pulselibre :: Zine #2

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Segundo zine produzido pela pulselibre.

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Procurei textos antigos, revirei meus arquivos, meus cadernos, meus refúgios. Um pouco por preguiça de escrever algo novo, um pouco por falta de tempo e mais um tanto por não querer remexer em mim e um cadinho por medo. É que este zine vem no lançamento de um sonho, um projeto de vida. Uma das coisas mais importantes que já fiz enquanto existo. E a exigência de uma nova escrita que cumprisse a expectativa me faz tremer os joelhos. Mas encaro.

Ouvimos, neste um mês e meio de existência da Pulselibre, muita coisa boa. Muitas pessoas satisfeitas

Edi-to-rial

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\\Fala-mos de coisas profun-das e fortes//

com a nossa proposta, com o empurrão que viemos dar a todos que buscam um espaco. Falamos de coisas profundas e fortes, como da sociedade atual, do mundo em que vivemos, de angustias de uma geração que congelou por não saber onde seguir e que se faz presente e viva em shows de hardcore, onde colocam todos os demônios para fora. Falamos da cultura brasileira e mundial, do sistema e do modo de vida que vivemos hoje, de mostrar que podemos seguir por um caminho diferente, se quisermos. Que só não está morto quem peleia - e lutamos. Não é fácil, nem simples e tem que ter vontade e garra. Não desistir nem se deixar abater. Lembro de quando eu vi pela primeira vez a entrevista com Patch Adams e ele fala que em nenhum momento ele acordou triste ou desanimado, por mais que há 10 anos ele esteja tentando construir um hospital que ofereça cuidados de graça as pessoas. E ele disse: ¨nunca acordei desanimado porque sei que é a coisa certa a fazer - e que tem que ser feito por alguém”. Esta frase nos inspira muito. Porque não é fácil se apresentar como uma marca com uma verba de dinheiro (dinheiro, sempre dinheiro)

extremamente limitada e tendo que trabalhar em outros empregos para que a gente consiga manter ela em pé. O trabalho é pesado e as horas dormidas, poucas. Mas é o que acreditamos. E não só o que acreditamos, mas o que várias outras pessoas também acreditam. Acho que esta é a maior felicidade que tivemos: ver que nao estamos sozinhos, que os garotos ainda estao aqui gritando por mudança e que eles ainda acreditam. Ouvimos muito: “que afude, que massa que vocês estão fazendo isso, que lindo!”. Dá uma esperança imensa de ver que não somos só nós que estamos famintos por coisas mais reais e humanas. Porque os produtos, apesar de adorarmos a função de criarmos e produzirmos, são só o que sustenta isto. Foi onde conseguimos inserir a nossa arte. Mas queremos mais: queremos ser e nos orgulhamos em dizer que já estamos dando os primeiros passos em ser catalisadores e apoiadores da cena cultural de quem faz o que acredita e com sinceridade. Queria agradecer muito a todo mundo que nos ajudou e ajuda a sermos o que somos hoje. Muito obrigada e fico feliz em acreditar que estamos recém começando e que o melhor ainda está por vir.

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Leonardo “Z” Zimmermann poesiaescritaemgasolina.tumblr.compoesiaescritaemgasolina@gmail.com-

Cada vez mais, uma inspiração a menos e eu aqui, nu em frente ao espelho, entre ruas que se cruzam precipitando destinos que eu nem sei se, e é sábado, quase noite, quase chove, não é cinza nem amarelo, é quase os dois e nenhum, e não parece nada bom, com esse vento e essa fome que me acompanham há dias sem trégua, como a sede que por certo virá como sempre vem, depois de uma noite dessas em que a mão que oferece o veneno surge de um lugar que a vista não traduz e a mente teima em apagar, mesmo que o esforço para manter acesa a chama da memória seja sobre-humano e o humano que em mim habita seja sobretudo só um humano perplexo diante desse espelho encravado na encruzilhada que precipita destinos famintos por alguém que os percorra com ou sem medo, desviando-se ou não, atrasando-se ou não, por querer ou não,

ainda que, talvez não seja mais sábado, apesar de ser noite e não chover apesar do vento, enquanto a televisão, na sala, fala sozinha sobre os representantes eleitos que se deixaram dominar pelos encantos do poder em nome do papel, o mesmo que leva as crianças do Congo a trabalhar em garimpos por menos de US$ 5 por dia para exportar matéria-prima para os maiores fabricantes de gadgets no mundo, ou ainda o papel que levou o homem branco a invadir território indígena no alto Xingu, para dividir as terras entre meia dúzia de senhores gordos enfarinhados capazes de influenciar presidentes a mentir no exterior para trazer investimento gringo para dentro da Amazônia, alegando maior produção de energia, quando até mesmo um cego vê que tudo isso é engodo para ganhar mais papel às custas de susbtratos naturais não renováveis, ignorando os povos ribeirinhos e toda

a população indígena presente no local, que se torna invisível nas notícias que a televisão grita incansavelmente, todos os dias a qualquer hora do dia, mesmo que seja durante a melhor refeição da minha vida, aquela capaz de saciar até a fome das almas famintas de tanto percorrer destinos que não acabam nunca mas se cruzam sempre, como aquele que me trouxe até aqui, onde não chove, não venta, não há fome e não faz frio, só há uma luz vinda do monitor produzido com matéria-prima do Congo, eu mesmo limpando meus próprios espelhos enquanto escrevo sob fluxo de consciência, algumas camisetas pintadas à mão secando ao lado da cama e o incenso perfumando o ambiente.

Para/grafe/ando

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Matheus de Lavra-

É preciso ter força.

Grandes janelas de vidro sustentam uma paisagem verde e azul ao lado direito de quem entra na casa. Quando anoite cor de fogo, calor de luz.Circulam nesse lugar - me falou um vivente naquela festa - a possíveis dez anos, personalidades em sinergia, fluindo, cantando, vivendo, amando e enlouquecendo.Encontrando paz e veja bem, tens que entender, é mais do que isso. Sinta pelas paredes toda estória estampada em dois andares, oito ambientes dividem um mundosó... tempo da saudade.

Quem escondeu o sofá? - perguntou o anônimo.

Tempos depois, a resposta.- O individualismo.

Vão-se os chuveiros, jeans surrados, bongôs & carróns, metros de extensão elétrica & cafeteiras.Portas são arrombadas,

portas são abertas, portas são cuidadosamente protegidas. Portas são pensadas, portas são construídas e de novo são destruídas pelos inquilinos flutuantes, mas a casa vive, ela não precisa de portas e sim de espaços onde o ar corra livre.

Varrendo o tabuado perto das janelas enquanto conversava com um amigo, distraído eu percebo o sentido da minha frase preferida, aquela estampada pertodas grandes vidraças.

Onde tem gaivota, não tem ratazana.

Os dez anos provam isso.É preciso ter força.

indi/vidual/ismo

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Mayah Cruz-

eu ando quieta por achar tudo deslocado demais para os meus olhos que já deixaram de ser ingênuos, mas buscam alguma sinceridade atrás dos movimentos tão absurdamente programados que dominaram as ruas com risos altos de piadas sem graças, histórias que não tem a mínima importância, cores que não existem e que por mim seria tudo branco no preto. estava conversando com a julya essa semana ainda comentamos que as nossas meia-calças coloridas de rosa pink, verde limão, laranja vivo já ficam dentro do armário e não conseguem mais vestir nossas pernas. penso que quando a gente se ilumina e tem cor própria, não precisa ficar vagando pela rua feito um vagalume pra ter certeza que vai ser notado. não uso mais mini-saias nem decotes, muito menos roupas desconfortáveis. e acredito que quem precisa de qualquer um desses

artefatos para ser notado, está fazendo algo errado. quem se destaca com sobriedade é que merece a atenção. a minha, pelo menos.

daí eu saio nessas noites e as pessoas estão tão perdidas e tão pra fora de si mesmo que nem sabem mais quem são, nem o que estão fazendo. digo há anos: o caminho é in, não out. e a gente não encontra respostas nenhuma balada, noite, transa, baseado, carrera de cocaína, doses de tequila. ninguém encontra respostas se esquecendo da noite anterior. ninguém está presente quando se esquece da noite anterior. e estar vivo e não estar presente é uma das coisas mais tristes que existe.

ainda vivo e me sinto bem, obrigada por não perguntar.

//as pes-soas estao tao pra fora de si mes-mo\\

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Guto-

a claridade atropela o barulho do mundo, envolvendo lentamente o canto dos sabiás e o escapamento dos veículos ainda de luzes acesas, enquanto Antonio tapa os ouvidos para ouvir pior os ruídos daquela manhã às avessas, que invade sem pedir licença o seu cérebro despertante, a cidade invejando o campo imenso que a faz ilha insalubre no mar de verde puro e amplo, sob um céu mesclado de azul e nuvens brancas, as cores assim misturadas na

cabeça e no dia-a-dia das criaturas amontoadas feito gado, um passo atrás do outro, rumo ao incerto futuro do presente – esse tempo de verbo que expressa o milagre do universo – como se cada segundo contivesse um espaço a ser vencido, uma distancia a ser consumida, uma verdade a ser conhecida no próximo instante, no mesmo momento em que José se empenha em esfregar os olhos e ver melhor mais um pedaço de vida acordado, mais um laço de esperança,

mais um elo na corrente que o prende na âncora lá no fundo do oceano de sua aparentemente fi nita existência, que nada mais é do que um vizinho e paralelo universo ao de Antonio, de Maria, de João e de Ana, cada um em sua independência vital, mas ligados por simpatias e afetos aparentes, ou mesmo adormecidos e inertes, como brasas adormecidas, esses pontos de convergência difíceis de conceituar, como os buracos negros, como um olhar brilhante – a linguagem

Moto Con-tinuo

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inigualável do silêncio – como a matéria e o tempo relativos, como o menos e o mais da eletricidade e do magnetismo, conectados por linhas invisíveis e poderosas numa interdependência cósmica total, como o norte não existe sem o sul, assim é a cola de energia entre tudo o que existe, que explica o primeiro pensamento consciente de Izabel ao abrir a mente para mais um período de seu mundo real, naquele mesmo instante de Antonio e José, imaginando onde andaria sua filha Joana, seu pai, sua mãe e seu anel perdido, esses vínculos indestrutíveis que constroem as emoções e as lembranças, as conexões entre o passado e o presente, como a saudade de seu vôo de criança entre o topo do barranco e a água fresca e límpida do rio, a nostalgia que a envolve como uma bolha de mil cores cambiantes, levando-a flutuante sobre as dificuldades e as dúvidas de sua imediata realidade, até que estoure silenciosa

e ela a caia outra vez na estrada, entre o cantar dos sabiás e o rugido do trânsito, agora com a companhia do barulho impertinente de um cortador de gramas que vêm em ondas, como uma senóide sonora em ritmo constante, como se fosse a própria expressão das respirações de Brahma, uma coisa pulsante, cardíaca e inexorável, como o ronco de seu marido Pedro ainda adormecido ao seu lado, dessa forma o pensamento de Izabel, de Antonio e de todos os outros até o final de seus tempos por aí, seguem confiantes rumo ao horizonte desconhecido de seus amanhãs tão próximos e desejáveis, mil sonhos em cada noite bem dormida e dias bem acordados, fantasias e magias que os conduzem ora alegres, ora tristes, entre sorrisos e lágrimas escorrentes e pingantes das suas faces límpidas de arrependimentos ou vergonhas desnecessárias, como um córrego seguindo sempre o caminho mais

fácil que a gravidade lhe oferece, serpenteando em silêncio rumo ao mar distante onde todos os Antonios se misturam com todas as Marias em ondas espumantes, numa equação mais que perfeita, cada um depositando ali a sua parte do todo para mais uma vez evaporarem aos ares e reiniciarem o ciclo sem fim da própria vida, do movimento entre o céu e a terra, do fluxo da energia da alma e do espírito, num novo dia após uma outra noite, mais uma respiração, um novo sol substituindo as estrelas na presença da lua, para outra vez o antigo se transformar em novo, num momento fugaz e único em que a claridade atropela o barulho do mundo envolvendo lentamente o canto dos sabiás e o escapamento dos veículos ainda de luzes acesas, enquanto Antonio tapa os ouvidos para ouvir pior os ruídos daquela manhã às avessas, que invade sem pedir licença o seu cérebro despertante...

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Ana Letícia-

Às vezes a vida é assim, fica apontando o dedo e rindo da nossa cara.

Chego em casa podre de suja, ou estou em casa há tanto tempo que preciso deixar a água escorrendo um pouco sobre o meu corpo pra ver se meus músculos relaxam ou ainda se tem alguma reação para abrir a porta e sair de novo - e falta água. Vai ver é assim mesmo, no momento que eu mais preciso ela me falta, ela me falta depois de eu transformar ela num objeto de fé, num demarcador de linhas, o antes e o depois da água levar pro ralo tudo aquilo que eu não quero mais levar em mim.

Mas ela me falta.

A vida continua, já nem sei há quanto tempo ela faz isso, acho que foi desde sempre, mas o que quero dizer é que eu não lembro quando comecei a perceber essas risada. Acho que primeiro percebi os puxões de orelha que de repente eu até sinto saudade, antes dela resolver virar adolescente/adulta sei-lá-o-que e ser sarcástica, piadista irônica. E ela não para.

Aqui estou eu: três provas, dúzias de livros atrasados, questões não respondidas. Tiro o final de semana pra sentar e estudar, me sentir útil, botar tudo em dia pra conseguir me organizar e ir adelante! Acabo na frente do computador tentando

lembrar a senha de um blog pra conseguir escrever, já que as horas ficam insistindo em passar e eu não consigo ler uma frase inteira se quer. A vida ri. A vida ri de mim que quando acho a senha e me permito um tempo pra escrever, as palavras não vem.

Será que não tenho mais palavras pra dizer? Será que eu não tenho mais nada dentro de mim? Será que eu guardei tanta coisa aqui e agora elas estão tão tumultuadas que eu não consigo enxergar uma de cada vez? Estou sozinha dentro de mim me buscando nos (tantos) sentimentos que eu guardei. E eu que achava que já tinha dito tanto… talvez não tenha dito nada. Talvez foram só

Vida De Riso

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palavras mais uma vez, essa série de códigos e símbolos que a gente mesmo inventa e dá um significado. E elas ficam sendo ditas repetidamente, constantemente, tão mais fácil as palavras. Tem gente que diz sentir o que não sente, tem gente que não diz e sente. Será que eu sou o silêncio? Até quando o silêncio aguenta sem alguém quebrar? E eu que achei que tinha vivido os silêncios mais reais…

Será que eu que queria ser música, sou o silêncio?Será que a música que eu quero ser é o silêncio?Será que o silêncio não é a música mais funda?

Música ou silêncio eu quero é ser sentida.

E é nessa premência de sentir e ser sentida, ser música ou ser silêncio que a vida vai rindo de mim, vai fazendo piada com meus anseios bagunçados, atrapalhados, com meus passos maiores que as pernas, com minhas faltas, com o que me falta, vai colocando pra tirar, e continua rindo e rindo. Não choro com a vida rindo de mim, bem pelo contrário, se ela ri é porque me transformou numa comédia e eu quero mais é rir com ela.

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“Quem somos nós que vivemos de desatar os nós das gargantas e juntar esperanças e procurar saídas e levantar bandeiras e adiar partidas. Quem somos nós que dizemos sim querendo dizer não e que balançamos as idéias quando alguém pede perdão. Quem somos nós feitas de emoções, intenções, intuições, mas que também dizemos palavrão quando não cabe uma canção. Quem somos

nós que temos muitos colos, calma e paciência, mas que muitas vezes perdemos isso em busca da própria existência. Quem somos nós que desejamos muito mais do que carinho, comida, teto e paz. Que olhamos pra frente sem nunca deixarmos de olhar pra trás. Quem somos nós aqui, neste exato presente? Folha, galho, raiz ou semente? Quem somos nós, além de sermos gente?”

“Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de niguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a contra-vento, e sou o vento que bate em minha cara.”

Paula Tautembal-

Eduardo Galeano-

Quem so-mos nos alem de ser-mosgente?

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Estar contigo - te (me) ter comigo, é estar com meu eu mais escondido. Temos nos visto bastante pois eu sinto falta de me encontrar mais vezes. Encontrar esse eu que mora em ti. Este que ainda não é pleno, mas é o mais próximo que eu já encontrei. Sinto que tenho muito de ti em mim também, e que a minha presença faz com que vocês se encontrem. E esquece os outros. Deixa eles lá fora vivendo

amores vitrine. Poucos deles conhecerão essa amizade-amor. Essa que te proporciona os minutos mais doces a dois, que se confundem em sorrisos bobos nesse tempo que a gente perde-e-ganha. Aquela vontade do outro que se encontra em vontade de ti. Esse outro que sou eu. Que me tem. Que eu tenho. Que a gente, só a gente tem.

K.-

Deixaeles

la foravivendo amores

de vitrine

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Juliano Milo-

Eu sei. Claro que o conforto do meu sofá me leva a achar que eu entendo tudo. E da maneira mais completa possível. Dou boas vindas à leve embriaguez do início de noite com o balançar do resto de vinho. As cortinas vermelhas parecem me incomodar menos do que o normal. Banham de ruby a sala por causa do outdoor iluminado que brilha na janela.Estacionado no sofá. Pronto para ser fotografado por ninguém, descobrir a cura de nada e não receber os louros de alguma vitória que certamente não tive.“Humpf” Num quase sorriso, brincando com o girar da taça. Aí eu levanto num gesto rápido e desmedido, já engolindo o resto de vinho e descansando a porcaria da taça em cima da capa de um LP. “Porra, esse disco...” Mas já é assunto velho, eu levanto o volume do som e deixo o chiado da agulha fazer companhia aos trompetes já decorados. Eu me apóio

sobre os joelhos e dou um leve abraço na caixa de som. “Ella, tu tá aí ainda?” E com uma gargalhada já vou me erguendo em direção do Pinot Noir me esperando numa garrafa verde, linda. Linda e aberta. Olho pro relógio e desconfio que está me mentindo, não podem ser só nove horas da noite, o sono ainda não veio, a janta já passou há muito tempo, o jornal tedioso – que eu fiz questão de assistir no mudo, caso tu queira saber – já terminou. Porcaria de horário de verão. Eu já dei comida pro gato. Só falta pensar em ti. E levar o lixo pra rua. Eu pego mais vinho. Claro, eu sempre pego mais vinho, principalmente assim, sozinho, sem ninguém pra se incomodar com a minha natureza ridícula, meu ar blasé com o cigarrinho na mão e meus sorrisos ingratos, disfarçados num pequeno arco dos lábios, um movimento quase involuntário. Tu sempre contava minhas histórias

de bêbado melhor que todo mundo, não que faça algum sentindo pensar nisso agora. Let it be, dear. E eu fico nisso até que eu me masturbe e caia numa agonia adocicada e suada no sofá. Não, essa noite bonita tem outra cara. Um outro jeito maroto. Não tem nada a ver com meu tesão intransigente e teu corpo jogado contra meu armário, minha mão desajeitada procurando o fim da tua saia e teu rostinho de perfil tateando pela minha língua num beijo absolutamente didático. “Pode cobrir os dentes com os teus lábios? Porra?” Mesmo assim com um amor e paixão inigualáveis. Até que se prove o contrário. “Há, não, meu caro, hoje não...” Hoje não funciona assim, adorable as it might be, eu prefiro me acomodar aqui no meu sofá, encarar a sala e os trompetes que me buzinam o ouvido sans la sourdine. Por um longo instante me convenço dos meus

Pont Neuf, Pinot Noir...

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poderes idiotas e construo uma visão tua. É inverno, mas não tá tão frio. Tu tá vestindo aquele casaco pesado teu, por cima de uma blusa creme. Por baixo, uma saia xadrez, uma que eu gosto bastante. Tu pede para um casal polonês, amistoso, porém reservado, tirar uma foto tua, e tu te apóia na porcaria da Pont Neuf, Paris ao fundo, e sorri. O enquadramento é péssimo, muito teto, muito de longe. Mas eu sei que é tu. Eu tenho certeza, da ponta da minha pica até meu coração. É claro que é tu. É triste reconhecer pessoas em fotos mal tiradas. Os poloneses acenam e te devolvem a câmera. “Do widzenia” dizem eles gentilmente, tu maneja um “Tschüss” torcendo para que eles entendam alemão. Eles continuam o trotar feliz pela rua e tu logo leva a mão até a boca e deixa os cabelos caírem para frente. “Merda” Tu maneja dizer, em boníssimo português enquanto lembra da ocupação alemã na Polônia. E então é atacada por uma súbita vergonha. Lá vem a gafe. Porque infernos tu dá tchau em alemão para um polonês? Proximidade geográfica da língua? Indelicadeza

com a deprimente meretriz histórica de russos, alemães e eslavos? Pobre Polônia, tu pensa. Até olhar pra foto... E vê que tá uma bosta. E que tua foto de recordação faz a Pont Neuf parecer a Ponte de Pedra aqui do lado, no centro. Daí tu te lembra que tá com fome, e que adoraria comer umas brusquetas com cerveja leve, sim, um bom almoço, um bom projeto de almoço pra esquecer a Pont Neuf. Pra esquecer Porto Alegre. Aí eu abdico dos meus poderes, honestamente com medo de encontrar a tua companhia te esperando numa mesinha em La Defense – aliás Paris-La Defense, já que eles ganharam o direito constitucional de se chamarem assim... –, e é aquele restaurante. Aquele. Um lugarzinho simpático que serve comida mediterrânea. E o rapaz lá, com um sorriso fácil e dócil, te esperando com um papo cabeça e um perfume agradável. E ele fica lá te esperando, com a perninha cruzada e o Le Monde na frente, todo aberto, mas ele diz que só lê a parte da cultura, porque ele é simpatizante do Frédèric Mitterrand. “Grande bosta...” Digo eu,

num bom português. Daí eu acendo mais um cigarro metido à besta e jogo o isqueiro por sobre o sofá. Tiro a camisa e fico andando de um lado para o outro de jeans e pés descalços. Até penso em tirar uma foto minha e te mandar. Um email sucinto, como se fosse um breve comentário de uma obra de arte. Os trompetes cessam. A mais maravilhosa negra de todas também. A agulha arranha o fim do disco. Daí eu lembro daquele dia que eu te disse que tinha feito uma bossa. E que cantei pra ti num silêncio tão triste... Perto de uma praça. Não parecia saudade, parecia um dramalhão mexicano versão Copacabana. Mas tu achou aquilo o máximo. Aí eu canto como se tu estivesse do meu lado “Só me deixa dizer que fica um sorriso pro fim, encore, encore, paris je te aime.” Só depois disso eu consegui ver Paris tão distante, longe, com um oceano no meio. E que tu não estavas mais aqui. E que tu não voltaria. Mesmo que voltasse.

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That 70’s show

D.I.R.A-

show

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Quando a gente vê ódio nos olhos dos filhos pela primeira vez é que a gente descobre que eles cresceram. Ódio é uma coisa tão humana e quando a gente é capaz de odiar já perdeu todo encanto da infância.

Foi triste me deparar com a realidade de ver a minha criança que um dia foi tão minha, tão doce, ser capaz de cortar nossos laços de afeto, simplesmente, porque se sentiu contrariada. Claro que as coisas se ajeitaram. O dia passou, os ânimos se acalmaram e o amor falou mais alto. Mas a imagem da minha criança com o dedo em riste e com o olhar inquisidor ficou guardado no fundo da memória.

A vida vai passando e a gente vai se adaptando a ideia de que não temos mais controle sobre aquilo que geramos. Cada resposta malcriada, cada ligação não atendida, cada careta naqueles momentos em

que só queremos ensiná-los a serem pessoas de bem, nos mostra que não temos todo o controle sobre aqueles que um dia julgamos ter. E quem um dia foi referência de vida, hoje não passa de uma obrigação enfadonha nas tardes de domingo.

Hoje completo 70 anos e fazendo uma análise minuciosa da minha relação com o meu filho, sinceramente, não sei onde errei. Tudo que fiz foi com muito amor. Cada gesto, cada toque, tudo. Tinha amor até nas horas das brigas, das broncas. Não consigo me culpar pela nossa relação ter chegado ao ponto que chegou.

Quando olho para os lados e me vejo na compania destes distintos senhores com as suas camisas mal cortadas, fétidas e amareladas dialogando sobre uma vida que deveria ter sido e não foi. Morando neste palácio insalubre, entregue as baratas,

sob os cuidados de uma “criadagem” porca e mal educada. Tenho certeza que Deus me esqueceu e o Diabo deve estar se divertindo as minhas custas.

Eu merecia muitas coisas, mas não merecia chegar aos 70 anos vivendo neste inferno. No abandono. Sem carinho, sem afeto e sem o mínimo de dignidade. Aquela imagem da minha criança, que eu amei desesperadamente, com ódio no olhar, que ficou guardada no fundo da memória, era o prenúncio de que aquele anjo era o demônio e que ia me levar à perdição.

Mas a vida dá muitas voltas. Por isso, rezo todos os dias para que os meus netos saibam retribuir a altura todo o amor e a viagem que vão ganhar para a Disney no final do ano do desgraçado do meu filho. Amém.

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Quinto Andarmyspace.com/quintoandar-

necessitado e obcecado, contra todo o pecado.sou iluminado, deus mostrou o caminho eu entendi o recadoé o que veremos, pois tudo que queremos são bens terrenos venenosconsomem a vida e nem terrenos teremos e nem momentos serenos, mas que bons homens seremos

passamo a vida em guerra, mas foi a paz que vencemos, querendo cama, cigarro, garrafa de cana roupas e grana e sexo e dois minutos de fama e 70 anos na lama, como a vida te engana.

10 minutos fodendo os outro em um segundo se dana.é certo, que nem quem não conseguiu mas teve bem pertosó não foi esperto o bastante, pra estar de

olhos abertosesquece o cetro em pé, tá sentado no trono.olha o planeta que tá na sua frente, porque ele ainda não tem donoe trabalhe sua vida inteira por isso e depois perca tudo no sono porque escuta tudo no estereo, mas processa tudo no mono.

tem um martelo e um prego sem emprego na sua cidade ou esmaga ou esmagado, passando necessidade.sou um refém da vida, e vou morrer um refém que sabe que o martelo só faz encravar o prego na sociedade.que se fodam as verdades, isso só o que muitos sabem e sabem apenas metade, a mente poucos a abrem e quando abrem é tarde, é igual o navio que parte os corformados morrem de infarto, ao 50 de idade.

A 1 Pas-so do Parai-so

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Júlia Rosés-

Tenho uma lista de coisas pra mandar pro conserto. As coisas por aqui quebram muito rápido, estragam, se desfazem no chão. Talvez eu não seja cuidadosa, ou só não tenha sorte mesmo.

Eu tenho muitas coisas pra mandar para outra pessoa arrumar, porque delas não entendo nada. Também me sinto um pouco quebrada e fico pensando na possibilidade de haver alguém que possa me consertar, faço graça comigo mesma e me imagino marcando hora com o sujeito: “tenho um coração arranhado e bem amassado, será que dá pra formatar ou algo assim?”, depois me lembro que alguns consertos custam caro e então me pergunto se a minha manutenção seria complicada ou se o custo-benefício pra ter um coração novo em folha valeria a pena.

Minhas coisas tem conserto, posso comprar outra para pôr no lugar, deixando

de lado o possível apego emocional que tinha com o objeto, mas o meu coração? Não senhor. Sou muitíssimo apegada a ele, desse jeito torto que ele é, do modo que os outros o deixaram. E mesmo que tenha conserto, tenho certeza que não vou cruzar por um anúncio em um poste que avise aos corações quebrados dessa cidade uma cura.

“Conserto Gaita”, mas a minha gaita não tem conserto moço, já me acostumei com o som que dela sai assim, meio estranho, marcado pelos outros, alguns tons acima do normal, sem esperança de que um dia volte à afinação original.Eu demorei, mas olha, já estou até aprendendo a fazer um som bonito e sei que tem gente que gosta de ficar pertinho pra escutar. De todas as coisas que eu tenho por aqui que andam estragadas, o meu coração eu nunca mandaria pra arrumar.

//min-has coisastem con-serto//

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K.P-

Eu chamo de estrago quando sei que, na verdade, estrago é o que as coisas que não são de verdade causam. Eu tenho tamanho pra suportar o tamanho das coisas de verdade?

A felicidade chega em uma hora e eu ainda não consegui comer, escolher a roupa, arrumar minha franja, decidir se já posso amar. A felicidade chega em uma hora e vai quebrar meu gesso mas eu n”ao decidi se os ossos já estão bons o suficiente. Mas ela vai chegar com trinta martelos e eu vou estar esperando, forte e decidida, pra receber a porrada. E o ar que vai entrar. E mais dor. E o ar que vai entrar. E quem sabe então algum amor, já que fui corajosa. Quem sabe a felicidade seja a harmonia entre a dor e o ar

que entram pelos poros que temos coragem de abrir? E quem sabe só o amor seja o martelo possível? Mas e se no primeiro passo eu me quebrar inteira? E se eu forçar e acabar pra sempre sem conseguir andar de novo? Eu tenho medo que você seja um caminhão de luz que me esmague e me cegue na frente de todo mundo. E u tenho medo de ser um saquinho frágil de bolinhas de gude e de você me abrir. E minhas bolinhas correrem cada uma para um canto do mundo. E entrarem pelas valetas do universo. E eu nunca mais conseguir me juntar do jeito que sou agora. Eu tenho medo de você abrir o espartilho superficial que aperto todos os dias pra me mantes ereta, firme e irônica. Minha angústia particular que me faz parecer segura.

EU tenho medo de você melhorar minha vida de um jeito que eu nunca mais possa me ajeitar, confortável, em minhas reclamações. Eu tenho medo da minha cabeça rolar, dos meus braços se desprenderem, do meu estômago sair pelos olhos. Eu tenho medo de deixar de ser filha, de deixar de ser amiga, de deixar de ser menina, de deixar de ser estranha, de deixar de ser sozinha, de deixar de ser triste, de deixar de ser cínica. Eu tenho muito medo de deixar de ser.

Preciso terminar esse texto. Mas eu tenho medo, sobretudo, de terminar esse texto. Sobre o que eu vou escrever se a felicidade for melhor do que esperar por ela?

ES-TRAGO

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Ele entendeu que sonho era uma palavra preconceituosa,a cerca de uma realidade diferenciada, concebida por certos resignados,limitados por percepções mundanas.

Não entendia contrapontos, mas e poréns.Porque tentavam enganá-lo fazendo achar que não podia fazertudo o que quisesse.

Hoje, ele mora na lua, cercado por um punhado de sóis,passa o dia voando em volta de planetas.Cada dia, um universo.

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todos somos deusesbasta saber encontrar-se em sie fazer valer nosso próprio reinosaber reinar sobre nosso corponossos atos, nossa alma e nossa mentesomos o infinitosomos capazes de tudobasta aceitar que não existem limitese que se existem, foram criados por nós mesmose só nós mesmos, temos o poder de destruí-losafinal, podemos tudotodos somos deuses.”

Kilary Burtet-

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Lembro daquela vez que eu contei uma piada no jantar em família. Ao ver meu pai e mãe rirem com vontade pensei:Sorrisos são poesia, não são?É, acho que são.

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Me pregunto si los fumadores prestan atención para ver dónde surespiración va después de exhalar.

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Os livros jamais serão feitos de acaso. Este que por sua vez sequerdepende de ações humanas. Está localizado no vasto infinito além doconhecimeto. E o livro, a escrita, consequentemente, abaixo dele.

Felipe Vicente-

Nossos corpos foram encontrados juntos,Estavam escondidos no mesmo lugarAcidentalmente na mesma cama,No meio daquela noite

Tocando dedos, mãos, corpoAmbos procurando, esperando o amorpor se fazer acontecer

Então que esta foi a razão de acontecerNos deixamos levarNão pelo amor, masPelo engano um do outro

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O par de asas vem acompanhado da liberdade.

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O infinito dos meus pensamentos nunca couberam e jamais caberão no mundo estritamente limitado das palavras.

In-sight

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