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A ESCRITA HISTRICAE SUAS MLTIPLAS FACES
ZLIA LOPES DA SILVAKARINA ANHEZINI(Organizadoras)
FCL - Assis - UNESP - Publicaes
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ESCRITA HISTRICA
E SUAS MLTIPLAS FACES
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Vice-reitor no exerccio da Reitoria Julio Cezar Durigan
Diretor da Faculdade de Cincias e Letras Campus de Assis
Dr. Ivan Esperana Rocha
Vice-Diretora da Faculdade de Cincias e Letras Campus de Assis Dr. Ana Maria Rodrigues de Carvalho
Chefe do Departamento de Histria
Dr. Andrea Lcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi
Coordenador da Ps- Graduao em Histria Dr. ureo Busetto
COMISSO CIENTFICA
Dr. Andrea Lcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi Dr. ureo Busetto
Dr. Karina Anhezini de Arajo Prof. Dr. Tania Regina de Luca Prof. Dr. Zlia Lopes da Silva
Reviso Portugus
Olga Liane Zanotto Manfio Jaschke
Diagramao e normas tcnicas Aline Michelini Menoncello
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ZLIA LOPES DA SILVA
KARINA ANHEZINI
(Organizadoras)
A ESCRITA HISTRICA
E SUAS MLTIPLAS FACES
Assis
FCL Assis UNESP Publicaes
2011
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) Biblioteca da F.C.L. Assis UNESP
E74 A escrita histrica e suas mltiplas faces / Zlia Lopes da Silva, Karina Anhezini (organizadoras).- Assis: FCL-Assis-UNESP- Publicaes, 2011 989 p. : il. ISBN: 978-85-88463-66-0 1. Cincia poltica. 2. Religio. 3. Cultura. 4. Sociedades. I. Silva, Zlia Lopes da. II. Anhezini, Karina.
CDD 200 301.2
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SUMRIO
APRESENTAO 11 I PRTICAS RELIGIOSAS E PODER POLTICO 1.1. As experincias religiosas e prticas de poder na Antiguidade Clssica e no medievo
Algumas manifestaes religiosas orientais em Roma no Principado: Petrnio e Marcial Amanda Giacon Parra 21 O III Conclio de Toledo (589) e a converso da Hispnia visigoda Pmela Torres Michelette 43 O valor das prticas religiosas como objeto de disputa poltica: consideraes sobre as reformas religiosas de Licurgo e Demtrio de Falero em Atenas no ltimo tero do sculo IV A.C. Rafael Virglio de Carvalho 63 As diferentes interpretaes do texto hagiogrfico: Uma anlise sobre a Vita Desiderii de Sisebuto de Toledo (612-621) Germano Miguel Favaro Esteves 103 Da Quanta Cura (1864) de Pio IX a Rerum Novarum (1891) de Leo XIII: os discursos entre afastamentos e aproximaes com a modernidade Carolina de Almeida Batista 123 Horcio, O Poeta da Festa Cludia Valria Penavel Binato & Mirtes Rocha Rodrigues 141
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1.2. Questes religiosas na Amrica Portuguesa e no Brasil.
Impresses e apontamentos dos missionrios jesutas quanto aos costumes e etiqueta japonesa Mariana Amabile Boscariol 161 A prtica do judasmo no lar neocristo: heranas da tradio sefaradi na Amrica Portuguesa Helena Ragusa 191 Conservadores x Progressistas: uma representao histrica da Igreja catlica brasileira em anos ditatoriais (1968-1974). Glauco Costa de Souza 193 O Reino de Deus na terra: mudanas teolgicas e participao poltica no pentecostalismo brasileiro Vitor Aparecido Santos de Paula 213 II - CULTURA E SEUS SUPORTES: IDENTIDADES E REPRESENTAES 2.1. Os intelectuais, a imprensa e outros meios de comunicao Construindo um problema: o entusiasmo intelectual nas cartas do Centro Cultural Euclides da Cunha Itamar Cardozo Lopes 245 Construindo uma autoimagem: as memrias de Joel Silveira Danilo Wenseslau FERRARI 281 Joaquim e o Jornal Meio-Dia (1939-1942) Joo Arthur Ciciliato Franzolin 303 Os dilemas do movimento operrio brasileiro: a Revoluo Russa na imprensa dos anarquistas (1917-1922). Leandro Ribeiro Gomes 323 Soluo americana: Argentina e Estados Unidos por meio do jornal A Provncia de So Paulo (1875-1889) Paula da Silva Ramos 347
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As escolas de engenharia e a produo do saber Fernanda Ap. Henrique da Silva 371 Portugal livra-se do passado: cobertura jornalstica da revista Veja Revoluo dos Cravos (maio de 1974) Rafael Henrique Antunes 389 Mdia comunitria, democratizao da comunicao e as interferncias polticas Vanessa Zandonade 403 A TV Cultura: uma nova Emissora Associada voltada para So Paulo, 1960-1967. Eduardo Amando de Barros Filho 417 Os debates e as aes de teleducao durante o regime militar (1964 1985) Wellington Amarante Oliveira 433 Possveis relaes entre agncias de propaganda e a ditadura militar brasileira. David A. Castro Netto 449 A instituio em foco: a criao da ANCINE e o desenvolvimento do cinema nacional William Geraldo Cavalari Barbosa 485 2.2. As festas, prticas educativas e de sociabilidades A experincia pelo relato de quem a fez: uma histria do projeto banda Lokonaboa Guilherme Gonzaga Duarte Providello 503 Carnavais Cariocas: entre a teoria e a prtica Danilo Alves Bezerra 521 Festa: um dia de exceo Priscila Miraz de Freitas Grecco 549 Mulheres Organizadas Jamilly da Cunha Nicacio 563
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2.3. Os locais de memria e as polticas culturais do patrimnio Instituies de proteo ao patrimnio cultural: um olhar sobre as prticas polticas do Condephaat no oeste paulista (1969 1999) Rodrigo Modesto Nascimento 587 Arquivos pessoais e acervos literrios: o caso do arquivo pessoal do escritor Joo Antnio (1937-1996) Thais Jeronimo Svicero 605 Resistncia e memria: Santo Dias, histria de uma vida militante, 1962-1988. Carlos Alberto Nogueira Diniz 629 Memrias e gnero no espao urbano: reflexes. Bruno Sanches Mariante da Silva 647 III - DIMENSES DA POLTICA Ideias em movimento. Por uma histria conectada do movimento operrio mexicano e brasileiro no perodo de expanso Comunista. Fbio da Silva Sousa 663 Instituio do policiamento ambiental paulista: condies sociopolticas e econmicas (1930 1949) Adilson Lus Franco Nassaro 681 Os veteranos da FEB: O Conflito ideolgico na Associao de Ex-Combatentes do Brasil (1945-1950) Carlos Henrique Lopes Pimentel 705 Oposio armada aos governos militares brasileiros (1964-1985): a trajetria do Movimento Comunista Revolucionrio (MCR) Fabricio Trevisan Florentino da Silva 727 Debate: Atenuando a aridez do exlio Rodrigo Pezzonia 761
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Industrializao, urbanizao e pensamento jurdico no Brasil entre os anos de 1945 e 1964 Patrcia Graziela Gonalves 791 Ideias e debates na defesa da industrializao de So Paulo na Primeira Repblica (1889-1930) Toms Rafael Cruz Cceres 827 Terrorismo e a agenda/presso poltica dos Estados Unidos: o caso da trplice fronteira Srgio Luiz Cruz Aguilar 853 Aumento da governabilidade, poltica de mercs e concesso de sesmarias: fundamentos prticos da ao metropolitana no processo de ocupao das minas de Cuiab (1721 1728) Luis Henrique Menezes Fernandes 878 IV - HISTRIA, FILOSOFIA E CINCIAS SOCIAIS: DEBATES NA ESCRITA DA HISTRIA Genealogia e hermenutica: novas perspectivas nas relaes entre histria e filosofia Lucas de Almeida Pereira 913 Aproximaes entre Thompson e Foucault na historiografia brasileira dos anos 80: alguns apontamentos. Igor Guedes Ramos 931 A semelhana e a mediao do conhecimento na concepo de Walter Benjamin. Victor Martins de Souza 957 Da guerrilha ao socialismo: Florestan Fernandes e a revoluo cubana. Barthon Favatto Suzano Jnior 971
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APRESENTAO
O livro Escrita histrica e suas mltiplas faces agrega textos de discentes da
Faculdade de Cincias e Letras/UNESP, vinculados ao Programa de Ps-
Graduao em Histria/Assis, que versam sobre as temticas articuladas s
linhas de pesquisa desse Programa que tratam de aspectos multifrios da
cultura, poltica e religio. Essa produo resultante da participao na
XXVII Semana de Histria, ocorrida em novembro de 2010, que incorpora,
tambm, contribuies de pesquisadores, professores e alunos, de outras
instituies. Portanto, os escritos aqui reunidos foram sistematizados nos
tpicos Prticas religiosas e poder poltico; Cultura e seus suportes:
identidades e representaes; Dimenses da poltica e Histria, Filosofia e
Cincias Sociais: debates na escrita da Histria.
O primeiro bloco temtico Prticas religiosas e poder poltico rene
textos que objetivam detectar as articulaes do campo religioso com o
poltico, em temporalidades e dimenses distintas da Antiguidade greco-
romana, do medievo e do sculo XIX, na Europa, na sia e Amrica
portuguesa (sculo XVI) e do Brasil do sculo XX, discutidos com base em
assuntos diversos.
Na primeira parte do tpico inicial, as inquiries dos autores visam
detectar as mudanas de prticas religiosas na cidade de Atenas sob o domnio
de Licurgo e sua comparao com as formulaes de Demetrio, que usam as
reformas religiosas como estratgias de controle poltico e de fortalecimento
de certos grupos em detrimento de outros; identificar as religies praticadas na
cidade de Roma no decorrer do primeiro sculo e incio do segundo, perodo
do Principado, apoiadas nas fontes Satyricon, de Petrnio e os Epigramas, de
Marcial; aspectos da religio catlica no perodo medieval e no sculo XIX,
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
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notadamente as relaes entre o imprio romano e a igreja oficial; o gnero
hagiogrfico, valendo-se da produo de obras voltadas para a propaganda
de centros de peregrinao e dos santos, gnero que se consolidou na Idade
Mdia, com a expanso do cristianismo e a difuso do culto aos santos.
Outros aspectos dessas relaes entre poltica e religio podem ser detectados
voltando-se o olhar s diretrizes polticas papais, no sculo XIX e as relaes
dos visigodos e a maioria dos reinos germnicos em suas conexes com o
imprio romano e a igreja oficial.
No sculo XIX, verificam-se mudanas e direcionamentos, assumidos
pelos discursos dos Pontfices Pio IX (1846-1878) e Leo XIII (1878-1903),
analisando suas especificidades no perodo de 1864, com a publicao da
encclica Quanta Cura, que condenava os erros da poca (modernidade), a 1891,
data da publicao da encclica Rerum Novarum, cuja perspectiva era colocar em
evidncia a questo social.
J os textos que tratam da experincia religiosa na sia e Amrica
portuguesas, no sculo XVI, abordam as questes da cristianizao do Japo
pela Companhia de Jesus e a vinda dos judeus Sefarditas para a colnia
brasileira, fugindo das perseguies ibricas e do estigma de cristos novos.
Esse subitem apresenta, ainda, textos que discutem o conflito interno que
ocorreu entre os grupos catlicos (conservadores e progressistas), nas dcadas
de 60 e 70 do sculo XX, e a ampliao, na dcada 1980, das Igrejas
pentecostais no Brasil que embora presentes no pas, h quase um sculo,
somente ganham visibilidade social nesse perodo. Essas alteraes decorrem
de mudanas de perspectiva na interpretao doutrinal que se manifestam,
entre outros aspectos, na ampliao de seu espao de atuao para fora do
campo propriamente religioso.
Sob o ttulo Cultura e seus suportes: identidades e representaes,
embora variados, os autores trazem um amplo leque de temas enfeixados em
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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trs subdivises que versam sobre os intelectuais, os meios de comunicao e
imprensa, as festas, a educao e as diferentes prticas de sociabilidades, e os
bens culturais em modalidades distintas que marcam as especificidades do
prprio objeto. Isso significa dizer que o eixo das reflexes busca certas
dimenses do campo cultural cuja nfase, em alguns desses escritos
demarcar os procedimentos tericos e metodolgicos para enfocar as
temticas aludidas.
As reflexes que abordam os intelectuais indicam que eles so flagrados
em situaes e atividades diversas: militando na imprensa, intervindo na
poltica como os engenheiros na escola de Minas, no movimento operrio
divulgando as ideias comunistas e libertrias valendo-se da imprensa operria
no Brasil e no Mxico. Outro conjunto de textos aborda os meios de
comunicao em seus diferentes suportes como a instalao dos canais de TV
no Brasil, entre tantos outros assuntos cuja preocupao refletir sobre os
mecanismos que propiciam o forjamento de certos temas no mbito desse
suporte.
O tpico As festas, prticas educativas e de sociabilidades agrega
textos que tm em comum, a discusso das festas profana e religiosa cujos
escritos versam sobre as manifestaes carnavalescas, vistas a partir de suas
inflexes tericas e a festa religiosa, com base no ensaio Todos os santos, dia
de finados, de Octavio Paz, que trata de questes culturais do Mxico. E,
ainda, dois textos que abordam as experincias de sujeitos que, por muito
tempo, foram excludos das reflexes historiogrficas como as mulheres (no
caso as presbiterianas) e os loucos.
O ltimo subitem desse bloco aborda a problemtica da memria e dos
bens culturais, com foco no arquivo pessoal do escritor Joo Antnio (1937-
1996) que se encontra depositado na Universidade Estadual Paulista Jlio de
Mesquita Filho Faculdade de Cincias e Letras de Assis/UNESP e nas
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
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diretrizes polticas para a preservao e tombamento dos bens culturais no
Estado de So Paulo, com base na anlise da atuao do Condephaat
(Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Artstico, Arqueolgico e
Turstico do Estado de So Paulo). E, tambm, na experincia de sujeitos que
tm sua memria rastreada a partir de lugares especficos de memria como as
ruas, praas e monumentos e, de suas militncias polticas, associadas s lutas
sindicais que so ponto de partida para delinear a memria de seus
protagonistas.
Dimenses da poltica surpreende o leitor com um rol variado de temticas que do conta dos imbricados espaos da poltica nacional e internacional. Com uma abordagem promissora, a histria conectada, a compreenso da circulao das ideias do movimento operrio mexicano e brasileiro na primeira metade do sculo XX ganha destaque. No mbito da Histria Ambiental, outra face da poltica ocupa a primeira cena no artigo dedicado instituio do policiamento ambiental, em So Paulo. A Histria Militar vem ganhando uma ampliao de suas abordagens e questes e se lana ao desafio das anlises dos conflitos e de algumas personagens relegadas ao esquecimento: tema do texto dedicado Associao de Ex-combatentes da Fora Expedicionria Brasileira. Com base na histria do cotidiano da militncia poltica, o jogo existente entre as concepes polticas dos governos militares e as aes e identidades dos integrantes do Movimento Comunista Revolucionrio mapeado por meio da anlise de processos-crime. A militncia durante o regime militar tema, tambm, de outro captulo dedicado ao estudo do grupo DEBATE, e de seu meio de divulgao, a revista Debate: Problemas da Revoluo Brasileira. Importante veculo de informao e troca de ideias, a revista representou um local de confluncia para parte dos exilados brasileiros que se encontravam na Frana na primeira metade da dcada de 1970.
O contexto de industrializao e urbanizao do Brasil de meados do sculo XX chave interpretativa do texto dedicado a compreender a
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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formao do pensamento jurdico no Brasil nesse perodo. Valendo-se da anlise dos discursos dos juristas, a autora busca mapear as transformaes sociais e polticas que afetaram a conformao do poder judicirio. Destaque dado industrializao, tema de outro captulo que, por meio de diversas fontes (Anais do Parlamento Brasileiro, Relatrios da Associao Industrial e peridicos), trata da industrializao como um movimento de intricados debates durante a Primeira Repblica, em So Paulo.
A fronteira foi tematizada nos captulos que encerram essa subdiviso
dedicada s dimenses da poltica. Emblemticos para demonstrar a
diversidade de abordagens, campos e assuntos que a Histria Poltica
renovada comporta, esses captulos levam o leitor do estudo do papel da
metrpole no processo de dilatao das fronteiras da capitania de So Paulo e
ocupao das minas da Cuiab setecentista anlise das notcias veiculadas na
imprensa brasileira logo aps os atentados de 11 de setembro e a presso
poltica dos Estados Unidos no caso da trplice fronteira.
Fecha o livro as reflexes agrupadas em Histria, Filosofia, e Cincias
Sociais: debates na escrita da Histria. Preocupados com questes tericas
que cercam o ofcio do historiador, os autores se debruam sobre algumas das
problemticas e frutferas relaes entre Histria e Filosofia: a perspectiva
genealgica derivada das pesquisas de Michel Foucault e a leitura
hermenutica de Paul Ricoeur so colocadas em dilogo na tentativa de
mapear as possveis contribuies desses sistemas para os historiadores; na
seara da Histria da Historiografia, a produo dos anos 80 posta em mira
para averiguar as aproximaes e apropriaes de E. P. Thompson e Michel
Foucault realizadas pela historiografia brasileira. Com base na reflexo
provocada pelo ensaio As doutrinas da Semelhana (1933) de Walter Benjamin
so discutidas as formas de tramitao/mediao do saber. A aproximao da
Histria com as Cincias Sociais tematizada por meio do estudo da obra Da
Guerrilha ao Socialismo: a Revoluo Cubana, de autoria do socilogo Florestan
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.)
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Fernandes, um marco dos estudos a respeito de Cuba, que contribui para a
compreenso do cenrio terico e poltico da sua poca de produo.
Com esses quatro grandes eixos temticos, o leitor dispe de uma obra
com resultados de pesquisas e ensaios que abarcam uma diversidade de temas,
perodos e abordagens capazes de evidenciar o vigor da historiografia
contempornea em formao.
Zlia Lopes da Silva Karina Anhezini
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I
PRTICAS RELIGIOSAS E PODER POLTICO
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1.1
As experincias religiosas e prticas de poder na Antiguidade Clssica e no medievo
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Algumas manifestaes religiosas orientais em Roma
no Principado: Petrnio e Marcial
Amanda Giacon PARRA*
Introduo
nicialmente, destaca-se que este artigo parte de uma pesquisa
desenvolvida, que abrange as fontes Satyricon de Petrnio e Epigramas de
Marcial, e que busca entender as religies praticadas na cidade de Roma
no decorrer do primeiro sculo e incio do segundo, perodo do Principado.
O artigo trar comentrios acerca da religio romana no perodo, em
seguida um breve resumo sobre cada uma das fontes, a anlise delas e algumas
consideraes a respeito do tema.
As religies em Roma no primeiro e incio do segundo sculos
As religies vividas pelo povo romano tinham caractersticas diferentes
das religies mais praticadas nos dias de hoje, por isso, importante elencar
alguns conceitos ou princpios, com base nos quais se pode ter uma ideia de
como se organizavam as crenas, ou seja, como se dava a experincia religiosa
do povo romano no mbito pblico.
A maneira de crer dos romanos diferente de qualquer ideal cristo
de crena. Para os romanos antigos, explicam Linder e Scheid, crer era
* Doutoranda em Histria/UNESP/Assis. Orientadora: Dr. Andrea Lcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi.
I
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 22
fazer. Crer na Roma antiga equivalia a ter uma confiana cega no rito [...]
(1993, p.58, minha traduo)1. Ou seja, crer significava acreditar no poder do
ritual e buscar sua perfeita execuo.
Scheid enumera alguns dos maiores princpios. O primeiro deles que a
religio romana uma religio sem revelao, sem livros revelados, sem
dogma e sem ortodoxia. O que existe a chamada orthopraxis, a
performance correta que descreviam os rituais (SCHEID, 2003, p.18, minha
traduo)2.
Como destaque entre os conceitos que envolvem a religio dos
romanos, poderia-se citar a supervalorizao do rito. Enquanto o povo grego
valorizava o mito, os romanos valorizavam o rito (SCARPI, 2004, p.154).
Estes acreditavam que quando o ritual era perfeitamente executado, os deuses
permitiriam a manuteno do equilbrio da cidade, ou seja, a observncia ao
ritual trazia o equilbrio das relaes entre homens e deuses, o que eles
chamavam de pax deorum.
Um ponto importante a respeito da religio pblica praticada no
Imprio que se trata de uma religio social, ligada comunidade. H tantas
religies romanas quanto grupos sociais: os cidados, as legies, as vrias
unidades das legies, colgios dos servidores pblicos, artesos, famlias, entre
outros (SCHEID, 2003, p.19).
Destaca-se, ainda, que se tratava de um modelo cvico de religio: [...]
respeitava-se a liberdade do cidado e ajudava-o no estabelecimento de
relaes com os deuses fundadas especialmente na razo mais do que no
medo (SCHEID, 2003, p.21).
1'Croire', dans la Rome ancienne, quivalait faire une confiance aveugle au rite [...] 2 This was a religion without revelation, without revealed books, without dogma and without orthodoxy. The central requirement was, instead, what has been called orthopraxis, the correct performance of prescribed rituals.
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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Um conceito importante na religio tradicional romana a ideia de
religio. Trata-se da prpria reverncia prestada aos deuses, da prtica religiosa,
da crena religiosa; era a cerimnia, o rito, o respeito aos princpios religiosos.
A observncia dos atos rituais dos romanos percebida, por exemplo,
por meio de um calendrio religioso festivo bastante rigoroso. Havia diversas
festas anuais em honra a vrios deuses e a quantidade de deuses cultuada pelos
romanos era bastante significativa. A estrutura do calendrio religioso
compreendia muitas comemoraes como, por exemplo, a Ceralia, a Vestalia, a
Liberalia, entre outras.
As divindades cultuadas na religio pblica eram inmeras. Segundo
Scarpi (2004, 144-147), a trade arcaica de deuses romanos era baseada nos
modelos indo-europeus e constitua-se de trs divindades: Jpiter, Quirino e
Marte. Posteriormente, substituiu-se pela trade: Jpiter, Juno e Minerva.
Em determinados perodos, Roma contou tambm com o culto
imperial. Foi o caso do perodo tratado neste estudo, o Principado. Um dos
elementos mais caractersticos da religio romana nos primeiro e segundo
sculos foi o fato de se divinizarem alguns imperadores mortos e lhes render
culto.
Este culto, que ocorria em toda a extenso territorial romana, era feito
justamente para garantir o poder de Roma sobre todas essas terras. Era uma
forma de legitimao devido grande influncia territorial da cidade. Nele, o
princeps de Roma tornava-se divus, divino, e Roma a dea Roma, deusa Roma
(SCARPI, 2004, p.175).
Para o entendimento da religio romana o conceito de mos maiorum
imprescindvel. De forma simplificada, o conceito diz respeito tradio
romana, conservao dos costumes dos antepassados (SCARPI, 2004,
p.142). Ou seja, os romanos apreciavam a preservao dos costumes tambm
no campo religioso.
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 24
A religio era uma marca da identidade romana e ser cidado romano
era condio para praticar a religio (SCARPI, 2004, p.140). E essa religio
que constitui parte da identidade romana que chamamos de religio pblica
estava intrinsecamente relacionada s estruturas do Estado.
Os cultos orientais em Roma
A ideia de sincretismo aberto, proposta por Chevitarese e Cornelli para
tratar as interaes culturais ocorridas no mediterrneo Antigo, se mostra
vlida e atual tambm no estudo que aqui se apresenta. Isso ocorre porque, no
perodo tratado, Roma se apresentava como uma cidade bastante heterognea.
Como afirma Guarinello,
[...] o Imprio foi resultado de um lento processo de conquista militar e centralizao poltica, primeiro da cidade de Roma sobre a Itlia, depois da prpria pennsula sobre as demais regies que margeiam o Mediterrneo. [...] Visto em seus prprios termos, o Imprio Romano no circunscrevia uma organizao social homognea e singular, mas agrupava sociedades completamente distintas. (GUARINELLO, 2006, p.14).
Estas vrias sociedades se refletiam, sobretudo, na metrpole Roma.
Sabe-se, portanto, que a cidade de Roma sofreu influncias de muitas culturas,
absorveu e modificou, segundo os seus parmetros, diversos cultos, entre eles
os cultos que compem o objeto desse estudo.
J no fim do sculo III a.C., quando a civilizao romana entrou em
contato com diversas culturas, tanto a cultura grega quanto as orientais, foi o
momento no qual os romanos adotaram e, aos poucos, modificaram vrias
experincias religiosas.
Os cultos elencados para o estudo nesta pesquisa so, justamente, os
cultos advindos de outras localidades, ou seja, que no se constituram, mas
foram reinventados, na cidade de Roma. O culto de Priapo e do casal Cibele e
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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tis fazem parte de um fenmeno ocorrido no mundo helenstico-romano,
trata-se da entrada dos cultos orientais.
A definio dada por Sanzi, de tal fenmeno, a seguinte:
[...] refere-se a algumas manifestaes religiosas voltadas para divindades especficas originrias do Egito e do Oriente Prximo Antigo disseminadas em momentos diversos e com xito desigual nas diversas regies do Imprio de Roma, de modo especial durante o segundo helenismo; em seu conjunto estas constituem um fenmeno especfico (SANZI, 2006, p.37).
Algumas especificidades desses cultos, segundo Sanzi, podem ser
destacadas. Em primeiro lugar, esses cultos no requeriam uma adeso
exclusiva da parte dos fiis (BIANCHI apud SANZI, 2006, p.37), alm disso,
em contato com a cultura greco-romana adquiriram uma evoluo de seu
complexo mitolgico e ritual, tornando-se cultos de mistrios (SANZI, 2006,
p.38).
Priapo veio da sia Menor, mais exatamente da cidade de Lmpsaco,
seu culto surgiu por volta do sculo IV a.C. O deus chegou a ser representado
em inmeros espaos diferentes: portos, encostas, praias, espao rural, jardins
e atuava tambm no poder procriador da Natureza (OLIVA NETO, 2006,
p.18-19).
Era representado normalmente sob a forma de um membro viril. s
vezes, encontrado na iconografia como um homem com um grande falo ou
ainda como um hermafrodita.
Como afirma Funari, o membro masculino em ereo era, na
Antiguidade Clssica, associado vida, fecundidade, sorte e afastava
malefcios, tinha poder de amuleto (FUNARI, 2003, p. 319) e j era cultuado
em Roma muito antes da chegada de Priapo. Pois, na Antiguidade, as esferas
religiosa e sexual estavam interligadas, no se pode, portanto, pens-las
separadamente (FUNARI, 2004, p.319).
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 26
Oliva Neto aponta que Priapo tornou-se popular em Roma. O autor
relata:
O culto sacro e profano de que Priapo foi objeto em Roma abrangeu todas as ordens sociais e foi preponderantemente privado. Entretanto, divindade humilde que era, foi religiosamente muito cultuado entre as ordens sociais mais baixas (pequenos agricultores e comerciantes) como patrono da fecundidade de hortas, pomares e, no mbito da casa, patrono at do matrimnio [...]. Nos estratos elevados, Priapo, relacionado que era ao poder catrtico e regenerador do riso, foi apropriado como personagem ridculo da poesia [...]. Mas no se exclui a possibilidade de ter recebido culto religioso ou ter feito parte dele entre as ordens menos baixas ou mesmo elevadas [...] (OLIVA NETO, 2006, p. 24-25).
No outro caso, tem-se um casal de deuses oriundos da Frgia, cultuados
em Roma no perodo aqui tratado: Cibele e tis. Os cultos em honra a esse
casal chegaram a Roma em 204 a.C. Inicialmente, Cibele no teve um templo
prprio, ficou hospedada no templo de Vitria. S ter seu prprio templo em
191 a.C. no Palatino.
A chegada da deusa em Roma foi contada por alguns autores latinos,
tais como Tito Lvio e Ovdio. Na consulta aos livros sibilinos, em 204 a.C.,
durante as Guerras Pnicas, indicou-se que seria necessrio trazer a deusa
Cibele para Roma, a fim de que Anbal abandonasse a Itlia.
Alvar esclarece que a introduo de Cibele est relacionada
aristocracia romana (1994, p.161):
Cibele, introduzida por deciso aristocrtica, apresenta um perfil popular que expressa a concordia ordinum, o consenso dos grupos sociais ante o sacro procedimento para repelir o invasor cartagins. A histria de Cibele em Roma reproduzir a tenso do conflito de classes e a contradio da conduta do grupo dominante entre a
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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marginalidade e a integrao do culto.3 (ALVAR, 1994, p.163, minha traduo).
Os sacerdotes do culto de Cibele eram chamados galli e o sumo
sacerdote era o archigallus. Todos esses sacerdotes deveriam ser eunucos,
castravam-se nos rituais.
Sanzi (2006, p.43-44) explica a festa em honra ao casal. De 15 a 27 de
maro havia as festividades em honra deusa Cibele. No dia 15 havia a
procisso das canforas. Do dia 16 ao 22 fazia-se abstinncia; o chamado
castus matris deus, requeria restries alimentares e de prticas sexuais; enfim,
ritualmente, todos estavam participando da dor de Cibele pelo fato de ter
perdido seu parceiro tis. No dia 22 era realizada a cerimnia do arbor intrat,
na qual os participantes portavam ao santurio uma rvore e os instrumentos
rituais (siringe, verga, cmbalos, os tmpanos e flauta dupla presa com ramos);
dia 24, o dies sanguinis era o dia em que se emasculavam os galli e em que,
seguindo o exemplo de tis, os fiis se flagelavam ao som dos instrumentos
rituais. A alegria voltava a reinar nas festividades somente no dia 25, quando
tis, ritualmente, voltava a viver. O dia 26 era um dia de repouso chamado
requietio. E dia 27 acontecia a cerimnia da lavatio.
O culto de Cibele foi includo no calendrio oficial das festividades
romanas a partir da criao do templo em honra deusa. A esse respeito Alvar
assevera: Cibele triunfou em Roma. Seu culto acabou integrado ao calendrio
oficial e, sem dvida, as caractersticas de seus ritos impediram,
3Cibeles, introducida por decisin aristocrtica, presenta as un perfil popular que expresa la concordia ordinum, el consenso de los grupos sociales ante el sacro procedimiento para repeler al invasor cartagins. La historia de Cibeles en Roma reproducir la tensin del conflicto de clases y la contradiccin conductual del grupo dominante entre la marginalidad e integracin del culto.
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aparentemente, sua plena incorporao na vida cvica (1994, p.169, minha
traduo)4.
Scheid acrescenta algumas explicaes para a incorporao dessa deusa
no calendrio romano. Sobre a entrada da deusa no calendrio afirma que o
culto foi introduzido:
[...] sem que [...] fossem moralizados por tantos elementos chocantes para a sensibilidade romana, tais como a autocastrao dos galos de Cibele. Eles foram simplesmente enquadrados pelas prticas, tornados tradicionais, como se as autoridades estivessem precisamente buscado um efeito escandaloso, a fim de que, em certos dias do ano, a exibio das condutas contrrias norma permitissem aos romanos refletir sobre a complexidade de suas relaes com os deuses, com seus deuses, porque Cibele era, de fato, aos olhos romanos, um parente distante5 (SCHEID, 1993, p.56, minha traduo).
O Satyricon de Petrnio e os rituais pripicos
As discusses a respeito da datao, autoria e gnero como em vrias
fontes da Antiguidade se apresentam, tambm, no Satyricon. A datao foi
discutida principalmente no sculo XVII (GONALVES, 1997, p.50).
Levando-se em conta vrias referncias encontradas no romance, de
maneira geral, constatou-se que haveria um intervalo de trs sculos nos quais
a obra poderia ser inserida, a partir dos mais diversos argumentos. No
entanto, hoje, a maioria dos estudiosos concorda que a obra foi escrita no
sculo I, mais precisamente sob o governo de Nero.
4 Cibeles haba triunfado en Roma. Su culto haba quedado integrado en el calendario oficial y, sin embargo, las caractersticas de sus ritos impidieron, aparentemente, su plena incorporacin en la vida cvica. 5[...] sans que leurs cultes fussent pures pous autant des lments choquants pour la sensibilit romaine, telle lautocastration des Galles de Cyble. Il furent simplement encadrs par des pratiques tout fait traditionnelles, comme si les autorits avaient prcisement cherch leffet scandaleux, afin que, certains jours delanne, lxhibition de ces conduites contraires aux normes permette aux Romains de rflchir sur la complexit de leurs rapports avec les dieux, avec leurs dieux puisque Cyble tait, en fait, leurs yeux une lointaine parente des Romains.
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Sobre o autor, a polmica foi tambm muito grande. No entanto,
praticamente consenso que seja Petrnio, Arbiter Elegantiae, o mesmo citado
por Tcito, que fez parte do crculo de Nero.
A esse respeito Ernout (1950, p.VII), um dos maiores estudiosos do
romance, afirma o seguinte: A hiptese mais verossmil e frequentemente
adotada aquela que o assimila ao personagem cnsul, contemporneo e
familiar de Nero (minha traduo) 6.
Um dos pontos que se deve destacar a respeito desse livro o fato de
que, como relata Ernout, [...] ns estamos longe de possuir a obra inteira de
Petrnio (1950, p.XIII). A que se teve acesso foi apenas uma pequena parte
de um livro que, provavelmente, deve ter sido bem maior.
O romance traz como personagens principais trs jovens: Encolpio, o
narrador; Ascilto e Gito. Os trs aparecem em cenas em variados lugares:
albergue, prtico, em um banquete, entre outros.
No romance de Petrnio, h dois episdios nos quais aparecem rituais
e honras ao deus Priapo. No entanto, no apenas uma citao isolada a esse
deus, sabe-se que o deus flico, advindo de Lmpsaco, na sia Menor, foi
descrito em vrias outras fontes e que h inclusive colees de poemas
chamados Priapia Grega e Latina que trazem como assunto central o
deus.
Priapo foi descrito no apenas na literatura, muitas imagens do deus
foram produzidas no Imprio Romano, derivadas no apenas na crena do
deus do Helesponto, mas tambm, de todas aquelas divindades antigas de
Roma (Tutunus Mutunus, fascinus, etc).
O deus no fazia parte, porm, das divindades mais tradicionais de
Roma, no estava includo no calendrio proposto pelos dirigentes da religio
e poltica da cidade. O deus, antes de chegar a Roma, foi incorporado em 6L'hypothse la plus vraisemblable et la plus gnralement adopte est celle qui l'assimile au personnage consulaire, contemporain et familier de Nron [...].
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outras localidades, passando inclusive pela Grcia, onde seu culto pode ter
adquirido caractersticas mistricas.
Petrnio, por sua vez, descreve em duas cenas do romance os rituais ao
deus Priapo. Neste momento, trata-se mais especificamente do episdio de
Quartila. Seguindo a diviso de captulos da traduo de Ernout (1950), no
captulo XVI, iniciam-se as aventuras do trio com a sacerdotisa do culto
pripico, chamada Quartila.
O episdio conta com vrios personagens alm da sacerdotisa e dos
garotos. Quartila afirma que os jovens cometeram um crime terrvel, por
terem possivelmente violado um ritual que estava sendo feito em honra a
Priapo. Por isso, teriam que participar de um tipo de iniciao na qual foram
torturados e sofreram vrios tipos de violncia.
Ao contrrio das prticas mais tradicionais da religio romana, no
captulo XX parece iniciar-se um diferente ritual. A escrava Psique e uma
moa comearam a excitar os jovens. Havia uma espcie de poo
medicamentum (doses de segurelha ou satrio) que foi dada a Encolpio.
Participam da cena tambm vrias bichas que molestam os personagens.
Alguns atletas entraram e massagearam os jovens com um leo. Depois
os protagonistas foram conduzidos a um quarto prximo, onde havia camas e
foram servidos com vrios pratos e beberam muito vinho, numa espcie de
banquete. Em seguida, todos dormiram, mas foram interrompidos por
Quartila a qual advertiu que o culto em honra a Priapo deveria ser feito.
No fim do episdio, Quartila resolve que aquela era uma bela ocasio
para Paniques, uma menina de sete anos, perder sua virgindade, numa espcie
de casamento. Enclpio fica assustado em razo da idade da menina. Quartila
discorda e o leito nupcial preparado. A menina vai o para o quarto com
Gito. Quartila beija Enclpio e eles passam juntos o restante da noite.
O outro episdio traz a sacerdotisa pripica chamada Enotia. Um
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pouco antes do incio desse episdio, o narrador tem um longo dilogo com o
seu membro, pois sua virilidade o tinha abandonado quando ele pretendia
relacionar-se com Circe.
No momento em que Enclpio suplica ao deus Priapo, a velha
Proselenos chega e conduz o rapaz ao encontro de outra sacerdotisa de Priapo
chamada Enotia.
Os captulos a seguir se desenrolam num ambiente o templo da
sacerdotisa descrito por Enclpio como sujo, nojento e velho. Nesse lugar, a
sacerdotisa utiliza muitos produtos para a prometida cura de Enclpio que ela
iria efetuar. Depois de beijar Enclpio, Enotia parece comear uma espcie
de ritual.
Enotia inicia um sacrifcio que interrompido e a velha sacerdotisa sai
em busca de fogo pela vizinhana. Enquanto a sacerdotisa procura o fogo,
Enclpio comete um crime terrvel: mata um ganso que estava na porta
desse templo. Ao descobrir tal ato, a sacerdotisa fica furiosa com Enclpio,
pois aqueles, segundo ela, eram gansos de Priapo.
Mas, uma das partes mais surpreendentes do episdio quando
Enclpio oferece moedas de ouro pela perda dos gansos e a velha mostra-se
bastante satisfeita.
A seguir, tem-se um poema no qual h a ideia de que o dinheiro pode
inmeras coisas ou quase tudo. E o ritual continua: a sacerdotisa faz uma
previso do futuro de Enclpio. Enotia e Proselenos bebem muito vinho
puro e as torturas sexuais so iniciadas.
A interpretao dos rituais do romance de Petrnio bastante
complexa, o distanciamento temporal e de costumes cria, a princpio, a
sensao de incapacidade de conhecimento. Como pondera Burkert:
O fosso entre a pura observao e a experincia dos envolvidos nos trabalhos efetivos permanece intransponvel. Quem poder
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dizer em que consiste essa experincia, sem ter passado por dias e dias de jejuns, purificaes, esgotamento, apreenso, e agitao? (BURKERT, 1991, p. 100).
Os pesquisadores esto como bisbilhoteiros, ou ainda, estranhos no porto
(BURKERT, 1991).
Porm, o que se conclui do estudo das prticas religiosas no romance
de Petrnio e dos conhecimentos que se tem a respeito da religio
tradicionalmente praticada em Roma no perodo que os rituais e as
sacerdotisas descritas pelo autor diferem da tradio do mos maiorum.
O culto de Priapo representado por Petrnio diverso dos outros
cultos do Imprio e se assemelha a outros cultos mistricos, tambm advindos
de outras partes do Imprio, principalmente do Oriente, tais como Cibele e
tis e sis e Osris, com suas iniciaes e suas formas de crer diferentes da
romana tradicional.
A representao exagerada de Petrnio pode ser vista num quadro no
qual a sociedade romana, e sobretudo as altas ordens, viam-se rodeadas de
expresses religiosas diferentes, frutos de diversas culturas trazidas a Roma de
vrias partes do imprio, ou mesmo de fora dele, que se instalavam e se
modificavam na Urbs, naquele momento.
Os Epigramas de Marcial
Os mais de um mil e quinhentos epigramas de Marcial foram
organizados em 15 livros. Os temas so variados e tratam do cotidiano da vida
em Roma. Pouco explorado pela historiografia brasileira, Marcial uma fonte
que pode ser utilizada em estudos diversos, desde estudos como este, a
respeito da religio, passando pela sociedade e os vrios tipos humanos que a
compem.
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Marcial um caleidoscpio vivo da Roma de seu tempo, como
destaca Paratore (1983, p.708). Pela tica de um cliens da Roma antiga tem-se
uma representao bastante viva e colorida do primeiro sculo e incio do
segundo, em Roma.
Marco Valrio Marcial nasceu em 39 ou 40 d.C., na regio da Espanha,
em Bilbilis, e chegou em Roma por volta do ano 60, pois nesse perodo a
cidade atraa muitas pessoas em busca de melhores expectativas de vida.
Marcial escrevia sobre inmeros temas. Registrava vrias categorias,
tipos humanos e seus comportamentos: beberres, gulosos, avarentos,
hipcritas, homossexuais, delatores, mulheres de todos os tipos, adlteros,
entre outros. Falava de tudo e de todos (BIAZZOTO, 1993, p. 117).
As citaes que o autor faz, por meio das quais pode-se estudar a
religio em Roma, so inmeras. A seguir, destaca-se a citao de alguns
epigramas, nos quais Marcial cita Priapo ou utiliza-se dos atributos do deus
para atingir o objetivo jocoso de seus epigramas.
O epigrama seguinte pertence ao livro VI, 73:
No me fez a tosca foice de inculto campons, mas do intendente a obra ilustre que aqui vs. Do campo de Cere o mais rico agricultor possui estas colinas, Hlaro, e, alegres, as encostas. V que nem de pau pareo, com o meu rosto bem traado; nem votada ao fogo a arma genital que empunho, mas de cipreste eterno que morrers jamais, tenho um caralho duro, da mo de Fdias digno. Vizinhos, vos aviso, venerai a So Priapo e tratai de respeitar as duas vezes sete jeiras. (MARCIAL, 2000, p.127).
Esse epigrama traz alguns dados importantes. O eu potico o prprio
deus que fala sobre seu feitio, afirma ter sido produzido no por um inculto
campons mas por um dispensatoris nobile, ou seja, um superintendente ou
administrador ilustre, esse seria Hlaro, que segundo Oliva Neto, o
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proprietrio cujo nome significa alegre, feliz. O nome, nesse caso, seria
justificado pela riqueza do personagem (2006, p.308).
Por meio desse epigrama, Marcial mostra, portanto, que o deus estaria
presente nas propriedades de terra dos mais abastados de Roma.
O epigrama que se segue o 40, do livro VIII:
Priapo, guardio no de um jardim nem de videira fecunda, mas de um bosque ralo, do qual nasceste e podes voltar a nascer afasta, eu te aconselho, as mos rapaces e a madeira para a lareira do senhor reserva: se ela faltar... at tu prprio s lenha. (MARCIAL, 2000, p.74).
Nesse caso, h uma ameaa ao deus para que mantenha as plantaes
protegidas. Se isso no ocorresse, o prprio deus serviria de lenha quando esta
faltasse. Segundo Oliva Neto, a fala provavelmente do capataz que transmite
a ameaa do patro (2006, p.309).
Sobre as menes que Marcial faz ao deus Priapo, no apenas nos
epigramas transcritos acima, mas levando-se em considerao os vrios
epigramas ao longo da obra, pode-se destacar alguns pontos. Um dos
significados da citao do deus est relacionado com a proteo dada por
Priapo aos jardins e plantaes, ameaa que o deus representa nesses
espaos.
A representao do deus nos espaos como jardins e plantaes parece
ser bastante comum, tanto nas grandes e ricas propriedades como nas
pequenas.
Quando seu culto dimenso mistrica do deus aparece no epigrama,
logo surge a figura feminina, a mulher como aquela que venera o deus.
Pode-se afirmar, tambm, que Marcial utiliza o sentido mais corrente
do deus na poesia: o carter ridculo est presente nos epigramas, o deus e
sua deformidade so vistos como ridculos.
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H epigramas, ainda, que podem esclarecer o estatuto da crena na
deusa Cibele e seu parceiro tis, em Roma, no perodo tratado.
O epigrama 81, do livro III, trata dos celebrantes dos rituais deusa.
Marcial zomba dos possveis participantes desse culto, homens eunucos.
Que tens que ver, galo Btico, com sorveidoiros de mulher? Esta lngua deve lamber, a meio, os homens. Por que razo te foi cortado, como um caco de Samos, o membro, Se to agradvel te era, Btico, a rata? O que se te deve castrar a cabea: embora, pelo membro, sejas galo, frustras, no entanto, os ritos de Cbele: s homem pela boca. (MARCIAL, 2000, p. 159).
Cita-se, ainda, o epigrama 2, do livro IX:
Pobre embora para os amigos, Lupo, no o s para a amante, e s o teu vergalho de ti se no queixa. Engorda essa pega com pes pachachides, negra farinha come o teu convidado; para a dama se filtram scias de inflamar a neve, bebemos ns turvos copos de corso veneno; compraste uma noite, e no toda, com a fazenda paterna, um camarada desvalido ara um campo que no seu; refulge a rameira, reluzentes de eritreias gemas, preso por dvidas, enquanto fodes, um cliente; uma liteira, levada por oito srios, cachopa dada, um amigo numa padiola ser um peso nu. Anda agora, Cbele, e mutila os maricas desgraados, este sim, este vergalho que merecia as tuas facas7 (MARCIAL, 2001, p.100-101).
Nesse epigrama, o epigramatista reclama da poro de terra dada por
Lupo a ele. Marcial coloca Lupo na seguinte situao: um desregrado nos
7 Pauper amicitiae cum sis, Lupe, non es amicae / et querittur de te mentula sola nihil. / Illa siligineis pinguescit adultera cunnis, / couuiuam pascit nigra farina tuum; / incensura niues dominae Setina liquantur, / nos bibimus Corsi pulla uenena cadi; / empta tibi nox est fundis non tota paternis, / non sua desertus rura sodalis arat; / splendet Erythraeis perlucida moecha lapillis, / ducitur addictus, te futuente, cliens; / octo Syris suffulta datur lectica puellae, / nudum sandapilae pondus amicus erit. / I nunc et miseros, Cybele, praecide cinaedos: / haec erat, haec cultris mentula digna tuis (MARCIAL, 1973, p. 35).
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assuntos referentes ao amor, ou seja, para sua amante, Lupo proporcionava
uma vida muito abastada. No entanto, no que se refere s suas obrigaes na
vida pblica, Lupo teria deixado a desejar em vrios aspectos: nas comidas e
bebidas que servia a seus convidados e nas suas obrigaes em relao aos
seus cliens.
Marcial deseja, no fim do epigrama, que Cibele castrasse em seus ritos
esse homem. Seria vivel, por exemplo, imaginar ento que Marcial define a
os emasculados dos ritos de Cibele como pessoas que no tivessem tanto
prestgio na vida pblica, pessoas desregradas, que no soubessem cumprir
suas obrigaes no mbito pblico e agissem com muitos sentimentos em
relao ao amor.
A deusa estaria condenada por Marcial, ento, a atender pessoas que
no se encaixassem nos parmetros da sociedade romana.
O livro escrito durante as Saturnais (XIV) traz o epigrama 204:
Cmbalos Estes bronzes que choram o jovem de Celenas amado da Grande Me, Muitas vezes costuma vend-los o Galo esfomeado (MARCIAL, 2004, p.208).
No epigrama acima descrito, mais uma vez Marcial desmerece os
sacerdotes do culto de Cibele, lembrando novamente que aqui ele chama tis
de jovem de Celenas, retomando sua origem frigia, oriental.
O poeta acusa os sacerdotes do culto de vender os instrumentos
musicais, os cmbalos, do culto. Atribui aos galli, algo como um falta de
carter.
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Algumas consideraes
As fontes escolhidas, pensadas em conjunto, traro aos estudos um
panorama que se inicia em meados do primeiro sculo, mais especificamente
sob o governo de Nero, poca em que Petrnio provavelmente escreveu. Em
seguida, Marcial e seus epigramas oferecem uma viso da cidade nas dcadas
posteriores, pois, morando desde a dcada de 60 na cidade de Roma, o poeta
comea a escrever na dcada de 80 e termina sua produo nos primeiros anos
do segundo sculo.
Diante disso, o estudo aqui proposto concluir qual o estatuto desses
cultos orientais da metade do primeiro sculo at incio do segundo, a partir
das fontes escolhidas. Em seguida, a proposta trazer tona quais grupos
sociais estavam envolvidos com essas novas formas de religiosidade presentes
em Roma.
As duas fontes utilizadas permitem imaginar como os cultos orientais
estavam sendo relidos pelos romanos ao longo do primeiro sculo. Petrnio
em meados do primeiro sculo cria a imagem de um culto pripico com
dimenses mistricas, cheio de exageros.
Entende-se, a partir da fonte, que esse foi um perodo no qual a
sociedade romana estava deixando de lado, de forma mais sistemtica, a ideia
surgida no I sculo a.C., ou pelo menos que foi difundida pelos escritores do
perodo, de conservar a antiga religio romana.
Durante o perodo em que Petrnio escreve, governo de Nero, a
sociedade romana j conhecia o culto pripico, mas pode ser que pelo menos
a classe de Petrnio no havia aceito o deus em sua dimenso mistrica.
A popularidade do deus aumenta em grande medida ao longo do sculo
e seus atributos, tambm, na cidade de Roma. Nas dcadas em que Marcial
escreve, o deus j se mostra mais popular, estava arraigado em toda a cidade.
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 38
Alm dos atributos mistricos que o deus trouxe, como resultado das
suas passagens inclusive pela Grcia, ao longo do primeiro sculo, ficou
conhecido na Urbs tambm como amuleto, representado em inmeros
espaos, principalmente em jardins e plantaes.
Mesmo que no participante oficial daquela religio pblica relacionada
ao Estado, Priapo se apresenta como um deus bastante conhecido em seus
atributos e, provavelmente, objeto de culto na cidade da metade do primeiro
sculo em diante. Nas dcadas de 80, 90 e incio do segundo sculo, a
utilizao do deus, por parte de Marcial para criar jocosidade em seus poemas,
atesta a popularidade de Priapo.
Acredita-se, dessa forma, que a religio romana no perodo tratado
corresponde a vrias outras expresses religiosas e no apenas religio
pblica oficial, como alguns historiadores costumam associar, ao culto ao
imperador e s festas oficiais.
No caso do casal frgio, Cibele e tis, entende-se que a representao
de Marcial a respeito mostra que os ritos de Cibele ocorriam com frequncia
na Urbs, mas mesmo incorporada ao calendrio oficial do Imprio, a deusa
tinha ritos que chocavam alguns grupos sociais romanos. Mesmo assim, os
atributos dela foram incorporados, tendo em vista as diversas citaes dos
celebrantes do culto por Marcial. O culto de Cibele entendido, aqui, tambm
como parte da religio romana no perodo tratado.
A partir das fontes apresentadas, a religio romana de meados do
primeiro sculo ao incio do segundo mostra-se bastante hbrida. No h
como afirmar, diante da popularidade de cultos como esses aqui estudados,
que a religio romana o mesmo que a religio oficial e o culto ao imperador,
ela engloba os vrios cultos, advindos de outras partes, mas que depois de
adaptados so aceitos, em maior ou menor grau, e vividos pela populao.
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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Em relao aos grupos sociais que participavam desses cultos, a
princpio orientais, pouco se pode especificar. Entendida essa hibridizao
citada acima, no se pode concluir que apenas um ou outro grupo estava para
este ou aquele culto, pois as prprias fontes trazem vrias ordens diferentes
relacionadas aos deuses Priapo, e Cibele, desde escravos, como se viu em
Petrnio, at pessoas abastadas como relaciona Marcial: vrios grupos esto
ligados a essas novas formas de religiosidade, ou seja, elas j eram romanas
por excelncia.
possvel, portanto, entender os cultos aqui estudados como
populares, no no sentido elite versus popular, mas de conhecidos e
vivenciados por muitos durante o primeiro sculo. No constituam mais um
bloco diferente, mas apenas uma opo religiosa, j que no eram
exclusivistas, e traziam aos fiis outras perspectivas religiosas e outras formas
rituais.
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O III Conclio de Toledo (589) e a converso da
Hispnia visigoda
Pmela Torres MICHELETTE*
s visigodos, como a maioria dos reinos germnicos, tiveram sua
histria poltica vinculada sua histria religiosa bem como s
suas relaes com o Imprio Romano. Visto que, uma vez
estabelecidos no interior das fronteiras romanas, conseguiram manter certa
independncia poltica e social, muito em virtude de terem se convertido ao
arianismo (AGUILERA, 1992, p.15). Este fato possibilitou-lhes a manuteno
de certa autonomia, subtraindo mais facilmente a ao unificadora e
centralizadora dos imperadores romanos e da Igreja oficial1. Neste sentido,
dialogamos com o medievalista E. A. Thompson, que expressa a opinio de
que:
Los arrianos espaoles hablaban normalmente del catolicismo como la religin romana, mientras que el arrianismo era considerado como la fe catlica. Convertirse a la fe de Nicea significaba, por as decirlo, convertirse en romano, dejar de ser godo. Pero no es posible que considerasen en serio el arrianismo como catlico: ello hubiera estado en contradiccin con el uso del godo como lengua litrgica y con la existencia de un nuevo bautismo para los catlicos convertidos. Resulta difcil imaginar el
* Mestranda em Histria/UNESP/Assis/Bolsista: CAPES. Orientador: Prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho. 1 Desta forma, para J. Orlandis, fica claro, inicialmente, que os visigodos no fomentaram a converso ao arianismo da populao hispano-romana, com algumas excees, mais em: ORLANDIS, J. Historia del Reino Visigodo Espaol. Madrid: Rialp, S. A., 1988. p. 297-299.
O
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que algn rey godo considerase al arrianismo como f realmente catlica, una posible religin nacional en la que algn da pudieran unirse todos pueblos de Espaa. Se trataba de la religin de los godos y solo de los godos, y eso es lo que pretenda ser (THOMPSON, 1971, p.53-54).
Embora o presente trabalho faa referncia direta ao III Conclio de
Toledo, necessrio fazermos meno ao rei visigodo Leovigildo (568-586),
pai de Recaredo e ltimo monarca visigodo ariano. Leovigildo empreendeu no
reino uma poltica centralizadora, tanto na questo da unificao territorial
como religiosa; indo na contramo de seus antecessores, que priorizaram a
separao da religio como norma de governo. Entretanto, sua poltica de
converso de todo o reino ao arianismo no foi bem sucedida em sua gesto.
Outro fator determinante do reinado de Leovigildo consiste nas
caractersticas imperiais que ele deu ao trono visigodo, empreendendo uma
poltica de imitao de Bizncio (KING, 1981, p.31). Assim, foi o primeiro rei
visigodo a aparecer ao pblico em um trono, usando roupas de tradio
imperial, fundando cidades, convocando conclios e cunhando moedas com
sua imagem.
Estes elementos do reinado deste monarca demonstram, no apenas o
lado anedtico, mas tambm parte de um processo histrico, no caso, o de
incorporao de caractersticas do Imprio, que produziram uma
transformao no conceito de realeza visigoda. Assim, a renovao formal da
Monarquia, que se deu no reinado de Leovigildo, se tornou uma consequncia
direta da forte transformao sofrida pelo trono visigodo em contato
permanente com a ideologia e as prticas de governo imperiais precedentes, as
quais, segundo Valverde Castro, foram:
La evolucin poltica que se oper en el perodo tolosano y que, sintetizando, podemos decir que supuso, por un lado, la ruptura definitiva de los lazos de dependencia que ligaban a los reyes
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visigodos con el Imprio Romano y, por outro, la progresiva acaparacin por parte de esos mismos reyes de las supremas responsabilidades de gobierno, possibilitaron que, tras su asentamiento definitivo en la Pennsula Ibrica, los reyes visigodos pudieran hacer surgir en los nuevos territorios una entidad de poder absolutamente independiente y soberana. Puede afirmarse que toda la obra de Leovigildo se encamin precisamente a consolidar esa estructura de poder autnoma que a monarqua visigoda ya rige y representa. (VALVERDE CASTRO, 2000, p.195).
Entre 579 e 584, Hermenegildo, o primognito de Leovigildo, rebela-se
contra o pai, sua revolta foi legitimada pela converso de Hermenegildo ao
catolicismo nicesta. Este processo recebeu o apoio de bispos catlicos, como
foi o caso de Leandro de Sevilha2. Entretanto, essa ajuda no tornou sua
sublevao vitoriosa, nem os francos e nem o Imprio bizantino enviaram
guarnies suficientes, conforme o previsto. Desta maneira, Leovigildo
conseguiu suplantar a rebelio de seu filho, que foi preso e morto um ano
depois de sua priso.
Muito em decorrncia do episdio de rebelio de Hermenegildo, o rei
visigodo Leovigildo convocou, em 580, um snodo ariano (JUAN DE
BICLARO, 1960, p.89), cujo principal propsito era estimular os catlicos a
abandonarem suas crenas e se converterem ao arianismo. Alguns
historiadores acreditam que esta foi uma medida de aproximao entre os
grupos populacionais do reino, como tambm o fato de ter extinguido a lei de
proibio de casamentos entre visigodos e romanos. Porm, E. A. Thompson
defende a posio de que Leovigildo nunca colocou em prtica uma poltica 2 Pertenceu a uma famlia catlica de origem bizantina ou hispano-romana. Como bispo de Sevilha, Leandro foi o instrumento decisivo para conseguir a renncia oficial ao arianismo dentro do reino visigodo, proclamada no III Conclio de Toledo. Leandro foi sucedido por seu irmo Isidoro por volta de 600 e, durante o seu bispado e de seu irmo Isidoro, Sevilha desfrutou de preeminncia como centro intelectual do reino visigodo. LOYN, H. R. Dicionrio da Idade Mdia.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p. 212-213.
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 46
de acercamento entre os distintos grupos existentes no territrio peninsular
(THOMPSON, 1971, p.75).
J a imagem de Leovigildo como perseguidor de catlicos deve-se,
fundamentalmente, aos bispos Gregrio de Tours e Isidoro de Sevilha.
Ambos tinham motivos para degradar a imagem deste rei. O primeiro deles,
em sua Histria dos Francos, cuja estrutura mostrava uma clara contraposio
entre reis bons e maus em funo dos interesses que o prprio autor
queria destacar. J Isidoro destacou o arianismo militante de Leovigildo, pois
o mencionou como contraponto a poltica de converso ao catolicismo,
realizada por seu filho Recaredo. O bispo sevilhano se utilizou de certos fatos
que caracterizassem a ideia de perseguio para rebaixar a imagem do rei,
como foi o caso do exlio do Masona ou do sofrido por Joo de Bclaro, em
Barcelona, que em sua crnica no fez referncia.
Para Daz y Daz, a poltica de unificao do territrio empreendida
pelo rei, tinha em seu interior um foco de dificuldades que foram as tenses
contnuas entre visigodos e hispano-romanos, reforadas pelas tenses
religiosas entre arianos e catlicos. Desta maneira, para o autor:
Justo es decir que, durante mucho tiempo, los monarcas visigodos, salvo pequeas acciones intrascendentes, en parte reflejos condicionados por situaciones exteriores, como la conversin de los suevos, se haban mostrado indulgentes con los catlicos e indiferentes al problema religioso. Los grupos catlicos se sentan vejados, en razn de su poder econmico y social, y por constituir mayora; sin embargo, durante un tiempo, toleraron de mejor o peor grado la dominacin visigoda arriana (DAZ Y DAZ, 1982, p.14).
Com a morte de Leovigildo, em 586, seu filho Recaredo, no mesmo
ano, subiu ao trono e exerceu uma poltica de negociaes com alguns de seus
inimigos, em vez de dar continuidade aos enfrentamentos abertos, desde que
se iniciou a guerra civil. A unidade confessional almejada pelo rei Leovigildo
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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realizou-se em torno do catolicismo pelo seu sucessor Recaredo. Este ltimo
desejava os mesmos objetivos do fortalecimento do poder rgio de seu pai e
preferiu, ao contrrio de Leovigildo, o caminho do acordo com boa parte da
aristocracia eclesistica e o apoio legitimador do episcopado (GARCIA
MORENO, 1989, p.111).
Cabe ressaltar que, para analisarmos algumas das perspectivas que
abrangeram o III Conclio de Toledo (589) e a participao e consagrao do
rei Recaredo, utilizaremos trs fontes: as Atas do III Conclio de Toledo
(CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.107-
145), a Chronicon (JUAN DE BICLARO, 1960, p.94-100) do bispo Joo de
Bclaro e a Historia Gothorum (ISIDORO DE SEVILHA, 1975, p.261-267) do
bispo Isidoro de Sevilha.
Aps dez meses de regncia, j em 587, Recaredo anunciou sua
converso pessoal ao catolicismo (JUAN DE BICLARO, 1960, p.95). Esta
mudana iria acabar com a diviso religiosa existente dentro do reino
(COLLINS, 2005, p.64). Inicialmente, foi uma deciso individual, contudo
ficaram evidentes com a convocao de um conclio, apenas para bispos
arianos, no mesmo ano, que suas intenes abrangeram todo o reino
toledano. Esta converso da realeza afetou os setores mais prximos do
arianismo, seu clero e bispos, e o controle sobre o patrimnio das igrejas.
Essa mudana de religio implicava um risco poltico: a nobreza
visigoda apoiava a hierarquia ariana e, em questes numricas, o nmero de
catlicos era maior em comparao com o de arianos e, por fim, tanto os
bispos arianos quanto os catlicos procediam de famlias importantes e
dispunham de uma rede de relaes sociais e polticas, e tinham seus receios
de perder influncia e prestgio local, principalmente os arianos que
acreditavam ocorrer a transferncia desse poder para os catlicos.
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 48
O informe da converso do monarca, em 587, deu incio a um perodo
de negociaes e mudanas polticas, para S. Castellanos foi provvel que
Recaredo estava consciente das reaes contrrias que sua deciso poderia
acarretar e, mesmo assim, mostrou-se disposto a enfrentar os custos desse
posicionamento (CASTELLANOS, 2007, p.151). O rei empreendeu uma
poltica de pactos, contudo, os resultados no foram totalmente bem
sucedidos. Estes fatores, entre outros, geraram certas oposies e apreenses
a uma converso. Foi neste momento que a poltica de pactos de Recaredo
atingiu o auge, como foi o caso de sua colaborao com relao ao bispo
Masona, relatado nas Vidas dos Santos Padres Emeritenses (1956, p.231).
As conjuraes contra Recaredo ocorreram entre os anos de 587 a 590,
precisamente entre o anncio de sua converso pessoal e a proclamao do
catolicismo como religio oficial do reino3. Houve reaes contrrias, com o
intuito de recuperar a perda iminente de posio e poder.
A celebrao de um conclio com os bispos arianos deixou claras as
futuras intenes do monarca visigodo, pois, segundo Joo de Bclaro, o
resultado desta assembleia foi que [...] habindose dirigido a los sacerdotes de
la secta en una sabia conversacin, ms por la razn que por la fuerza, hace
que se conviertan a la f catlica [...] (JUAN DE BCLARO, 1960, p.95).
Apesar da colocao do biclarense, esta converso no foi to unnime, como
j mencionamos anteriormente4.
No dia 8 de maio de 589 foi realizado o III Conclio de Toledo. A
iniciativa da celebrao desta assembleia e a proposta dos principais temas a
serem debatidos, contidos no tomus regio, foram decises do monarca
Recaredo. Este snodo contou com a participao de vrios bispos, 3 Sobre o desfecho dessas conjuraes e a resposta de Recaredo a elas, veja mais em: CASTELLANOS, S. Op. cit., 2007, p. 153-165. 4 Mais informaes sobre estas revoltas contra a converso do rei Recaredo, ver em: CASTELLANOS 2007, p. 153-165.
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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eclesisticos de outras categorias inferiores, e diversos magnatas e nobres do
reino.
O conclio foi apresentado como o cenrio em que se convertia todo o
reino visigodo, o qual, como foi revelado nos textos conciliares, compreendia
literalmente Spania, Gallaecia (o noroeste, a zona do reino suevo5 conquistado
quatro anos antes) e a Gallia (fazendo referncia provncia Narbonense).
Desta forma que foi projetada, pelo poder rgio, a converso de toda a gens
Gothorum (CASTELLANOS, 2007, p.215).
Cabe destacar que, para melhor compreenso das caractersticas dos
Conclios toledanos, faremos referncia a algumas contribuies do trabalho
de G. Martinez Dez (1971, p.119-138) que traou algumas das formulaes
ideolgicas que deram origem aos Conclios de Toledo, para tanto, seu
enfoque voltou-se para as caractersticas poltico-religiosas que infundiram
carter prprio a essas assembleias.
O primeiro a ser destacado a natureza convocatria desses conclios,
cuja iniciativa era do rei. importante evidenciarmos que esse elemento no
foi uma particularidade do reino visigodo, mas uma prtica imperial e
perdurou nos recm-formados reinos germnicos. Os conclios bizantinos
tambm eram convocados pelo imperador, assim como os snodos de outros
reinos romano-germnicos, como foi o caso dos francos e suevos.
Os conclios toledanos no inovaram em relao aos Conclios
Ecumnicos de Nicia, Constantinopla e Calcednia e os imperadores
Constantino, Teodsio e Marciano, respectivamente, realizaram o discurso
inaugural e orientaram em certa medida as deliberaes dessas assembleias. A 5 Cabe destacar que no foram apenas os visigodos que no III Conclio de Toledo passaram a professar o catolicismo, pois o tomus rgio tambm fazia referncia converso dos suevos. Mais informaes a respeito do reino suevo: SILVA, L. R. Monarquia e Igreja na Galiza na segunda metade do sculo VI O modelo de monarca nas obras de Martinho de Braga dedicadas ao rei suevo. Niteri/RJ: UFF, 2008.
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 50
conduta de Recaredo perante o III Conclio de Toledo seguiu os precedentes
desses imperadores. Segundo G. Martinez Dez:
los pasos de los emperadores bizantinos que no se limitaban a convocar los Concilios ecumnicos o no ecumnicos, sino que les indicaban tambin el tema o temas en orden a los cuales tenia lugar la convocatoria (MARTINEZ DEZ, 1971, p.133).
A participao rgia nos conclios girava em torno de outros elementos,
como: o discurso inaugural; a participao da Aula Rgia nas deliberaes; a
determinao do calendrio conciliar; e a lei que confirmava os conclios.
Alm de convocar os conclios, Martinez Dez chama-nos a ateno para o
aspecto de que os monarcas indicavam o que deveria ser discutido nos
mesmos e em diversas ocasies propunham resolues que deveriam ser
tomadas.
Em muitos casos, o rei recorria aos conclios para reforar algumas de
suas decises, ou seja, a realeza buscava legitimidade fundamentando-se
nessas reunies eclesisticas. Martinez Dez explica que esse comportamento
por parte da Monarquia dependia da fragilidade do governante, isto , quanto
mais ele buscava recorrer s assembleias religiosas mais refletia sua fraqueza.
O discurso inaugural era entregue ao Conclio pelo rei, o qual continha
uma espcie de agenda ou recomendaes que o monarca apresentava para
serem acolhidas pelos membros presentes no snodo. Este escrito, nas fontes,
recebeu o nome de tomus (MARTINEZ DEZ, 1971, p.128). Este
documento no representava somente a lista de temas a serem abordados pela
conveno, mas tambm chegava a propor as decises concretas que
deveriam ser adotadas. A prtica do tomus foi inaugurada no III Conclio de
Toledo (589) e continuou at o fim do reino visigodo. Nesse discurso
inaugural, o rei Recaredo limitou-se a assuntos dogmticos e colocou-se como
o intermediador da vontade divina:
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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[...] hace muchos aos que la amenazadora hereja no permtia celebrar concilios en la Iglesia catlica, Dios, a quien plugo la citada hereja por nuestro medio, nos amonest a restaurar las instituciones eclesisticas conforme a las antiguas costumbres. (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.107).
Este novo contexto catlico inaugurado por Recaredo estava
referendado pela Igreja, de maneira que a divindade aparecia como
legitimadora do monarca. O tomus rgio, entregado ao III Conclio de Toledo
por Recaredo atestava que Dios omnipotente nos ha encomendado asumir
los poderes rgios para garantizar el beneficio de todos los pueblos del reino
(CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.108).
Esta postura do rei demonstra, perante a alta aristocracia do reino, que o
conclio tinha sido uma vontade de Deus e que a ele era outorgado o poder
rgio. Desta forma, o poder do rei estaria acima de qualquer outro, j que
possua o respaldo da origem divina. A converso do reino, tambm serviu
para criar algumas pontes entre o rei e o papa de Roma6.
Aps essa fala inicial da realeza, o rei se retirava da cerimnia7. A nica
exceo foi o III Conclio de Toledo, em que a participao de Recaredo foi
constante ao longo da solenidade do evento, esta atitude se justifica pelas
circunstncias especiais que esta assembleia estava promovendo a abjurao
da heresia ariana.
Terminado o seu discurso, o rei entregou escritos nos quais continham
os problemas trinitrios, ao mesmo tempo em que se fazia afirmaes
antiarianas, e confirmava que o Esprito Santo procede do Pai e do Filho e 6 Recaredo enviou uma carta para o papa Gregrio Magno, para informar a converso de seu reino. O contedo desta carta foi editado por Jos Vives em conjunto com as Atas do III Conclio de Toledo. IDEM, ibidem, p. 144-145. 7 Mais informaes sobre o discurso rgio nos conclios de Toledo, ver em: MARTINEZ DIEZ, G. Op. cit., 1971, p. 119-138, p. 128.
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 52
que o Pai e o Filho so da mesma substncia (CONCILIOS VISIGTICOS
E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.109).
Foi agregado nas Atas que os bispos tinham a obrigao de
conservarem unidos os povos dentro da nova f:
No slo la conversin de los godos se cuenta entre la serie de favores que hemos recibido; ms an, la muchedumbre infinita del pueblo de los suevos, que con la ayuda del cielo hemos sometido a nuestro reino [...]. (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.110).
A abjurao do arianismo foi sancionada pelos bispos, o restante do
clero e os principais magnatas visigodos, condenando seus dogmas, regras e
ofcios de sua comunho e de seus livros, sendo pronunciadas 23 antemas,
contra a heresia do bispo Ario (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-
ROMANOS..., 1963, p.118-120). Na sequncia, os visigodos conversos
pronunciaram a f dos Conclios de Nicia, de Constantinopla e da Calcednia
(CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.121-
122).
O rei dirigiu-se, pela segunda vez, conveno, propondo introduzir
em todo o reino a prtica oriental de rezar coletivamente o credo de
Constantinopla, em voz alta, antes do Pai Nosso, em cada ocasio em que se
celebrasse a comunho (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-
ROMANOS..., 1963, p.125). Esta segunda parte das Atas conciliares conteve
os 23 cnones disciplinares (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-
ROMANOS..., 1963, p.124-133). Os bispos catlicos contriburam na maior
parte da elaborao da legislao secular, ou seja, regulamentaram sobre
matrias que no eram qualificadas apenas como eclesisticas. Suas decises
no tinham, por si mesmas, fora de lei, apenas se convertiam em leis quando
o rei sancionava essas resolues.
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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Os Conclios toledanos tiveram fora de lei em suas decises que na
maior parte dos casos estavam em comum acordo com a Monarquia e a
Igreja. Recaredo sancionou uma lex in confirmatione concilii, para outorgar fora
legal, no mbito civil, s disposies acordadas:
Determinamos que todas estas constituciones eclesisticas que hemos resumido breve y sumariamente, gocen de estabilidad, conforme a la relacin ms extensa, contenida en los cnones. Si algn clrigo o laico no quisiere obedecer estas determinaciones, si se trata de un obispo, de un presbtero, de un dicono o de un clrigo, sea excomulgado por todo el concilio. Si se tratare de un seglar y fuere persona de elevada posicin, pierda la mitad de su fortuna en favor del Fisco. Y si fuera un hombre del publo perder sus bienes y ser enviado al exlio. Flavio Recaredo, rey, firme en confirmacin estos acuerdos que establecimos, junto con el santo concilio (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.135-136).
Esta interveno do poder civil no mbito religioso, no desvirtuou o
carter eclesistico que estes snodos tiveram, mesmo porque os bispos
tambm exerceram forte participao nos assuntos seculares. Nos cnones
sancionados, encontramos a participao dos bispos em questes referentes
administrao civil; como exemplo, o cnone XVIII que ordenava que, uma
vez por ano, os Conclios provinciais tinham que reunir-se e que estivessem
presentes neles os juzes e sacerdotes do fisco (CONCILIOS VISIGTICOS
E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.131) e o XVII que autorizava os bispos,
em conjunto com os juzes, a investigarem crimes e que sofressem castigos
com severidade (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS...,
1963, p.130).
O cnone XVIII do conclio teve uma importncia significativa,
extraindo uma das primeiras consequncias poltico-administrativas da recm-
conquistada unidade religiosa; regulamentando, em nvel, territorial a
colaborao entre a Igreja e o poder civil, por meio de conclios provinciais
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 54
que aconteceriam todos os anos. A partir deste momento, eles seriam o rgo
principal dessa ao conjunta.
Cabe ressaltarmos que E. A Thompson apontam que, nos primeiros
anos do reinado de Leovigildo, foram conhecidos apenas dois nomes de
bispos visigodos catlicos, o cronista Joo de Bclaro e Masona de Mrida.
Entretanto, assinaram nas atas do III Conclio de Toledo alguns bispos
arianos conversos com nomes germnicos, mas boa parte dos bispos
presentes no tinha sido ariana e alguns deles possuam nomes visigodos8.
O reinado de Recaredo proporcionou para a Igreja no s um perodo
de consolidao e fortalecimento como organizao eclesistica, mas tambm
como proprietria de um patrimnio avultante em terras, gado, servos, etc.
(CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.127).
Entretanto, a incorporao oficial dos prelados vida pblica da Monarquia
visigoda deu-se, de modo definitivo, a partir do IV Conclio de Toledo (633),
visto que o episcopado permaneceu praticamente integrado ao estamento
dirigente do reino. Desta forma, segundo J. Orlandis, este foi o momento em
que o episcopado se germanizou consideravelmente, em decorrncia do
crescente nmero de prelados de nome e gerao germnica, muitos de
descendncia nobre (ORLANDIS, 1988, p.233).
Recaredo apareceu perante este snodo como o autor da converso do
reino e, tambm, como o monarca catlico de todos os seus sditos, defensor
dos interesses da nica Igreja do reino:
Aunque el Dios omnipotente nos haya dado el llevar la carga del reino en favor y provecho de los pueblos, y haya encomendado el gobierno de no pocas gentes a nuestro regio cuidado, sin embargo nos acordamos de nuestra condicin de mortales y de de que no poemos merecer de outro modo la felicidad de la futura bienaventuranza sino dedicndonos al culto de la verdadera fe y
8 Mais informaes, ver em: THOMPSON, E. A. Op. cit., 1971, p. 51-53.
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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agradando a nuestro Criador al menos con la confesion de que es digno. Por lo cual, cuanto ms elevados estamos mediante la gloria real sobre los sditos, tanto ms debemos cuidar de aquellas cosas que pertenecen al Seor, y aumentar nuestra esperanza, y mirar por las gentes que el Seor nos ha confiado (CONCILIOS VISIGTICOS E HISPANO-ROMANOS..., 1963, p.108-109).
A presena da nobreza laica nesta conveno, que foi a participao na
Aula Rgia, no representou nenhuma questo controversa singular, suas
assinaturas nas atas se restringiram condenao da heresia ariana. Alm desta
atuao, outra funo dos leigos dentro destas assembleias era a de
aprenderem. Apesar desta assistncia secular nas assembleias, os Conclios
toledanos no perderam seu carter predominantemente religioso e
eclesistico e os bispos sempre foram o principal elemento dessas
conferncias.
Segundo o relato do bispo Joo de Bclaro, Recaredo aparece como um
novo Constantino e um novo Marciano, os imperadores que haviam reunido
os conclios ecumnicos de Nicia e Calcednia. Caractersticas da influncia
bizantina, em decorrncia de sua estadia nesta regio. O cronista visigodo fez
um balano do ciclo histrico da heresia, que vai se encerrar no III Conclio
de Toledo. Esse ciclo foi aberto com o Conclio de Nicia, em 3259, no
vigsimo ano de Constantino, e se extinguiu no oitavo ano do imperador
Maurcio, que correspondeu ao quarto ano do reinado de Recaredo (JUAN
DE BICLARO, 1960, p.97-99).
O bispo biclarense refora o paralelismo aplicando a Recaredo o ttulo
de princeps, reservado apenas aos imperadores romanos, e qualificando
christianissimus a Marciano e Recaredo, indicaes que assimilam o rei visigodo
aos imperadores, tanto no mbito poltico como no religioso (JUAN DE
BICLARO, 1960, p.97-99).
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ZLIA LOPES DA SILVA & KARINA ANHEZINI (ORGS.) 56
Recaredo, nas atas conciliares, utilizou o nome Flavio, que era
empregado desde o sculo I por vrios imperadores e, em particular, pela casa
de Constantino no sculo IV. No foi casualidade, Constantino10 havia sido o
primeiro imperador romano convertido ao cristianismo, e Recaredo era o
primeiro rei visigodo convertido ao catolicismo. A Igreja visualizava o
Recaredo como um novo Constantino.
Em sua condio de imperador, Constantino era o pontifex maximus, que
significava a mais alta instncia institucional em assuntos religiosos, um dos
cargos mais antigos do mundo romano, que desde o comeo do sistema
imperial assumiam os imperadores, costume que permaneceu at a segunda
metade do sculo IV (SILVA, 2006, p.241-266).
Constantino converteu-se ao cristianismo, porm no se batizou.
Oficialmente, o Imprio no era ainda cristo, o que ocorreria mais tarde, mas
indiscutvel que a partir desse imperador, produzindo-se desde ento a
converso do mundo romano, uma transformao ocorreu paulatinamente e
adquiriu fora no sculo IV. Na qualidade de chefe religioso, Constantino
tentou resolver os problemas mediante a convocao de conclios, e essa
prtica foi fortemente utilizada por seus sucessores para resolverem os
assuntos poltico-religiosos (CASTELLANOS, 2007, p.38).
Desta forma, Recaredo comporta-se como um autntico imperador
romano-cristo. A convocatria do conclio, a entrega do tomus e a lex in
confirmatione concilii foram competncias que os imperadores exerceram no
mbito eclesistico e foram as mesmas funes desempenhadas pelo monarca
visigodo (VALVERDE CASTRO, 2000, p.199). Outro mtodo por meio do
qual os monarcas visigodos exerceram sua funo legislativa consistiu em 9 Mais informaes sobre o Conclio de Nicia (325): CASTELLANOS, S. Op,cit., 2007, p. 38-39. 10 Mais informaes sobre a vida do imperador Constantino: PALANQUE, J.-R. Constantino. Rio de Janeiro: Atlntica, 1945.
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ESCRITA HISTRICA E SUAS MLTIPLAS FACES
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converter as decises conciliares em normas legais aplicveis em tribunais de
justia do reino (VALVERDE CASTRO, 2000, p.228).
Ao longo de toda a solenidade do snodo toledano no foi mencionado
o nome do prncipe rebelde Hermenegildo, no sendo feita nenhuma
referncia sua converso e nem sua morte herica pela f.
O conclio foi encerrado pela Homilia do bispo Leandro de Sevilha que
juntamente com o Eutrpio de Valncia foram os principais bispos da
assembleia. O discurso de Leandro tratou de assuntos espirituais, no fazendo
meno ao rei, talvez tenha sido em decorrncia de seu direto envolvimento
com rel