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PUC/SP FACULDADE DE FILOSOFIA COMUNICAÇÃO LETRAS E ARTES CINEMA E QUADRINHOS: a evolução da arte sequencial de Will Eisner e Frank Miller através do fenômeno noir Lucas Fonseca de Araújo SÃO PAULO 2011

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PUC/SP

FACULDADE DE FILOSOFIA COMUNICAÇÃO

LETRAS E ARTES

CINEMA E QUADRINHOS: a evolução da arte sequencial de Will Eisner e Frank Miller através

do fenômeno noir

Lucas Fonseca de Araújo

SÃO PAULO 2011

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Lucas Fonseca de Araújo

CINEMA E QUADRINHOS: a evolução da arte sequencial de Will Eisner e Frank Miller através

do fenômeno noir

Monografia apresentada para a

conclusão da disciplina “Projeto em

Multimeios II” do curso de:

Comunicação e Multimeios FAFICLA

PUC/SP.

Orientador: Marcelo Prioste

SÃO PAULO 2011

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BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________ Orientador: Prof. Dr. Marcelo Vieira Prioste

_______________________________________________ Prof.ª Dra. Ane Shyrlei de Araújo

_______________________________________________ Prof. Francisco C. Camêlo

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Dedico esta obra a minha namorada, que, graças a minha perseverança, se

tornou uma leitora e apreciadora das obras em quadrinhos.

Que esta arte continue por muitos anos, sempre em constante evolução

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AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, que me incentivaram na leitura e na formação da minha

arte, mesmo sendo obrigados a aturar pilhas de quadrinhos pela casa.

Ao meu irmão, que incentiva até hoje o desbloqueio e a evolução do

meu traço, sempre apresentando novos projetos para me dedicar.

Ao orientador Marcelo Prioste, pelo incentivo, competência, paciência e

as diversas boas referências apresentadas.

Aos meus velhos amigos, pelo amor incondicional e a amizade, que

sempre incentivaram a minha arte, participando na elaboração das minhas

primeiras histórias em quadrinhos, acompanhando, por sete anos, cada etapa

de minha aprendizagem, como pessoa e como pseudo-artista.

Aos meus novos velhos amigos, que fizeram como que estes quatro

anos passassem de forma rápida e proveitosa. Quatro marcantes anos que

farão falta pelo resto de nossas vidas.

E por último, agradeço ao maior bem que poderia ter ocorrido em todos

estes quatro anos de história: a amizade inicial e o amor verdadeiro na figura

de Tamyris Müzel. Agradeço pela dedicação e pelo carinho que sempre provou

ter por mim, pelos puxões de orelha por eu não me empenhar tanto em minha

arte, pela paciência em me aturar e pelas certezas que me passa. Agradeço

pelas horas, dias e anos que estamos juntos, por ser quem você é e por ser

perfeita para mim. Te amo. Cross my heart.

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RESUMO

Pretende-se estudar a evolução dos quadrinhos através do olhar do

cinema, principalmente a influência estética e narrativa herdada pelo

movimento noir, do início dos anos 1940 até 1950, que serviu de inspiração

para os mais diversos artistas e comunicadores do período, que ajudaram a

estabelecer aquele fenômeno em um gênero único, cultuado e perpetuado por

gerações. Estabelecida esta relação de influências, esta monografia pretende

demonstrar o impacto feito pelo artista Will Eisner, que, após criar uma releitura

gráfica do cinema policial de 1940, a obra de quadrinhos The Spirit, consolidou

uma nova forma de ser narrar quadrinhos, concebendo um híbrido entre o

cinema e as narrativas gráficas, a arte sequencial, dando, assim, o primeiro

grande passo para a construção das graphic novels, que elevaram os

quadrinhos ao grau de entretenimento adulto, influenciando, pelo seu estilo, o

autor e desenhista Frank Miller, que difundiu o neo-noir em narrativas clássicas

do quadrinho, tais como Batman – Ano Um e Sin City, e que continuam,

através do tempo, a evoluir e homenagear este gênero, hoje já estabelecido,

criando novas formas de ser realizar a arte sequencial.

Palavra-chave: Filme Noir. Quadrinhos. Arte Sequencial. Will Eisner.

Hibridismo

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ABSTRACT

This paper aims to study the evolution of comics through cinematic view,

especially by the narrative and aesthetics influences inherited by noir

movement, that began in the early 1940s until the 1950s, inspiring various

artists and communicators of its time. These intellectuals helped establish the

phenomenon into a unique genre, worshiped and perpetuated by generations.

Once the relations between influences era established, this paper aims to

demonstrate the impact of artist Will Eisner, after creating a graphic

reinterpretation of 1940s police film (the graphic novel The Spirit). Eisner

consolidated a new perspective of comic´s narrative, creating a hybrid between

the cinema and the graphic storytelling, called sequential art, determining the

graphics novel beginning and establishing comics as adult entertainment. Will

Eisner also influenced the author and artist Frank Miller, who spread the genre

neo-noir through classic comics’ narratives such as Batman: Year One and Sin

City. Those influences still evolve and honor the genre, already established

nowadays, creating new ways of crafting sequential art.

Keywords: Film Noir, Comics, Sequential Art, Will Eisner, Hybridity

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Figuras pictóricas e simbólicas, que, representadas na parede de

uma caverna, retratam um meio de vida rupestre. (Fonte: Desvendando os Quadrinhos). ............................................................................................. 17

Figura 2 - Figura 2: Exemplo de comunicação escrita por meio de imagens familiares. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial). .................................... 17

Figura 3 ............................................................................................................ 18 Figura 4: As figuras 3 e 4 mostram a utilização iconográfica da forma humana

nos frisos egípcios. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial). ..................... 18 Figura 5 - Figura 5: Imagem representada por McCloud, com o fim de ser

reproduzida em preto e branco. (Fonte: Desvendando os quadrinhos). ... 19 Figura 6 - Figura 6: narrativa épica sobre o herói “8-Cervos”. (Fonte:

Desvendando os quadrinhos). .................................................................. 20 Figura 7 - Tapeçaria inglesa datada de 1066, que desenvolve a construção de

uma direção visual da “Conquista normanda". (McCLOUD 1993, p.12). (Fonte: Desvendando os quadrinhos). ...................................................... 21

Figura 8 - A série de figuras que servem como narrativa para a obra As torturas de Santo Erasmo (1460), detalhando cada um de seus sortilégios. (Fonte: Desvendando os quadrinhos). .................................................................. 22

Figura 9 - Ppintura da série Adão e Eva (séc. XVI), que retrata a passagem da bíblia através de outros quadros postos em sequência. (Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br) ............................................................. 23

Figura 10 - Frontal do retábulo de Cranach na igreja de São Wolfgang. (Fonte: http://pt.wikipedia.org) .............................................................................. 24

Figura 11 - Vitral na Catedral de Chartres (séc XIII). (Fonte: http://pt.wikipedia.org). .............................................................................. 24

Figura 12 - A segunda gravura – de um total de seis - da obra “O progresso de uma prostituta” (1731). (Fonte: http://it.wahooart.com). ............................ 25

Figura 13 - O almálgama entre figura e texto, de Gillray (1972). (Fonte: http://upload.wikimedia.org). ..................................................................... 26

Figura 14 - Vista da janela em Le Gras (1826), primeiro registro fotográfico da história. (Fonte: http://upload.wikimedia.org). ............................................ 27

Figura 15 - O trote do cavalo captado por Muybridge (1878). (Fonte: http://gteans.blogs.com). ........................................................................... 28

Figura 16 - O cinematógrafo, considerado uma evolução do cinetoscópio, de William Kennedy Laurie Dickson. (Fonte: http://upload.wikimedia.org) ..... 28

Figura 17 - O filme “Viagem à Lua” (1902), de George Mélies. (Fonte: Viagem à Lua). .......................................................................................................... 29

Figura 18 - Cena do filme “O nascimento de uma nação” (1915), de Griffth. (Fonte: O nascimento de uma nação). ...................................................... 30

Figura 19 - Página da obra Les Amours de monsieur Vieux-Bois. (Fonte: http://gallica.bnf.fr) ..................................................................................... 31

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Figura 20 - Página 25 da obra Les Amours de monsieur Vieux-Bois. (Fonte: http://gallica.bnf.fr) ..................................................................................... 32

Figura 21 - Ilustração publicada no jornal alemão Fliegende Blätter, em 1859. (Fonte: http://www.sagen.at) ..................................................................... 33

Figura 22 - Painel da obra “Juca e Chico”, de 1993. (Fonte: http://www.sagen.at) ................................................................................. 33

Figura 23 - A personagem Nhô-Quim. (Fonte: http://www.universohq.com) .... 34 Figura 24 - Página de Zé Caipora. (Fonte: http://www.universohq.com) .......... 35 Figura 25 - quadro de The Little Bears. (Fonte:

http://lambiek.net/artists/s/swinnerton.htm) ............................................... 36 Figura 26 - The Yellow Kid. (Fonte: http://cartoons.osu.edu) ........................... 37 Figura 27 - cena da obra Katzenjammer Kids. (Fonte:

http://curiositedequalite.blogspot.com/2011/04/katzenjammer-kids.html) . 38 Figura 28 - Cena da obra Litte Nemo in Slumbersland .................................... 39 Figura 29 - Cena da obra Litte Nemo in Slumbersland .................................... 40 Figura 30 - Cena da obra Litte Nemo in Slumbersland. (Fonte:

http://asleiturasdopedro.blogspot.com/2010/10/little-nemo-in-slumberland.html) ...................................................................................... 41

Figura 31 - Trecho da obra Flash Gordon. (Fonte: http://madinkbeard.com/archives/flash-gordon-review) ............................. 42

Figura 32 - A obra brasileira Garra Cinzenta (Fonte: http://hqquadrinhos.blogspot.com) ............................................................ 43

Figura 33 - A personagem Harry Carey, criada por Eisner para publicação na revista WOW!, de 1936. (Fonte: http://www.willeisner.com/biography/) .... 47

Figura 34 - Spirit e comissário Dolan em uma cena de investigação. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial) .................................................................. 51

Figura 35 - Quadro de Scott McCloud. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial) 53 Figura 36 - Passagem presente na graphic novel New York (1986). ............... 56 Figura 37 - Quadrinho do cartunista norueguês Jason. (Fonte: Quadrinhos e

arte sequencial) ......................................................................................... 57 Figura 38 - O uso das expressões faciais como “guia” dos sentimentos,

emoções e acontecimentos da breve narrativa, exemplificando o bom uso da anatomia expressiva de Will Eisner. (Fonte: Desvendando os quadrinhos) ............................................................................................... 57

Figura 39 - Cena do mangá Travel (2005), de Yuichi Yokoyama. (Fonte: http://www.artnet.com) .............................................................................. 58

Figura 40 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986) ........................................... 67 Figura 41 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986) ........................................... 68 Figura 42 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986) ........................................... 69 Figura 43 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986) ........................................... 70 Figura 44 - Batman, o cavaleiro das trevas (1986) ........................................... 71 Figura 45 - A arte de Juanjo Guarnido: uso de low-key profile na iluminação,

figuras antropomórficas e estética da década de 1950, aliada ao forte clima noir. (Fonte: http://olhosacesos.blogspot.com/) ......................................... 73

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Figura 46 - Exemplo de utilização da iluminação low-key, realçando detalhes de uma forma sutil. (Fonte: Metropolis). ......................................................... 78

Figura 47 - Empreitada noir de Fritz Lang (1944), demonstrando a utilização da iluminação barroca, fruto da bagagem de sua origem no expressionismo alemão. (Fonte: Quando Desceram as Trevas). ....................................... 80

Figura 48 - A utilização do hard ligth cria uma sombra bem definida na parede. (Fonte: O Falcão Maltês). .......................................................................... 81

Figura 49 - Neste misto de técnicas, podemos observar a o uso da highlighting (luz de destaque) no rosto da personagem, criando uma imagem atmosférica de claro e escuro. (Fonte: A Força do Mal). .......................... 81

Figura 50 - O uso da top lighting (luz superior) resulta na imagem sombria e misteriosa da silhueta, que pode, posteriormente, recair sobre a trama como uma força maligna (Fonte: O Grande Golpe). ................................. 82

Figura 51 - O realce da imagem gerada pelo close-up de luz não difusa. (Fonte: O Anjo Diabólico). ..................................................................................... 83

Figura 52 - Exemplo de storyboard para uma peça publicitária de tevê, com o filme resultante abaixo. Fonte: Quadrinhos e arte sequencial. .................. 90

Figura 53 - A ausência de tons de cinza na obra Sin City, de Frank Miller. (Fonte: Sin City – A Dama Fatal). ............................................................. 92

Figura 54 - exemplo de montagem cena-a-cena. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). ........................................................................... 93

Figura 55 - A. mise-en-scène carregada de informações da arte de Geof Darrow. (Fonte: Hard Boiled). ................................................................... 93

Figura 56 - A sempre constante movimentação do Coringa, realçando sua frieza em um plano aproximado que, a cada quadro, como em uma ação de zoom in, nos deixa mais intimidados com a sua quieta presença. (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas). ................................................... 95

Figura 57 - Visão em plongée, oferecendo uma panorâmica do ambiente em que o detetive Blacksad se encontra. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). .................................................................................... 96

Figura 58 - A ação do plano e contra plano ocorre nos dois últimos quadros da cena. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado). .......................................... 97

Figura 59 - A estréia de Batman, na edição #27 da Detective Comics (1939). (Fonte: http://www.dc.wikia.com/) ............................................................. 99

Figura 60 - Frame retirado do filme The Bat (1926). (Fonte: The Bat) ........... 100 Figura 61 - Momento em que evidencia alguns dos utensílios carregados na

bolsa do criminoso. (Fonte: http://www.headinjurytheater.com). ............. 101 Figura 62 - Passagem do filme em que o criminoso avisa e desafia a polícia

sobre seu próximo roubo, se identificando como “o Morcego”. (Fonte: http://www.headinjurytheater.com). ......................................................... 102

Figura 63 - Edição #28 da Detective Comics. Fonte: http://www.headinjurytheater.com ........................................................... 102

Figura 64 - O coringa de Bob Kane ................................................................ 103 Figura 65 - O ator Conrad Veidt, no filme O Homem que Ri (1928) ............... 104

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Figura 66 - O “ornitóptero”, de Leonardo Da Vinci. (Fonte: http://100grana.wordpress.com) .............................................................. 105

Figura 67 - Projetos originais para a capa da personagem Batman, amplamente inspirados na criação de Da Vinci. (Fonte: http://www.dc.wikia.com/) .... 105

Figura 68 - O rosto marcado da personagem Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) .............................................................................................. 107

Figura 69 - Cena de desolação e desespero, com a personagem Dwight. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) ................................................... 107

Figura 70 - A figura do tentente, na obra Sin City. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) ................................................................................................... 108

Figura 71 - Na imagem acima podemos ver um dos antagonistas de Sin City, o pedófilo e psicopata Roark Junior (That yellow bastard, 1996). (Fonte: Sin City – Aquele bastardo amarelo) ............................................................. 108

Figura 72 - alguns jovens lagartos sentados em uma escadaria, em frente ao bar. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) .................... 110

Figura 73 - Dois capangas ladeando o detetive Blacksad. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) ......................................................... 110

Figura 74 - A raposa demonstra o raciocínio rápido, a astúcia e a “esperteza” do tenente. (Fonte Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) ......... 111

Figura 75 - O dono do bar onde Blacksad busca por informação. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) ........................................ 112

Figura 76 - A camareira é representada como uma pequena rata, que se intromete em assuntos e locais alheios. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) .......................................................................... 113

Figura 77 - A utilização das onomatopéias de forma expressionista, guiando o leitor através da ação. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) ................................................................................................. 114

Figura 78 - Ângulo holandês em contra-plongeé e uso de contraluz. (Fonte: The Spirit - Hildie). .......................................................................................... 115

Figura 79 - Plano de conjunto com a presença da luz dura, que constrói sombras fortes e bem desenhadas. (Fonte: The Spirit - Hildie). ............. 116

Figura 80 - O uso da contraluz por David Mazuchelli. (Fonte: Batman – Ano um) ................................................................................................................ 117

Figura 81 - A movimentação da personagem Batman. (Fonte Batman – Ano um) .......................................................................................................... 117

Figura 82 - Mazuchelli cria esta iluminação atmosférica de alto contraste (high-contrast lighting). (Fonte: Batman – Ano um) .......................................... 118

Figura 83 - luz chave em alto contraste em uma cena de contextualização. (este tipo de tomada é chamada de establishing shot). (Fonte: Batman – Ano um) ................................................................................................... 119

Figura 84 - A cena da tragédia que marcou a vida de Bruce Wayne. (Fonte: Batman – Ano um) .................................................................................. 119

Figura 85 - Guarnido se utiliza do plano médio, da câmera subjetiva e do plano americano. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras) ......... 120

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Figura 86 - Miller inicia está cena com um plano médio com voice over . (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas). ............................................................. 120

Figura 87 - a divisão das luzes: o contraste entre Spirit (a ação fora da lei) e o comissário Dolan (a lei e a justiça em sua legalidade). (Fonte: Quem é The Spirit?) ..................................................................................................... 121

Figura 88 - presença de uma divisão moral na face de Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado). .............................................................................. 122

Figura 89 - iluminação dura e atmosférica, que passa da representação iconográfica de silhuetas puras para a iluminação direta e dura, com realce para a sombra de Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) ............ 123

Figura 90 - o assassinato dos pais do jovem Bruce. (Fonte: Batman – Ano um) ................................................................................................................ 124

Figura 91 - o acontecimento que inicia toda a narrativa da história: o assassinato de Goldie. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado). ............. 125

Figura 92 - o assassinato de um antigo amor de Blacksad marca as primeiras páginas de sua primeira história. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado). ................................................................................................................ 126

Figura 93 - o clima fatalista de Blacksad. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). .................................................................................. 127

Figura 94 - a volta de Bruce a Gotham, enquanto caminha pela sujeira, rodeado por prostituição infantil, drogas e corrupção. (Fonte: Batman – Ano um). ................................................................................................................ 128

Figura 95 - a justiça fora da lei cometida por Blacksad. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). ............................................................... 128

Figura 96 - o senso de justiça bruto de Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado). .................................................................................................. 129

Figura 97 - a revelação do codinome The Spirit: ação por debaixo dos planos e sem a presença direta da lei. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). ................................................................................................ 129

Figura 98 - Dwight sofre forte represália pelo envolvimento amoroso com uma femme fatale de seu passado. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras). ................................................................................................ 130

Figura 99 - Batman em seu início: sujeito a falhas e erros banais. (Fonte: Batman – Ano um). ................................................................................. 131

Figura 100 - a corrupção e violência da polícia, presenciada por Gordon. (Fonte: Batman – Ano um). ..................................................................... 131

Figura 101 – a primeira tentativa de boa ação de Bruce ocorre de maneira errada e é frustrada pela polícia. (Fonte: Batman – Ano um). ................. 131

Figura 102 - a represália e o castigo físico imposto ao tenente Gordon, como um modo de botar o “bom” policial na linha. (Fonte: Batman – Ano um). 132

Figura 103 - a vingança fora da lei e por conta própria realizada por Gordon contra seus agressores. (Fonte: Batman – Ano um). .............................. 132

Figura 104 – as mulheres fatais da Cidade do Pecado (Fonte: Sin City – A dama fatal). ............................................................................................. 133

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Figura 105 – a femme fatale mortal, que manipula e destrói o homem protagonista (Fonte: Sin City – A dama fatal) .......................................... 134

Figura 106 – os bares podem ser um reduto de malfeitores, informantes, policiais corruptos e belas e perigosas mulheres. (Fonte: Blacksad – Em algum lugar entre as sombras). ............................................................... 135

Figura 107 – a presença da Mulher-Gato no universo de Batman: a femme fatale essencial, que representa, ao mesmo tempo, o perigo e o relacionamento impossível. (Fonte: Batman – Ano um). ......................... 135

Figura 108 – o abatido detetive Blacksad, após confronto com malfeitores que tentaram impedir sua investigação. (Fonte: Blacksad – Em algum lugar entre as sombras). .................................................................................. 136

Figura 110 – a ação em plano e contra plano mais o enquadramento de contextualização nos dão detalhes importantes do crime cometido, que será desenvolvido com o andar da história. (Fonte: The Spirit – O retorno de Satin) .................................................................................................. 136

Figura 111 – Marv solicita o casaco. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado) 137 Figura 112 – a decupagem de cenas da sequência, revelando detalhes

importantes, em uma ação em diversos planos, com diveros ângulos, com movimentação incessante e ritmo empolgante. ...................................... 138

Figura 113 – o caos urbano de Hard Boiled. (Fonte: Hard Boiled). ................ 139 Figura 114 – a construção de uma narrativa peculiar, que envolve a libertação

de robôs escravos sexuais e femme fatales metálicas, entre a ação descontrolada e o violência explosiva. (Fonte: Hard Boiled). .................. 140

Figura 115 ...................................................................................................... 142 Figura 116 ...................................................................................................... 143 Figura 117 ...................................................................................................... 144 Figura 118 – Fontes: http://www.comicartfans.com ........................................ 144 Figura 119 – arrojada subdivisão de acontecimentos da ação, esmiuçado em

mini acontecimentos (que acontecem em tempo real) separados por quadros de espaço físico. (Fonte: http://www.bookalicious.net) .............. 145

Figura 120 – a onomatopéia. A personificação dos quadrinhos (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas) ............................................................................ 145

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 15

2 A ARTE POSTA EM SEQUÊNCIA ............................................................... 16 2.1 A história dos quadrinhos ................................................................... 30

3 WILL EISNER ............................................................................................... 43 3.1 The Spirit ............................................................................................... 48

3.2 Arte Sequencial ..................................................................................... 52

4 LEGADO DE EISNER ................................................................................... 60 4.1 Frank Miller ............................................................................................ 61

4.2 Canales e Guarnido .............................................................................. 72

5 film noir ........................................................................................................ 73 5.2 O cinema obscuro................................................................................. 74

5.3 Decifrando o noir: Estética .................................................................. 76

5.4 Narrativa ................................................................................................ 84

5.5 Decifrando o noir: Estereótipos .......................................................... 86

5.6 Consolidando o fenômeno noir ........................................................... 88

6 a conexÃo do cinema na arte sequencial ................................................. 89 6.1 A origem expressionista de Batman ................................................... 98

6.2 Identidade expressionista: Sin City e Blacksad ............................... 106

6.4 Reinterpretação estética .................................................................... 114

6.5 Reinterpretação da narrativa ............................................................. 123

6.6 Análise de estereótipos noir .............................................................. 132

7 Arte sequencial refinada ........................................................................... 137 7.1 A abordagem neo-noir de Frank Miller e o neo-clássico de Blacksad .................................................................................................................... 138

7.2 A evolução da sequência ................................................................... 141

8 Considerações finais ......................................... Erro! Indicador não definido.

bibliografia ............................................................. Erro! Indicador não definido.

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15

1 INTRODUÇÃO

Esta pesquisa visa analisar e estudar a importância do artista Will Eisner

na concepção da arte sequencial, assim como suas semelhanças com o

cinema noir, demarcando os passos que constituíram a evolução dos

quadrinhos ao estudar as referências artísticas e narrativas do autor, assim

como seu legado para o artista Frank Miller, que, juntos, se tornaram dois dos

maiores nomes da arte sequencial noir, estabelecendo uma ponte entre o

cinema e os quadrinhos, principalmente ao abordarem a relação da disposição

da narrativa nas páginas dos quadrinhos como uma adaptação da mise em

scène presente na linguagem cinematográfica.

No primeiro capítulo deste estudo, será possível vislumbrar o início da

representação da ação feita pelo homem, partindo do pressuposto de que o

imaginário é o principal propulsor para representação do que se vê, seja pelas

figuras rupestres do período paleolítico, ou pela “persistência da retina” e o

cinematógrafo. O que se destaca é que, inevitavelmente, o registro do

movimento sempre esteve presente na cultura, demonstrando que a arte

gráfica sempre esteve presente como forma de comunicação, assim como o

cinema. Em sua sequência, será abordado o início dos quadrinhos, passando

brevemente por suas origens com o fim de contextualizar a sua evolução futura

para a arte sequencial.

No segundo capítulo será feita uma breve biografia do artista Will Eisner,

destacando seu início de carreira e referências, assim como as inspirações que

tornaram possível a criação da obra The Spirit, passando pelo impacto da

personagem no cenário dos quadrinhos, fato que acabou por se transformar,

mais tarde, na arte sequencial, elevando a forma de se ler uma ação estática

disposta em quadros. Tal importância na indústria será salientada no capítulo

II, que tratará do legado garantido por Eisner, destacando os artistas Frank

Miller, Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido, em uma breve biografia do autor

de Sin City e da dupla responsável por Blacksad.

Estabelecido os alicerces desta pesquisa, o estudo seguirá para o

capítulo IV, que se propõe a exemplificar o cinema noir, passando por um

processo de decantação, com o fim de garantir uma linguagem concisa e

simples do que vem a ser o movimento noir, através dos tópicos: estética,

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narrativa e estereótipos, garantindo, assim, a presença não só de um gênero

de cinema, mas um verdadeiro fenômeno cultural, responsável por diversas

obras multimidiáticas. Entre estas linguagens para qual o noir foi adaptado se

encontra o quadrinho, do qual o estudo se seguirá pela convergência de

mídias, constatando as similaridades entre o cinema e os quadrinhos, traçando

uma linha narrativa e visual nestes dois meios de comunicação diversificados,

que se tornaram, ao mesmo tempo, uma forma de arte e de entretenimento

para as massas. Será feito um estudo evolutivo destes meios, demonstrando

as diversas similaridades que dividem entre si, desde a raiz expressionista

encontrada na personagem Batman, até o trato do nanquim tal qual a

iluminação do cinema noir, além das similaridades narrativas partilhadas, entre

contos policiais e pulp fictions.

Por final, após todas as comparações técnicas terem sido devidamente

estabelecidas, tanto pela semelhança da luz, de personagens e

enquadramentos e ângulos cinematográficos, será feito um apanhado de

diversas obras de Frank Miller, as traduzindo em uma linguagem neo-noir, mais

aproximada do pop, enquanto o Blacksad se encontra em um meio clássico

noir. A conclusão levará para o caminho dos quadrinhos contemporâneos,

abordando a utilização e a importância do enquadramento na arte sequencial,

tal qual uma nova evolução desta linguagem, se estabelecendo como uma

forma de expressão única.

2 A ARTE POSTA EM SEQUÊNCIA

A fim de contextualizar a abrangência que engloba a arte sequencial, é

interessante voltarmos ao princípio das representações artísticas de nossos

ancestrais, seguindo um caminho exemplificado através das primeiras

representações figurativas do cotidiano, que contribuíram na construção da

própria palavra escrita. Segundo McCloud, (1993), “de acordo com a história,

as figuras antecedem em muito a palavra escrita.” (figura 1).

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Figura 1 - Figuras pictóricas e simbólicas, que, representadas na parede de uma caverna, retratam um meio de vida rupestre. Esta peça, datada em 15 mil anos, demonstra o início da representação humana através de uma linguagem iconográfica. (Fonte: Desvendando os Quadrinhos).

A linguagem corporal do indivíduo logo se tornou uma ferramenta para

se decodificar signos figurativos que, quando justapostas, são capazes de

narrar uma sequência de acontecimentos.

O corpo humano, a estilização da sua forma, a codificação de seus gestos de origem emocional e de posturas expressivas são acumuladas e armazenadas na memória, formando um vocabulário não verbal de gestos. (EISNER, 1989, p. 103)

Este “vocabulário não verbal de gestos” pode ser encontrado nas formas

figurativas realizadas nos primórdios, com o fim de decodificar a forma

humana. (figura 2).

Figura 2 - Exemplo de comunicação escrita por meio de imagens familiares. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial).

Esta decodificação se deve a forma do homem em “universalizar

imagens da experiência humana comum” (EISNER, 1989, p. 106), fato que

contribuiu na criação da primeira forma de linguagem escrita, baseada na

figuração estilizada. (figuras 3 e 4).

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Figura 3

Figura 4: As figuras 3 e 4 mostram A utilização iconográfica da forma humana nos frisos egípcios e a construção dos hieróglifos, que “codificaram as imagens em símbolos em repetição para formar uma linguagem escrita viável”. (Eisner, 1989, p. 104). (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial).

Como apontado por McCloud, a imagem é instantânea, pois é uma

informação recebida, que não necessita de uma “educação formal” para ser

compreendida. Enquanto a escrita é “informação percebida”, que acarreta um

“conhecimento especializado para decodificar os símbolos abstratos da

linguagem”. (McCLOUD, 1993). O que temos então, na transição deste

período, em que figura se transforma em linguagem, é a concepção dos

“ícones não pictóricos”, que constituem um “significado fixo e absoluto. Sua

aparência não afeta seu significado porque representa idéias invisíveis”.

(McCLOUD, 1993).

O que ocorre é um “amálgama de imagem visual pura e símbolo

derivado uniforme”, elaborados “a partir de imagens que têm origem em formas

comuns, objetos, posturas e outros fenômenos reconhecíveis”. (EISNER,

1989). Quanto mais se refina a linguagem, mais abstrata a mesma se torna.

O símbolo acaba por se transformar em caligrafia, que, representada a

mão, evoca a sua origem artística e figurativa. Para Eisner, “a caligrafia

acrescentou outra dimensão ao uso do pictograma”, criando uma “certa

similaridade com a tira de quadrinhos moderna, se consideramos o efeito que o

estilo do desenhista tem sobre o caráter do produto total” (EISNER, 1989, p.8).

Porém, seguindo a lógica de McCloud, os hieróglifos não podem ser

considerados como o primórdio dos quadrinhos, mas sim da palavra escrita.

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Embora exista uma “certa semelhança com os quadrinhos”, os grifos egípcios

representam sons - assim como nosso alfabeto -, não imagens.

Assim sendo, passando esta concepção da linguagem, encontramos

alguns antecessores que se aproximam, de uma forma muita mais direta, com

a arte sequencial em si. McCloud desvenda uma cena, pintada há 32 séculos

no Egito (figura 5), composta por imagens – mais aproximadas de uma

representação pictórica, - justapostas em sequência, que, quando lidas em

ziguezague e de baixo pra cima, são capazes de construir uma narrativa visual.

Figura 5 - Imagem representada por McCloud, com o fim de ser reproduzida em preto e branco. (Fonte: Desvendando os quadrinhos).

Na pintura acima, podemos compreender todo o processo da colheita do

trigo, o deslocamento do mesmo até a debulhadora local, a separação do trigo

e da palha, a supervisão do imperador e de seus escribas, - registrando a

produção em seus papiros -, a medição da terra e a representação de

fazendeiros sendo espancados por representantes do imperador. Nesta mesma

imagem é possível ver traços sociais (duas garotas brigando por pedaços de

trigo), faces do lazer (operários tocando flauta ao fundo) e de regimes políticos

(o imposto medido em trigo e a punição sofrida para aqueles com impostos

atrasados). Esta representação, que serve como uma antecessora primária das

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histórias em quadrinho serve, além de tudo, como a compactação de toda a

cultura de um povo.

Estes traços culturais, porém, não são exclusivos de somente uma

nação. A construção de imagens como estas podem ser encontradas em

diversos momentos da história e em culturas extremamente diversificadas, tais

como na pintura épica “Garras de Tigre”, dos manuscritos pré-colombianos

(figura 6) e nas tapeçarias inglesas do século IX (figura 7).

Figura 6 - Narrativa épica sobre o herói “8-Cervos”. (Fonte: Desvendando os quadrinhos).

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Figura 7 - Tapeçaria inglesa datada de 1066, que desenvolve a construção de uma direção visual da “Conquista normanda”, através de “eventos da conquista em ordem cronológica deliberada”. (McCLOUD 1993, p.12). (Fonte: Desvendando os quadrinhos).

Avançando no tempo, se alcança o período mais importante para as

histórias em quadrinho: a invenção da imprensa. (McCLOUD, 1993).

Com a invenção da imprensa, a forma de arte que servia aos ricos e poderosos agora poderia ser desfrutada por todos. (McCLOUD, 1993, p. 16)

Pela facilidade da reprodução, a imprensa tornou a arte um meio mais

social, viabilizando a expansão de outras formas de linguagem, como a série

“As torturas de Santo Erasmo” (figura 8), do ano 1460. Inclusive, “dizem que o

personagem (Santo Erasmo) era muito popular”. (McCLOUD, 1993, p. 16).

Talvez essa grande popularidade seja exatamente o “mal” relegado aos

quadrinhos. Em trecho retirado do livro Desvendando os Quadrinhos

(McCLOUD, 1993), o artista Rudolphe Topffer (1845) chega a comentar que as

obras de arte em sequência, que o mesmo produzia, “atraem sobretudo

crianças e as classes inferiores”. (McCLOUD, 1993, p. 201, apud TOPFFER,

1845). Tanto As torturas de Santo Erasmo, como Os amores do senhor

Jacarandá (1842), por terém caído em gosto popular, acabam por ser

relegadas a uma arte mais descartável e menos apreciada.

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Contudo, como será destacado a seguir, a arte de se estabelecer uma

narrativa através do movimento e da sequência alçou vôos maiores, inclusive

chegando as “belas artes”, como no caso da obra Adão e Eva (figura 9) e o

altar de São Wolfgang (figura 10), ambos do pintor renascentista Lucas

Cranach (séc. XVI).

Figura 8 - A série de figuras que servem como narrativa para a obra As torturas de Santo Erasmo (1460), detalhando cada um de seus sortilégios. (Fonte: Desvendando os quadrinhos).

Este tipo de representação sequencial foi amplamente utilizado pelas

igrejas católicas, que se apoiavam neste tipo de arte com o fim de informar e

catequizar a plebe, retratando passagens inteiras aos fiéis, com belos e

exuberantes vitrais (figura 11) e pinturas renascentistas, que, divididos entre si,

apresentavam uma leitura compreensível e abrangente para a população:

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Os afrescos continuaram a ser utilizados como o principal ofício pictográfico narrativo nas paredes de igrejas no sul da Europa como continuação de antigas tradições cristãs e românicas. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Pintura_do_gótico)

Figura 9 - Pintura da série Adão e Eva (séc. XVI), que retrata a passagem da bíblia através de outros quadros postos em sequência. (Fonte: http://www.gazetadopovo.com.br)

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Figura 10 - Frontal do Retábulo de Cranach na igreja de São Wolfgang. As cinco pinturas postas em conjunto, aliadas ao uso do texto guia, são capazes de construir uma interessante narrativa visual e literária, muito comum neste tipo de representação sacra, onde passagens da bíblia são abordadas. Fonte: http://pt.wikipedia.org

Figura 11 - Vitral na Catedral de Chartres (séc XIII). (Fonte: http://pt.wikipedia.org).

Na Idade Média, quando a arte sequencial passou a se ocupar de contos edificantes ou histórias religiosas sem muita profundidade ou nuances, o público-alvo era aquele de pouca educação formal. Desta forma, a arte sequencial se tornou uma espécie de taquigrafia, que se valia de estereótipos para abordar as questões humanas. (EISNER, 2010, p. 149)

Em 1731 a “sofisticação da história com imagens atingiu seu apogeu nas

mãos de William Hogarth”. (McCLOUD, 1993, p. 16). Em sua série de gravuras,

“O progresso de uma prostituta” (figura 12), Hogarth conseguiu estabelecer

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uma nova forma de leitura da bela arte, separando uma narrativa completa em

seis breves quadros. “Essas e outras séries de Hogarth são citadas por Will

Eisner como uma demonstração pioneira de arte sequencial”. (AZÊDO; UCHA,

2009, p. 4).

Apesar de ter poucos quadros, essas figuras contam uma história rica em detalhes e motivada por fortes preocupações sociais (...). As histórias de Hogarth foram mostradas pela primeira vez como uma série de pinturas (...), que era para ser vistas lado a lado, em sequência! “O progresso de uma prostituta” e sua continuação se tornaram tão populares que novas leis de direitos autorais foram criadas para proteger essas nova forma de arte. (McCLOUD, 1993)

Figura 12 - A segunda gravura – de um total de seis - da obra “O progresso de uma prostituta” (1731). Seis quadros diferentes, que, mesmo contendo momentos únicos, são capazes de formar uma só narrativa se expostos em conjunto. A separação das cenas do quadro, através do espaço físico de sua moldura, pode ser interpretada como o início do vazio de leitura do “entrequadros” (McCLOUD, 1993), que serve como a cola da ação, permitindo à imaginação do leitor a função de conectar a narrativa. (Fonte: http://it.wahooart.com).

Com o passar do tempo, a técnica da junção entre figura e texto

encontrou um parâmetro que é cultivado até hoje: o da charge política. Isto se

deve ao artista James Gillray, que, em 1972, criou a tira French Liberty, British

Slavery (figura 13), um retrato crítico social e político da relação entre França e

Inglaterra. O detalhe mais interessante desta obra, talvez, seja o uso de balões

de fala, uma linguagem extremamente característica dos quadrinhos. Ao que

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tudo indica, Gillray seria o elo perdido definitivos dos quadrinhos. Bem, não

exatamente, pois, como citado por Amorim (2011):

A disposição das informações é semelhante à dos quadrinhos, utilizando-se de quadros e balões, no entanto a charge não traz um enredo, apenas remete a uma situação, satirizando-a. (AMORIM, 2011, p. 4)

Figura 13 - O almálgama entre figura e texto, de Gillray (1972). (Fonte: http://upload.wikimedia.org).

Esta relação mais profunda seria encontrada alguns anos depois, com

Rodolphe Topffer, em 1827. Porém, esse assunto será melhor abordado no

próximo capítulo.

A fim de finalizar a busca humana pela “captura de movimento” entre os

séculos XIX e XX, temos uma etapa fundamental, dada em 1826 pelo francês

Joseph Nicéphore Niépce: o primeiro registro fotográfico da história (figura 14).

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Figura 14 - Vista da janela em Le Gras (1826), primeiro registro fotográfico da história. (Fonte: http://upload.wikimedia.org).

Embora a técnica que envolve a fotografia já fosse utilizada desde o

sécuo XVI, foi com a “heliografia” (uma câmera exposta a oito horas de luz

solar) de Niépce que a fotografia veio ao mundo. Com a evolução do registro

fotográfico, pesquisas a cerca do movimento foram realizadas. Ao se registrar

uma ação em diversos fotogramas separados, conseguimos criar a ilusão do

movimento. Eadweard Muybridge foi o maior responsável pelos estudos

seqüenciais. Por motivos de uma dúvida da época, levantadas pelo governador

da Califórnia, Leland Stanford, Muybridge foi convocado a descobrir como se

dava o trote de um cavalo, já que os animais eram retratados, quando em

movimento, como cães: com suas quatro patas acima da chão enquanto

galopavam. Para isto, Muybridge desenvolveu uma série de grandes câmeras,

postas em linha e disparadas assim que o cavalo por elas passassem. O

resultado foi o “estágio intermediário entre fotografia e cinema” (Wikipédia –

Figura 15).

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Figura 15 - O trote do cavalo captado por Muybridge (1878). (Fonte: http://gteans.blogs.com).

Esta ilusão do movimento se dá através do efeito chamado “persistência

da retina”, que se consolidou, em 1895, pelas mãos dos irmãos Lumière e a

invenção do cinematógrafo (figura 16).

Figura 16 - O cinematógrafo, considerado uma evolução do cinetoscópio, de William Kennedy Laurie Dickson. (Fonte: http://upload.wikimedia.org)

Os filmes são feitos de uma série de imagens individuais chamadas fotogramas. Quando essas imagens são projetadas de forma rápida e sucessiva, o espectador tem a ilusão de que está ocorrendo movimento. A cintilação entre os fotogramas não é percebida devido a um efeito conhecido como persistência da visão, pelo qual o olho humano retém uma imagem durante uma fração de segundo após a fonte ter sido removida. Os espectadores têm a ilusão de movimento devido a um efeito psicológico chamado movimento beta. (Wikipédia)

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A partir do cinematógrafo, a ilusão do movimento foi se aprimorando

cada vez mais. Em grande parte ao envolvimento do mágico Georges Méliès,

que pretendia utilizar esta nova invenção para seus truques de mágica. Embora

sua tentativa de compra tenha sido refuta pelos irmãos Lumière (principalmente

pelo fato do cinematógrafo se tratar muito mais de um objeto cinetífico), Mélies

consegiu adquirir um aparelho parecido, vindo da Europa, criando, assim, o

início do cinema de entretenimento (figura 17).

Porém, a consolidação do cinema como o conhecemos hoje se deve a

figura de David W. Griffith, que, com o filme “O nascimento de uma nação”

(1915 – Figura 18), construiu a figura cinematográfica mais próxima do que

conhecemos hoje, com a adição da montagem em suas cenas. Griffith

construiu o cinema contemporâneo de uma forma mais certeira, alçando o

mesmo ao nível de arte que hoje conhecemos, com a captura de movimento

padronizada em 24 frames por segundo. Mas e quanto ao quadrinho? A quem

se deve a real criação desta arte?

Figura 17 - O filme “Viagem à Lua” (1902), de George Mélies. Passo fundamental na criação dos “efeitos visuais” do cinema. (Fonte: Viagem à Lua).

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Figura 18 - Cena do filme “O nascimento de uma nação” (1915), de Griffth. (Fonte: O nascimento de uma nação).

2.1 A história dos quadrinhos

Como pôde ser observado, a humanidade criou diversas formas de se

representar o movimento, seja para fins narrativos, ilustrando uma passagem

bíblica em vitrais de igreja, ou para fins científicos e de estudo (transformados

em artísticos, posteriormente), que, através da evolução da fotografia,

acarretaram a invenção do próprio cinema, em 1895, com a criação do

cinematógrafo pelos irmãos Lumière.

Porém, embora todos os passos citados desempenhem uma importante

função de estudo na compreensão da arte posta em sequencia, nenhum deles

acaba por se fundamentar, verdadeiramente, como “quadrinho”. O primeiro

grande passo para a fundamentação da linguagem dos quadrinhos se deve ao

escritor, pedagogo e desenhista Rodolphe Topffer, que em 1827, na Suíça,

desenvolveu os primeiros elementos marcantes que estruturariam os

quadrinhos, com a obra Histoire de M. Vieux Bois (ou, como foi traduzido em

1842, Os amores do senhor Jacarandá), contando com elementos de

linguagem únicos (Figuras 19 e 20).

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Esses elementos que tornam os Quadrinhos uma arte específica foram reunidos pela primeira vez há exatos 180 anos, quando Rodolphe Töpffer criou a obra ficcional Les Amours de Monsieur Vieux-bois (Os Amores do Senhor Jacarandá em sua edição brasileira). O que diferenciava a criação de Töpffer das outras era uma narrativa visual em que imagens e palavras combinam-se no espaço da página, mas possuem funções distintas. Em sua obra, as imagens não são mera ilustração de um texto escrito, enquanto as palavras não servem simplesmente para explicar os desenhos. Com um traço bastante sintético e inovador para a época, em suas “histoires des estampes” Töpffer inventou uma nova linguagem artística, prontamente aclamada pelo poeta Johann Goethe como uma revolucionária forma de comunicação. (SRBEK, online)

Figura 19 - Página da obra Les Amours de monsieur Vieux-Bois. Importante notar o desenvolvimento de personagem, com uma anatomia muito mais próxima do estilo utilizado nos quadrinhos, expressão simplificada e sensação de movimento, além da incorporação do texto à imagem, em uma relação mútua de linguagem: somente a junção do texto e da ilustração são capazes de narrar o acontecimento da forma correta. (Fonte: http://gallica.bnf.fr)

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Figura 20 - Página 25 da obra Les Amours de monsieur Vieux-Bois. Nesta imagem já é possível visualizar uma concepção do movimento aprimorada, oferecendo a história uma ritmo interessante, que consegue até mesmo agir de forma independente ao texto. (Fonte: http://gallica.bnf.fr)

Acompanhando os quadros acima, já é possível constatar o elemento

principal na construção dos quadrinhos, definido por Scott McCloud como um

apanhado de “imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada

destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no

espectador”. (McCLOUD, 2003, p. 9). Estes elementos narrativos, unificados

nesta publicação de 1827, já podem ser identificados como o primórdio da arte

sequencial contemporânea, principalmente pela presença do texto e da

imagem em uma relação de sincronia e dependência pelo bem da narrativa,

que é expressa em um certo número de ações, representadas em quadros

separados, com a intenção de transmitir uma noção de conexão visual e

movimentação, gerando, assim a falsa impressão da ação contínua, tal qual

fotogramas justapostos no cinematógrafo.

Seguindo a ordem cronológica dos quadrinhos, outros artistas

desempenharam papéis importantes na história. Um deles foi Wilhelm Bush,

um poeta alemão nascido em 1832, que acabou por ganhar destaque em 1859

ao publicar, no jornal Fliegende Blätter, a série de charges Die kleinen

Honigdiebe (figura 21), que acabariam por se transformar, em 1865, na tirinha

Max and Mortiz (no Brasil, a obra foi traduzida pelo poeta Olavo Bilac,

ganhando o título de Juca e Chico – História de dois meninos em sete

travessuras – figura 22). Em suas histórias, Juca e Chico são dois meninos que

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moram em uma pequena aldeia, e cujo maior passatempo é o de infernizar a

vida de seus moradores, aprontando, ao longo da narrativa, as sete

travessuras que dão nome ao título nacional. Por fim, a história é carrega pelo

humor das ilustrações (que cativava as crianças) e o cruel modo germânico de

apresentar lições de moral.

Figura 21 - Ilustração publicada no jornal alemão Fliegende Blätter, em 1859. (Fonte: http://www.sagen.at)

Figura 22 - painel da obra “Juca e Chico”, de 1993. (Fonte: http://www.sagen.at)

Busch, assim como todos precursores, foi amplamente copiado e serviu

como inspiração para gerações futuras. Segundo trecho retirado do livro

História da Histórias em Quadrinhos (MOYA, 1993), o autor destaca uma crítica

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feita por um profissional não identificado, do jornal francês Le Figaro: “Wihelm

Busch foi um dos maiores inventores da síntese cômica que já existiu (...)

muitos fazedores de desenhos ‘simplificados’ se inspiraram nele. Infelizmente,

não copiaram sua profundidade de observação”.

Poucos anos depois, aproximadamente em 1855, o Brasil ganhou seu

primeiro quadrinho: “Namoros, quadro ao vivo”. (SISSON, 1855). A arte foi

criada pelo francês radicado no Brasil, Sebastian August Sisson, que era

especialista em retratos e caricaturas, além de exímio litógrafo. (AZÊDO;

UCHA, 2009).

Porém, o nome nacional que merece um destaque muito maior é, com

certeza, o de Angelo Agostini. Foi em 1869, publicado na revista ilustrada “Vida

fluminense”, que a obra “As aventuras de Nhô-Quim” (figura 23) veio à tona.

Figura 23 - A personagem Nhô-Quim, que, em uma caricatura bem humorada, demonstra sua ingenuidade e “ignorância” ao brigar com a própria imagem, refletida em um espelho. (Fonte: http://www.universohq.com)

As trapalhadas aventuras da personagem simples e caipira, Nhô-Quim,

renderam a incorporação da sua data de publicação, dia 30 de janeiro, como o

“Dia do quadrinho nacional”. (AZÊDO; UCHA, 2009, p. 16).

Contudo, Agostini voltou a se destacar, mais uma vez. Em 1886, “Angelo

Agostini compila em fascículos as aventuras de Zé Caipora (...). Essa edição é

considerada a primeira revista com um personagem fixo publicada no Brasil”.

(AZÊDO; UCHA, 2009, p. 11). Ou seja, Agostini acaba por inventar, em 1886, o

primeiro gibi do mundo (figura 24).

Athos Eichler Cardoso vai ainda mais longe, ao afirmar que Angelo Agostini foi também o inventor da revista de quadrinhos, pois, em 1886, relançou as aventuras de Zé Caipora em fascículos individuais,

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com seis capítulos cada. "Nessa época, havia publicações parecidas, mas que incluíam quadrinhos de personagens diversos, caricaturas, contos e folhetins. Zé Caipora foi o primeiro personagem a ter uma revista só sua. Isto só voltaria a acontecer na década de 1930" (GUSMAN, online, apud ATHOS)

Athos continua seu texto, complementando o valor artístico e a

importância como documento histórico da obra de Agostini, principalmente pelo

traço realista do autor, que se utilizava de perspectiva e profundidade de

campo, retratando costumes, veículos e arquitetura daqueles dias. (GUSMAN,

online, apud ATHOS)

Figura 24 - Página de Zé Caipora, com diagramação ousada para a época. É interessante se atentar a utilização do enquadramento, que, com o intuito de abordar a cena da descida, se estica, junto à personagem. (Fonte: http://www.universohq.com)

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Nos Estados Unidos, o “gibi”, tal qual realizado por Agostini, só veio a

aparecer em 1892, pelas mãos de James Swinnerton, com sua primeira série

diária de personagens fixos, publicada no jornal Examiner sob o nome de The

Little Bears (figura 25). Não tarda a aparecer, em 1895, uma nova peça

essencial e marcante para os quadrinhos mundiais. Richard Felton Outcault e

sua personagem Yellow Kid (figura 26) rapidamente conquistaram a

consagração, elevando o status do artista de quadrinhos. Em sua obra,

Outcault transforma um menino pobre, morador de uma favela, em

personagem principal, que utilizava a sua própria roupa como meio de

expressão, com falas e dizeres escritos na mesma. O interessante desta obra

foi a utilização experimental das cores, com foco no amarelo da vestimenta,

que tinha como intenção atrair um maior número de leitores. (AZÊDO; UCHA,

2009).

Figura 25 - O traço simplificado e a utilização de balões de fala logo se tornaram “regras” do estilo. (Fonte: http://lambiek.net/artists/s/swinnerton.htm)

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Figura 26 - A utilização de cores presente em The Yellow Kid evidencia uma preocupação em se criar uma nova linguagem, transformando a cor amarela em um componente essencial na construção da personagem e pontuação do relevante para a narrativa. (Fonte: http://cartoons.osu.edu)

Em 1896, o cartunista Rudolph Dirks lança outra série de quadrinhos,

uma que, desta vez, já continha todos os elementos de linguagem que são

característicos a este meio. Com a obra Katzenjammer kids (traduzida no Brasil

como “Os sobrinhos do capitão”), publicada em seu suplemento próprio de

quadrinhos coloridos, Dirks homenageia Busch (Juca e Chico) e estabelece

muitos dos elementos tradicionais desta arte, sendo, inclusive, “a mais antiga

história em quadrinhos em circulação”. (AZÊDO; UCHA, 2009, p. 14).

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Figura 27 - Nesta página, do início do século XX, podemos presenciar que a estrutura mais básica dos quadrinhos (balões de fala, estruturação dos quadros e recursos estilísticos) já estava presente, forma esta que não sofreu grandes alterações com o passar dos anos. (Fonte: http://curiositedequalite.blogspot.com/2011/04/katzenjammer-kids.html)

A partir de 1900, o mercado dos quadrinhos começou a engrenar de

uma forma marcante. Por se tratar de um período de enorme produção, a

abordagem completa da desta evolução exigiria de um estudo muito mais

detalhado. Com a proximidade da chamada “época de ouro dos quadrinhos”

(1920/1940), é interessante citar alguns autores importantes, que se

destacaram no período anterior a grande guinada dos super-heróis. Talvez um

dos maiores nomes para a narrativa sequencial seja o de Winsor McCay,

criado da “primeira obra prima dos quadrinhos, Litte Nemo in Slumbersland”.

(AZÊDO; UCHA, 2009, p. 17).

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A arte de McCay é exuberante e fluída, com passagens que estavam à

frente do seu tempo, demonstrando um grande domínio da narrativa fantástica,

se utilizando fortemente da anatomia expressiva, termo que seria utilizado

somente décadas depois, por Will Eisner. Talvez o maior triunfo de McCay seja

o apreço aos detalhes, principalmente na preocupação do mesmo na

continuidade da ação e do movimento, sempre destilando, por diversos

quadros, os gestos e posturas de suas criaturas e personagens. (figuras 28, 29

e 30). Sua contribuição é essencial para o desenvolvimento da arte sequencial.

Figura 28

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Figura 29

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Figura 28 à figura 30 - Com histórias curtas, narradas em apenas uma página, podemos encontrar a personagem Nemo, uma criança que vive em meio a seus sonhos. O lúdico universo de McCay está sempre em constante movimento, seja pelos persistentes flocos de neve, da figura 28, ou pelo andar do elefante em direção ao leitor, que é direcionado para dentro da boca do animal, na figura 29, ou pelo uso da perspectiva e da inversão de ângulos da figura 30. A narrativa gráfica e visual de McCay guia o leitor pela sonhar da criança, que, assim como a mesma, é obrigado a terminar a história, por cair da cama e acordar deste universo. (Fonte: http://asleiturasdopedro.blogspot.com/2010/10/little-nemo-in-slumberland.html)

Terminada esta passagem essencial pelo universo de McCay, citarei

alguns autores importantes, que direcionaram o universo dos quadrinhos até a

nossa realidade contemporânea. Entre eles, podemos evidenciar a importância

nacional da obra “O Tico-Tico” (Luís Bartolomeu de Souza e Silva, 1905); A

primeira aventura da personagem Tarzan (1914) de Edgar Rice Burroughs;

Herge e sua criação máxima, Tintim (1929); a estréia de Mickey Mouse nas

tiras de quadrinho em 1930 (ocorrendo, assim, a transição de um personagem

animado famoso para sua contraparte estática nos quadrinhos); as primeiras

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histórias policiais dos quadrinhos, com a personagem Dick Tracy (Chester

Gould, 1931) e a inauguração do gênero de ficção científica, com Flash Gordon

(Alex Raymond, 1934), guiando, também, a abordagem anatômica (posturas,

feições e biotipos) e de roteiro que seria utilizado nos próximos anos (figura

31).

Figura 31 - Trecho da obra Flash Gordon, na qual é possível perceber o modelo anatômico utilizado na série, recorrente até os dias de hoje. (Fonte: http://madinkbeard.com/archives/flash-gordon-review)

A partir deste momento, estamos consolidando a fase de ouro dos

quadrinhos, com roteiros leves, voltados para a aventura, com personagens

que mais heróicos, seguindo bons modelos de caráter e moral. Ocorre também

uma ramificação nos quadrinhos, desenvolvendo uma linguagem de

entretenimento advindo de romances clássicos (Tarzan), sci-fi (Flash Gordon) e

policiais pré-noir (Dick Tracy). Entre outros, deve-se destacar Mandrake e O

Fantasma, amos de Lee Falk (1934 e 1936, respectivamente). Ao que tudo

indicava, o mercado de quadrinhos se voltava cada vez mais para estas figuras

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heróicas, tendo influenciado até mesmo no Brasil, com a criação da

personagem de terror, Garra Cinzenta, em 1937 (figura 32).

Figura 32 - Pelo fato da obra brasileira ter sido influenciada pela vertente do terror, podemos perceber a utilização de elementos do expressionismo alemão - que seriam posteriormente amalgamados ao gênero noir -, tal qual a utilização da iluminação e a trama sombria. (Fonte: http://hqquadrinhos.blogspot.com)

O auge foi alcançado, definitivamente, em 1938 e 1939, com a criação

das personagens Superman e Batman, frutos da época de pré Segunda

Guerra, iniciando, assim, todo o modelo de quadrinhos como conhecemos hoje.

Porém, esta intensa busca por figuras heróicas e sobre-humanas distanciou os

quadrinhos da realidade. Foi em 1940, influenciado pelo cinema policial da

época, que Will Eisner lançou sua personagem mais famosa: The Spirit.

Iniciava-se uma nova abordagem para os quadrinhos, mais séria e

humanizada, elevando-se a arte sequencial.

3 WILL EISNER

A vida e o trajeto profissional de Will Eisner se confundem com a própria

concepção e ascensão das histórias em quadrinho: das tirinhas semanais dos

jornais de sua infância até a criação das graphic novels, Eisner sempre esteve

presente em momentos crucias da nona arte, fosse como simples espectador

ou como principal responsável e criador de uma nova linguagem. Assim sendo,

é difícil se narrar a vida e obra de um artista desta magnitude sem, ao menos,

acompanhar o desenvolvimento da indústria de quadrinhos no século XX e

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como a arte desempenhou, desde cedo, um papel fundamental no jovem

William Erwin Eisner.

Filho de imigrantes judeus, Will Eisner teve uma infância pobre no bairro

do Brooklyn. Nascido em 6 de março de 1917 e criado no gueto nova iorquino,

o jovem Eisner vivenciou os primeiros passos do que se tornaria a era de ouro

dos quadrinhos, uma época em que as famosas tirinhas e charges de jornais

norte americanos se encontravam em seu auge - tanto na qualidade de seus

artistas como na aceitação do público. Era exatamente nesta forma de

entretenimento lúdico que o pequeno Will Eisner se refugiava. Vivia-se numa

época interessante para aqueles que se aventuravam como cartunistas, já que

era ainda algo novo a ser explorado, com mentes criativas e talentosas por trás

de algumas das maiores obras do gênero. Eisner acompanhava avidamente

cada um deles, tanto que desde novo já pensava em se dedicar a área.

Tal ímpeto artístico devia-se muito a seu pai. Nascido em Vienna,

dedicava-se a arte como pintor de murais, com peças realizadas nas famosas

vaudeville do final do século XIX e em teatros judaicos. Eisner contava com o

apoio de seu pai, que prezava a criatividade de seu filho como algo a ser

cultivado. Porém, a aceitação não era bem vinda pela parte de sua mãe,

mulher simples, nascida no navio de imigração que a trouxe da Romenia. Era

pragmática e lamentava a escolha de seu filho, argumentando que o mesmo

estava sofrendo de “quixotismo” e que deveria voltar à razão de seus

pensamentos. Sua maior preocupação era o de retirar Eisner do caminho da

arte, já que a família vivia no cortiço do Brooklyn e necessitava de uma renda

extra para sobreviver. Para ajudar a família, Eisner passou um período de sua

infância com vendedor de jornais, o que, ironicamente, somente contribuiu para

o seu interesse nos quadrinhos. Foi neste período que Eisner passou a entrar

em contato diário com as tirinhas dos jornais, lendo constantemente todas as

publicações de todos os jornais de Nova York. Alguns dos maiores mestres do

gênero estavam em plena atividade, servindo como ícones e inspiração para

Will Eisner, tais como E.C Segar, criador do notório personagem Popeye, além

da dupla George Garriman e Lyman Young, que criaram a tirinha Tim Tyler’s

Luck. Embriagado com a possibilidade de se tornar um grande cartunista,

Eisner decidiu se dedicar a sua futura profissão - afinal de contas, alcançar a

notoriedade de um artista como Sidney Smith (criador da tirinha The Gump)

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significava alcançar prestígio e riqueza, ambas oferecidas pelas grandes

editoras, que faziam de tudo para atrair novos talentos e artistas de grande

porte.

Eisner começou a desenvolver suas habilidades artísticas e de escrita

quando entrou na renomada DeWitt Clinton High School, uma das escolas

públicas mais reconhecidas dos Estados Unidos. Localizada no Brox, próximo

a Cozinha do Inferno, DeWitt foi de suma importância para o jovem Eisner, lhe

providenciando todos os meios possíveis para sua evolução artística. Não há

de se surpreender que tal instituição tenha servido, também, como berço de

outros grandes artistas e personalidades, com destaque para um dos grandes

colegas e amigos, além de primeiro colaborador de Eisner, o futuro criador da

personagem Batman, Bob Kane, apenas dois anos mais velho. Foi neste

período da juventude que Eisner se tornou responsável por diversas tiras em

quadrinhos, revistas de arte, ilustrações e até mesmo design de peças de

teatro, todas voltadas para a escola. Entre suas primeiras publicações, uma

que merece destaque foi a concebida com seu colega de classe, Ken Ginniger,

na intenção de se realizar uma revista literária mais intelectualizada, chamada

de The Lion and Unicorn. Recheada de versos, poesias, erotismo e ricas

ilustrações, além de fragmentos das obras dos escritores Marcel Proust e

Albert Camus, esta primeira publicação “importante” serviu para demonstrar o

desenvolvimento artístico pelo qual Eisner passava, tendo que, inclusive,

aprender gravura em madeira

Após sua passagem pela DeWitt Clinton High School, Eisner ingressou

na concorrida Art Students League, uma cara instituição de arte. Eisner

recebeu ajuda financeira de seus colegas, que contribuíram com a

mensalidade, incentivando o crescente talento do jovem rapaz. Este período

estabeleceu um passo importante para a vida profissional de Eisner, na qual o

mesmo teve a oportunidade de contar com alguns dos melhores professores de

sua época: George Bridgman e Robert Brachman, que lecionavam anatomia e

pintura, respectivamente.

Com 19 anos, Eisner entrou para o departamento de publicidade no

famoso jornal New York American. Eisner conta que utilizava suas horas de

almoço para observar o movimento das pessoas trabalhando, observando

personagens e aprendendo sobre luz e sombra (HEINTJES, online).

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Por não apreciar inteiramente o ramo em que trabalhava, Eisner

começou a procurar por serviços de freelancer. Entre estes serviços, merece

destacar a sua primeira história em quadrinhos, realizado para uma empresa

de sabote líquido, no período de 1936. Esta primeira experiência em criar

quadrinhos de maneira “profissional” rendeu a Eisner algumas outras tentativas

na área, embora todas tenham sido rejeitadas pelo pressuposto principal de

que seu traço não combinava com as tiras de humor que reinavam nas revistas

especializadas. Pouco tempo depois, Eisner foi contratado como diretor de arte

da revista Eve, que tinha como alvo o público feminino judeu.

Porém, sua função não durou muito. Eisner utilizava a revista como

veículo de sua arte, com ilustrações de embates violentos entre pugilistas. Esta

“violência inapropriada” acabou custando a Eisner o seu emprego na revista.

O direcionamento rumo aos quadrinhos na vida de Eisner iniciou quando

o mesmo conheceu Samuel Maxwel “Jerry” Iger, seu futuro parceiro de

negócios. Iger era o editor chefe da revista Wow! What a magazine, que

publicava quadrinhos diversos. Eisner trabalhou como editor assistente e

realizador de algumas das histórias publicadas, sendo que, no período em que

a revista Wow! durou (quatro edições), Eisner publicou diversas de suas tiras,

com as personagens Harry Carey e The Flame, além de ter feito duas das

capas da revista (figura 33).

Após esta primeira parceria infrutífera, Iger e Eisner partiram para a

produção de material próprio. Assim nasceu o Eisner & Iger Studio.

Com uma produção maciça de tiras e quadrinhos, o Eisner & Iger Studio

ainda contava com a presença de ilustres e jovens talentos, como: Bob Kane

(criador do Batman), Lou Fine (um de melhores cartunistas de sua época), Jack

Kirby (co-criador de todo universo Marvel, junto de Stan Lee) e Mort Meskin

(importante artista das eras de ouro e prata dos quadrinhos).

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Figura 33 - A personagem Harry Carey, criada por Eisner para publicação na revista WOW!, de 1936. (Fonte: http://www.willeisner.com/biography/)

Neste bem sucedido período, Eisner concebeu diversas personagens e

histórias importantes para os quadrinhos. Ente estes quadrinhos de aventura,

com super-heróis e personagens pulps, se destacam: Hawks of the Seas,

Sheena, Yarko the great, Dollman e Blackhawk.

Com apenas 22 anos, Will Eisner já havia conseguido alcançar o

sucesso que muitos de seus colegas tanto sonhavam e invejavam. O ano era

1939, os Estados Unidos ainda se recuperavam da Grande Depressão,

enquanto o jovem e promissor artista Will Eisner crescia cada vez mais no

mercado.

Mesmo com este crescente sucesso, o seu maior passo ainda estava

reservado para o ano seguinte: era o nascimento de um marco dos quadrinhos.

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3.1 The Spirit

O ano de 1940 foi especialmente importante tanto para os quadrinhos

quanto para o cinema. Para os que vivenciaram esta época, crescendo com a

literatura pulp barata e o cinema policial de gênero, esta nova área “artística”

que surgia apresentava um leque de possibilidades tremendas. Entre os mais

importantes exemplos deste movimento (que seria reconhecido somente anos

depois, através do fenômeno noir) se encontra o livro “O Falcão Maltês”

(Dashiell Hammett, 1930) que ajudou a estabelecer algumas das idéias

principais que se repetiriam na caracterização do estilo noir: personagens

obscuros, que caminhassem em um tom “cinza”, sem a personificação do bem

e do mal, ladeados por intrigas policiais, mulheres fatais e crimes. Podemos

dizer que a influência foi tamanha que acabou por contribuir em outra indústria

que ganhava força na época, vivendo sua era de ouro: os quadrinhos.

Foi em 1940 que, concebido através das mãos e do imaginário fértil de

um jovem e bem sucedido cartunista, vindo de um caminho de sucessos nas

histórias em quadrinhos, que uma figura marcante do noir clássico foi criada.

Um detetive marcado por um acontecimento trágico, vivendo em um ambiente

urbano, ciente de suas próprias falhas e de suas limitações como humano,

agindo como um benfeitor com um senso próprio de justiça, mas, ao mesmo

tempo mais próximo ao povo (logo, ao público), sujeito a sangrar e sofrer como

um homem comum. Além do que, com uma preferência muito maior em utilizar

chapéu fedora e sobretudo do que capa e colante.

Tal descrição cairia muito bem para qualquer personagem de um

romance policial da época. Porém, Denny Colt não era interpretado por

nenhum ator nem descrito nas linhas de um livro, mas sim desenhado e

“interpretado” pelo futuro mestre da arte sequencial, Will Eisner. Em dois de

junho de 1940 nascia “The Spirit”, uma frutífera fusão entre literatura policial,

cinema pré-noir e quadrinhos.

De seus compatriotas super-humanos dos quadrinhos, Spirit herdou a

perseverança pela justiça e a máscara que contorna seus olhos (baseada no

design da máscara utilizada pela personagem de faroeste, Lone Ranger), mas

foi do cinema (e em parte da literatura) que saíram seus pontos principais.

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A personagem Spirit surgiu em um momento de mudança do jovem

Eisner. Sua parceria de quadrinhos, a Eisner & Iger, foi quebrada, por escolha

do próprio Eisner, em prol de um novo caminho profissional mais pessoal.

Deslumbrado pela possibilidade de alcançar novos níveis criativos, Eisner

aceitou a proposta do empresário Everett M. Arnold, dono da Quality Comics,

uma das mais importantes empresas de quadrinho da época. No contrato

firmado, Eisner deveria desenvolver um novo tipo de narrativa: uma publicação

de quadrinhos semanal, com um total de 16 páginas, que alcançasse níveis

altos de qualidade, mesmo sendo altamente comerciável.

Alguns de seus “empregados”, da antiga Eisner & Iger, o

acompanharam, contribuindo na criação desta nova publicação, que seria

vinculada nos jornais da cidade. Foi em janeiro de 1941 quando a personagem

criada por Eisner, The Spirit, começou a ocupar metade desta publicação de

quadrinhos semanal. Com oito páginas semanais, Eisner fez algo inédito na

indústria: patenteou sua criação, demonstrando uma visão de mercado muito

maior do que a que cabia a maioria de seus parceiros.

Spirit, esta importante figura dos quadrinhos, é na realidade o alter-ego

do policial Danny Colt, dado como morto logo nas três primeiras páginas de

sua primeira história. Contudo, é revelado que Danny havia somente entrado

em um estado de animação suspensa causada por um de seus inimigos, o

cientista louco “Doutor Cobra”. Ao acordar dentro de um cemitério, Danny

descobre que foi dado como morto pelo departamento de polícia. Percebendo

na situação uma oportunidade de agir por fora do “sistema”, Danny decide

avisar seu amigo, o comissário Dolan, que havia sobrevivido ao ataque do Dr.

Cobra. Contudo, Danny decide permanecer no anonimato, encoberto pela falsa

notícia de sua morte e criando o disfarce perfeito para suas ações heróicas.

Como último passo do estabelecimento da figura heróica, Danny monta sua

base secreta no mesmo cemitério onde havia se recuperado de seu breve

coma, se transformando em um “espírito” protetor para a cidade.

O intuito de se criar a personagem veio pelo desejo de Eisner em

escrever histórias curtas, na qual o autor poderia desinibir sua criatividade, já

que estaria desenvolvendo quadrinhos para um público mais adulto. The Spirit

foi escolhido como uma figura coringa, um detetive que poderia se adaptar a

qualquer situação e aventura. (HEINTJES, online). Um dos conceitos pré-

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estabelecidos, logo no início de sua criação, seria o fato do protagonista operar

por fora da lei, gerando, assim atrito com Dolan, o comissário de polícia e

parceiro de Spirit. (HEINTJES, online).

Porém, ao avisar seu empresário, Eisner não teve a melhor das reações.

Tanto o empresário quanto os empregadores (os jornais) esperavam por algum

tipo de abordagem mais fantasiosa, com personagens fantasiados que

lembrassem Batman e Superman, grandes sucessos da época. Foi neste

momento que Eisner fez algumas alterações na vestimenta de Spirit: a adição

da máscara e das luvas, combinadas com seu terno azul marcante.

Fortemente inspirado pelo movimento noir, The Spirit não abrangia arcos

de história sobre a salvação direta do planeta ou servia como propaganda

antinazista e bélica norte-americana, mas sim se envolvendo em pequenas

narrativas a cerca da fragilidade humana, enfrentando, muitas vezes, os

perigos presentes no cotidiano de um cidadão comum: furtos, extorsão,

sequestros e homicídios. Não existia somente uma inovação na narrativa:

As inovações introduzidas por Spirit estão em todos os aspectos. (...) O aspecto noir das histórias, os enquadramentos inspirados no cinema, o humor sutil e as técnicas narrativas refinadas garantem o grande sucesso da série (...) (CENTRO DA CULTURA JUDAICA, online)

Este aspecto cinematográfico é muito presente na obra de Eisner,

principalmente quanto ao refinamento técnico empregado em sua narrativa

gráfica. A figura a seguir (34) servirá como exemplo destes elementos:

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Figura 34 - Spirit e o comissário Dolan em uma cena de investigação. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial)

Diversos pontos deste quadro podem ser destacados. “Expressões

faciais que afetam a narrativa exigem clouse-ups. A placa da porta e o chapéu

suspenso nas linhas do vácuo da velocidade são recursos narrativos. O relógio

na parede define o lapso de tempo”. (EISNER, 1989, p. 15).

Na área do cinema, podemos separar o uso do enquadramento presente

no sexto painel, que separa e evidencia uma cena chave para a trama, através

de um close que consegue, em um só quadro, compreender o objeto do crime

e a prova que o conecta. Outro enquadramento interessante, que demonstra o

compromisso de Eisner com os detalhes, ambientação e contextualização, é a

vista para o cemitério da janela de Spirit, revelando que o mesmo se encontra

em sua base de operações ou, ainda, o quinto e sétimo quadro, no qual, com

grande sutileza, é demarcado um tempo físico estabelecido na ação entre

quadros (o relógio pendurado na parede). Do ponto de vista estilístico, a arte

final desempenha um papel fundamental, com utilização de luz e sombra em

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alto contraste, criando figuras obscuras e pontos focais característicos que,

somados a falta de diálogo, criam e ajudam a estabelecer um clima de

suspense a investigação. Por final, há ainda a própria linguagem dos

quadrinhos, com as já destacadas linhas de movimentação do terceiro quadro,

guiando a visão do leitor rumo à interpretação de que a personagem (Spirit)

passara em grande velocidade.

Estas técnicas todas levaram Eisner a conceber um novo conceito em

quadrinhos. Era a vez da “arte sequencial”.

3.2 Arte Sequencial

A HQ é uma narrativa essencialmente recreativa com um aspecto informativo secundário e mais ou menos involuntário, com base nessa finalidade lúdica, orientada para o humor, os americanos batizaram o gênero inteiro de comics e funnies. (ANSELMO, 1975, p. 34).

Eisner foi, sem dúvida, um dos mais habilidosos e criativos artistas do

meio. Sua contribuição para os quadrinhos é sem precedentes. O merecido

destaque se dá, principalmente, pela criação da “arte sequencial”, que

aproximou a linguagem dos quadrinhos com o cinema de uma forma muito

mais abrangente, sendo copiada e repassada até os dias de hoje. Tanto o traço

de Eisner, como sua narrativa, eram diferenciados, da expressão de suas

personagens e a construção das cenas de ação até o uso do enquadramento e

da iluminação. (...) como forma de ampliar a duração de uma cena, aumentando a dramaticidade dela, Eisner abusa de um método bastante utilizado pelos cineastas: a fixação por diversos quadros (ou quadrinhos) de uma mesma imagem em vários momentos temporais seguidos, onde o desespero, terror, espera, angústia e outros adjetivos similares são reconhecidos e cada vez mais categorizados. (FEDEL, online)

O tempo é uma dimensão essencial nas histórias em quadrinhos: “O

tempo se combina com o espaço e som em uma composição de

interdependência, na qual as concepções, ações, movimentos e

deslocamentos possuem um significado e são medidos através da percepção

que temos da relação entre eles”. (EISNER, 1989, p. 23). Eisner explica que “é

essa dimensão da compreensão humana que nos torna capazes de reconhecer

e de compartilhar emocionalmente a surpresa, o humor, o terror e todo o

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âmbito da experiência humana”. (EISNER, 1996, p. 26). A compreensão de

tempo na arte sequencial é o que torna a “ilusão” do movimento algo

satisfatório, pois, se existe uma linguagem bem estabelecida e demarcada na

ação entre os quadros (como a presença de sons e falas), a leitura

estabelecida flui de forma coerente, amarrando à narrativa e a figura. Para

McCloud, o tempo nos quadrinhos não pode ser visto apenas como a

representação de um único momento representado a cada painel. “A fotografia

condicionou a gente demais a perceber imagens únicas como momentos

únicos” (McCLOUD, 1993, p. 97). A introdução do som exige que haja o

movimento (já que uma fala inteira não pode se encontrar em momento único),

forçando, assim, a mente do leitor a completar a ação, que terá sua resolução

no próximo quadro.

McCloud vê a representação do enquadramento como um “indicador

geral de que o tempo ou espaço está sendo dividido”, embora a “duração do

tempo e as dimensões do espaço” sejam definidas mais pelo “conteúdo do

quadro do que pelo quadro em si”. (McCLOUD, 1993, p. 99). Esta leitura

essencial para compreensão da arte sequencial aparece, tanto em Eisner como

em McCloud, sob o título de “timing”. Enquanto o tempo pode ser considerado

uma ação simples, cujo resultado é imediato, o timing seria a prolongação

deste tempo, realçando o resultado pelo bem da emoção. “Para expressar o

timing (...), a disposição dos quadrinhos passa a ser elemento fundamental”

(EISNER, 1989, p. 23).

Figura 35 - A pausa feita na cena, utilizando a extensão do quadro como demarcador de tempo, fornece a narrativa uma linguagem direcionada e uma quebra na leitura, construindo um uma situação de respiro que demarca a movimentação da passagem e, até mesmo, conexão emotiva. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial)

Deste modo, a relação entre tempo e espaço torna-se relevante para adentrar em uma arte híbrida como os quadrinhos que, além fundir imagem e escrita, se utilizam de vários elementos a fim de fazer um

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amálgama que interaja criativamente com a percepção do leitor. As estruturas que mais caracterizam os quadrinhos, segundo Moacy Cirne, os quadros e os balões de fala, evidenciam bem esse amálgama (CIRNE, 1970, p.16). (AMORIM, 2011, apud, CIRNE, 1970)

Para Will Eisner, as histórias em quadrinhos não eram somente os

comics americanos, mas sim uma forma de expressão que necessitava do

conhecimento prévio tanto do emissor quanto do receptor, envolvendo a

compreensão de elementos como: anatomia, perspectiva, gramática e sintaxe,

que, quando montadas em harmonia com o fim de exercer uma função verbal e

visual, acabam por apurar a percepção estética do leitor, assim como a

recreação intelectual (CAMPOS, 2007). Logo, quadrinhos não poderiam ser

tratados, erroneamente, como uma simples distração e forma de

entretenimento barato, mas sim como uma forma de arte devidamente

respeitada.

Para Scott McCloud, a arte pode ser encontrada em qualquer forma de

“atividade humana que não se desenvolve a partir dos dois instintos da nossa

espécie: sobrevivência e reprodução”. (McCLOUD, 1993, p. 164). Além da

abrangência conceitual de McCloud, o quadrinho pode e deve ser considerado

arte, também, pelo ponto de vista das “belas artes”. Não é raro identificar os

quadrinhos como uma representação da arte menor, sofrendo o mal de toda

nova mídia, sendo julgado por padrões antigos. (McCLOUD, 1993).

Para criar uma história é preciso aperfeiçoar a observação dos ambientes. Alguns elementos básicos de fenômenos e imagens devem ser compreendidos, como a figura humana, perspectiva, luz e sombra, objetos, mecanismos, gravidade, composição, balões e os quadros. Para desenhar a figura humana é preciso entendê-la e saber suas limitações e movimentos (...). O corpo humano, a estilização de suas formas, a codificação de sua gesticulação emocional e suas posturas expressivas, tudo isso está armazenado e registrado na memória, formando um repertório de gestos. (CAMPOS, 2007, p. 27 e 28)

Seguido o texto de Campos (2007), compreende-se que, por trás de

toda história em quadrinho, existe um alto grau de técnica empregada,

abrangendo estudos diversos, como anatomia, composição de imagem,

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literatura, luz e sombra, etc. Todos estes elementos observados são

carregados por simbolismos, que, quando juntos, desempenham a função

principal de comunicar, criando uma ponte entre as experiências comuns entre

artista e leitor. Para McCloud, os quadrinhos podem ser considerados como o

fruto da “colisão” entre a semelhança (a figura) e o significado (a palavra).

Ambas as partes, quando conectadas graficamente, principalmente através da

abordagem dos quadrinhos, geram um compartilhamento de experiências

comuns.

Não se sabe muito sobre o local ou o modo de armazenamento no cérebro dos incontáveis fragmentos de lembrança que se tornam compreensíveis quando dispostos em certa combinação. Mas é óbvio que, quando uma imagem é habilidosamente retratada, ao ser apresentada ela consegue deflagrar uma lembrança que evoca o reconhecimento e os efeitos colaterais sobre a emoção. Trata-se, obviamente, da memória comum da experiência. (EISNER, 1996, p. 100)

Talvez um dos maiores e mais importantes elementos da arte sequencial

de Will Eisner seja a presença deste reconhecimento da memória comum. “Se

a habilidade com que um ator finge uma emoção é, em grande parte, o critério

para avaliar seu desempenho, da mesma forma se avalia o trabalho do

desenhista, que fará o mesmo com seu personagem, porém, com tinta e

papel”. (CAMPOS, 2007). As personagens de Eisner não somente existiam,

mas se expressavam, comunicando através de sua postura corporal, gestos e

expressões faciais, transmitindo diversas impressões e emoções ao leitor, sem

que fosse necessário recorrer à utilização de cenários e detalhes

desnecessários. (CAMPOS, 2007 – Figuras 36, 37 e 38).

A ausência de diálogo do intuito de reforçar a ação serve para demonstrar a viabilidade de imagens extraídas da experiência comum (EISNER, 1989, p. 18)

Deste modo, não é exagero pensar em Eisner como um diretor, sendo

diretamente responsável pelas atuações necessárias na trama (e na

“construção” dos atores), assim como na direção de fotografia e na cenografia

de suas cenas, sendo, ao mesmo tempo, roteirista, câmera e editor. Na

realidade, boa parte das realizações contemporâneas dos quadrinhos exige o

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emprego de técnicas e ramificações de trabalho parecidas com o cinema, com

cada parte responsável pelo encaminhamento de uma sequência. Quadrinhos

e cinema, afinal estão conectados. Porém, há produções que se destacam,

possibilitando uma autonomia criativa, na qual não é necessária o referencial

cinematográfico. (figura 39).

Figura 36 - Passagem presente na graphic novel New York (1986), que, em uma história curta, estabelece uma narrativa fluente e constante, se utilizando somente da anatomia expressionista da personagem para se construir a ação, sem recorrer ao texto. (Fonte: http://pichaus.com)

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Figura 37 - Neste quadrinho do cartunista norueguês Jason, podemos perceber a poética da narrativa (a fuga da morte) sem que seja necessário a presença do texto, bastando o bom uso das imagens e da experiência comum para que seja preenchida esta lacuna da narrativa. (Fonte: Quadrinhos e arte sequencial)

Figura 38 - o uso das expressões faciais como “guia” dos sentimentos, emoções e acontecimentos da breve narrativa, exemplificando o bom uso da anatomia expressiva de Will Eisner. (Fonte: Desvendando os quadrinhos)

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Figura 39 - Cena do mangá Travel (2005), de Yuichi Yokoyama. O traço estilizado e expressionista do artista conta com o próprio meio do quadrinho para estabelecer sua ligação com autor, usando a separação dos quadros como um elemento de comunicação iconográfica. Além disso, os traços que demarcam o efeito de movimentação são característicos da linguagem única dos quadrinhos. (Fonte: http://www.artnet.com)

Segundo Eisner, a “arte sequencial é o ato de urdir um tecido”. (EISNER,

1989, p. 127). Nos quadrinhos, o responsável pela imaginação do leitor é o

próprio autor, já que “uma vez desenhada, a imagem torna-se um enunciado

preciso que permite pouca ou nenhuma interpretação adicional”. (EISNER,

1989, p. 127). De fato, este é mais um ponto no qual a arte sequencial se

equipara mais ainda com o cinema. De todas as comparações

cinematográficas estudadas, talvez o fato de que os quadrinhos entreguem

uma história “pronta” para o leitor seja a maior delas. Tanto quadrinho, como

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cinema (e, obviamente, animação) trabalham com a concepção de que o leitor

deve aceitar aquela informação conforme lhe foi passada, não permitindo

devaneios pessoais a cerca da obra. Claro que existem ressalvas, pois,

embora o cinema e a arte sequencial se aproximem em entregar esta realidade

“pronta” a seu espectador, os dois estão completamente alheios as

interpretações de seu público. Porém, somente o quadrinho permite que a

criatividade do leitor interaja em absoluto com a obra. Sim, o cinema pode ser

sensorial e altamente interpretativo, mas, de uma maneira mais comum, a

única “suspensão de descrença” que cometemos está na assimilação da

realidade da tela como a realidade plausível. Já na arte sequencial, devemos

ler aquelas imagens como um todo, aprendendo que, entre o espaço vazio que

preenche a ação de um quadro para o outro, existiu um movimento, uma

resolução nos fatos. McCloud chama isto de “conclusão” (1993, p. 63). A leitura

dos quadrinhos sempre foi a partir da conclusão: nós concluímos que, por a+b,

c se torna plausível.

A grande graça da arte sequencial de Eisner, que guia nosso olhar se

espelhando em muitos momentos do cinema, utilizando da anatomia

expressiva, enquadramento e timing, é o refinamento que nos leva até o

caminho da conclusão entre a+b.

McCloud defende que a conclusão ocorre também no cinema,

“continuamente, vinte e quatro vezes por segundo – enquanto nossas mentes

transformar uma série de imagens paradas numa história em movimento

contínuo”. (McCLOUD, 1993, p. 65). A conclusão que tiramos durante a leitura

dos quadrinhos é, basicamente, a mesma do cinema. Enquanto o projetor nos

obriga a construir essa movimentação, nos mostrando a ação contínua, 24

vezes por segundo, o quadrinho permite que o leitor direcione esta leitura, em

um ritmo próprio.

Seguindo o raciocínio de McCLOUD, existem seis tipos de conclusões

que tiramos no espaço entrequadros:

1 – A transição quadro-a-quadro, na qual a ação é seguida a cada

detalhe do movimento. (No cinema, compara-se a projeção habitual, sem

cortes).

2 – Transição ação-para-ação, com “um único tema em progressão

distinta”. (McCLOUD, 1993, p. 70). (Em se tratando de cinema, esta transição

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se aproximaria mais de uma montagem clipada, rápida. A sequência

permanece, mas o ritmo acelera).

3 – Transição tema-para-tema. Neste tipo de transição, exige-se do leitor

certo “grau de envolvimento” (McCLOUD, 1993, p. 71), já que a ação ocorre

dentro da mesma cena ou idéia, mas em situações e locais diferente. (A

linguagem que mais se aproxima com o cinema seria a edição de campo,

contracampo e plano geral ou ainda de plano detalhe, todos com a intenção de

ligar e contextualizar os temas submetidos).

4 – A transição cena-a-cena exige um certo “raciocínio dedutivo”, já que

as imagens “nos levam através de distâncias significativas de tempo e espaço”.

(McCLOUD, 1993, p. 71). (Esta transição é facilmente encontrada no cinema,

representando o momento em que o filme muda o tópico estabelecido, partindo

para outros acontecimentos. Basicamente, a transição entre cenas; assuntos, a

elipse cinematográfica).

5 – Um modelo mais abrangente de transição fica por conta do aspecto-

para-aspecto, que é responsável por fornecer um olhar atípico na narrativa,

passando informações da atmosfera, do ambiente e, de certo modo, dos

sentimentos envolvidos na cena. (Transição muito utilizada em obras

independentes, de arte e que prezam pela sutileza, principalmente produções

orientais. Transição que cadencia o ritmo da projeção).

6 – Por último, a transição non-sequitur, que não estabelece nenhuma

“sequência lógica entre os quadros”. (McCLOUD, 1993, p. 72). (Esta transição

é muito presente em obras experimentais, como projetos de vídeo-arte,

produções surrealistas e obras nonsense).

4 LEGADO DE EISNER

Todos estes conceitos estabelecidos por Will Eisner nos guiaram até o

quadrinho contemporâneo. Eisner foi o responsável por desenvolver e evoluir

os quadrinhos adultos, em um período no qual estas narrativas gráficas eram

essencialmente de entretenimento infantil e juvenil. A construção de

personagens mais humanas, capazes de sofrer com a derrota e de se ferir em

situações de ricos ofereceu novas oportunidades de abordagem, que não

dependiam mais da divina e perfeita figura do super-herói.

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Quando Will Eisner começou a trabalhar em The Spirit em 1940, ele já estava em terreno inexplorado. Seu trabalho (...) era enraizado em um estilo realista, já mostrando sua inventividade e inovação da qual ele seria reconhecido. Eisner recebeu a tarefa de criar um herói, em uma indústria (...) onde era a única coisa valorizada. Não desejando isso, ele simplesmente desenhou uma máscara e luvas no detetive em que estava trabalhando, nomeado Denny Colt (...). Embora ostensivamente um super-herói, Denny Colt era mesmo um detetive (...), e, como era atípico de super heróis, essencialmente humano. (THE COMICS CUBE, online)

Após o primeiro grande passo ter sido dado por Eisner, foram

necessárias duas décadas para que esta abordagem mais realista tenha sido

absorvida (de uma forma mais sutil) para dentro do mercado e do pensamento

das grandes editoras, realizando adaptações neste universo essencialmente

fantástico dos heróis. Temas como a desigualdade social (X-men, 1963), o

consumo de drogas (Arqueiro Verde, 1970) e até mesmo a identificação entre o

leitor e o herói (Homem-Aranha, 1968) começaram a se tornar algo recorrente

nos quadrinhos de sucesso.

Porém, não foi somente o impacto diante deste novo público adulto que

tornou Eisner uma influência para as gerações seguintes, mas também a

própria forma de se realizar quadrinhos, entregando obras que, mesmo

tratando de temas realistas, apresentavam um traço cartunizado, incorporando

o texto a sua arte em uma situação harmônica, agindo em conjunto com suas

anatomias expressivas e o ousado uso de enquadramentos.

Todos estes nuances se destacam quando incorporados a estética noir

de sua primeira criação, que serviu como base para importantes artistas, que

cresceram com este novo tipo de quadrinho. São eles Frank Miller, Díaz

Canales e Juanjo Guarnido.

4.1 Frank Miller

Assim como Will Eisner, Frank Miller também soube utilizar sua infância

simples como um atributo positivo para sua arte. Ambos os autores sempre

colocaram suas adversidades como um instrumento de superação e foco

criativo, possibilitando desenvolturas narrativas únicas baseadas no convívio

mais urbano e próximo da realidade pobre americana, transformando detalhes

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reais de um início difícil em uma linguagem crível que transmitia sensações

únicas para os leitores dos quadrinhos adultos.

Frank Miller, filho de imigrantes irlandeses, nasceu em uma pequena

cidade rural de Maryland, chamada Olney, em 1957, mas logo se mudou com

seus pais para Montepelier, em Vermont, onde cresceu e passou a maior parte

de sua juventude. Seu pai era eletricista e carpinteiro, enquanto sua mãe

trabalhava como enfermeira no hospital local. Vermont era (e continua sendo)

um dos estados mais rurais dos Estados Unidos, local esse que não esbanjava

oportunidades para um jovem criativo interessado em romances noir e

aventuras pulps, mas com uma baixa renda familiar, que o impedia de almejar

o que desejava.

Miller, a princípio, não desejava ser um desenhista/roteirista de

quadrinhos de super-heróis propriamente ditos, mas sim transformar seus

heróis pessoais em personagens de quadrinhos. Tais como a personagem

criada pelo autor e roteirista noir Mickey Spillane, o detetive Mike Hammer,

protagonista de uma série de livros, rádio-novelas, filmes e adaptações

diversas. Com o intuito de realizas suas próprias adaptações noir para os

quadrinhos, Miller tomou a grande decisão de sua vida: deixar sua cidade natal

rural e partir para a cidade grande. Foi em 1975, como apenas 18 anos, que

Miller chegou em Nova York.

Jovem e morando sozinho, seu começou foi difícil na cidade. Enquanto

conhecia o ambiente mais urbano e depressivo de Nova York, (do qual ficaria

enraizado em seu estilo), Miller procura emprego em pequenas editoras. Seu

primeiro trabalho na cidade foi pela editora Gold Key Comics, na qual

desenhou a história “Royal Fest”, na edição #84 de 1978.

A partir deste ponto, o talento de Miller começou a ser reconhecido.

Ainda em 1978, Miller conheceu o diretor de arte Vinnie Colleta, da DC Comics,

que reconheceu seu talento e arranjou um pequeno trabalho como desenhista

em uma história em quadrinhos chamada “Deliver me from D-Day”, publicada

na revista Weird War Tales. Durante todo o período de 1978, Frank Miller

trabalhou exclusivamente nesta publicação, que tinha como tema a Segunda

Guerra Mundial, em histórias curtas que variavam entre duas e seis páginas.

O reconhecimento do talento de Miller veio no ano seguinte, quando

começou sua parceria com a editora Marvel Comics. Logo em sua estréia,

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Miller teve a tarefa de trabalhar com a personagem mais rentável e conhecida

da editora, o Homem-Aranha, na revista Peter Parker, the Spectacular Spider-

Man. A frente das edições 27 e 28 desta publicação, Miller trabalhou pela

primeira vez com uma das personagens que mais marcariam sua carreira: O

Demolidor. Nesta época, Demolidor era somente um figurante na história, já

que suas revistas solo vendiam pouco e a personagem não era querida pelo

público. Porém, Miller gostou e se interessou pela personagem, tanto que

solicitou a seu editor chefe, Jim Shooter, se ele podia trabalhar no título regular

da série. Jim aceitou a proposta, encarregando Miller ao cargo de desenhista.

Quando cheguei pela primeira vez em Nova York, eu apareci como um monte de quadrinhos e amostras de caras vestindo sobretudo e carros antigos e coisas do tipo. E todos (editores de quadrinhos) diziam “onde estão os caras de collant?”. Então tive que aprender a fazer isso. (…) quando Gene Colan deixou Demolidor, eu percebi que o segredo seria realizar histórias em quadrinhos de crime, mas com super-heróis nela. (WIKIPEDIA, THE FREE ENCYCLOPEDIA, online, apud SPIRIT GUIDE: FRANK MILLER ADAPTS WILL EISNER'S CULT COMIC, online)

Com um início muito parecido com o de Will Eisner, podemos dizer,

inclusive, que Demolidor foi para Frank Miller o que The Spirit foi para Eisner. O

debute de Miller ocorreu na edição Daredevil #158 (maio de 1979), com roteiro

de Roger McKenzie. Embora ainda preso ao tradicionalismo das histórias em

quadrinho de heróis, o Demolidor de Frank Miller já apresentava alguns traços

da estética noir que o autor tanto almejava (falarei mais sobre no capítulo V),

gerando uma enorme resposta positiva da crítica.

Seguindo os conselhos do artista Neal Adams (amigo de Will Eisner e

um dos mais influentes representantes da arte sequencial), Miller decidiu se

aproximar mais da realidade nova yorkina, desenhando, por horas, os telhados

das casas, prédios e edifícios da cidade, com o fim de conseguir atingir uma

estética verossímil e autêntica para o principal ambiente de suas narrativas. O

sucesso a frente de Demolidor foi tão grande que logo se tornou o desenhista e

roteirista oficial de suas histórias, desempenhando uma das mais importantes

contribuições entre personagem e autor, com uma longa e aclamada parceria,

que durou de 1979 até 1983.

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Em 1982, Frank Miller trabalhou em conjunto com o roteirista Chris

Claremont, produzindo a mini-série Wolverine, contando com o integrante

homônimo dos X-men como estrela principal. Com uma arte altamente

influenciada pelo estilo rápido dos quadrinhos japoneses, esta mini-série

ajudou a expandir os horizontes de Wolverine como personagem - base para o

grande sucesso do qual o mesmo é reconhecido atualmente -, garantindo a

Miller um posto de estrela na indústria dos quadrinhos.

A influência dos quadrinhos japoneses se mostrou ainda mais presente

em sua primeira série própria, de 1983, chamado Ronin. Esta narrativa híbrida

de cyber-punk em estilo oriental e quadrinhos europeus (como, por exemplo,

Moebius), com história centrada em um samurai que viaja ao futuro,

apresentou alguns relances da arte sequencial fluída, rápida e de ação, com

momentos cinematográficos. Esta publicação rendeu a Miller um convite feito

DC, que ofereceu a oportunidade de readaptar três grandes ícones da editora,

que seriam escolhidos a gosto do autor: Batman, Mulher Maravilha ou Super-

Homem. Mas, ao invés de aceitar a proposta, Miller decidiu, antes, voltar a

Marvel e realizar a edição #219 do Demolidor, toda baseada no filme Por um

punhado de dólares (Sergio Leone, 1973).

Porém, foi em 1986 que a carreira de Miller colidiu diretamente com a

personagem responsável pelo seu derradeiro estrelato, o marcando para

sempre como um dos nomes essenciais dos quadrinhos. Embora o seu

primeiro contato a frente de uma revista de Batman foi em um curto conto de

natal, chamado "Wanted: Santa Claus - Dead or Alive" (1980), roteirizado por

Denny O’Neil, foi somente com a obra “Batman, o cavaleiro das trevas” (1986)

que Frank Miller realmente abordou a personagem com sua visão própria, tanto

de estética quanto narrativa.

Embora O Cavaleiro das Trevas tenha causado muito impacto pela brilhante história, o desenho caricatural até então inédito de Miller e pelo subtexto político e social, a grande contribuição dessa mini-série para as Histórias em Quadrinhos foram as novas fórmulas narrativas que Miller apresentou naquelas página. (SOUZA, online).

A história trata da volta de Batman de sua aposentadoria, causada pela

morte de seu segundo Robin, sendo obrigado a enfrentar um futuro distópico,

de caos e violência. Este retorno de Batman também é simbólico, já que a

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imagem do mesmo tinha caído com o passar dos anos, muito pelo livro “A

sedução do inocente” (Fredric Wertham, 1954), que apresentava a visão da

dupla Batman e Robin como um casal gay, um forte estigma que perdurou por

décadas, contribuído pela colorida série de TV da década de 1960.

Portando, mais uma vez, coube a Miller reerguer um importante

personagem dos quadrinhos, apresentando sua versão de um futuro Batman

de 55 anos, cansado, violento e sarcástico, confinado em um perturbante

universo de um futuro caótico, de clima tenso, sombrio e pesado. Sua

contribuição, assim como a de Eisner na época de The Spirit, foi a forte

influência passada para toda a indústria: logo após esta importante publicação,

ocorreu uma profusão de anti-heróis sombrios e violentos.

A seqüência do assassinato dos pais de Bruce Wayne até hoje é copiada e recopiada nas HQs do Batman, tamanha sua força. Tudo em “câmera lenta”, com em “O Encouraçado Potemkin”. Mas se os quadrinhos já são estáticos, como podemos sabê-lo? Simplesmente está lá! Miller criou a câmera lenta em quadrinhos! (SOUZA, online).

Entre outros trabalhos de destaque deste produtivo período de Miller,

estão: Demolidor: amor e guerra (Frank Miller, 1986), Daredevil and Born Again

(Frank Miller; David Mazzuchelli, 1986), Elektra: Assassina (Frank Miller, 1986)

Batman – Ano um (Frank Miller; David Mazzuchelli, 1987).

Com este glorioso passado, Frank Miller pôde, finalmente, se dedicar a

alguns projetos mais pessoais. Já consagrado pela indústria, Miller decidiu

investir completamente na narrativa noir. Embora seu estilo fosse

completamente impregnado por uma narrativa digna dos filmes policiais da

década de 1940 (principalmente quanto a onipresente narração em off e

constante aparição de mulheres fatais), nenhuma destas obras era realmente

parte do gênero conhecido como noir. Sua primeira realização no gênero

ocorreu em 1990, quando, em parceria com Geof Darrow (um dos mais

brilhantes e talentosos artistas dos quadrinhos) realizou um misto cyber punk

de Blade Runner, com uma dose tripla do humor negro caótico de Batman, o

cavaleiro das trevas, aliado com a ultraviolência e ação desenfreada dos filmes

de ação de John Woo. Este era Hardboiled, o primeiro experimento narrativo

de Miller no universo neo-noir concreto dos quadrinhos.

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Miller se estabeleceu como um autor de quadrinhos adultos, sempre

carregados de sátira política, ironia e violência. A recepção de Hardboiled

rendeu a Miller importantes trabalhos, como Give me liberty (Frank Miller; Dave

Gibbons, 1990) e a roteirização dos filmes Robocop 2 (1990) e Robocop 3

(1993), que, infelizmente, não renderam um produto final bom, havendo uma

má recepção da crítica especializada (embora pouco do material original de

Miller tenha sido utilizado na produção dos filmes).

Sin City, o clássico neo-noir dos quadrinhos, foi realizado em 1991,

oferecendo uma homenagem estética aos clássicos dos 1940 e 1950. Feita

completamente em preto e branco – embora com a presença de uma outra cor

durante a edição, gerando contraste a imagem -, Sin City tomou grande parte

da carreira profissional do artista, resultando, mais uma vez, na revitalização do

gênero nos quadrinhos, como já havia sido feito anteriormente por Will Eisner,

em 1940, com The Spirit. Outros trabalhos de destaque ficam por conta da

história de origem do Demolidor, em Demolidor, o homem sem medo (Frank

Miller, 1995), a reencenação da batalhas das Termópilas na novela gráfica 300

(Frank Miller, 1998) e a continuação de uma de suas principais obras, com O

cavaleiro das trevas 2 (2001), muito mal recepcionado pela crítica.

Por fim, embora seus trabalhos recentes estejam em uma vertiginosa

queda de qualidade (entre eles, a mal sucedida adaptação cinematográfica da

obra The Spirit, de Will Eisner, da qual o mesmo foi diretor, em 2008), Miller já

está com o seu nome guardado na história da arte sequencial, principalmente

pela sua forte contribuição na relação entre quadrinhos e cinema,

principalmente quanto ao gênero noir.

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Figura 40

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Figura 41

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Figura 42

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Figura 43

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Figura 44

Figura 40 à figura 44: A consagrada estética em câmera lenta criada por Frank Miller, utilizada na HQ Batman, o cavaleiro das trevas (1986), ressalta a importância do cinema na realização artística e narrativa do autor, além de um brilhante refinamento do conceito de “timing”, proposto por Will Eisner e Scott McCloud. A análise desta sequência é repleta de detalhes: que vão da diagramação dos quadros até a disposição do texto. Arte sequencial em seu melhor estado, com uma imagem que não deve só ser lida, mas também “assistida”. (Fonte: http://goodcomics.comicbookresources.com)

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4.2 Canales e Guarnido A dupla de artistas premiada é responsável pela obra de vanguarda,

Blacksad, uma graphic novel (ou novela gráfica, termo utilizado por Eisner na

definição de obras adultas, de tratamento diferenciado e histórias fechadas)

iniciado em 2005 e que conta, até o momento, com quatro edições publicadas

entre 2000 e 2010.

Nascido em Madri, na Espanha, em 1972, Juan Díaz Canales é o

roteirista e co-criador da série de noir Blacksad. Embora Canales tenha

mostrado interesse em quadrinhos desde cedo, sua principal vocação é a

animação, na qual o mesmo atua como diretor. Envolvido na área desde os 18

anos, Canales fundou, em 1996, em conjunto com outros três artistas, a

empresa Tridente Animation, realizando, em parceria com companhias norte-

americanas e européias, roteiros para quadrinhos e animações, além de dirigir

séries animadas para TV e filmes de animação;

Quando conheceu Guarnido, Canales já tinha em mente a base para a

sua história: uma narrativa antropomórfica em torno de um detetive particular

chamado Blacksad. Após contato feito com diversas editoras, a dupla fechou

com a francesa Dargaud, em novembro de 2000.

A primeira obra em conjunto da dupla foi Quelque part entre les ombres

(2000), o volume 1 da série Blacksad. Com uma recepção calorosa da crítica e

do público, a graphic novel foi agraciada com o prêmio Prix de la Découverte

do festival internacional de quadrinhos de Sierre, além do prêmio “Avenir”, no

festival de Lys-lez-Lannoy. Com o volume 2 publicado (Arctic Nation, 2003),

Guarnido e Canales já garantiam o seu espaço no nome dos quadrinhos

contemporâneos, recebendo, entre outras premiações, o Angoulême Audience

Award, no Festival Prize for Artwork, em 2004.

Esta reação não foi diferente com o penúltimo volume, chamado Âme

Rouge (Red Soul, 2005). Mais uma vez, a dupla levou uma vitória para casa: o

prêmio Angoulême, por melhor série. Publicado em 2010, o último (até então)

volume da série se chama The hell, the silence. Centrada no mundo do jazz de

New Orleans, The hell, the silence é mais uma obra prima da arte sequencial

contemporânea.

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Muito deste sucesso de deve a arte de Juanjo Guarnido. Nascido em

Granada, na Espanha, em 1967, Guarnido é formado na Escola de Arte de

Granada. Entre seus primeiros trabalhos estão uma série de fanzines

produzidos em conjunto com a Marvel Comics.

Infelizmente, devido ao pouco espaço dos quadrinhos no mercado

espanhol, Guarnido foi obrigado a procurar outras fontes de renda. Em 1990 o

artista deixou sua cidade natal, Granada, e mudou-se para Madrid, onde

trabalhou em séries de TV por três anos, período este que acabou rendendo a

amizade e futura parceria entre Díaz Canales.

Muito do estilo de Guarnido vem do seu envolvimento com o Walt

Disney Studios - principalmente pela facilidade em criar personagens

antropomórficos extremamente expressivos -, onde trabalhou como animador

entre 1993 e 2000, no estúdio da Disney de Montreuil, na França. Entre seus

trabalhos de destaque está a desenho para o cinema Tarzan, de 1999.

Figura 45 - A arte de Juanjo Guarnido: uso de low-key profile na iluminação, figuras antropomórficas e estética da década de 1950, aliada ao forte clima noir. (Fonte: http://olhosacesos.blogspot.com/)

5 Film noir

Segundo o francês Marc Vernet, em seu livro “Film noir on the edge of

doom”, o gênero noir vem sendo “regularmente resgatado e renovado por

sucessivas gerações”. Embora Marc Vernet faça parte de um seleto grupo de

acadêmicos céticos, que apontam o fim noir como um gênero inexistente, é

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possível utilizar o trecho acima, retirado de um de seus livros, como um dos

fatores que mais contribuíram para o crescimento e criação, enfim, do gênero

aqui estudado.

O noir é um objeto de culto para diversos cinéfilos, estudiosos e artistas

que, seduzidos pela elegância e estética do cinema de suspense policial dos

anos 40, acabam por sempre reintroduzir o fascínio por estes contos para a

contemporaneidade, apresentado para as novas gerações modos diferentes de

se tratar o já clássico esquema exemplificado por Fernando Mascarello (2006,

p. 178), em seu livro História do Cinema Mundial, com “policiais dos anos 1940,

de luz expressionista, narrados em off (sic), com uma loira fatal e um detetive

durão ou um trouxa, cheios de violência e erotismo etc.” Tal reintrodução se

vale, também, para dois dos principais e mais importantes autores de

quadrinhos de todos os tempos, Will Eisner e Frank Miller, que contribuíram

diretamente para a divulgação do gênero que tanto apreciavam, principalmente

com as obras The Spirit (Will Eisner, 1940) e Sin City (Frank Miller, 1991),

abrindo, cada um a seu modo, um novo leque de possibilidades intermidiáticas

para o gênero.

5.2 O cinema obscuro

Antes de adentrarmos em algumas especificações desta mixagem de

mídias (quadrinhos e cinema), é importante compreender do que se trata o

filme noir. Assim como foi colocado no início deste capítulo, existe uma ala de

estudiosos e críticos que não entram em consenso sobre a criação do termo

aqui estudado, referenciando o noir como “o gênero que nunca existiu”. Film

Noir é, na realidade, uma expressão francesa que faz alusão a literaruta hard-

boiled, e que foi utilizada para identificar algumas das obras hollywoodianas

que chegaram à França após o fim da Segunda Guerra Mundial. Privados por

quase cinco anos do cinema norte-americano, os franceses perceberam uma

mudança estética admirável, tanto na narrativa como na fotografia destes

novos filmes. Ao perceber as semelhanças recorrentes em películas como

Relíquia Macabra (John Huston, 941), Pacto de Sangue (Billy Wilder, 1944) e

Um retrato de mulher (Fritz Lang, 1944), o crítico e cineasta Nino Frank, em

1946, utilizou pela primeira vez o termo film noir, que pode ser interpretado

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como filme negro. De fato, a representação crítica e fatalista da sociedade

americana obscureceram a outrora estabilidade clássica de Hollywood, do qual

o mercado já havia se acostumado.

Foi somente em 1955, na França, que o termo noir começou a ganhar a

forma que conhecemos hoje. Escrito pelos críticos Raymonde Borde e Etienne

Chaumeton, o livro Panorama du film noir américain trazia uma interessante

exemplificação de sete elementos essenciais deste novo gênero do cinema.

Seriam eles:

- Um crime;

- A perspectiva dos criminosos, não da polícia;

- Uma visão Invertida das tradicionais fontes de autoridade, tal como a

corrupção policial;

- Alianças e lealdades instáveis;

- A femme fatale (fêmea fatal): a mulher que causa a ruína e/ou morte de

um bom homem;

- Violência bruta;

- Motivação e mudanças em complôs bizarros.

Contudo, a dificuldade de se estabelecer noir como um gênero é muito

mais complicado do que aparenta. Pelo menos do ponto de vista técnico.

Afinal, assim como colocado por Emerson Paubel, em seu artigo Film Noir,

“quantos elementos são necessários para se fazer um noir? (...) um noir pode

ter apenas um único elemento, enquanto que outro filme que possua três não

seja considerado um noir” (PAUBEL, online).

Por princípio, como destacado em História do Cinema Mundial, “noir

como gênero nunca existiu: sua criação foi retrospectiva (...) trata-se de uma

“categoria crítica”” (Neale 2000, p. 153). A realidade é que o termo só foi

utilizado nos Estados Unidos pela primeira vez no fim de 1960, sendo

referenciado primariamente como “Black cinema”. Não demorou muito para que

o conceito de noir começasse a ser abraçado por Hollywood, preferencialmente

após a crítica norte-americana receber de bom grado o elogio europeu,

aceitando o termo cunhado originalmente, mesmo que indo de encontro com

problemas teóricos a respeito do que era, de fato, o cinema noir, estabelecido

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através de uma categoria francesa. Afinal, havia uma falta de precisão

categórica e acadêmica. Contudo, com a crescente popularização deste novo

termo cinematográfico, o conceito noir rapidamente ultrapassou qualquer

barreira estabelecida pela academia, tornando-se absolutamente popular entre

os cinéfilos da época.

Deste modo, com um terreno mais propício para a exploração, grandes

estúdios de Hollywood começaram a produzir obras de jovens cineastas que,

em busca de algo novo, revisitavam antigos clássicos na era noir, de 1941 a

1958. Jovens como Martin Scorsese e seu realista e sombrio estudo da

sociedade americana, em Taxi Driver (1976), ou a repaginação do período

clássico noir feito por Roman Polanski, com Chinatown (1974). Esse período se

estende até hoje, com formas diferentes de narrar o já conhecido, desde a

passagem cyber punk de Ridley Scott (Blade Runner, 1982) ou a criação de

uma linguagem mais pop, feita por Quentin Tarantino (Cães de Aluguel, 1992).

Assim sendo, encontramos um paradoxo: se o noir não existiu, como

exemplificar o aparecimento de um neo-noir? (MASCARELLO, 2006). Antes de

partirmos para uma definição de gênero mais refinada, tanto estética quanto

narrativa, é interessante notar que o noir não evoluiu somente no cinema, mas

que essa evolução de gênero também esteve presente em outra mídia. Neste

caso, o quadrinho. É possível decifrar The Spirit (1940) como o marco estético

e narrativo da arte sequencial noir clássica, Sin City (1991) como a

reestruturação do noir na contemporaneidade, abrindo as portas para o neo-

noir impresso e, finalmente, de um modo que estendeu ainda mais a relação

narrativa gráfica, cinema e estética noir, temos Blacksad (2005), de Juan Dias

Canales e Juanjo Guarnido, que garante com maestria um hibridismo de mídia,

juntando o melhor que o cinema de gênero e os quadrinhos têm a oferecer

(voltarei a falar mais desta obra nos próximos capítulos).

5.3 Decifrando o noir: Estética

Embora muitos ainda considerem o noir não como um gênero de

cinema, mas sim como um estilo visual, o noir está profundamente enraizado

em momentos mais “negros” da história americana e mundial.

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Para o roteirista e cineasta Paul Schrader, o film noir existe somente em

um período específico – de 1941, iniciado pelo filme, O Falcão Maltês (dir.

Humphrey Bogart), até 1958, quando o gênero se encerra com A Marca da

Maldade (dir. Orson Welles). Ele argumenta que o noir é literalmente preto.

Cenas noturnas, iluminação de alto contraste e sombras fazem parte do estilo

noir. Além disso, o filme noir trabalha com tempo não-linear, disjuntivo.

(PAUBEL,online).

Muitos atribuem o fim do cinema noir a invenção da tv em cores, já que,

ao se colorir uma película, o gênero acaba por perder uma de suas mais

valiosas preciosidades estéticas: a iluminação preto e branca.

Quando necessário um estudo estético sobre o cinema noir, antes é

preciso se estender um pouco mais quanto à iluminação do mesmo. Para Alain

Silver e James Ursini (2004), em seu livro Film Noir, “a luz e a sombra

competem entre si tanto em ambientes interiores quanto em exteriores. Luzes

duras e marcantes mapeiam os contornos, dando ênfase a uma parte do rosto

e criam uma tensão darmática (...)”. Esta leitura, proporcionada pela utilização

da iluminação, normalmente cai muito bem para suspense. Ao escurecer uma

imagem, principalmente a ponto de deixar somente seu protagonista visível,

tudo se torna parte do perigo, criando a tensão perfeita em meio ao jogo de luz.

Para se compreender melhor esta estética de imersão e, até mesmo, de

sufocamento, devemos nos lembrar de dois termos, apresentados por Mattos

(2001): low-key e hard ligth (além de outros termos técnicos introduzidos por

Mattos, em seu livro O outro lado da noite – filme noir, que serão apresentados

futuramente).

Primeiramente, uma parte conscistente da realização do filme noir está

no modo conhecido como low-key, notoriamente utilizado pelo Expressionimos

Alemão (figura 46).

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Figura 46 - Exemplo de utilização da iluminação low-key, realçando detalhes de uma forma sutil. (Fonte: Metropolis).

Assim como apontado por Campos (2009), havia uma iluminação bem

especial, bastante insólita, que estava atrelada à maquiagem, que

transformava o rosto dos atores em máscaras, cujo tratamento repleto de

exageros podia levar à caricatura e ao grotesco. O cinema expressionista

alemão é rebento de um momento entre guerras extremamente conturbado na

Alemanha, chegando a ser descrito como extremo, decadente e com doses

cavalares de violência, uma apologia ao nazismo que viria logo depois

(Campos, 2009). Embora com forte temática fantástica, personagens sombrios,

de cunho psicanalítico e com uma atmosfera opressora, o expressionismo

acabou por influenciar, esteticamente, o film noir. Este fato se deu,

principalmente, pelos motivos da guerra, que forçaram que uma grande massa

cultural ligada ao cinema alemão imigrasse em direção aos Estados Unidos da

América, entre eles os diretores Fritz Lang, Billy Wilder e Robert Siodmak, que

contribuíram na construção da estética noir, baseada na bagagem técnica que

desenvolveram em seu país de origem.

Entre estes novos meios de se realizar cinema, estava à utilização da

iluminação de baixo perfil, a low-key, que retirava o brilho excessivo da

película, trazendo a imagem um sutil ar barroco, cabendo muito bem a

profusão de sombras, empregada em diversas obras.

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Tal definição cuidadosa sobre a iluminação empregada se deve ao forte

conteúdo estilístico do noir, sempre carregado de informações visuais e

estilísticas importantes, fruto de um dos seus principais criadores, o

Expressionismo Alemão:

"A sombra é a metáfora do inconsciente, do lado obscuro da mente, do material reprimido. Ela é atributo daqueles personagens proscritos pela lei, pela natureza e pelo Bem, obrigados a viver na clandestinidade, nas trevas, num sono intermitente" (FEDEL, online, apud NAZÁRIO, 1983, p. 25)

Embora considerado por alguns como uma prova consistente de que o

noir não seja, em si, um gênero de cinema, mas somente um modelo visual, é

impossível retratá-lo sem destacar seus pontos estilísticos mais importantes.

Entre todos estes merecidos destaques, que relacionam o noir e o

expressionismo alemão, acaba por faltar um de extrema importância para o

movimento vanguardista, tanto no cinema como em sua origem na arte: “a

distorção emotiva da forma” (MASCARELLO, 2006, p.59). O signo

expressionista ressalta as experiências emocionais do artista, convidando o

espectador a “experimentar um contato direto com o sentimento gerador da

obra” (CARDINAL, 1988, p.34). Tal simbolismo artístico se fez presente

também em sua versão cinematográfica, principalmente na obra O gabinete do

dr. Caligari (Robert Wiene, 1920), que contava com uma cenografia produzida

em painéis pintados ao estilo expressionista, evocando a fisionomia de um

mundo tortuoso e imprevisível, além do impacto visual gerado pelos

protagonistas, que atuavam com uma pesada maquiagem deformadora,

criando, assim, uma atmosfera que traduzia os conflitos emocionais

(MASCARELLO, 2006, p. 67). Por fim, esta abstração simbólica criada pelo

expressionismo, embora não se encontre tão aparente no noir, está mais do

que presente nos quadrinhos, que se utilizam das liberdade artística como um

modo de se enriquecer a narrativa:

(...) traduzir simbolicamente pelas linhas, formas e volumes, a mentalidade dos personagens, seu estado de alma, sua intencionalidade, onde a decoração se torna a tradução plástica de seu drama. (EISNER, 1985)

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Seguindo a continuidade, além da iluminação e da ambientação

noturna,o expressionismo alemão ofereceu algumas outras referências

importantes ao gênero noir, tal qual o emprego de lentes grande-angulares,

que deformam a perspectiva, causando um clima de estranheza, levando a

distorção da personagem ou do ambiente projetado. Entre outros movimentos

característicos do cinema noir, está o corte do big close-up para o plano geral

em plongeé e ângulo holandês, que é costumeiramente utilizado em um

contexto de estranheza e deslocamento. É importante observar que os

movimentos de câmera estão ligados a idéia soturna que envolve o noir,

sempre direcionando um caminho que se relaciona com o suspense, em um

clima paranóico e claustrofóbico. Além da forma estilística bem definida, há

ainda uma série de motivos iconográficos, tal qual exemplificados por

Mascarello (2006): espelhos, janelas, escadas e relógios, além da ambientação

urbana noturna, com ruas desertas e escuras.

Figura 47 - Empreitada noir de Fritz Lang (1944), demonstrando a utilização da iluminação barroca, fruto da bagagem de sua origem no expressionismo alemão. (Fonte: Quando Desceram as Trevas).

Ainda quanto à iluminação, existem outros padrões adotados pelo estilo

noir. O bom uso da luz dura (hard light) é capaz de criar um clima de tensão

muito característico, ora pela estruturação da narrativa, escondendo fatos

sigilosos a trama pelo bem do suspense, ora como realce estilístico, definindo

contrastes e demarcando espaços no ambiente. (Figuras 48 e 49).

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Figura 48 - A utilização do hard ligth cria uma sombra bem definida na parede. (Fonte: O Falcão Maltês).

Figura 49 - Neste misto de técnicas, podemos observar a o uso da highlighting (luz de destaque) no rosto da personagem, criando uma imagem atmosférica de claro e escuro. (Fonte: A Força do Mal).

Esta demarcação de tons e ambientes pode ser chamada de

chiaroscuro - termo italiano que significa “claro-escuro” -, muito utilizado para a

“tonalização” da atmosfera noir e expressionista.

O clima de suspense e terror, herdados da iluminação expressionista

alemã, cabe ao alto contraste da contraluz, capaz de gerar silhuetas e

semblantes de estruturas, objetos e personagens, priorizando o suspense e

apreensão pelo que é desconhecido (figura 50).

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O posicionamento das luzes na fotografia noir também tem suas características, como o uso de “ariações no posicionamento da luz chave (key light), atenuante (fill light) ou contra-luz (back light) para produzir esquemas inusitados de luz e sombras adequados à criação do clima de paranóia, delírio e ameaça (...) (MATTOS, 2001, p. 46).

Figura 50 - O uso da top lighting (luz superior) resulta na imagem sombria e misteriosa da silhueta, que pode, posteriormente, recair sobre a trama como uma força maligna (Fonte: O Grande Golpe).

Além da iluminação, há de se destacar a utilização dos movimentos de

câmera e de ângulos, marcas registradas do fenômeno noir:

Para Mattos (2001), os ângulos exagerados, primeiríssimos planos, câmera oblíqua e linhas horizontais cruzadas com verticais aumentam a impressão de clausura psicológica e física. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 50, apud MATTOS, 2001).

A experimentação de ângulos se deve a criação de uma estética de

clausura opressora. Entre os maiores destaques, temos a utilização do plongeé

(plano superior, que demonstra inferioridade ou trabalha através da revelação,

abrindo-se um plano de visão maior para o ambiente), contra-plogeé (plano que

gera a impressão de superioridade, espanto ou apreensão, dependendo de seu

contexto e da forma utilizada) e ângulo holandês (plano inclinado, que

transmite deslocamento, estranheza, desconforto e abalo psicológico).

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Por outro lado, o cinema noir se revela sutil. A vasta utilização de planos

sequência e travelings demonstra um compromisso em se prender o

espectador através da expectativa do acontecimento. A chave do suspense: o

emprego de uma linguagem contínua e familiar a realidade, em demérito ao

uso exacerbado do corte cinematográfico.

No cinema noir a utilização de travellings, gruas e panorâmicas eram bastante comuns. Aliado a um plano de longa duração, essa qualidade de fluidez nos movimentos intensifica o suspense de forma sutil. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 73, apud SILVER; URSINI, 2004)

Outra referência estética essencial está no uso dos close-ups. Uma

destas técnicas vinha na contramão do que era recorrente na época.

Pela justificativa do “glamour”, as atrizes principais de Hollywood

tendiam a ter uma iluminação difusa para os momentos de close-up, gerando

uma imagem suave e limpa, realçando a beleza de suas faces, quase

angelicais. Porém, na estética noir esta iluminação ocorria de forma contrária,

com close-ups de luz não difusa (luzes duras, capazes de produzir sombras

bem definidas e realçar detalhes – Figura 51).

Figura 51 - O realce da imagem gerada pelo close-up de luz não difusa. (Fonte: O Anjo Diabólico).

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Podemos encontrar ainda a utilização do foco profundo (deep focus),

que mantém, através da distância focal e da iluminação, dois objetos distintos

em um mesmo enfoque. A profundidade de campo é utilizada pelo noir,

principalmente, em ambientes onde ocorre mais de uma ação, sendo

preservados vários elementos desta mesma cena, mas em camadas diferentes

de informação.

5.4 Narrativa

Quando a expressão “cinema noir” vem à mente, não é raro de logo

ligarmos ao tema do crime, estipulado como elemento central da trama. Para

muitos autores, esta afeição ao crime deve-se ao resultado da crise econômica

norte-americana, impulsionado pelo mal-estar provocado pelo pós-guerra,

exercendo, assim, um papel simbólico que sintetiza a problematização social

do período (MASCARELLO, 2006).

Se nos mantivermos ainda mais nesta possível interpretação simbólica e

metafórica, o noir serviu como uma aparente denúncia da corrupção ética que

se manifesta nas relações entre indivíduos, permeadas por violência e

hipocrisia, introduzindo o crime da obra noir como uma representação fatalista

da desestruturação do indivíduo (tanto social como psicologicamente), causada

por um poder maior que o próprio. Ao seguirmos por esta lógica, o crime cria

um espaço simbólico que serve como uma manifestação metafórica do clima

de pós-guerra.

Porém, do ponto de vista estritamente narrativo, o noir acaba por

demonstrar uma ligação muito mais contundente com a literatura policial, que,

assim como o film noir, partilha de diversos elementos narrativos de destaque.

Tais quais como:

- Complexidade da trama

- Caracterização ambivalente das personagens

- Utilização do flashback como ferramenta narrativa

- Narração em over feita pela própria personagem

- Totalidade de protagonistas masculinos

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Muitas destas características são adaptações diretas da literatura

hardboiled, berço dos principais ideais do conceito noir.

Literatura criminal norte-americana por excelência, o hardboiled (pode

ser traduzido como algo de “caráter duro”) começou a ser publicado “após a

Primeira Guerra Mundial, traçando um retrato realista da população urbana dos

Estados Unidos” (JEHA, 2011, p. 3):

Os escritores de ficção hard-boiled criaram o investigador particular e o detetive americano heroico, que tanto bate quanto apanha, se abstém de relações pessoais e forma o seu próprio código moral, que, em geral, é mais severo e inflexível do que o do resto da população. Sam Spade e Continental Op, de Hammett, e Philip Marlowe, de Chandler, seguem a própria cabeça, mesmo quando ela vai contra a lei. Uma busca inabalável pela verdade e a expulsão do indesejável são os princípios que guiam o detetive. O código moral costuma implicar sofrimento físico, dificuldades e sacrifício para ele, ao isolá-lo de outras pessoas, mas ele adere às suas regras ferrenhamente. (JEHA, 2011, p. 3)

Como características essenciais, o gênero hardboiled apresenta sempre

a cidade como um centro maligno e perverso, do qual a personagem principal

(comumente um investigador policial ou detetive particular) analisa e observa,

enfrentando este mal social somente com um rígido código de moral próprio.

A atmosfera hardboiled é cínica e repleta de desilusão, se apoiando na

selva urbana como o caos de desordem a ser enfrentado.

Ao contrário da história de detetive tradicional, que deposita uma enorme confiança nos mecanismos da justiça, na ficção hard-boiled essa confiança desaparece quando esses mecanismos da lei e da ordem mostram que não merecem a confiança pública. (JEHA, 2011, p. 3)

Este estranhamento da justiça acaba gerando a figura do detetive

marginal, que opera, muitas vezes, avesso a lei, buscando subterfúgios para

estabelecer a justiça pelos seus próprios meios pessoais e códigos de ética,

moral e honra. Embora esta figura se mostre como uma salvação neste meio

corrupto, a protagonista, antes de tudo, é um anti-herói, que acaba por não

encontrar o sucesso em suas ações, gerando uma forte sensação de

impotência diante deste universo, sofrendo com suas próprias escolhas.

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Dois grandes nomes que se destacam nesta literatura policial,

amplamente adaptada pelo cinema, são os autores Dashiel Hammett e

Raymond Chandler.

5.5 Decifrando o noir: Estereótipos

Dentre os vários padrões definidos do gênero noir, provavelmente a

figura da femme fatale* seja o mais recorrente e importante, muitas vezes

influenciando diretamente na trama. Inclusive, o papel que a mulher

desempenha, em diversos casos, retrata uma questão de grande sexualidade e

posicionamento social. Seguindo trecho transcrito por Mascarello (2006), o noir

se caracteriza por: (...) um tratamento distintivo do desejo sexual e dos relacionamentos sexuais, um conjunto distintivo de personagens-tipos masculinos e femininos e um repertório distintivo de traços, ideais, aspectos e formas de comportamento masculinos e femininos (NEALE, 2000, p. 160)

Mascarello ainda justifica a tendência abordada pelo cinema da época

(40 e 50) através dos motivos do pós-guerra, que reposicionaram a mulher

tanto no patamar social quanto no profissional, criando uma “cultura da

desconfiança”, encabeçada por uma grande rivalidade entre o masculino e o

feminino. Para Richard Dyer (1978), o que se existia era uma tensão sexual

manifesta por “uma ansiedade com relação à existência e definição da

masculinidade e da normalidade”, que acabou por culminar na construção da

“problemática” noir, tanto pelo papel do homem (ambiguidade moral, solidão,

sujeito a falhas) e o da mulher (papel sexual atenuante, sensualidade, forte

personalidade e, corriqueiramente, causadora do mal definitivo para a

protagonista masculino).

No gênero noir, é possível encontrarmos dois tipos de papéis femininos

marcantes: a mulher fatal e a redentora. Enquanto a femme fatale metaforiza a

independência feminina do período pós-guerra, a personalidade “redentora” da

mulher, como descrita por Deborah Thomas, simboliza a ameaça e tentação da

“domesticação do herói”.

Se a mulher fatal representada pode ser interpretada como uma

metáfora a libertação feminina da imposição masculina, além da luta por

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direitos iguais, o homem noir é anti-herói Hollywoodiano, se saindo muito mais

como um espelho do cidadão comum, sujeito a falhas, do que a visão narcisista

e idealizadora comum atribuída, por exemplo, ao justiceiro de um western*.

Segundo Mascarello (2006), o anti-herói noir é constituído por uma inversão do

ego ideal, sendo representado, muitas vezes, por uma ótica derrotista,

egocêntrica e isolada, buscando uma re-identificação com o masculino. Ou,

como colocado por Florence Jacobowitz, em trecho retirado do livro História do

Cinema Mundial (Mascarello, 2006), o noir é “um gênero onde a masculinidade

compulsória é apresentada como um pesadelo” (1992, p. 153).

É interessante informar que, embora o gênero noir seja fortemente

marcado pela presença de um protagonista masculino, alguns filmes

considerados representantes clássicos do noir, como Sonha, meu amor

(Douglas Sirk, 1948), Correntes ocultas (Vincente Minneli, 1946) e Fogueira da

Paixão (Curtis Bernhardt, 1947), são centrados em personagens femininos.

Porém, é exatamente neste protagonista masculino que o filme noir se

centra: uma personagem que sofre da falta de atributos e características de

herói típico, mas que, mesmo assim, a audiência é capaz de se identificar.

(FILM NOIR STUDIES, online).

Esta personagem é comumente confusa e conflituosa, capaz de

transmitir sensações de ambiguidade moral, defeitos, excentricidades e, por

volta, até mesmo falta de coragem, honestidade e honra. Contudo, não

raramente este anti-herói é capaz de gerar uma forte simpatia com o público,

indiferente do que fato de que se trate de um investigador durão ou de um

detetive particular vulnerável e fracote.

Uma característica marcante e puramente estilística está nas

vestimentas das narrativas noir, puro fruto de seu templo, mas que mesmo

assim se guardaram no imaginário popular. Os traços mais reconhecidos são: o

chapéu italiano fedora, ternos e gravatas (surrados ou bem cortados) envoltos

por capotes e sobretudos de tons escuros e os longos e sensuais vestidos das

femme fatales. Além disso, é recorrente a constante presença de cigarros e

charutos em cena (e da cigarrilha, para mulheres), além da necessária

utilização do escapismo através do álcool, em bares escuros e esfumaçados,

onde gangsteres, mafiosos, policiais corruptos, mulheres de vida fácil e

detetives particulares se encontram e se esbarram.

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Por final, um dos mais famosos e reconhecidos estereótipos do noir é a

utilização do “voice over”, a familiar narração em off, normalmente servindo

pelo propósito de esclarecer detalhes obscuros da trama. Narrados sempre

pelo protagonista, este recurso de linguagem, que transmite os pensamentos

da personagem para o espectador, demonstrando algumas características

marcantes, opiniões e traços de sua personalidade, tem como finalidade impor

ritmo próprio a narrativa, revelando momentos únicos e licenças poéticas de

dados momentos através do ponto de vista do anti-herói, que nos esclarece e

traduz o que se passa.

5.6 Consolidando o fenômeno noir

Embora o noir ainda seja, para alguns, considerado uma “sucessão de

clichês e definições precárias” (MASCARELLO, 2006, p. 183), principalmente

pelo seu modo de invenção francês (é bom lembrar que, em momento algum,

entre a década de 40 e 50, o cinema de gênero feito foi conscientemente

produzido seguindo uma cartilha noir, sendo somente referenciada tal

expressão anos depois dos mesmos serem realizados), é inegável que exista

uma forte influência de toda esta “atmosfera”, como define Paul Schrader, nas

obras contemporâneas. Obviamente que, ao procurarmos por atributos

específicos marcantes em todas as obras consideras cânones do gênero,

estaremos fadados à incoerência (MASCARELLO, 2006, p. 183, apud NEALE,

2000, p. 153-154) e, por isso mesmo, o mais correto é atribuí-lo como um

“fenômeno”. (MASCARELLO, 2006, p. 184, apud KRUTNIK, 1991, p. 24).

(...) o noir não [e gênero, nem tom, nem estilo. É um fenômeno, e acima de tudo social (espectatorial). A maior prova de que existe? A fascinação que produz, o desejo que desperta: a “mística noir”. (MASCARELLO, 2006, p. 185)

Nota-se que, por causa de diversas divergências fundamentais

definidoras de gênero, o noir se mostre este caos definicional, acolhendo uma

multiplicidade de gêneros cada vez mais crescente. Talvez seja exatamente

por esta característica tão abrangente e difundida em nosso imaginário que o

noir se sobressaia tão bem em quase todos os modos em que é adaptado. É

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um gênero criado a partir da identificação de uma série de características

cinematográficas e narrativas tão marcantes e bem construídas que, na

realidade, acaba por ganhar vida por conta própria, influenciando toda uma

geração de escritores, artistas e diretores. Um real fenômeno. Vivenciamos

uma constante evolução do noir, e até mesmo do neo-noir, que,

despreocupado em se definir, avança por todas as mídias e contribuí, graças

ao carinho cultivado por grande parte dos realizadores destas novas obras e

homenagens, tanto cinematográficas e gráficas como digitais (diversos games,

como L.A. Noire (2011) e Deus Ex: Human Revolution (2011) demonstram uma

presença constante do fenômeno, inclusive nos “novos” meios), na evolução e

amadurecimento do quadrinho moderno, elevado à arte sequencial e

entretenimento adulto pelas graphic novels.

6 a conexÃo do cinema na arte sequencial

Antes do noir, o próprio cinema deve ser referenciado em conjunto ao

quadrinho. Assim como a fotografia representa uma tomada individual de um

acontecimento, como um momento único no tempo captado pela lente da

câmera, o cinema faz parte de uma sequência de diversos momentos únicos

que, quando postos em movimento, representam uma passagem de tempo que

mais se aproxima com o que estamos acostumados a vislumbrar. Acontece o

mesmo com a arte sequencial dos quadrinhos. Se pegarmos somente um

momento figurativo individual, esta imagem se aproximará muitos mais da

fotografia, já que será somente uma figura congelada em seu próprio momento.

Mas, uma vez colocada esta mesma imagem em sequência, com adição de,

por exemplo, outros dois quadros, temos um vislumbre de uma narrativa

gráfica, de uma história em quadrinhos.

Cada quadro de um filme é projetado no mesmo espaço – a tela -, enquanto, nos quadrinhos, eles ocupam espaços diferentes. O Espaço é pros quadrinhos o que o tempo é pro filme. (McCLOUD, 1993, p. 7)

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Figura 52 - Exemplo de storyboard para uma peça publicitária de tevê, com o filme resultante abaixo. Fonte: Quadrinhos e arte sequencial.

McCloud continua sua comparação ao destacar que, quando não

projetado, “o filme é somente um gibi muito, muito lento” (McCLOUD, 1993, p.

8). De fato, a maior diferença entre o cinema e os quadrinhos se encontra no

modo como lemos suas imagens: estáticas, observando a página de uma

história como um todo, mas que deve ser dividido em “cenas” para que haja

compreensão; ou em movimento contínuo, havendo, diante de nossos olhos, a

divisão de cenas já pronta pela edição cinematográfica, transmitida pelo

instrumento de projeção da obra (um projetor ou a tela de um monitor).

Segundo Bordwell (2005), o cinema é uma “imagem pictórica, já que a tela,

como um quadro, apresenta ao espectador um plano vertical emoldurado”.

(BORDWELL, 2005, p. 20)

É exatamente nessa projeção de imagens que os quadrinhos

compartilham a estética do cinema. Indiferente da ausência ou presença da

ilusão do movimento, a linguagem cinematográfica (iluminação e

enquadramentos) pode ser visivelmente traduzida para os quadrinhos,

principalmente na obra “The Spirit”, de Will Eisner.

Em geral, os quadrinhos utilizavam-se sempre do plano médio, The Spirit foi pioneiro no uso de diversos planos, inclusive o plongé, o contra-plongé e o plano detalhe, que aumentam a tensão da história. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 70 e 71)

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Depois do retorno de Eisner da Segunda Guerra Mundial (onde o

artista, inclusive, criou e ilustrou livros tutoriais no formato de quadrinhos),

houve uma perceptível melhora técnica em seu traço, refletida na composição

de cena de seus trabalhos. Impulsionado pela estética noir da época (1945),

Eisner começou a utilizar a iluminação como um “tonalizador” da atmosfera,

que era capaz de transmitir sensações e efeitos emocionais para o leitor. “Esta

iluminação lembrava o film noir ou o cinema Expressionista. Eram utilizadas

técnicas de iluminação claro-escuro e sombra e luz”. (FERREIRA, ET AL, 2007,

p. 72)

A montagem das cenas nos quadrinhos também está relacionada com o

cinema. Assim como boa parte da crítica de 1910 e 1920 tentava provar que o

cinema era uma arte distinta, que nada ficava devendo ao teatro - partilhando

de técnicas de montagens teatrais, assim como encenações advindas do teatro

-, foi a montagem fílmica que gerou a identidade cinematográfica, permitindo a

liberdade de jogar o espectador “de um lugar ao outro, saltar de um tempo a

outro, fazer comparações metafóricas ou simplesmente imprimir ritmo, jogando

com a duração de planos”. (BORDWELL, 2005, p. 29). E é esta exata

montagem de cenas que ocorre na arte sequencial.

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Figura 53 - A ausência de tons de cinza na obra Sin City, de Frank Miller, cria uma estética de dualidade extrema e permanente, elevando a estética chiaroscuro a outros níveis, criando uma identidade própria, de estética exagerada e saturada. (Fonte: Sin City – A Dama Fatal).

Um ponto interessante da análise dos quadrinhos relacionada ao

cinema, é que ocorre uma forte aproximação do cinema mudo. Para que estas

montagens de cena ocorram de forma satisfatória, tanto na mise-en-scène

(tudo aquilo que ocorre em cena e sua relação com o que se vê) quanto na

mise-em-shot (o processo de “tradução” da mise-en-scène em sequência,

envolvendo todos os processos técnicos da produção cinematográfica),

depende das “associações simbólicas” (figura 54):

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(...) dentro da própria imagem, no desenvolvimento da narrativa, em cada gesto dos personagens, em cada fala do diálogo, nos movimentos de câmera que relacionam objetos a objetos e personagens a objetos. (BORDWELL, 2005, p. 32).

Figura 54 - Exemplo de montagem cena-a-cena, que apresenta uma sequência de imagens distantes em espaço e assunto, mas presentes em um mesmo universo e que necessitam do conhecimento do leitor para que seja contextualizada. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).

Figura 55 - A mise-en-scène carregada de informações da arte de Geof Darrow. (Fonte: Hard Boiled).

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É essa associação imagética que permite a leitura dos quadrinhos,

assim como a do cinema. A mise-en-scène é essencial para a compreensão

completa dos acontecimentos, já que ela é responsável pela “posição da

câmera, o ângulo selecionado, a duração da tomada, o gesto do ator (...), a

história que está sendo contada e a maneira de contá-la” (BORDWELL, 2005,

p. 35, apud TRUFFAUT, 1977). Se o artista responsável pela arte sequencial

compreende todas estas etapas fílmicas, uma vez adaptado este conceito para

os quadrinhos, a chance de se criar uma obra híbrida de sucesso entre estas

duas mídias é garantida. Estes conceitos amalgamados são muito mais visíveis

sobre a ótica de Andrew Sarris (1973):

A leitura dos quadrinhos deve ocorrer como a leitura do cinema, com “o ênfase no espetáculo em si e não na relação dialética entre planos e imagens separadas”. (BORDWELL, 2005, p. 35, apud SARRIS, 1973).

Em tons de finalizar, o que se compreende é que, de fato, a mise-en-

scène é um fator presente em ambas as mídias, representando o emprego do

sentido técnico, cenário, iluminação, figurino, maquiagem e atuação dentro dos

quadros. A principal diferença na produção destas etapas é que, enquanto o

cinema divide os afazeres deste processo, muitas vezes o artista dos

quadrinhos é diretamente responsável por todas estas etapas, utilizando este

“plano vertical emoldurado” (BORDWELL, 2005) como a projeção de seu filme

estático.

Porém, como apontado por Bordwell, existe uma diferença que separa a

mise-en-scène do cinema da mise-en-scène dos quadrinhos. A falta de um

plano sequência na arte sequencial acaba se afastando do conceito principal

da

mise-en-scèn, principalmente naquela presente na estética noir, que se define

em “planos alongados, nos quais os corpos se moviam como graça pelo

quadro (...), em planos sequência com grande profundidade de campo ”

(BORDWELL, 2005, p. 38).

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A realidade é que a montagem dos quadrinhos segue uma linguagem

muito mais “clipada, com um recurso aproximado da montagem fílmica em

tomadas menores”, apresentando, em muitos casos, uma “composição em

profundidade” (gradação de ênfase, com uma imagem em vários tons

dramáticos, que reverbera com a ação principal da cena). (BORDWELL, 2005,

p. 40). Porém, em alguns casos é possível se representar esta sutiliza do

cinema, como na movimentação lenta da personagem Coringa, em um

processo de decantação de suas reações (figura 56):

Figura 56 - A sempre constante movimentação do Coringa, realçando sua frieza em um plano aproximado que, a cada quadro, como em uma ação de zoom in, nos deixa mais intimidados com a sua quieta presença. (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas).

Uma “regra” do cinema muito utilizada por Frank Miller é a aproximação

da câmera em direção a personagem em cenas que se desenrolam, atenuando

a dramaticidade do acontecimento (BORDWELL, 2005) como no exemplo da

figura 55.

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A “encenação cinematográfica” também está presente no

enquadramento das cenas da arte sequencial, já que, muitas vezes, os

quadrinhos seguem a “lógica de projeção perspectiva das lentes da câmera”.

(BORDWELL, 2005, p. 42). Ou seja, alguns ângulos de visão do cinema só são

possíveis através da lente de uma câmera, conseguindo pontos de vista e

distorções próprias (figura 57). Esta é uma evolução iniciada após o cinema

mudo, que, anteriormente, mostrava somente a perspectiva de uma “visão

monocular da câmera” (BORDWELL, 2005, p. 42), como um teatro.

Figura 57 - Visão em plongée, oferecendo uma panorâmica do ambiente em que o detetive Blacksad se encontra. Este tipo de ângulo introduz uma maior contextualização da personalidade da personagem, explorando detalhes de um local pessoal. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).

Esta multiplicidade de visões, ângulos e enquadramentos, acaba

relegando a segundo plano a coreografia de cena, criando-se um método de

edição e movimentos de câmera que dão andamento a diálogos parados e

conversações em atividade. (BORDWELL, 2005, p. 42).

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A utilização do “campo – contracampo” é recorrente tanto nos

quadrinhos como no cinema. Este tipo de montagem normalmente aparece no

pretexto de nos informar as reações de figuras distintas diante uma ação (um

diálogo, por exemplo), mudando a perspectiva da cena para uma melhor

informação. Normalmente se utiliza o ângulo na altura dos ombros e planos

únicos. Segundo Bordwell (2005), “ao mudar de posição dentro de um espaço,

ocorre um novo plano para nos informar” (figura 58).

Figura 58 - a ação do plano e contra plano ocorre nos dois últimos quadros da cena. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).

Todos estes movimentos realçam a relação recíproca estabelecida na arte sequencial e nos cinemas, impulsionada por Will Eisner, em 1940:

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Devido a esse surgimento contemporâneo dos quadrinhos e do cinema, as características de cada um se entrelaçam. Entre elas, podemos citar: iluminação, plônges e contraplônges, enquadramento, profundidade de campo, elipses, entre outras. Existem muitas dúvidas sobre o que teria surgido primeiro em qual das linguagens. Mas é fato que todas existem nas duas narrativas. Francis Lacassin diz que procedimentos "cinematográficos" como plongê e profundidade de campo já existiam em quadrinhos de 1889, portanto anterior ao cinema. Já Umberto Eco afirma que "no plano do enquadramento os comics sempre estiveram na dependência da linguagem cinematográfica." De qualquer forma, o cinema determinou ideologicamente o emprego dos recursos expressionais nos quadrinhos. Mas o que pode se observar é que as duas linguagens se influenciaram reciprocamente, graças à contemporaneidade de suas criações. (PARDINHO, online).

Tal reciprocidade ocorre no próprio espaço físicos dos quadros da arte

sequencial (como já abordado, por exemplo, no uso do timing), contribuindo

diretamente na leitura da cena e como se deve lê-la, diagramando os quadros tal

qual uma montagem fílmica, com ritmo e imersão (ou claustrofobia).

Tais quadros também são responsáveis pela definição de dimensão que a história receberá. Eles devem obedecer as páginas, mas possuem liberdade dimensional, podendo mudar de tamanho naturalmente, respeitando as preferências e atendendo ao objetivo que o autor está tentando atingir. Um plano que necessite de profundidade de campo, por exemplo, será reconhecido mais facilmente pelo leitor se o autor o desenhar em um quadro que lhe ofereça um maior espaço ou utilizar até uma página inteira. Já para representar um plano detalhe, o tamanho do quadro pode ser menor. No cinema, estas diferenças são conseguidas através do enquadramento da câmera, já que as dimensões são obrigadas a obedecer a tela. (PADRINHO, online)

6.1 A origem expressionista de Batman

Em 1938 a DC Comics (na época conhecida como The National) lançou,

com grande sucesso, a hq fantástica Superman, na edição histórica Action

Comics #1. O sucesso foi tremendo, preenchendo uma “necessidade” do

público da época, com um personagem perfeito, com força e velocidades muito

acima do homem comum e que se mostrava pronto para defender os ideias

americanos, em um momento que a Grande Depressão já começava a ser

superada pela nação. Porém, um acontecimento se destacou em 1939,

quando, em sua publicação mais antiga, a Detective Comics, foi revelada pela

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primeira vez a personagem Batman, do ilustrador Bob Kane e do roteirista Bill

Finger. Pela época de sua criação, Bat-Man (como era referenciado) sofreu de

uma importante influência do Expressionismo Alemão e da arte gótica.

Segundo Fedel: Dois dos personagens de comic books criados nessa época, The Spirit (1940) e The Batman (1939), figuraram como casos expressivos desse movimento nos EUA, não com a postura política, social ou até mesmo psicológica, provocadora, que os artistas alemães tiveram, mas apresentando e valorizando, apenas, os traços estéticos, veiculados por esse meio de comunicação de massa: as revistas em quadrinhos, consumidas em larga escala pela massa norte-americana nas décadas de 30, 40 e 50. (FEDEL, online)

Figura 59 - A estréia de Batman, na edição #27 da Detective Comics (1939). (Fonte: http://www.dc.wikia.com/)

Retirando, novamente, um trecho do estudo de Agnelo Fedel, o estilo da

personagem Batman, desde o princípio, prevaleceu condizente com o

expressionismo alemão:

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Para um outro personagem, The Batman, também foi escolhida como identidade a figura da sombra do morcego e como cenário de suas ações a caverna, a noite e as trevas urbanas para o combate, ainda que ilegalmente no início, ao párias da sociedade. Nas suas primeiras histórias, o que se tornaria marca registrada da personagem, outros elementos seriam ainda mais redundantes: os jogos de luz e sombra e as deformações dos antagonistas, principalmente, além dos cenários que nos remetem ao jogo estético expressionista. (FEDEL, online)

É sábio reconhecer a importância visual que Batman impôs em sua

criação, sendo considerada uma obra esteticamente baseada no

expressionismo e na cultura gótica em sua concepção, transformando-se, a

partir das décadas de 70 e 80 (principalmente pelas mãos de Frank Miller) um

ícone do neo-noir.

Em sua autobiografia, o artista Bob Kane (KANE, 1994) revela que,

enquanto concebia, acompanhado do roteirista e ilustrador Bill Finger, as

principais características da personagem Batman, a dupla se inspirou

fortemente em um filme mudo, de traços expressionistas, chamado The Bat

(Roland West, 1926 – figura 4). O filme se passa em uma antiga mansão, onde

um grupo de pessoas saqueia seus bens escondidos, enquanto um criminoso

fantasiado (o “Morcego” do título) as assassina uma por uma, desafiando a

polícia local (figura 60).

Figura 60 - Frame retirado do filme The Bat (1926), que ajudou a inspirar a criação da personagem Batman, em 1939. Nesta imagem podemos observar um comportamento típico do Expressionismo Alemão, destacando um momento chave através da utilização de um forte contraluz. (Fonte: The Bat)

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Um fato pouco conhecido é que, eu sua primeira história, Batman se

utilizava de armas. Na realidade, a pistola que assassinou seus pais,

evidenciando o caráter fatalista de sua personalidade. Tanto a característica de

sua identidade como a de um morcego, como o fato do mesmo portar armas

em sua origem, se devem ao filme de 1926. Entre outras similaridades, se

encontram o cinto de utilidades, aperfeiçoado a partir da “bolsa de utilidades”

(figura 5), carrega pelo Morcego do título, além da forma como a personagem

Batman assinou o seu primeiro comunicado com o Comissário Gordon,

inspirado na assinatura feita no filme The Bat (figuras 61 e 62).

Figura 61 - Momento em que evidencia alguns dos utensílios carregados na bolsa do criminoso. (Fonte: http://www.headinjurytheater.com).

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Figura 62 - Passagem do filme em que o criminoso avisa e desafia a polícia sobre seu próximo roubo, se identificando como “o Morcego”. (Fonte: http://www.headinjurytheater.com).

Figura 63 - Na edição #28 da Detective Comics, podemos ver o mesmo sinal utilizado no filme de 1926, mas desta vez servindo como um comunicado direto para a polícia, informando de uma ação justiceira feita pela personagem principal. Fonte: http://www.headinjurytheater.com

Porém, estas semelhanças com o universo do cinema expressionista

não terminam por aí. O maior vilão do universo de Batman, o palhaço Coringa

(figura 64), foi amplamente inspirado por uma personagem do expressionismo,

assim como afirmado por Fedel, “O Coringa (The Joker), um bandido com cara

de palhaço maldito, foi baseado em personagem de outro filme: "The Man Who

Laughs", de 1928, com Conrad Veidt, um dos maiores atores expressionistas

da época” (figura 65).

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O Coringa estreou na primavera de 1940, na primeira revista solo de

Batman, a Batman #01 (agora já devidamente acompanhado do menino

prodígio, Robin, em uma estratégia de marketing para atrair um público mais

jovem e amenizar o antigo clima sombrio). Suas características principais foram

retiradas do ator Conrad Veidt, em sua interpretação no filme “O Homem que

Ri” (Paul Leni, 1928), por sua vez inspirado no livro de Victor Hugo, de mesmo

nome. O fato de o vilão Coringa ter se inspirado em uma personagem tão

tortuosa, que teve sua face propositalmente desfigurada, marcando-a com um

macabro e imutável sorriso (acontecimento que o torna uma atração de circo),

evidencia o profundo caráter sombrio e malévolo do universo de Batman,

contando com protagonistas e antagonistas cercados por fatalidades, injúrias e

traumas diversos, dignos da narrativa cinematográfica oferecida nos anos 1920

e 1930, principalmente pelo movimento expressionista.

Figura 64

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Figura 65

Figuras 64 e 65: O sorriso marcado, a pele pálida, o cabelo para trás e olha sinistro da primeira versão do Coringa (1940), desenhada por Bob Kane, são compatíveis com os traços de Conrad Veidt, em sua interpretação no filme “O Homem que Ri” (1928). (Fonte: http://carolinaregion.com).

Além do cinema expressionista, Batman sofreu influência, também, do

filme A Máscara do Zorro (Fred Niblo, 1920), no qual Kane se baseou para a

criação de uma identidade dupla para sua personagem, e em uma invenção de

Leonardo Da Vinci, chamado de ornitóptero (figura 66), no qual Kane se

influenciou na abordagem original feita para a capa utilizada pela personagem

(figura 67).

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Figura 66 - O “ornitóptero”, de Leonardo Da Vinci. (Fonte: http://100grana.wordpress.com)

Figura 67 - Projetos originais para a capa da personagem Batman, amplamente inspirados na criação de Da Vinci. (Fonte: http://www.dc.wikia.com/)

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6.2 Identidade expressionista: Sin City e Blacksad

As referências expressionistas de Sin City (MILLER, 1993) e Blacksad

(CANALES; GUARNIDO, 2000) estão na caracterização distorcida das

personagens da Cidade do Pecado e na relação antropomórfica na

caracterização dos personagens de Blacksad em animais, servindo como um

espelho para a personalidade de cada um.

E não é só neste expressionismo mais “identificável” que se concentra

tal identidade. Na realidade, os quadrinhos utilizam a capacidade criativa de

seus autores como mote, atribuindo a liberdade total na criação, estruturando

formas caricaturais e cores de alto contraste para se criar uma figura

expressionista por direito, capaz de “expressar” os sentimentos sem que seja

necessário nenhum tipo de texto. Os quadrinhos são capazes de sintetizar os

traços do desenho em reais “traços” de personalidade.

Em O Cavaleiro das Trevas, Miller faz um desenho caricatural evocando um clima até de humor negro, para contar uma história pretensamente “séria”. Isso para criar um clima a primeira vista do leitor, sem que ele precisasse ler nada. Batman parece ter três metros de altura, o Coringa é esquelético e andrógino, nunca Robin pareceu tão criança, a Comissária Yindel tem o queixo quadrado dos conservadores, o Superman é olímpico (...). (SOUZA, online)

Podemos encontrar alguns exemplos mais diretos na obra Sin City, de

Frank Miller (1993):

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Figura 68 - O rosto marcado da personagem Marv demonstra uma profusão de linhas - que se misturam entre cicatrizes e rugas - rígidas e demarcadas, que ajudam a estabelecer sua personalidade sofrida e violenta. Marv é a caricatura da violência hard boiled: bruta e ríspida, mas por horas, justa. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)

Figura 69 - Nesta cena de desolação e desespero, Dwight se encontra perdido e ferido, sufocado pelos acontecimentos recentes de sua vida. Frank Miller realça este momento em três pontos: a face da personagem, que transmite a impressão de um grito, com seus olhos vislumbrando o nada; as linhas

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expressionistas do seu rosto são usadas com parcimônia em realces de detalhes mais facilmente reconhecíveis, como se uma forte luz demarcasse cada ruga e expressão de sua face; e os balões de narração / pensamento ocupam uma grande área do quadro e se assemelham a pontos de luz, transmitindo a idéia de urgência. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)

Figura 70 - Enquanto a grande maioria das personagens de Sin City conta com um grande leque de traços, linhas e sombras em suas formas, encontramos a figura deste tenente: uma representação mais sóbria e “fria”, que se distancia do caricatural a que estamos habituados na obra. Sua personalidade é representada em suas linhas rígidas, econômicas e quase geométricas, que indicam um temperamento correto, calmo, ríspido. A arte pode servir como a representação da nulidade desta personagem, que segue ordens sem questionar, agindo sem personalidade própria. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)

Figura 71 - Na imagem acima podemos ver um dos antagonistas de Sin City, o pedófilo e psicopata Roark Junior (That yellow bastard, 1996), conhecido

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como “o Bastardo Amarelo”. Em seu título original, “yellow bastard” pode ser interpretado como alguém sacana, nojento. Miller utilizou deste joguete do nome na forma da personagem, transformando-a em uma figura asquerosa e de aparência podre – principalmente pelo uso da cor amarela, que referencia tanto seu “apelido” como sua podridão. (Fonte: Sin City – Aquele bastardo amarelo)

Enquanto que, na obra Blacksad (CANALES; GUARNIDO, 2000), o que

temos é o expressionismo na relação antropomórfica das personagens. Não

existe, exatamente, uma “cadeia alimentar” vigente, os animais não

representam a fauna evoluída em um mundo de fábulas. Na realidade, são

personagens comuns de uma narrativa de investigação noir. O mundo que

habitam é igual ao nosso, inclusive com diferenças raciais (animais “negros”

versus animais albinos) e presença de ordens políticas iguais as nossas (o

Nazismo, por exemplo). A diferença é que estas personagens têm em sua

composição a formação da própria personalidade. Eles não significam

exatamente os animais que são, mas sim a personalidade e estereótipo que

aquela personagem representa na narrativa. É algo parecido com o que ocorre

na obra “Maus: a história de um sobrevivente” (SPIEGELMAN, 1986), na qual o

autor ilustra e narra lembranças da época do nazismo, utilizando uma

representação puramente metafórica: em seu mundo, os judeus são ratos, os

nazistas gatos e os americanos cães.

Ocorre esta mesma interpretação do mundo de Blacksad. O próprio

protagonista (o detetive Blacksad) é a metáfora do típico protagonista

hardboiled: um gato preto. Esta simples simbologia já expressa a leveza e

agilidade do felino, aliado as suas muitas vidas (o risco que o detetive sempre

corre), o jogo de sorte e azar e, ainda, a sensualidade de um felino, sempre se

envolvendo com belas mulheres.

As comparações continuam. Em outros casos, ainda temos a figura do

leal e justo comissário de polícia (um pastor alemão), o astuto e inteligente

tenente (uma raposa), o corpulento e forte delegado racista, sulista e

conservador (um urso polar), o enorme bem humorado boxeador (um gorila), o

jornalista jovem, esperto e atrevido (uma fuinha) ou o corrupto político (um

sapo velho), etc.

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Figura 72 - Alguns jovens lagartos sentados em uma escadaria, em frente ao bar. Os répteis, na narrativa de Blacksad, representam os moradores dos guetos tipicamente norte americano do fim dos anos 50. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)

Figura 73 - Nesta cena vemos dois capangas ladeando o detetive Blacksad. As suas formas animalescas significam os atributos de cada e não exatamente o animal em si. Logo, os brutamontes representam as características físicas da resistência (rinoceronte) e da força (urso). (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)

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Figura 74 - A raposa demonstra o raciocínio rápido, a astúcia e a “esperteza” propriamente dita, atributos que recaem como uma luva em uma das cenas chave do desfecho da narrativa. (Fonte Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)

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Figura 75 - O dono do bar onde Blacksad busca por informação. A figura do porco representa o estereótipo de “sujo” que recai neste tipo de personagem. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)

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Figura 76 - A camareira é representada como uma pequena rata, que se intromete em assuntos e locais alheios, personificando uma pessoa “fuxiqueira”. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)

Voltando para Frank Miller, podemos separar outro exemplo de

expressionismo - em bem típico dos quadrinhos, na realidade.

O uso de onomatopéias é recorrente e próprio da arte sequencial e é

utilizada com a intenção de expressar sons de forma gráfica, muitas vezes

mesclando texto e arte em caráter estético ou pelo bem da narrativa.

Na figura 77 podemos ver uma utilização muito bem realizada do valor

estético e do envolvimento com a narrativa que pode ser conectado ao uso das

onomatopéias. Com letras que fluem pelo quadro, crescendo rumo ao leitor

(como um som que cresce em volume na mesma proporção de uma ação que

ocorre ao longe e que se aproxima). O “volume” da onomatopéia (tamanho) está

ligado com o “volume” do som propriamente dito (altura do som), que segue a

direção do veículo, causando um efeito de velocidade e movimentação

“ensurdecedor”.

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Figura 77 - A utilização das onomatopéias de forma expressionista, guiando o leitor através da ação. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)

6.4 Reinterpretação estética Após a separação feita entre os diversos níveis do gênero noir, a estética é a

que se destaca. A utilização dos conceitos da iluminação noir está presente em

todas as obras citadas, seja pelo alto contraste do preto e branco (The Spirit, Sin

City) ou pelo leve toque barroco da iluminação low-key (Blacksad).

Podemos encontrar iluminações diversas, que servem para envolver o

leitor nas narrativas densas e sombrias, onde o uso das sombras demonstra a

dualidade das personagens e a claustrofobia opressora do universo que

partilham.

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A partir da obra de Eisner, é possível encontrar os primeiros detalhes

estéticos que relacionam os quadrinhos com o cinema noir. Percebe-se o

apreço pela qualidade técnica, principalmente quanto à utilização de diversas

características cinematográficas em suas narrativas gráficas, criando cenas

com ângulos que só são possíveis através das lentes de uma câmera. Há o

uso de contra-plongeé, aliado ao ângulo inclinado (ângulo holandês), que

transmite estranheza e desconforto, vistas de plano superior (figura 78) e

simulações de grua (figura 79), além da forte utilização da hard light (luz dura).

Figura 78 - Ângulo holandês em contra-plongeé e uso de contraluz: características do cinema adaptadas por Eisner (quadro um). Vista superior com profundidade de campo (quadro dois). (Fonte: The Spirit - Hildie).

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Figura 79 - Will Eisner representa, na figura acima, um plano de conjunto em um ângulo que só seria possível com a utilização de uma grua para a câmera (crane shot). Destaca-se ainda a presença da luz dura, que constrói sombras fortes e bem desenhadas. (Fonte: The Spirit - Hildie).

Após o recorrente uso de todas estas linhagens do cinema nos

quadrinhos, Eisner acabou sendo enormemente copiado, transmitindo sua

influência cinematográfica para outros autores e artistas. O uso do referencial do

cinema já é presente em quase toda produção da arte sequencial, sendo o maior

destaque para a montagem de cenas e para os ângulos de visão, que partilham

de diversas semelhanças com os ângulos de uma câmera de cinema. Contudo,

tanto Miller e Mazuchelli como Guarnido utilizaram da estética noir de iluminação

atmosférica como um fator diferencial em suas narrativas, como exemplificado a

seguir:

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Figura 80 - o uso da contraluz por David Mazuchelli ajuda a criar a presença iconográfica do perigo, representado nos semblantes mistérios das negras figuras: a tensão através da presença do desconhecido (Fonte: Batman – Ano um)

Figura 81 - a movimentação da personagem Batman, também em contraluz, dessa vez realça não o perigo, mas o mistério de seu semblante, que se mistura as sombras da cidade, tal qual um detetive que investiga a cena de um crime. (Fonte Batman – Ano um)

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Figura 82 - Mazuchelli cria esta iluminação atmosférica de alto contraste (high-contrast lighting), que rodeia a figura em contraluz do homem-morcego (back light) em uma interpretação do desconhecido. Desta vez, a contraluz volta a aparecer como elemento de perigo, de uma força superior que deve ser temida. Detalhe para a luz de destaque (highlighting), advinda do fogo da panela, que cria uma iluminação atenuante (fill light) na cena em contra plano. (Fonte: Batman – Ano um)

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Figura 83 - Luz chave em alto contraste em uma cena de contextualização, que serve para iniciar uma narrativa ou demarcar a mudança de um espaço físico (este tipo de tomada é chamada de establishing shot). (Fonte: Batman – Ano um)

Figura 84 - A cena da tragédia que marcou a vida de Bruce Wayne, “filmada” em plano americano e montado em um plano sequência de alto contraste. Novamente a presença da contraluz em um significado de perigo e morte. (Fonte: Batman – Ano um)

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Figura 85 - Aqui Guarnido se utiliza do plano médio, da câmera subjetiva e do plano americano, em uma montagem que demonstra o descontentamento e a tristeza da personagem. Além do que, há a presença de uma luz chave de baixa intensidade, que não provoca imagens de alto contraste, mas sim uma sutileza de cores e tons, que se juntam para criar uma iluminação atmosférica de melancolia. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras)

Figura 86 - Miller inicia está cena com um plano médio com voice over (narração em off quase sempre presente nas obras noir) (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas), utilizando a luz superior (top

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lighting) como um foco do desamparo do velho Bruce Wayne. Há, ainda, a presença da contraluz na figura dos bandidos que rodeiam o protagonista, trazendo, novamente, a sensação do perigo eminente através do desconhecido.

Eisner também utilizava a hard light (luz dura) como elemento narrativo,

proporcionando a suas personagens o simbolismo da ambivalência de caráter

(figura 89), uma característica marcante do cinema noir, em que o desenho feito

pela sombra da luz dura criava uma imagem de alto contraste, podendo ser

modelada no rosto dos atores, normalmente os dividindo em duas partes (negra

e branca), em simbolismo a tênue diferença entre o bem e o mal.

Figura 87 - A divisão das luzes: o contraste entre Spirit (a ação fora da lei) e o comissário Dolan (a lei e a justiça em sua legalidade). (Fonte: Quem é The Spirit?)

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Figura 88 - Presença de uma divisão moral na face de Marv: a luz branca representa a bondade das ações da personagem, enquanto a sombra (recheada pelas linhas de suas cicatrizes e marcas da face) nos passa a informação de sua violência e brutalidade. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).

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Figura 89 - Iluminação dura e atmosférica, que passa da representação iconográfica de silhuetas puras para a iluminação direta e dura, com realce para a sombra de Marv. Destaque para os dois momentos díspares: a bebida, a perdição e o desconhecido (quadro um) em contraste com reencontro da felicidade e da segurança (quadro dois). (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)

6.5 Reinterpretação da narrativa

A já clássica e trágica origem da personagem Batman expõe bem suas

características fatalistas. Afinal, testemunhar, ainda quando muito jovem, a

morte de seus pais, é algo que já conecta Bruce Wayne (a personalidade “real”

de Batman) com um universo que já é realista e violento até mesmo em seu

estágio embrionário. Seu mundo não foi destruído por uma catástrofe ou foi

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criado por divindades, mas sim batizado por um crime comum, cometido por

um assaltante comum, em uma cidade comum (embora fantasiosa). Bruce

cresceu atormentado e movido por um senso próprio de justiça, buscando na

imagem do morcego, uma figura das sombras, sua própria identidade. Se

traçarmos uma linha de raciocínio nas ações desta personagem, Batman se

mostra inteiramente noir, utilizando como ambiente próprio as trevas urbanas,

combatendo o crime (mesmo que de forma ilegal), em um enredo que envolve

investigações e inimigos mais “realistas”, sem super-poderes e baseados em

gângsteres, mafiosos e figuras marcantes do cinema dos anos 20 e 30.

Figura 90 - O assassinato dos pais do jovem Bruce. (Fonte: Batman – Ano um)

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Ou seja, logo de partida já encontramos na origem de Batman a origem

de grande parte das narrativas noir: um crime. (figura 91)

Tanto Blacksad (2000) como The Spirit (1993) iniciam através da

perspectiva de um crime, um mistério que deve ser estudado, investigado e

descoberto, se tornando o ponto principal para o desenrolar de toda a narrativa.

Figura 91 - O acontecimento que inicia toda a narrativa da história: o assassinato de Goldie. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).

Por exemplo, no filme À Beira do Abismo (Howard Hawks, 1946), somos

apresentados ao detetive Philip Marlowe, uma pessoa de péssimos hábitos que

trabalha nos bairros chineses de Los Angeles. Pelo fato do mesmo ser um

detetive, compreende-se que o crime (qualquer que seja) será o ponto de

partida de todos os acontecimentos.

A trama se inicia com duas tarefas solicitadas pelo general Sternwood,

que contrata os serviços de Marlowe: dar um fim as chantagens sofridas por

sua filha, Carmen, além de descobrir o paradeiro de seu guarda costas

desaparecido há um mês. Se o início já é ladeado pela ocorrência de dois

crimes, há ainda a presença da femme fatale Carmen, que apresenta um

comportamento ninfomaníaco e autodestrutivo, desenvolvendo um interesse

amoroso pelo protagonista.

O seu título original “The Big Sleep” é de caráter fatalista e retrata “o fim

que aguarda a todos, em um escoadouro imundo ou em um mausoléu de

mármore”. (JULLIER; MARIE, 2009, p. 107)

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Assim como A beira do abismo, Sin City e Blacksad partilham de títulos

fatalistas que são conectados pela atmosfera da trama, representando o

pecado (Sin City) e a tristeza (Blacksad, figura 93) que rodeia as personagens.

Voltando ao filme, é possível destacar um acontecimento em comum

com várias obras da época. A beira do abismo é uma adaptação do romance

homônimo de Raymond Chandler, publicado na revista Black Mask,

especializada nos hard-boiled detective mysteries (enredos com investigadores

destemidos). (JULLIER; MARIE, 2009)

Em comparação com o livro hard boiled e o universo dos quadrinhos,

podemos encontrar semelhanças entre Marlowe e Marv, mesmo que singela.

Embora muito melhor apanhado, Marlowe tem um relacionamento com

mulheres que difere de toda a série noir da época, se mostrando sentimental e

romântico, somente se deitando com belas damas se estiver apaixonado. Marv,

até pela sua aparência, acaba relegado aos serviços de uma prostituta (Goldie,

sua femme fatale), mas que, porém, não cobra por seus serviços, gerando nele

um sentimento de amor e apego que revela seu lado sentimental

(transformando-se, mais tarde, em uma máquina de matar incessante). O filme

acabou por mudar esta característica, tornando Marlowe um homem

incrivelmente sedutor e irresistível, que lembra mais a figuração de The Spirit

ou Blacksad.

Figura 92 - O assassinato de um antigo amor de Blacksad marca as primeiras páginas de sua primeira história. O momento acima se trata de um flashback, estrutura narrativa comum em obras noir. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).

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Figura 93 - O clima fatalista de Blacksad. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).

Outra característica narrativa esta na forma em que as cidades são

retratadas: o caos urbano e a estilização da cidade como um ser-vivo, um

inimigo que deve ser combatido (Batman), berço de injustiças, crimes e divisões

sociais (Sin City) envoltas pelo pecado e pela perdição (Sin City, Batman), em

ambientes opressores, escuros e claustrofóbicos (Sin City, Batman).

Em muitos filmes noir, como no caso de O Falcão Maltês, as histórias acontecem em centros urbanos, com seus círculos de luz sob os candeeiros dos passeios, becos sombrios, uma multidão de pedestres indistintos e as ruas molhadas e sujas (...). Porém, o cenário do filme, na maioria das cenas, é filmado em ambiente interno. Todo este cenário é perfeito para os acontecimentos assustadores do film noir, o contraste idílico com a corrupção urbana pode-se tornar tanto um santuário quanto um campo de morte. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 50, apud SILVER; URSINI, 2004)

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Figura 94 - A volta de Bruce a Gotham, enquanto caminha pela sujeira, rodeado por prostituição infantil, drogas e corrupção. (Fonte: Batman – Ano um).

Por último, um detalhe da narrativa amplamente utilizada é o

protagonista anti-herói, sujeito a falhas e com um código de moral próprio.

O mesmo ocorre em O Falcão Maltês. Até então, os heróis do cinema seguiam o estilo clássico dos filmes westerns, de ação e de aventura, representados como uma figura idealizada de identificação narcisista, promotora da ideologia da onipotência e invulnerabilidade masculina. Spade representa um dos típicos heróis do film noir e, para salvar seu cliente ou, em muitos casos, a sua própria pele do perigo, conta apenas com sua astúcia. Ao contrário dos heróis clássicos, Spade é extremamente vulnerável, principalmente quando o assunto envolve dinheiro, o que coloca, muitas vezes, seu caráter em discussão. (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 58)

Figura 95 - A justiça fora da lei cometida por Blacksad. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).

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Figura 96 - O senso de justiça bruto de Marv. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado).

Figura 97 - A revelação do codinome The Spirit: ação por debaixo dos planos e sem a presença direta da lei. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).

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Figura 98 - Dwight sofre forte represália pelo envolvimento amoroso com uma femme fatale de seu passado. (Fonte: Blacksad - Em algum lugar entre as sombras).

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Figura 99 - Batman em seu início: sujeito a falhas e erros banais. (Fonte: Batman – Ano um).

Figura 100 - A corrupção e violência da polícia, presenciada por Gordon. (Fonte: Batman – Ano um).

Figura 101 – A primeira tentativa de boa ação de Bruce ocorre de maneira errada e é frustrada pela polícia. (Fonte: Batman – Ano um).

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Figura 102 - A represália e o castigo físico imposto ao tenente Gordon, como um modo de botar o “bom” policial na linha. (Fonte: Batman – Ano um).

Figura 103 - A vingança fora da lei e por conta própria realizada por Gordon contra seus agressores. (Fonte: Batman – Ano um).

6.6 Análise de estereótipos noir

Outra característica presente em The Spirit e O Falcão Maltês é o uso de personagens estereotipadas, como ferramentas narrativas. Em ambas as tramas, existem ambivalência moral nestas personagens, a fim de melhorá-las. Esta ambivalência moral cria um clima de tensão, em que a fronteira entre o bem e o mal nunca está clara. As personagens parecem não ser o que aparentam e têm comportamentos dúbios. Isto ocorre, principalmente, com as personagens femininas (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 52)

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Entre todos os estereótipos do noir, o mais forte é a presença constante

da figura da femme fatale: a mulher sedutora e sensual que pode significar a

ruína para o protagonista.

Figura 104 – As mulheres fatais da Cidade do Pecado (Fonte: Sin City – A dama fatal).

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Enquanto The Spirit desfila com uma grande quantidade de beldades e

interesses amorosos, que por volta e meia se mostram perigosas e

manipuladoras, Blacksad nos apresenta uma linguagem mais “cordial”, da

femme fatale redentora, que poderia significar a paz e o amor ideal para o

protagonista noir, mas que, infelizmente, sempre acaba por se envolver em

alguma trama que dificulta ou impossibilita este relacionamento, obrigando o

detetive Blacksad a correr grandes perigos para garantir a proteção de quem

ama, sendo que, como é recorrente neste tipo de narrativa, acaba descobrindo

alguma forma de traição inusitada e trágica.

Isto ocorre em Sin City, principalmente na história “A dama fatal” (1994),

que gira em torno do relacionamento perigoso com uma mulher que leva o

protagonista a ruína, impulsionando o mesmo a vingança e a derradeira solidão.

Além da tragédia da traição e dos perigos de um amor proibido ou

perigoso, há sempre o crime, que acaba envolvendo ou alguma femme fatale do

passado (Blacksad – Em algum lugar entre as sombras, 2000), ou do presente

(Sin City – A cidade do pecado, 1993), que impulsiona toda a busca pela

verdade, a investigação e o direcionamento da narrativa, tendo o ponto de vista

do anti-herói em momentos de flashback (outro estereótipo do cinema noir).

Figura 105 – A femme fatale mortal, que manipula e destrói o homem protagonista (Fonte: Sin City – A dama fatal)

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Figura 106 – Os bares podem ser um reduto de malfeitores, informantes, policiais corruptos e belas e perigosas mulheres. (Fonte: Blacksad – Em algum lugar entre as sombras).

Figura 107 – A presença da Mulher-Gato no universo de Batman: a femme fatale essencial, que representa, ao mesmo tempo, o perigo e o relacionamento impossível. (Fonte: Batman – Ano um).

Outro ponto importante na obra noir é a figura do anti-herói, que, muitas

por conta de uma mulher fatal, se encontra fisicamente machucado e

psicologicamente abalado, normalmente por motivos ligados a sua investigação

e a colisão com forças maiores, deslanchando para um confronto direto onde

quase sempre a protagonista acaba levando a pior ou se ferindo no processo

(figura 108).

Além disso, os protagonistas das obras noir estão sempre com alguma

escolha ou decisão moral difícil a ser tomada, carregando um semblante

entristecido e, não raramente, carregado em vícios (mulheres, bebidas e

cigarros).

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Figura 108 – O abatido detetive Blacksad, após confronto com malfeitores que tentaram impedir sua investigação. (Fonte: Blacksad – Em algum lugar entre as sombras).

Ainda temos, como já discutido, a perspectiva de um crime (figura 110),

que normalmente é o “pontapé inicial” para a construção de toda a narrativa.

Figura 109 – A ação em plano e contra plano mais o enquadramento de contextualização nos dão detalhes importantes do crime cometido, que será desenvolvido com o andar da história. (Fonte: The Spirit – O retorno de Satin)

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E por último, a escolha estilística das vestimentas, como é deixado claro

por Marv (figura 111), que reclama sobre o desperdício que é sangrar em um

“sobretudo tão bom”.

Figura 110 – Marv solicita o casaco. (Fonte: Sin City – A cidade do pecado)

7 Arte sequencial refinada

Após tantas desenvolturas narrativas e estilísticas, os quadrinhos -

graças em grande parte a influência do noir na vida de grandes autores -,

conseguiram se estabelecer como uma linguagem própria, adaptando o cinema

ao seu gosto, construindo imagens em movimento que não podem ser

simplesmente lidas, mas que devem, também, ser “assistidas”, como a um

filme.

A evolução da arte sequencial foi tanta, que hoje é capaz de construir a

impressão da ação e do movimento através da fluidez do traço bem construído

e da montagem clipada de seus quadros, revelando o grande compromisso

com a qualidade do produto final, pensado em cada detalhe, em cada

disposição de sequência posta em cada quadro, como pequenos filmes

estáticos (figura 112).

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Figura 111 – A decupagem de cenas da sequência, revelando detalhes importantes, em uma ação em diversos planos, com diveros ângulos, com movimentação incessante e ritmo empolgante.

7.1 A abordagem neo-noir de Frank Miller e o neo-clássico de Blacksad

Por fim, ocorre uma separação nos gêneros destes autores de épocas

tão distintas. Guarnido e Canales reconstroem a sequência noir clássica, da

década de 1940, com tramas bem elaboradas, personagens profundos,

interessantes, ambíguos e ironicamente humanizados.

É o cinema de vanguarda nos quadrinhos, mas que se desenrola, ao

mesmo tempo, em uma profundidade de gênero neo-noir, com momentos que

se conectam com Chinatown (Polanski, 1974), principalmente pelo fato de ser

uma obra que é consciente do seu gênero e do que pretende transmitir. O

cuidado com a ambientação, o apreço pelo realismo, o envolvimento com

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narrativa e a qualidade estética elevam Blacksad ao status de um neo-clássico,

uma obra que deverá ser estudada e apreciada ainda mais com o tempo.

Já com Frank Miller nós temos o neo noir absoluto, estabelecido em

uma linguagem pop inexistente em qualquer outra mídia. Sin City é o neo-noir

anabolizado ao extremo, com tons e sacadas pop que se aproximam muito

mais da linguagem do diretor Quentin Tarantino do que o cinema noir em si. De

certo modo, da mesma forma que Tarantino presta homenagem a seus

gêneros favoritos em seus filmes, readaptando a sua maneira diversas obras

de diferentes épocas e estilos, Miller homenageia o noir, readaptando todo este

universo a sua forma, atuando em um tom de “remixagem”, em que acata ao

hibridismo do cinema e dos quadrinhos em prol da construção de algo novo,

alucinado, violento e satírico. Desde o princípio, nas histórias do Demolidor até

o fim de sua carreira (com trabalhos altamente criticados pela mídia, como

Holly Terror, de 2011), Miller vem se mostrando como um adepto do seu

próprio estilo noir, criando, quem sabe, um sub-estilo de exploitation noir.

Entre as obras desse gênero híbrido e alucinado está o tech-noir -

gênero que se encontra a obra cyber-punk Blade Runner, o caçador de

andróides (Ridley Scott, 1982) -, Hard Boiled, uma HQ que se passa em um

futuro distópico não muito distante, mas que conta com uma altíssima

proliferação de tecnologia avançada de design retro e forte desigualdade social

(marcas registradas do cyber-punk).

Figura 112 – O caos urbano de Hard Boiled. (Fonte: Hard Boiled).

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A trama se concentra na personagem Carl Seltz, um investigador de

seguros que descobre ser uma ciborgue homicida programado pelo governo,

que tem como principal diretriz coletar o imposto da população. Além da

comparação com Blade Runner, Carl ainda descobre ser a única esperança

para a libertação de toda uma raça de robôs escravos.

Esta narrativa apresenta alguns detalhes interessantes do noir,

contendo, até mesmo, uma femme fatale robótica (figura 114)

Figura 113 – A construção de uma narrativa peculiar, que envolve a libertação de robôs escravos sexuais e femme fatales metálicas, entre a ação descontrolada e violência explosiva. (Fonte: Hard Boiled).

Depois de todas estas etapas, quais serão os caminhos seguidos pela

arte sequencial, elaborada por Will Eisner?

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7.2 A evolução da sequência

A fim destas considerações e avaliações entre estas mídias distintas, é

possível perceber que muitas das estratégias midiáticas presentes nos

quadrinho estão abertamente relacionadas com outras formas de

manifestações artísticas, como o cinema, a literatura e a fotografia.

Os produtores de quadrinhos, em função dessa assimilação, possuem uma vasta relação de técnicas narrativas adaptadas para essa mídia, como os enquadramentos do cinema, o texto da literatura, os recursos gráficos da fotografia e os procedimentos de edição e corte da televisão. Esse leque de recursos é adaptado com o intuito de alcançar com êxito o objetivo proposto pela hq, ou seja, é uma remediação. (CAMPOS, 2007)

Porém, nesta releitura do cinema noir da arte sequencial, promovida

neste estudo, há de ser feita uma ressalva importante, pois embora

relacionados, cinema e quadrinhos contam com símbolos únicos que devem

ser considerados, apreciados e vistos de formas separadas. Por exemplo, a

arte e ação presente no entrequadro dos quadrinhos, a sua composição gráfica

única de cenas e o uso de balões são características que pertencem, de forma

exclusiva, as narrativas da arte sequencial.

Tomarei por exemplo um trecho da obra “Do inferno”: (1991,

CAMPBELL; MOORE – Figura 115).

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Figura 114

O delírio – que coincide ironicamente com o futuro apelido que o

médico receberá – é marcado pela torção das letras, pelo balão de

fala irregular e, por fim, pela inversão da letra “k” do nome “Jack” no

quadro 6, como se representasse a confusão mental em seu

discurso. A anormalidade da fala da paciente torna-se mais evidente

no contraste das linhas precisas e organizadas dos outros

personagens que dialogam com ela. O efeito sinestésico desse

elemento dos quadrinhos pode ter grande alcance se atentarmos aos

seus detalhes: do quadro 7 ao 9, o contorno do balão é

desfragmentado, o que remete a uma voz falha, desarmônica e

desconcertada. (AMORIM, 2011)

A utilização gráfica do balão para representar a instabilidade mental da

personagem é um recurso simples e muito sutil que requer o desenvolvimento

de uma mídia como os quadrinhos para funcionar.

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Outro importante diferencial se encontra no espaço de leitura dos

quadrinhos. Como já foi estudado, enquanto o cinema nos obriga a ver tal

informação em tal ordem de acontecimentos, os quadrinhos são livres na

leitura, tanto no manuseio das páginas como na absorção dos acontecimentos

de uma página, que não é lida como uma cena separada por vez, como um

grande mural de arte, que contém diversas manifestações e interpretações.

Já o hiato, outro elemento básico, também conhecido como sarjeta, é o espaço em branco entre um quadrinho e outro que separam as bordas. Enquanto o requadro representa as variedades de moldura que envolvem a vinheta, geralmente usadas dentro dos quadrinhos ou seguindo o formato deles, sendo muito utilizado para dar emoção à narrativa (FERREIRA, ET AL, 2007, p. 70)

É esta leitura entre quadros que é especial que torna o quadrinho uma

mídia que se separa do cinema. Afinal, a moldura do quadro não é somente

simbólica, mas também pode funcionar como uma moldura mesmo,

propriamente dita, se encarregando de uma informação adicional que

complementa a virtuose artística. (Figuras 116, 117 e 118).

Figura 115

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Figura 116

Figura 117 – Fontes: http://www.comicartfans.com

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A exuberante construção de cenas feita por J.H. Williams III. Williams

transcende todos os limites impostos pelo cinema, elevando a própria arte

sequencial a um nível em que somente ela é equivalente.

A continuidade entre os quadros que formam a página de uma revista em quadrinhos também se apresenta diferente do cinema. Nestes, os planos obedecem uma continuidade geralmente rigorosa, onde os parâmetros de ordem temporal e espacial definem mudanças de plano. Nos quadrinhos não existe continuidade rigorosa; essa continuidade funda-se sobre a descontinuidade gráfico-espacial. Os quadros da história em quadrinhos, portanto, são os responsáveis por sua "continuidade". (PADRINHO, online)

Outro representante importante nesta modalidade é o artista Frank

Quitely (figura 119) que apresenta uma disposição de enquadramentos

também inovadora, traçando alguns limites entre as semelhanças do cinema e

da arte sequencial.

Figura 118 – arrojada subdivisão de acontecimentos da ação, esmiuçado em mini acontecimentos (que acontecem em tempo real) separados por quadros de espaço físico. (Fonte: http://www.bookalicious.net)

Figura 119 – a onomatopéia. A personificação dos quadrinhos (Fonte: Batman, o cavaleiro das trevas)

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8 Considerações finais

Ao analisar as diversas relações apresentadas entre o cinema noir e a

evolução dos quadrinhos a status de arte sequencial, principalmente pelo

impacto da obra “The Spirit”, de Will Eisner, assim como a benéfica influência

em autores como Frank Miller, este estudo demonstrou que a relação de

convergência entre duas mídias distintas pode render frutos interessantes tanto

para o público como para a própria indústria, que acaba recebendo um

apanhado de obras adultas e consistentes, com o ímpeto de elevar a qualidade

do entretenimento vinculado.

Além disso, não só a estética noir ajudou a consagrar dois dos maiores

autores dos quadrinhos de todos os tempos, que, cada um a sua forma,

moldaram o mercado de sua época, mas também o cinema como um todo foi

um grande responsável pela evolução da arte sequencial contemporânea.

Eisner, afinal, foi influenciado pelo período em que viveu, crescendo com

películas policiais e de suspense que moldaram seus ideais artísticos, tanto na

forma de construção de cena, como na construção de seus personagens. Ou

seja, o cinema de sua época, considerando que o noir só seria estabelecido

realmente como “noir” anos depois. Se Frank Miller e Guarnido podem ser

considerados abertamente noir, isso se deve a uma geração que já vivenciava

uma consolidação maior deste gênero, já transcendido a objeto de culto,

homenageando, posteriormente, o movimento tão amado e a linguagem

clássica em suas obras. Na realidade, o cinema como um todo é o grande

responsável pela evolução dos quadrinhos, tanto que sua aproximação cada

vez mais crescente exigiu que artistas, como Frank Quitely e J.H. Williams III,

evoluam, mais uma vez, a arte sequencial, utilizando o próprio enquadramento

como uma forma de narrativa e vislumbre estético, ultrapassando a barreira

estabelecida na linguagem formal de quadros ao juntar o “espaço vazio

entrequadros”, como dito por Scott McCloud, em um meio de comunicação

próprio e não mais somente uma forma de ligação entre ações feitas pela

mente do leitor. A arte está sempre em evolução, e arte sequencial demonstra,

mais uma vez, que a sua ação através do estático é uma linguagem relativa,

única e em constante mudança, seja no meio digital ou no impresso.

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