ao sujeito feminino na Europa eAmricas durante o sculo 19? Provavelmente. Um argumento similar pode ser construdo sobre

    a emergncia do sujeito gay no nascer do sculo 20 Immoraliste de Gide.

    REVISTA HABITUS: Como voc pensa a atual "crise" de paradigmas da rea de estu-dos de gnero, que problematiza anlises centradas na idia de identidades generi-ficadas, e como essa "crise" repercute em sua obra?

    MARY LOUISE: Simplificando demais, os paradigmas entram em crise porque so ou reprimi-

    dos ou superados. Reprimidos: Coprnico. Superados: Ptolemy. Acho que no estudo de gnero,

    de sexualidade, e de raa ocorrem ambas as coisas. Os paradigmas so superados quando j

    revelaram o que podiam revelar, e essas revelaes j foram absorvidas nas prticas de pensa-

    mento, abrindo passo para uma nova etapa. Quanto ao gnero, por exemplo, alguns conceitos

    Revista Habitu Vol. 3 - N 1 - Ano 2005

    www.habitus.ifcs.ufrj.br 6

  • 7/21/2019 Publicao Entrevista Mary Pratt

    7/7

    o poder constitutivo do gnero, a performatividade, a instabilidade e mutabilidade dos paradig-

    mas do gnero e sexualidade, a idia do patriarcado e o poder flico j foram absortos, aceita-

    dos (sou ingnua?). Por outro lado, acho que existe tambm um "backlash" repressivo que toma

    a forma, por exemplo, de insistir numa volta universalidade da Ilustrao, re-consagrar aquele

    paradigma que achvamos superado.A crtica s polticas de identidade epidmica, e verdade que s as polticas inclusivas vo

    salvar nossas sociedades e o planeta. Mas fcil esquecer que a origem dos movimentos de iden-

    tidade foi justamente a no-inclusividade do paradigma herdado da Ilustrao. Os movimentos

    de identidade s aparecem depois de largas lutas para conseguir a incluso e igualdade nas insti-

    tuies, nos processos polticos, no acesso mobilidade social etc. E s quando essas lutas no

    do fruto que se comea a armar um espao identitrio do qual se segue lutando. Esse espao

    converte a excluso num poder afirmativo, generativo.

    Entrevista realizada por: Bianca Soares e Orlando Costa.

    Revista Habitu Vol. 3 - N 1 - Ano 2005

    www.habitus.ifcs.ufrj.br 7