Pyrgopolynices e Julius Caesar

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O artigo compara as peças Miles Gloriosus, ou O Soldado Fanfarrão, de Titus Maccius Plautus e Júlio César, de Shakespeare, com foco no auto-engano dos personagens principais

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PYRGOPOLYNICES, DE PLAUTUS, E JÚLIO CÉSAR, DE SHAKESPEARE:O AUTO-ENGANO DO FANFARRÃO E DO HERÓI1

Valéria Moura Venturella2

A comédia de costumes Miles Gloriosus, ou O Soldado Fanfarrão, de Titus Maccius

Plautus, foi escrita por volta do século III a.C.. Pyrgopolynices, o personagem que dá nome

à história, é um capitão mercenário grego, um líder militar cuja alta patente permite que faça

parte do serviço de recrutamento de novos guerreiros para o Rei Seleucus.

Egocêntrico e orgulhoso, ele fala sem pudor ou discrição de suas conquistas

militares e de seu sucesso com as mulheres. Vaidoso, ele se torna presa fácil de

bajuladores e também de traidores que fingem admiração e subserviência. O soldado

também se mostra calculista e cruel, e não hesita em usar de artimanhas para atingir seus

objetivos, como as que usou para se apossar de Philocomasium, a cortesã que compartilha

sua casa.

A constante e exagerada adulação que o parasita Artotrogus dirige ao soldado

adiciona humor à história e também auxilia na caracterização do personagem. Quando

Artotrogus fala à platéia em seu primeiro aparte (19-23), ficamos sabendo que as honras e

glórias militares de Pyrgopolynices não são verdadeiras, e que o soldado não passa de um

bravateiro a quem Artotrogus adula em troca de comida.

Apesar da suposta atração que o soldado exerce sobre as mulheres, Philocomasium

está apaixonada por Pleusicles, um jovem ateniense que se instala na casa vizinha para

tentar recuperar sua amada com o auxílio de seu anfitrião Periplectomenus e de seu antigo

servo Palaestrio, que agora trabalha para Pyrgopolynices. O papel de Pyrgopolynices na

história, assim, é o de obstáculo ao romance de Philocomasium e Pleusicles.

Manipulado por seu escravo Palaestrio – que age motivado pela promessa feita por

seu antigo senhor de que será libertado – Pyrgopolynices se convence de que a esposa de

seu vizinho Periplectomenus – que vive a seu lado por muitos anos e cuja esposa ele nunca

viu – está apaixonada por ele. Acreditando que poderá obter mais satisfação com a vizinha,

Pyrgopolynices concorda em libertar Philocomasium para poder viver o novo romance.

Orientado por Palaestrio, ele invade a casa vizinha, submentendo-se, assim, aos castigos

morais e físicos que recebe.

Ao não oferecer qualquer resistência à punição física que recebe, Pyrgopolynices

revela sua covardia. Ao gritar que já apanhou o bastante (1406), ele evidencia o oposto da

1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Tópicos de Narrativa, ministrada pela Profa. Dra. Regina Zilbermann no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de março a julho de 2005.2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre e professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.

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coragem bravateada no primeiro ato da peça. Seu ridículo se confirma quando, ante a

ameaça de ser castrado com uma faca de cozinha por Cario, o cozinheiro, ele concorda em

pagar uma grande quantia em dinheiro para não receber tal pena.

À medida que a história progride, Pyrgopolynices passa de um altivo militar grego –

acostumado à bajulação e ao poder, comandante de um séquito de criados e de soldados

mercenários – a um submisso seguidor das ruidosas ordens do escravo Palaestrio: “Eu lhe

obedeço”, diz ele a seu servidor (1129). A espada do soldado (mostrada no primeiro ato) e a

faca do cozinheiro (no último ato) conectam tematicamente o início e o final da história,

mostrando a decadência do soldado fanfarrão. Do mesmo modo como Pyrgopolynices

personificava sua arma no início da história, Cario fala de seu utensílio como “sedenta já por

tempo suficiente pelo gosto do sangue da barriga deste bastardo” (1398).

O soldado que se exibia por poder ter todas as mulheres que quisesse se vê, ao final

da história, sem companheira. Acostumado a ostentar seu poder e sua fortuna, vê sua

reputação destruída pelas artimanhas dos amantes, de seu servo e de seu vizinho. A ele só

resta lamentar o destino que lhe coube. No final da história, Pyrgopolynices concorda com

seu servo, que afirma que se todos os adúlteros recebessem o mesmo tratamento, haveria

menos adultérios no mundo, um final que deve ter confortado a audiência da época.

Júlio César, de Shakespeare, foi escrita por volta de 1599. A história se localiza em

Roma, em 44 a.C. (BOYCE, 1990), quando a cidade era a capital de um império que se

estendia das Ilhas Britânicas ao Norte da África e da Espanha ao Golfo Pérsico. O

personagem-título é um respeitado general e senador romano. Ele é admirado pelo povo

como um deus, amado por sua esposa e por seus amigos e temido por seus inimigos, que

chegam à conclusão de que apenas sua morte pode interromper sua trajetória de glórias

rumo ao poder absoluto de Roma.

A história inicia com a entrada triunfal de Júlio César na cidade, após ter vencido no

campo de batalha um importante e temido rival, o General Pompeu. Diante da reação do

povo à sua presença, os senadores romanos temem que ele tenha se tornado poderoso

demais e queira de fato se tornar o imperador de Roma, que era, na época, uma república.

Mesmo seu filho adotivo, Brutus, teme que Júlio César queira se tornar um ditador, embora

ele tenha três vezes recusado a coroa de Roma diante de um povo que o aclamava como

seu líder.

Júlio César, inebriado pela idealização e mesmo idolatria que o povo dirige à sua

imagem, parece confundir o ícone público com sua vida privada, chegando a acreditar que a

força de sua figura pública imortal e onipotente tivesse tornado eterno também seu corpo.

Ignorando as profecias (I.ii.19 e I.ii.25) que ouve, os sonhos premonitórios de sua esposa, e

mesmo os conselhos dos cidadãos que o admiram, César insiste em comparecer ao senado

no dia de seu assassinato, não por temer ser chamado de covarde caso deixe de ir, mas por

esperar que os senadores tenham decidido coroá-lo imperador de Roma.

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Júlio César se configura como o herói trágico descrito por Aristóteles em sua Poética:

em primeiro lugar, ele é representado como um homem melhor do que os comuns: corajoso,

vitorioso, admirado, temido. Em segundo lugar, é “uma pessoa que não é preeminentemente

virtuosa ou justa, mas cuja infelicidade lhe é trazida, não por vício ou depravação, mas por

algum erro de julgamento por parte de alguém que goza de grande reputação e

prosperidade” (ARISTOTLE, 1971, p. 687). Vítima de sua própria vaidade e ambição, mas

também da traição dos senadores romanos, ele cai da situação de militar vitorioso no início

da história a vítima indefesa de uma conspiração que envolvia seus assessores e mesmo de

seu bom amigo e confidente Brutus.

O final trágico do herói, porém, não significa o fim do mito que cerca sua figura. Já

durante seus funerais, quando Antônio lê seu suposto testamento, em que ele lega dinheiro

a todos os cidadãos e torna públicos seus jardins particulares, o povo se revolta contra os

conspiradores que assassinaram um homem bom e generoso. Seu assassinato e a

inexistência de um líder à sua altura levam Roma à guerra civil e ao caos.

A fé de Júlio César em sua própria eternidade acaba se confirmando quando Brutus

atribui a seus poderes os infortúnios que se abatem sobre ele e Cassius (v, iii). A aura

mística do grande senador romano paira sobre os eventos finais da história e, quando

Octavius assume o poder de Roma e o título de “César”, sua imortalidade se estabelece, o

que parece vingar seu legado e alentar o público.

Pyrgopolynices e Júlio César são personagens opostos um ao outro. Embora

Pyrgopolynices tenha sido provavelmente inspirado em figuras públicas do tempo de

Plautus, ele é um personagem criado com a intenção de desconstruir a imagem gloriosa dos

militares da época e de fazer o público rir de suas próprias instituições. Já Júlio César é uma

figura histórica cuja trajetória é bem documentada tanto por ele mesmo quanto por

historiadores de todos os tempos, e o tratamento dado por Shakespeare a sua figura é

respeitoso e reverente. Pyrgopolynices, apesar de suas ruidosas bravatas, não é um herói, e

a manutenção de sua reputação depende da bajulação insincera dos parasitas que o

cercam. Júlio César, por sua vez, é um militar vitorioso, merecedor das honras e

homenagens que o povo lhe dirige.

As representações de Pyrgopolynices, de Plautus, e Júlio César, de Shakespeare, no

entanto, podem ser aproximadas em alguns aspectos. Ambos os personagens sofrem da

soberba, que os fazem se ver como pessoas melhores do que na verdade são, e que os

cegam para os perigos que os cercam. Vítimas de suas vaidades, ambos são mal-

orientados por pessoas em que deveriam poder confiar, e são traídos porque essas pessoas

tinham interesses pessoais mais elevados. Enquanto o escravo Palaestrio operava seus

truques em troca da sua liberdade prometida por seu antigo senhor, os senadores romanos

assassinaram Júlio César em busca do poder político de Roma.

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Tanto Pyrgopolynices quanto Júlio César, assim, foram manipulados, enganados e

sofreram duros castigos, embora não tenham cometido qualquer crime grave. Enquanto a

caracterização negativa do soldado fanfarrão impede que nos compadeçamos de seu

destino e faz com que desejemos que ele seja punido no final da história, a representação

digna do general romano faz com que nos revoltemos com seus traidores, e desejemos a

vingança de sua memória.

Cada uma a seu modo – uma por meio do ridículo, e outra por meio do terror e da

piedade – as duas obras nos falam da vacuidade e da transitoriedade das conquistas

humanas, sejam elas fictícias ou reais, e das ameaças decorrentes de nossa crença

exagerada no poder e na permanência que as glórias presentes parecem nos conferir.

Ambos os personagens, o fanfarrão e o herói, falharam e foram punidos por excesso de

auto-confiança e por falta do exercício da auto-consciência e da reflexão sobre a realidade a

seu redor.

Edgar Morin (1997) afirma que lutar contra nossa tendência para o auto-engano é

uma das tarefas de cada ser humano que procura encontrar um lugar mais autêntico para si

mesmo no mundo. Tentar vencer nosso egocentrismo, através do auto-exame e da

instrospecção, é também buscar uma compreensão mais ampla e mais profunda de nós

mesmos e do que nos cerca, uma prática que, em última instância, nos auxiliaria a ler a

realidade com mais precisão e a refletir sobre nossas potencialidades e limitações. Embora

Pyrgopolynices e Júlio César não tivessem condições de prever as ações de seus traidores,

talvez não tivessem sido presas tão fáceis se tivessem exercitado uma reflexão mais

profunda a respeito de seu verdadeiro lugar no mundo e na história.

REFERÊNCIAS:

ARISTOTLE. On Poetics. Translated by Ingram Bywater. In: HUTCHINS, Robert Maynard (ed.). Great books of the Western world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1971.

BOYCE, Charles. The Wordsworth dictionary of Shakespeare. New York: Wordsworth Reference, 1990.

MORIN, Edgar. Meus demônios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

PLAUTUS, T. Maccius. Miles Gloriosus: or the braggart Captain. [On line]. Disponível em: <http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0103&layout=&loc=&query=toc> [Junho, 2005].

SHAKESPEARE, William. Julius Caesar. London: Penguin Popular Classics, 1994.