QHELE JEMIMA PINHEIRO DE MELO BARROS TV KIRIMURÊ … · de amor. Meu Inácio, parceiro, melhor...

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS DCH I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS PPGEL QHELE JEMIMA PINHEIRO DE MELO BARROS TV KIRIMURÊ (CANAL DA CIDADANIA) UM DESAFIO PARA PENSAR A TV PÚBLICA NO BRASIL Salvador-BA 2019

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – DCH I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS – PPGEL

QHELE JEMIMA PINHEIRO DE MELO BARROS

TV KIRIMURÊ (CANAL DA CIDADANIA)

UM DESAFIO PARA PENSAR A TV PÚBLICA NO BRASIL

Salvador-BA

2019

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QHELE JEMIMA PINHEIRO DE MELO BARROS

TV KIRIMURÊ (CANAL DA CIDADANIA)

UM DESAFIO PARA PENSAR A TV PÚBLICA NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Estudo de Linguagens, Departamento de Ciências

Humanas, da Universidade do Estado da Bahia, como

requisito para obtenção do grau de Mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Maria do Socorro Carvalho

Salvador-BA

2019

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CDD: 306

Barros, Qhele Jemima Pinheiro de Melo

TV Kirimurê (Canal da Cidadania): Um desafio para pensar a TV pública

no Brasil / Qhele Jemima Pinheiro de Melo Barros.-- Salvador, 2019.

132 fls.

Orientador(a): Profª Drª Maria do Socorro Silva

Carvalho. Inclui Referências

Dissertação (Mestrado Acadêmico) - Universidade do Estado da Bahia.

Departamento de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em

Estudos de Linguagens - PPGEL, Câmpus I. 2019.

1.Televisão Pública Digital. 2.Políticas públicas de radiodifusão. 3.TV

Kirimurê. 4.Canal da Cidadania.

B277t

FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Dados fornecidos pelo autor

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QHELE JEMIMA PINHEIRO DE MELO BARROS

TV KIRIMURÊ (CANAL DA CIDADANIA)

UM DESAFIO PARA PENSAR A TV PÚBLICA NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens,

Departamento de Ciências Humanas, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito

para obtenção do grau de Mestre.

Aprovada em 22 de abril de 2019.

Banca Examinadora:

Maria do Socorro Silva Carvalho (orientadora) __________________________________

Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo/ USP.

Universidade do Estado da Bahia.

Ricardo Oliveira de Freitas ___________________________________________________

Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Universidade do Estado da Bahia.

Miguel Jost Ramos __________________________________________________________

Doutor em Estudos de Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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Às minhas raízes Mainha, Painho, Nino e Lucas

E ao meu amor, Lucas Inácio.

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AGRADECIMENTOS

Tenho profundo apreço pelo sentimento de gratidão e acredito muito no ciclo de

energias da vida, movido pela troca, pelos encontros, frutos de cada sim e não acolhidos ao

longo do caminho. Ao poder dizer sim a esse projeto de pesquisa – que é também um

projeto de vida, venho de mãos dadas com muitas pessoas e quero que todas elas, de alguma

forma, se sintam abraçadas nesse texto.

Minha mãe, luz que me guia e quem sempre sonha meus sonhos comigo; meu painho,

fonte inesgotável de amor e incentivo; meu pequeno Hugo, que me ensinou a ser mãe e com

quem tanto aprendi a amar de maneira incondicional; Meu primeiro filho, Lucas, artista mais

talentoso que conheço, um espirito de luz bondoso, atencioso e exemplar para todos nós;

Minha voinha Nalva, que a seu modo me ensina tanto e sempre, e me envolve em seu manto

de amor. Meu Inácio, parceiro, melhor amigo, marido, peito acolhedor nas horas de

tormenta. Sem vocês, ora, que mar me restaria a navegar? Eu que nem sei nadar...

Socorro! Que poderia ser mesmo uma interjeição. Professora que admiro de tempos

outros, quando ainda uma menina graduanda, e que sempre me despertou tanta paixão pelo

audiovisual e respeito pela profissão de ensinar. Ah, Socorro, obrigada! Pela acolhida a esse

projeto utópico crítico (rs) – e por todos os que ainda virão. Por me guiar em tempos de

escuridão e navegar comigo, coração com coração, nesses mares turbulentos. Foi muito

melhor porque você me orientou, de verdade!

Miguel Jost e Ricardo Freitas, melhor banca! Abraço e agradeço pela leitura

cuidadosa, pelas ideias enriquecedoras e pelo mergulho nesse mar aberto dos Tupinambás.

Que chegue também o meu abraço a toda acolhedora equipe do PPGEL-UNEB.

Camila, a quem ainda devo chocolate por me salvar na inscrição da seleção. Danilo e Geysa,

por todo cuidado e respeito.

Meus amigos queridos, Lica, Ju, Lara, Wan, Elen, Ina, e todos que de perto ou de

longe incentivaram e vibraram. Quem foi que disse que pra estar junto precisa estar perto?

Aquele abraço bem apertado também para as novas amizades que ganhei no caminho,

Deni e Juli, queridas parceiras de tantos debates, dissensões, cafés, encontros, “Harry

Potters” e conversas positivas. Muito feliz por esse encontro na vida.

Isa Maria Trigo, amiga tão querida. Que teria sido de mim sem o seu amor e

acolhimento? Nenhuma palavra será capaz de traduzir minha infinita gratidão.

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Tiago Sampaio e Josenildes de Oliveira, incentivadores e apoiadores essenciais, sem

os quais esse processo não teria sido possível. Foi tão importante poder contar com vocês!

Professora e amiga Nadia Virginia, poeta de muitos encantos, por todos os seus

conselhos durante a seleção do mestrado.

Colegas da Assessoria de Comunicação (Ascom) e da Assessoria Especial de Cultura e

Artes (Ascult) da UNEB, em especial a minha equipe da TV UNEB, paciente apoio em

tantas ausências.

Anderson Soares Caldas e Aline Clea Souza, tão atenciosos e disponíveis, agradeço

pela cessão dos documentos e pelos longos diálogos. Também aos demais da equipe

Kirimurê, em particular na pessoa de Dina Lopes.

Pola Ribeiro, sem o qual talvez eu não conseguisse entender tão bem os complexos

projetos do Canal da Cidadania e da TVK, além de acreditar neles! Muito obrigada!

Aos professores e colegas pesquisadores da TV pública, ainda tão esquecida e

marginal, obrigada pela rede de apoio.

E aos que acreditam em uma comunicação mais justa, democrática, descentralizada,

participativa e com a cara de todos e de qualquer um, deixo o meu melhor abraço.

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Posso desejar, mas sem ter muitas ilusões, que minhas análises

possam contribuir para dar ferramentas ou armas a todos aqueles

que, enquanto profissionais da imagem, lutam para que o que poderia

ter se tornado um extraordinário instrumento de democracia direta

não se converta em instrumento de opressão simbólica.

(Pierre Bourdieu, 1997, p.13)

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RESUMO

Esta dissertação se propõe a discutir e analisar a experiência da TV Kirimurê (TVK), a partir

de suas potencialidades e limitações, como nova cultura televisiva para o campo da

comunicação pública no Brasil. Inscrita no projeto do Sistema Brasileiro de Televisão

Digital (SBTVD), a TVK é a faixa dedicada à sociedade civil do Canal da Cidadania de

Salvador-BA e se configura como a primeira em funcionamento no país. Sua existência se

fez possível através da outorga concedida à TV Educativa da Bahia, em 2014, para dividir o

seu canal digital em quatro faixas, resultado de um complexo processo para regular a

multiprogramação, fruto da digitalização da tevê nacional. Com base na metodologia de

Estudo de Caso e em ampla revisão bibliográfica, ao analisar o tripé gestão, financiamento e

programação, associados às tecnologias da comunicação e informação e à cultura da

convergência, busca-se entender como as políticas públicas nacionais, com ênfase nos

processos iniciados pelo Ministério da Cultura, em 2003, podem romper com o sistema

televisivo comercial hegemônico e promover novos caminhos a contrapelo para a

radiodifusão pública, democratizando os meios e os processos produtivos e destacando a

diversidade baseada na valorização das culturas locais. Para tanto, inspirada pela ideia de

navegações, que se liga à origem tupinambá do nome Kirimurê, a pesquisa é conduzida em

rotas que passam pelas discussões sobre a importância de debater a TV pública para

democracia e a cultura do Brasil; segue navegando nos processos de digitalização da tevê e

seus desdobramentos nos âmbitos nacional e local, e nas inaugurações trazidas pelo primeiro

Canal da Cidadania do país, em 2016; até alcançar a análise da TVK, considerando novas

perspectivas e velhos desafios desta tentativa de ocupar o espaço da televisão terrestre

aberta, gratuita e digital, como uma reversa invasão indígena em território da colônia.

PALAVRAS-CHAVE: Televisão Pública Digital. Políticas públicas de radiodifusão. TV

Kirimurê. Canal da Cidadania.

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ABSTRACT

This master thesis proposes to discuss and analyze the experience of TV Kirimurê (TVK),

from its potentialities and limitations, as a new television culture for the field of public

communication in Brazil. Registered in the project of the Brazilian Digital Television

System (SBTVD), TVK is the channel dedicated to civil society of the Canal da Cidadania

of Salvador-BA and is configured as the first in operation in the country. Its existence was

made possible through the grant granted to TV Educativa da Bahia in 2014 to divide its

digital channel into four bands, the result of a complex process to regulate

multiprogramming, the result of the digitization of national TV. Based on the methodology

of the Case Study and a wide bibliographic review, when analyzing the tripod management,

financing and programming, associated with communication and information technologies

and the convergence culture, it is seeking to understand how national public policies, with

emphasis on processes started by the Ministry of Culture in 2003 can break with the

hegemonic commercial television system and promote new paths to public television

systems, democratizing the media and the productive processes and highlighting the

diversity based on the appreciation of local cultures. For this purpose, inspired by the idea of

sailing, linked to the Tupinamba origin of the name Kirimurê, the research is conducted in

routes that pass through the discussions on the importance of discussing public TV for

Brazilian democracy and culture; keep navigating in national and local digitalizacion

processes of TV, until achieve TVK’s analysis, considering new perspectives and old

challenges of this attempt to occupy the space of open terrestrial television, free and digital,

as a reverse Indian invasion in territory of the colony.

KEYWORDS: Digital Public Television. Public broadcast policies. TV Kirimurê. Canal da

Cidadania.

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LISTA DE ABREVIATURAS

Abert Associação Brasileira de Emissoras de Rádio de Televisão

ABEPEC Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais

Acerp Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto

Anatel Agência Nacional de Telecomunicações

APCBA Associação de Produtores e Cineastas da Bahia

ATSC Advanced Television Systems Committee

BBC British Broadcasting Corporation

CF Constituição Federal da República do Brasil

CONFECOM Conferência Nacional de Comunicações

CPqD Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações

CREA Conselho Regional de Engenharia e Agronomia

CTB Código Brasileiro de Telecomunicações

DVB Digital Video Braadcasting

DIP Departamento de Informação e Propaganda

DOE Diário Oficial do Estado

DOU Diário Oficial da União

DOC TV Programa de Fomento a Produção Audiovisual e Teledifusão do

Documentário Brasileiro

EBC Empresa Brasil de Comunicação

ENEM Exame Nacional do Ensino Médio

ESSO ExxonMobil Corporation

FCBTV Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa

FNDC Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

Funttel Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações

Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação

IRDEB Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia

ISDB Integrated Service Digital Broadcasting

ITU International Teleccomunication Union

FEME Organização Social Filhos do Mundo

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MEC Ministério da Educação

MinCom Ministério das Comunicações

MinC Ministério da Cultura

MPF Ministério Público Federal

MSPB Movimento dos Povos Brasileiros

ONU Organização das Nações Unidas

PRODAV Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro

PNO Plano Nacional de Outorgas

PRONTEL Programa Nacional de Teleducação

PSB Public Broadcasting Service

PSOL Partido Socialismos e Liberdade

PT Partido dos Trabalhadores

Radiobrás Empresa Brasileira de Comunicação

RNTP Rede Nacional de Televisão Pública

RNTPD Rede Nacional de TV Pública Digital Terrestre

SAV Secretaria do Audiovisual (MinCom)

SBTVD Sistema Brasileiro de Televisão Digital

SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas

SET Sociedade de Engenharia de Televisão e Telecomunicações

SETRE Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Estado da Bahia

Sepromi Secretaria de Promoção e Igualdade Racial da Bahia

Siacco Sistema de Acompanhamento de Controle Societário

SPR Serviço Público de Radiodifusão

TVK TV Kirimurê

TVE BA TV Educativa da Bahia

UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina

UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana

UHF Ultra High Frequency

UNEB Universidade do Estado da Bahia

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

Univesp TV Universidade Virtual do Estado de São Paulo

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: GRANDE MAR ABERTO DOS TUPINAMBÁS .................... 12

2. AINDA É PRECISO FALAR SOBRE TV PÚBLICA NO BRASIL?................. 24

2.1 TV PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DIRETO PARA DEMOCRACIA ........... 29

2.2 A TELEVISÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA DE CULTURA ............................. 38

3. NAVEGANDO NAS ROTAS KIRIMURÊ ........................................................... 45

3.1 ROTA NACIONAL: TV DIGITAL E MULTIPROGRAMAÇÃO........................... 47

3.2 ROTA LOCAL: TVE BA DIGITAL E O PRIMEIRO CANAL DA CIDADANIA

DO BRASIL ..............................................................................................................

57

3.3 ROTA INAUGURAL DA KIRIMURÊ: PORQUE NAVEGAR É PRECISO .......... 64

4. TVK, UMA TELEVISÃO A CONTRAPELO ...................................................... 68

4.1 NOVAS PERSPECTIVAS, VELHOS DESAFIOS ................................................... 69

4.1.1 Gestão aberta e participativa ............................................................................ 74

4.1.2 Controle e independência financeira ................................................................ 85

4.2 CONTEÚDO “PARA SE VER, OUVIR E PENSAR” 93

4.2.1 Da TV Escola à TVT.......................................................................................... 98

4.2.2 Conversa de Preta e Simões Filho no ar .......................................................... 100

4.2.3 Candomblé e Seus Caminhos e Catado de Cultura .......................................... 104

4.3 A TELEVISÃO PÚBLICA DO FUTURO? .............................................................. 108

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 117

REFERÊNCIAS 121

APÊNDICE: ORGANIZAÇÃO DE DOCUMENTOS, REPORTAGENS E

VÍDEOS SOBRE A TV KIRIMURÊ.

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1. INTRODUÇÃO: GRANDE MAR ABERTO DOS TUPINAMBÁS

É muito bom assistir ao nascimento de uma TV cidadã em Salvador,

inclusive com caráter pioneiro no Brasil inteiro, porque nós estamos em um

momento de mudança de todos os parâmetros e de todos os valores que a

gente acreditou até agora, não só no país, mas no mundo, e especialmente na

área do audiovisual. Esse modelo de televisão é o que tem a ver com o futuro

da TV, e ele já é o presente, na verdade. O futuro é por ai, e ele está junto

com o desenvolvimento da cidadania (Geraldo Moraes, 2018) 1.

Em fala para um vídeo de divulgação da TV Kirimurê, na ocasião do seu recente

lançamento, em 2016, o cineasta Geraldo Moraes (2018) enfatiza a importância do

surgimento de um canal de televisão que coloca a cidadania como prioridade. Para o campo

das políticas para audiovisual no Brasil, nasceu também a oportunidade de expandir o debate

sobre os princípios da cidadania, o que inclui a premissa do consumo cultural (CANCLINI,

2006), tanto quanto do acesso a direitos fundamentais, como guarda a Constituição Brasileira.

De maneira ampliada, essa TV cidadã que prevê a participação direta da sociedade

civil em toda sua estrutura – desde a gestão administrativa até as decisões sobre a grade de

programas – abarca também a perspectiva de uma cidadania de apropriação, com a ocupação

popular de espaços sociopolíticos e culturais decisórios. É, portanto, a oportunidade de

promover a diversidade cultural no país e, como princípio fundamental para alcance da

cidadania, viabilizar a liberdade de expressão e a igualdade.

Ao habitar o espaço midiático, e mais especificamente o hegemônico ambiente da TV

aberta, um canal cidadão se anuncia como possibilidade para exercício transversal da

cidadania. Isso por compreender os direitos individuais e coletivos e descontruir a relação

desigual entre as redes televisivas e seu espectador, democratizando a emissão nos meios de

comunicação e equalizando a participação do espectador, que prioritariamente transita na

esfera televisiva como consumidor, e muito pouco como cidadão (CANCLINI, 2006).

Nesse contexto, a TV Kirimurê (TVK) é a primeira faixa de Canal da Cidadania

gestada pela sociedade civil organizada a ser inaugurada no Brasil, e sua história, em parte, se

confunde com a própria história do projeto nacional de Canal da Cidadania. Por isso, olhar

para Kirimurê ajuda a compreender as possibilidades e desafios de uma proposta de TV

Pública e cidadã no país.

1 Vídeo disponível em https://tvkirimure.tv.br/o-modelo-da-tv-kirimure/. Acesso em: ago. 2018.

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O nome Kirimurê significa grande mar aberto dos tupinambás, e sua origem vem da

lenda de uma ave que partiu de terras muito distantes e voou incansável, dias e noites sem

parar, até alcançar o litoral de uma terra imensa e bela, onde pousaria. No entanto, cansada do

grande esforço empreendido na longa viagem, a ave não resistiu e caiu morta. No choque

contra o solo, os Tupinambás acreditavam que suas longas e alvíssimas asas transformaram-se

em praias de areias muito brancas, e o seu coração, ao bater na terra, rachou-a abrindo uma

profunda e grande fenda que logo foi tomada e irrigada pelas águas do mar. O sangue que

jorrou da ave lendária inundou e fecundou as margens daquela enorme baía, e assim nasceu a

Kirimurê, esplêndida e generosa, de onde os Tupinambás retiravam os alimentos que

precisavam para sobreviver. Só depois veio o homem branco e tomou posse de Kirimurê,

rebatizando-a de Baía de Todos os Santos 2.

Sintonizada na faixa 10.2 da programação terrestre aberta, na cidade de

Salvador/Bahia e em parte de sua região metropolitana, a Kirimurê está inscrita no projeto da

TV digital brasileira e tem base na multiprogramação, que possibilita a divisão do que antes

era apenas um único canal analógico agora em quatro faixas digitais. Sua gestão é prevista

para ser exercida por um grupo da sociedade civil organizada, que será igualmente

responsável por sua programação e pela busca de formas de financiamento. Não à toa Geraldo

Moraes chama de futuro esse modelo de televisão, ele é resultado de uma série de

transformações técnicas e conceituais no modus operandi da TV aberta nacional.

A primeira vez em que o Canal da Cidadania aparece na legislação é no Decreto nº

5820, de junho de 2006, que cria o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD). Nesse

decreto, o canal aparece ainda sem regulamentação e destinado à exploração exclusiva da

União, descrito no artigo 13 como “canal para transmissão de programações das comunidades

locais, bem como para divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes

públicos federal, estadual e municipal”.

Tais proposições sofreram alterações até a publicação, em 2012, da Norma

Regulamentar do Canal da Cidadania, quando finalmente se estabelece que cada um dos 5.570

municípios brasileiros tenha a sua própria TV pública multiprogramada, e que duas das quatro

faixas sejam destinadas a transmitir conteúdo produzido pelas comunidades locais. Ratifique-

se que, embora muitos pedidos tenham sido realizados e mesmo algumas autorizações

concedidas, até dezembro de 2018 apenas a TVK desponta como faixa da cidadania em

2 Informações disponíveis no site da TV Kirimurê: https://tvkirimure.tv.br/. Acesso em: ago. 2018.

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funcionamento, um contexto limitado que chama atenção para a complexa estrutura de

divergentes interesses políticos e comercias para conduzir a radiodifusão nacional.

Além de um caso inédito de faixa da sociedade civil operando em um Canal da

Cidadania no Brasil, a TV Kirimurê é parte da realização do projeto de TV Pública que teve

seu grande expoente nas políticas públicas de comunicação e cultura durante a presença de

Gilberto Gil no Ministério da Cultura (2003-2008). Entre outras iniciativas, a gestão Gil, ao

liderar as discussões sobre a migração digital durante o Fórum Nacional de TVs Públicas,

defendeu a multiprogramação como estratégica para o campo público da tevê, sobretudo por

permitir maior representação da diversidade e por ser um meio para atender às necessidades

de conteúdos que contemplem as diferentes demandas da sociedade.

Um dos maiores desafios da televisão aberta do Brasil está exatamente em regionalizar

a programação e descentralizar os meios produtivos, e o caso do Canal da Cidadania baiano

parece apontar em uma direção que pode resolver parte desse problema. Baseado no processo

de digitalização tecnológica e estrutural, a proposta conjuga mudanças convergentes para

linguagens, técnicas e modelos de negócios na TV, e é também uma mostra das

potencialidades da TV digital para a comunicação pública, sendo “uma política que recoloca o

debate sobre o lugar contemporâneo do Estado no campo da cultura”, como afirma Albino

Rubim (2010a, p. 13).

Ante todas as dificuldades, o projeto da TVK pode ser comparado ao que Jesus

Martín-Barbero (2002) descreve como a necessidade de reconstrução do projeto público de

TV que – ciente das novas condições de produzir e oferecer conteúdo, das inovações

tecnológicas e da reconfiguração do telespectador – reconhece e expressa a diversidade

cultural do país, em todos os seus elementos regionais e intrínsecos, representando pluralidade

ideológica-política, e propiciando uma informação independente e inclusiva.

A história da TV no Brasil, e também em grande parte dos países da América Latina, é

marcada pelo privilégio do interesse publicitário e comercial, ainda que a concessão de TV

seja pública, portanto, concedida e regulada pelo Estado. De modo análogo à lenda Kirimurê,

tem-se a ocupação do espaço de radiodifusão baseado em um modelo colonizador, em que

grandes empresários se apropriaram das outorgas públicas concedidas pela União ao longo

dos anos e assim atuam desde então. Tal concessão, por lei, deveria ser disputada por toda

sociedade, por meio de instituições habilitadas legalmente, mas não foi o que se deu.

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O modelo comercial predominante distorce o conceito de público no contexto da

televisão brasileira, e faz parecer um negócio particular e privado aquilo que é, por natureza,

um locus de discussão sobre temas de interesse público e que deve, de acordo com Wilson

Gomes (2006, p.8), “como domínio da esfera pública, ser conduzido por agentes sociais”. De

tal modo, historicamente os cidadãos se mantem afastados tanto dos debates quanto da

ocupação dos canais de TV, limitados no exercício de seus direitos.

Na tentativa de ocupar o espaço da televisão terrestre3 aberta, gratuita e digital, o

Canal da Cidadania é como uma reversa invasão indígena em território da colônia. É um

movimento de abrir rotas para entrada de novas leituras audiovisuais sobre a tevê pública,

numa correnteza que carrega o desejo de mudança, e que, mais uma vez na história de

emancipação do Brasil, começa na Bahia. Com abrangência local, mais especificamente para

os lares da cidade de Salvador e parte de sua região metropolitana – municípios de Lauro de

Freitas, Simões Filhos e Ilha de Itaparica – a proposta conceitual da Kirimurê é ser, como

sintetiza seu slogan, uma TV para “se ver, se ouvir e se pensar”.

Omar Rincón (2002), ao tratar da centralidade da televisão, tendo-a como mídia do

século XX e local privilegiado da cultura e da sociedade contemporânea, defende que a TV se

converteu em parte fundamental da vida humana diária, como dispositivo intrínseco à forma

como as sociedades constroem o sentido do mundo. Ao ponderar sobre a necessidade da

existência da tevê pública nesse contexto, Rincón (2002) aponta também que já que a

televisão existe e não deixará de existir, pelo contrário parece ter cada vez uma presença mais

vital, é melhor começar a compreendê-la na sua ação social e no seu potencial comunicativo

para conseguir fazer dela um dispositivo mais próximo dos interesses sociais e culturais.

No âmbito acadêmico, principalmente entre as ciências sociais e políticas, as pautas

sobre o valor público da comunicação ganham maior evidência a partir da redemocratização

do país no período pós-ditadura militar, em especial com a Constituição Federal de 1988. O

Estado, por sua vez, passa a instituir práticas que foram desprestigiadas pelos interesses

neoliberais sobre a comunicação como direito e exercício da cidadania durante muitas

décadas desde o surgimento das mídias de massa, e então se discute um novo marco

regulatório e políticas públicas atentas aos meios de produção e às novas mídias.

3 Por televisão terrestre entende-se aquela que é transmitida a partir de um transmissor localizado na superfície

terrestre (de uma estação de TV) e recebida em um aparelho televisor que tenha uma antena. Para a TV digital

terrestre a lógica se replica: há um ponto, que é a torre, que emite um sinal aberto (não é criptografado) e gratuito

(qualquer pessoa com uma antena pode acessar) que cobre toda uma determinada área.

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Importantes organizações e coletivos que lutam pela democratização da comunicação

surgiram também nesse período. São exemplos o Fórum Nacional pela Democratização da

Comunicação (FNDC), em 1990, e o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, em

2003. Somente o FNDC agrupa mais de quinhentas entidades que se articulam para denunciar

e combater a concentração econômica na mídia brasileira, além dos obstáculos à consolidação

da comunicação pública e cidadã e das inúmeras violações à liberdade de expressão4. Um

considerável número de publicações entre manuais, relatórios e livros sobre temas da

comunicação pública e da democratização dos meios foram também produzidos, auxiliando

nas pesquisas que seguiram.

Assim como a dissertação aqui apresentada, muitos desses estudos encontram eco nos

conceitos de Nestor Garcia Canclini (2006) sobre democracia e cidadania. Entre outros

aspectos, Canclini discute sobre o exercício cidadão com base no consumo e nos modelos de

participação, confrontando os meios de comunicação e a participação coletiva em espaços

públicos. Também estudioso dos processos culturais e mediações, Jesus Martín-Barbero

(1997) discute que a televisão traz para o campo da comunicação um aprimoramento

qualitativo dos dispositivos ideológicos. Em uma “imagem plena da democratização

desenvolvimentista, a televisão ‘realiza-se’ na unificação da demanda, que é a única maneira

pela qual pode conseguir a expansão do mercado hegemônico sem que os subalternos se

ressintam dessa agressão” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p.249).

Pierre Bourdieu (1997, p. 23), grande crítico da televisão, chama atenção para o fato

de que a TV tem “uma espécie de monopólio sobre a formação das cabeças de uma parcela

muito importante da população”, e critica a ausência de oferta de informações pertinentes que

auxiliem o cidadão a exercer seus direitos democráticos. Juntas, essas discussões apontam

para a necessidade de tratar sobre os processos comunicativos, repensando o lugar dos

sujeitos sociais nos grandes meios de comunicação.

Sobre o tema da TV digital e seus desdobramentos, as tecnologias da informação e

comunicação e o surgimento da internet impulsionam um arco crescente de estudos no Brasil,

com abordagens que vão desde as análises técnicas dos softwares, middlewares e hardwares,

até a relação dessa nova tevê com as práticas educacionais e mudanças no comportamento

sociocultural do brasileiro. A grande expectativa de mudanças gerada em torno desse modelo

de televisão pode ser lida, entre outros, através do título que Fernando Crocomo (2007) dá ao

4 Dados disponíveis em http://www.fndc.org.br/forum/quem-somos/. Acesso em: set. 2018.

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seu livro: TV digital e produção interativa: a comunidade manda notícias; e até mesmo

mudanças nos processos educativos e para sala de aula, como previsto na análise de Nelson

Pretto (2007) sobre a TV digital como instrumento para um diálogo bidirecional e com papel

na dinâmica da inclusão sociodigital.

Surgem também leituras baseadas na cultura da convergência, termo cunhado por

Henry Jenkins (2009), teórico americano que pesquisa os cruzamentos entre as velhas e novas

tecnologias, e as coloca em diálogo com comportamentos humanos. Para tanto, o autor

discute importantes conceitos como o da inteligência coletiva, tratado por Pierre Levy (1998),

a revolução digital, considerando principalmente as discussões de Marshall McLuhan (1969),

além da cultura da participação e das narrativas transmídias.

As tecnologias disponíveis no modelo digital e os novos perfis de consumo permitem

que os cidadãos integrem o processo televisivo de maneira mais orgânica. Assim, nascem

pesquisas sobre um novo modelo de codificação e decodificação das mensagens, com uma

mediação menos autoritária, e também sobre a relação do cidadão com a tevê, como as

reunidas por João Freire Filho, em A TV em transição (2009), e por Michel Wolff, em

Televisão é a nova televisão (2015).

No contexto da cultura digital e ante uma revolução tecnológica que invade todo o

cotidiano da sociedade, a tevê permite navegações entre websites, homepages e gigabites,

como lembra Gilberto Gil em sua canção Pela Internet (1998), numa jangada que veleja um

mar de muitas oportunidades e desafios. Especificamente sobre a televisão digital, César

Bolaño e Valério Brittos (2007b), pesquisadores brasileiros contemporâneos, têm destaque

nas pesquisas sobre a TV do Brasil na era digital, tratando o fenômeno principalmente a partir

do campo teórico da economia política da comunicação.

Listar essas iniciativas coloca em evidência o aumento das frentes de pesquisa

científica sobre a TV nos últimos anos de Brasil democrático, com abordagens teórico-

metodológicas variadas, ao tempo em que também explica a predominância de referências

mais contemporâneas nesta dissertação. Importante destacar os debates pioneiros sobre

políticas de comunicação e cultura para TV no Brasil, conduzidos principalmente por Albino

Rubim (2010b), que aponta haver um razoável estoque de conhecimento sobre a televisão já

produzido, apesar de suas dimensões quantitativa e qualitativa não corresponderem ao lugar

essencial que ela adquiriu em nossa nação.

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A ênfase, no entanto, está no que pode ser considerado um número ainda mais escasso

de referências: as que tratam sobre a TV Pública no país. Isso se justifica principalmente pela

experiência nacional limitada e instável no que diz respeito a seu sistema público de

comunicação. Quando o tema é o Canal da Cidadania, um desdobramento da radiodifusão

pública digital, o número de estudos publicados é exíguo e todo esse cenário corrobora com a

escolha da TV Kirimurê como recorte para análise.

A TVK se inscreve em uma complexa estrutura política e conceitual, que abarca as

políticas públicas para a televisão e discussões sobre o conceito de comunicação pública.

Também revela a investida da TV Educativa da Bahia (TVE BA), ligada ao Instituto de

Radiodifusão Educativa da Bahia (IRDEB-BA), para obter autorização e multiprogramar,

dando oportunidade para abertura de outras quatro faixas digitais, entre elas a TV Kirimurê,

formando juntas o Canal da Cidadania.

A dissertação aqui apresentada se propõe a discutir como as políticas públicas voltadas

para a radiodifusão em vigor no Brasil, especialmente a partir da inclusão da TV Pública na

pauta da cultura, podem colaborar para o fortalecimento desse campo da comunicação. Busca

compreender as potencialidades da TV digital nesse cenário, com ênfase no desdobramento

do Canal da Cidadania, que abarca a multiprogramação e as multiplataformas, além de novas

estratégias para gerenciar e financiar um canal público de tevê.

Lançada oficialmente em 20 de novembro de 2016, a TV Kirimurê é um fenômeno em

andamento, ainda em construção na medida em que esta pesquisa decorre. Para o Brasil, ela

pode significar a inauguração de uma nova prática televisiva, concebendo um canal destinado

ao cidadão, como um espaço em que ele possa falar diretamente na grade da TV aberta. Seja

pautando “aquele velho baba que reúne jogadores do bairro” ou “a reunião da associação de

moradores de uma localidade”, como sugerem os apresentadores durante o programa

inaugural da TVK5, a Kirimurê ressignifica a cidadania na comunicação pública do país.

De tal modo, buscando explorar essas e outras possíveis transformações para a tevê,

inspirada no aspecto lendário do nome da TV Kirimurê, adota-se na presente dissertação uma

abordagem conduzida pela ideia de navegações, o que permite rotas entre os diversos temas

que a cercam. O processo metodológico tem base na revisão bibliográfica, que inclui as

discussões mais atualizadas sobre TV pública, TV digital e políticas de comunicação e de

5 Programa inaugural da TV Kirimurê na íntegra disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=HI3MoY2s4JY. Acesso em: jul. 2018.

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cultura no Brasil, além do estudo de caso, tratado a partir do conceito de Robert Yin (2010)

que o traz como uma “inquisição empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro

de um contexto da vida real, quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é

claramente evidente e onde múltiplas fontes de evidência são utilizadas” (YIN, 2010, p. 32).

Este estudo parte da hipótese que considera a TV Kirimurê como a possibilidade de

discutir um novo modelo de TV Pública no Brasil. Para a pesquisa, foram fontes

fundamentais os documentos elaborados pela TV Kirimurê (relatórios, regimento e projetos),

as leis, os decretos e os editais sobre o tema em âmbito nacional e local; os documentos

produzidos e publicados por entidades não governamentais que tratam o Canal da Cidadania,

além do suporte encontrado nas reportagens, vídeos e programas da TVK e sobre ela.

A diversidade de fontes revela o esforço para realizar uma investigação qualitativa e

aprofundada. O recorte temporal para análise tem marcos em 2003, quando são iniciados os

procedimentos para implantar a TV Digital6, segue para 2006, período em que o Canal da

Cidadania aparece nas leis de radiodifusão digital, e navega na direção da sua

institucionalização, por meio do Decreto 489 de dezembro de 2012. Segue para os anos de

2013, com a autorização das TVs Educativas estaduais para operarem a multiprogramação, e

2016, quando a TV Kirimurê vai oficialmente ao ar. A produção de conteúdo e os documentos

utilizados para análise aqui apresentada são considerados até dezembro de 2018.

No que tange a revisão bibliográfica, a base para investigar a TVK adota o conceito de

comunicação pública a partir do trabalho organizado por Omar Rincón, que resultou no livro

Televisão pública: do consumidor ao cidadão (2002), e reúne especialistas latino-americanos

para tratar a questão a partir das suas perspectivas nacionais7. Pautando aspectos mais centrais

dos sistemas públicos de televisão, as pesquisas ratificam a programação, o financiamento e a

gestão como fundamentais para caracterizar um modelo democrático de TV cidadã.

O livro também se propõe a “desenvolver propostas conceituais e projetar modelos

práticos para pensar, produzir, realizar, programar e consumir televisão pública” (MARTÍN-

BARBERO, 2002, p. 33). Dentre as propostas, destacamos a intenção de constituir uma TV

pública que simultaneamente agregue consumidores e cidadãos, sem opor ou sacrificar um ao

6 Embora tenha havido ampla discussão em meados da década de 1990, a TV digital teve início oficialmente no

Brasil através do decreto nº 4.901, de 26 de novembro de 2003, sendo implantada em 2006. Dados disponíveis

em http://www.sejadigital.com.br. Acesso em: jul. 2018. 7 Jesús Martin-Barbero (Colômbia), Germán Rey Beltrán (Colômbia), Diego Portales Cifuentes (Chile), Valerio

Fuenzalida Fernández (Chile), Nora Mazziotti (Argentina), Gullermo Orosco Gomez (México), Teresa Monteiro

Otondo (Brasil) e Omar Ricón (Colômbia).

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outro, e desse modo permitir que os atores sociais se expressem e representem por si mesmos,

ocupando campos importantes na construção do coletivo social.

O nascimento da Kirimurê também coloca em debate antigas questões, como a

diferenciação entre TV pública, estatal e comunitária, por exemplo, além das relações por elas

estabelecidas com o Estado, e nesse sentido, vale dizer que não existe um consenso sobre o

que definiria uma TV como pública no mundo. No entanto, sua diferenciação em relação à

TV comercial, com ênfase na autonomia, diversidade de conteúdo, participação popular e no

predominante interesse no cidadão e seus direitos, são interseções entre um conjunto de

debates sobre o tema, e foram esses os elementos buscados para caracterizar e analisar o

projeto do Canal da Cidadania e da TVK.

No processo, fez-se imprescindível apresentar a TV Kirimurê, já que ela ainda é uma

grande desconhecida do conjunto da sociedade e da academia, em particular. Em uma rápida

busca na internet, por exemplo, entre o pouco material encontrado, é possível localizar

questionamentos como “que canal é esse que transmite a TV Escola?”, ou “Não entendo o

porquê de criar outros canais quando nem mesmo a TV Educativa é assistida no Estado” 8.

Ratifica-se, portanto, a relevância de discutir a TVK, gerando bibliografia em uma espécie de

metalinguagem funcional, na qual um Canal que não pautado passa a ser pauta, porque não há

como a população ocupar ou mesmo questionar um espaço se sequer sabe que ele existe.

Na busca por encontrar o lugar da TV Kirimurê no contexto da televisão pública e

digital do Brasil e tentando identificar suas potencialidades e fragilidades como proposta para

uma nova cultura de TV pública no país, o texto desta dissertação estrutura-se em três seções,

além da introdução e das considerações finais. Todas elas são conduzidas pelo movimento

marítimo da Kirimurê, passando por discussões teóricas imprescindíveis para esclarecimento

dos conceitos que envolvem o projeto do Canal da Cidadania e chegando a análise prática da

experiência da Kirimurê a partir dos eixos programação, gestão e financiamento.

A introdução esboça o lugar desse mar aberto pela TV Kirimurê nos oceanos da

televisão pública e dá o tom das navegações que seguem. A segunda seção, cujo título

questiona é Ainda é preciso falar sobre TV Pública no Brasil? funciona como uma bússola

para as rotas que seguirão. Buscando discutir o conceito de TV Pública e colocá-lo em

diálogo com estudos atualizados, essa seção também trata sobre a relevância de um projeto de

8 Comentários encontrados em matérias sobre o lançamento da TV Kirimurê no link

http://vcfaz.tv/viewtopic.php?p=12662828. Acesso em: jan. 2018.

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TV Pública como eixo da democracia contemporânea, e a necessidade de pensar uma cultura

televisiva capaz de incluir os debates sobre cidadania e fortalecer as vozes dissonantes e suas

narrativas não hegemônicas dentro do sistema de tevê.

Ainda aqui é trazido breve panorama histórico da TV pública no Brasil, evidenciando

um conjunto de interesses divergentes que estruturam o campo público na radiodifusão e nas

políticas de comunicação e cultura brasileiras. Importante destaque para as ações na área do

audiovisual a partir do ano de 2003, com processos que deram origem à Empresa Brasil de

Comunicação (EBC) e a TV Brasil, marcos legais para a radiodifusão pública do país.

Para contextualizar as políticas públicas nas quais está inserida a TVK, a seção

Navegando nas rotas Kirimurê traz discussões sobre a TV Digital, a multiprogramação e o

Canal da Cidadania, em seus percursos nacionais e locais. Também apresenta e discute a

primeira transmissão pública da TV Kirimurê, quando depois dos processos de outorgas e

editais, ela é lançada oficialmente para a população local e passa a ser uma opção na TV

aberta digital da região metropolitana de Salvador, Bahia.

Em um cenário no qual a maior parte da audiência identifica a TV digital apenas como

a transmissão de imagem e som em alta definição, foi imprescindível tratar o seu projeto de

maneira ampliada, bem como os contextos sociopolítico, econômico e cultural que o

circundam. Ademais, mostrar a resistência de um Canal da Cidadania pode ser motivador para

outras iniciativas se consolidarem, especialmente diante do atual momento político de

sucessivas retiradas de direitos, numa conjuntura cercada por crises no campo da

comunicação pública, com fechamento de canais em todo país e destituição de conselhos

populares na Empresa Pública Brasileira (EBC).

Sobre políticas públicas de comunicação e cultura, Albino Rubim (2010b) afirma que

estudar as relações entre televisão e políticas culturais no Brasil contemporâneo não é um

trabalho fácil porque há complexos fatores que bloqueiam a reflexão acerca desta conexão

vital para uma compreensão mais sofisticada das dinâmicas atuais no país. E enfatiza: “o

significado adquirido pela televisão para a conformação cultural da contemporaneidade, para

o mal ou para o bem, não pode ser desconsiderado, em especial, quando pretendemos esboçar

e implementar políticas culturais efetivamente democráticas” (RUBIM, 2010b, p. 1).

A seção que segue TVK: Uma televisão a contrapelo apresenta uma análise da

Kirimurê a partir da perspectiva a contrapelo, baseada na leitura da história proposta por

Walter Benjamin (1940). A seção busca identificar as potencialidades e novidades trazidas

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pela Kirimurê para o campo da TV Pública. Os dados são considerados a partir das suas

propostas de programação cidadã, financiamento e gestão independentes, além das

possibilidades de multiplataformas, convergências midiáticas e novas formas de acesso, sendo

uma grande janela para conteúdos e formas alternativas à radiodifusão hegemônica. A

sistematização acontece, sobretudo, para o percurso da TV Kirimurê, evidenciando os

desdobramentos práticos da realização do Canal da Cidadania de Salvador.

Também nessa seção, a análise proposta engloba as grandes dificuldades na execução

da TVK, fazendo-a navegar e ser navegada por circunstâncias que dificultam sua

consolidação e permanência. Desse modo, a seção apresenta e discute as fragilidades e

limitações enfrentadas pela TV Kirimurê, um projeto em andamento, mas que já abriga velhos

problemas, o que a impede de exercer, de maneira plena, a soberania popular, a interatividade,

a inclusão e a ocupação sistemática do espaço aberto da TV.

Ao apresentar e analisar o percurso da Kirimurê pretende-se colocar as fragilidades

identificadas em um mesmo barco junto às potencialidades, de maneira que seja possível

entender e articular essa política pública de comunicação e cultura para o Brasil e a Bahia,

bem como ajudar a entender a TV como fenômeno de comunicação no país.

As considerações finais, que encerram esse navegar, é uma porta aberta e também um

convite para outras leituras e pesquisas, uma vez que a Kirimurê é um caso ainda isolado de

faixa da sociedade civil de um Canal da Cidadania em funcionamento, e carrega consigo a

história de um projeto de TV desbravadora e resistente.

No caso da lenda Kirimurê, o que poderia significar um fim com o tombo da ave sobre

o litoral desconhecido, tornou-se um importante recomeço, e deu origem a um grande mar

aberto. O debate, também cansado, sobre a TV pública no Brasil tem a possibilidade de

revelar, nas ondas de um Canal da Cidadania exitoso, que o futuro pode mesmo ser baseado

em uma lenda, escrito de maneira que, mesmo depois de longas navegações, encontra uma

terra firme onde pode recomeçar.

Sem ilusões, mas com base em uma utopia crítica e motivada por um profundo desejo

de mudança, esta dissertação, ao analisar a TV Kirimurê, busca identificar, a partir das suas

potências e limitações, um esboço acerca de questões importantes sobre a comunicação social

no Brasil e das políticas públicas que as definem. Não há porque renunciarmos a utopias

como essa, onde se vê no horizonte as possibilidades para “controle social do conteúdo,

pulverização da propriedade, gratuidade de serviços essenciais, obrigatoriedade da produção

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local” além de “financiamento de propostas populares pelo faturamento dos maiores

operadores e disponibilidade de canais para universidades, sindicados e organizações não

governamentais” (BOLAÑO e BRITTOS, 2007b, p.11).

Entende-se ainda que a busca por um projeto de TV pública eficiente para o Brasil,

tomada pela necessidade imperativa de democratizar os meios de comunicação no país,

envolve jogos, contradições e críticas que certamente não serão esgotadas nesta pesquisa. No

entanto, essas buscas podem encontrar, no percurso da Kirimurê, apoio para novas rotas a

partir de erros e acertos. O projeto da TVK, que prevê a regionalização do conteúdo na

televisão e propõe estratégias para financiamento e gestão autônomos, é aqui analisado a

partir de toda a multiplicidade que o envolve, considerando que muitas respostas não possam

ser encontradas nesse momento.

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2. AINDA É PRECISO FALAR SOBRE TV PÚBLICA NO BRASIL?

A TV pública é uma janela de acesso estratégico para o contato da população

com a mais vasta gama de bens e serviços culturais, constituindo um canal

privilegiado para a valorização e a universalização do patrimônio simbólico

nacional. (Orlando Senna, 2006)

Cidadãos de qualquer lugar do mundo podem produzir conteúdo independente e

disponibilizar no Youtube; uma geração inteira já vê tevê pelo celular; a própria rede

televisiva vem se adaptando às novidades desse mercado de consumo. A TV pública é

mesmo importante? Vale a pena o Estado aplicar recursos em um sistema público de TV

quando o país tem tantas carências? O professor Gabriel Priolli (2006) provoca ao debater

sobre tais questões, mas as responde enfaticamente, corroborando com a perspectiva de

Orlando Senna: A TV Pública é importante. Mais que isso, ela é indispensável porque pode

desempenhar um papel decisivo para o aperfeiçoamento da democracia brasileira.

A televisão pública é parte de uma história de centralidade dos interesses comerciais

na comunicação e na cultura do país, que refletem políticas públicas marcadas por

ausências, autoritarismos e instabilidades, tradições que se repetem desde a ocupação de

Portugal em território nacional como desbrava Rubim (2012). As ausências na comunicação

no Brasil são assentadas no período colonial e no obscurantismo da monarquia portuguesa e

seus controles rigorosos como a “proibição da instalação de imprensas; censura de livros e

jornais vindos de fora; e a interdição ao desenvolvimento da educação, em especial as

universidades” (RUBIM, 2012, p. 30).

Oficialmente, as inaugurações que podem ser consideradas iniciais das políticas

públicas de comunicação no Brasil, surgiram somente nas primeiras décadas do século XX e

se deram de maneira autoritária, com destaque para o Departamento de Informação e

Propaganda (DIP), que durante o Estado Novo inicia uma atuação sistemática do estado

sobre a cultura (RUBIM, 2012). Houve uma série de políticas com alta intervenção estatal,

que geraram oportunidade para ampliar as redes de cultura e comunicação, e ao mesmo

tempo descontinuaram projetos essenciais para a democracia do país. Um rápido exercício

de olhar para as ausências originárias permite compreender também parte da ausência da TV

pública no contexto nacional ainda hoje.

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Conta-se que no Brasil a TV nasceu com o sonho do empresário Francisco de Assis

Chateaubriand. À época, já dono da maior rede de comunicação do país, o Condomínio

Acionário dos Diários e Emissoras Associados, com rádios, revistas e jornais impressos, ele

descobre a potência TV, quando em visita aos EUA. Livros e pesquisas da área repetem a

imagem da ação pioneira do homem que, em 1950, entusiasmado com a criação de um

espaço para dar asas à fantasia mais caprichosa de juntar os grupos humanos mais afastados

– conforme disse durante o evento de inauguração da TV Tupi, contrabandeou duzentos

aparelhos de tevê para o que seria a primeira transmissão televisiva do país.

Também durante a cerimônia de inauguração, Chateaubriand reforçou em seu

discurso que o empreendimento da televisão no Brasil, em primeiro lugar, se deve a quatro

organizações “que se uniram aos Diários Associados para estudá-lo e possibilitá-lo. Foram a

Companhia Antarctica Paulista, a Sul América de Seguros de Vida, o Moinho Santista e a

Organização Francisco Pignatari” 9

. Estava dada a largada, pois, ao movimento da TV

brasileira na direção do monopólio dos interesses comerciais, e inaugurado o alheamento da

sociedade quanto ao modelo público.

Foram doze anos sem regulamentação específica, uma vez que sua implantação teve

base nas leis de radiodifusão para o rádio, já considerado um veículo de massa na época.

Nos primeiros anos de transmissão, regular a TV não esteve entre as prioridades do Estado,

e os empresários, capitaneados por Chateaubriand, já se organizavam para intervir no que

viria a ser o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), em 1962. Exemplo disso foi a

criação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) 10

, também em

1962, que nasce para negociar a instituição do CTB junto ao governo João Goulart. A Abert

alcança importantes conquistas para o setor privado, derrubando 52 vetos do então

presidente ao CTB, contra ao que chamavam tendência estatizante do Executivo Nacional.

Em entrevista a Pieranti (2007), o historiador Oswald Munteal afirma que a

derrubada dos vetos revela uma coligação simbiótica entre o poder público e privado,

constituindo um “obstáculo ao executivo, uma vez que qualquer decisão governamental que

prejudicasse o empresariado da radiodifusão seria repudiada pelo legislativo” (PIERANTI,

2007, p.1). Durante a década de 1960, não diferente dos dias atuais, já havia uma forte

9 Discurso de Assis Chateaubriand na inauguração da TV Tupi em 18 de setembro de 1950. Disponível em

https://jornalismounisuam.wordpress.com/2009/09/18/aniversario-da-tv-no-brasil/. Acesso em: abril 2018. 10

Fundada em 27 de novembro de 1962, a ABERT nasceu da luta contra os vetos do presidente João Goulart ao

Código Brasileiro de Telecomunicações, aprovado pelo Congresso Nacional, em 1962.

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presença dos empresários de radiodifusão no Congresso Nacional e essa influência

sobrepujou os interesses públicos prioritários à regulamentação dos meios de comunicação

brasileiros.

A TV pública, por sua vez, demorou ainda mais para ser inserida formalmente na

radiodifusão nacional, o que, quando aconteceu, se deu por meio de medidas centralizadoras

e alinhadas com interesses do Regime Militar instalado entre os anos de 1964-1985. As

políticas públicas de cultura e comunicação estadistas foram formuladas e executadas sob o

monopólio dos atores estatais (SECCHI, 2014), considerando a comunicação como parte do

mercado da política nacional.

Nesse período, os militares estabelecem um complexo jogo entre o Estado e as

emissoras comerciais, dando lugar a censuras, a proteção do mercado nacional e ao uso da

televisão como estratégia para modernizar a sociedade. Havia também um projeto de

integração dentro do plano nacional de alfabetização e educação básica, com uso do que

chamavam meios de comunicação de massa, e aqui os meios educativos foram encaixados.

A primeira referência na legislação ligada ao surgimento da TV Pública no Brasil

acontece em 1967, no centro do poder ditatorial, durante o governo do General Humberto de

Alencar Castelo Branco (1964-1967). Trata-se do Decreto-lei 236 que modifica e

complementa o CTB, e no que no seu artigo 13 determina: a televisão educativa se destinará

à divulgação de programas educacionais, mediante transmissão de aulas, conferências,

palestras e debates. No artigo seguinte, enfatiza:

Art. 14. Somente poderão executar serviço de televisão educativa:

a. A União;

b. Os Estados, Territórios e Municípios;

c. As Universidades Brasileiras;

d. As Fundações constituídas no Brasil, cujos Estatutos não contrariem o

Código Brasileiro de Telecomunicações (BRASIL, 1967).

Era objetivo das TVs educativas prestar à população um serviço de educação básica

que a TV comercial não oferecia. Com a missão de alfabetizar e formar os trabalhadores para

o crescente desenvolvimento industrial do país, ela era mais um mecanismo pedagógico, um

grande projeto de teleducação, replicando na tela as dinâmicas da sala de aula tradicional. O

primeiro público que se desejava atingir eram os 15 milhões de jovens e adultos sem

escolarização, criando telecursos que passaram a emitir diplomas (OTONDO, 2002).

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O aspecto de maior impacto na formalização das TVs educativas estava, no entanto,

em seu parágrafo único, que determina que a TV educativa não tem caráter comercial e veda

a veiculação de propaganda e patrocínios de quaisquer tipos. Assim, as restrições para

financiamento se tornaram um dos maiores problemas das TVs educativas, de tal modo que

o país, ao regulá-las, criou também fortes obstáculos para o seu pleno funcionamento.

Foi posta uma divisão quanto ao serviço de TV comercial e o educativo – o não

comercial. Embora sem referência direta à TV Pública, suas prerrogativas quanto às formas de

gestão, programação e financiamento foram embrionárias para o que depois viria a ser

regulado sob essa denominação. Para Rey Beltrán (2002, p. 92), não se concebeu uma TV que

“recolhesse as transformações no conhecimento ou nas estéticas que as sociedades

experimentavam, aumentou-se ainda mais a lacuna entre conhecimento e entretenimento,

entre aprendizagem em sala de aula e na vida”.

Ao contrário do que aconteceu em muitos países europeus, a exemplo da Inglaterra e o

modelo público da BBC, no Brasil, a TV educativa é articulada como complemento marginal

ao sistema comercial. Só depois de asseguradas outorgas de canais para grandes empresários e

políticos, num modelo de regulação e fiscalização centralizador, em 1968, dezoito anos depois

da TV Tupi Difusora SP, vai ao ar a TV Universitária de Pernambuco. Entre 1968 e 1977

outras sete Educativas foram implantadas11

, mas nenhuma delas conseguiu se consolidar

proporcionalmente às TVs comerciais do mesmo período.

Teve início assim a série de tentativas de ocupação do espaço de radiodifusão pela TV

pública. Marcas profundas de instabilidade foram deixadas pelas políticas públicas de

comunicação – e de suas ausências – desde a instalação da TV educativa. Entre portarias, leis

e revogações, assistiu-se ao distinto nascimento da TV Cultura de São Paulo, que começa

como parte dos Diários Associados e depois passa a ser gerida pela Fundação Padre Anchieta;

ao nascimento e fim da Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa, a FCBTV; do Programa

Nacional de Teleducação, PRONTEL; e da Empresa Brasileira de Comunicação, a Radiobrás.

A pesquisadora Ângela Diniz (2014) discute, em sua tese de doutorado, uma história

da TV pública brasileira, e questiona: “A TV pública é uma ideia fora do lugar?”, a partir da

conhecida indagação de Roberto Schwarz (2000) sobre a disparidade entre as ideias adotadas

11

TVE do Rio de Janeiro, TVE do Amazonas, a TVE do Ceará, TVE do Espírito Santo, a TVE do Maranhão, a

TVE do Rio Grande do Norte e a TVE do Rio Grande do Sul.

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no país, as instituições e a realidade. Diniz assim o faz por criticar os embates das ideias

liberais da elite brasileira quanto à inclusão da comunicação pública no debate nacional.

Mesmo com a redemocratização do país, iniciada com a eleição indireta de José

Sarney em 1985, o campo das políticas públicas para radiodifusão esteve comprometido. As

concessões de rádio e TV, por exemplo, foram amplamente utilizadas pelo então presidente ao

negociar acordos para nova Constituição, quando concedeu, somente entre os anos de 1985 e

1988, mais de 1028 outorgas a empresários e políticos (JAMBEIRO, 2000). Entre os

beneficiados com essas outorgas estavam 91 membros da Constituinte, o ministro Antônio

Carlos Magalhães e o próprio Sarney e sua família, com mais de 39 concessões de rádio e de

TV no Maranhão (DINIZ, 2014).

Somente com a Constituição de 1988 apareceu na legislação brasileira o termo

radiodifusão pública, e mais alguns anos foram necessários para que ela fosse regulamentada,

como será possível verificar nas seções que seguem. De tal modo, a maior parte da

experiência de TV pública brasileira, em sua forma mais planejada, pode ser considerado

ainda novo, um campo vasto a ser explorado.

Essa conjuntura de instabilidades, ausências e autoritarismos para a radiodifusão e

especialmente para seu campo público, se agrava também porque a maioria das pessoas, ainda

hoje, não compreende que a informação é, assim como outros serviços fundamentais, um

direito do cidadão, e que a TV pública tem relevância para o exercício da democracia, sendo

um importante instrumento para a sua materialização. E não só na perspectiva da publicidade

daquilo que é público, uma vez que há obrigações do Estado na oferta de informações à

população, mas, sobretudo, na prática da cidadania midiática, em que a população acessa e

participa diretamente do espaço comunicacional.

Discutir a TV pública se coloca, portanto, como uma ação cada vez mais urgente,

com vistas a ampliar os horizontes sobre as perspectivas para o seu funcionamento e

evidenciar seu aspecto social. Como uma bússola para a navegação que seguirá, essa seção se

dirige a apresentar elementos conceituais que podem caracterizar uma TV pública, além de

apresentar o contexto desse modelo de TV no Brasil, com ênfase nas políticas públicas

orientadas pela digitalização do sistema televisivo.

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2.1 TV PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DIRETO PARA DEMOCRACIA

A TV Pública promove a formação crítica do indivíduo para o exercício da

cidadania e da democracia, e deve ser a expressão maior das diversidades de

gênero, étnico-racial e social brasileiras, promovendo diálogo entre as

múltiplas identidades do país (Carta de Brasília, 2007). 12

A experiência do Canal da Cidadania da cidade de Salvador parece apontar uma nova

perspectiva para o campo público da comunicação no Brasil, entendendo campo na acepção

de Pierre Bourdieu (1983), como um conjunto de microcampos relativamente autônomos e

irredutíveis às lógicas que regem outros campos. Esse conceito, de acordo com o autor,

permite melhor compreender as relações dos sujeitos com a sociedade, dentro do mundo

social e seus espaços, evidenciando aspectos conflituosos das variadas esferas de poder.

As diferentes definições para TV Pública são frutos de processos históricos de disputas

simbólicas, “se configurando como qualquer outro campo, com suas relações de força e

monopólios, suas lutas, estratégias, interesses e lucros” (BOURDIEU, 1983, p. 123). Como

conjunto de elementos que variam de acordo com condições culturais, socioeconômicas e

políticas, o conceito de público para comunicação se constrói justamente nas relações com o

campo, não havendo, portanto, uma definição consensual que forneça parâmetros exatos para

classificar uma TV como tal.

Ao estudar distintas realidades de comunicação pública em diversos países, tais como

Alemanha, Austrália, Colômbia e Venezuela, o Coletivo Intervozes (2009) relata que a

riqueza de experiências é acompanhada também pela diversidade de definições e abordagens.

Destaca ainda que, apesar de ser um tema da década de 20 do século passado, não há um lugar

consolidado sobre o que define a natureza dos sistemas públicos.

O mundo começou a discutir radiodifusão pública a partir da Europa Ocidental, no

começo do século XX, com maior ênfase após a segunda grande guerra (1940-1945). Desse

período, dois principais conceitos continuam muito aplicados por estudiosos do tema: os de

Televisão de Serviço Público e Televisão de Interesse Público, que encontram referências

paradigmáticas nos distintos modelos da British Broadcasting Corporation (BBC) e da

estadunidense Public Broadcasting Service (PBS), respectivamente. Para o britânico, a

12

A Carta de Brasília é um Manifesto pela TV Pública independente e democrática, escrito por representantes

das emissoras Públicas, Educativas, Culturais, Universitárias, Legislativas e Comunitárias, ativistas da sociedade

civil e militantes do movimento social, profissionais da cultura, cineastas, produtores independentes,

comunicadores, acadêmicos e telespectadores, reunidos em Brasília, na ocasião do 1º Fórum Nacional de TVs

Públicas, em 2006.

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televisão pública deve obrigatoriamente garantir a comunicação como direito ao cidadão e

não pode ser financiada por publicidade comercial, enquanto o modelo estadunidense se

refere à concessão do espaço para exploração por agentes nacionais que podem agir

conjuntamente com o setor privado.

“O rádio e a televisão são veículos da produção cultural de um povo ou de uma nação

e para exercerem essa tarefa, não podem ser contaminados por interferências políticas ou

comerciais” (LEAL FILHO, 1997, p.17). Foi com base neste apelo ideológico purista que

tiveram origem os modelos de radiodifusão na Europa Ocidental, como a TV pública

britânica. O sistema público deveria ser orientado para atender a uma necessidade da

população, sendo parte de um organismo cultural tal qual as universidades e as bibliotecas,

além de uma forma de controlar e garantir o mercado de bens técnicos e profissionais.

A BBC se consolida na perspectiva de democratização cultural, em um cenário

mundial no qual as mídias eram consideradas perigosas e deveriam, portanto, estar sob a

gestão do poder do público (aqui pensado como representante do povo). Fazia-se

imprescindível então que, para cumprir sua missão cultural, a TV britânica não só não

recebesse financiamento de empresas comerciais, como também fosse mantida pela própria

população, ou seja, pelo público.

A experiência da BBC continua a ser tomada como referência principalmente pela

forma estratégica como se mantem no cardápio televisivo da sua população. A emissora

continua forte como parte do patrimônio cultural e político do país desde quando criada –

como poderoso instrumento para distribuir o conhecimento –, passando pela crise do

duopólio, em 1954, até a sua reestruturação a partir das tecnologias digitais, que culmina na

Royal Charter (Carta Real) em 2006 e reconfigura a gestão e estrutura da BBC.

Também no contexto internacional, o tema da televisão pública vira pauta para o setor

da radiodifusão pública da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a

Cultura (UNESCO), que aponta as políticas públicas de comunicação como prioritárias para o

desenvolvimento de uma sociedade pluralista e mais justa. Na tentativa de formalizar um

conceito, tratou do Serviço Público de Radiodifusão (SPR) como aquele realizado, financiado

e controlado pelo público e para o público, não sendo comercial nem estatal. Deve ser o

sistema pelo qual o cidadão recebe educação, entretenimento, cultura e informação de

maneira diversa, com independência editorial, transparência e sendo financiada de maneira

adequada (UNESCO, 2000).

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O documento acrescenta que o SPR parte da premissa de que o mercado não é capaz

de atender a todas as necessidades de radiodifusão de um país, e que esse serviço deve estar

protegido contra ingerências comerciais e políticas – com relação a sua governança,

orçamento e processo decisório editorial.

Nem controlada pelo mercado e nem pelo Estado, a razão de ser da

radiodifusão pública é o serviço público. Ela fala a todos como cidadãos.

Radiodifusores públicos encorajam o acesso e a participação na vida pública.

Eles desenvolvem o conhecimento, ampliam horizontes e permitem às

pessoas entender melhor elas próprias por meio de um melhor entendimento

do mundo e dos outros (UNESCO, 2000, p. 4).

As Nações Unidas declararam o dia 21 de novembro como o dia Mundial da

Televisão, colocando esse meio na agenda prioritária da instituição como base para o

desenvolvimento, a paz e a democracia. Junto com as mulheres, o respeito à diversidade

étnica e o meio ambiente, a UNESCO considera a TV pública com um dos temas necessários

para a construção de uma sociedade plural e justa (RICÓN, 2002). Esses e outros organismos

internacionais passam a reivindicar a televisão como espaço social decisivo, chamando

atenção para o planejamento estratégico dos governos ao redor do mundo.

Ao considerar as características latino-americanas, o pesquisador Omar Rincón (2002)

propõe uma TV pública para os cidadãos e a define como a “outra televisão”, aquela que

privilegia o caráter público, supera a visão comercial e ganha densidade como cidadã. Trata-

se de uma TV que nos relata como nos tornamos um coletivo social. Junto com Jesús Martín-

Barbero e Rey Beltrán, Rincón apresenta também uma declaração de princípios para uma TV

pública, cultural e de qualidade, tendo como base o que imaginam dever constituí-la. Ao todo

são dez itens descritos no documento, dos quais destacamos:

I – A televisão Pública interpela o cidadão, enquanto que a TV comercial

fala ao consumidor;

III- A televisão pública deve promover o universal, que não passa pelo

comercial;

VII – A televisão pública deve ampliar as possibilidades simbólicas de

representação, de reconhecimento e de visibilidade para a construção da

cidadania, na sociedade civil e na democracia;

X – A televisão pública deve se programar e se produzir por meio de um

chamado público, através de processos de alocação transparentes e

participativos, coerentes com as políticas culturais de comunicação e

educação de cada país, e baseados no mérito dos realizadores e produtores

(RINCÓN, 2002, p. 30-31).

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Pesquisas brasileiras se somam à busca de caracterização da TV pública, e a partir dos

princípios da democracia e da cidadania, além de ideais sobre espaço para discursos

experimentais e visibilidade dos atores sociais (TORVES, 2007), muitas delas convergem

para a base do financiamento, da gestão e da fiscalização. Para eles, essa é uma TV que possui

autonomia política e financeira, sem as quais se torna impossível pensar um sistema realmente

público de radiodifusão (LEAL FILHO, 1997).

As emissoras públicas – escreve Eugênio Bucci (2010) – foram criadas para proteger a

vitalidade dos debates e das manifestações culturais que a sociedade deve pautar produzir e

entabular em seu domínio civil próprio, independentemente do Estado e também do mercado.

Para o autor, a programação também é elemento de afluência e deve ser, sobretudo, autônoma

e uma alternativa ao modelo hegemônico. Além disso, o conteúdo precisa ser informativo,

educativo, artístico, cultural e científico, mas não pode estar subordinado aos interesses de

patrocinadores, tampouco ser subtraído de sua liberdade em função de dependência do estado

ou qualquer ente do poder público.

Com a promulgação da Constituição de 1988, aspectos legais e institucionais também

elaboram novos elementos para a TV Pública, embora limitados. Na Carta Magna se destaca o

capítulo V, todo dedicado à Comunicação Social, que reúne artigos sobre os princípios para

programação e produção das emissoras de rádio e TV (art.221), sobre a proibição de

oligopólios e monopólios nos meios de comunicação (art.220) e com maior destaque, trata

pela primeira vez sobre a complementariedade dos sistemas público, estatal e privado

(art.223). Entretanto, embora presente na Constituição, até hoje não há nenhuma legislação

que distinga ou regule tais sistemas, criando um limbo, como nomeia Eugênio Bucci (2008) e

abrindo margem para outro debate, agora sobre a dicotomia “público x estatal”.

O problema prossegue com a ausência de lei complementar sobre a matéria e assim,

poucos estudos trazem uma diferenciação clara dos sistemas. Ante esse vazio legal, o senso

comum no meio acadêmico – e também político – acabou por consagrar que a “comunicação

estatal é aquela que defende o ponto de vista do governo e a pública é aquela que dá voz à

sociedade. Não é nada disso, mas é o que prevalece” (BUCCI, 2008, p. 259). De tal modo, a

TV estatal brasileira é executada pela perspectiva do interesse partidário, o que revela uma

cultura não só no âmbito televisivo, mas de parte das práticas políticas nacionais.

Murilo Ramos (2012) amplia o debate e chama atenção para a falsa generosidade do

dispositivo de complementariedade entre sistemas proposto pela lei. Para ele, a constituição

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brasileira cria enorme anomalia normativa e gera uma ruptura sobre o público e o estatal, na

qual há “um público normativamente indefinido, mais próximo do privado que do estatal, e

um estatal que, ao se confundir com governamental, perdeu a sua indissociável dimensão

republicana” (RAMOS, 2012, p. 4). Defende também que o artigo 223 é uma armadilha

patrocinada pelos radiodifusores comerciais, que com suas interferências nos debates legais,

plantaram a inverdade de que existe um sistema privado. O que há é a possibilidade de um

agente privado prestar um serviço público, ainda que com finalidades comerciais.

Em um país onde a maioria das redes de TV é orientada por particulares, e o Estado

tem uma relação controladora com a gestão da autonomia do sistema televisivo, tal

diferenciação tem pesos e medidas diferentes. É importante distinguir para evidenciar que o

estado não deve interferir na agenda de pautas e na gestão daquela que seja uma tevê pública,

mesmo que tenha responsabilidade de lhe fornecer condições mínimas para existir. E à estatal

caberia prestação de contas e transparência com a informação pública, ao contrário da cultura

imposta hoje em que os governos (municipal, estadual e federal) pagam por “30 segundos” de

propaganda às TVs comerciais. E mesmo uma televisão estatal deve ser autônoma, não

subjugada a interesses de nenhuma gestão ou partido político.

Para dificultar ainda mais a identificação quanto ao que é público, estatal e privado na

radiodifusão do Brasil, as TVs comerciais são também de caráter público, uma vez que a

concessão ou permissão para o serviço de radiodifusão no Brasil são públicas – concedidas,

fiscalizadas e normatizadas, portanto, pela União. O caráter público da radiodifusão, como

bem propõe Rey Beltrán (2002), significa que, embora desempenhem papeis diferentes, tanto

as TVs comerciais como as não-comerciais são socialmente relevantes, e cumprem funções

essenciais na dinâmica da cultura de um povo.

Não se trata de dissolver quaisquer diferenças entre sistemas públicos e o modelo

comercial já existente e consolidado no Brasil, mas de reconhecer a raiz pública do que

aparenta ser uma empresa exclusivamente privada, o que colabora para um processo de

melhor fiscalização para descentralizar os meios de comunicação.

E não só a diferenciação dos sistemas complementares compromete o fortalecimento

do campo público da radiodifusão, mas a própria maneira como as políticas públicas

decorrem, criando o que pode ser chamado de uma grande radioconfusão no país. “O

resultado aí está: a confusão reinante na área da TV educativa, também chamada de TV

cultural, também chamada de TV pública, também chamada de TV estatal, também chamada

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de TV universitária, também chamada de TV comunitária”, ironiza o jornalista Alexandre

Fradkin (2007), em reportagem para o portal Observatório da Imprensa.

Em 1995, nascem os canais básicos de utilização gratuita, instituídos pela Lei do

Cabo13

para obrigar que as operadoras de TV a Cabo disponibilizassem gratuitamente em seus

pacotes de serviço canais de educação, cultura e comunitário – canais de interesse público.

Prevê-se também a existência de canais destinados ao Senado Federal, à Câmara dos

Deputados, ao Supremo Tribunal Federal, às TVs universitárias, além das Educativas e

Culturais, dentro da oferta básica da supracitada lei, sem que a nomenclatura de TV Pública

seja usada para denominação de nenhuma delas, campo onde convergem. A atualização da

Lei do Cabo se deu em 2011, com a lei da comunicação audiovisual de acesso condicionado,

que expandiu essa obrigação para todos os canais de TV por assinatura, mas não diminuiu a

distância entre as tevês do campo público.

Na dimensão do Canal da Cidadania e da TV Kirimurê, as discussões sobre a

complementariedade entre os sistemas e os modelos de TVs públicas são retomadas. Ao

propor a reunião, em um mesmo canal, de uma faixa para o estado, uma para a prefeitura e

outras duas para a sociedade civil organizada (dedicadas à transmissão de conteúdo produzido

pela população local), o projeto aponta para uma ação conjunta das TVs do campo público,

que devem ter como missão serem protagonistas nos processos de inserção social.

Mesmo nesse contexto, no entanto, a diferenciação entre as tipologias da TV do

campo público gera instabilidades. Por sua proximidade com a sociedade civil, a TV Kirimurê

em muitos aspectos é comparada a uma tevê comunitária, antes de pensada como pública. A

proposta do Canal da Cidadania, no entanto, não impõe que seja esse o modelo de apropriação

da faixa. Ao contrário, faz uso do termo cidadania como adjetivo definidor, aproximando-o do

caráter público de maneira ampliada. É certo ponderar o conceito comunitário que prevê uma

TV como “canal de expressão do povo, que respeite a diversidade e esteja a serviço de

interesse público” (PERUZZO, 2007, p. 52), e que está alinhado à proposta do Canal da

Cidadania, mas não deve ser restritivo.

Destaque-se ainda uma nova perspectiva trazida pelo Canal da Cidadania: pela

primeira vez na história da televisão brasileira, a sociedade civil organizada tem permissão

para ocupar uma faixa de programação na TV terrestre aberta. Não mais apenas nas TVs por

assinatura, ou a cabo, como propõe a Lei do acesso condicionado, nem somente na TV via

13

Lei nº 8.977, de 6 de janeiro de 1995.

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web, importante e indispensável instrumento de democratização do espaço audiovisual. Mas

tudo isso agora junto, em um canal aberto e gratuito, disponível para todas as cidades

brasileiras, com um sinal sem interferências e com imagem e som de boa qualidade.

Assim, o caráter público a ser analisado no caso da Kirimurê depende de ter

consolidada uma relação entre o cidadão e o seu direito à comunicação, numa perspectiva de

cidadania como afirmação de pertencimento. Devem ser consideradas as características que

compõe o a identidade individual, coletiva e de grupo na sociedade, “afirmadas no âmbito dos

direitos individuais e coletivos sociais, de nacionalidade, políticos e por fim, das garantias

constitucionais no marco da Constituição de 1988” (CABRAL FILHO, 2011, p.6). Sendo

uma TV que ganha densidade como cidadã e supera ausências históricas.

Posto a já anunciada ausência de uma definição consensual ou mesmo um marco legal

amplo e aplicável a todas as TVs públicas do Brasil, e também a radioconfusão instituída no

país, para fins metodológicos desta pesquisa três elementos, que são referenciados por

organismos nacionais e internacionais, foram tomados como centrais para analisar a TVK

como proposta de TV pública: a forma de financiamento (que deve ser captado pelo público),

a gestão do canal (que deve ser controlada pelo público) e sua programação (que deve ser

feita pelo público e para o público), de acordo também com os debates estabelecidos em

Rincón (2002) e pela UNESCO (2000).

Importantes frentes tomam por base o tripé financiamento, programação e gestão para

distinguir a TV pública dos demais campos televisivos. A própria legislação brasileira

enfatiza o financiamento como base jurídica na diferença entre uma tevê comercial (que pode

receber patrocínio) e outra pública e estatal (proibida de receber publicidade comercial), e

esclarece sobre as obrigações educativas do conteúdo e a participação direta do estado na

gestão da radiodifusão pública.

Considerado documento base para discutir o tema durante o Fórum Nacional de TVs

Públicas no Brasil, em 2006, o diagnóstico do campo público da televisão, por sua vez, elenca

questões sobre as formas de financiamento, programação e modelos de gestão para organizar

as informações de cada segmento da radiodifusão pública nacional. Em 2009, ao buscar

referências internacionais para colaborar com a construção do modelo brasileiro de TV

pública, o Coletivo Intervozes analisou a experiência objetiva dos sistemas públicos de doze

países, e observou em todos eles os modelos de gestão e participação, de financiamento e a

programação, além de outros aspectos.

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Igualmente reforçam os elementos escolhidos para análise, o documento internacional

Model Public Service Broadcasting Low14

, chamada Lei Modelo, proposto por Werner

Rumphorst (2007) e traduzido por Renata Rocha (2009), que se refere ao modelo ideal de

Serviço Público de Radiodifusão (SPR) para o mundo. O documento discute a natureza do

SPR e sua relação com uma sociedade democrática, considerando a televisão pública como

fator de coesão social e de identidade nacional, além de ponderar a sua importância diante de

um mundo digital com ilimitadas possibilidades de distribuir conteúdo audiovisual.

Ao analisar os três elementos, esta dissertação procura identificar a televisão que

interpela o público, incluindo o consumidor e o cidadão, distinguindo-os sem oposições

maniqueístas. Busca-se a televisão pública que é “um decisivo lugar de inscrição das novas

cidadanias, onde a emancipação sociocultural adquire uma face contemporânea” (MARTÍN-

BARBERO, 2002, p.57), e que serve a toda população de maneira direta e democrática, como

defende Rey Beltrán (2002), mediada pelo próprio público, gerando espaços que debatam

interesses comuns e onde as diferenças dos diversos setores sociais sejam colocadas.

Dados sobre a regulamentação (traduzidas a partir de políticas públicas) e o acesso à

tevê no Brasil são também essenciais na análise da TVK, e por sua inscrição nas tecnologias

digitais, para entender a Kirimurê é importante olhar para os novos modos de fazer e

consumir televisão no Brasil e no mundo. A cultura da convergência chega forte na promessa

da TVK, que apresenta entre os seus objetivos ampliar a interface entre o Estado e o Cidadão,

dar mais transparência à gestão pública, estimular a produção de conteúdo audiovisual local, e

oferecer uma plataforma interativa a sociedade, pois a tecnologia digital permite que o

espectador interaja em tempo real com os responsáveis pela estação geradora.

Quanto à era da TV digital, as descrições dos acontecimentos históricos no Brasil, com

base em narrativas críticas e amplos debates trazidos por César Bolaño e Valério Brittos no

livro A Televisão brasileira na era digital (2007b), colaboram diretamente para esclarecer

aspectos da regulamentação e políticas públicas da TV digital. Ao tempo em que auxiliam

esta dissertação, que é quase uma história imediata, a compreender o que está acontecendo e o

que pode acontecer na TV pública digital brasileira.

A visão ampliada de Henry Jenkins (2009) sobre as convergências é igualmente

importante para entender a nova era da TV pública, uma vez que a TV digital é mais que um

14

Documento elaborado pelo ex-Diretor do Departamento Legal da European Broadcasting Union, Werner

Rumphorst, e produzido pela International Telecommunication Union (ITU)/ Telecommunication Development

Bureau (BDT) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

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processo técnico, é também social, cultural e mercadológico e inclui um conjunto de novas

práticas culturais que muitos dos cidadãos ainda não compreendem por completo. Ao que

chama convergências, o autor fala de fronteiras imprecisas entre os meios de comunicação, e

da aproximação entre consumidores e meios de produzir e difundir conteúdo. Destaca ainda

que a convergência é um processo e não um fim, alterando a lógica nas relações entre

tecnologias, mercados, indústrias, gêneros e públicos.

Além dos novos meios para operar a televisão no espectro digital, a TVK se aproxima

da cultura da convergência por sua promessa para que os consumidores/cidadãos não apenas

aceitem as convergências, mas na verdade, conduzam “grande parte do processo, se

apropriando do potencial democrático encontrado nas tendências culturais contemporâneas”

(JENKINS, 2009, p. 329). Ao propor que o cidadão participe diretamente das decisões sobre

um canal aberto de TV, expandido em todas as suas plataformas convergentes, o projeto da

TVK abre margem para debates sobre essa possível democratização.

Sendo parte do projeto de digitalização e autorização para multiprogramar alcançada

pela TV Educativa da Bahia, vale dizer que a Kirimurê pode ser lida como a instância mais

democrática já realizada no projeto de TV pública baiana. A história local muito se assemelha

a nacional, embora tardia. Na Bahia, o primeiro canal de televisão, a TV Itapoan, foi trazido

por Assis Chateaubriand e começou a operar em novembro de 1960. A promessa era de que a

própria população constituiria o patrimônio da sua televisão.

No primeiro ano, a limitação técnica implicada na programação ao vivo abriu espaço

para um período no qual, de fato, o conteúdo da emissora era predominantemente local, com

valorização da mão de obra nativa e de um mercado emergente no estado (ROCHA, 2009).

Mas com o videoteipe que chega em 1961, a programação nacional passou a ser replicada e o

condicionamento ao capital de empresas fica evidente, a exemplo dos telejornais Repórter

Esso e Telejornal, financiados, respectivamente, pela empresa norte-americana de petróleo, a

ESSO, e pela brasileira Petrobras. Ao telespectador, por longo período, foram reservados

limitado número de aparelhos e programação pouco diversa.

Depois da TV Itapoan, foram inauguradas a TV Aratu, a TV Bandeirantes e a TV

Bahia, todas comerciais, até que, em 1985, nasce a TV Educativa da Bahia, uma representante

do sistema público. A TVE inova quanto às abordagens culturais na programação

radiodifusora da Bahia, e ao contrário das representações muitas vezes distorcidas sobre o

estado, vistas na TV comercial, com a chegada da TV Educativa as culturas locais receberam

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mais atenção. A TVE, sob uma perspectiva mais abrangente, deu voz a muitas expressões e

atores sociais antes silenciados. Entretanto, essa TV sempre esteve diretamente subordinada

ao estado, o que implica em recortes marcados por interesses políticos e compromete a ampla

demonstração de posicionamento de determinados grupos.

O sistema de TV Digital, no entanto, cria oportunidade para novos espaços públicos

para radiodifusão, com a participação direta de produtores independentes e de toda a

sociedade civil. Para melhor aventar como chegamos à outorga para operar a TV Kirimurê,

faz-se imprescindível reconhecer o conjunto de ações que o fizeram possível, a começar pela

discussão da TV pública inaugurada em 2003 no país.

2.2 A TELEVISÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA DE CULTURA

As políticas públicas para a cultura devem ser encaradas como parte do

projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso País. Como

parte do projeto geral de construção de uma nação realmente democrática,

plural e tolerante. Como parte e essência de um projeto consistente e criativo

de radicalidade social. Como parte e essência da construção de um Brasil de

todos. (Gilberto Gil, 2003).

Importante avanço para o campo público da TV se deu a partir das políticas de

comunicação e cultura propostas por Gilberto Gil, quando esteve à frente do Ministério da

Cultura (2003-2008), durante a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ao propor o

que chamou de “do-in antropológico” em seu famoso discurso de posse, Gil (2003) incluiu a

televisão pública entre pontos vitais a serem massageados, dando início ao processo que

culminaria no surgimento da primeira emissora pública a existir juridicamente no Brasil, a TV

Brasil, e compondo um novo quadro na soma de melhorias, mas também de instabilidades da

radiodifusão pública.

No período, teve relevante participação a Secretaria do Audiovisual (SAV), por sua

missão de reestruturar e desenvolver o audiovisual no país, visando principalmente a

diversidade e a democracia. Com o cineasta Orlando Senna como secretário (2003-2007),

tiveram destaque o investimento na democratização da produção e difusão, e o pensamento do

audiovisual em seu conjunto, considerando todos os processos da cadeia produtiva – criação,

produção, distribuição, preservação e formação – e finalmente incluindo a televisão como

parte desse projeto (MOREIRA et al, 2010). Além disso, o entendimento quanto às políticas

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públicas se amplia com uma aproximação da comunicação e cultura, na busca por abandonar

os padrões unilaterais positivados pelo estado brasileiro durante décadas.

Sobre a centralidade da cultura desde a revolução cultural no século XX e sua relação

estreita com a comunicação, Hall (1997) discute que os meios para produzir, circular e trocar

bens culturais se expandem nesse mesmo momento em que a cultura assume função de

importância sem igual na organização da sociedade e de seus processos de desenvolvimento.

E acrescenta que a mídia é simultaneamente parte da infraestrutura material das sociedades e

um dos principais meios para fazer circular suas ideias e imagens.

Sendo a tevê o principal veículo nesse processo de circulação de bens simbólicos entre

os campos da comunicação e da cultura, ao propor políticas integradas para o audiovisual

brasileiro, o MinC revela sua proposta de pensar a função cultural das comunicações. De

forma que, diante de uma sociedade mundial que passava por intensas transformações ante a

globalização e as tecnologias digitais, o Ministério assume também o compromisso de

fomentar a produção e a formação no campo do audiovisual, preservar a história fílmica do

país, além de abrir espaços para exibir o seu próprio conteúdo (MOREIRA et al, 2010).

Incluída desde o programa de governo apresentado por Luiz Inácio Lula da Silva

quando candidato a presidência em 200215

, a televisão pública é vista na agenda nacional

como estratégica, e frente ao debate da democratização da mídia é tomada como fundamental.

Seu percurso, no entanto, foi fortemente refreado pelos interesses dos radiodifusores

comerciais. Enquanto se discutia o papel do Estado nas redes de financiamento e gestão do

audiovisual, através de ações como o Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual: o Brasil

de todas as telas, as políticas para a TV pública ficaram estagnadas até 2006.

O reconhecido DOCTV – Programa de Fomento a Produção Audiovisual e

Teledifusão do Documentário Brasileiro (2003) – ratifica a disparidade no desenvolvimento

prático de diferentes frentes de atuação da SAV. Descrito como “um projeto que inicia um

novo tempo para o audiovisual independente, ao incentivar a produção de documentários a

serem veiculados no campo público da televisão” (CAETANO, 2011, p. 13), o DOCTV

realiza bem a política de fomento à produção16

, mas não propõe ações direcionadas ao

fortalecimento da televisão pública. Embora ela apareça como parte central no processo de

15

Propostas de políticas públicas de cultura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato

disponíveis no documento “A Imaginação a Serviço do Brasil” (2002). 16

No total, foram cerca 170 filmes brasileiros produzidos e mais de três mil horas de exibição, além de 27

documentários elaborados em parceria com países ibero-americanos, o que atingiu mais de 20 milhões de

telespectadores. Mais sobre o histórico do DOCTV acessar o documento DOCTV Operação em Rede de 2011.

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difusão e distribuição dos documentários, não se encaminha, no entanto, debates sobre sua

necessária reelaboração estrutural, política, econômica e cultural.

Em 2006 há uma retomada de fôlego, quando se inicia uma política especificamente

voltada para a TV Pública no Brasil e o MinC em parceria com a SAV reuniu associações de

emissoras não-comerciais para compor o que veio a ser chamado de Diagnóstico do Campo

Público da Televisão. Nessa fase preparatória, cabia às representações levantar dados sobre

eixos temáticos comuns, entre os quais estavam apresentar a história do setor, suas legislações

e marco regulatório, programações e modelos de negócio, e suas formas de financiamento e

infraestrutura. Tais informações foram base para as discussões promovidas durante o I Fórum

Nacional de TVs Públicas que aconteceu em Brasília, em 2007.

O evento trouxe um encontro inédito e a criação de diretrizes introdutórias para a

comunicação pública no Brasil, ao que se soma outra conquista: o compromisso do Estado de

construir uma rede nacional de tevês públicas. Ao conseguir agrupar representações de TVs

comunitárias, educativas, culturais, universitárias e legislativas, a gestão Gil evidencia uma

visão estratégica sobre a TV pública como espaço de encontro e fortalecimento das frentes

produtoras de conteúdos contra-hegemônicos. Além de se posicionar quanto ao entendimento

do papel público das TVs estatais, em suas obrigações com a transparência da informação.

O debate se redimensiona ainda mais forte quando são incluídos os ativistas sociais,

profissionais da cultura e a sociedade civil organizada, que, juntos, durante o I Fórum

Nacional de TVs Públicas, também discutiram como o Brasil deveria proceder sobre o tema.

A carta de Brasília (2007) ratifica os interesses defendidos por essa frente popular, e entre

outros o documento recomenda que o sistema a ser implantado deve promover mecanismos

que viabilizem a produção e veiculação de comunicação pelos cidadãos e cidadãs brasileiros.

De acordo com Orlando Senna (2006), a razão e o motor dessa ação conjunta é a

importância social da TV Pública e da sua missão de prestar serviços educativos e culturais à

comunidade. Para ele, a televisão pública é um veículo exponencial – uma ferramenta

essencial para educação cidadã do povo – capaz de expandir horizontes filosóficos e culturais

do indivíduo, preparando-o melhor para uma condição protagonista na inserção social.

Essas iniciativas culminaram na criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC),

instituída pela Medida Provisória 398/2007, depois substituída pela Lei 11.652/2008, e que

trata dos princípios e objetivos da radiodifusão pública. Foi um processo marcado por fortes

disputas dentro do próprio governo, conforme explicita Valente (2009) ao analisar a criação

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da TV Brasil e sua inserção no modo de regulação setorial da televisão brasileira. A

composição original da EBC agrega, além de sites, agências e rádios17

, também a TV Brasil,

que surge em 2007 como a primeira televisão definida como pública no país.

Importante ressaltar que, nesse período, a radiodifusão pública é prevista para ser

explorada no âmbito federal, sem esclarecimento quanto às gestões regionais. O projeto prevê

que a EBC deve ser a responsável por prestar esse serviço de rádio e TV públicos, ainda que

em colaboração com outras entidades da administração indireta, visando estabelecer a Rede

Nacional de Comunicação Pública.

O modelo de gestão da Empresa inclui quatro instâncias: Conselho Curador, Conselho

Administrativo, Diretoria Executiva e Conselho Fiscal. Na diretoria inaugural, Orlando Senna

assume como diretor-geral em 2007, o que inclui o MinC como parte da administração18

e

gera importante oportunidade para que o projeto inicial tenha andamento, mesmo a EBC

estando subordinada diretamente ao gabinete da Presidência da República. O Conselho

Curador, por sua vez, garante a participação da sociedade civil, com quinze representantes

responsáveis por deliberar sobre as diretrizes educativas, artísticas, culturais e informativas

integrantes da política de comunicação propostas pela Diretoria Executiva, garantindo uma

abertura, ainda que frágil, para o acesso e a inclusão do interesse popular.

Vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, estão

entre outras competências da EBC: I - implantar e operar as emissoras e explorar os serviços

de radiodifusão pública sonora e de sons e imagens do Governo Federal; III - estabelecer

cooperação e colaboração com entidades públicas ou privadas que explorem serviços de

comunicação ou radiodifusão pública, mediante convênios ou outros ajustes, com vistas na

formação da Rede Nacional de Comunicação Pública e VIII - exercer outras atividades afins,

que lhe forem atribuídas pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República

ou pelo Conselho Curador da EBC.

Sua programação deve ser educativa, artística, cultural, informativa, científica e

promotora de cidadania, descrição que se repete diversas vezes em todo o texto da lei.

Buscou-se uma diferenciação pelo jornalismo, pelos debates, programas culturais e infantis

(INTERVOZES, 2009), tendo este último se tornando referência em sua grade. A discussão

17

Sobre a Empresa Brasil de Comunicações http://www.ebc.com.br/institucional, Acesso em: jul. 2018. 18

Outros dois diretores eram oriundos do Ministério da Cultura: Mário Borgneth (Diretor de Relações e Redes) e

Leopoldo Nunes (Diretor de Conteúdo e Programação).

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sobre a regionalização também foi central, na perspectiva de que não se repetisse a lógica de

centralidade de conteúdo do eixo Rio de Janeiro e São Paulo replicado em emissoras locais.

Previa-se que, na Rede Nacional, os conteúdos de todos os estados convergiriam em

uma programação de acesso para todo país. Assim, programas locais produzidos na Bahia, por

exemplo, estariam diariamente compondo a grade de programação da EBC, sendo transmitido

tanto na Amazônia quanto no Piauí, que também teriam produções veiculadas, e todos, em

cada canto do país, se veriam e seriam visto.

Quanto aos recursos, eles devem ser de receitas provenientes de dotações

orçamentárias, apoio cultural e publicidade institucional de entidades de direito público e de

direito privado (sendo proibida a veiculação de anúncios de produtos ou serviços), recursos

provenientes de acordos, convênios e outras fontes, desde que estas não comprometam os

princípios e objetivos da radiodifusão pública. Princípios estes que, já em seu primeiro item

dispõe sobre atender a complementariedade dos sistemas público, privado e estatal; instituir

autonomia da EBC em relação do Governo Federal, além de promover a cultura nacional,

estimulando a produção regional e a produção independente, entre outros.

Seus objetivos também apontam para realizar uma radiodifusão participativa e crítica,

com incentivo ao desenvolvimento cidadão e à produção de conteúdo diferenciado do

hegemônico comercial. Entre eles destacamos o objetivo que trata de “estimular a produção e

garantir a veiculação, inclusive na rede mundial de computadores, de conteúdos interativos,

especialmente aqueles voltados para a universalização da prestação de serviços públicos”, o

que transparece uma tentativa de diálogo com a convergência de mídias em debate, mas sem

citar diretamente a TV Digital, projeto que acontecia concomitantemente no Brasil.

Entre algumas contradições materializadas, a EBC reforça o abismo da

complementariedade, ao acolher, debaixo do mesmo guarda-chuva, meios estatais e públicos,

ao fundir a Radiobrás e as TVEs do Rio de Janeiro e do Maranhão. E assim a dualidade mais

uma vez é colocada em foco, subjugada à forma errônea de compreender o espaço estatal

como governamental e não como público. Em um plano ideal, o Brasil poderia inaugurar uma

prática inédita de prestação de serviço público de comunicação aos cidadãos, reunindo todos

os campos para que, em um mesmo lugar, seus conteúdos pudessem ser acessados. Mas na

prática não foi o que se deu.

Embora com grandes avanços, confirmando a premissa de Rubim (2012) sobre as

instabilidades das políticas públicas no Brasil, o do-in proposto por Gil, trabalhado pelo

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Secretário de Audiovisual Orlando Senna e outros importantes agentes da gestão da cultura no

Brasil, enfrentou problemas estruturais para se conformar. De acordo com Valente (2009), em

meio aos debates dos fóruns nacionais de TV Pública, no início de 2007, o ministro das

comunicações, Hélio Costa passa a se interessar pelo tema. Em janeiro do mesmo ano, o

ministro anunciou que o governo estudava criar uma nova rede pública de TV e de rádio,

gerando uma grande celeuma junto ao MinC. De curta duração, o embate foi logo substituído

pela configuração da então nova Secretaria de Comunicação Social do Governo (Secom), que

veio a ser a gestora da EBC.

As divergências se fizeram tão presentes dentro do governo que, em junho de 2008,

Orlando Senna pede exoneração da presidência da EBC, ao que justificou por discordar da

gestão adotada pela empresa que estava a impedir o exercício autônomo da TV pública,

engessando sua operação. Também o processo de implantação do Sistema Brasileiro de

Televisão Digital Terrestre – SBTVD foi pauta de disputas.

Ao tempo em que se discutia o modelo para TV Pública do Brasil, havia também um

direcionamento para que essa tevê ocupasse o espaço digital. Ao anunciar o I Fórum de TVs

Públicas, Gilberto Gil chamou atenção para a necessidade de evitar que a TV Digital fosse

apenas uma repetição do modelo analógico, e que o governo estava discutindo com grande

responsabilidade sobre o tema. Enfatizou igualmente a imprescindível participação de toda

sociedade no processo, tendo ela o papel de criticar as propostas do governo e contribuir com

ideias para a instituição de um modelo de TV pública digital inclusiva e diversa 19

.

Essa breve digressão histórica ajuda a compreender melhor as rotas da Kirimurê que

seguirão nesta análise. É exatamente na TV digital que se faz possível o Canal da Cidadania,

como parte de um conjunto de políticas públicas iniciado com o olhar do Ministério da

Cultura em 2003, e o seu projeto de debater a comunicação e a cultura como direitos, dentro

de um complexo sistema nacional.

Como aponta Gil no texto que abre o Caderno de Debates do I Fórum Brasileiro de

TVs Públicas (2006), tendo o Brasil uma população que foi alfabetizada na leitura audiovisual

antes da completa alfabetização escrita, a realização plena e qualificada da tevê pública

brasileira é estratégica para o desenvolvimento da cultura nacional e a consolidação de um

país mais antenado com as forças criativas de seu povo. O Canal da Cidadania é fruto desse

19

Informações disponíveis em

<http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/gilberto-gil-anuncia-

forum-nacional-para-discutir-a-tv-publica-76369/10883>. Acesso em: set. 2018.

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processo de digitalização da televisão brasileira, cuja estruturação só se fez possível pela

gestão de um novo pensamento sobre a cultura televisiva no país. O próprio Canal é uma

grande onda dentro da história da TV pública nacional e precisou vencer muitos quebra-mares

para alcançar o seu projeto final, instituído a partir de uma ressignificação das cidadanias.

A proposta de um canal público que não fosse para exclusiva exploração do Governo

Federal, que tivesse sua programação formada por conteúdo independente e chegasse para

toda população da região onde for implantado precisou gradualmente revisar a ideia de

público como estatal e mesmo a de cidadania limitada à prestação de serviços. De tal forma,

as inovações trazidas pelas tecnologias digitais foram imprescindíveis para instituir o Canal

da Cidadania, mas a busca por uma tevê pública a partir da perspectiva cultural certamente foi

base essencial para o seu surgimento.

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3. NAGEVANDO NAS ROTAS KIRIMURÊ

Senhoras e senhores telespectadores, boa noite. A TV brasileira entra hoje na

era digital. Começa aqui, na cidade de São Paulo, um processo que em

pouco tempo vai permitir um grande salto tecnológico, econômico, social e

cultural no Brasil. É uma verdadeira revolução. Por um lado, vai

proporcionar um aumento extraordinário nos espaços de difusão da cultura

brasileira e na veiculação de informações. Por outro, vai estimular nossa

indústria, gerando emprego, renda e oportunidades para o país (Luiz Inácio

Lula da Silva, 2007) 20

.

Entre outras transformações para radiodifusão, na última década, o Brasil assistiu à

mudança do seu sistema analógico terrestre para a distribuição do sinal digital de TV.

Baseado em uma difusa combinação de decretos e portarias, o sistema contabiliza em sua

trajetória avanços importantes para o debate da TV Pública e toda rede de informação no país,

ao mesmo tempo em que ratifica uma série de problemas históricos no campo da regulação,

financiamento e concentração das outorgas para operar os canais de televisão.

Ao ponderar o processo de implantação da TV digital brasileira, Bolaño e Brittos

(2007b) a consideram uma plataforma tecnológica capaz de transformar a comunicação

principalmente porque realiza a convergência de inúmeros serviços e reduz barreiras entre as

indústrias culturais e seus modelos de organização. Também para os autores, a digitalização

representa a possibilidade de construir uma esfera pública mais democrática. Para o professor

da Universidade da República do Uruguai Gabriel Kaplún (2007), o caso brasileiro de TV

digital é também uma chave para compreender, em toda América Latina, o que está

acontecendo e o que pode acontecer, o que já foi feito e o que se pode fazer.

O tema da digitalização da TV e seu futuro levaram pesquisas por rotas diferentes no

Brasil. Muitas divergências se deram (e perduram) sobre a democratização a partir da

ocupação, pensando, por exemplo, que o conteúdo de um canal de TV pode ser feito por

todos. Isso é um grande mito, diz o professor Newton Cannito (2010, p.10) “é claro que

qualquer um pode pegar a câmera e filmar alguma coisa, mas será que todos um dia

conseguirão fazer um programa de TV que interesse um grupo maior que o de seus amigos?”.

Ao passo em que Crocomo (2007) discute como o receptor, em meio a essa revolução

20

Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferido em rede nacional de TV aberta, na ocasião do

lançamento da TV Digital no Brasil. Disponível na integra em http://g1.globo.com/Noticias/0,,MUL201695-

15515,00-LULA+PROMETE+R+BILHAO+PARA+A+TV+DIGITAL.html. Acesso em: ago.2018.

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tecnológica, pode ser cada vez mais também um emissor – ainda que limitado, pontuando a

formação como essencial no processo.

Seja por uma abordagem técnica, seja por uma leitura mais sociopolítica, grandes

expectativas e questões estão sendo levantadas em toda a cadeia produtiva e também

acadêmica sobre a televisão digital. Discutem-se ainda aspectos decisórios para essa nova

cultura televisiva do país, distinguindo as formas de poder estabelecidas na estrutura política e

nas relações jurídico-econômicas do processo.

Ao defender a esfera pública popular como real espaço dialógico, por exemplo, a

pesquisa de Cinthya Pires Oliveira (2016) aponta a necessidade de discutir as reais exclusões,

inerentes ao sistema capitalista, e de descontruir as estratégias para a manutenção do poder

baseadas em táticas financeiras e ideológicas praticadas pelo Estado e pelos setores privados

também no campo midiático. Há também trabalhos com atenção especial ao campo público da

TV, a exemplo da desenvolvida por Viviane Lindsay Cardoso (2012), que debateu a

digitalização da televisão pública, com foco no caso da multiprogramação na TV Cultura.

Mesmo com tanto navegar, a multiprogramação ainda é alvo de poucos olhares. As

pesquisas que discutem esse tema, em geral, o tratam como uma possibilidade ou uma

promessa, e tais fatos se justificam por um recorte temporal, já que há uma distância relevante

entre o projeto de lei e a realização de um projeto concreto de multicanais públicos. No caso

experimental da TV Cultura (CARDOSO, 2012) a análise ainda não dispunha de dispositivos

legais que regulassem os multicanais e permitissem o seu efetivo funcionamento, mas a

discussão foi essencial para o que se alcançou com a implantação.

O recorte ao qual esta dissertação se detém na leitura da TV digital está exatamente a

multiprogramação, sua regulamentação e consequente oferta do Canal da Cidadania, com foco

na experiência da TV Kirimurê, primeira a entrar em funcionamento no Brasil. É importante

pontuar que a existência da TVK começa a partir da autorização que o Ministério das

Comunicações concede a TV Educativa do Estado – a TVE BA para multiprogramar. O

percurso é especialmente marcado em 2003, a partir do decreto nº 4.901, pelo qual se instituiu

o SBTVD, ao tempo em que foi encaminhado o planejamento da transição da TV aberta

analógica para a digital.

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3.1 ROTA NACIONAL: TV DIGITAL E MULTIPROGRAMAÇÃO

A digitalização provoca maior impacto na televisão terrestre, hertziana, cuja

transição em nível internacional está mobilizando governos, agentes

econômicos e algumas poucas entidades não governamentais que conseguem

intervir nos debates usualmente pouco inclusivos, envolvendo uma alteração

conceitual com impactos sobre o conjunto da indústria televisiva e suas

diferentes trajetórias tecnológicas (BOLAÑO, BRITTOS, 2007b, p. 56).

A TV digital já era debatida no país durante o segundo governo de Fernando Henrique

Cardoso, mesmo período da privatização das telecomunicações. Na ocasião, o mercado

mundial estava em corrida por estabelecer as tecnologias digitais para o novo sistema de

televisão que viria a ser predominante, e os EUA e a Europa saíram na frente, com os sistemas

ATSC (Advanced Television Systems Committee) e o DVB (Digital Video Braadcasting),

respectivamente. O Japão veio em seguida, com a oferta do ISDB (Integrated Service Digital

Broadcasting) e se juntou como proposta na busca por melhoria na qualidade da imagem e o

aumento da oferta de canais de TV. Três tecnologias estavam, portanto, disponíveis para

venda a todo o mundo.

Entre outras iniciativas, as ondas internacionais chegam ao contexto brasileiro em

1999, quando o país deu início a testes entre os três sistemas disponíveis até então21

, atividade

que foi realizada pela Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV), pela SET

(Sociedade de Engenharia de Televisão e Telecomunicações) e pela Universidade Mackenzie.

Também foram realizados estudos técnicos e mercadológicos pela Fundação CPqD (Centro de

Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações), a partir de demanda da Anatel (Agência

Nacional de Telecomunicações). Pouco depois, em 2002, houve novo aceno em relação à

definição acerca do assunto, mas, frente à chegada de um novo governo, o então presidente

optou por deixar a decisão ao novo ocupante do Palácio do Planalto (Intervozes, 2006, p.8).

O recorte temporal aqui apresentado, no entanto, toma como ponto de partida a

iniciativa de 23 de novembro de 2003, quando da instituição do Sistema Brasileiro de

Televisão Digital (SBTVD), pelo decreto 4.901. Dez artigos distribuídos em três laudas

compõem o Decreto e entre as providências previstas, está a criação de três instâncias para

gerenciar o Sistema: dois comitês, um de Desenvolvimento, interministerial e vinculado à

Presidência da República, e outro Consultivo, formado por representações empresariais e de

21

Havia ainda um quarto modelo digital sendo desenvolvido, o chinês, país com o qual o Brasil tentou parceria

para elaborar um sistema original para ambas as nações, mas não foi prevalente.

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setores sociais, responsável por propor as ações e diretrizes fundamentais do Sistema; além de

um Grupo Gestor, encarregado pela execução operacional e administrativa do projeto. Esse

formato gerencial tinha a missão de trabalhar em consonância com os objetivos do SBTVD,

entre os quais estava o de promover a inclusão social e a diversidade cultural do país por meio

do acesso à tecnologia digital, visando à democratização da informação.

Foram três anos até escolha definitiva pelo modelo a ser adotado, com intensos

debates que marcaram as políticas públicas para implantação da TV Digital brasileira.

Universidades tiveram a oportunidade de desenvolver pesquisas na busca de, sobretudo,

propor um sistema próprio nacional e a ANATEL administrou os trabalhos direcionados à

escolha do modelo que melhor atendesse as necessidades do país. Em convênio assinado entre

a CPqD e o Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel),

foram investidos 65 milhões de reais em consórcios destinados a desenvolver propostas desde

a camada de hardware até os aplicativos para TV digital 22

.

Entre os sistemas de modulação testados, o modelo nipônico foi escolhido pelo

governo federal para servir de base ao padrão brasileiro, instalado em junho de 2006, agora na

gestão do ministro das comunicações Hélio Costa, quando publicado o Decreto 5820/06. A

versão final ficou conhecida como nipo-brasileira, um padrão híbrido que trazia como

contribuições brasileiras o middleware Ginga e o aperfeiçoamento das tecnologias de

compressão e transmissão e as contrapartidas interativas, que foram dadas como principais

motivos para escolha do padrão japonês, que aceitava tais adaptações.

O Ginga é uma espécie de sistema operacional para TV interativa, que permite ao

usuário fazer várias operações, como marcar consultas ou comprar online, por exemplo. Foi

planejado para oferecer principalmente ao cidadão de baixa renda um canal de retorno para

interatividade, e aquilo que faz pouca diferença para quem já possui computador com internet

em casa, poderia ser uma revolução para a classe mais pobre, de acordo com o projeto.

Desenvolvido por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e da

Universidade Federal da Paraíba, o ginga é o que há de mais nacional no projeto da TV digital

brasileira, e quando combinado aos multicanais e aos múltiplos meios digitais, configura uma

expansão significativa para a navegabilidade televisiva, sendo uma característica diferenciada

e consonante às convergências midiáticas.

22

Documento com esse e outros dados disponível em http://www.set.org.br/wp-content/uploads/2017/05/SET_-

_especial_pt.pdf. Acesso em: jul. 2018.

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Houve, no entanto, forte resistência do mercado radiodifusor e dos grandes fabricantes

de aparelho de TV ao uso do middleware brasileiro, tanto por não concordar com a

multiprogramação, no primeiro caso, como por reserva de mercado, já encabeçados pelas

smarts TVs, no segundo. Desse modo, pressionado, o governo federal cumpriu com a entrega

de milhões de kits (set-top-boxes) 23

com antena e conversor digital para beneficiários de

programas como Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, mas todos sem modem, portanto,

sem acesso à internet e à possibilidade de utilizar o Ginga.

A determinação pelo modelo japonês ratifica um complexo espaço de disputa

comercial, política e simbólica, que pode ser demonstrado, entre outros dados, na condição do

ministro Hélio Costa, que trabalhou durante anos para a Rede Globo de Televisão. Hélio

Costa foi apontado por muitas lideranças de ONGs e outros atores da sociedade civil e

associações envolvidas no projeto da TV digital, como representante dos interesses dos

radiodifusores comerciais. De acordo com Rodrigues (2008), ao substituir Miro Teixeira, que

defendia um padrão de TV digital brasileiro, Costa, que foi ainda antecedido por Eunício de

Oliveira, chega ao governo como moeda de troca para amenizar os ânimos da grande mídia,

aguçados pela crise de governabilidade gerada por denúncias de corrupção24

.

A cargo do Fórum de TV Digital (que substituiu o Grupo Gestor disposto no Decreto

do SBTVD), controlado pelo empresariado e por representantes de segmentos comerciais, a

decisão sobre a escolha do sistema ocorre sem consulta ao Conselho Consultivo, um entre os

motivos que levaram o Ministério Público Federal (MPF) em Belo Horizonte a entrar com

uma ação civil pública. De acordo com o MPF, a administração pública, ao escolher um

padrão tecnológico que onera o usuário, deveria fundamentar sua opção ou demonstrar que o

padrão japonês é mais vantajoso por outros motivos, o que não aconteceu (BOLAÑO E

BRITOS, 2007b, p. 173).

Segundo dados do Relatório do modelo de referência do SBTVD, produzido pelo

CPqD em 2006, o sistema japonês era o mais caro para o consumidor. O europeu ou o

americano garantiriam preços mais acessíveis, e o DBV europeu traria ainda mais vantagens

econômicas, uma vez que era o sistema mais adotado no mundo e a larga escala de produção

reduziria os custos de parte dos componentes técnicos (CANNITO, 2010). O Brasil acabou

por se isolar do mercado internacional ao implantar uma tecnologia híbrida, e a inclusão de

23

Set-top-boxes são kits que acoplados a um aparelho de TV analógico permitem que receba o sinal digital. 24

Processo que foi amplamente midiatizado e ficou conhecido como Mensalão, descrito como esquema de

compra de votos de parlamentares, deflagrado no primeiro mandato do governo de Luís Inácio Lula da Silva.

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todos os cidadãos no processo de digitalização do sistema televisivo ficou comprometido em

função dos altos custos previstos – para compra obrigatória de novos televisores ou de

conversores digitais.

A ousada iniciativa do governo federal de regulamentar a comunicação junto com a

cultura, criando para estes bases para o exercício da soberania nacional, é assim tomada por

uma inversão de prioridades (FNDC, 2005). O projeto que tinha por base a defesa da esfera

pública da comunicação passa a operar através do modelo de negócio das grandes empresas

de radiodifusão do país, limitando o desenvolvimento da indústria e a inclusão social, em

mais uma onda de instabilidade para as mídias públicas do país.

Durante a implantação do sistema de TV digital, o jogo que tem a televisão como forte

instrumento para manter a ordem simbólica é conservado. Para o cidadão comum nenhuma

dessas estruturas de interatividade, multiprogramação, ou usabilidade foram apresentadas para

uso efetivo. Em geral, para ele, o entendimento sobre TV digital se limita ao produto final

entregue em imagem e som de alta qualidade na tela do aparelho de TV, superando chuviscos

ou antenas inoperantes, outrora dependentes de esponjas de aço para retornar a programação.

Tais fatos refletem uma ausência histórica, no projeto político brasileiro, de debates

públicos abertos que tratem da comunicação como direito de todos. Desde a pauta do que

prevê a Constituição Federal de 1988, no que diz respeito ao direito à informação, liberdade

de expressão e imprensa, até os esclarecimentos sobre o amplo significado da migração para o

sistema de TV digital. Lacunas que são aumentadas pelo predomínio da linguagem técnica e

jurídica no trato do tema, e pela abordagem reduzida divulgada pela grande mídia.

A Rede Globo de Televisão, por exemplo, anunciou por um longo período a sua

campanha sobre o desligamento da TV analógica, ensinando aos telespectadores como

instalar a antena digital e ligá-la ao aparelho de TV. Entre outros artistas populares do

período, a cantora Anitta traz em um dos vídeos da ação: “Prepara, que agora é hora da Globo

Digital invadir sua TV e deixar tudo legal, a imagem fica show e o som sensacional”, e

completa “É simples de fazer, só precisa uma antena UHF, é um plug só” 25

, mensagem

repetida de maneira enfática em todas as peças, acionando a migração digital apenas por seu

aspecto técnico e omitindo qualquer perspectiva de decodificação ampliada.

25

Campanha explicada em https://redeglobo.globo.com/tv-digital/noticia/tv-globo-digital-sorriso-maroto-anitta-

e-ludmilla-estrelam-campanha.ghtml. Acesso em: jul. 2018.

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O entendimento da população brasileira sobre essa nova tecnologia ampliaria (o que

ainda pode vir a ser) as chances de consolidar elementos essenciais da TV Digital, como

maior interatividade, autonomia e participação popular para gerir, distribuir e compor a

programação na tevê aberta terrestre do país, o que compreende, além da TV e rádio, as

telecomunicações e todas as multiplataformas digitais. Havendo assim uma prática

contemporânea da inteligência coletiva, como proposto por Levy (1994) e reforçado por

Jenkins (2009), considerando-a como uma inteligência distribuída por toda parte,

incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que pode resultar em uma

mobilização efetiva das competências. De tal modo, a relação dos cidadãos com os meios

digitais compreende uma perspectiva mais inclusiva, principalmente pela fragmentação das

formas de elaborar e veicular conteúdo, agora também na TV aberta.

Em documento destinado aos três poderes e a toda sociedade brasileira, publicado em

2006 com propostas para a implantação do sistema digital nacional, o Coletivo Intervozes

chama atenção para o fato de que o sistema escolhido definiria parte do futuro das mídias

audiovisuais do país, já que incluía questões sobre democratização da mídia, acesso e inclusão

digital, convergências, indústria e produção local, além de regulação. Também salienta que

todas as decisões sobre o SBTVD poderiam ajudar o Brasil a se desenvolver na perspectiva do

interesse público, ou aprofundar erros históricos, como aumento da distância entre as

pequenas e grandes emissoras, mantendo a concentração da mídia.

Na prática, ainda que marcada por controvérsias e fortes divergências, é certo que a

chegada da TV digital no Brasil representa um momento de mudanças estratégicas e o

vislumbre de novas possibilidades, especialmente para o campo público da comunicação. O

momento de transição, em curso, permite mensurar a reorganização do sistema televisivo, e

entre desenvolver e aprofundar erros, é possível identificar subsídios para os dois lados, sem

exatamente polarizar os resultados ou encaminhamentos.

Um dos elementos de maior relevância para o debate da democratização da TV é a

multiprogramação, definida como “transmissão simultânea de vários programas dentro de um

mesmo canal de 6MHz”, como descrito na Norma Geral nº01/2009 para Execução do serviços

de Televisão Pública Digital, aprovada pela Portaria Nº 24 do Ministério das Comunicações,

de 11 de fevereiro de 2009. Ela foi destacada no relatório do Grupo de Trabalho “Migração

Digital”, do I Fórum Nacional de TVs Públicas (2007), como modelo estratégico para as TVs

públicas por ampliar o número de canais e permitir uma programação diferenciada, atendendo

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a necessidade de produzir e veicular conteúdos para todas as demandas da sociedade, com

suporte para abordagens locais e regionais, sendo também um espaço para experimentação de

linguagens. Assim, se por um lado houve direcionamento para os interesses das empresas

privadas, a multiprogramação é, sem dúvidas, uma grande conquista para o campo público

dentro do projeto original do SBTVD.

Tecnicamente, há possibilidade de dividir um espaço antes analógico em até treze

faixas digitais, uma vez que a tecnologia atual compacta os dados de áudio, vídeo e softwares

e transforma tudo em combinações numéricas binárias de “zeros” e “uns”. Cada pixel passa a

ser representando por essa combinação e é por isso que a informação é digital (CROCOMO,

2007, p.57). O conteúdo chega sem nenhuma perda de qualidade ao decodificador digital nos

aparelhos de recepção – que podem ou não ser uma TV – o que deixou ainda mais fácil “ver”

o resultado da transição. Na TV binária, é como se a o aparelho televisivo passasse a ser um

computador com funções reduzidas, mas com um uso mais eficiente, permitindo que diversos

conteúdos sejam difundidos em um mesmo canal.

As terminologias técnicas ajudam a melhor compreender a organização desse espaço:

uma das fatias é destinada ao one-seg, que é a transmissão para receptores portáteis ou

móveis, e as outras 12 para receptores fixos terrestres. Entre as combinações possíveis, são

necessárias 12 fatias26

para uma transmissão em Full HD, seis para uma transmissão em HD –

High Definition, e três para uma transmissão em SD – Standart Definition, o que pode ser

lido, em síntese, como a possibilidade de multiplicar em até quatro (SD), o número de canais

nacionais, além do conteúdo para dispositivos móveis.

Vale dizer que mesmo o formato SD digital é muito superior em qualidade se

comparado às resoluções de som e imagem analógicas, mas a oferta da imagem em alta

definição foi usada por muitas emissoras de TV comerciais como prioridade na transmissão

digital, e a multiprogramação acabou como pauta de tantos outros embates, como veremos.

O decreto que institui o sistema de TV digital não trata diretamente da

multiprogramação, mas já indica que poderão ser explorados diretamente pela União pelo

menos quatro canais digitais de radiofrequência com largura de banda de seis mega-hertz: os

canais do Poder Executivo, o Canal de Educação, o Canal de Cultura e o Canal da Cidadania.

26

De acordo com Fernando Crocomo (2006), em termos técnicos, na programação digital o correto é usar o

termo “programa” ao invés de “canal”. Quando falamos em canal de TV de 6 MHz, a referência é feita aos

canais atuais de TV aberta no Brasil. Quando nos referimos à possibilidade de vários “canais” onde existe um

canal de 6MHz, na verdade, podem ser transmitidos vários programas de TV digital simultaneamente. Aqui

usamos termos semelhantes para melhor ilustrar o aspecto físico do canal, a exemplo da palavra “fatia”.

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Para o primeiro canal, a proposta é transmitir atos, trabalhos, projetos e sessões do Poder

Executivo, algo próximo as já conhecidas TV Câmara e TV Senado. O ensino a distância,

capacitação de professores e outras transmissões destinadas ao aprimoramento do processo

educativo eram conteúdos esperados para o Canal da Educação, retomando a retrógrada ideia

de educação estrita às pedagogias de sala de aula.

As maiores novidades estavam nas nomenclaturas da Cultura e de Cidadania. Um

descrito em lei como canal para transmissões de produções culturais e programas regionais, e

o outro para divulgar programações das comunidades locais. Para o de Cidadania estava

previsto também divulgar atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos

federal, estadual e municipal, dando continuidade a um confuso modo de distinguir e regular a

radiodifusão brasileira, mas já prevendo a necessidade de transformar o modo broadcasting

centralizador da TV analógica.

Em 2009, através da Norma Geral nº 01, para execução dos serviços de TV Pública

Digital, são regulamentadas regras para o compartilhamento de canais utilizados pela União e

a multiprogramação passa a ser prevista e regulada, surgindo de maneira restrita e assegurada

apenas às emissoras consignatárias do serviço de radiodifusão – as TVs Públicas Federais.

Excluía-se oficialmente qualquer emissora comercial e mesmo as TVs educativas estaduais do

projeto inicial de multicanais. Nas disposições finais da Norma, em seu último artigo,

ratificava-se “A multiprogramação somente poderá ser realizada nos canais a que se refere o

artigo 12 do Decreto no 5.820, de 29 de junho de 2006, consignados a órgãos e entidade

integrantes dos poderes da União”.

A justificativa do MiniCom para a medida restritiva residia, nas palavras de seu

consultor jurídico Marcelo Bechara de Souza Hobaika durante entrevista coletiva sobre o

assunto, na preocupação de não abrir uma brecha legal para o uso irregular dos multicanais.

Em seu discurso, Bechara assegurou que as normas de multiprogramação para as educativas e

comerciais sairiam em outro momento, sobretudo para impedir que os canais digitais fossem

subcontratados, compartilhados, cedidos ou transferidos a terceiros, como aos serviços de

televendas ou igrejas, por exemplo, o que iniciaria com vícios o recurso de multiprogramar.

As redes comerciais de TV, proibidas por lei de utilizar a multiprogramação, dividiram

opiniões sobre o tema, o que em parte ajuda a esclarecer os inúmeros entraves sobre ela. Para

algumas, como a Rede Globo, a multiprogramação representaria abertura de novos espaços,

mas não a geração de novos anunciantes ou verbas publicitárias. João Roberto Marinho, em

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entrevista à Folha de São Paulo, em 2006, confirma que a prioridade é a transmissão em alta

definição, e que a aposta é na qualidade da imagem, atrativo principal para o canal aberto 27

.

Ou seja, para a emissora era preferível usar as doze fatias do canal digital para operar uma só

faixa, com qualidade full HD.

Dissonantes, as diretorias das TVs Bandeirantes e da Record se manifestaram contra a

proibição, e a consideravam uma medida incoerente, já que a tecnologia escolhida pelo Brasil

tem a multiprogramação como uma de suas principais vantagens 28

. A Associação Brasileira

de Radiodifusores (ABRA) defendia que a decisão de usar ou não o recurso deveria ser

exclusiva para cada emissora, considerando a restrição ilegal, o que a levou a mover uma ação

ordinária junto ao Supremo Tribunal de Justiça, na qual solicitava suspender os efeitos

restritivos publicados pelo Ministério das Comunicações. O pleito, no entanto, não foi

atendido, e a proibição foi mantida 29

.

Renato Cruz (2008) afirma que a maior preocupação das grandes redes de televisão era

evitar que o canal de 6 MHz, em alta definição, fosse subdividido entre elas e as empresas de

telefonia, como aconteceu na Europa por exemplo, aumentando a disputa pelo mercado de

produção e difusão de conteúdo audiovisual. A dissensão, como se vê, tratava sobre como

deveriam ser ocupadas as faixas do canal digital, o que por sua vez abriria um distinto espaço

de disputa, agora com outras possíveis produtoras de conteúdo.

Por outras razões, os debates sobre a multiprogramação mobilizaram também o

Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que em 2007, junto com outras entidades, ajuizaram

uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o decreto do SBTVD. O partido era contra

os artigos que permitem às redes já outorgadas para operar as faixas analógicas,

automaticamente passarem a ter consignação para a faixa digital. O argumento foi de que

conceder a multiprogramação para as mesmas empresas que já operavam canais analógicos

aprofundaria o oligopólio existente, ferindo o artigo 223 da Constituição Federal 30

e criando

um novo latifúndio eletromagnético.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade, o partido alegava ainda que a TV digital

deveria se configurar em um novo serviço, o que foi julgado improcedente pelo STF. Ao

27

Entrevista concedida à jornalista Patrícia Zimmermann, em 29 de junho de 2006. Disponível em

https://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u109010.shtml. Acesso em: abr. 2018. 28

Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,tvs-reagem-a-proibicao-da-

multiprogramacao,368286. Acesso em: set. 2018. 29

Matéria da FNDC, publicada em 07/07/2009, disponível em http://www.fndc.org.br/clipping/abra-vai-a-

justica-para-derrubar-proibicao-a-multiprogramacao-398967/. Acesso em: maio 2018. 30

(ADI) nº 3.944, contra os artigos 7º a 10 do Decreto 5.820/2006

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justificar seu voto, o ministro Ayres Britto, relator do processo, afirma: “Não considero a

televisão digital um novo serviço em face da TV analógica, trata-se ainda de transmissão de

sons e imagens, mas passa a ser digitalizada, a comportar avanços tecnológicos sem perda de

identidade jurídica” 31

. Sobre os monopólios e oligopólios, Britto afirmou que, se estão a

ocorrer nos meios de comunicação brasileiros, tal fato não se deve ao decreto contestado, mas

é algo preexistente, e conclui enfatizando que a imprensa e o governo se façam dignos da

decisão, atuando no campo da proibição da oligopolização e da monopolização.

As emissoras públicas tiveram destaque nesse debate com a TV Cultura de São Paulo,

que começou a multiprogramar sem licença, desafiando o MiniCom. O ministro Hélio Costa

se manifestou em entrevista ao Jornal Estado de São Paulo, quando disse que “A permissão

para multiprogramar sem uma normatização é prejudicial. A sociedade perde o controle,

assim como aconteceu com as rádios comunitárias. Não vamos saber quem está fazendo

televisão” 32

. Até que, depois de ampla negociação, a TV Cultura conseguiu autorização para

testar os multicanais em caráter científico e experimental, oficializada no Despacho emitido

pelo ministro em Diário Oficial da União, em maio de 2009.

A TV Cultura colocou no ar duas faixas, uma para o Univesp TV (Universidade

Virtual do Estado de São Paulo) e outra para o Multicultura, indicando estratégias possíveis

para muitas outras emissoras públicas locais, tanto no aspecto técnico quanto para

programação, com conteúdo e ferramentas de apoio para formação de alunos do ensino

superior público, e a oferta de séries, documentários, musicais e exibição de muito conteúdo

raro do acervo de mais de 40 anos da Cultura.

Ressalte-se que, como traz Viviane Cardoso (2012), ao conseguir multiprogramar,

ainda que em formato experimental, a TV Cultura se tornou um referencial para as TVs

públicas digitais no país, e também um modificador da própria legislação que estava sendo

estruturada. A Cultura também expandiu as discussões sobre possibilidades de uso da

tecnologia digital, criando precedentes para explorar de modo mais amplo as potencialidades

da multiprogramação como uma alternativa à cultura televisiva predominante, e evidenciando

o espaço para regionalização de conteúdo no país.

31

Disponível em http://www.telesintese.com.br/multiprogramacao-da-tv-digital-fica-proibida/. Acesso em: jan.

2018. 32

Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tv-cultura-desafia-helio-costa-e-lanca-mais-2-

canais,334948. Acesso em: jun. 2018.

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E não só a multiprogramação aparece como estrutura importante para o debate e a

regulamentação das mídias públicas junto ao sistema de TV digital. No texto da Norma Geral

nº1, previa-se no item 2 que trata das definições :

Estação Reforçadora de Sinal – É a estação destinada a melhorar a

recepção do sinal da estação geradora ou retransmissora de televisão digital

terrestre em área de sombra no interior do seu contorno de serviço;

Interatividade – é a funcionalidade de uma determinada mídia que

proporciona ao telespectador a possibilidade de atuar sobre o conteúdo ou a

forma de comunicação acessível localmente ou mediante canal de retorno

para a emissora de televisão pública digital; Multisserviços – é a oferta de

serviços provenientes da convergência de mídias, tais como vídeo, áudio e

dados, em um mesmo canal consignado;

Operador de Rede de Televisão Pública Digital – é a entidade encarregada

do transporte dos sinais de radiodifusão pública produzidos, gerados ou

retransmitidos pelos consignatários e destinados aos telespectadores;

Plataforma Única e Integrada de Multisserviços e Multiprogramação –

infraestrutura comum e compartilhada capaz de possibilitar a oferta de

multisserviços e multiprogramação; Retransmissora de Televisão Pública

Digital – é o conjunto de receptores e transmissores, incluindo equipamentos

acessórios, capaz de captar sinais de sons e imagens e retransmiti-los, bem

como inserir programação local, para recepção pelo público em geral;

A maior parte desses pontos, no entanto, não voltou a ser pautada pelo Ministério das

Comunicações ou por outras frentes do governo federal. O projeto do Operador Único de

Rede de TV Pública Digital, por exemplo, previa constituir uma rede de antenas com sinal de

televisão digital em centenas de cidades brasileiras, que seriam responsáveis pela transmissão

dos sinais de diversas emissoras de caráter público e estatal, nacionais e locais, que fizessem

parte do sistema público. Este projeto estava inscrito nos Ministérios da Comunicação,

Ministério da Educação, Ministério da Cultura, a TV Câmara, TV Senado e TV Justiça, e

estes estavam responsáveis por compartilhar os custos de implantação do Operador de Rede,

calculados em quase três bilhões de reais 33

. Previa-se que a instalação se daria por uma

parceria público-privada, a partir de editais.

A Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que coordenou o projeto de implantação do

Operador, realizou debates e audiências públicas sobre o tema, mas o projeto não saiu do

papel. Por consequência, o mesmo se deu com a Rede Nacional de Televisão Pública (RNTP).

33

Dados disponíveis em https://frentecom.wordpress.com/tag/operador-unico-de-rede-de-tv-publica-digital/.

Acesso em jul. 2018.

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No site da EBC há um espaço específico para informações sobre o Operador Único da Rede

Nacional de TV Pública Digital Terrestre (RNTPD), mas nada consta além de hiperlinks que

são direcionados para abas com a mensagem “página não encontrada”. A saber, o último link

tem como título “TVs e entidades do Campo Público cobram definição governamental sobre

Operador Único da Rede Pública Digital” e data de 14 de junho de 201134

.

No curso geral da digitalização da TV Pública, a multiprogramação se manteve ativa.

A Norma Geral nº1 foi sucedida por uma Portaria35

assinada pelo então ministro Paulo

Bernardo Silva, agora na gestão da presidente Dilma Rousseff, em 2012. O texto apenas

ratifica as regras já estabelecidas, e mantem a operacionalização dos canais para os órgãos da

União, mas abre uma discussão sobre a possibilidade de estabelecer parcerias, de forma não

onerosa, entre a União e órgãos, autarquias e fundações públicas dos Estados, do Distrito

Federal e dos Municípios, para compartilhamento de conteúdo. Além disso, estabelece a

multiprogramação para transmissões simultâneas em, no máximo, quatro faixas.

3.2 ROTA LOCAL: TVE-BA DIGITAL E O PRIMEIRO CANAL DA CIDADANIA DO

BRASIL

“A esperança parece vir do mar e das antenas de TV” 36

O termo “Canal da Cidadania” nasce com confusa explicação para o cidadão

brasileiro. Na letra da lei, como previamente aqui descrito, esse seria um entre os quatro

canais previstos no decreto que instituiu o SBTVD, para exploração exclusiva da União, se

juntando ao Canal do Poder Executivo, Canal da Educação e ao Canal da Cultura. Todos os

quatro Canais passariam a ser operacionalizados a partir de normas complementares, embora

a descrição do serviço para o Canal da Cidadania apontasse, já nesse primeiro texto, para a

execução de serviços públicos de governo eletrônico.

Os dispositivos técnicos disponíveis a partir da tecnologia digital, especialmente o

middleware Ginga, reforçavam o aspecto da cidadania a partir do acesso aos serviços básicos

oferecidos pelo Estado. Previa-se, entre outros, que o cidadão poderia marcar um atendimento

do Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC) ou solicitar uma informação à ouvidoria do

34

Conforme link http://www.ebc.com.br/institucional/sobre-a-ebc/noticias/2011/09/operador-unico-da-rede-

nacional-de-tv-publica-digital-terrestre-rntpd. Acesso em: ago. 2018. 35

Portaria nº106, de 02 março de 2012. Disponível em http://www2.camara.leg.br/comunicacao/rede-legislativa-

radio-tv/arquivos/legislacao-arquivos/portarias-ministerio/Portarian10602MAR2012Multiprogramao.pdf. Acesso

em: ago. 2018. 36

Trocadilho com a música Alagados, da banda brasileira Paralamas do Sucesso. EMI MUSIC, 1996.

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município a partir da TV, que agora teria conexão direta com a internet. Aos poucos a

percepção sobre as funções do Canal cidadão foi ampliada, e ao contrário dos outros três que

não se materializaram para a população, o Canal da Cidadania passou a ter destaque em 2010.

O primeiro ato oficial foi a Portaria nº189, publicada em 24 de março de 2010 pelo

Ministério das Comunicações e estabelecendo diretrizes para operacionalização do Canal da

Cidadania. Foi a última ação do ministro Hélio Costa sobre o tema, ele que já havia criado

muitas expectativas a respeito, na ocasião da Conferência Nacional de Comunicações, a I

CONFECOM, em 2009, ocasião onde também se destacaram as dissidências entre os

articuladores do campo público da comunicação.

O texto da portaria mantém a autorização apenas para a União, o que só viria a mudar

em 2012, primeiro com o decreto nº 7670, no qual finalmente o Ministério das Comunicações

autoriza outorgas para Estados, Distrito Federal e Municípios explorarem o Canal. Com a

multiprogramação agora autorizada para outras instâncias governamentais, a margem de

disputa para ocupação de espaços na faixa de frequência da radiodifusão era reaberta, e assim

também os debates e dissensões a respeito.

Em seguida, o Canal da Cidadania recebe sua Norma Regulamentar, também

publicada em forma de decreto (489/2012), e as regras ficam disponíveis e mais claras para

quem desejava obter esse espaço na TV aberta:

Por meio da multiprogramação, o Canal da Cidadania será dividido nas

seguintes faixas de programação: uma faixa de programação para a

veiculação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos do Poder Público

municipal; uma faixa de programação para a veiculação de atos, trabalhos,

projetos, sessões e eventos do Poder Público estadual; e duas faixas de

programação para a veiculação de programas produzidos pela comunidade

do Município ou que tratem de questões relativas à realidade local.

Antes da publicação do texto final da Norma, durante o período de um mês, o

Ministério das Comunicações disponibilizou o documento em seu site para consulta pública.

A novidade da regulamentação, se comparada às normas anteriores sobre o Canal da

Cidadania, era exatamente o modelo baseado na multiprogramação em quatro faixas. Ao

tratar da relevância do Canal, o então coordenador-geral de Radiodifusão Comunitária do

MiniCom, Octavio Pieranti, afirma que a ideia era permitir que a sociedade acompanhasse o

trabalho do poder público local e que a população se expressasse direta e gratuitamente na

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radiodifusão aberta digital 37

. Assim se consolidando, a cidadania implicada no projeto do

Canal poderia (pode) ser lida de maneira ampliada, tanto na perspectiva do direito à

informação pública – no exercício de sua transparência, quanto da livre expressão e ocupação

do espaço público de radiodifusão por diferentes discursos.

Sem grandes mudanças, a publicação do Decreto se deu em dezembro de 2012, e

trouxe esclarecimentos sobre os princípios do Canal da Cidadania, as condições básicas para

explorar o seu serviço e descreveu sobre os requisitos para a outorga e o compartilhamento do

Canal. Sobre a outorga, a exploração fica por competência dos estados, municípios, Distrito

Federal e fundações e autarquias a eles vinculadas, aos quais compete igualmente a

responsabilidade de implantar e explorar o Canal da Cidadania, transmitir a programação em

todas as quatro faixas e arcar com os custos relativos à operação e à transmissão.

As associações comunitárias não podem ser responsáveis legais pelo Canal da

Cidadania – uma vez que seria contra a legislação. Por outro lado, depois de autorizada a

operação do Canal, as entidades ganham o direito de solicitar duas das quatro faixas e

organizar o conteúdo prioritariamente local, demandado por seus agentes sociais e articulado

com de maneira horizontal, dialógica e inclusiva, embora a condução de tais atividades nas

perspectivas de autonomia financeira e de gestão não tenha sido firmadas.

Os municípios, na letra do decreto, tinham prioridade para solicitar a autorização. E

não só as prefeituras poderiam fazê-lo diretamente, mas também órgãos diretamente a elas

vinculados. Para isso, era necessário: o município enviar solicitação ao MiniCom juntamente

ao projeto técnico do Canal; Montar o Canal após autorização do projeto pela ANATEL e

pelo ministério – quando a gestão municipal compra todo o equipamento necessário para

instalação e transmissão do Canal; Depois de montado, o Canal passa a transmitir a

programação local; e por fim, depois de inaugurado o Canal, o órgão estadual e a entidade

civil selecionada ocupariam suas faixas.

Somando um total de 29 exigências para alcançar a licença, cada uma dessas fases

previa documentos e encaminhamentos detalhados. Na primeira delas, o município solicitante

deveria juntar entre outros itens, um ato normativo em que disponibilizava recursos

financeiros para o Canal da Cidadania – a comprovação de que dispunha de orçamento ou se

comprometia a destinar verbas específicas para o Canal e um Projeto Técnico. Para este, um

37

Entrevista disponível em http://www.brasil.gov.br/editoria/educacao-e-ciencia/2012/03/ministerio-das-

comunicacoes-quer-ouvir-a-sociedade-sobre-o-canal-da-cidadania. Acesso em: jan. 2018.

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engenheiro de telecomunicações com registro no CREA (Conselho Regional de Engenharia e

Agronomia) deveria avaliar: o local da antena, a potência do transmissor, o direcionamento da

antena, a necessidade de repetidores, a necessidade de um link entre o estúdio e o transmissor

e os custos de todo esse projeto. Estava posto um caminho com muitas variáveis para que o

Canal da Cidadania chegasse ao município.

A contar da publicação do decreto – 18 de dezembro de 2012, as cidades brasileiras

tiveram o prazo de dezoito meses para solicitar ao Ministério das Comunicações autorizações

para operar o Canal. Depois de vencido o prazo, em localidades onde as prefeituras não se

manifestassem, os governos estaduais poderiam entrar como solicitantes. Dos mais de cinco

mil municípios brasileiros, entretanto, pouco mais de trezentos registraram pedido, e

encerrado o prazo de 18 de junho de 2014, nenhum canal havia sido colocado no ar.

A principal justificativa apresentada pelos gestores das receitas públicas municipais

para a baixa adesão ao Canal da Cidadania é o que chamam de alto custo para implantar e

manter a iniciativa. De acordo com cartilha elaborada pela Associação de Comunicação

Educativa Roquette Pinto (Acerp), os custos iniciais variam entre 500 e 600 mil reais, além

dos gastos com manutenção, recursos humanos e produção de conteúdo38

. Outro motivo

pontuado foi a ausência de know-how para conduzir um canal televisivo, o que se explica pela

descrição do projeto técnico, por exemplo.

Um levantamento realizado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel),

através do Sistema de Acompanhamento de Controle Societário – Siacco, no entanto, orienta

o olhar para um dado crucial nesse jogo: dezenas de parlamentares são proprietários,

associados ou sócios de canais de rádio e de TV no Brasil. Desse modo, descaracterizar o

habitus do campo da radiodifusão brasileira e esclarecer os cidadãos sobre seus direitos para

assumir os controles dos meios de produção, como propõe Pierre Bourdieu (1997), é tarefa

mais complexa do que criar uma legislação.

Em 2013, a bússola começa a apontar para a cidade de Salvador, quando o MiniCom

passa a autorizar que as emissoras educativas que já possuíam outorgas para transmitir o sinal

de TV digital, desde que vinculadas a governos estaduais e municipais, pudessem solicitar

38

Cartilha disponível em https://pt.slideshare.net/CanaldaCidadania/cartilha-canal-da-cidadania. Acesso em: jul.

2018.

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anuência da Secretaria de Radiodifusão e utilizar o recurso de multiprogramação 39

. A Bahia

foi vanguardista no processo, e através de sua TV Educativa, ligada ao Instituto de

Radiodifusão Educativa do Estado (IRDEB), começa suas navegações com o fim exclusivo de

transmitir as quatro faixas dispostas na Norma Regulamentar do Canal da Cidadania.

É importante esclarecer que a digitalização da TVE BA não começa com o Sistema de

TV Digital Brasileiro, tampouco com a multiprogramação, o que por sua vez chama atenção

para o fato da migração digital incluir uma série de processos que envolvem desde hardwares

e softwares até a mudança no comportamento dos espectadores e dos meios de consumo.

Ainda em 1990 o governo do estado da Bahia investiu em tecnologia e aparelhamento de todo

IRDEB e a TV substituiu seus equipamentos analógicos por digitais (ROCHA, 2009), além de

digitalizar seu acervo e iniciar mudança de linguagem e identidade visual. Tudo já apontando

para as transformações conceituais e culturais em curso, e bem por isso a TVE BA já estava

tecnicamente preparada para multiprogramar no sistema digital.

Segunda emissora da Bahia a colocar o sinal da TV digital no ar 40

, a TVE BA foi

também pioneira e hoje carrega o título de primeira do Brasil a operar o Canal da Cidadania.

Para ela, o sistema digital se traduz principalmente em três frentes. Uma delas é a

possibilidade de seu sinal chegar a cidades que outrora não chegava. O modelo analógico e a

má qualidade do sinal prejudicavam a distribuição do seu conteúdo, enquanto o sinal digital é

praticamente imune a interferências.

Depois, o diálogo da TVE BA com as multiplataformas digitais se amplia: “O portal

do IRDEB, moderno, e de fácil navegabilidade, disponibiliza o conteúdo da TVE e da rádio

educadora em tempo real, em grandes eventos, alcança picos de até seis milhões de acessos,

num universo registrado de mais de 800 cidades, e 90 países”, divulga seu vídeo institucional

(2015) 41

. A iniciativa do novo portal multimídia, lançado em 2009, visa aumentar o alcance

das ações do instituto e trabalhar a convergência das mídias e linguagens.

O portal auxilia também na apuração do índice de alcance da audiência da TVE. Com

o levantamento permitido a partir dos acessos ao site e às mídias sociais, tem-se melhor

39

Portaria nº 57, de 13 de março de 2013 – Disponível em

http://www.mctic.gov.br/mctic/opencms/comunicacao/paginas/receber-outorga-de-canal-da-cidadania.html.

Acesso em: maio 2018. 40

Os canais digitais funcionam do espectro de 14 a 51, faixas UHF. Os canais de 2 a 7 deixarão de existir. A

TVE Digital passa a operar então o canal de radiofrequência 24 do Plano Básico de Televisão Digital, que chega

sintonizado nas residências no canal virtual 10 e assim subdividido em 10.1, 10.2, 10.3 e 10.4. 41

Vídeo institucional que documenta os 46 anos do IRDEB, produzido em 2015. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=v3D9D-OAALI. Acesso em: jan. 2018.

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dimensão sobre abrangência e interesse dos telespectadores pela Educativa da Bahia, números

que podem ter grande relevância para novas políticas públicas do campo público da

radiodifusão regional. Agora a TVE além de “singular e plural”42

, é também digital e

potencialmente internacional.

A terceira frente diz respeito à oportunidade de, diante de tão complexo panorama,

ampliar o exercício da cidadania e da democratização da comunicação, valores tão caros à TV

pública no país. Isso através da materialização do Canal da Cidadania de Salvador, que foi ao

ar depois de anos de processos, editais, portarias, decretos e impedimentos.

De acordo com o diretor geral do IRDEB no período, Pola Ribeiro, a solicitação partiu

da emissora porque seus dirigentes consideraram importante a implementação do Canal da

Cidadania e souberam aproveitar a alteração que foi feita na Norma. Ele indica que o pedido

foi feito ao MiniCom em 26 de dezembro de 2013, e a autorização foi publicada no Diário

Oficial da União de 12 de janeiro de 2014, menos de um mês de processo transcorrido43

.

Agora com um Canal da Cidadania autorizado, estão disponíveis quatro novas faixas44

para serem preenchidas por conteúdos diversos. E assim chega-se a segunda fase da ação, que

é a ocupação delas. À época, a TVE BA, entidade pública detentora da outorga, tinha suporte

técnico para operar apenas mais uma faixa além da sua, o que significa que, de imediato,

somente a prefeitura, ou o governo do estado ou uma associação comunitária poderia colocar

uma conteúdo no ar. Nesse sentido, visando esclarecer e estimular o terceiro setor, o IRDEB

realizou em julho de 2014 o Seminário Canal da Cidadania.

ONGS, Associações e OSIPs puderam esclarecer dúvidas junto à representação do

MiniCom45

e compreender melhor o procedimento para pleitear uma faixa do Canal da

Cidadania, uma vez que o aviso de habilitação do Ministério das Comunicações já estava em

andamento. Entre as questões levantadas, o coordenador da TV Pelourinho, canal comunitário

ligado a ONG Ação Pela Cidadania, pergunta: “A entidade local da cidade pode solicitar

diretamente o Canal junto ao Ministério?”, ao que é respondido: “Não. Esse é um Canal para

o poder público executivo municipal ou estadual. Se nenhum dos dois tiver interesse, abrimos

42

Solgan da TVE BA durante o período. 43

Disponível em http://www.fndc.org.br/clipping/salvador-e-rio-se-adiantam-para-ter-canal-da-cidadania-

934899/. Acesso em: jul. 2018. 44

A TVE (e também as demais TVs Educativas que solicitarem operar o Canal da Cidadania) tem cinco faixas.

Uma delas é destinada a programação já veiculada atualmente pela emissora. 45

Patrícia Ávila, secretária de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, disponível

em https://www.youtube.com/watch?v=u-EDCE_q1cE. Acesso em: jul. 2018.

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uma exceção para que uma TV educativa da cidade possa pedir”, e encerra “A associação

comunitária vai entrar sempre em parceria com um desses três” 46

.

Foi na ocasião do Seminário que os produtores independentes de Salvador, Aline Cléa

Souza e Anderson Soares Caldas 47

- que mais tarde passaram a fazer parte da comissão

gestora da TV Kirimurê – conheceram o Canal da Cidadania. A partir disso, provocaram

outras frentes e junto com a Organização Filhos do Mundo-FEME, reuniram manifestações de

apoio de dezenas de entidades da sociedade civil organizada, entre Fundações, ONGs e

Universidades, que juntos entraram na disputa para assumir uma faixa de programação,

processo que será detalhado na seção de análise da Kirimurê.

Ainda em 2014 o Ministério das Comunicações publica o resultado da habilitação que

incluía a FEME como a única Organização Social habilitada para operar a faixa do Canal de

Salvador, mas não veio na mesma velocidade a autorização para produzir e transmitir na

faixa. Primeiro porque o país entrou em processo eleitoral para a presidência da república e

depois, com a reeleição de Dilma Rousseff (2015-2018), mais uma vez o Estado passava por

uma grande crise de gestão, agora com o processo de Impeachment da presidente.

O cenário ideal para que o Canal da Cidadania enquanto política pública pudesse se

consolidar acontece entre 2015 e 2016 e incluía Juca Ferreira como Ministro da Cultura,

franco defensor da tevê Pública como “Uma TV eficiente, que vibre e que participe da

construção do Brasil” 48

; o jornalista Emiliano José como secretário de Serviços de

Comunicação Eletrônica – responsável por intermediar os pedidos de outorga junto a

ANATEL; e Pola Ribeiro como Secretário do Audiovisual, personagem político que

participou diretamente dos projetos da TV pública digital, e com declarado interesse no Canal

da Cidadania como plano para democratizar as práticas culturais em comunicação. Entretanto,

tudo ficou comprometido pelas mudanças causadas pelo contexto político nacional.

O período seguinte foi de intenso embate no cenário político de todo país, com forte

mediação das grandes mídias comerciais televisivas, o que aqui cabe como reflexão sobre a

relevância de oferecer à sociedade espaços de escuta e de fala alternativos e proporcionais ao

grande discurso hegemônico. Depois do interstício de mais de um ano sem nenhum

encaminhamento legal sobre o Canal, em um de seus últimos atos, no uso de suas atribuições,

46

Palestra completa disponível em https://www.youtube.com/watch?v=u-EDCE_q1cE. Acesso em: jul. 2018. 47

Informações sobre os produtores disponíveis em http://www.cinearts.com.br/quem-faz. Acesso em: jun. 2018. 48

EBC Coloca em discussão os desafios da TV Pública no Brasil. Disponível em

http://www.cultura.gov.br/banner2/-/asset_publisher/B8a2Gazsrvex/content/ebc-coloca-em-discussao-desafios-

da-tv-publica-no-brasil/10883. Acesso em: jul. 2018.

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a presidente Dilma Rousseff assinou a portaria nº 2.027, de 10 de maio de 2016, e tendo em

vista o que constava no processo nº 53900.010574/2014-12, designou a Associação Filhos Do

Mundo, entidade sediada na localidade de Salvador, Estado da Bahia, para operar uma das

faixas de programação do Canal da Cidadania. E assim, remando contra todas as marés, se

oficializa a história da TV aberta dos Tupinambás, a TV Kirimurê.

3.3 ROTA INAUGURAL DA KIRIMURÊ – PORQUE NAVEGAR É PRECISO

É isso ai meu pai, é isso ai minha mãe, a sua TV chegou. Assim como na

lenda, a ave kirimurê deitou sobre a costa da Baía de Todos os Santos, e fez

daquele lugar um lugar frutífero. E hoje a TV kirimurê chega na cidade

fazendo frutificar olhares diversos sobre si 49

.

Na voz do ator João Miguel, a narração anuncia a chegada da TV Kirimurê, faixa da

sociedade civil do Canal da Cidadania de Salvador. Fruto de encontros coordenados pela

FEME, com debates sobre a identidade da TVK, seu nome, programação, acessibilidade,

financiamento, o grupo de trabalho para implantação do Canal resolve uma data para sua

primeira aparição pública.

Salvador, Bahia, 20 de novembro de 2016. O ator e gestor cultural Bertrand Duarte

abre a primeira transmissão oficial – e ao vivo – da TV Kirimurê e conta sobre a lenda por

trás do nome, que vale dizer, foi escolhido entre mais de duzentas outras opções apresentadas,

através do método de concertação de marca comunitária (criar a identidade de grupos

comunitários por meio da escolha de nome e marca), o que já anuncia uma importante

estratégia para demarcar o compromisso da nova TV com a democracia e a diversidade.

Bertrand Duarte complementa que lançar a TVK é importante porque nesse país um

dos assuntos mais engavetados que existe é a democratização da mídia. Problematiza que há

uma total falta de compromisso dos canais comerciais com a cidadania e a regionalização, e

que de forma verticalizada o processo televisivo exclui iniciativas populares. Portanto,

continua afirmando que vivemos um grande marco na história do Brasil ao lançar uma TV

“que dá voz a pessoas como eu e como você, e que respeita todas as crenças e orientações”.

Em evento aberto e gratuito, na praça de alimentação de um shopping da capital, o

lançamento – que não pôde ser transmitido pela TV aberta por problemas técnicos –

49

Vídeo institucional da TV Kirimurê disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vuLDxv4NOcA.

Acesso em: jan. 2018.

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aconteceu via internet e reuniu diversos elementos que representam as promessas da TVK:

desde a data de inauguração, dia nacional da consciência negra, até os figurinos, cenários,

linguagens e a escolha dos apresentadores e de toda a programação.

Em um evento que totalizou aproximadamente quatro horas de transmissão, os artistas

Pedro Albuquerque e Pretha Souza, que também participaram como apresentadores,

reforçaram as intenções da entusiasta e jovem TV de trazer uma nova perspectiva para o

audiovisual baiano. Vai falar “a comunidade indígena, a agricultura familiar, produtores de

alimentos orgânicos, artesãos, pescadores, marisqueiras, o povo do teatro, o povo do cinema,

o povo da música, da dança”, descreve Pedro, com seu acentuado sotaque local. É um

movimento na direção de pagar uma dívida histórica que a TV tem com seu espectador,

deslocando-o do lugar exclusivo de receptor e estabelecendo uma relação bidirecional, como

defende Crocomo (2007), na qual o público seja também parte dos processos de produção e

colabore na construção de um novo modo de fazer e ver televisão.

As propostas para gestão administrativa e financeira da TVK aparecem de maneira

dissolvida durante o lançamento, e refletem os princípios descritos na Norma Regulamentar

do Canal da Cidadania, entre os quais se aponta que seus gestores, organizados em um

Conselho Local, devem garantir a participação dos diversos segmentos da comunidade. Dos

aspectos econômicos, são permitidos recursos provenientes de publicidade institucional de

empresas públicas ou privadas, e assim assistimos à apresentadora Dina Lopes, que diz: “aqui

pode sim falar o nome do shopping, pois ele é um grande apoiador da Kirimurê, além de

amparar muitas atividades de economia solidária”. O espaço na praça de alimentação foi

cedido gratuitamente pelo Salvador Norte Shopping, o cenário foi todo produzido por grupos

de economia solidária, os equipamentos de transmissão foram cedidos por parceiros e os

apresentadores e artistas se disponibilizaram voluntariamente a participar a propósito “se você

quiser adquirir essas cadeiras que estamos sentados aqui durante a entrevista, procure a loja

Santis móveis planejados, aqui no segundo piso”, também diz a apresentadora.

Sobre a dicotomia entre o estatal e o público, Pedro Albuquerque, ao entrevistar o

então Secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Estado da Bahia (SETRE),

Álvaro Gomes, ratifica que a SETRE é uma parceira importante, mas Kirimurê não é uma TV

estatal, não é uma televisão na qual o Estado manda, mas uma TV pública em que o Estado

também participa, como sociedade. Um reforço sobre como a televisão estatal é aplicada no

Brasil, limitada pelo excesso de interferências dos gestores públicos e associada à ideia

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retrograda de Estado, que durante anos foi designado como território extremamente fechado,

determinado pela orientação central e administrado por estruturas fortemente burocráticas

(REY BELTRÁN, 2002, p. 84).

De certo que a TVK tem a perspectiva de ser uma TV autônoma, tanto dos interesses

comerciais, baseados principalmente nas linhas de financiamento, quanto na administração do

Canal, que incluem ausência de proselitismos político e religioso. Dina Lopes, ainda durante o

programa, no entanto, provoca ao dizer: Fora Temer!50

E também Pola Ribeiro, entrevistado

já no último quadro da transmissão inaugural, quando afirma que “acabamos de passar por um

golpe midiático, jurídico e institucional, mas foi um golpe da mídia principalmente”, abrindo

margem para discussões sobre os desafios ideológicos a serem encarados pela Kirimurê.

O projeto de programação, por sua vez, foi apresentado, sendo a primeira transmissão

uma espécie de resumo do conjunto de programas planejados para a grade da TVK. “Iniciar

com mulheres negras entre entrevistadoras e entrevistadas é começar com as águas que aqui

caem desde ontem, e conduzem essa TV feita em uma cidade onde todo mundo é de Oxum,

Iemanjá, Xangô. Essa cidade de tanta diversidade cultural”, diz a entrevistada Lindinalva de

Paula, líder da Rede de Mulheres Negras da Bahia.

A maior parte dos talk shows trataram de temas sobre empoderamento feminino,

visibilidade da mulher e a importância de espaços representativos para que elas falem e sejam

ouvidas. O papel feminino nas políticas democráticas e sua importância para a diversidade das

culturas baianas foram predominantes nas pautas das entrevistas. Outro exemplo foi a

conversa com de Madá, fundadora da Negrif, que comenta: “Eu não tinha o hábito de comprar

roupa pronta. O que eu queria eu pedia que mainha fizesse [...] Então eu estudei e virei

estilista, e depois comecei a oferecer isso a outras pessoas”, ao explicar sua trajetória como

empreendedora de sucesso 51

.

Além disso, a apresentação musical com Marcionílio Prado, cantor, compositor, multi-

instrumentista e arranjador da década de 1980; as entrevistas com personagens políticos da

cidade, além do bit da DJ Luana Passos, que levou seu som de hip hop e funk de vertentes

africanas, coreografado por Gleyce Manu. Nomes por muitos desconhecidos, mas símbolos de

50

Após sofrer processo de impeachment, a presidente Dilma Rousseff, eleita para o mandando 2014-2018, deixa

o cargo em 2016, e assume o seu vice-presidente, Michel Temer. O processo foi considerado ilegítimo por

grande parte da sociedade brasileira, que se manifestava contra o mandato de Temer – que passou de temporário

a permanente (e assim se manteve até as eleições presidenciáveis de 2018). Muitas dessas manifestações, em

todas as capitais do país foram permeadas com a expressão #foraTemer. 51

Idealizada por Madalena Bispo, a Negrif é uma grife que aposta em roupas com identidade afro-baiana e busca

atingir um público diferenciado com estilo que não está disposto a consumir roupas em série.

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um processo de construção de identidades ligadas ao pertencimento racial, à religiosidade, e a

regionalidade, e parte do compromisso da Kirimurê de praticar um discurso diferente e em

oposição ao já difundido, além de divulgar atividades invisibilizadas pela grande mídia.

Por causa das tecnologias da comunicação, hoje se produz muito e em diferentes

lugares circulam informações de todo tipo e com muito mais facilidade diz a cantora baiana

Carla Visi, também entrevistada no programa inaugural da TVK. Continua ao dizer que a

internet ainda não tem filtro, e a televisão ainda não tinha um canal aberto orientado

prioritariamente para o cidadão. Então, é esse o papel da TV Kirimurê, é ela quem vai tratar

com responsabilidade e respeito o que é produzido pelo cidadão e para ele.

Quando lhe perguntaram se “ser mãe é padecer no paraíso?”, Carla Visi aproveita para

cobrar um tratamento diferente da pauta feminina, lembrando que o conteúdo da TVK deve

estar atento as novas formas de maternidade, com pais sendo mães, mães casadas com outras

mães, e mulheres decidem, simplesmente, não serem mães. Assim chama atenção para que

não se reproduzam práticas miméticas, como em uma tentativa não percebida de alcançar o

modelo comercial. Embora não opostas, as TVs comercias e públicas devem ser

complementares, pois quando se igualam ou perseguem funções e conteúdos análogos, ora, se

assim fosse, a sociedade não precisaria de TV Pública (BUCCI, 2006).

Mas não só de discursos e propostas declaradas se fez o lançamento. A leitura atenta

do evento traz outras questões importantes. A começar pelo fato de que todo o planejamento e

lançamento da Kirimurê foram realizados por profissionais voluntários que prospectaram

apoios a partir de suas redes de contato para financiar a primeira aparição da TVK. Seguidos

de problemas técnicos enfrentados para transmissão via rede aberta de TV e a baixa

receptividade do evento nas redes sociais, sem resposta do público.

Para continuar a navegar, era também preciso demarcar território, ocupar a faixa na

multiprogramação alcançada pela TVE-BA, institucionalizar a TV Kirimurê e assim

confirmar todo percurso iniciado ainda antes, com o pedido de autorização realizado junto ao

Ministério das Comunicações. Promessas, tensões e novas perspectivas marcaram a primeira

transmissão da TVK, com a reunião de muitas variáveis que serão discutidas nas seções de

análise que seguem.

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4. TVK, UMA TELEVISÃO A CONTRAPELO

“É que a televisão me deixou burro, muito burro demais. Agora todas as

coisas que eu penso me parecem iguais. Ô Cride, fala pra mãe que tudo que a

antena captar meu coração captura” (Titãs, 1985). 52

Em suas críticas ao modo hegemônico de contar o passado, dirigindo-se ao

historicismo alemão, Walter Benjamin (1940) elabora elementos reflexivos que encontram

forte eco nas estruturas sociais ainda hoje. Ao discutir as teses sobre o conceito de história,

Benjamin empreende uma defesa para valorização dos acontecimentos negligenciados pelas

narrativas oficiais e propõe a quebra de verdades únicas, escovando a história a contrapelo.

Agora, quando a televisão se converteu no centro cultural das sociedades, se tornando

responsável por grande parte dos relatos sobre o mundo, pensar tevês a contrapelo é

fundamental para o fortalecimento da democracia e para garantia dos direitos e liberdades no

campo da comunicação.

O projeto de televisão pública autônoma, aberta e participativa, defendido

internacionalmente, se estabelece como alternativa nesse jogo de descentralização das

narrativas na radiodifusão no Brasil e no mundo. A TV pública como um “trabalho de

construção de memórias, geração de verdades plurais [grifo nosso] e criação de relatos de

identidade”, como afirma Martín-Barbero (2002, p.329), deve superar os interesses da TV

comercial e romper com limitações do conceito de público aplicado pelas TVs estatais.

Uma TV do campo público deve ser, portanto, capaz de dar visibilidade ao que foi

negligenciado pelas tevês hegemônicas, tanto quanto ter habilidade para recontar narrativas já

publicadas ou reinventar produtos simbólicos, colaborando para construir mais

democraticamente uma consciência pública e cidadã. Nesse roteiro para uma TV a contrapelo,

a história da TVK pode representar um espaço para escovar ao contrário as formas e

narrativas hegemônicas de televisão no Brasil.

Ao analisar o Canal da Cidadania e a TV Kirimurê como possibilidades para pensar

novas estratégias e modelos culturais para a tevê pública, a perspectiva a contrapelo é

reforçada também pela iniciativa de escolher contar sobre a existência da TV dos

Tupinambás, pouco vista, pouco falada e ainda pouco acessada. Retomando a informação

ressaltada por Albino Rubim (2012b) quanto à escassez de referências acadêmicas sobre a

52

Trecho da música “televisão” da banda brasileira Titãs. Composta por Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e

Tony Bellotto, WEA, 1985.

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televisão pública, ao trazer a leitura de uma realidade objetiva, esta dissertação pretende

colaborar com outros atores sociais que desejem tratar sobre o campo público da comunicação

e que talvez estejam em busca de uma televisão que nos deixe críticos, muito críticos demais.

4.1 NOVAS PERSPECTIVAS, VELHOS DESAFIOS

Quantos canais públicos não poderiam estar ocupando os novos espaços se

uma lei de meios tivesse determinado a divisão do espectro entre eles e os

privados em partes iguais? (Lalo Leal Filho, 2017).

Atualmente, ao ligar o televisor de uma residência soteropolitana, região que já teve o

sistema analógico de televisão desligado e, portanto, opera apenas no sinal digital da TV

aberta terrestre, é possível acessar os seguintes canais: 4.1 (TV Aratu), 5.1 (TV Itapoan/ Rede

Record), 6.1 (TV Baiana, que retransmite a TV Cultura de São Paulo), 7.1 (Band), 9.1 (TV

Ouro Negro – TV Universal), 10. 1 (TVE BA), 10.2 (TV Kirimurê), 11.1 (Rede Globo, TV

Bahia), 13.1 ( Ideal TV/TV Mundial), 14.1 (Rede Brasil), 18.1 (CNT Digital), 22.1 (Rede

TV), 23.1 (TV Aparecida), 31.1 (Record News), 34.1 (Rede Canção Nova), 39.1 (Novo

Tempo), 44.1 (Rede Vida), 45.1 (TV Metropolitana – Rede Brasil de TV), 48.1 (Rede 21

HD), 49.1 (RIT HD), 50.1 (RCI/TV Mundial), 57.1 (Rede Família), 61.1 (TV Câmara), 61.2

(TV Assembleia), 61.3 (TV Senado), 61.4 (TV Câmara Municipal) 53

.

Ao comparar este cardápio televisivo digital com o analógico que antecedeu a chegada

do SBTVD, no qual havia menos da metade da oferta acima, os números podem sugerir uma

real ampliação de emissores e a divisão do espaço aberto da TV, mas na prática são faixas

ocupadas por empresas que já possuem certa dinâmica hegemônica no mercado, a exemplo de

grandes grupos religiosos. Na lista de 26 canais, apenas dois se apresentam como públicos, e a

multiprogramação transforma esses dois em seis faixas que comportam TVs educativas,

legislativas e a TV Kirimurê. Também para Lalo Leal (2017), estamos perdendo uma grande

oportunidade de avançar na qualidade dos conteúdos com a participação de novos

realizadores, capazes de sacudir o marasmo que caracteriza a televisão aberta no Brasil.

Nessa dinâmica televisiva digital, o telespectador não se surpreende em notar, muitas

vezes, que de repente um novo canal é sintonizado, ampliando sem aviso a oferta de conteúdo

e deixando muitas dúvidas sobre a origem e rotina das respectivas grades de programação.

53

Dados disponíveis em http://www.portalbsd.com.br/. Acesso em: jan. 2019.

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Esta é uma entre as mudanças culturais da TV digital, que ora migra canais que eram das

redes a cabo ou por assinatura para a rede aberta, ora substitui emissoras já outorgadas por

outras que não encontravam espaço ou não conseguiam operar tecnicamente na tevê aberta.

O canal sintonizado na faixa 10.2, a TV Kirimurê, acaba por se diluir dentro desse

contexto, mesmo com sua nova e relevante função conceitual e política de Canal da

Cidadania. Para o telespectador da TV aberta de Salvador, ele é mais uma opção no conjunto

de novidades, e sua diferenciação fica ainda mais difícil pela ausência de uma programação

exclusiva da TVK, que, em geral, cria elos mais profundos com o público. Ainda assim, a

faixa do Canal da Cidadania é um diferencial entre as outras seis que, embora se denominem

canais públicos, são partes de um sistema limitado e dependem das subvenções diretas dos

governos. A Kirimurê, ao contrário, é mais autônoma e possibilita que cidadãos “se

expressem e se representem a si mesmos, procurando reduzir as lacunas entre comunidades e

atores sociais”, como discute Martín-Barbero (2002, p.337).

No âmbito regional, ao analisar a trajetória da Televisão Educativa da Bahia e sua

relação com as políticas de comunicação e cultura do Estado, Renata Rocha (2009) afirma

que, embora a TVE BA pertença ao campo público, ela não possui autonomia em seus

campos de gestão, financiamento e programação em relação às gestões governamentais, e que,

portanto, não se pode considerar que a Bahia tenha um projeto de TV pública consolidado.

Sua pesquisa ratifica que há mais de um conceito e aspectos pré-estabelecidos para definir

uma TV Pública, mas que sua constituição deve corresponder “de fato, às necessidades e

expectativas do público, promovendo diversidades e novas maneiras de expressão, trazendo a

cidadania para tela e promovendo a mobilização social” (ROCHA, 2009, p.132).

Ao reiterar a importância de ofertar ao cidadão uma TV realmente pública, o

esclarecimento pela continuidade e fortalecimento do Canal da Cidadania ganha mais força.

Como parte de um processo ainda recente, a TV Kirimurê reacende o debate sobre o campo

público com uma nova perspectiva, tratando-o a partir de sua missão de servir a um projeto de

sociedade mais igualitária. A TVK também discute os conceitos contemporâneos de

democracia, cidadania e consumo cultural, que permitam ser a experiência desse canal um

laboratório para o caráter público da televisão brasileira.

E como, de fato, essas e outras possíveis transformações podem ser percebidas a partir

da Kirimurê? Quais são os entraves e limites impostos para que o projeto de TV cidadã se

consolide em Salvador? A começar por seu slogan: Para Se Ver, Ouvir e Pensar, é possível

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traduzir algumas potencialidades da TVK: trata-se de uma pretensa TV feita pelo cidadão e

para que ele se identifique, possa se manifestar e livremente pensar; uma TV realizada,

financiada e controlada pelo público e para o público, conforme prevê a UNESCO (2000).

O compromisso da TVK com as narrativas contra-hegemônicas dentro da tevê aberta

do país é ratificado no seu regimento, que apresenta entre seus principais objetivos e

princípios “Contribuir com a luta pela democratização dos meios de comunicação, pela

democratização da informação e pela institucionalização do Direito de Comunicar”

(REGIMENTO KIRIMURÊ, 2018, p.2), alinhado aos dispostos das normas regulamentares

do Canal da Cidadania. Mas sobre qual democratização se fala?

“É apenas a mídia para fins democráticos, criar um ambiente que conduza ao processo

democrático por meio da unidade, da empatia e do discurso civil? Ou significa entregar os

meios de produção e distribuição, que é a lógica do acesso público?”, provoca Henry Jenkins

(2009, p.323) ao tratar da democratização da TV e de sua política participativa. Nesta

dissertação, como já posto, defende-se a democracia pelo acesso e participação cidadã, pela

abertura de espaços de poder para ocupação popular, e, portanto, pela entrega dos meios de

produção e distribuição, formando uma real esfera pública.

Essa democratização que corresponde ao futuro previsto por Rey Beltrán (2002),

quando escreveu que a sociedade civil cada vez mais assume a observação e a interlocução

com o poder dos meios de comunicação e informação, o que trará para o futuro uma

“modificação das relações tradicionais entre os cidadãos e a mídia. Entre as regulamentações

jurídicas, a auto-regulamentação ou a displicência das mídias, está a deliberação ativa da

sociedade e sua crescente pressão” (REY BELTRÁN, 2002, p.105).

Resultado de uma pressão da sociedade civil, o tema das políticas públicas para

democratização da mídia ganhou muita força no Brasil durante a campanha à reeleição de

Dilma Rousseff à presidência, em 2014, que colocou a regulamentação dos meios entre suas

promessas. Rui Falcão, presidente do Partido dos Trabalhadores (PT) à época, defendeu um

novo marco regulatório para a comunicação nacional e afirmou que a democracia se

aprofunda em ambientes onde há mais diálogo e onde as diferenças regionais têm espaço

equilibrado na mídia em geral. A ONU, por sua vez, também ao tratar do tema, declarou que é

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preciso evitar o monopólio e o oligopólio, mas igualmente ter cuidado para que a legislação

não dê ao governo uma forma de controlar os conteúdos 54

.

Após a reeleição, entre outros desdobramentos, o governo federal lançou o Plano

Nacional de Outorgas (PNO), propondo o aumento de concessões para radiodifusão

comunitária e educativa no país. Os planos previam editais com autorizações para muitos

municípios brasileiros, e seriam publicados entre agosto de 2016 e julho de 2019. No entanto,

com o afastamento da presidente Dilma e posterior assunção do vice-presidente Michel

Temer, as publicações foram suspensas. “O governo revogou o Plano Nacional de Outorgas e

não publicou os editais para os anos de 2016/2018, que possibilitariam que cada município

brasileiro tivesse, pelo menos, acesso a uma estação” (INTERVOZES, 2009).

Além do aumento da oferta de canais públicos, as entidades em defesa da

democratização da comunicação no Brasil colocavam a necessidade de definir um novo

marco regulatório para a comunicação nacional. Também a revisão do controle da mídia, com

base na CF de 1988, que dispõe no parágrafo 5º, artigo 220: “Os meios de comunicação social

não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”.

A mobilização se justifica a partir de dados como os publicados no relatório Quem

controla a mídia no Brasil (REPORTERES EM FRONTEIRAS, 2017), no qual se aponta que

o país está em alerta vermelho sobre indicadores de risco ao pluralismo e à independência da

mídia. O documento, produzido pela ONG internacional Repórteres sem Fronteiras e pelo

Coletivo Intervozes, revela alta concentração da audiência e da propriedade, além da

sintomática ausência de controles de supervisão e fiscalização externos.

A pesquisa avaliou cinquenta veículos de comunicação no Brasil, divididos em quatro

grandes grupos: TV, rádio, impresso e online. O resultado indica que desses veículos, 26

pertencem ou são controlados por grupos de economia privada. “Nove são do Grupo Globo,

cinco do grupo Bandeirantes, outros cinco de Edir Macedo, quatro da RBS, afiliada da Rede

Globo no Rio Grande do Sul e três do grupo Folha” (REPORTERES EM FRONTEIRAS,

2017). O relatório também chama atenção para o fato de deputados e senadores serem donos

de dezenas de concessões de rádios e tevês no Brasil, contrariando a Constituição que

expressamente os proíbe de possuírem ou de serem sócios ou associados de empresas

concessionárias do serviço público de radiodifusão.

54

“O que significa regular a mídia?”, matéria disponível em

https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141128_regulacao_midia_lab. Acesso em: nov. 2018.

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De um lado, pressionado por órgãos nacionais e internacionais que defendem a

democratização da comunicação, e, por outro, pela oposição de parte do Congresso Nacional

e das grandes empresas de comunicação, o projeto para discutir a regulação da mídia

brasileira perdeu consistência. Chegou-se a falar que regular era censurar a mídia e todo seu

conteúdo e, consequentemente, limitar a democracia. O deputado Fábio Sousa, então

presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, declarou em entrevista à TV

Record, em 2015, que “Controle de mídia pra mim é o controle remoto. Se o cidadão não

concorda com o que está passando na televisão, ele muda de canal” 55

.

Mas como o espectador pode escolher se as opções continuam concentradas nos

grandes veículos, com suas programações pouco diversificadas, marcadas pela

superficialidade e dirigidas em função do lucro? Se o mesmo conteúdo disponível nos canais

de televisão costuma ser o que está nos grandes portais, revistas e rádios? E mais, é papel do

público apenas escolher a programação, ou deveria haver um lugar para um cidadão emissor,

que se reconheça como agente nos processos de gestão e produção de conteúdo? Canclini

(2006) defende que é preciso (re)significar o consumo para além dos impulsos irracionais e

gastos inúteis, e passar a exercitá-lo como espaço para pensar e organizar parte da

racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades.

Trata-se, portanto, não somente de consumir, mas de ensejar decodificações que vão,

junto aos processos de consciência e educação cidadã, alcançar o entendimento da cidadania

pela visibilização dos diferentes, a partir da fala dos próprios sujeitos. É como a utopia da

democratização das diferenças, proposta pela cidadania visual, que remete a uma leitura do

visível a contrapelo, “evidenciando a pluralidade das representações sociais correntes e a

parcialidade mesma daquelas visibilidades hegemônicas” (ROCHA, 2012, p.38), o que

coaduna diretamente como o projeto do Canal da Cidadania para a TV aberta e gratuita.

Nessa história de constate remar contra maré da comunicação pública diante das

políticas de estado, a autorização para o funcionamento do Canal da Cidadania foi um dos

últimos atos do governo federal em 2016 sobre o tema da radiodifusão, como já posto

anteriormente. Sendo o Canal uma alternativa para revisar o lugar do cidadão nos dispositivos

sociais de controle e poder, a TVK pode ser tratada hoje como marco de resistência, e ao que

55

Disponível em http://recordtv.r7.com/jornal-da-record/videos/proposta-de-regular-meios-de-comunicacao-no-

brasil-e-alvo-de-criticas-da-oposicao-06102018. Acesso em: nov. 2018.

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pese a legislação, muito se pode avançar na real autonomia para uma nova TV Pública. A

começar por um projeto de gestão e financiamento abertos, com participação da população.

4.1.1 Gestão aberta e participativa

Pela primeira vez na história do Brasil um canal de TV será

operacionalizado por uma organização social. E essa organização envolve

também você, que está ai nos assistindo (Pedro Albuquerque, 2016). 56

A gestão institucional e administrativa da TV Kirimurê teve início mesmo antes da

autorização para seu funcionamento, ainda na fase de solicitação junto ao Ministério das

Comunicações. Uma vez que a TV Educativa da Bahia estava autorizada a multiprogramar e

passava a ser a responsável legal pelo Canal da Cidadania, era agora o momento dos

responsáveis pela programação pleitearem suas faixas: uma para o Poder Público municipal,

uma para o Poder Público Estadual, e as outras duas para associações de natureza comunitária

– responsáveis por difundir conteúdos produzidos pela comunidade do município ou que

tratem de questões relativas à realidade local.

As entidades associativas e comunitárias saíram na frente. Logo após outorga para

TVE BA, o MiniCom lançou aviso de habilitação para selecionar associações dispostas a

operar as faixas de programação, seguindo rito descrito na Norma Regulamentar do Canal da

Cidadania (2012b). Também de acordo com a Norma, para que uma organização social

dispute um espaço na multiprogramação e passe a ser integralmente responsável pela faixa

por ela programada, é necessário enviar ao Ministério os seguintes documentos:

I - inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da

Fazenda – CNPJ/MF, com finalidade compatível com o disposto nesta

Norma;

II - Estatuto Social, devidamente registrado;

VI - Ata de eleição da diretoria em exercício, com a duração do mandato dos

diretores, devidamente registradas;

VIII - Prova de que seus diretores são brasileiros natos ou naturalizados há

mais de dez anos e maiores de dezoito anos ou emancipados;

IX - comprovante de endereço da sede da entidade;

X – declaração, assinada por todos os dirigentes da entidade, inclusive seu

representante legal, especificando que: a) todos os dirigentes residem no

município e não participam da direção de outras entidades executantes do

serviço de radiodifusão de sons e imagens; e b) a entidade não é executante

56

Fala do ator e apresentador Pedro Albuquerque durante o evento de lançamento da TV Kirimurê, em 2016.

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de serviço de radiodifusão ou de serviço de acesso condicionado, bem como

de que a entidade não tem como integrante de seu quadro diretivo ou de

associados, pessoas que, nessas condições, participem de outra entidade

detentora de outorga para execução de qualquer dos serviços mencionados;

XIV - manifestação de apoio de associações comunitárias, entidades

associativas e instituições de ensino superior constituídas há mais de dois

anos no município, assinadas pelo representante legal e acompanhadas de

cópias do CNPJ, do estatuto e das atas de fundação e de eleição da diretoria

das respectivas entidades apoiadoras; (BRASIL, 2012b). 57

O processo de organização dos documentos e inscrição para solicitar uma das faixas

de programação do Canal da Cidadania de Salvador foi realizado por grupo multidisciplinar

denominado “construtor do Canal” 58

, pessoas que depois passaram também a ser os gestores

da Kirimurê. A Organização Social Filhos do Mundo – FEME, por sua disponibilidade e por

atender às exigências do edital de habilitação do MiniCom, foi apresentada como CNPJ

responsável pela articulação do Canal. Entretanto, conforme atas das reuniões do período, nos

debates e encontros para elaboração do projeto do Canal, o discurso sobre gestão aberta e

compartilhada já era predominante. Esse é o senso do Canal da Cidadania, todos devem

construir juntos, sem centralizações diz o relatório Kirimurê (2016/2017).

Isso se deu tanto no sentido de dividir responsabilidades quanto sobre a clareza de que,

ao contrário do que em geral acontece na TV brasileira, essa faixa não teria um dono. A

FEME deve funcionar como um fio condutor na rede de gestão do Canal a ser programado, e

todos podem e devem participar como gestores. Alguns mecanismos legais operacionalizam

essa prerrogativa, a exemplo da manifestação de apoio de associações comunitárias, entidades

associativas e instituições de ensino superior, exigida no Edital de Seleção Pública para

inscrição de associações interessadas em operar uma faixa de programação do Canal da

Cidadania como parte do processo de seleção da entidade para assumir a faixa.

57

As documentações exigidas nos itens III, IV, V, VII, XI, XII, XIII, foram revogados pela Portaria

6413/2015/SEI-MC, publicada no DOU de 02/12/2015, parte do processo de desburocratização para licença do

Canal da Cidadania, na tentativa de facilitar o acesso as faixas da cidadania. 58

De acordo com relatório de implantação da TVK (2016/2017), estavam entre o grupo de trabalho para

operacionalizar o canal da cidadania de Salvador: Aline Clea Souza, Anderson Soares Caldas, Vasco Aguzzoli,

Augusto Barreto, Leonardo Silva, Noildo Paixão, Wiltonauar Moura, Manu Moraes, Marcelo Rocha, Ana Paula

de La Ordem, Mel Campos, Katharine Lopes, Dina Lopes, Pola Ribeiro, Tati Rabelo, Lindinalva da Silva,

Nadinho do Congo, Marcus Alexandre Silva do Congo, Hudson Silva do Congo, Mariana Lima, Alessandra

Novaes, Wilson Sena Militão, Viviane Andrade, Glenda Lima, Alisson Santos, Cristiane Nery, Carla Almeida,

Efson Lima, Paulo Carneiro, Gustavo Erick Andrade, Lia Vasnconcelos, Vanessa Cançado, Marcus Maia,

Roberto Salles, Henrique Duarte. Profissionais técnicos, artistas, gestores, professores, articulares sociais e

culturais, e cidadãos e profissionais voluntários.

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No caso da Kirimurê, estavam entre as cartas de apoiadores enviadas ao MiniCom, as

assinadas por universidades estaduais e federais, pelo Fórum Baiano de Agricultura Familiar,

pela Federação Nacional de Afoxés e outros. Entre os documentos é possível identificar

organizações locais que lutam pela democratização da cultura e da comunicação há bastante

tempo, como o Fórum Social do Beiru (unidade representativa da sociedade civil organizada

do bairro do Beiru – em Salvador), que age em dez bairros periféricos da cidade e no texto

indica que “sabemos que teremos espaço e voz para que nossa comunidade possa se

expressar” (Relatório TV Kirimurê, 2016/2017).

Dessas manifestações de apoio entende-se que as entidades, associações e

organizações se comprometem a caminharem juntas na construção do canal, devendo ser

igualmente mobilizadoras para que a sociedade civil se organize para ocupá-lo. O número de

entidades apoiadoras é, inclusive, descriminado no edital como critério principal para

desempate no caso em que, em um mesmo município, existam mais de duas entidades

interessadas em operar as duas faixas de programação.

Vinculada ao Movimento Social dos Povos Brasileiros (MSPB), a FEME foi fundada

em 1998 e tem título de Organização Social (OS) de caráter público estadual. Atua com

implantação de políticas públicas e sociais em sete territórios de identidade e cidadania do

estado da Bahia, em 13 municípios do estado de Alagoas e, em 10 municípios do estado do

Maranhão, articulando uma rede de trabalhadores e organizações59

.

Está entre os objetivos basilares da FEME criar uma rede de produção e

comercialização, integrada às políticas públicas do estado e dos municípios, tudo através de

ações nos eixos de Economia Solidária, Assistência Técnica e Extensão Rural, Segurança

Alimentar e Comunicação, Arte e Cultura – e a TVK se institucionaliza neste último contexto

temático, conforme consta em seu Regimento Interno. A FEME e o MSPB também inscrevem

a TVK como parte da iniciativa “O Brasil Reconhece o Brasil – Educação para a Cidadania”,

que promove ações de empoderamento sociopolítico, formação crítica e emancipatória,

preservação da memória, fortalecimento e afirmação da identidade territorial através de

linguagens artísticas, entre elas a linguagem audiovisual 60

.

59

Texto disponível no site da FEME, < http://feme.org.br/?page_id=468>, acesso em janeiro de 2018. 60

Há pouca informação disponível em rede aberta sobre o projeto “O Brasil Reconhece o Brasil – Educação para

a Cidadania”. Em matéria do Ministério da Cultura, de 2015, ele é citado como essencial na base do MSPB,

conforme matéria disponível em http://cultura.gov.br/tv-comunitaria-e-tema-de-reuniao-na-caravana-da-cultura/.

Acesso em: mar. 2018.

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No edital de seleção, outro aspecto definidor do modus operandi para a gestão da faixa

do Canal da Cidadania descreve as características para as entidades interessadas em

programar. Entre não terem fins lucrativos, serem autônomas e não estarem subordinadas

administrativa, financeira ou editorialmente a nenhuma outra entidade privada ou pública, está

a necessidade de assegurar, em seu Estatuto Social, “o ingresso gratuito, como associado, de

todo e qualquer cidadão domiciliado no município [grifo nosso], bem como de outras

entidades associativas ou comunitárias sem fins lucrativos nele sediados”. Como qualquer

pessoa deve poder se associar a entidade responsável, também por essas vias, todos terão

oportunidade de participar com voz e voto sobre as deliberações do Canal.

Há também convergência para horizontalizar a gestão no trato entre a faixa a ser

operada pela FEME e a entidade detentora da outorga, a TV Educativa da Bahia. Está entre as

responsabilidades da TVE BA instituir um Conselho Local, com composição plural, que

contemple a participação de diversos segmentos do poder público e da comunidade local, e

que tenha como fundamento zelar pelo cumprimento das finalidades da programação,

estabelecer mecanismos de diálogo com a sociedade e, quando necessário, encaminhar

denúncias junto ao Ministério das Comunicações (BRASIL, 2012b). Um modo de reunir

diversos atores sociais para trabalhar pelo Canal em sua dimensão ampliada, não somente a

faixa da cidadania, mas também as faixas dedicadas aos governos estaduais e municipais.

Martín-Barbero (2002) reforça que para uma TV pública e cidadã ser instituída, ela

deve ir além da consideração da audiência e intervir especialmente no seu controle público e

na deliberação social sobre seu funcionamento e relevância pública. Um reforço aos

princípios defendidos para uma televisão pública, cultural e de qualidade, que deve ser gerida

por meio de um “chamado público, através de alocação de espaços transparentes e

participativos, coerentes com as políticas culturais de comunicação e educação do país e

baseado no mérito dos realizadores e produtores” (RINCÓN, 2002, p.31).

Estas características podem ser observadas no modelo de gestão proposto para um

Canal da Cidadania, e que parece ser atendido nessa primeira fase de planejamento e pleito da

faixa do que virá a ser a TVK. Reunir pessoas de várias frentes, entre professores, gestores

públicos, artistas, representações comunitárias e abrir o debate para a sociedade civil

organizada entender e participar da concepção do Canal foi fio condutor do processo de

pedido da faixa de programação da TV Kirimurê junto ao Ministério das Comunicações.

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Toda documentação prevista em edital do Aviso nº1/2014, com solicitação para operar

uma das faixas de programação do Canal da Cidadania de Salvador, foi submetida ao

MiniCom com abertura do processo de nº 53900.010574/2014-2012, em 06 de agosto de

2014, direcionado ao grupo de Trabalho de Radiodifusão Educativa e Consignações da União.

Até que o aviso de habilitação final fosse autorizado, em 11 de maio de 2016, entretanto, o

processo foi submetido a alguns ajustes.

Em fevereiro de 2016, um o relatório técnico anual de execução de contrato de gestão,

disposto na nota técnica nº 2707/2016, emitida em fevereiro pelo MiniCom, indicava que a

Associação Filhos do Mundo descumpria um dos itens que Norma, que veda manutenção de

vínculo com entidade do governo de qualquer esfera. O documento apontava celebração de

contrato entre FEME e a Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Estado da

Bahia (SETRE), indeferindo sua participação na seleção pública.

A este indeferimento, a FEME respondeu em março de 2016 com documentos que

esclareciam sobre a aparente irregularidade indicado que, embora tivesse projetos executados

junto a SETRE, não possuía qualquer vínculo de subordinação ou dependência com essa

Secretaria. O grupo construtor mais uma vez se mobilizou e, munido dos documentos e

declarações se dirigiu a Brasília para tratar diretamente com os gestores públicos. “[...] Para

além de enviar documentações, resolvemos solicitar uma audiência, por entender que o senhor

Ministro comunga dos mesmos objetivos precípuos ao Canal da Cidadania e por se tratar de

um assunto de máxima importância para nosso povo”, era parte do texto do ofício nº 10/2016

da FEME, que solicitava reunião com o Ministro das Comunicações André Figueiredo e o

Secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica, Roberto Pinto Martins.

Até o ato final que deu início a autorização formal para a FEME operar a faixa de

programação, as travessias da Kirimurê também foram marcadas pelas iniciativas do grupo

construtor de articular e planejar o funcionamento do Canal. Para isso, no interstício entre

submeter documentos (2014), reunir com gestores e finalmente poder programar (2016),

foram formados grupos de trabalho com finalidades específicas para dar andamento à

montagem do Canal – GT Comercial, GT Financeiro, GT de Programação, GT de

Comunicação, GT de criação de marca.

Aconteceram também ciclos formativos para esses GTs. Em agosto de 2015 houve

formação sobre o método Canvas para planejamento do Plano de Negócios da Kirimurê,

ministrado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE-BA) e

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no mesmo período o historiador Marcelo Rocha palestrou sobre TVs Públicas, TVs privadas e

Canal da Cidadania. Em setembro de 2015, Mauro Bonis, professor do Departamento de

Design do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), via Skype,

ministrou o curso de concertação de marcas para criação da identidade visual da Kirimurê.

Somam-se ao processo formativo os seminários sobre o Canal da Cidadania, a

exemplo do III Encontro do Cinearts, que em fevereiro de 2016 reuniu, em Salvador, dezenas

de interessados em debater a democratização da comunicação. Na ocasião, falou-se sobre a

importância de uma nova frente para produzir conteúdo audiovisual local e de como o Canal

da Cidadania de Salvador estava sendo planejado de forma colaborativa 61

. Ao convidar a

sociedade soteropolitana a participar, os eventos fizeram surgir também novos parceiros.

Com a abertura para que a sociedade civil integre sua gestão, os processos formativos

são essenciais para que a TVK possibilite o real acesso a esse espaço de poder: um canal

aberto de televisão. Formação que pode ser alinhada ao que Bourdieu (1997) pondera como

domínio dos instrumentos de produção, quanto à sua crítica sobre as condições habituais para

se falar na programação televisiva. É um poder dizer alguma coisa, mas também saber como

fazê-lo dentro desse ambiente que é dominado pela inciativa privada por décadas no país.

Considerando o aspecto experimental da gestão da faixa, a TVK evidencia também uma

estratégia atenta à construção de sua autonomia. Cifuentes (2002) reforça que, ao entender

sobre a produção televisiva, uma gestão cidadã pode impedir que determinadas conjunturas

políticas comprometam a existência de uma TV pública.

Foram esses grupos de trabalho que, a partir da data de publicação da habilitação, em

maio de 2016, passaram a contar dezoito meses como prazo máximo para colocar a

programação da TV Kirimurê no ar, conforme Norma Regulamentar do Canal da Cidadania.

Todos trabalharam para executar o evento de lançamento oficial do Canal, que resultou na

rota inaugural da Kirimurê, como aqui navegada. As instabilidades e ausências, no entanto,

voltaram a operar no período subsequente: não havia fundo para manter os profissionais

voluntários trabalhando, e a divisão de tarefas passou a ser um problema. Assim também o

encaminhamento de outras questões, como a inscrição do Canal na ANCINE ou aquisição de

equipamentos para transmissão para antena da TVE BA, por exemplo.

61

Material disponível na página do facebook do MSPB, através do link

https://www.facebook.com/mspbbahia/posts/828024404010622?__tn__=K-R. Acesso em: dez. 2018.

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De tantos parceiros, de tantas pessoas que iniciaram nesse processo, no momento só

essa equipe está podendo atuar [...] se o Canal não for ao ar agora, então é provável que a

gente não consiga levar adiante, revela ata de reunião dos grupos de trabalho disponível no

relatório da TVK (2016/2017). Mesmo fazendo um lançamento oficial, em novembro de

2016, a equipe não conseguiu colocar no ar o canal 10.2, e a lei determinava que isso devesse

acontecer até novembro de 2017 ou a entidade perderia o direito a programar a faixa.

Não existe no dispositivo da Norma Regulamentar do Canal da Cidadania ou de

quaisquer outras publicações legais nenhuma regra específica para montar a gestão

administrativa do Canal, exceto pela exigência de formação de um Conselho Local,

encabeçado pelo responsável pela outorga. Esse conselho, por sua vez, deve nomear um

ouvidor cuja obrigação é exercer a crítica interna da programação veiculada, observando os

princípios do Canal e analisando as manifestações dos telespectadores (BRASIL, 2012b). E é

exatamente nessa fase de estruturação orgânica do Canal que se evidenciam fragilidades na

condução da sua gestão e que perduram até o momento de finalização desta dissertação.

Ao apontar tais fragilidades, no entanto, é imprescindível reforçar que, do modo como

foi planejado e legislado, um Canal da Cidadania tem funcionamento estrutural convergente

ao que se considera adequado para uma TV Pública. Desde a outorga para uma TV Educativa,

o que azeitou o caminho para a implantação do Canal, até a seleção das entidades para

programar e que culmina na horizontalidade proposta em Conselhos abertos, tudo direcionado

para uma TV feita pelo cidadão e para o cidadão, em um grande encontro social. Ao poder

decidir sobre como gerir um canal de TV, a sociedade tem acesso ao que é próprio do

exercício da cidadania na contemporaneidade, na reunião dos heterogêneos e dissidentes, em

um movimento recíproco do que se reconhece como a opinião e a esfera pública.

Na experiência da Kirimurê há também que se apontar o que ainda não está ajustado.

De maneira resumida, os recursos humanos imprescindíveis para seu funcionamento são:

técnicos programadores, responsáveis por enviar o conteúdo da TVK para a TVE BA, de

modo que a emissora educativa possa irradiar a programação para toda Salvador e região

metropolitana; e uma equipe mínima especializada para receber e selecionar o conteúdo para

programação além de manter relações institucionais com as demais frentes do Canal da

Cidadania e, claro, com a sociedade civil.

Esse número exíguo de profissionais se dá porque a TV Kirimurê não é uma emissora,

mas uma programadora e, portanto, não é obrigada a produzir conteúdo – embora possa

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produzi-lo. A TVK deve organizar a programação da sua faixa no Canal, como se verá melhor

na seção que trata especificamente sobre programação.

Na busca por formalizar uma equipe de trabalho para a TVK, a equipe construtora

elaborou documento de apresentação do Canal, como parte do seu Plano de Negócios, e ali

surge o primeiro organograma imaginado para a TV, que tem estrutura com base em um

Conselho Curador, ao qual se ligavam diretamente um presidente e um vice-presidente,

seguidos de sete diretorias que se subdividiam em outras oito gerências. No documento,

direcionado para possíveis colaboradores financeiros do canal, falava-se na geração de mais

de mil postos de trabalho diretos e indiretos (RELATÓRIO KIRIMURÊ, 2016/2017).

Com um organograma complexo e que demanda numerosas contratações, o

planejamento indicava um alto custo inicial de recursos humanos para a TVK, o que não

correspondia à realidade de uma faixa da sociedade civil no Canal da Cidadania. Na ausência

de recursos financeiros e com o contínuo afastamento da equipe que deu início a TV

Kirimurê, esse organograma se tornou inexequível e o resultado foi um número ainda menor

de colaboradores para dar continuidade ao Canal.

Também houve demasiada concentração de esforços dos grupos de trabalho

comerciais e de financiamento, gerando expectativas de retornos financeiros que antecediam a

própria primazia da democratização da TV. É certo que muito já havia sido feito até o

lançamento, mas a mobilização da sociedade civil para que outros cidadãos passassem a se

responsabilizar pelo Canal perdeu ênfase e isso comprometeu o andamento das tarefas. Dados

do relatório da TVK (2016/2017) ilustram tais assertivas. O primeiro semestre de 2017 foi

marcado por reuniões com instituições diversas, entre governamentais e da iniciativa privada,

com pautas destinadas a apresentar a Kirimurê para potenciais financiadores. Foram criados

panfletos, planejados pacotes de veiculação e para propagandas institucionais, além de

planilhas com orçamento para manutenção da TV. Não se trata de uma crítica ao projeto de

captação de recurso, que na verdade teve grande relevância para a Kirimurê, mas à dedicação

enfática no desenvolvimento dessa frente.

Em junho de 2017, durante reunião ordinária, o grupo gestor discutia ainda formas de

rentabilizar o Canal. Na ocasião, Anderson Soares, um dos coordenadores do grupo, citou a

importante cobertura jornalística que a TVK pretendia fazer do Fórum Social Mundial, evento

que estava por acontecer em Salvador. O Fórum é um grande encontro internacional

organizado por iniciativa da sociedade civil de vários continentes e voltado para constituição

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de redes entre os movimentos e organizações sociais, um relevante evento para debater a

democratização da comunicação.

Muitos integrantes da equipe TVK eram também produtores independentes, e já

haviam produzido vídeos institucionais, reportagens e outros produtos audiovisuais para o

Canal, fazendo uso de seus próprios recursos. Entretanto, sem orçamento, Anderson Soares e

outros membros da Kirimurê enfatizaram que o trabalho de cobrir eventos envolve custos e

que não havia mais condições de continuar a fazê-lo voluntariamente (Relatório Kirimurê

2016/2017). Tudo se convertendo no problema central do orçamento.

Embora sejam necessárias condições mínimas financeiras para gestão de um canal

programador de TV, ainda que popular e participativo, aqui se considera que nas condições já

alcançadas pela TVK, no lugar de focar em produzir conteúdo e, portanto, angariar recursos

para produzi-los, era preferível continuar a centrar esforços para convocar a participação da

sociedade civil e dividir responsabilidades. Mesmo que não haja um manual de gestão a ser

seguido, não se pode negligenciar o fato de que há décadas o grande divisor de águas entre as

produções televisivas é o financiamento. Ao contrário de ceder às mesmas pressões de

mercado já praticadas, a TVK pode aproveitar sua autonomia para criar um projeto com

modelos próprios de gestão e financiamento.

“Por meio dos índices de audiência, é a lógica comercial que se impõe às produções

culturais” (BOURDIEU, 1997, p.37), e o modelo predominante fundado na propaganda e

venda para formação de consumidores ainda é muito estrutural, carecendo de profunda

mudança na cultura televisiva. Embora a procura da TVK seja por entidades alinhadas a

política de democratização da comunicação e com interesse em apoiar o Canal, investir em

retorno imediato é a lógica do capital – o valor do espaço publicitário está de acordo com o

número de consumidores que assistem TV em determinado horário e dia.

Diante de todas essas navegações turbulentas e sem orçamento próprio, a TV Kirimurê

conseguiu retransmitir diretamente de seu sinal a programação da TV Escola, cumprindo com

as exigências legais e mantendo o Canal no ar. O grupo de trabalho mais uma vez voltou a

enxugar no final de 2017, com destaque para o afastamento de Anderson Soares Caldas e

Aline Clea Souza, que coordenaram a maior parte das atividades da TVK desde a solicitação

de autorização junto ao Ministério das Comunicações.

Em 2018 quem passa a responder como representante da TV Kirimurê é Dina Lopes, e

apesar de importantes avanços alcançados, não há nenhum relatório oficial do período. No site

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da TVK, há informações de que a TV (com coordenação de membros da FEME) elaborou e

divulgou proposta para seu Regimento Interno, realizou uma série de oficinas de formação

para jovens das periferias de Salvador – que mais tarde vieram a colaborar com a grade de

programação, e celebrou alguns contratos não onerosos para exibidores no canal, conseguindo

colocar conteúdo local e de produção independente no ar 62

.

O regimento que está publicado traz a sugestão de um novo organograma, com

descrições mais específicas sobre as composições e competências e uma estimativa de custos

menor que o anterior. As instâncias previstas para estrutura gestora da TVK são os Conselhos

Deliberativo, Fiscal e Local Consultivo, além de uma Coordenação Colegiada Executiva. Um

parágrafo único descreve a mecânica geral em que “a Coordenação Colegiada atuará

cumprindo as decisões do Conselho Deliberativo, que ouvirá o Conselho Local, sendo o

Conselho Fiscal o órgão de controle, para operacionalizar o pleno funcionamento do Canal da

Cidadania de Salvador TV Kirimurê” (REGIMENTO KIRIMURÊ, 2018, p.4).

Órgão máximo é o Conselho Deliberativo. Ele deve, inclusive, aprovar o texto final

do regimento interno da TVK. Responsável por tratar dos planos de trabalho, proposta

orçamentária e normas administrativas e operacionais da faixa, o Conselho segue o princípio

de reunir vozes de diversas entidades e setores da sociedade civil organizada, replicado em

todos os demais Conselhos dispostos no documento. Sua formação reúne dezoito membros

efetivos entre representantes dos povos e comunidades tradicionais, dos professores de ensino

médio, dos movimentos LGBT, negro e das mulheres, e outros.

Importante ressaltar que mesmo com a ampla representação proposta para formar o

conselho, uma gestão que pretende expressar pluralidade e diversidade social e que se propõe

a ser um espelho da sociedade soteropolitana precisa ter atenção e inovar. De tal modo, deve

se aproximar mais diretamente do cidadão comum e não restringir as representações aos

movimentos organizados, entidades que muitas vezes, por excessiva partidarização, se

afastam dos interesses das suas comunidades.

Em 04 de abril de 2018 foi publicada, no site da TVK, uma convocação para constituir

o Conselho Deliberativo, no aguardo de entidades interessadas se manifestarem. Sem

respostas, não houve quórum, e a Kirimurê continua sem um Conselho formado oficialmente.

O grupo de colaboradores que segue com a faixa da cidadania se mantem resumido e, de

62

De acordo com o CAP VI, Art. 22, do regimento interno da Kirimurê: Todos os conteúdos entregues para

exibição no Canal da Cidadania serão submetidos previamente à formalização de um contrato.

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maneira voluntária, se responsabiliza por receber o conteúdo enviado a Kirimurê e manter as

articulações junto à sociedade. Do mesmo modo, o Conselho Local previsto para ser instalado

pela TVE BA, até então, não se formou.

Todo esse jogo de ausências envolve outros elementos além do interesse político.

Entre eles uma questão relevante diz respeito à preparação da sociedade para as novas formas

de gestão do espaço televisivo. Há uma dificuldade prática de exercitar essa participação, que

envolve desde a falta de entendimento da informação como direito até o que Jenkins (2009)

chama de provável falta de interesse. Será que a sociedade baiana está pronta para expandir a

participação, ou esse público está mais propenso a se conformar com as relações já

estabelecidas e cristalizadas com os meios?

A televisão, mesmo a comercial, não pode continuar a praticar o seu modelo vertical,

não quando predominam as novas mídias digitais horizontalizadas, com aparente controle do

usuário. Mas, conforme problematiza Jenkins (2009, p.326), uma vez que “o público não vai

reconsiderar sua relação com a mídia da noite para o dia, e a indústria da mídia não vai

renunciar ao seu domínio”, como se fará a nova TV? Para o campo público essas duas forças

se encontram aumentando a resistência da sociedade em participar: cidadãos que ainda não

entendem a sua importância para TV pública são constantemente seduzidos por uma televisão

comercial que se esforça para renovar as relações com a audiência, servindo de laço entre o

poder público e a sociedade, mudando suas narrativas, olhando mais para as periferias e

estimulando a participação popular.

A TV Kirimurê, uma faixa dedicada à autonomia popular, é um acontecimento ainda

mais novo para a TV aberta e a mudança certamente exige tempo. Mas a experimentação

permite encontrar estratégias diversas e o caminho escolhido não pode prescindir de chegar o

mais perto possível da população e trazê-la para comandar a Kirimurê. O resultado recente da

experiência soteropolitana aponta a mobilização social como imperativo, promovendo diálogo

com outras mídias independentes e formando uma rede capaz de se expandir e consolidar.

Igualmente indica a necessidade de se aproximar da gestão pública nacional, estadual

e municipal e exigir um alinhamento sobre as suas responsabilidades com a manutenção do

projeto do Canal da Cidadania. A defesa pela autonomia da intervenção estatal não exime os

governos de responderem pela comunicação pública como o fazem com a saúde ou educação,

por exemplo: os representantes governamentais não são donos das universidades ou hospitais

públicos, mas respondem pela existência e manutenções deles.

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Essa fase de análise do percurso Kirimurê, ao mesmo tempo em que evidencia um

exponencial esforço de cidadãos de várias frentes que desejam realizar o projeto de uma TV

cidadã, também expõe importante fato para os debates que seguirão: os registros formais

ainda não são comuns à rotina da TVK, e, quando o são, ainda é pouco organizado. O

relatório oferecido para esta dissertação, totalmente impresso (sem versão digital), por

exemplo, não tem folhas numeradas, embora tenha centenas delas.

No trato de uma gestão autônoma e independente, na qual o cidadão é protagonista e

há uma cuidadosa remodelação dos espaços públicos e dos dispositivos que se perdem ou se

recriam para o reconhecimento de múltiplas vozes da sociedade (CANCLINI, 2006), gerir um

Canal ainda é algo que está sendo aprendido, sendo mais um desafio para continuar a navegar.

4.1.2 Controle e Independência Financeira

O mercado não pode gerar inovação social, pois esta pressupõe diferenças e

solidariedades não funcionais, resistências e dissidências, enquanto o

mercado trabalha unicamente com rentabilidade (MARTÍN-BARBERO,

2002, p.45).

O financiamento é tomado como base por todas as linhas de defesa para um modelo de

televisão pública independente, tanto no que se refere ao mercado e sua prática baseada no

consumo publicitário, quanto ao estado, margeado por uma intromissão ideológica que

compromete a existência da TV pública. Espera-se de uma tevê do campo público uma gestão

capaz de captar recursos que mantenham a sua autonomia, ou até mesmo o

autofinanciamento, sendo esse sempre um dos itens que causa maior vulnerabilidade para

manutenção dos sistemas públicos em todo o mundo.

Na lógica de construir um campo público para a radiodifusão como alternativa ao

modelo comercial hegemônico, o fator financeiro é predominante. Para alcançar uma

televisão como espaço estratégico que represente o vínculo entre os cidadãos e seus

pertencimentos a uma comunidade, essa TV precisa fazer algo que a comercial não pode,

“devido a sua tendência estrutural a uma obsolescência acelerada e generalizada, não apenas

dos objetos, mas também das formas e instituições”, completa Martín-Barbero (2002, p.45).

Quanto ao Estado, no entanto, a dicotomia não é coerente, já que como direito

garantido constitucionalmente, a comunicação deve ser parte dos planos de políticas públicas,

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sem que isso incorra em autoridade para qualquer governante destituir um veículo de

comunicação pública. De certo que um sistema público de TV não deve depender apenas da

dotação orçamentária estatal, especialmente com o predominante declínio desses orçamentos

na atualidade, mas os poderes públicos precisam entrar como subsidiários no processo de

financiamento dos sistemas públicos (CIFUENTES, 2002), pelo menos até que se

estabeleçam formas estáveis para suas manutenções.

Em termos de orientação legal para o financiamento da radiodifusão pública no Brasil,

é central a proibição da publicidade comercial de qualquer tipo. Tal regra é inaugurada em

1967, com a legislação para TV Educativa que veda “a transmissão de qualquer propaganda,

direta ou indiretamente, bem como o patrocínio dos programas transmitidos, mesmo que

nenhuma propaganda seja feita através dos mesmos” (BRASIL, 1967), e perdura até os dias

atuais em toda legislação para TV Pública digital e seus desdobramentos, como o Canal da

Cidadania. Sobre esse último dispõe-se que, em relação aos recursos econômicos: “são

vedadas, em todas as faixas de programação do Canal, a veiculação de anúncios de produtos e

serviços e a venda de horários da programação” (BRASIL, 2012b).

Apesar da clareza sobre a proibição para financiamento comercial, o que garante a

autonomia da TV pública ante o mercado, durantes décadas nenhum ato complementar legal

ou política pública determinou diretrizes para financiar as TVs desse campo. Disso resulta que

a maioria das emissoras implantadas é contraditoriamente63

financiada por um modelo de

negócios misto, no qual “os recursos são provenientes, em grande parte [grifo nosso], do

tesouro (municipal, estadual e/ou federal), e, em menor escala, da venda de serviços,

patrocínios e licenciamento de produtos” conforme aponta o Diagnóstico do Campo Público

da TV (Fórum Nacional de TVs Públicas, 2006, p.50).

A TVE BA se inscreve nesses dados e é mantida com orçamento majoritariamente

oriundo do Governo do Estado, através de recurso da Secretaria Estadual de Educação – já

tendo sido subordinada à Secretaria de Comunicação anteriormente. Ao receber autorização

para implantar o Canal da Cidadania, a relação financeira da TV Educativa com o Governo do

Estado da Bahia se mantém, embora agora ela seja responsável também por, além dos custos

de implantação, possibilitar a transmissão do conteúdo de todas as quatro faixas de

63

Gabriel Priolli (2006) explica que com as políticas de privatização e de enxugamento das funções do Estado

brasileiro, a partir dos anos 1990, os orçamentos TVs educativas minguaram a um ponto quase insustentável.

Com malabarismos jurídicos e boa dose de tolerância dos organismos de fiscalização, algumas educativas

contornaram as restrições legais e se abriram à publicidade comercial.

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programação e por arcar com os custos relativos à operação e à transmissão do Canal,

conforme disposto na Norma Regulamentar do Canal da Cidadania (BRASIL, 2012b).

O alto custo para implantar e manter um Canal foi um dos motivos apontados para o

recuo das prefeituras e governos estaduais ainda na fase de solicitação de outorga junto ao

Ministério das Comunicações, e em Salvador a implantação se fez financeiramente possível

porque a TVE BA já está implantada e digitalizada. Tendo a TVE BA como entidade

financeira encarregada de montar e dar manutenção ao sistema de transmissão, cabe à gestão

da TV Kirimurê, responsável pela faixa de programação para a qual foi habilitada, estabelecer

acordos de cooperação, convênios e ações de colaboração com entidades públicas ou

privadas, com vistas a produzir conteúdo e à transmissão do canal; além de custear o

transporte dos sinais da sua própria programação até o sistema irradiante (BRASIL, 2012b).

Há, portanto, duas frentes que carecem de investimento e financiamento no plano de

gestão da TVK: a primeira, imprescindível, é custear o tráfego de seu conteúdo até a antena

irradiadora da TVE, e a segunda é organizar o conteúdo para grade de programação. De modo

a atender prerrogativa número um, o primeiro investimento do grupo construtor da TVK foi

direcionado à compra dos equipamentos para transportar o sinal da sua sede no bairro da

Barra para a antena da TVE BA, no bairro da Federação, ambos em Salvador. De acordo com

o relatório da TVK (2016/2017) foram investidos cerca de vinte e cinco mil reais na compra

de hardwares e softwares para montagem de um sistema com autonomia para trabalho remoto,

de modo que o programador, de qualquer computador conectado a internet, pode enviar e

alterar o conteúdo da programação da Kirimurê.

O recurso foi parte de doações diretas de produtores ligados ao grupo construtor,

baseado na Norma que autoriza que a receita do Canal pode ser proveniente também de

“doações que lhe forem destinadas por pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou

privado” (BRASIL, 2012b). Logo que implantando, o equipamento de transmissão apresentou

problemas para levar o sinal até a antena da TVE BA, ao passo em que, com autorização do

então diretor geral do IRDEB BA, Flávio Gonçalves, o transmissor da TVK passou a ficar

alocado diretamente nas instalações da TVE BA (Relatório Kirimurê, 2016/2017).

Ainda na primeira frente, atente-se para a necessidade de ter profissionais que

executem as demandas de receber e identificar o conteúdo de acordo com os princípios do

Canal da Cidadania e que, tecnicamente, organizem a programação. Hoje toda essa atividade

continua sendo executada por colaboradores voluntários e é urgente que a TV Kirimurê

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consolide uma equipe de trabalho. Isso pode ser feito por meio de recursos provenientes de

dotações orçamentárias; de apoio cultural de entidades de direito público e de direito privado;

sob a forma de patrocínio de programas, eventos e projetos; de publicidade institucional de

entidades de direito público e de direito privado; de recursos provenientes de acordos e

convênios firmados com entidades públicas ou privadas; e de rendas provenientes de outras

fontes, desde que não comprometam os princípios e objetivos do Canal (BRASIL, 2012b).

Na frente que trata sobre o financiamento para a programação, com base na defesa de

que uma TV pública independente, com garantia de orçamento necessário para sua

manutenção, de previsibilidade da receita a ser recebida e de real autonomia frente ao estado e

ao mercado (Rumphorst, 2007), a proposta de um canal que é programador e não tem

obrigação de produzir conteúdo desponta com forte alinhamento.

“A grande inovação, aliás, é não produzir programas nem os financiar, adquirindo o

que precisa de terceiros, em geral produtores independentes de toda parte do mundo” 64

,

defende Gabriel Priolli como forma de cortar custos e fomentar a produção independente. Tal

iniciativa possibilita financeiramente a existência da TV pública no Brasil e democratiza a

entrada de diferentes conteúdos na programação, também de acordo com Priolli. A essa

perspectiva de produção independente, no contexto do Canal da Cidadania, deve-se ampliar

para o fato de que, qualquer conteúdo que não fira os princípios do canal, produzido por

qualquer cidadão em pessoa física ou jurídica, deve ser transmitido na programação da TVK.

Ainda soa utópico imaginar que um canal de TV possa montar sua grade de

programação apenas com vídeos produzidos por pessoas comuns, ou mesmo que todo cidadão

esteja disposto a ser um realizador de conteúdo audiovisual. Mas hoje, com a transição do

formato broadcasting – de conteúdo diluído, pensado para atingir o público e agradar a

maioria da audiência – para um formato narrowcasting, consumo mais personalizado e que

permite ao telespectador acessar apenas o conteúdo que mais o interessa, essa utopia ganha

forma de sonho alcançável. E isso não somente pela perspectiva do cidadão poder escolher o

que assistir e na hora que quer, mas por se tratar de um conteúdo com laços mais “estreitos”,

construído para públicos direcionais.

Soma-se o fato de a TV Pública não precisar ter compromisso com a grande audiência,

já que sua função basilar é pautada no fluxo de programas diversificados, sobretudo com a

64

Matéria disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/07/01/ha-publico-para-uma-tv-publica/. Acesso

em: out. 2018.

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produção de conteúdo local atento às preferências e necessidades do cidadão. Juntos, então,

esses fatos apontam o Canal da Cidadania como espaço potencial para experimentação de

conteúdo, o que em muito colabora para diminuir os seus custos de manutenção.

Importante avanço no trato entre a TV Kirimurê e as produtoras independentes

aconteceu em 2017, na ocasião do evento NordesteLab. A iniciativa é uma plataforma de

articulação desenvolvida a partir de ações de formação, articulação e desenvolvimento de

mercado audiovisual, com ênfase nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste e com apoio do

FSA e da ANCINE. Em um dos seus eixos centrais, o Nordeste Lab promove as rodadas de

negócio, voltadas para produtoras que desejam submeter seus projetos audiovisuais para

avaliação dos canais de televisão 65

.

A TV Kirimurê participa do evento como canal de televisão em busca de conteúdo, e

dezenas de projetos como parceiros para exibição de conteúdo na sua grade de programação

(Relatório Kirimurê 2016/2017). Na ocasião, a dinâmica entre a TVK e as produtoras se dá a

partir do edital do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro, o

PRODAV, programa de financiamento do Fundo Setorial do Audiovisual, ligado a ANCINE,

e destinado ao fomento de projetos de produção, programação, distribuição, comercialização e

exibição de obras audiovisuais brasileiras de produção independente.

Há um circuito estabelecido em que uma produtora independente, que busca

financiamento para produzir seus conteúdos, encontra possibilidades em programas de

incentivo do governo, como o PRODAV, mas que para escoar essas obras precisa receber

pela licença do conteúdo que deve ser paga pela emissora interessada em exibir. Os valores

das licenças variam de acordo com o modelo da emissora (pública ou comercial) e também

com o valor a ser financiado, pois quanto maior o valor do projeto, maior o valor da licença.

No ciclo, a cada exibição na TV, as produtoras independentes somam pontos que são

critérios de avaliação quando retornam para editais de seleção em programas como o

PRODAV, e assim, quanto mais exibirem, mais chances têm de conseguir o financiamento.

Além disso, é preciso que a produtora apresente à ANCINE um pré-contrato assinado com a

TV que deseja veicular o produto quando submeter aos editais de financiamento, uma

confirmação de que terá onde exibir seu conteúdo, o que exige uma parceria TV x produtora

independente – é aqui que as rodadas de negócio do NordesteLab se configuram.

65

Mais sobre o NordesteLab em http://www.nordestelab.com.br. Acesso em: dez. 2018.

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Mas como a TV Kirimurê pode participar dessa engrenagem se não tem orçamento?

Durante as rodadas de negócios ela se apresenta como canal exibidor, e dispõe os seguintes

critérios para aprovação dos produtos: ter conexão com Salvador e região metropolitana;

representar a cultura brasileira, nordestina e baiana; ter custo de até R$ 900 mil reais; fazer a

entrega para as comunidades quando o produto for ao ar; estar de acordo com os princípios do

Canal da Cidadania; priorizar produtoras pequenas que dificilmente teriam projetos aprovados

em rodadas de negócio; e a produtora deve trazer o parceiro comercial para pagar a licença

(Relatório Kirimurê, 2016/2017).

O regulamento geral do PRODAV 66

permite que a produtora viabilize em seu projeto

um parceiro comercial para pagar pela licença do conteúdo. A Kirimurê, durante o

NordesteLab, estabeleceu um contrato com produtoras para que elas se responsabilizem,

através do alinhamento com a empresa interessada67

em apoiar seus projetos, pelo pagamento

da licença para exibição no Canal. Em resumo, a TVK entra com o espaço de exibição na TV

de sinal aberto e digital e a produtora disponibiliza seu conteúdo financiado junto a ANCINE

através do PRODAV, com a condição de incluir em seu orçamento a licença que deveria ser

paga pela faixa do Canal da Cidadania, sem custos para a TVK.

Entre séries documentais, filmes de ficção e programas televisivos, nenhum dos

projetos assinados com a Kirimurê e submetidos ao edital PRODAV foi concluído, mas o

processo deixa um mapa para as TVs públicas que procuram caminhos que viabilizem sua

programação. Muitos editais municipais, estaduais e federais para produtoras independentes

ficam estagnados porque não há TVs interessadas em pagar pelo conteúdo, então ter uma TV

como a Kirimurê como primeira janela de exibição para produtores independentes interrompe

uma ausência histórica, e mais que isso, faz com que a TVK possa ser uma startup,

impulsionando iniciativas pelo país inteiro (Relatório Kirimurê, 2016/2017).

De tal modo, a ação do grupo construtor no NordesteLab pode ser uma alternativa ao

mercado independente do audiovisual, atendendo tanto a política de fomento à produção

(como aconteceu com o DOCTV) quanto fortalecendo a TV Pública através do plano de

exibição no Canal. Além disso, um novo ciclo é gerado e permite que, como programadora,

66

Disponível em https://fsa.ancine.gov.br/sites/default/files/regulamento-geral-do-

prodav/Regulamento_Geral_do_PRODAV___versao_26.12.2013.pdf. Acesso em: dez. 2018. 67

Esse parceiro comercial pode ser qualquer pessoa física ou jurídica interessada em apoiar o projeto e que nele

encontre feedback que pode variar entre assinatura como apoio cultural nos conteúdos até propaganda

institucional, sem apelo comercial, na própria Kirimurê.

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ao exibir conteúdo local de produtores independentes, a TVK consequentemente fortaleça sua

imagem e ganhe a confiança da sociedade para que tenha interesse em se manifestar.

Completando dois anos de inaugurada em novembro de 2018, a TV Kirimurê ainda

não tem uma linha de financiamento instituída, mas o projeto Kiriamigos do Canal também

teve destaque na busca por sua sustentabilidade orçamentária entre os anos de 2016 e 2017. A

inciativa consiste em alcançar empresas públicas ou privadas da região que, motivadas pelo

baixo custo para inserir sua publicidade institucional em um Canal de TV aberta, se tornassem

parceiras da Kirimurê. Estavam previstos acordos com pacotes de R$ 5.000/mês,

R$10mil/mês e R$15.000/mês, com os respectivos modelos: 8 inserções de 30 segundos todos

os dias, 16 inserções de 60 segundos todos os dias, 20 inserções de 60 segundos todos os dias.

Para sensibilizar as potenciais parcerias, o grupo da TVK anunciava que, ao fecharem

um contrato logo na primeira fase do Canal, as empresas escreveriam seu nome na história

por acreditarem na primeira TV Cidadania do Brasil. Estavam entre as contrapartidas para os

colaboradores, além da inserção de seu material na programação, o recebimento de um Selo

Exclusivo, entregue de forma digital e como placa comemorativa, e um pacote de veiculação

e visibilidade exclusiva durante os 12 primeiros meses de funcionamento do Canal. A

previsão era de que apenas 20 empresas fossem comtempladas com o Selo Kiriamigo

(RELATÓRIO KIRIMURÊ, 2016/2017).

A venda é permitida pela Norma Regulamentar do Canal da Cidadania (2012b), que

autoriza orçamento oriundo sob a forma de patrocínio de programas, eventos e projetos e de

publicidade institucional de entidades de direito público e de direito privado. Por publicidade

institucional entende-se a divulgação de dados não comerciais das empresas, sem que seja

noticiada qualquer informação sobre produtos, promoções ou valores específicos. O mesmo

vale para entidades públicas, que podem pagar para distribuir publicidade legal, baseada na

transparência e na lei de acesso a informação.

No plano há também a previsão de pacotes para patrocínio de programas e

propagandas institucionais com valores variáveis, para que o investimento retornasse ao

apoiador através de assinaturas no oferecimento dos programas da TVK, agradecimentos nos

créditos finais da programação, inserção da marca em todas as mídias da Kirimurê (cartazes,

folders, eventos, outdoors, e outros). A relação tempo de duração da inserção x turno

apresentava valores que variavam do mínimo de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) ao máximo de

R$ 400 (quatrocentos reais), incomparáveis a qualquer tabela de TV comercial.

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A iniciativa se distingue por tentar criar um modelo de negócio adaptado ao padrão de

publicidade do mercado, defendido por alguns autores como alternativa para que uma TV

pública alcance seu autofinanciamento. O livro televisão pública, do consumidor ao cidadão

(RINCÓN, 2002) sugere tomar entre as linhas prioritárias para alcançar um modelo de

financiamento sustentável, a busca por entender como a TV Pública pode encontrar

estratégias de publicidade com critérios e responsabilidade cidadã e aproveitar a convergência

para oferecer serviços comunicativos, mesmo que os estados não cumpram com suas

responsabilidades em prestar esses serviços.

Sobre isso não há unanimidade. Nem mesmo sobre a conservação da publicidade

como parte de uma grade televisiva pré-determinada. Por um lado Newton Cannito (2010)

defende que a tendência da TV digital (aqui falando de televisão em geral, e não pública

especificamente) é acabar com o intervalo comercial. Para ele esse intervalo “já perdeu

terreno com a chegada do controle remoto [...] e outros modelos comerciais ganharão força,

como o anúncio simultâneo de TV, que possibilita dividir a tela e fazer o anúncio enquanto o

programa é exibido” (CANNITO, 2002, p. 116).

Entretanto, contrariando a lógica de “não adianta inserir publicidade na grade porque

os espectadores não vão mais aceitar”, atualmente os anúncios e propagandas são obrigatórios

para quem assiste a um vídeo gratuito no youtube ou no intervalo de um jogo gratuito no

celular, por exemplo. O espaço antes reservado apenas para os trailers no cinema, agora são

tomados por propagandas de todo tipo, e os aplicativos gratuitos de celular para uso de banco

ou acesso a música streaming, inserem propagandas entre um clique e outro, entre uma

música e outra, e anunciam: se você contratar a assinatura premium ficará livre dos anúncios

publicitários. Tudo isso ainda é parte de mudanças em andamento, compondo um grande

processo de convergências e com uma série de regras e transformações que nenhum de nós

entende ou domina por completo (JENKINS, 2009), e por isso a experimentação é essencial.

Saliente-se que há grupos que defendem a publicidade na TV pública e outros que são

veementemente contra inserir qualquer anúncio, mesmo que institucional, na sua grade. Estes

apoiam modelos de financiamento como o da BBC de Londres, baseados em uma taxa anual

que seus cidadãos pagam exclusivamente para manutenção da TV pública, ou na experiência

da televisão pública colombiana, que taxa emissoras comerciais com impostos direcionados a

manutenção dos sistemas públicos (INTERVOZES, 2009).

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Pola Ribeiro, em muitas de suas palestras e debates públicos, defende que fazer

televisão não é caro, porque mesmo que seja necessário certo investimento e que ele seja

maior se comparado a outras mídias, a televisão é um veículo de grande alcance, e

principalmente muito acessada. No caso da TVK, esse custo é ainda menor e pode ser

organizado de maneira que a padaria, o barbeiro, ou farmácia do bairro e mesmo entidades

associativas e outros tantos segmentos que se reconhecem na tela da TVK, sejam apoiadores,

mesmo que se demore a alcançar uma receita ideal. Considerando a possibilidade de

fortalecer a Kirimurê como programadora, sua metodologia de gestão se fundamenta,

portanto, no modo como seu grupo gestor se articula com as comunidades. Uma mobilização

difícil, mas possível.

Embora aqui separadas para análise, a gestão, o financiamento e a programação são

ligados intrinsecamente, e a autonomia real de um veículo público perpassa pela

independência e alinhamento desse tripé: Superando a programação baseada no valor pago

pelos anunciantes, o financiamento estatal que apoia TVs públicas apenas por interesses

partidários, e gestões verticalizadas que não conceda à população o direito de se colocar. De

certo que a TV Pública Tupinambá da cidade de Salvador precisa mergulhar em muitas

experiências na busca por instituir o seu próprio modelo de financiamento, e sem demora,

experimentar, como se propõe a fazer também nos seus projetos de gestão e programação, de

modo a se manter no ar como a TV que invade território de colônia.

4.2 CONTEÚDO PARA “SE VER, OUVIR E PENSAR”

A televisão pública deve contar estórias para gerar conexão com mais

públicos, e essas estórias deverão procurar os novos tons do experimental,

que os novos instrumentos tecnológicos permitem gravar, editar, imaginar. A

TV Pública deve ser o cenário do underground, da criação independente, o

bufão da casa homogênea do maciço; deve seduzir, através de relatos

sedutores, experimentais, irônicos, que viabilizem o excluído da imagem

comunicada; deve reconhecer essas e outras técnicas que nunca vimos na

tela; deve nomear e representar essas e outras maneiras de fazer sociedade

(RINCÓN, 2002, p.325)

O processo produtivo da programação de tevê envolve fases que são constantemente

revisadas a partir das tecnologias da comunicação e informação. Dentro do circuito comercial

e hegemônico da radiodifusão, pautas, roteiros, formatos, produção, edição e meios de

divulgação são itens de um jogo complexo que atende aos interesses de grandes empresas de

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comunicação movidas pelo capital (financeiro e simbólico) de outras grandes empresas

financiadoras. Assim chega-se a histórias contadas de modos quase sempre reconhecíveis pela

grande audiência, tal qual o próprio hábito dos horários da grade de programação da TV.

Embora um enorme desafio, a ousadia, a invenção e a experimentação são elementos

chave para descontruir esse complexo jogo comercial, na direção de uma TV pública que

encontra espaço no projeto do Canal da Cidadania. É o contar outra vez proposto por Rincón

(2002), reprogramando a televisão pública e reinventando o audiovisual, em um grande

movimento criativo. E é no conteúdo, talvez mais que nos aspectos de gestão e orçamento,

que melhor se reconhece o movimento a contrapelo, deixando de lado o critério autoritário da

verdade única e promovendo ilimitados encontros sociais, não só na forma de produzir, mas

também de consumir a programação.

A grade de programas ainda é o eixo mais estável para reconhecer ‘o que é uma

televisão’. Ela, junto com o aparelho de TV, por muitos anos explicou de maneira exata essa

questão posta, e os hábitos dos telespectadores se pautaram na programação fluida,

previamente estabelecida, contínua e coesa, com seus horários demarcados, típicas da

produção analógica. A manhã dos desenhos animados, que passou a ser a manhã dos

programas de variedades; o jornal do meio dia, a novela das nove, o futebol na quarta feira à

noite, ou o programa da tarde de domingo, tudo isso incluído na rotina diária da família

brasileira de maneira tão frequente quanto naturalizada.

Mas nas últimas décadas, com uma televisão que é um computador em menor escala,

conectada à internet e que recebe conteúdo em alta resolução compactado em zeros e uns, o

que muda para a programação? Como se configura essa nova dimensão fora do aparelho

televisivo, na qual o espectador tem experiências com conteúdo fragmentado, acessível em

multitelas? Para Bolaño e Brittos (2007b) a digitalização é mais uma, e talvez a principal, das

muitas mudanças que os sistemas televisivos de todo o mundo enfrentam. A fidelização do

espectador exige novas estratégias, e se por um lado a programação convencional e que busca

atingir a todos de maneira simultânea é mantida, essa precisa ser conjugada “com a via da

segmentação, em que os produtos são criados, realizados e reunidos em um ou vários blocos

com base em variáveis como classe social, gênero, idade, escolaridade e preferências de

consumo” (BOLAÑO, BRITTOS, 2007b, p. 213).

Para os empresários da radiodifusão, além da prioritária transmissão em alta definição,

de uma TV nítida que proporciona uma imagem sem chuviscos e um som sem chiados, têm

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forte apelo os novos mercados de vídeo on demand e streaming, e também uma possível

ampliação da interatividade. Com os recursos digitas, ao assistir a programação da TV, os

telespectadores podem ter informações detalhadas de um programa, responder a perguntas em

participações ao vivo, conhecer melhor produtos e serviços que deseja comprar, e outros.

No site oficial que apresenta a TV Digital68

, os exemplos esclarecem sobre a

interatividade. Em uma novela basta usar o controle remoto para ver o resumo do capítulo

anterior e obter informações sobre atores e suas personagens. Se o consumidor gostar de

reality shows, além de ver o perfil de cada participante, poderá se atualizar sobre os últimos

acontecimentos do programa ou adquirir os produtos dos patrocinadores, por exemplo. Já em

uma partida de futebol, é possível conferir a escalação das equipes, ver o resumo sobre o jogo

ou conferir a classificação do time no campeonato, tudo apertando botões no controle remoto.

Todas essas promessas ainda estão longe de se tornarem realidade nas casas dos

consumidores, espectadores que convivem diariamente com as experimentações técnicas e

também com as novas formas de consumir o conteúdo televisivo.

Se para as corporações midiáticas a TV digital é uma vasta oportunidade de negócios,

para o campo público, criaram-se muitas expectativas sobre um novo modelo de

relacionamento com o cidadão. As perspectivas estão especialmente fincadas na interatividade

a partir de aplicativos que proporcionam acessos e consultas a serviços de utilidade pública

como informações sobre Assistência Social, vagas de emprego e dados do Fundo de Garantia

do Tempo de Serviço (FGTS); declaração do imposto de renda; marcação de consultas

médicas na rede pública, além de atividades de educação e formação à distância.

A Empresa Brasil de Comunicação chegou a criar o projeto Brasil 4D, que buscou

através da aplicação do middleware Ginga permitir ao cidadão acessar informações acerca dos

serviços disponibilizados pelos governos federal, estadual e municipal 69

. A proposta teve fase

teste em residências na Paraíba e no Distrito Federal, sendo oferecida a famílias inscritas no

projeto Bolsa Família. As quatro letras “D”, contidas na nomenclatura Brasil 4D, representam

as missões do projeto: Digital – universalização da televisão digital e de suas potencialidades;

Desenvolvimento – com novas tecnologias e informação; Diversidade – ver e estimular a

pluralidade da cultura brasileira; e Democracia – com a participação maior dos cidadãos nos

conteúdos e serviços oferecidos pelo poder público, por meio da interatividade da TV Digital.

68

Disponível em www.dtv.org.br. Acesso em: dez. 2018. 69

Dados sobre o projeto Brasil 4D disponíveis em http://www.ebc.com.br/brasil-4d/2014/02/o-que-e-o-projeto-

brasil-4d. Acesso em: jan. 2019.

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Os resultados podem ser considerados controversos. Em parte porque, assim como

outras iniciativas e políticas públicas para comunicação no país, a população, que é a maior

interessada, pouco é ouvida durante o planejamento. Aplicar os “4Ds” falando em

democracia, mas colocando o cidadão como mero usuário, replica mimeticamente práticas

criticadas por muitos pesquisadores da comunicação pública. Também porque vários serviços

disponibilizados, como consultar informações sobre direitos da mulher, por exemplo, não

encontram assistência fora da tela, o que gera um abismo entre o projetado e o vivido.

Mas há também a economia de tempo de dinheiro para procurar emprego, como relata

Gildete Oliveira, uma das moradoras do Distrito Federal contemplada para fase teste do Brasil

4D. E ela completa: “Imagem bonita né? A gente fica feliz de poder assistir tudo limpinho,

ouvir tudo direitinho” 70

. O depoimento corrobora com a proposta da TV digital de melhorar a

chegada do sinal das TVs públicas no território brasileiro e ter na tevê um pequeno

computador para cidadãos sem acesso à internet. Fato é que o Brasil 4D não passou da fase

teste, e o ginga não chegou para a maioria da população. Também a cobertura do sinal digital

ainda não é total, criando bolsões analógicos pelo país.

Observe-se que as experiências de participação popular na TV Digital, em muitas

frentes das políticas públicas e também em pesquisas acadêmicas, seguem a linha da

bidirecionalidade a partir do consumo em novos aplicativos e serviços, ou do envio de

material para uma emissora de televisão. Mesmo Crocomo (2007), por exemplo, que defende

a participação cidadã na TV pública digital, dedica grande parte do seu livro para apresentar a

Produção Interativa de Tevê, um modelo para produzir e enviar vídeos que permite ao

telespectador “participar da programação de uma emissora de TV, recebendo programação

normal e retornando informações, inclusive conteúdo de vídeo” (CROCOMO, 2007, p.31).

Nesse contexto, o que pode ser tomado como diferencial na multiprogramação e no

Canal da Cidadania é a proposição de entregar à sociedade civil um canal para que ela mesma

faça a gestão e programe, sem a comum mediação vista até então. Ao contrário de uma

participação e interação mediadas pelos mesmos interesses comerciais predominantes, ou pelo

governo e seus serviços, é a promoção de um espaço para experimentar e exercer a

inteligência coletiva, sendo ela uma fonte alternativa ao poder midiático (JENKINS, 2009).

70

Reportagem disponível em https://www.youtube.com/watch?time_continue=7&v=ONFCMWC2T20. Acesso

em: fev. 2019.

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No percurso da TV Kirimurê, a equipe gestora tem a missão de discutir a programação

buscando equilibrar a necessidade de atender a uma grade reconhecível para um canal de TV

e a possibilidade de criar modelos inovadores e independentes. Uma vez que a TVK pode e

deve receber e exibir conteúdo cujos responsáveis são pessoas físicas e cidadãos comuns, a

organização de sua grade de programação demanda intenso processo de estudos e tentativas.

Ainda na fase de planejamento, com a equipe construtora da TVK, o GT de

Programação propôs as seguintes faixas temáticas, que foram inclusive as apresentadas no

evento de lançamento do Canal, em novembro de 2016: KiriCine, KiriMúsica, KiriGuri,

KiriClasses, KiriDiversidade, Faixa Factual, KiriJornalismo, KiriEsportes, KiriMelhorIdade,

KiriEducação, KiriHomem, KiriMulher, KiriSeries, KiriVariedades e KiriArtes.

Correspondendo aos nomes que acolhem, cada faixa abriga os conteúdos que melhor a ela se

alinham, passando pela avaliação de uma diretoria de programação. A previsão, de acordo

com o relatório da Kirimurê (2016/2017) era de que sua programação fosse formada de 5% de

jornalismo local – cumprindo com o que determina a Norma Regulamentar do Canal da

Cidadania, 70% de conteúdos licenciados das produtoras locais e 25% de produção própria –

tendo para isto parceria estabelecida com a Associação de produtores e Cineastas da Bahia.

Ressalte-se que este planejamento busca também atender aos princípios e objetivos

para a programação dispostos na Norma Regulamentar do Canal da Cidadania, entre os quais

estão: propiciar a formação crítica do indivíduo para o exercício da cidadania e da

democracia; expressar a diversidade de gênero, étnico-racial, cultural e social brasileiras;

contemplar a produção local e regional; e fomentar a produção audiovisual independente,

ampliando a presença de conteúdos autônomos em sua programação (BRASIL, 2012b).

No entanto, de modo semelhante ao projeto de organograma inicial proposto pelo

grupo construtor, e já com indícios de falha sobre a participação direta das frentes populares –

uma vez que o planejamento esteve muito direcionado para as produtoras independentes com

conteúdo licenciado, essa proposição não se consolidou. Com a dificuldade de preencher e

organizar a grade de programação, somada a já muito citada diminuição dos membros

voluntários dos GTs da TVK, a programação passou a ter por base a retransmissão de outra

emissora, e a primeira delas a ocupar a faixa foi a TV Escola.

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4.2.1 Da TV Escola à TVT

Como parte do processo de implantação do Canal da Cidadania, a TV Educativa da

Bahia colocou no ar para teste o canal 10.2, retransmitindo a TV Escola. A faixa, entretanto,

precisava ser ocupada pela TVK, que deveria assumir a responsabilidade sobre a programação

do Canal até novembro de 2017. Foi exatamente quando, ainda sem sua grade original de

programas, a Kirimurê passou a retransmitir diretamente o sinal da TV Escola.

A escolha se deu em função da disponibilidade da emissora, pela urgência de não

perder a autorização e, sobretudo, por essa transação ser gratuita, já que a Escola é um canal

pertencente ao Ministério da Educação, e pode ser retransmitida por qualquer programadora

pública interessada (RELATÓRIO TV KIRIMURÊ, 2016/2017). Sua chegada à rede de tevê

digital aberta em Salvador representa uma oferta importante, já que até a digitalização a

Escola chegava ao território nacional apenas através de antenas parabólicas e TVs a cabo.

Entretanto, por longo período, a TV Escola foi a única programação da TVK, passando longe

da regionalização do conteúdo prevista como princípio do Canal da Cidadania.

Com sede no Rio de Janeiro, a TV Escola foi fundada em 1996 para levar educação a

todos os cantos do Brasil, em especial aqueles isolados e sem acesso aos principais meios de

comunicação. Enfatiza-se que não se trata de uma TV para divulgação de políticas públicas da

educação, mas de uma política pública em si, com o objetivo de subsidiar a escola e não

substituí-la, tampouco substituir o professor. A TV Escola é uma ferramenta pedagógica

disponível ao professor, tanto para complementar sua própria formação quanto para ser

utilizada em suas práticas de ensino e tem programação própria produzida para 24h por dia,

disponível também na internet e em aplicativo próprio pelo celular 71

.

Apesar de ter sido essencial para manter a TVK no ar, a grade de programação da TV

Escola não corresponde ao projeto conceitual da faixa Kirimurê. Além de seu conteúdo e

forma serem predominantemente sulistas, o que pode ser percebido tanto nos sotaques dos

apresentadores quanto na escolha das pautas e programas, o conteúdo da TV Escola é muito

pedagógico e se aproxima da ideia de tele-educação, fazendo uso de modelos didáticos para

formar a população. Sobre esse aspecto, compartilhamos da ideia de Viviane Mosé (2015),

quando defende que quanto mais pedagógica uma TV for, menos educativa ela é, pensando os

71

Dados disponíveis em https://tvescola.org.br/. Acesso em: nov. 2018.

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processos formativos a partir das dinâmicas contemporâneas, com novas relações entre

professores e alunos e os novos elementos culturais e comunicacionais disponíveis.

Parte de uma política de mudança de programação da Kirimurê, que desejava trazer

conteúdo mais crítico e cultural para sua grade, no lugar da TV Escola, a TVK passou a

retransmitir a programação da TV dos Trabalhadores, a TVT, emissora educativa filiada a TV

Brasil e outorgada à Fundação Sociedade Comunicação Cultura e Trabalho, entidade cultural

sem fins lucrativos, mantida pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e pelo Sindicato dos

Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região. A TVT se apresenta como um canal

de ampliação da voz dos movimentos sociais, comprometido com a democracia, o

fortalecimento da cidadania e a justiça social.

Ao passar a retransmitir a TVT, a Kirimurê dispõe um formato de programação que

chama atenção: a TVT usa a TV Brasil como base para sua programação; a TV Brasil

retransmite outras muitas TVs educativas brasileiras, inclusive da TV Educativa da Bahia; a

TVE BA também usa a TV Brasil com base de sua programação; e assim vez ou outra a TVT

está transmitindo a TVE BA através da retransmissão da TV Brasil. Por vezes, ao olhar para o

televisor, o cidadão soteropolitano se vê desafiado a identificar a origem do conteúdo, com as

marcas da TVT, da TV Brasil, da TVE-BA e da Kirimurê distribuídas na tela.

O conteúdo de autoria da TVT tem assinatura forte de temas políticos, socioculturais,

econômicos, ambientais e artísticos, e a organização de sua grade muito pode ensinar a

Kirimurê e a outras TVs do campo público. Ao sintonizar na TV do Trabalhador, o

telespectador tem acesso a uma programação que reúne debates sobre democracia, inclusão e

acessibilidade tratados em formatos capazes de alcançar diversos públicos, incluindo as

crianças e adolescentes. Nos programas e interprogramas, o conteúdo quase sempre crítico

traz informações sobre leis, estatísticas e muitas explicações sobre direitos e deveres sociais.

O Artvismo pode ser tomado como exemplo. O programa combina uma diversidade de

conteúdos enviados diretamente pelos telespectadores e busca pautar a produção artística

independente a partir de questões sociais e políticas. Sem apresentadores fixos e com

informações segmentadas, o resultado se aproxima da linguagem de vídeos web. Produzidos

em várias regiões do Brasil, videoclipes, videoinstalações e muitas produções de baixo custo

encontram espaço no programa.

Mas há igualmente exemplos que não devem ser seguidos. O Seu Jornal, programa

jornalístico diário da emissora, em geral, revela a forte inclinação partidária da TVT no trato

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das pautas políticas, um ponto importante no debate sobre proselitismo na TV pública e

essencial para o projeto do Canal da Cidadania. Mesmo com a missão de exibir “o outro lado

dos fatos”, a TVT muitas vezes replica a lógica da verdade única do jornalismo das grandes

emissoras comerciais, sem dispor de contraditórios.

Hoje a TV Kirimurê continua tendo a retransmissão da TVT como base para sua

programação. Embora possa ser considerado muito mais amplo que o da TV Escola, o

conteúdo da TV dos Trabalhadores é também caracterizado pelas pautas de sua região e se

distancia da função de regionalizar a TV aberta de Salvador-BA.

Fechar a grade de programação é desafio para muitas TVs do campo público no Brasil,

e bem por isso há inúmeras iniciativas para compartilhamento de conteúdo entre as emissoras

educativas, desde a criação da TV Brasil. Retransmitir é a opção para a maioria delas,

mesclando suas produções com a programação da emissora usada como base. Uma rede

similar pode ser tomada como mecanismo para alimentar a grade de programação da TVK: se

todos os mais de cinco mil municípios brasileiros tivessem as suas faixas da cidadania

funcionando e trocassem conteúdo, a regionalização seria em muito ampliada.

Com entrevistas a personalidades locais, o primeiro programa em parceria com a TV

Kirimurê é o Conversa de Preta, que vai ao ar em fevereiro de 2018. O conteúdo já era

produzido para internet e sua apresentadora, Dina Lopes (atualmente também gestora da

TVK) traz edições inéditas para a TV aberta. Aos poucos, outros programas produzidos na

região começam a circular na grade Kirimurê, uns pensados exclusivamente para o Canal e

outros que migraram também da internet para televisão. Reunindo inovações, mas também

conservadorismos, assistir à programação da TVK ajuda a compreender as possibilidades de

superar desafios e de aproveitar a experimentação como nova perspectiva.

4.2.2 Conversa de Preta e Simões Filho no Ar

“Bem vindas e bem vindos ao programa Conversa de Preta aqui na TV

Kirimurê. Eu sou Dina Lopes e hoje nós vamos estar conversando [sic]

com a empreendedora negra Joana Angélica Moreira, ou somente Angélica

como gosta de ser chamada. Angélica é a mentora intelectual do projeto

Ajeum da Diáspora e nós vamos estar conversando sobre comida com

identidade” (Dina Lopes, 2018)72

72

Edição de estreia do programa Conversa de Preta na TV Kirimurê. Disponível na íntegra no link

<https://www.youtube.com/watch?v=R6PKtnxDQcI>. Acesso em: jun. 2018.

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O Conversa de Preta busca evidenciar personagens da cena local, predominantemente

mulheres, para falar de temas de suas especialidades, valorizando suas histórias. Importante

conquista para grade da TV Kirimurê, o programa era produzido de maneira independente e

distribuído pela internet, através de canal no youtube, e teve estreia na TV aberta terrestre

gratuita graças à TVK. O programa tem periodicidade semanal, vai ao ar sempre as segundas-

feiras, às 20h, com reprise aos sábados, às 16h, e desde o seu lançamento na Kirimurê é

oferecido de maneira regular, com poucas interrupções ou ausências na grade.

O protagonismo da mulher negra, destacado no discurso do programa, os sotaques

acentuados, facilmente reconhecíveis pelo cidadão soteropolitano, e o cenário ornado com

muita chita e estrados de madeira, coadunam com a premissa de contar estórias que geram

conexão com quem as assiste, em uma TV que rompe com as pautas habituais. O programa dá

visibilidade a “diferentes atores da sociedade, ampliando as agendas de opinião, de tal forma

que a diversidade de vozes, a multiplicidade de temas, e as diferentes perspectivas de análise

estejam representadas em um debate público” (MARTÍN-BARBERO, 2002, p.341).

Conversa de Preta se encontra com os princípios do Canal da Cidadania

especialmente no que tange a expressão da diversidade de gênero, étnico-racial, cultural e

social brasileiras, com a promoção do diálogo entre as múltiplas identidades (BRASIL,

2012b), uma máxima para exercitar a democracia na TV aberta. Em quase um ano, foram

dezenas de programas transmitidos para toda Salvador e região metropolitana, em encontros

com personagens da cena baiana e suas narrativas que fomentam outras produções locais.

Apesar do formato de entrevista tradicional, com jogo de câmeras entre perguntas e

respostas, entrevistador e entrevistados sentados em posições perpendiculares em uma mesa

de centro com xícaras de água para pausas e etc., quando se trata da escolha de suas pautas e

fontes o programa rompe com os hábitos tradicionais da TV privada. Isso se faz notável pela

visibilidade dada aos atores sociais não publicizados na grande mídia televisiva e, sobretudo,

por privilegiar um campo de expressão para os cidadãos, levando cultura e informação de

maneira plural e diversa, com independência editorial (UNESCO, 2000), não sendo conteúdo

estruturado para atender a intencionalidades comerciais ou governamentais.

Ter uma mulher negra como apresentadora e figura central do programa é outro

elemento de grande relevância do Conversa de Preta. Em um país onde vira notícia (em

2019) o fato de uma mulher negra apresentar pela primeira vez, em cinquenta anos, o mais

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emblemático jornal da TV aberta brasileira, o Jornal Nacional, da Rede Globo 73

, ter esse

dado no programa inaugural da Kirimurê é um marco. Representa o que Rose Rocha (2012)

trata por reciclagem do visível, numa constituição de espaços político-comunicacionais de

negociação e de conflito. Ademais, soma-se a expressiva representatividade feminina e negra,

que reverbera no fortalecimento das múltiplas identidades brasileiras. Tanto por aquilo que

conta, como sobre o que conta e muito sobre quem ajuda a contar, o programa pode ser lido

como produto a contrapelo na tevê brasileira.

Em geral, o Conversa de Preta se apresenta dividido em três blocos e têm duração

média total de trinta minutos, sem cortes de edição entre os blocos, aspecto importante, já que

pouco conteúdo é perdido. Destaca-se também sua realização técnica, que se dá a partir da

parceria entre voluntários. Nos intervalos entre os blocos, o telespectador assiste a vídeos com

divulgação da própria grade da Kirimurê, além do institucional feito para apresentar o Canal e

informações de serviços públicos, como prazos para o cadastramento biométrico – material

produzido pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE-BA). Com o projeto Kiriamigos

funcionando, pequenos empresários e empreendedores locais poderiam ser patrocinadores do

Conversa, uma ação a ser perseguida.

Na programação de segunda a sexta-feira, das 11h30 às12h, outra estreia na grade da

Kirimurê em 2018 é o programa jornalístico Simões Filho no Ar. Inicialmente é apresentado

por Guilherme Santos, repórter com histórico em muitas outras emissoras de TV e rádio e

conhecido pela alcunha de “O repórter Olho Vivo”. Pouco depois, assume a apresentação do

programa o cineasta simoesfilhense e também diretor do Simões Filho no Ar, Mario Sérgio

Santana – o famoso Dragão Marinho, expoente do cinema local e conhecido por suas

produções de baixo custo e por incentivar a cultura de sua região.

Esse é o primeiro programa da cidade de Simões Filho na televisão aberta e tem entre

os seus objetivos democratizar a informação e mostrar a referida cidade para além de seu

título de terceiro município mais perigoso do Brasil, segundo ranking de 2018 do Instituto de

Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Na tentativa de replicar o formato de um telejornal

tradicional, há um apresentador que em um cenário de estúdio fala diretamente com o

espectador e apresenta as matérias antes delas entrarem. De modo prático, o que assistimos na

73

Na noite de 16 de fevereiro de 2019, a jornalista Maria Julia Coutinho, conhecida como Maju, se tornou a

primeira mulher negra a apresentar o jornal Nacional, maior programa jornalístico da Rede Globo de televisão.

Dados disponíveis em https://f5.folha.uol.com.br/televisao/2019/02/maju-coutinho-estreia-na-bancada-do-jn-e-

se-torna-primeira-mulher-negra-a-apresentar-o-telejornal.shtml. Acesso em: fev. 2019.

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tela da Kirimurê também demonstra as limitações técnicas do programa, com imagem de

baixa qualidade e um áudio quase sempre estourado.

Por outro lado, apesar de não inovar no formato, é possível creditar ao programa a

tentativa de experimentar, isso por sua produção de conteúdo jornalístico tão especificamente

local. Em geral são pautas tratam de questões do município, apresentadas por repórteres

locais, em matérias com maior duração que as convencionais e uma abordagem direta, sem o

tempo limitado comum às grandes emissoras de TV.

Em uma das matérias do programa piloto, o apresentador anuncia “Aqui em Simões

Filho acontece uma coisa interessantíssima: O que eu posso fazer com um real? Nada! Mas

aqui é diferente! Com um real você tem lanches, você tem suco. O nosso repórter Cuica do

Cavaco vai mostrar tudo pra você. Venha de lá, Cuica!” 74

. O repórter por sua vez apresenta

opções de lanchonetes que vendem coxinhas, cachorro-quente e até hambúrguer por um real!

Essa e outras pautas, como a reunião no centro de cultura do bairro ou a cobertura de eventos

beneficentes da cidade, coadunam para o exercício democrático e expressam o que Rincón

(2002) chama de reencantamento pela existência humana, ao lembrar que nas relações sociais,

para conviver com os diferentes, é preciso torná-los estórias, expressá-los em relatos

audiovisuais e reconhecê-los como sujeitos e coletivos feitos de imagens.

No aspecto público o conteúdo do Simões Filho no Ar se alinha no compromisso com

a expressão, o acesso e a participação das múltiplas formas de ser cidadão que formam parte

da audiência do canal. Sobre isso, Teresa Otondo (2002) ratifica que a TV Pública procura

atender a públicos segmentados, e não ao mercado. Que sua força está no conjunto dos

segmentos atendidos ao longo do dia ou da semana, e que como não precisa se preocupar em

“satisfazer os caprichos do anunciante e oferecer a eles consumidores para seus produtos,

pode se dar ao luxo de ter programas vistos por poucas pessoas. Mas deve descobrir sua

audiência em nichos desprezados pela televisão comercial” (OTONDO, 2002, p. 285).

Quanto ao projeto do Canal da Cidadania, esse programa atende ao princípios de

oferecer mecanismos à formação e à integração da comunidade, estimulando o lazer, a cultura

e o convívio social (BRASIL, 2012b). Também expressa a muito discutida regionalização da

programação, saindo, inclusive, da capital baiana e ampliando a presença de conteúdo local e

de interesse da cidade de Simões Filho.

74

Simões Filho no ar, programa piloto. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=NgV4OrJctls. Acesso

em: jan. 2019.

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Com evidentes limitações técnicas e de recursos humanos, o programa já pratica o

financiamento por meio de agentes comerciais locais da cidade de Simões Filho, anunciados

quase sempre ao fim de cada edição. Na lógica de construir produtos, narrativas e gestões,

Simões Filho no Ar é parte de um projeto de televisão sobre o que importa às audiências e

sobre o que pode ser feito a partir do dia a dia, na dinâmica de um reconhecimento recíproco.

4.2.3 Candomblé e seus caminhos e Catado de cultura

“A maior parte dos pedidos de pautas dos artistas convidados do programa

vem da internet. Por isso, parafraseando de propósito nosso próprio nome,

fizemos esse catado na web”, explicou a publicitária Fernanda Blanco,

apresentadora e Social Media do Catado. E foi ecoada pelo diretor Cultural e

também apresentador, Rafael Manga: “A nova temporada está quente porque

dá voz a uma galera, inserida nas diversas nuances da cultura, que vem

batalhando por espaço há muito tempo” (Jornal Correio 24h, 2018). 75

A proposta do Catado de Cultura é dar visibilidade a artistas baianos independentes.

Um projeto que começou na internet, como parte do site Bahia na Lupa, o programa entra na

programação da Kirimurê no segundo semestre de 2018, quando estreia sua nova temporada.

Apresentado por Rafael Maga, Cadu Freitas e Fernanda Blanco, personagens locais que se

dividem nas entrevistas, o Catado leva também para tela da TV aberta um conteúdo que já

encontra eco nas redes e mídias digitais, como instagram, facebook, youtube e site.

Tendo como pauta central a cultura e os movimentos artísticos, o programa ganha

representatividade ao evidenciar as múltiplas identidades culturais da Bahia. Em um

importante diálogo com a convergência de mídias, o Catado é uma boa mostra de como

produzir conteúdo para a TVK. Três colegas, formados nas áreas de comunicação e cultura, se

reuniram a partir do desejo de criar um programa audiovisual independente. O projeto começa

sem orçamento, com equipamentos não profissionais, para ser exibido nas plataformas web, e

já com clareza sobre seu conceito alternativo.

Em pouco mais de dois anos, o Catado se profissionalizou e alcançou, em sua quarta

temporada, a grade aberta de TVs soteropolitanas. Primeiro entrou para a programação da TV

ALBA (canal da Assembleia legislativa da Bahia), e em 2018 passa também a compor a grade

da TV Kirimurê. Com exibição aos sábados à tarde, e reprisados aos domingos, às 16 horas, o

75

Disponível em https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/nova-temporada-do-catado-de-cultura-tem-pre-

estreia-nesta-quinta-30/. Acesso em: fev. 2019.

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programa Catado de Cultura colabora para que a TVK dê oportunidade à difusão de ideias,

elementos de cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade local (BRASIL, 2012b).

Com cerca de dez episódios, cada temporada leva para a TVK episódios com locações

que valorizam diferentes bairros e espaços culturais de Salvador, incluindo a periferia da

cidade e outros ambientes populares. Museus e praças também fazem quadros para compor as

narrativas do programa. Assim, o som da banda Reunião de Condomínio e Deu Flow, a

tapeçaria internacional de Kennedy Bahia, as vozes de Mel Leone e Pablo Moraes se

encontram no bate-papo com artistas como Vagner Jesus e o humorista Franklin Reis, além da

poesia do Coletivo Pés Descalços ou da rima do rapper Cosca, tudo na mistura do Catado.

Hoje a realização do programa já se estrutura de maneira mais complexa e seus

créditos finais revelam parcerias técnicas e financeiras que auxiliam no andamento. Na quarta

temporada, o Catado passa a contar com apoio das lojas Piticas – camiseteria nacional de

forte impacto comercial, e também da produtora de capital privado, Tony Ávila Filmes, que

assina como responsável pela captação de áudio e vídeo. Há também uma equipe técnica com

diretor de cena, finalizador, diretor de fotografia, produtores e design gráfico, e entre

estudantes, colegas e apoios culturais, o programa vai ao ar sem custos para a Kirimurê.

“Eu sou a Yalorixá Jaciara Ribeiro e convido você a participar do programa

Candomblé e seus Caminhos, aqui na TV Kirimurê”.76

O convite feito pela apresentadora é

para outro produto independente que integra a grade da Kirimurê já no final de 2018. Toda

quarta-feira às 17 horas, com reprise às 21 horas, o espectador assiste ao programa com

entrevistas que levantam temas ligados a religião Candomblé, com abordagens

comprometidas a combater a intolerância, valorizar e esclarecer sobre a religião. “Não se trata

de um programa para ensinar rituais nem para falar sobre o sagrado, o oculto, porque o

segredo é o sagrado. O programa é para falar de educação, de futuro e de perspectivas,

evidenciando ações e iniciativas que possam auxiliar na formação cultural das pessoas”,

conforme explica Jaciara Ribeiro em uma das edições do programa 77

.

Em um cenário fixo montado com muitos elementos visuais ligados à cultura do

Candomblé, o que melhor caracteriza o programa não são seus recursos técnicos, mas as

narrativas simbólicas que constrói, desde a estrutura estética até a abordagem do tema,

incluindo a figura de sua apresentadora. Líder do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, Jaciara

76

Chamada do programa "Candomblé e Seus Caminhos", disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=_HJynMQ3OaE. Acesso em: nov. 2018. 77

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vZHlT1ltcU8. Acesso em: dez. 2018.

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Ribeiro é conhecida por sua luta contra a intolerância religiosa, principalmente em função da

perseguição religiosa que sua mãe, a Yalorixá Gildásia dos Santos e Santos – Mãe Gilda –

sofreu, em um caso emblemático que virou manchete nacional. Toda história de Mãe Gilda

foi base para a iniciativa da Câmara de Vereadores de Salvador instituir o “Dia Municipal de

Combate à Intolerância Religiosa”, em 21 de janeiro de 2000, data de sua morte 78

.

Em tempos em que as entidades religiosas, destacadamente as de origem protestante,

assumem inúmeros canais de televisão aberta no Brasil, discutir liberdade de culto e respeito a

religiões de matriz africana é um passo importante na perspectiva de democratização e

formação para cidadania na radiodifusão do país. Ademais, no jogo da cidadania visual, é

também a prática de uma política de visibilidade que percorre e reestrutura o campo das

materialidades, sendo os emissores os próprios atores e não apenas “reféns de artimanhas de

‘objetualização’ ou ‘iconização’ compulsória” (ROCHA, 2012, p.36) dentro do sistema

comunicacional que rege nosso país.

Por inciativas como o Conversa de Preta e Candomblé e seus Caminhos a TVK foi

homenageada pela Secretaria de Promoção e Igualdade Racial (Sepromi-BA), com o prêmio

Antonieta de Barros, que tem o objetivo de fortalecer e reconhecer projetos de comunicação

que valorizam o povo negro e combatem o racismo. Mais um incentivo que ratifica o lugar e

importância de uma TV pública popular e inclusiva.

Outros produtos pontuais foram transmitidos na programação da Kirimurê, como

coberturas jornalísticas (realizadas pela equipe da TVK) das festas populares de Yemanjá,

Carnaval e Lavagem do Bonfim. Durante a campanha eleitoral para Presidente da República,

Senadores, Governadores, Deputados Federais e Deputados Estaduais de 2018, a Kirimurê

realizou o que chamou de Bate-Papo Político, comandado por Dina Lopes e Tony Ávila,

reunindo pesquisadores, jovens ativistas e representantes de frentes populares para tratar sobre

a importância do voto 79

.

A escolha dessas pautas chama atenção para um grupo importante de temas que são

caros à cultura local e que quase sempre recebem tratamentos hegemônicos das TVs

comerciais. É, portanto, um campo fértil para que canais como a Kirimurê sejam porta-vozes

78

Em outubro de 1999, o jornal "Folha Universal" - que pertence à igreja Universal do Reino de Deus - publicou

uma foto da Yalorixá Gildásia dos Santos e Santos para ilustrar a reportagem "Macumbeiros charlatões lesam o

bolso e a vida dos clientes". Na foto publicada, mãe Gilda aparece ao lado de recortes oferecendo serviços de

ajuda espiritual para resolver problemas. O texto afirma que o "mercado de enganação" estava crescendo muito

no Brasil. Disponível https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2303200421.htm. Acesso em: mar. 2019. 79

Dados disponíveis no site da TV Kirimurê www.tvkirimure.tv.br. Acesso em: fev. 2019.

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de narrativas diferenciadas, reunindo olhares diversos, dissidentes, no caminho de criar uma

rede de conteúdos menos efêmeros e mais próximos das realidades múltiplas da cidade.

Como promessa para lançamento em 2019, encontram-se na página da TVK os

anúncios dos programas Escutaê, com variedades e informações sobre os bairros de Salvador;

Conexões, uma produção do Instituto Hori; Hip Hop Vai Além, conduzido pelo artista local e

rapper Negro Davi e A Bronca do Jó, produção independente do educador social e

autodeclarado repórter cidadão Jocemar Santos, que já tem ativo um site homônimo. Todos os

programas já estão sendo exibidos no período da finalização desta dissertação.

O projeto de inovação e experimentação dentro da faixa Kirimurê evidencia a

necessidade de reconhecimento de pertença por parte da comunidade soteropolitana que ainda

está em curso. Na medida em que a sociedade conhece e se apodera do espaço público que lhe

pertence e descobre suas possibilidades de interlocução, o Canal da Cidadania, assim como

outras mídias contra-hegemônicas, passa a ser uma alternativa real para democratizar a

comunicação e promover uma televisão pública social, cidadã e soberana.

Disso depende uma profícua articulação para que a gestão do Canal se forme de modo

diverso e inclusivo, e que esse grupo passe a captar conteúdo que dê forma a TVK, e vale

dizer, não somente conteúdo para tela da TV, mas para todos os outros instrumentos digitais

disponíveis. A migração digital não deve ficar restrita a criticada ideia de uma TV com

qualidade de imagem e som, mesmo já sendo um avanço ter uma TV popular no sinal aberto.

É imprescindível que o planejamento da Kirimurê nade a favor da corrente nesse cenário

digital de vídeos streaming e on demand, aplicativos, de grupos sociais e políticos ativos nas

redes sociais, de uma geração de crianças que assiste a tudo pelos aparelhos móveis,

aproveitando também esses espaços para construir uma grande rede de conteúdo público.

Tudo isso sem perder de vista a missão da programação de uma TV Pública, que deve

servir para “conectar as pessoas em torno de boas ideias, como estratégia na luta pela

dignidade e o reconhecimento, como lugar de liberdade, como tática para dar visibilidade ao

que foi esquecido pelo comercial, e como construtora de consciência pública” (MARTÍN-

BARBERO, 2002, p. 330). Ao mesmo tempo, continuar inovando e se aproximando do

público para, como propõe Rincón (2002), desenvolver sensibilidades na prática de novos

modos para perceber e sentir, ouvir e ver, reconhecer e representar, ver e fazer tevê, e

promover uma interlocução produtiva entre a educação, a cultura e a tevê.

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Nesse navegar para construir uma nova cultura de televisão pública, a TV Kirimurê

deve ser uma janela para que os cidadãos enviem suas mensagens para sociedade, valorizando

o local, promovendo debates críticos, e se colocando como Canal capaz de produzir conteúdo

surpreendente, mas reconhecível.

4.3 A TELEVISÃO PÚBLICA DO FUTURO?

A TV digital promete uma possibilidade muito maior de democratização, de

conteúdo para acesso, de formação de comunidades a partir de interesses

específicos, mas há muito pouco tempo atrás a gente tinha essa promessa de

forma ampla e irrestrita para qualquer que fosse o conteúdo e o tema, e a

gente viu, num passe de mágica, isso ser concentrado, verticalizado e nós

todos nos tornamos reféns de duas corporações específicas – o Facebook e o

Youtube. Elas extinguiram nossa capacidade de circular e de passear pela

internet. Como é que a gente vai entender o quanto pode a TV digital? Está

tudo tão em jogo, tudo tão veloz (Miguel Jost, 2018).

Não à toa há uma grande desconfiança para com as políticas públicas de

democratização da comunicação no Brasil. Entre os acontecimentos mais atuais, em 2017,

durante a gestão do presidente Michel Temer, o país assistiu a mudanças expressivas no

estatuto legal da Empresa Brasil de Comunicação, entre as quais está a destituição do

Conselho Curador, principal órgão de participação e controle social da EBC. Já em 2019,

quando Jair Bolsonaro assume a presidência, o projeto para a Empresa, uma das principais

conquistas do movimento pela democratização da comunicação em tempos recentes, é o Plano

de Aposentadoria Voluntária, que pretende cortar o valor total investido e manter funcionando

apenas a NBR (agência oficial do governo federal), a Rádio Nacional e a Voz do Brasil.

Como tantas outras experiências que carregam instabilidades, autoritarismos e

ausências, características tratadas por Rubim (2012), esses fatos reforçam a crença de que

construir um sistema brasileiro e público de televisão parece utópico, e muito já falamos sobre

isso até aqui. Demonstra também que, diante da nova e ainda frágil democracia nacional,

qualquer processo que deseje modificar a realidade sociopolítica e cultural deve ser pensando

de forma estrutural, criando redes de apoio para sua consolidação.

A coerente assertiva do professor Miguel Jost (2018), que inicia esta subseção e que,

em certa medida, se encontra com os temores de Pierre Bourdieu (1997) de duas décadas atrás

– quando o sociólogo francês pondera sobre converter a TV em instrumento de opressão

simbólica – é um alerta essencial, uma espécie de guia para que os projetos de democratização

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não se percam em suas realizações práticas. Para traçar rotas e encontrar formas de

navegações rumo a uma TV a contrapelo, olhar para a história é imprescindível, em especial

diante das turbulentas águas do campo público da comunicação. Mas, se ainda há tantas

incertezas, se a sociedade está tentando aprender a exercer o poder da participação nos

grandes meios, se é tudo tão novo e rápido, que outras crenças podem ser reforçadas?

A começar pela ideia de que o direito à comunicação é eixo central para democracia

contemporânea e sem o qual não é possível discutir cidadania, é preciso não abrir mão de um

projeto crítico de TV para o Brasil. Se experiências pelo mundo comprovam que tanto os

processos de desenvolvimento econômico, como também político, social e cultural têm direta

relação com o conhecimento e a informação, e se a televisão é o que há de mais importante de

tudo aquilo que é menos importante para vida humana na terra, como afirma Rincón (2002),

então o país não pode privar sua população de uma oferta transparente e diversa.

Enquanto as fragilidades persistem, também as resistências continuam conforme

defende Jenkins (2009, p.331) “o potencial de uma cultura midiática mais participativa

também é um objetivo pelo qual vale a pena lutar”. Em 2019, as agendas prioritárias do

Coletivo Intervozes e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, por

exemplo, continuam incluindo a defesa por um Plano Nacional de Outorgas (PNO) para os

Canais da Cidadania, e a denúncia de políticos com posse de canais de Rádio e TV.

Funcionários da Empresa organizam o movimento Frente em Defesa da EBC e da

Comunicação Pública – buscando lutar contra o seu fechamento –, e Salvador vive a realidade

de uma faixa da Cidadania em funcionamento e que, gradualmente, pode ser uma rica

referência para o futuro da TV Pública no país.

Nessa cidade do cinema de Glauber Rocha e sua “estética da fome”, nasce também um

projeto de televisão destinado a romper com tradições clássicas e a lidar com a escassez de

recursos, reeditando linguagens e formas. Talvez seja esse o momento de consolidar uma TV

que, com certa autonomia para voar, pode fazer o mesmo que “um cineasta com uma câmera

na mão e uma ideia na cabeça fez, ao se refletir e fazer conhecer o nosso cinema no Brasil e

no mundo”, como anuncia a voz do ator João Miguel no vídeo institucional da TVK.

Olhando para o futuro, rumo a uma TV pública mais prazerosa, afetiva e experimental,

como propõe Rincón (2002), serão aqui colocadas algumas propostas a serem discutidas no

encaminhamento desse projeto tão potente do Canal da Cidadania e da TV Kirimurê.

Tomando os resultados da análise aqui alcançados e a realidade atual da TVK, pode-se

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começar por propor uma aproximação com as TVs universitárias (TVUs) baianas, tão carentes

de espaço para exibir seus conteúdos.

As quatro universidades públicas da Bahia têm TVs universitárias, e no caso da capital

e região metropolitana, há também a Universidade Federal da Bahia com a TV UFBA. A

maioria delas exibe seu material apenas via internet, em canais web, e há muita produção

disponível, em várias categorias. Grandes polos de experimentação, as universidades e

faculdades, com conteúdo produzido por estudantes, professores e técnicos, são uma fonte

criativa e diversa para ajudar a montar a grade da Kirimurê. Projetos de conclusão de curso,

documentários, produtos de disciplinas da graduação, animações, longas ficcionais, além de

muito material produzido pelas TVUs estão entre as opções.

Apoiada em outras iniciativas, a TVK pode encontrar suporte nas universidades

públicas também para sua gestão, financiamento, divulgação e mobilização social, através de

centros acadêmicos, empresas juniores, estágios voluntários e projetos de extensão, por

exemplo. Também com pesquisadores para ajudar com a montagem da grade, estudantes e

colaboradores com ideias inovadoras sobre formatos, novas mídias e articulação de grupos

culturais, a disponibilidade de laboratórios de vídeo para experimentações, além do contato

com as comunidades que já possuem laços com as universidades, a Kirimurê se encontra com

a comunidade acadêmica para trocas mútuas.

A Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por sua forte presença em todo estado e

seu projeto de universidade inclusiva e participativa, ganha destaque nessa conjuntura. A

UNEB também carrega o título de instituição jovem, e com 39 anos de mobilização de frentes

periféricas e formação de professores, une-se à perspectiva de inovação da TVK. Assim,

auxilia para atingir os princípios da formação crítica do indivíduo para o exercício da

cidadania e da democracia, e da oferta de mecanismos à formação e à integração da

comunidade, como disposto na Norma Regulamentar do Canal da Cidadania.

Os sindicatos, centros comunitários, coletivos culturais, associações e conselhos

representativos também são potenciais aliados. Alguns deles, inclusive, já investem em

produtos para serem veiculados nas TV comerciais e podem encontrar na TV Kirimurê um

meio para se manifestar e estabelecer diferentes frentes de diálogos com seus públicos. O

conselho regional de medicina, por exemplo, que já possui palestras na íntegra e outros

produtos audiovisuais disponíveis na plataforma youtube, pode trabalhar com seus

profissionais de comunicação e regularmente exibir conteúdo na TVK. Em troca, esses

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mesmos profissionais podem ajudar na organização das mídias da Kirimurê, em mais uma

simbiose produtiva, de modo que além do conteúdo, iniciativas como esta possam auxiliar no

enfretamento dos problemas administração do Canal.

A aproximação com quaisquer dessas frentes, privadas ou públicas, não pode

descaracterizar a autonomia da TVK, e ao contrário, deve servir de suporte para que nesse

projeto de apropriação social dos meios, a capacidade criativa da Kirimurê seja reforçada. Na

defesa do Canal da Cidadania, Adilson Cabral Filho e Cinthya Oliveira (2015) ratificam que

potencializar a participação da comunidade e transformar positivamente suas relações com

esses canais são ações primordiais a serem perseguidas, e sem as quais não há razoável

possibilidade de formar uma faixa da cidadania na TV aberta.

E aqui vale retomar a questão da democratização dos processos de produção. Esse

elemento é um divisor de águas tanto para os cidadãos comuns, que podem se apropriar e

entender os possíveis usos das tecnologias como modos de enfrentamento, denúncia e

produção cultural, como para as entidades envolvidas com o Canal da Cidadania, que poderão

produzir a baixo custo. Se a homogeneidade da televisão brasileira se dá também pelo

controle do capital e bens simbólicos de produção e veiculação, agora com um canal digital

aberto de TV e celulares que são pequenas filmadoras, a discussão sobre diversidade ganha

fôlego com a TVK, que deve buscar promover o uso crítico das novidades tecnológicas.

De tal forma, a TVK não pode se limitar ao uso da linguagem audiovisual e a tela do

aparelho de TV. No jogo das redes sociais, dos youtubers e digital influencers, neste tempo

cultural em que milhões de brasileiros passam em média cinco horas dos seus dias

conectados, é importante fazer uso desses espaços para se aproximar do público e ao mesmo

tempo aproveitá-los para ecoar as vozes da comunidade local. Desde quando lançada em

2016, a Kirimurê tem no ar páginas do youtube, facebook e instagram e site próprio, mas que

não recebem atenção dedicada. Há algumas formas possíveis de resolver essa ausência, uma

delas é que, por essa área ter se transformado em campo de trabalho (analistas de mídias

sociais ou Social Media), muitos estudantes podem se interessar por monitorias voluntárias.

Fotógrafos, poetas e escritores das comunidades, também podem ser convidados a colaborar

com imagem e texto para manter as plataformas atualizadas, num exercício de também

retomá-las para o trato horizontal e inclusivo.

Os aplicativos de celular têm sido relevantes no apoio à distribuição do conteúdo de

canais como a TVT e a TV Cultura de São Paulo, e com tecnologia de baixo custo servem

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como referência para TVK. A organização de plataformas streaming como youtube ou vimeo

segue a mesma lógica de ampliação da oferta de meios para acessar conteúdos e fortalecem o

consumo segmentando. Hoje, a TVK publica parte da sua programação no youtube, e o

próximo passo pode ser disponibilizar toda sua grade, de maneira planejada e respeitando as

particularidades desse meio, usando-o em favor da melhoria da Kirimurê.

Sobre o tradicional papel da televisão de atingir todo mundo, é importante acentuar o

que Bourdieu (1997) questiona: o que temos a dizer está destinado a atingir todo mundo? E

mais, todo conteúdo deve interessar a todo mundo? A essas questões a TV pública responde

que não, porque sua mensagem é outra. Ainda mais segmentada regionalmente, a TVK pode

enfatizar as particularidades e carências de públicos negligenciados, e promover uma

informação mais independente e plural. É possível que o conteúdo produzido pelo Sindicato

dos Trabalhadores em Limpeza Pública de Salvador pouco interesse a outros públicos da

TVK, por exemplo, mas cada horário cumprirá com seu papel de atender as diferenças.

Os resultados dessa segmentação reverberam para cuidar de outro grande problema

enfrentado pela Kirimurê: a falta de interesse e participação dos cidadãos. Quando o

telespectador acessa na tela da TV aberta, no site da TVK, ou em suas redes sociais, produtos

nos quais se reconheçam, com conteúdos próximos de suas realidades e tratados de forma

transparente, torna-se possível pensar em uma mobilização pela aproximação. É um caminho

de acesso às minorias do sistema midiático, para que possam se tornar visíveis e desejem ser

donos desse espaço televisivo ainda visto como lugar apenas dos poderosos.

Ainda sobre a programação, muitas vivências podem potencializar as riquezas da TVK

por suas competências estéticas e tratamento de conteúdo. O canal Curta!, hoje disponível

apenas para assinantes da TV paga, tem produções irreverentes e acolhe experimentação de

seus parceiros realizadores. Ele é um canal independente, que primeiro nasce como

distribuidor de conteúdo e só depois organiza uma grade própria para torna-se parte das TVs

por assinatura80

. Apesar de uma fórmula da iniciativa privada, é possível fazer uma analogia e

pensar na sociedade civil soteropolitana como um grande Curta!, produzindo conteúdo rico,

potente e questionador, com a diferença de já possuir a janela de exibição da TV Kirimurê.

Há que se ponderar que a experimentação nem sempre diz respeito à ideia de

originalidade, como exigida no conceito clássico de arte, por exemplo. Muito menos requer

um vanguardismo desvinculado dos interesses do público. Televisão é uma linguagem com

80

Informações disponíveis no site http://canalcurta.tv.br/. Acesso em: fev. 2019.

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características próprias, e os gêneros e formatos narrativos que são predominantes nas TVs

comerciais refletem anos de estudos e tentativas que já são bem aceitas pelos telespectadores.

Trata-se, portanto, de buscar rupturas capazes de criar identidades próprias, descontruindo

padronizações e atentando para o que Martín-Barbero (2002) chama de um imaginário

diferente da tevê pública, ao mesmo tempo discute que não se pode considerar que o mal está

na TV comercial e o bem está na pública.

Sobre isso, Eugênio Bucci (2006) defende que as emissoras públicas e privadas devem

funcionar como dois pratos na balança, e que tal balança é um espaço público e democrático,

deixando-as em uma relação complementar e não opostas. “As demandas do mercado são

legítimas e vitais a democracia, só não podem ser as únicas a definir o conjunto da

comunicação social. É ai que entra o papel da tevê pública”, completa Bucci (2006, p.13). As

definições estão, portanto, na missão de cada uma, como afirma Fuenzalida (2002), pois

enquanto a TV comercial não pode deixar de responder as demandas dos anunciantes,

maximizando seus lucros; a TV pública deve, de maneira plural e inovadora, interpelar o

cidadão além do consumidor, elevando o interesse público.

A cobertura ao vivo do Carnaval de Salvador, realizada pela TV Educativa da Bahia

ajuda na compreensão deste aspecto. As emissoras comerciais durante décadas montaram seus

estúdios de transmissão ao vivo nos melhores pontos dos circuitos do carnaval da cidade,

valorizando sempre blocos, artistas e camarotes de grande porte. Nos últimos anos, a TVE BA

se destaca por trazer outro olhar para essa transmissão, ao vivo pela TV e redes sociais,

incluindo circuitos alternativos e sendo, inclusive, a única a transmitir o circuito Pelourinho.

São horas mostrando a passagem dos blocos afro e independentes, entrevistando artistas de

rua e outros personagens à margem, pautas que transforam o Carnaval da TVE em expoente

de aproximação da emissora com a população de Salvador.

Mas ainda falta, porque mesmo durante o carnaval, tem o palco do rock, as rodas de

samba e o reggae; “tem hip hop, rock, arrocha, e afoxé. E tem o cordeiro e o ambulante, que

também fazem a festa acontecer. E isso aqui, na TV Kirimurê, você também vai poder ver”,

descreve o vídeo institucional da TVK.

Outra referência é o programa #ThechoiceItabuna, um reality show musical realizado

via instagram. O concurso foi criado por dois jovens empreendedores, Tarso Cardoso e

Gabriel K, para divulgar os talentos da região de Itabuna, na Bahia. Seguindo regras similares

ao do programa The Voice Brasil, os concorrentes puderam se inscrever via direct ou por

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whatsapp e foram selecionados para compor as equipes dos artistas locais Sinho Ferray, Kaio

Oliveira e David Nascimento. Cerca de 100 artistas se inscreveram em apenas 15 dias. A

votação aconteceu através de enquetes no instagram, além de serem computadas as curtidas e

os votos dos técnicos. O programa contou com ampla participação do público e apresentando

muitas novidades para a produção audiovisual, encerrou sua a primeira edição com mais de

sete mil seguidores na rede social. Seu modo de movimentar a cena cultural da cidade dá

sinais sobre como a Kirimurê pode trabalhar.

Quantas bandas independentes locais não produzem videoclipes que poderiam ser

publicados nas telas da Kirimurê? Quantos reality shows como o #ThechoiceItabuna podem

ser parceiros desse Canal? Transmissões ao vivo de congressos, seminários, shows de artistas

locais, eventos culturais das comunidades; pequenas entrevistas com personagens que contem

a história da cidade ou dos bairros; tantos outros olhares, falas e oportunidades. Há muito para

ser divulgado pelas antenas da Kirimurê, e essa TV pode assumir compromissos com muitos

públicos para formar sua grade de programação, se aproximanado de segmentos que

igualmente retornem e assumam compromissos com esse canal popular.

Mas sua existência não pode ser isolada, é preciso ter outras TVs cidadãs com as quais

trocar, e por isso fortalecer a Kirimurê repercute em desdobramentos para toda comunicação

pública brasileira. Ao pensar apenas na Bahia e seus 417 municípios, por exemplo, são

centenas de possibilidades para falar sobre:

A cidade de Maetinga, a cidade de Mortugaba, cidades que nunca

apareceram na televisão porque sempre se tem a mesma novela, sempre se

vê nos filmes algo que aconteceu ou fora do país ou em São Paulo. Se pegar

um jornal só vai saber o que acontece em Salvador, e também não é toda

Salvador que aparece na televisão [...] Então o que o Canal da Cidadania está

procurando é uma forma de reconhecimento. A cultura das pessoas e a

capacidade delas de trocarem determinam as suas capacidades de interação

com o território, que pode mudar as relações entre as comunidades, das

pessoas com o meio ambiente e das pessoas com o capital e com a política. E

isso é possível com o Canal da Cidadania (Pola Ribeiro, 2014). 81

Além da breve experiência e oportunidades para a faixa da sociedade civil trazidas

pela Kirimurê, há perspectivas que reforçam também todo projeto do Canal da Cidadania

como potência para uma nova cultura televisiva. Em sua versão geral, que reúne uma faixa

81

Texto retirado de vídeos disponibilizados no Canal do Cineasta Pola Ribeiro, disponível em

<https://www.youtube.com/watch?v=ZcHt49Q-x6U&list=PLw9Cl2vhPd3KqBLWjAzrJs_MLfXP-

dd4c&index=2&t=0s>. Acesso em: dez. 2018.

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para o município e outra para o governo estadual, o complexo jogo das complementariedades

se apresenta obrigando os poderes a lidarem com a informação em seu aspecto público,

quebrando a lógica praticada pelos planos de publicidade governamentais até então.

No Canal da Cidadania, seja qual for o governo que esteja no poder, os gestores

deixarão de pagar milhões às TVs comerciais para divulgar vídeos institucionais de 30

segundos ou um minuto, e passarão a ter obrigações com os cidadãos através do meio

televisivo, o mais usado pela população brasileira para se informar. Transmitir atos e

trabalhos, explicar projetos, justificar prioridades e investimentos, tratar sobre políticas

públicas, expor relatórios, dados, tudo em uma lida direta com a transparência. Essa prática

ajudaria a vencer a estatização do público, como afirma Martin-Barbero (2002), além de ser

um forte aliado contra a corrupção, a má administração e a manipulação política.

Ao mesmo tempo, o modelo do Canal da Cidadania tende a ser um caminho para

superar a dispersão histórica entre as tevês Educativas, Culturais, Universitárias, Legislativas

e Comunitárias no Brasil. Ao propor uma via de ação comum, com reconhecimento de que

todas compõem um mesmo todo complementar em torno do Campo Público de Televisão, um

Canal convergente concretiza o proposto na Carta de Brasília (2007).

Há inúmeros problemas a serem resolvidos no campo público da comunicação do

Brasil e de muitas outras nações, especialmente na América Latina. Ao fim do livro Televisão

pública, do consumidor ao cidadão, ao que chama conclusões, Martín-Barbero (2002) elenca

três grandes problemas a serem resolvidos: a distinção entre televisão pública e televisão do

governo; entre TV pública e TV comercial; e entre consumidor e cidadão. A Kirimurê, por

tudo aqui apresentado, consegue superar grande parte dessas questões.

Além disso, Martín-Barbero (2002) traz outras pendências e reúne propostas para fazer

da televisão pública uma alternativa de qualidade e cultural. E mais uma vez muitas delas

encontram eco no projeto da TVK, tais como: assumir o cidadão que existe no consumidor e

que não está satisfeito com esse tipo de cidadania, buscando vias mais ativas e democráticas

de participação; ter uma programação que reconheça processos sociais chaves para

comunidade (sugeridos por mulheres, indígenas, negros, jovens, crianças e grupos

minoritários); determinar mecanismos públicos, participativos e transparentes para sua

sustentabilidade; e promover a apropriação comunitária da televisão pela sociedade civil.

Repetindo e completando frases do cineasta Geraldo Moraes, que iniciam essa

dissertação: “Esse modelo de televisão é o que tem a ver com o futuro da TV, e ele já é o

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presente, na verdade. O futuro é por ai, e ele está junto com o desenvolvimento da cidadania.

Porque o meio de expressão de agora é o audiovisual, então nasce uma nova forma de

participação política e vocês ai, da TV Kirimurê, chegaram na hora certa” 82

.

Enquanto não há vontade política suficiente para realizar os projetos de Canais da

Cidadania pelo Brasil, em tempos onde há grande silenciamento das narrativas antagônicas –

mesmo vindas dos veículos hegemônicos, enquanto ainda se descobrem caminhos para um

futuro da TV pública, a utopia de uma televisão a contrapelo, feita pelo público, para o

público e com dinheiro do público se materializa na invasão Kirimurê à rede aberta de tevê

digital baiana.

82

Vídeo disponível em https://tvkirimure.tv.br/o-modelo-da-tv-kirimure/. Acesso em: mar. 2019.

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117

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Criar meu website, fazer minha homepage, com quantos gigabytes, se faz uma

jangada um barco que veleje? Que veleje nesse infomar, que aproveite a vazante da infomaré

[...]”, cantava Gilberto Gil há pouco mais de vinte anos sobre as mudanças no campo da

comunicação 83

. Esta canção, cujo título é Pela Internet, foi um grande divisor de águas na

indústria fonográfica nacional, sendo a primeira música lançada e transmitida ao vivo pela

internet no Brasil. Até então, o país só conhecia transmissões ao vivo pela rádio ou pela TV.

O projeto pioneiro encontrava inspiração no primeiro samba nacional gravado, o Pelo

Telefone, composta por Donga e Mauro de Almeida em 1917, e nesse jogo de vanguardas

ambas as canções marcaram épocas, promovendo encontros entre a comunicação e a cultura.

Pedindo licença à arte da música, é possível pensar uma analogia entre os supracitados

pioneirismos de 1917 e 1996 e um mais recente, em 2016: o lançamento da TV Kirimurê,

primeira faixa da sociedade civil de Canal da Cidadania que vai ao ar no Brasil. O mar

pensado por Gil ao cantar a internet atinge uma releitura com a TV digital, que agora agrega

tecnologias televisivas e binárias, trazendo para o campo público da comunicação uma

perspectiva renovada, com ampla participação popular e democratização dos meios.

O diálogo entre a comunicação e a cultura foi o que viabilizou o surgimento do Canal

da Cidadania na TV digital brasileira, e no campo das políticas públicas a analogia proposta

ganha efeito. Quando, em 2003, o Ministério da Cultura reconheceu que a tevê se tornou

elemento constitutivo para formação socioeconômica e cultural da nação, e a incluiu na

agenda do audiovisual do país, a criação de espaços na radiodifusão para narrativas a

contrapelo se fortaleceu. E foi assim que, mesmo diante das continuadas ausências e

instabilidades, e apesar do projeto ter perdido fôlego desde a sua concepção inicial, a TV

Educativa da Bahia (TVE BA) ganhou autorização para multiprogramar, abrindo portas para

que a sociedade soteropolitana ocupasse a faixa da cidadania, inaugurando a TV Kirimurê.

Embora não se deva comparar a recente experiência da TVK com os sucessos

alcançados pelos projetos e canções aqui trazidos, ao olhar para as rotas iniciadas no mar

kirimurê é possível ver, pela TV, algumas vertentes a serem exploradas rumo a uma nova

cultura para a TV pública brasileira.

83

Mais sobre a história do projeto por trás da canção Pela Internet, composição de Gilberto Gil

(Mesa/Bluemoon Recordings, CD Quanta, 1997) disponível em http://www.maurosegura.com.br/pela-internet-

gilberto-gil/. Acesso em: mar. 2019.

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Esta análise identificou a TVK como capaz de se converter em área estratégica para

produzir e reformular as imagens que a população soteropolitana tem de si mesma e de como

quer ser reconhecida pelos outros, como defende Martín-Barbero (2002). Ao poder abandonar

uma programação sumária e projetar novos fluxos narrativos e estéticos, com participação

direta do cidadão e uso democrático das mídias e tecnologias digitais, a Kirimurê e o Canal da

Cidadania estimulam a produção audiovisual independente e se abrem como janela de

exibição para produtos negligenciados pela grande mídia, em um grande encontro social.

Na prática, isso é refletido na grade da TVK em programas como Candomblé e Seus

Caminhos, Catado de Cultura, Conversa de Preta e Simões Filho no Ar, muitos produzidos

de forma colaborativa e projetando diversidade de gêneros, formatos e de manifestações

culturais e religiosas. Aqui se consolida parte do que foi planejado durante as rotas navegadas

pelo grupo construtor da TVK, na busca por poder confirmar que “Sim, cidadão! A TV

Kirimurê é pra você. Mas não só pra você assistir, ela é também pra você fazer e aparecer. E

quando o seu vizinho perguntar se foi você que estava na TV, diga que sim, diga que sim!

Porque essa é sua TV Kirimurê!”, como sugere o seu vídeo institucional.

A rede colaborativa da TVK se expande para sua gestão e financiamento, tendo o

projeto a possibilidade de ser independente de governos e partidos, e também de se apartar

dos jogos publicitários. Com plano de negócios orientado para captar recursos com parceiros

locais, a Kirimurê deu sinais de formas para converter financiadores em amigos, o que pode

continuar a ser tentado. Contudo, embora vislumbre experimentações para formas próprias de

gerenciamento, é aqui a transformação mais difícil no processo da TVK (e de qualquer TV

pública no Brasil), já que apesar de seu orçamento baixo, se comparado a outras iniciativas de

mídia de grande alcance, os mecanismos de captação, ainda muito vinculados ao modelo

comercial de TV, exigem mudanças estruturais que estão longe de serem praticadas pelo

Estado e pela sociedade.

Sobre isso, Gilberto Gil (2003), em seu discurso de posse no MinC, salienta que em

matéria de cultura (o que abrange a televisão) é indispensável examinar e corrigir distorções

inerentes à lógica do mercado que é sempre regida, em última análise, pela lei do mais forte.

Completa que “é preciso, em muitos casos, ir além do imediatismo, da visão de curto alcance,

da estreiteza, das insuficiências e mesmo da ignorância dos agentes mercadológicos. Sabemos

que é preciso suprir as nossas grandes e fundamentais carências” (Gilberto Gil, 2003).

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Ao colocar em questão a possibilidade da TV Kirimurê representar um frescor para o

campo público da radiodifusão, a busca fundamental ainda é para suprir carências e, por esse

motivo, mesmo ao perceber as potencialidades de uma iniciativa como esta, não se pode

perder de vista o histórico hegemônico da TV comercial brasileira. É elementar, como sugere

Bourdieu (1997), que sejam ponderados os mecanismos que fazem da televisão um

extraordinário instrumento de manutenção da ordem simbólica, e por isso foi parte desta

análise também pontuar as fragilidades que envolvem o projeto da TVK.

A TV Kirimurê completou dois anos em novembro de 2018, e como insistimos em

enfatizar, toda sua história é ainda recente e repleta de perspectivas. De tal modo, mesmo

conscientes da necessária e justificada desconfiança sobre o futuro, é possível mergulhar em

outros aspectos para projetar o que Ríncon (2002) diz sobre materializar as missões, intenções

e políticas em uma TV boa e competitiva, capaz de inovar, criar espaços para diversidade e

traduzir múltiplas identidades em imagens.

Ainda agora, por exemplo, enquanto se encerra a escrita destas considerações finais,

o programa Me Despache, uma iniciativa da empresa social MerC’afro 84

, acaba de estrear na

grade da TVK. O programa traz conteúdo sobre a vida financeira e o desenvolvimento

pessoal, com ênfase na população negra. Outro fato relevante aconteceu durante o carnaval de

Salvador 2019, quando a Kirimurê transmitiu ao vivo (pela TV e redes sociais) os festejos do

Momo em Cajazeiras, bairro periférico e um dos mais populosos da cidade, em parceria com a

rede comunitária Fala Cajazeiras: A gente mostra, todo mundo vê 85

. Essas inaugurações

significam um importante “continuar a navegar”, que fortalecem e oxigenam a radiodifusão

pública brasileira, e apontam para novidades que precisam permanecer nas pautas da

academia e da sociedade baiana.

Como potencializar as mídias alternativas da TVK? Quais estratégias podem ser

aprofundadas para trazer os cidadãos para que ocupem o espaço dessa faixa? Por que a

academia continua a falar sobre uma TV que não assiste? Como fazer da Kirimurê um canal

que não replique a cidade de Salvador por suas características efêmeras? Quantas outras

84

Fundado em Salvador, Bahia em outubro de 2014, o MerC’afro é um negócio social, que tem como objetivo

compartilhar conhecimentos via produção de conteúdo e serviços educacionais e de formação, que tenham como

propósito transformar soluções digitais em desenvolvimento econômico, para empreendedores e consumidores

de economia vulnerável. 85

Transmissão na íntegra disponível em https://www.youtube.com/channel/UCcxt24EFcyNAwzBm4-

FaziA/videos. Acesso: em mar. 2019.

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questões podem levar a debates profundos e transformadores para a comunicação pública de

todo país? É fundamental não parar de perguntar e de buscar respostas.

Ao falar de futuro, em um artigo publicado em 2013, o jornalista Daniel Fonseca, da

Carta Capital, questionou “Canal da Cidadania: democratização da televisão ou mais uma

miragem da TV digital?”. E depois de levantar dados sobre as leis, passar pela

multiprogramação, pelo sistema híbrido nipo-brasileiro e o middleware Ginga, concluiu com

desconfiança que havia poucas garantias de que as promessas de implantação de Canais pelo

Brasil fossem cumpridas 86

. Com razão, as conclusões da reportagem se inclinam para definir

como miragem o projeto do Canal da Cidadania. Apenas três anos depois, em 2016, o Brasil

viu ser inaugurada a sua primeira faixa cidadã, e assim uma nova pauta poderia ser somada as

questões acima: seria a TV Kirimurê uma miragem, uma lenda, fadada a não funcionar?

Aproveitando o mar, as ondas e as músicas que ajudaram na condução desta pesquisa,

a TVK parece acompanhar Milton Nascimento quando ele canta: “Quero a utopia, quero tudo

e mais. Quero que a justiça reine em meu país. Quero a liberdade. Quero nossa cidade sempre

ensolarada, os meninos e o povo no poder, eu quero ver” 87

. E se ainda há tanta dificuldade de

mobilização social para que a população ocupe esse espaço na TV aberta, há também um

necessário embate que se aproxima dos processos de transformação imprescindíveis para o

enfrentamento de tantos agentes contrários no mercado, na política, no poder.

E por tudo que foi tratado aqui, é importante deixar a televisão ligada e vez ou outra

sintonizada na TVK, para que ela seja sempre uma escolha possível, promovendo novos

olhares dentro da televisão aberta soteropolitana. É preciso também que a Kirimurê seja

contestada, fiscalizada e continuamente acompanhada para que não se desvie de seu caminho.

Ela pode ser uma tevê que funciona como uma ponte identitária, um canal da sociedade de

Salvador-BA, onde os cidadãos, de forma consciente, reconstruam o espaço televisivo ainda

tão hegemônico, e reacendam as discussões sobre a abertura de novos Canais da Cidadania

em todo território brasileiro. A Kirimurê, ave que se transformou em mar, lenda que deu

nome a uma TV, continua em seu processo de transformação, e deve encontrar formas para

manter suas rotas na democracia e na cidadania.

86

Reportagem disponível em https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/canal-da-cidadania-

democratizacao-da-televisao-ou-mais-uma-miragem-da-tv-digital-421.html. Acesso em: maio 2018. 87

Trecho da música Coração Civil, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant. EMI Music, 1981.

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APÊNDICE: Organização de documentos, reportagens e vídeos sobre a TV Kirimurê.

Tendo em vista a dificuldade de encontrar, de forma organizada, informações sobre os

temas do Canal da Cidadania e TV Kirimurê, e considerando o material de apoio para esta

dissertação (que em parte, inclusive, não está mais disponível nas redes) pode servir para

facilitar pesquisas futuras e manter a memória da TVK, este apêndice se apresenta em uma

mídia (DVD). Os arquivos em vídeo, texto e imagem reúnem dados (legislação, programas,

vídeos institucionais e transmissões na íntegra) localizados durante o período de escrita desta

dissertação, e a sua forma de apresentação também evita que o volume deste trabalho tomasse

uma proporção muito grande. Todos os anexos estão disponíveis também no link público:

https://drive.google.com/open?id=1qzuHqtEWI1pb9d8CbuqZCwY4ZjliNDdS.