QHELE JEMIMA PINHEIRO DE MELO BARROS TV KIRIMURÊ … · de amor. Meu Inácio, parceiro, melhor...
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – DCH I
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS – PPGEL
QHELE JEMIMA PINHEIRO DE MELO BARROS
TV KIRIMURÊ (CANAL DA CIDADANIA)
UM DESAFIO PARA PENSAR A TV PÚBLICA NO BRASIL
Salvador-BA
2019
QHELE JEMIMA PINHEIRO DE MELO BARROS
TV KIRIMURÊ (CANAL DA CIDADANIA)
UM DESAFIO PARA PENSAR A TV PÚBLICA NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Estudo de Linguagens, Departamento de Ciências
Humanas, da Universidade do Estado da Bahia, como
requisito para obtenção do grau de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra. Maria do Socorro Carvalho
Salvador-BA
2019
CDD: 306
Barros, Qhele Jemima Pinheiro de Melo
TV Kirimurê (Canal da Cidadania): Um desafio para pensar a TV pública
no Brasil / Qhele Jemima Pinheiro de Melo Barros.-- Salvador, 2019.
132 fls.
Orientador(a): Profª Drª Maria do Socorro Silva
Carvalho. Inclui Referências
Dissertação (Mestrado Acadêmico) - Universidade do Estado da Bahia.
Departamento de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens - PPGEL, Câmpus I. 2019.
1.Televisão Pública Digital. 2.Políticas públicas de radiodifusão. 3.TV
Kirimurê. 4.Canal da Cidadania.
B277t
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Dados fornecidos pelo autor
QHELE JEMIMA PINHEIRO DE MELO BARROS
TV KIRIMURÊ (CANAL DA CIDADANIA)
UM DESAFIO PARA PENSAR A TV PÚBLICA NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens,
Departamento de Ciências Humanas, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito
para obtenção do grau de Mestre.
Aprovada em 22 de abril de 2019.
Banca Examinadora:
Maria do Socorro Silva Carvalho (orientadora) __________________________________
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo/ USP.
Universidade do Estado da Bahia.
Ricardo Oliveira de Freitas ___________________________________________________
Doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Universidade do Estado da Bahia.
Miguel Jost Ramos __________________________________________________________
Doutor em Estudos de Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Às minhas raízes Mainha, Painho, Nino e Lucas
E ao meu amor, Lucas Inácio.
AGRADECIMENTOS
Tenho profundo apreço pelo sentimento de gratidão e acredito muito no ciclo de
energias da vida, movido pela troca, pelos encontros, frutos de cada sim e não acolhidos ao
longo do caminho. Ao poder dizer sim a esse projeto de pesquisa – que é também um
projeto de vida, venho de mãos dadas com muitas pessoas e quero que todas elas, de alguma
forma, se sintam abraçadas nesse texto.
Minha mãe, luz que me guia e quem sempre sonha meus sonhos comigo; meu painho,
fonte inesgotável de amor e incentivo; meu pequeno Hugo, que me ensinou a ser mãe e com
quem tanto aprendi a amar de maneira incondicional; Meu primeiro filho, Lucas, artista mais
talentoso que conheço, um espirito de luz bondoso, atencioso e exemplar para todos nós;
Minha voinha Nalva, que a seu modo me ensina tanto e sempre, e me envolve em seu manto
de amor. Meu Inácio, parceiro, melhor amigo, marido, peito acolhedor nas horas de
tormenta. Sem vocês, ora, que mar me restaria a navegar? Eu que nem sei nadar...
Socorro! Que poderia ser mesmo uma interjeição. Professora que admiro de tempos
outros, quando ainda uma menina graduanda, e que sempre me despertou tanta paixão pelo
audiovisual e respeito pela profissão de ensinar. Ah, Socorro, obrigada! Pela acolhida a esse
projeto utópico crítico (rs) – e por todos os que ainda virão. Por me guiar em tempos de
escuridão e navegar comigo, coração com coração, nesses mares turbulentos. Foi muito
melhor porque você me orientou, de verdade!
Miguel Jost e Ricardo Freitas, melhor banca! Abraço e agradeço pela leitura
cuidadosa, pelas ideias enriquecedoras e pelo mergulho nesse mar aberto dos Tupinambás.
Que chegue também o meu abraço a toda acolhedora equipe do PPGEL-UNEB.
Camila, a quem ainda devo chocolate por me salvar na inscrição da seleção. Danilo e Geysa,
por todo cuidado e respeito.
Meus amigos queridos, Lica, Ju, Lara, Wan, Elen, Ina, e todos que de perto ou de
longe incentivaram e vibraram. Quem foi que disse que pra estar junto precisa estar perto?
Aquele abraço bem apertado também para as novas amizades que ganhei no caminho,
Deni e Juli, queridas parceiras de tantos debates, dissensões, cafés, encontros, “Harry
Potters” e conversas positivas. Muito feliz por esse encontro na vida.
Isa Maria Trigo, amiga tão querida. Que teria sido de mim sem o seu amor e
acolhimento? Nenhuma palavra será capaz de traduzir minha infinita gratidão.
Tiago Sampaio e Josenildes de Oliveira, incentivadores e apoiadores essenciais, sem
os quais esse processo não teria sido possível. Foi tão importante poder contar com vocês!
Professora e amiga Nadia Virginia, poeta de muitos encantos, por todos os seus
conselhos durante a seleção do mestrado.
Colegas da Assessoria de Comunicação (Ascom) e da Assessoria Especial de Cultura e
Artes (Ascult) da UNEB, em especial a minha equipe da TV UNEB, paciente apoio em
tantas ausências.
Anderson Soares Caldas e Aline Clea Souza, tão atenciosos e disponíveis, agradeço
pela cessão dos documentos e pelos longos diálogos. Também aos demais da equipe
Kirimurê, em particular na pessoa de Dina Lopes.
Pola Ribeiro, sem o qual talvez eu não conseguisse entender tão bem os complexos
projetos do Canal da Cidadania e da TVK, além de acreditar neles! Muito obrigada!
Aos professores e colegas pesquisadores da TV pública, ainda tão esquecida e
marginal, obrigada pela rede de apoio.
E aos que acreditam em uma comunicação mais justa, democrática, descentralizada,
participativa e com a cara de todos e de qualquer um, deixo o meu melhor abraço.
Posso desejar, mas sem ter muitas ilusões, que minhas análises
possam contribuir para dar ferramentas ou armas a todos aqueles
que, enquanto profissionais da imagem, lutam para que o que poderia
ter se tornado um extraordinário instrumento de democracia direta
não se converta em instrumento de opressão simbólica.
(Pierre Bourdieu, 1997, p.13)
RESUMO
Esta dissertação se propõe a discutir e analisar a experiência da TV Kirimurê (TVK), a partir
de suas potencialidades e limitações, como nova cultura televisiva para o campo da
comunicação pública no Brasil. Inscrita no projeto do Sistema Brasileiro de Televisão
Digital (SBTVD), a TVK é a faixa dedicada à sociedade civil do Canal da Cidadania de
Salvador-BA e se configura como a primeira em funcionamento no país. Sua existência se
fez possível através da outorga concedida à TV Educativa da Bahia, em 2014, para dividir o
seu canal digital em quatro faixas, resultado de um complexo processo para regular a
multiprogramação, fruto da digitalização da tevê nacional. Com base na metodologia de
Estudo de Caso e em ampla revisão bibliográfica, ao analisar o tripé gestão, financiamento e
programação, associados às tecnologias da comunicação e informação e à cultura da
convergência, busca-se entender como as políticas públicas nacionais, com ênfase nos
processos iniciados pelo Ministério da Cultura, em 2003, podem romper com o sistema
televisivo comercial hegemônico e promover novos caminhos a contrapelo para a
radiodifusão pública, democratizando os meios e os processos produtivos e destacando a
diversidade baseada na valorização das culturas locais. Para tanto, inspirada pela ideia de
navegações, que se liga à origem tupinambá do nome Kirimurê, a pesquisa é conduzida em
rotas que passam pelas discussões sobre a importância de debater a TV pública para
democracia e a cultura do Brasil; segue navegando nos processos de digitalização da tevê e
seus desdobramentos nos âmbitos nacional e local, e nas inaugurações trazidas pelo primeiro
Canal da Cidadania do país, em 2016; até alcançar a análise da TVK, considerando novas
perspectivas e velhos desafios desta tentativa de ocupar o espaço da televisão terrestre
aberta, gratuita e digital, como uma reversa invasão indígena em território da colônia.
PALAVRAS-CHAVE: Televisão Pública Digital. Políticas públicas de radiodifusão. TV
Kirimurê. Canal da Cidadania.
ABSTRACT
This master thesis proposes to discuss and analyze the experience of TV Kirimurê (TVK),
from its potentialities and limitations, as a new television culture for the field of public
communication in Brazil. Registered in the project of the Brazilian Digital Television
System (SBTVD), TVK is the channel dedicated to civil society of the Canal da Cidadania
of Salvador-BA and is configured as the first in operation in the country. Its existence was
made possible through the grant granted to TV Educativa da Bahia in 2014 to divide its
digital channel into four bands, the result of a complex process to regulate
multiprogramming, the result of the digitization of national TV. Based on the methodology
of the Case Study and a wide bibliographic review, when analyzing the tripod management,
financing and programming, associated with communication and information technologies
and the convergence culture, it is seeking to understand how national public policies, with
emphasis on processes started by the Ministry of Culture in 2003 can break with the
hegemonic commercial television system and promote new paths to public television
systems, democratizing the media and the productive processes and highlighting the
diversity based on the appreciation of local cultures. For this purpose, inspired by the idea of
sailing, linked to the Tupinamba origin of the name Kirimurê, the research is conducted in
routes that pass through the discussions on the importance of discussing public TV for
Brazilian democracy and culture; keep navigating in national and local digitalizacion
processes of TV, until achieve TVK’s analysis, considering new perspectives and old
challenges of this attempt to occupy the space of open terrestrial television, free and digital,
as a reverse Indian invasion in territory of the colony.
KEYWORDS: Digital Public Television. Public broadcast policies. TV Kirimurê. Canal da
Cidadania.
LISTA DE ABREVIATURAS
Abert Associação Brasileira de Emissoras de Rádio de Televisão
ABEPEC Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais
Acerp Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto
Anatel Agência Nacional de Telecomunicações
APCBA Associação de Produtores e Cineastas da Bahia
ATSC Advanced Television Systems Committee
BBC British Broadcasting Corporation
CF Constituição Federal da República do Brasil
CONFECOM Conferência Nacional de Comunicações
CPqD Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações
CREA Conselho Regional de Engenharia e Agronomia
CTB Código Brasileiro de Telecomunicações
DVB Digital Video Braadcasting
DIP Departamento de Informação e Propaganda
DOE Diário Oficial do Estado
DOU Diário Oficial da União
DOC TV Programa de Fomento a Produção Audiovisual e Teledifusão do
Documentário Brasileiro
EBC Empresa Brasil de Comunicação
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
ESSO ExxonMobil Corporation
FCBTV Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa
FNDC Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação
Funttel Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações
Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação
IRDEB Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia
ISDB Integrated Service Digital Broadcasting
ITU International Teleccomunication Union
FEME Organização Social Filhos do Mundo
MEC Ministério da Educação
MinCom Ministério das Comunicações
MinC Ministério da Cultura
MPF Ministério Público Federal
MSPB Movimento dos Povos Brasileiros
ONU Organização das Nações Unidas
PRODAV Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro
PNO Plano Nacional de Outorgas
PRONTEL Programa Nacional de Teleducação
PSB Public Broadcasting Service
PSOL Partido Socialismos e Liberdade
PT Partido dos Trabalhadores
Radiobrás Empresa Brasileira de Comunicação
RNTP Rede Nacional de Televisão Pública
RNTPD Rede Nacional de TV Pública Digital Terrestre
SAV Secretaria do Audiovisual (MinCom)
SBTVD Sistema Brasileiro de Televisão Digital
SEBRAE Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
SET Sociedade de Engenharia de Televisão e Telecomunicações
SETRE Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Estado da Bahia
Sepromi Secretaria de Promoção e Igualdade Racial da Bahia
Siacco Sistema de Acompanhamento de Controle Societário
SPR Serviço Público de Radiodifusão
TVK TV Kirimurê
TVE BA TV Educativa da Bahia
UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina
UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana
UHF Ultra High Frequency
UNEB Universidade do Estado da Bahia
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
Univesp TV Universidade Virtual do Estado de São Paulo
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO: GRANDE MAR ABERTO DOS TUPINAMBÁS .................... 12
2. AINDA É PRECISO FALAR SOBRE TV PÚBLICA NO BRASIL?................. 24
2.1 TV PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DIRETO PARA DEMOCRACIA ........... 29
2.2 A TELEVISÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA DE CULTURA ............................. 38
3. NAVEGANDO NAS ROTAS KIRIMURÊ ........................................................... 45
3.1 ROTA NACIONAL: TV DIGITAL E MULTIPROGRAMAÇÃO........................... 47
3.2 ROTA LOCAL: TVE BA DIGITAL E O PRIMEIRO CANAL DA CIDADANIA
DO BRASIL ..............................................................................................................
57
3.3 ROTA INAUGURAL DA KIRIMURÊ: PORQUE NAVEGAR É PRECISO .......... 64
4. TVK, UMA TELEVISÃO A CONTRAPELO ...................................................... 68
4.1 NOVAS PERSPECTIVAS, VELHOS DESAFIOS ................................................... 69
4.1.1 Gestão aberta e participativa ............................................................................ 74
4.1.2 Controle e independência financeira ................................................................ 85
4.2 CONTEÚDO “PARA SE VER, OUVIR E PENSAR” 93
4.2.1 Da TV Escola à TVT.......................................................................................... 98
4.2.2 Conversa de Preta e Simões Filho no ar .......................................................... 100
4.2.3 Candomblé e Seus Caminhos e Catado de Cultura .......................................... 104
4.3 A TELEVISÃO PÚBLICA DO FUTURO? .............................................................. 108
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 117
REFERÊNCIAS 121
APÊNDICE: ORGANIZAÇÃO DE DOCUMENTOS, REPORTAGENS E
VÍDEOS SOBRE A TV KIRIMURÊ.
132
12
1. INTRODUÇÃO: GRANDE MAR ABERTO DOS TUPINAMBÁS
É muito bom assistir ao nascimento de uma TV cidadã em Salvador,
inclusive com caráter pioneiro no Brasil inteiro, porque nós estamos em um
momento de mudança de todos os parâmetros e de todos os valores que a
gente acreditou até agora, não só no país, mas no mundo, e especialmente na
área do audiovisual. Esse modelo de televisão é o que tem a ver com o futuro
da TV, e ele já é o presente, na verdade. O futuro é por ai, e ele está junto
com o desenvolvimento da cidadania (Geraldo Moraes, 2018) 1.
Em fala para um vídeo de divulgação da TV Kirimurê, na ocasião do seu recente
lançamento, em 2016, o cineasta Geraldo Moraes (2018) enfatiza a importância do
surgimento de um canal de televisão que coloca a cidadania como prioridade. Para o campo
das políticas para audiovisual no Brasil, nasceu também a oportunidade de expandir o debate
sobre os princípios da cidadania, o que inclui a premissa do consumo cultural (CANCLINI,
2006), tanto quanto do acesso a direitos fundamentais, como guarda a Constituição Brasileira.
De maneira ampliada, essa TV cidadã que prevê a participação direta da sociedade
civil em toda sua estrutura – desde a gestão administrativa até as decisões sobre a grade de
programas – abarca também a perspectiva de uma cidadania de apropriação, com a ocupação
popular de espaços sociopolíticos e culturais decisórios. É, portanto, a oportunidade de
promover a diversidade cultural no país e, como princípio fundamental para alcance da
cidadania, viabilizar a liberdade de expressão e a igualdade.
Ao habitar o espaço midiático, e mais especificamente o hegemônico ambiente da TV
aberta, um canal cidadão se anuncia como possibilidade para exercício transversal da
cidadania. Isso por compreender os direitos individuais e coletivos e descontruir a relação
desigual entre as redes televisivas e seu espectador, democratizando a emissão nos meios de
comunicação e equalizando a participação do espectador, que prioritariamente transita na
esfera televisiva como consumidor, e muito pouco como cidadão (CANCLINI, 2006).
Nesse contexto, a TV Kirimurê (TVK) é a primeira faixa de Canal da Cidadania
gestada pela sociedade civil organizada a ser inaugurada no Brasil, e sua história, em parte, se
confunde com a própria história do projeto nacional de Canal da Cidadania. Por isso, olhar
para Kirimurê ajuda a compreender as possibilidades e desafios de uma proposta de TV
Pública e cidadã no país.
1 Vídeo disponível em https://tvkirimure.tv.br/o-modelo-da-tv-kirimure/. Acesso em: ago. 2018.
13
O nome Kirimurê significa grande mar aberto dos tupinambás, e sua origem vem da
lenda de uma ave que partiu de terras muito distantes e voou incansável, dias e noites sem
parar, até alcançar o litoral de uma terra imensa e bela, onde pousaria. No entanto, cansada do
grande esforço empreendido na longa viagem, a ave não resistiu e caiu morta. No choque
contra o solo, os Tupinambás acreditavam que suas longas e alvíssimas asas transformaram-se
em praias de areias muito brancas, e o seu coração, ao bater na terra, rachou-a abrindo uma
profunda e grande fenda que logo foi tomada e irrigada pelas águas do mar. O sangue que
jorrou da ave lendária inundou e fecundou as margens daquela enorme baía, e assim nasceu a
Kirimurê, esplêndida e generosa, de onde os Tupinambás retiravam os alimentos que
precisavam para sobreviver. Só depois veio o homem branco e tomou posse de Kirimurê,
rebatizando-a de Baía de Todos os Santos 2.
Sintonizada na faixa 10.2 da programação terrestre aberta, na cidade de
Salvador/Bahia e em parte de sua região metropolitana, a Kirimurê está inscrita no projeto da
TV digital brasileira e tem base na multiprogramação, que possibilita a divisão do que antes
era apenas um único canal analógico agora em quatro faixas digitais. Sua gestão é prevista
para ser exercida por um grupo da sociedade civil organizada, que será igualmente
responsável por sua programação e pela busca de formas de financiamento. Não à toa Geraldo
Moraes chama de futuro esse modelo de televisão, ele é resultado de uma série de
transformações técnicas e conceituais no modus operandi da TV aberta nacional.
A primeira vez em que o Canal da Cidadania aparece na legislação é no Decreto nº
5820, de junho de 2006, que cria o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD). Nesse
decreto, o canal aparece ainda sem regulamentação e destinado à exploração exclusiva da
União, descrito no artigo 13 como “canal para transmissão de programações das comunidades
locais, bem como para divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes
públicos federal, estadual e municipal”.
Tais proposições sofreram alterações até a publicação, em 2012, da Norma
Regulamentar do Canal da Cidadania, quando finalmente se estabelece que cada um dos 5.570
municípios brasileiros tenha a sua própria TV pública multiprogramada, e que duas das quatro
faixas sejam destinadas a transmitir conteúdo produzido pelas comunidades locais. Ratifique-
se que, embora muitos pedidos tenham sido realizados e mesmo algumas autorizações
concedidas, até dezembro de 2018 apenas a TVK desponta como faixa da cidadania em
2 Informações disponíveis no site da TV Kirimurê: https://tvkirimure.tv.br/. Acesso em: ago. 2018.
14
funcionamento, um contexto limitado que chama atenção para a complexa estrutura de
divergentes interesses políticos e comercias para conduzir a radiodifusão nacional.
Além de um caso inédito de faixa da sociedade civil operando em um Canal da
Cidadania no Brasil, a TV Kirimurê é parte da realização do projeto de TV Pública que teve
seu grande expoente nas políticas públicas de comunicação e cultura durante a presença de
Gilberto Gil no Ministério da Cultura (2003-2008). Entre outras iniciativas, a gestão Gil, ao
liderar as discussões sobre a migração digital durante o Fórum Nacional de TVs Públicas,
defendeu a multiprogramação como estratégica para o campo público da tevê, sobretudo por
permitir maior representação da diversidade e por ser um meio para atender às necessidades
de conteúdos que contemplem as diferentes demandas da sociedade.
Um dos maiores desafios da televisão aberta do Brasil está exatamente em regionalizar
a programação e descentralizar os meios produtivos, e o caso do Canal da Cidadania baiano
parece apontar em uma direção que pode resolver parte desse problema. Baseado no processo
de digitalização tecnológica e estrutural, a proposta conjuga mudanças convergentes para
linguagens, técnicas e modelos de negócios na TV, e é também uma mostra das
potencialidades da TV digital para a comunicação pública, sendo “uma política que recoloca o
debate sobre o lugar contemporâneo do Estado no campo da cultura”, como afirma Albino
Rubim (2010a, p. 13).
Ante todas as dificuldades, o projeto da TVK pode ser comparado ao que Jesus
Martín-Barbero (2002) descreve como a necessidade de reconstrução do projeto público de
TV que – ciente das novas condições de produzir e oferecer conteúdo, das inovações
tecnológicas e da reconfiguração do telespectador – reconhece e expressa a diversidade
cultural do país, em todos os seus elementos regionais e intrínsecos, representando pluralidade
ideológica-política, e propiciando uma informação independente e inclusiva.
A história da TV no Brasil, e também em grande parte dos países da América Latina, é
marcada pelo privilégio do interesse publicitário e comercial, ainda que a concessão de TV
seja pública, portanto, concedida e regulada pelo Estado. De modo análogo à lenda Kirimurê,
tem-se a ocupação do espaço de radiodifusão baseado em um modelo colonizador, em que
grandes empresários se apropriaram das outorgas públicas concedidas pela União ao longo
dos anos e assim atuam desde então. Tal concessão, por lei, deveria ser disputada por toda
sociedade, por meio de instituições habilitadas legalmente, mas não foi o que se deu.
15
O modelo comercial predominante distorce o conceito de público no contexto da
televisão brasileira, e faz parecer um negócio particular e privado aquilo que é, por natureza,
um locus de discussão sobre temas de interesse público e que deve, de acordo com Wilson
Gomes (2006, p.8), “como domínio da esfera pública, ser conduzido por agentes sociais”. De
tal modo, historicamente os cidadãos se mantem afastados tanto dos debates quanto da
ocupação dos canais de TV, limitados no exercício de seus direitos.
Na tentativa de ocupar o espaço da televisão terrestre3 aberta, gratuita e digital, o
Canal da Cidadania é como uma reversa invasão indígena em território da colônia. É um
movimento de abrir rotas para entrada de novas leituras audiovisuais sobre a tevê pública,
numa correnteza que carrega o desejo de mudança, e que, mais uma vez na história de
emancipação do Brasil, começa na Bahia. Com abrangência local, mais especificamente para
os lares da cidade de Salvador e parte de sua região metropolitana – municípios de Lauro de
Freitas, Simões Filhos e Ilha de Itaparica – a proposta conceitual da Kirimurê é ser, como
sintetiza seu slogan, uma TV para “se ver, se ouvir e se pensar”.
Omar Rincón (2002), ao tratar da centralidade da televisão, tendo-a como mídia do
século XX e local privilegiado da cultura e da sociedade contemporânea, defende que a TV se
converteu em parte fundamental da vida humana diária, como dispositivo intrínseco à forma
como as sociedades constroem o sentido do mundo. Ao ponderar sobre a necessidade da
existência da tevê pública nesse contexto, Rincón (2002) aponta também que já que a
televisão existe e não deixará de existir, pelo contrário parece ter cada vez uma presença mais
vital, é melhor começar a compreendê-la na sua ação social e no seu potencial comunicativo
para conseguir fazer dela um dispositivo mais próximo dos interesses sociais e culturais.
No âmbito acadêmico, principalmente entre as ciências sociais e políticas, as pautas
sobre o valor público da comunicação ganham maior evidência a partir da redemocratização
do país no período pós-ditadura militar, em especial com a Constituição Federal de 1988. O
Estado, por sua vez, passa a instituir práticas que foram desprestigiadas pelos interesses
neoliberais sobre a comunicação como direito e exercício da cidadania durante muitas
décadas desde o surgimento das mídias de massa, e então se discute um novo marco
regulatório e políticas públicas atentas aos meios de produção e às novas mídias.
3 Por televisão terrestre entende-se aquela que é transmitida a partir de um transmissor localizado na superfície
terrestre (de uma estação de TV) e recebida em um aparelho televisor que tenha uma antena. Para a TV digital
terrestre a lógica se replica: há um ponto, que é a torre, que emite um sinal aberto (não é criptografado) e gratuito
(qualquer pessoa com uma antena pode acessar) que cobre toda uma determinada área.
16
Importantes organizações e coletivos que lutam pela democratização da comunicação
surgiram também nesse período. São exemplos o Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação (FNDC), em 1990, e o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, em
2003. Somente o FNDC agrupa mais de quinhentas entidades que se articulam para denunciar
e combater a concentração econômica na mídia brasileira, além dos obstáculos à consolidação
da comunicação pública e cidadã e das inúmeras violações à liberdade de expressão4. Um
considerável número de publicações entre manuais, relatórios e livros sobre temas da
comunicação pública e da democratização dos meios foram também produzidos, auxiliando
nas pesquisas que seguiram.
Assim como a dissertação aqui apresentada, muitos desses estudos encontram eco nos
conceitos de Nestor Garcia Canclini (2006) sobre democracia e cidadania. Entre outros
aspectos, Canclini discute sobre o exercício cidadão com base no consumo e nos modelos de
participação, confrontando os meios de comunicação e a participação coletiva em espaços
públicos. Também estudioso dos processos culturais e mediações, Jesus Martín-Barbero
(1997) discute que a televisão traz para o campo da comunicação um aprimoramento
qualitativo dos dispositivos ideológicos. Em uma “imagem plena da democratização
desenvolvimentista, a televisão ‘realiza-se’ na unificação da demanda, que é a única maneira
pela qual pode conseguir a expansão do mercado hegemônico sem que os subalternos se
ressintam dessa agressão” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p.249).
Pierre Bourdieu (1997, p. 23), grande crítico da televisão, chama atenção para o fato
de que a TV tem “uma espécie de monopólio sobre a formação das cabeças de uma parcela
muito importante da população”, e critica a ausência de oferta de informações pertinentes que
auxiliem o cidadão a exercer seus direitos democráticos. Juntas, essas discussões apontam
para a necessidade de tratar sobre os processos comunicativos, repensando o lugar dos
sujeitos sociais nos grandes meios de comunicação.
Sobre o tema da TV digital e seus desdobramentos, as tecnologias da informação e
comunicação e o surgimento da internet impulsionam um arco crescente de estudos no Brasil,
com abordagens que vão desde as análises técnicas dos softwares, middlewares e hardwares,
até a relação dessa nova tevê com as práticas educacionais e mudanças no comportamento
sociocultural do brasileiro. A grande expectativa de mudanças gerada em torno desse modelo
de televisão pode ser lida, entre outros, através do título que Fernando Crocomo (2007) dá ao
4 Dados disponíveis em http://www.fndc.org.br/forum/quem-somos/. Acesso em: set. 2018.
17
seu livro: TV digital e produção interativa: a comunidade manda notícias; e até mesmo
mudanças nos processos educativos e para sala de aula, como previsto na análise de Nelson
Pretto (2007) sobre a TV digital como instrumento para um diálogo bidirecional e com papel
na dinâmica da inclusão sociodigital.
Surgem também leituras baseadas na cultura da convergência, termo cunhado por
Henry Jenkins (2009), teórico americano que pesquisa os cruzamentos entre as velhas e novas
tecnologias, e as coloca em diálogo com comportamentos humanos. Para tanto, o autor
discute importantes conceitos como o da inteligência coletiva, tratado por Pierre Levy (1998),
a revolução digital, considerando principalmente as discussões de Marshall McLuhan (1969),
além da cultura da participação e das narrativas transmídias.
As tecnologias disponíveis no modelo digital e os novos perfis de consumo permitem
que os cidadãos integrem o processo televisivo de maneira mais orgânica. Assim, nascem
pesquisas sobre um novo modelo de codificação e decodificação das mensagens, com uma
mediação menos autoritária, e também sobre a relação do cidadão com a tevê, como as
reunidas por João Freire Filho, em A TV em transição (2009), e por Michel Wolff, em
Televisão é a nova televisão (2015).
No contexto da cultura digital e ante uma revolução tecnológica que invade todo o
cotidiano da sociedade, a tevê permite navegações entre websites, homepages e gigabites,
como lembra Gilberto Gil em sua canção Pela Internet (1998), numa jangada que veleja um
mar de muitas oportunidades e desafios. Especificamente sobre a televisão digital, César
Bolaño e Valério Brittos (2007b), pesquisadores brasileiros contemporâneos, têm destaque
nas pesquisas sobre a TV do Brasil na era digital, tratando o fenômeno principalmente a partir
do campo teórico da economia política da comunicação.
Listar essas iniciativas coloca em evidência o aumento das frentes de pesquisa
científica sobre a TV nos últimos anos de Brasil democrático, com abordagens teórico-
metodológicas variadas, ao tempo em que também explica a predominância de referências
mais contemporâneas nesta dissertação. Importante destacar os debates pioneiros sobre
políticas de comunicação e cultura para TV no Brasil, conduzidos principalmente por Albino
Rubim (2010b), que aponta haver um razoável estoque de conhecimento sobre a televisão já
produzido, apesar de suas dimensões quantitativa e qualitativa não corresponderem ao lugar
essencial que ela adquiriu em nossa nação.
18
A ênfase, no entanto, está no que pode ser considerado um número ainda mais escasso
de referências: as que tratam sobre a TV Pública no país. Isso se justifica principalmente pela
experiência nacional limitada e instável no que diz respeito a seu sistema público de
comunicação. Quando o tema é o Canal da Cidadania, um desdobramento da radiodifusão
pública digital, o número de estudos publicados é exíguo e todo esse cenário corrobora com a
escolha da TV Kirimurê como recorte para análise.
A TVK se inscreve em uma complexa estrutura política e conceitual, que abarca as
políticas públicas para a televisão e discussões sobre o conceito de comunicação pública.
Também revela a investida da TV Educativa da Bahia (TVE BA), ligada ao Instituto de
Radiodifusão Educativa da Bahia (IRDEB-BA), para obter autorização e multiprogramar,
dando oportunidade para abertura de outras quatro faixas digitais, entre elas a TV Kirimurê,
formando juntas o Canal da Cidadania.
A dissertação aqui apresentada se propõe a discutir como as políticas públicas voltadas
para a radiodifusão em vigor no Brasil, especialmente a partir da inclusão da TV Pública na
pauta da cultura, podem colaborar para o fortalecimento desse campo da comunicação. Busca
compreender as potencialidades da TV digital nesse cenário, com ênfase no desdobramento
do Canal da Cidadania, que abarca a multiprogramação e as multiplataformas, além de novas
estratégias para gerenciar e financiar um canal público de tevê.
Lançada oficialmente em 20 de novembro de 2016, a TV Kirimurê é um fenômeno em
andamento, ainda em construção na medida em que esta pesquisa decorre. Para o Brasil, ela
pode significar a inauguração de uma nova prática televisiva, concebendo um canal destinado
ao cidadão, como um espaço em que ele possa falar diretamente na grade da TV aberta. Seja
pautando “aquele velho baba que reúne jogadores do bairro” ou “a reunião da associação de
moradores de uma localidade”, como sugerem os apresentadores durante o programa
inaugural da TVK5, a Kirimurê ressignifica a cidadania na comunicação pública do país.
De tal modo, buscando explorar essas e outras possíveis transformações para a tevê,
inspirada no aspecto lendário do nome da TV Kirimurê, adota-se na presente dissertação uma
abordagem conduzida pela ideia de navegações, o que permite rotas entre os diversos temas
que a cercam. O processo metodológico tem base na revisão bibliográfica, que inclui as
discussões mais atualizadas sobre TV pública, TV digital e políticas de comunicação e de
5 Programa inaugural da TV Kirimurê na íntegra disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=HI3MoY2s4JY. Acesso em: jul. 2018.
19
cultura no Brasil, além do estudo de caso, tratado a partir do conceito de Robert Yin (2010)
que o traz como uma “inquisição empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro
de um contexto da vida real, quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é
claramente evidente e onde múltiplas fontes de evidência são utilizadas” (YIN, 2010, p. 32).
Este estudo parte da hipótese que considera a TV Kirimurê como a possibilidade de
discutir um novo modelo de TV Pública no Brasil. Para a pesquisa, foram fontes
fundamentais os documentos elaborados pela TV Kirimurê (relatórios, regimento e projetos),
as leis, os decretos e os editais sobre o tema em âmbito nacional e local; os documentos
produzidos e publicados por entidades não governamentais que tratam o Canal da Cidadania,
além do suporte encontrado nas reportagens, vídeos e programas da TVK e sobre ela.
A diversidade de fontes revela o esforço para realizar uma investigação qualitativa e
aprofundada. O recorte temporal para análise tem marcos em 2003, quando são iniciados os
procedimentos para implantar a TV Digital6, segue para 2006, período em que o Canal da
Cidadania aparece nas leis de radiodifusão digital, e navega na direção da sua
institucionalização, por meio do Decreto 489 de dezembro de 2012. Segue para os anos de
2013, com a autorização das TVs Educativas estaduais para operarem a multiprogramação, e
2016, quando a TV Kirimurê vai oficialmente ao ar. A produção de conteúdo e os documentos
utilizados para análise aqui apresentada são considerados até dezembro de 2018.
No que tange a revisão bibliográfica, a base para investigar a TVK adota o conceito de
comunicação pública a partir do trabalho organizado por Omar Rincón, que resultou no livro
Televisão pública: do consumidor ao cidadão (2002), e reúne especialistas latino-americanos
para tratar a questão a partir das suas perspectivas nacionais7. Pautando aspectos mais centrais
dos sistemas públicos de televisão, as pesquisas ratificam a programação, o financiamento e a
gestão como fundamentais para caracterizar um modelo democrático de TV cidadã.
O livro também se propõe a “desenvolver propostas conceituais e projetar modelos
práticos para pensar, produzir, realizar, programar e consumir televisão pública” (MARTÍN-
BARBERO, 2002, p. 33). Dentre as propostas, destacamos a intenção de constituir uma TV
pública que simultaneamente agregue consumidores e cidadãos, sem opor ou sacrificar um ao
6 Embora tenha havido ampla discussão em meados da década de 1990, a TV digital teve início oficialmente no
Brasil através do decreto nº 4.901, de 26 de novembro de 2003, sendo implantada em 2006. Dados disponíveis
em http://www.sejadigital.com.br. Acesso em: jul. 2018. 7 Jesús Martin-Barbero (Colômbia), Germán Rey Beltrán (Colômbia), Diego Portales Cifuentes (Chile), Valerio
Fuenzalida Fernández (Chile), Nora Mazziotti (Argentina), Gullermo Orosco Gomez (México), Teresa Monteiro
Otondo (Brasil) e Omar Ricón (Colômbia).
20
outro, e desse modo permitir que os atores sociais se expressem e representem por si mesmos,
ocupando campos importantes na construção do coletivo social.
O nascimento da Kirimurê também coloca em debate antigas questões, como a
diferenciação entre TV pública, estatal e comunitária, por exemplo, além das relações por elas
estabelecidas com o Estado, e nesse sentido, vale dizer que não existe um consenso sobre o
que definiria uma TV como pública no mundo. No entanto, sua diferenciação em relação à
TV comercial, com ênfase na autonomia, diversidade de conteúdo, participação popular e no
predominante interesse no cidadão e seus direitos, são interseções entre um conjunto de
debates sobre o tema, e foram esses os elementos buscados para caracterizar e analisar o
projeto do Canal da Cidadania e da TVK.
No processo, fez-se imprescindível apresentar a TV Kirimurê, já que ela ainda é uma
grande desconhecida do conjunto da sociedade e da academia, em particular. Em uma rápida
busca na internet, por exemplo, entre o pouco material encontrado, é possível localizar
questionamentos como “que canal é esse que transmite a TV Escola?”, ou “Não entendo o
porquê de criar outros canais quando nem mesmo a TV Educativa é assistida no Estado” 8.
Ratifica-se, portanto, a relevância de discutir a TVK, gerando bibliografia em uma espécie de
metalinguagem funcional, na qual um Canal que não pautado passa a ser pauta, porque não há
como a população ocupar ou mesmo questionar um espaço se sequer sabe que ele existe.
Na busca por encontrar o lugar da TV Kirimurê no contexto da televisão pública e
digital do Brasil e tentando identificar suas potencialidades e fragilidades como proposta para
uma nova cultura de TV pública no país, o texto desta dissertação estrutura-se em três seções,
além da introdução e das considerações finais. Todas elas são conduzidas pelo movimento
marítimo da Kirimurê, passando por discussões teóricas imprescindíveis para esclarecimento
dos conceitos que envolvem o projeto do Canal da Cidadania e chegando a análise prática da
experiência da Kirimurê a partir dos eixos programação, gestão e financiamento.
A introdução esboça o lugar desse mar aberto pela TV Kirimurê nos oceanos da
televisão pública e dá o tom das navegações que seguem. A segunda seção, cujo título
questiona é Ainda é preciso falar sobre TV Pública no Brasil? funciona como uma bússola
para as rotas que seguirão. Buscando discutir o conceito de TV Pública e colocá-lo em
diálogo com estudos atualizados, essa seção também trata sobre a relevância de um projeto de
8 Comentários encontrados em matérias sobre o lançamento da TV Kirimurê no link
http://vcfaz.tv/viewtopic.php?p=12662828. Acesso em: jan. 2018.
21
TV Pública como eixo da democracia contemporânea, e a necessidade de pensar uma cultura
televisiva capaz de incluir os debates sobre cidadania e fortalecer as vozes dissonantes e suas
narrativas não hegemônicas dentro do sistema de tevê.
Ainda aqui é trazido breve panorama histórico da TV pública no Brasil, evidenciando
um conjunto de interesses divergentes que estruturam o campo público na radiodifusão e nas
políticas de comunicação e cultura brasileiras. Importante destaque para as ações na área do
audiovisual a partir do ano de 2003, com processos que deram origem à Empresa Brasil de
Comunicação (EBC) e a TV Brasil, marcos legais para a radiodifusão pública do país.
Para contextualizar as políticas públicas nas quais está inserida a TVK, a seção
Navegando nas rotas Kirimurê traz discussões sobre a TV Digital, a multiprogramação e o
Canal da Cidadania, em seus percursos nacionais e locais. Também apresenta e discute a
primeira transmissão pública da TV Kirimurê, quando depois dos processos de outorgas e
editais, ela é lançada oficialmente para a população local e passa a ser uma opção na TV
aberta digital da região metropolitana de Salvador, Bahia.
Em um cenário no qual a maior parte da audiência identifica a TV digital apenas como
a transmissão de imagem e som em alta definição, foi imprescindível tratar o seu projeto de
maneira ampliada, bem como os contextos sociopolítico, econômico e cultural que o
circundam. Ademais, mostrar a resistência de um Canal da Cidadania pode ser motivador para
outras iniciativas se consolidarem, especialmente diante do atual momento político de
sucessivas retiradas de direitos, numa conjuntura cercada por crises no campo da
comunicação pública, com fechamento de canais em todo país e destituição de conselhos
populares na Empresa Pública Brasileira (EBC).
Sobre políticas públicas de comunicação e cultura, Albino Rubim (2010b) afirma que
estudar as relações entre televisão e políticas culturais no Brasil contemporâneo não é um
trabalho fácil porque há complexos fatores que bloqueiam a reflexão acerca desta conexão
vital para uma compreensão mais sofisticada das dinâmicas atuais no país. E enfatiza: “o
significado adquirido pela televisão para a conformação cultural da contemporaneidade, para
o mal ou para o bem, não pode ser desconsiderado, em especial, quando pretendemos esboçar
e implementar políticas culturais efetivamente democráticas” (RUBIM, 2010b, p. 1).
A seção que segue TVK: Uma televisão a contrapelo apresenta uma análise da
Kirimurê a partir da perspectiva a contrapelo, baseada na leitura da história proposta por
Walter Benjamin (1940). A seção busca identificar as potencialidades e novidades trazidas
22
pela Kirimurê para o campo da TV Pública. Os dados são considerados a partir das suas
propostas de programação cidadã, financiamento e gestão independentes, além das
possibilidades de multiplataformas, convergências midiáticas e novas formas de acesso, sendo
uma grande janela para conteúdos e formas alternativas à radiodifusão hegemônica. A
sistematização acontece, sobretudo, para o percurso da TV Kirimurê, evidenciando os
desdobramentos práticos da realização do Canal da Cidadania de Salvador.
Também nessa seção, a análise proposta engloba as grandes dificuldades na execução
da TVK, fazendo-a navegar e ser navegada por circunstâncias que dificultam sua
consolidação e permanência. Desse modo, a seção apresenta e discute as fragilidades e
limitações enfrentadas pela TV Kirimurê, um projeto em andamento, mas que já abriga velhos
problemas, o que a impede de exercer, de maneira plena, a soberania popular, a interatividade,
a inclusão e a ocupação sistemática do espaço aberto da TV.
Ao apresentar e analisar o percurso da Kirimurê pretende-se colocar as fragilidades
identificadas em um mesmo barco junto às potencialidades, de maneira que seja possível
entender e articular essa política pública de comunicação e cultura para o Brasil e a Bahia,
bem como ajudar a entender a TV como fenômeno de comunicação no país.
As considerações finais, que encerram esse navegar, é uma porta aberta e também um
convite para outras leituras e pesquisas, uma vez que a Kirimurê é um caso ainda isolado de
faixa da sociedade civil de um Canal da Cidadania em funcionamento, e carrega consigo a
história de um projeto de TV desbravadora e resistente.
No caso da lenda Kirimurê, o que poderia significar um fim com o tombo da ave sobre
o litoral desconhecido, tornou-se um importante recomeço, e deu origem a um grande mar
aberto. O debate, também cansado, sobre a TV pública no Brasil tem a possibilidade de
revelar, nas ondas de um Canal da Cidadania exitoso, que o futuro pode mesmo ser baseado
em uma lenda, escrito de maneira que, mesmo depois de longas navegações, encontra uma
terra firme onde pode recomeçar.
Sem ilusões, mas com base em uma utopia crítica e motivada por um profundo desejo
de mudança, esta dissertação, ao analisar a TV Kirimurê, busca identificar, a partir das suas
potências e limitações, um esboço acerca de questões importantes sobre a comunicação social
no Brasil e das políticas públicas que as definem. Não há porque renunciarmos a utopias
como essa, onde se vê no horizonte as possibilidades para “controle social do conteúdo,
pulverização da propriedade, gratuidade de serviços essenciais, obrigatoriedade da produção
23
local” além de “financiamento de propostas populares pelo faturamento dos maiores
operadores e disponibilidade de canais para universidades, sindicados e organizações não
governamentais” (BOLAÑO e BRITTOS, 2007b, p.11).
Entende-se ainda que a busca por um projeto de TV pública eficiente para o Brasil,
tomada pela necessidade imperativa de democratizar os meios de comunicação no país,
envolve jogos, contradições e críticas que certamente não serão esgotadas nesta pesquisa. No
entanto, essas buscas podem encontrar, no percurso da Kirimurê, apoio para novas rotas a
partir de erros e acertos. O projeto da TVK, que prevê a regionalização do conteúdo na
televisão e propõe estratégias para financiamento e gestão autônomos, é aqui analisado a
partir de toda a multiplicidade que o envolve, considerando que muitas respostas não possam
ser encontradas nesse momento.
24
2. AINDA É PRECISO FALAR SOBRE TV PÚBLICA NO BRASIL?
A TV pública é uma janela de acesso estratégico para o contato da população
com a mais vasta gama de bens e serviços culturais, constituindo um canal
privilegiado para a valorização e a universalização do patrimônio simbólico
nacional. (Orlando Senna, 2006)
Cidadãos de qualquer lugar do mundo podem produzir conteúdo independente e
disponibilizar no Youtube; uma geração inteira já vê tevê pelo celular; a própria rede
televisiva vem se adaptando às novidades desse mercado de consumo. A TV pública é
mesmo importante? Vale a pena o Estado aplicar recursos em um sistema público de TV
quando o país tem tantas carências? O professor Gabriel Priolli (2006) provoca ao debater
sobre tais questões, mas as responde enfaticamente, corroborando com a perspectiva de
Orlando Senna: A TV Pública é importante. Mais que isso, ela é indispensável porque pode
desempenhar um papel decisivo para o aperfeiçoamento da democracia brasileira.
A televisão pública é parte de uma história de centralidade dos interesses comerciais
na comunicação e na cultura do país, que refletem políticas públicas marcadas por
ausências, autoritarismos e instabilidades, tradições que se repetem desde a ocupação de
Portugal em território nacional como desbrava Rubim (2012). As ausências na comunicação
no Brasil são assentadas no período colonial e no obscurantismo da monarquia portuguesa e
seus controles rigorosos como a “proibição da instalação de imprensas; censura de livros e
jornais vindos de fora; e a interdição ao desenvolvimento da educação, em especial as
universidades” (RUBIM, 2012, p. 30).
Oficialmente, as inaugurações que podem ser consideradas iniciais das políticas
públicas de comunicação no Brasil, surgiram somente nas primeiras décadas do século XX e
se deram de maneira autoritária, com destaque para o Departamento de Informação e
Propaganda (DIP), que durante o Estado Novo inicia uma atuação sistemática do estado
sobre a cultura (RUBIM, 2012). Houve uma série de políticas com alta intervenção estatal,
que geraram oportunidade para ampliar as redes de cultura e comunicação, e ao mesmo
tempo descontinuaram projetos essenciais para a democracia do país. Um rápido exercício
de olhar para as ausências originárias permite compreender também parte da ausência da TV
pública no contexto nacional ainda hoje.
25
Conta-se que no Brasil a TV nasceu com o sonho do empresário Francisco de Assis
Chateaubriand. À época, já dono da maior rede de comunicação do país, o Condomínio
Acionário dos Diários e Emissoras Associados, com rádios, revistas e jornais impressos, ele
descobre a potência TV, quando em visita aos EUA. Livros e pesquisas da área repetem a
imagem da ação pioneira do homem que, em 1950, entusiasmado com a criação de um
espaço para dar asas à fantasia mais caprichosa de juntar os grupos humanos mais afastados
– conforme disse durante o evento de inauguração da TV Tupi, contrabandeou duzentos
aparelhos de tevê para o que seria a primeira transmissão televisiva do país.
Também durante a cerimônia de inauguração, Chateaubriand reforçou em seu
discurso que o empreendimento da televisão no Brasil, em primeiro lugar, se deve a quatro
organizações “que se uniram aos Diários Associados para estudá-lo e possibilitá-lo. Foram a
Companhia Antarctica Paulista, a Sul América de Seguros de Vida, o Moinho Santista e a
Organização Francisco Pignatari” 9
. Estava dada a largada, pois, ao movimento da TV
brasileira na direção do monopólio dos interesses comerciais, e inaugurado o alheamento da
sociedade quanto ao modelo público.
Foram doze anos sem regulamentação específica, uma vez que sua implantação teve
base nas leis de radiodifusão para o rádio, já considerado um veículo de massa na época.
Nos primeiros anos de transmissão, regular a TV não esteve entre as prioridades do Estado,
e os empresários, capitaneados por Chateaubriand, já se organizavam para intervir no que
viria a ser o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), em 1962. Exemplo disso foi a
criação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) 10
, também em
1962, que nasce para negociar a instituição do CTB junto ao governo João Goulart. A Abert
alcança importantes conquistas para o setor privado, derrubando 52 vetos do então
presidente ao CTB, contra ao que chamavam tendência estatizante do Executivo Nacional.
Em entrevista a Pieranti (2007), o historiador Oswald Munteal afirma que a
derrubada dos vetos revela uma coligação simbiótica entre o poder público e privado,
constituindo um “obstáculo ao executivo, uma vez que qualquer decisão governamental que
prejudicasse o empresariado da radiodifusão seria repudiada pelo legislativo” (PIERANTI,
2007, p.1). Durante a década de 1960, não diferente dos dias atuais, já havia uma forte
9 Discurso de Assis Chateaubriand na inauguração da TV Tupi em 18 de setembro de 1950. Disponível em
https://jornalismounisuam.wordpress.com/2009/09/18/aniversario-da-tv-no-brasil/. Acesso em: abril 2018. 10
Fundada em 27 de novembro de 1962, a ABERT nasceu da luta contra os vetos do presidente João Goulart ao
Código Brasileiro de Telecomunicações, aprovado pelo Congresso Nacional, em 1962.
26
presença dos empresários de radiodifusão no Congresso Nacional e essa influência
sobrepujou os interesses públicos prioritários à regulamentação dos meios de comunicação
brasileiros.
A TV pública, por sua vez, demorou ainda mais para ser inserida formalmente na
radiodifusão nacional, o que, quando aconteceu, se deu por meio de medidas centralizadoras
e alinhadas com interesses do Regime Militar instalado entre os anos de 1964-1985. As
políticas públicas de cultura e comunicação estadistas foram formuladas e executadas sob o
monopólio dos atores estatais (SECCHI, 2014), considerando a comunicação como parte do
mercado da política nacional.
Nesse período, os militares estabelecem um complexo jogo entre o Estado e as
emissoras comerciais, dando lugar a censuras, a proteção do mercado nacional e ao uso da
televisão como estratégia para modernizar a sociedade. Havia também um projeto de
integração dentro do plano nacional de alfabetização e educação básica, com uso do que
chamavam meios de comunicação de massa, e aqui os meios educativos foram encaixados.
A primeira referência na legislação ligada ao surgimento da TV Pública no Brasil
acontece em 1967, no centro do poder ditatorial, durante o governo do General Humberto de
Alencar Castelo Branco (1964-1967). Trata-se do Decreto-lei 236 que modifica e
complementa o CTB, e no que no seu artigo 13 determina: a televisão educativa se destinará
à divulgação de programas educacionais, mediante transmissão de aulas, conferências,
palestras e debates. No artigo seguinte, enfatiza:
Art. 14. Somente poderão executar serviço de televisão educativa:
a. A União;
b. Os Estados, Territórios e Municípios;
c. As Universidades Brasileiras;
d. As Fundações constituídas no Brasil, cujos Estatutos não contrariem o
Código Brasileiro de Telecomunicações (BRASIL, 1967).
Era objetivo das TVs educativas prestar à população um serviço de educação básica
que a TV comercial não oferecia. Com a missão de alfabetizar e formar os trabalhadores para
o crescente desenvolvimento industrial do país, ela era mais um mecanismo pedagógico, um
grande projeto de teleducação, replicando na tela as dinâmicas da sala de aula tradicional. O
primeiro público que se desejava atingir eram os 15 milhões de jovens e adultos sem
escolarização, criando telecursos que passaram a emitir diplomas (OTONDO, 2002).
27
O aspecto de maior impacto na formalização das TVs educativas estava, no entanto,
em seu parágrafo único, que determina que a TV educativa não tem caráter comercial e veda
a veiculação de propaganda e patrocínios de quaisquer tipos. Assim, as restrições para
financiamento se tornaram um dos maiores problemas das TVs educativas, de tal modo que
o país, ao regulá-las, criou também fortes obstáculos para o seu pleno funcionamento.
Foi posta uma divisão quanto ao serviço de TV comercial e o educativo – o não
comercial. Embora sem referência direta à TV Pública, suas prerrogativas quanto às formas de
gestão, programação e financiamento foram embrionárias para o que depois viria a ser
regulado sob essa denominação. Para Rey Beltrán (2002, p. 92), não se concebeu uma TV que
“recolhesse as transformações no conhecimento ou nas estéticas que as sociedades
experimentavam, aumentou-se ainda mais a lacuna entre conhecimento e entretenimento,
entre aprendizagem em sala de aula e na vida”.
Ao contrário do que aconteceu em muitos países europeus, a exemplo da Inglaterra e o
modelo público da BBC, no Brasil, a TV educativa é articulada como complemento marginal
ao sistema comercial. Só depois de asseguradas outorgas de canais para grandes empresários e
políticos, num modelo de regulação e fiscalização centralizador, em 1968, dezoito anos depois
da TV Tupi Difusora SP, vai ao ar a TV Universitária de Pernambuco. Entre 1968 e 1977
outras sete Educativas foram implantadas11
, mas nenhuma delas conseguiu se consolidar
proporcionalmente às TVs comerciais do mesmo período.
Teve início assim a série de tentativas de ocupação do espaço de radiodifusão pela TV
pública. Marcas profundas de instabilidade foram deixadas pelas políticas públicas de
comunicação – e de suas ausências – desde a instalação da TV educativa. Entre portarias, leis
e revogações, assistiu-se ao distinto nascimento da TV Cultura de São Paulo, que começa
como parte dos Diários Associados e depois passa a ser gerida pela Fundação Padre Anchieta;
ao nascimento e fim da Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa, a FCBTV; do Programa
Nacional de Teleducação, PRONTEL; e da Empresa Brasileira de Comunicação, a Radiobrás.
A pesquisadora Ângela Diniz (2014) discute, em sua tese de doutorado, uma história
da TV pública brasileira, e questiona: “A TV pública é uma ideia fora do lugar?”, a partir da
conhecida indagação de Roberto Schwarz (2000) sobre a disparidade entre as ideias adotadas
11
TVE do Rio de Janeiro, TVE do Amazonas, a TVE do Ceará, TVE do Espírito Santo, a TVE do Maranhão, a
TVE do Rio Grande do Norte e a TVE do Rio Grande do Sul.
28
no país, as instituições e a realidade. Diniz assim o faz por criticar os embates das ideias
liberais da elite brasileira quanto à inclusão da comunicação pública no debate nacional.
Mesmo com a redemocratização do país, iniciada com a eleição indireta de José
Sarney em 1985, o campo das políticas públicas para radiodifusão esteve comprometido. As
concessões de rádio e TV, por exemplo, foram amplamente utilizadas pelo então presidente ao
negociar acordos para nova Constituição, quando concedeu, somente entre os anos de 1985 e
1988, mais de 1028 outorgas a empresários e políticos (JAMBEIRO, 2000). Entre os
beneficiados com essas outorgas estavam 91 membros da Constituinte, o ministro Antônio
Carlos Magalhães e o próprio Sarney e sua família, com mais de 39 concessões de rádio e de
TV no Maranhão (DINIZ, 2014).
Somente com a Constituição de 1988 apareceu na legislação brasileira o termo
radiodifusão pública, e mais alguns anos foram necessários para que ela fosse regulamentada,
como será possível verificar nas seções que seguem. De tal modo, a maior parte da
experiência de TV pública brasileira, em sua forma mais planejada, pode ser considerado
ainda novo, um campo vasto a ser explorado.
Essa conjuntura de instabilidades, ausências e autoritarismos para a radiodifusão e
especialmente para seu campo público, se agrava também porque a maioria das pessoas, ainda
hoje, não compreende que a informação é, assim como outros serviços fundamentais, um
direito do cidadão, e que a TV pública tem relevância para o exercício da democracia, sendo
um importante instrumento para a sua materialização. E não só na perspectiva da publicidade
daquilo que é público, uma vez que há obrigações do Estado na oferta de informações à
população, mas, sobretudo, na prática da cidadania midiática, em que a população acessa e
participa diretamente do espaço comunicacional.
Discutir a TV pública se coloca, portanto, como uma ação cada vez mais urgente,
com vistas a ampliar os horizontes sobre as perspectivas para o seu funcionamento e
evidenciar seu aspecto social. Como uma bússola para a navegação que seguirá, essa seção se
dirige a apresentar elementos conceituais que podem caracterizar uma TV pública, além de
apresentar o contexto desse modelo de TV no Brasil, com ênfase nas políticas públicas
orientadas pela digitalização do sistema televisivo.
29
2.1 TV PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DIRETO PARA DEMOCRACIA
A TV Pública promove a formação crítica do indivíduo para o exercício da
cidadania e da democracia, e deve ser a expressão maior das diversidades de
gênero, étnico-racial e social brasileiras, promovendo diálogo entre as
múltiplas identidades do país (Carta de Brasília, 2007). 12
A experiência do Canal da Cidadania da cidade de Salvador parece apontar uma nova
perspectiva para o campo público da comunicação no Brasil, entendendo campo na acepção
de Pierre Bourdieu (1983), como um conjunto de microcampos relativamente autônomos e
irredutíveis às lógicas que regem outros campos. Esse conceito, de acordo com o autor,
permite melhor compreender as relações dos sujeitos com a sociedade, dentro do mundo
social e seus espaços, evidenciando aspectos conflituosos das variadas esferas de poder.
As diferentes definições para TV Pública são frutos de processos históricos de disputas
simbólicas, “se configurando como qualquer outro campo, com suas relações de força e
monopólios, suas lutas, estratégias, interesses e lucros” (BOURDIEU, 1983, p. 123). Como
conjunto de elementos que variam de acordo com condições culturais, socioeconômicas e
políticas, o conceito de público para comunicação se constrói justamente nas relações com o
campo, não havendo, portanto, uma definição consensual que forneça parâmetros exatos para
classificar uma TV como tal.
Ao estudar distintas realidades de comunicação pública em diversos países, tais como
Alemanha, Austrália, Colômbia e Venezuela, o Coletivo Intervozes (2009) relata que a
riqueza de experiências é acompanhada também pela diversidade de definições e abordagens.
Destaca ainda que, apesar de ser um tema da década de 20 do século passado, não há um lugar
consolidado sobre o que define a natureza dos sistemas públicos.
O mundo começou a discutir radiodifusão pública a partir da Europa Ocidental, no
começo do século XX, com maior ênfase após a segunda grande guerra (1940-1945). Desse
período, dois principais conceitos continuam muito aplicados por estudiosos do tema: os de
Televisão de Serviço Público e Televisão de Interesse Público, que encontram referências
paradigmáticas nos distintos modelos da British Broadcasting Corporation (BBC) e da
estadunidense Public Broadcasting Service (PBS), respectivamente. Para o britânico, a
12
A Carta de Brasília é um Manifesto pela TV Pública independente e democrática, escrito por representantes
das emissoras Públicas, Educativas, Culturais, Universitárias, Legislativas e Comunitárias, ativistas da sociedade
civil e militantes do movimento social, profissionais da cultura, cineastas, produtores independentes,
comunicadores, acadêmicos e telespectadores, reunidos em Brasília, na ocasião do 1º Fórum Nacional de TVs
Públicas, em 2006.
30
televisão pública deve obrigatoriamente garantir a comunicação como direito ao cidadão e
não pode ser financiada por publicidade comercial, enquanto o modelo estadunidense se
refere à concessão do espaço para exploração por agentes nacionais que podem agir
conjuntamente com o setor privado.
“O rádio e a televisão são veículos da produção cultural de um povo ou de uma nação
e para exercerem essa tarefa, não podem ser contaminados por interferências políticas ou
comerciais” (LEAL FILHO, 1997, p.17). Foi com base neste apelo ideológico purista que
tiveram origem os modelos de radiodifusão na Europa Ocidental, como a TV pública
britânica. O sistema público deveria ser orientado para atender a uma necessidade da
população, sendo parte de um organismo cultural tal qual as universidades e as bibliotecas,
além de uma forma de controlar e garantir o mercado de bens técnicos e profissionais.
A BBC se consolida na perspectiva de democratização cultural, em um cenário
mundial no qual as mídias eram consideradas perigosas e deveriam, portanto, estar sob a
gestão do poder do público (aqui pensado como representante do povo). Fazia-se
imprescindível então que, para cumprir sua missão cultural, a TV britânica não só não
recebesse financiamento de empresas comerciais, como também fosse mantida pela própria
população, ou seja, pelo público.
A experiência da BBC continua a ser tomada como referência principalmente pela
forma estratégica como se mantem no cardápio televisivo da sua população. A emissora
continua forte como parte do patrimônio cultural e político do país desde quando criada –
como poderoso instrumento para distribuir o conhecimento –, passando pela crise do
duopólio, em 1954, até a sua reestruturação a partir das tecnologias digitais, que culmina na
Royal Charter (Carta Real) em 2006 e reconfigura a gestão e estrutura da BBC.
Também no contexto internacional, o tema da televisão pública vira pauta para o setor
da radiodifusão pública da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), que aponta as políticas públicas de comunicação como prioritárias para o
desenvolvimento de uma sociedade pluralista e mais justa. Na tentativa de formalizar um
conceito, tratou do Serviço Público de Radiodifusão (SPR) como aquele realizado, financiado
e controlado pelo público e para o público, não sendo comercial nem estatal. Deve ser o
sistema pelo qual o cidadão recebe educação, entretenimento, cultura e informação de
maneira diversa, com independência editorial, transparência e sendo financiada de maneira
adequada (UNESCO, 2000).
31
O documento acrescenta que o SPR parte da premissa de que o mercado não é capaz
de atender a todas as necessidades de radiodifusão de um país, e que esse serviço deve estar
protegido contra ingerências comerciais e políticas – com relação a sua governança,
orçamento e processo decisório editorial.
Nem controlada pelo mercado e nem pelo Estado, a razão de ser da
radiodifusão pública é o serviço público. Ela fala a todos como cidadãos.
Radiodifusores públicos encorajam o acesso e a participação na vida pública.
Eles desenvolvem o conhecimento, ampliam horizontes e permitem às
pessoas entender melhor elas próprias por meio de um melhor entendimento
do mundo e dos outros (UNESCO, 2000, p. 4).
As Nações Unidas declararam o dia 21 de novembro como o dia Mundial da
Televisão, colocando esse meio na agenda prioritária da instituição como base para o
desenvolvimento, a paz e a democracia. Junto com as mulheres, o respeito à diversidade
étnica e o meio ambiente, a UNESCO considera a TV pública com um dos temas necessários
para a construção de uma sociedade plural e justa (RICÓN, 2002). Esses e outros organismos
internacionais passam a reivindicar a televisão como espaço social decisivo, chamando
atenção para o planejamento estratégico dos governos ao redor do mundo.
Ao considerar as características latino-americanas, o pesquisador Omar Rincón (2002)
propõe uma TV pública para os cidadãos e a define como a “outra televisão”, aquela que
privilegia o caráter público, supera a visão comercial e ganha densidade como cidadã. Trata-
se de uma TV que nos relata como nos tornamos um coletivo social. Junto com Jesús Martín-
Barbero e Rey Beltrán, Rincón apresenta também uma declaração de princípios para uma TV
pública, cultural e de qualidade, tendo como base o que imaginam dever constituí-la. Ao todo
são dez itens descritos no documento, dos quais destacamos:
I – A televisão Pública interpela o cidadão, enquanto que a TV comercial
fala ao consumidor;
III- A televisão pública deve promover o universal, que não passa pelo
comercial;
VII – A televisão pública deve ampliar as possibilidades simbólicas de
representação, de reconhecimento e de visibilidade para a construção da
cidadania, na sociedade civil e na democracia;
X – A televisão pública deve se programar e se produzir por meio de um
chamado público, através de processos de alocação transparentes e
participativos, coerentes com as políticas culturais de comunicação e
educação de cada país, e baseados no mérito dos realizadores e produtores
(RINCÓN, 2002, p. 30-31).
32
Pesquisas brasileiras se somam à busca de caracterização da TV pública, e a partir dos
princípios da democracia e da cidadania, além de ideais sobre espaço para discursos
experimentais e visibilidade dos atores sociais (TORVES, 2007), muitas delas convergem
para a base do financiamento, da gestão e da fiscalização. Para eles, essa é uma TV que possui
autonomia política e financeira, sem as quais se torna impossível pensar um sistema realmente
público de radiodifusão (LEAL FILHO, 1997).
As emissoras públicas – escreve Eugênio Bucci (2010) – foram criadas para proteger a
vitalidade dos debates e das manifestações culturais que a sociedade deve pautar produzir e
entabular em seu domínio civil próprio, independentemente do Estado e também do mercado.
Para o autor, a programação também é elemento de afluência e deve ser, sobretudo, autônoma
e uma alternativa ao modelo hegemônico. Além disso, o conteúdo precisa ser informativo,
educativo, artístico, cultural e científico, mas não pode estar subordinado aos interesses de
patrocinadores, tampouco ser subtraído de sua liberdade em função de dependência do estado
ou qualquer ente do poder público.
Com a promulgação da Constituição de 1988, aspectos legais e institucionais também
elaboram novos elementos para a TV Pública, embora limitados. Na Carta Magna se destaca o
capítulo V, todo dedicado à Comunicação Social, que reúne artigos sobre os princípios para
programação e produção das emissoras de rádio e TV (art.221), sobre a proibição de
oligopólios e monopólios nos meios de comunicação (art.220) e com maior destaque, trata
pela primeira vez sobre a complementariedade dos sistemas público, estatal e privado
(art.223). Entretanto, embora presente na Constituição, até hoje não há nenhuma legislação
que distinga ou regule tais sistemas, criando um limbo, como nomeia Eugênio Bucci (2008) e
abrindo margem para outro debate, agora sobre a dicotomia “público x estatal”.
O problema prossegue com a ausência de lei complementar sobre a matéria e assim,
poucos estudos trazem uma diferenciação clara dos sistemas. Ante esse vazio legal, o senso
comum no meio acadêmico – e também político – acabou por consagrar que a “comunicação
estatal é aquela que defende o ponto de vista do governo e a pública é aquela que dá voz à
sociedade. Não é nada disso, mas é o que prevalece” (BUCCI, 2008, p. 259). De tal modo, a
TV estatal brasileira é executada pela perspectiva do interesse partidário, o que revela uma
cultura não só no âmbito televisivo, mas de parte das práticas políticas nacionais.
Murilo Ramos (2012) amplia o debate e chama atenção para a falsa generosidade do
dispositivo de complementariedade entre sistemas proposto pela lei. Para ele, a constituição
33
brasileira cria enorme anomalia normativa e gera uma ruptura sobre o público e o estatal, na
qual há “um público normativamente indefinido, mais próximo do privado que do estatal, e
um estatal que, ao se confundir com governamental, perdeu a sua indissociável dimensão
republicana” (RAMOS, 2012, p. 4). Defende também que o artigo 223 é uma armadilha
patrocinada pelos radiodifusores comerciais, que com suas interferências nos debates legais,
plantaram a inverdade de que existe um sistema privado. O que há é a possibilidade de um
agente privado prestar um serviço público, ainda que com finalidades comerciais.
Em um país onde a maioria das redes de TV é orientada por particulares, e o Estado
tem uma relação controladora com a gestão da autonomia do sistema televisivo, tal
diferenciação tem pesos e medidas diferentes. É importante distinguir para evidenciar que o
estado não deve interferir na agenda de pautas e na gestão daquela que seja uma tevê pública,
mesmo que tenha responsabilidade de lhe fornecer condições mínimas para existir. E à estatal
caberia prestação de contas e transparência com a informação pública, ao contrário da cultura
imposta hoje em que os governos (municipal, estadual e federal) pagam por “30 segundos” de
propaganda às TVs comerciais. E mesmo uma televisão estatal deve ser autônoma, não
subjugada a interesses de nenhuma gestão ou partido político.
Para dificultar ainda mais a identificação quanto ao que é público, estatal e privado na
radiodifusão do Brasil, as TVs comerciais são também de caráter público, uma vez que a
concessão ou permissão para o serviço de radiodifusão no Brasil são públicas – concedidas,
fiscalizadas e normatizadas, portanto, pela União. O caráter público da radiodifusão, como
bem propõe Rey Beltrán (2002), significa que, embora desempenhem papeis diferentes, tanto
as TVs comerciais como as não-comerciais são socialmente relevantes, e cumprem funções
essenciais na dinâmica da cultura de um povo.
Não se trata de dissolver quaisquer diferenças entre sistemas públicos e o modelo
comercial já existente e consolidado no Brasil, mas de reconhecer a raiz pública do que
aparenta ser uma empresa exclusivamente privada, o que colabora para um processo de
melhor fiscalização para descentralizar os meios de comunicação.
E não só a diferenciação dos sistemas complementares compromete o fortalecimento
do campo público da radiodifusão, mas a própria maneira como as políticas públicas
decorrem, criando o que pode ser chamado de uma grande radioconfusão no país. “O
resultado aí está: a confusão reinante na área da TV educativa, também chamada de TV
cultural, também chamada de TV pública, também chamada de TV estatal, também chamada
34
de TV universitária, também chamada de TV comunitária”, ironiza o jornalista Alexandre
Fradkin (2007), em reportagem para o portal Observatório da Imprensa.
Em 1995, nascem os canais básicos de utilização gratuita, instituídos pela Lei do
Cabo13
para obrigar que as operadoras de TV a Cabo disponibilizassem gratuitamente em seus
pacotes de serviço canais de educação, cultura e comunitário – canais de interesse público.
Prevê-se também a existência de canais destinados ao Senado Federal, à Câmara dos
Deputados, ao Supremo Tribunal Federal, às TVs universitárias, além das Educativas e
Culturais, dentro da oferta básica da supracitada lei, sem que a nomenclatura de TV Pública
seja usada para denominação de nenhuma delas, campo onde convergem. A atualização da
Lei do Cabo se deu em 2011, com a lei da comunicação audiovisual de acesso condicionado,
que expandiu essa obrigação para todos os canais de TV por assinatura, mas não diminuiu a
distância entre as tevês do campo público.
Na dimensão do Canal da Cidadania e da TV Kirimurê, as discussões sobre a
complementariedade entre os sistemas e os modelos de TVs públicas são retomadas. Ao
propor a reunião, em um mesmo canal, de uma faixa para o estado, uma para a prefeitura e
outras duas para a sociedade civil organizada (dedicadas à transmissão de conteúdo produzido
pela população local), o projeto aponta para uma ação conjunta das TVs do campo público,
que devem ter como missão serem protagonistas nos processos de inserção social.
Mesmo nesse contexto, no entanto, a diferenciação entre as tipologias da TV do
campo público gera instabilidades. Por sua proximidade com a sociedade civil, a TV Kirimurê
em muitos aspectos é comparada a uma tevê comunitária, antes de pensada como pública. A
proposta do Canal da Cidadania, no entanto, não impõe que seja esse o modelo de apropriação
da faixa. Ao contrário, faz uso do termo cidadania como adjetivo definidor, aproximando-o do
caráter público de maneira ampliada. É certo ponderar o conceito comunitário que prevê uma
TV como “canal de expressão do povo, que respeite a diversidade e esteja a serviço de
interesse público” (PERUZZO, 2007, p. 52), e que está alinhado à proposta do Canal da
Cidadania, mas não deve ser restritivo.
Destaque-se ainda uma nova perspectiva trazida pelo Canal da Cidadania: pela
primeira vez na história da televisão brasileira, a sociedade civil organizada tem permissão
para ocupar uma faixa de programação na TV terrestre aberta. Não mais apenas nas TVs por
assinatura, ou a cabo, como propõe a Lei do acesso condicionado, nem somente na TV via
13
Lei nº 8.977, de 6 de janeiro de 1995.
35
web, importante e indispensável instrumento de democratização do espaço audiovisual. Mas
tudo isso agora junto, em um canal aberto e gratuito, disponível para todas as cidades
brasileiras, com um sinal sem interferências e com imagem e som de boa qualidade.
Assim, o caráter público a ser analisado no caso da Kirimurê depende de ter
consolidada uma relação entre o cidadão e o seu direito à comunicação, numa perspectiva de
cidadania como afirmação de pertencimento. Devem ser consideradas as características que
compõe o a identidade individual, coletiva e de grupo na sociedade, “afirmadas no âmbito dos
direitos individuais e coletivos sociais, de nacionalidade, políticos e por fim, das garantias
constitucionais no marco da Constituição de 1988” (CABRAL FILHO, 2011, p.6). Sendo
uma TV que ganha densidade como cidadã e supera ausências históricas.
Posto a já anunciada ausência de uma definição consensual ou mesmo um marco legal
amplo e aplicável a todas as TVs públicas do Brasil, e também a radioconfusão instituída no
país, para fins metodológicos desta pesquisa três elementos, que são referenciados por
organismos nacionais e internacionais, foram tomados como centrais para analisar a TVK
como proposta de TV pública: a forma de financiamento (que deve ser captado pelo público),
a gestão do canal (que deve ser controlada pelo público) e sua programação (que deve ser
feita pelo público e para o público), de acordo também com os debates estabelecidos em
Rincón (2002) e pela UNESCO (2000).
Importantes frentes tomam por base o tripé financiamento, programação e gestão para
distinguir a TV pública dos demais campos televisivos. A própria legislação brasileira
enfatiza o financiamento como base jurídica na diferença entre uma tevê comercial (que pode
receber patrocínio) e outra pública e estatal (proibida de receber publicidade comercial), e
esclarece sobre as obrigações educativas do conteúdo e a participação direta do estado na
gestão da radiodifusão pública.
Considerado documento base para discutir o tema durante o Fórum Nacional de TVs
Públicas no Brasil, em 2006, o diagnóstico do campo público da televisão, por sua vez, elenca
questões sobre as formas de financiamento, programação e modelos de gestão para organizar
as informações de cada segmento da radiodifusão pública nacional. Em 2009, ao buscar
referências internacionais para colaborar com a construção do modelo brasileiro de TV
pública, o Coletivo Intervozes analisou a experiência objetiva dos sistemas públicos de doze
países, e observou em todos eles os modelos de gestão e participação, de financiamento e a
programação, além de outros aspectos.
36
Igualmente reforçam os elementos escolhidos para análise, o documento internacional
Model Public Service Broadcasting Low14
, chamada Lei Modelo, proposto por Werner
Rumphorst (2007) e traduzido por Renata Rocha (2009), que se refere ao modelo ideal de
Serviço Público de Radiodifusão (SPR) para o mundo. O documento discute a natureza do
SPR e sua relação com uma sociedade democrática, considerando a televisão pública como
fator de coesão social e de identidade nacional, além de ponderar a sua importância diante de
um mundo digital com ilimitadas possibilidades de distribuir conteúdo audiovisual.
Ao analisar os três elementos, esta dissertação procura identificar a televisão que
interpela o público, incluindo o consumidor e o cidadão, distinguindo-os sem oposições
maniqueístas. Busca-se a televisão pública que é “um decisivo lugar de inscrição das novas
cidadanias, onde a emancipação sociocultural adquire uma face contemporânea” (MARTÍN-
BARBERO, 2002, p.57), e que serve a toda população de maneira direta e democrática, como
defende Rey Beltrán (2002), mediada pelo próprio público, gerando espaços que debatam
interesses comuns e onde as diferenças dos diversos setores sociais sejam colocadas.
Dados sobre a regulamentação (traduzidas a partir de políticas públicas) e o acesso à
tevê no Brasil são também essenciais na análise da TVK, e por sua inscrição nas tecnologias
digitais, para entender a Kirimurê é importante olhar para os novos modos de fazer e
consumir televisão no Brasil e no mundo. A cultura da convergência chega forte na promessa
da TVK, que apresenta entre os seus objetivos ampliar a interface entre o Estado e o Cidadão,
dar mais transparência à gestão pública, estimular a produção de conteúdo audiovisual local, e
oferecer uma plataforma interativa a sociedade, pois a tecnologia digital permite que o
espectador interaja em tempo real com os responsáveis pela estação geradora.
Quanto à era da TV digital, as descrições dos acontecimentos históricos no Brasil, com
base em narrativas críticas e amplos debates trazidos por César Bolaño e Valério Brittos no
livro A Televisão brasileira na era digital (2007b), colaboram diretamente para esclarecer
aspectos da regulamentação e políticas públicas da TV digital. Ao tempo em que auxiliam
esta dissertação, que é quase uma história imediata, a compreender o que está acontecendo e o
que pode acontecer na TV pública digital brasileira.
A visão ampliada de Henry Jenkins (2009) sobre as convergências é igualmente
importante para entender a nova era da TV pública, uma vez que a TV digital é mais que um
14
Documento elaborado pelo ex-Diretor do Departamento Legal da European Broadcasting Union, Werner
Rumphorst, e produzido pela International Telecommunication Union (ITU)/ Telecommunication Development
Bureau (BDT) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
37
processo técnico, é também social, cultural e mercadológico e inclui um conjunto de novas
práticas culturais que muitos dos cidadãos ainda não compreendem por completo. Ao que
chama convergências, o autor fala de fronteiras imprecisas entre os meios de comunicação, e
da aproximação entre consumidores e meios de produzir e difundir conteúdo. Destaca ainda
que a convergência é um processo e não um fim, alterando a lógica nas relações entre
tecnologias, mercados, indústrias, gêneros e públicos.
Além dos novos meios para operar a televisão no espectro digital, a TVK se aproxima
da cultura da convergência por sua promessa para que os consumidores/cidadãos não apenas
aceitem as convergências, mas na verdade, conduzam “grande parte do processo, se
apropriando do potencial democrático encontrado nas tendências culturais contemporâneas”
(JENKINS, 2009, p. 329). Ao propor que o cidadão participe diretamente das decisões sobre
um canal aberto de TV, expandido em todas as suas plataformas convergentes, o projeto da
TVK abre margem para debates sobre essa possível democratização.
Sendo parte do projeto de digitalização e autorização para multiprogramar alcançada
pela TV Educativa da Bahia, vale dizer que a Kirimurê pode ser lida como a instância mais
democrática já realizada no projeto de TV pública baiana. A história local muito se assemelha
a nacional, embora tardia. Na Bahia, o primeiro canal de televisão, a TV Itapoan, foi trazido
por Assis Chateaubriand e começou a operar em novembro de 1960. A promessa era de que a
própria população constituiria o patrimônio da sua televisão.
No primeiro ano, a limitação técnica implicada na programação ao vivo abriu espaço
para um período no qual, de fato, o conteúdo da emissora era predominantemente local, com
valorização da mão de obra nativa e de um mercado emergente no estado (ROCHA, 2009).
Mas com o videoteipe que chega em 1961, a programação nacional passou a ser replicada e o
condicionamento ao capital de empresas fica evidente, a exemplo dos telejornais Repórter
Esso e Telejornal, financiados, respectivamente, pela empresa norte-americana de petróleo, a
ESSO, e pela brasileira Petrobras. Ao telespectador, por longo período, foram reservados
limitado número de aparelhos e programação pouco diversa.
Depois da TV Itapoan, foram inauguradas a TV Aratu, a TV Bandeirantes e a TV
Bahia, todas comerciais, até que, em 1985, nasce a TV Educativa da Bahia, uma representante
do sistema público. A TVE inova quanto às abordagens culturais na programação
radiodifusora da Bahia, e ao contrário das representações muitas vezes distorcidas sobre o
estado, vistas na TV comercial, com a chegada da TV Educativa as culturas locais receberam
38
mais atenção. A TVE, sob uma perspectiva mais abrangente, deu voz a muitas expressões e
atores sociais antes silenciados. Entretanto, essa TV sempre esteve diretamente subordinada
ao estado, o que implica em recortes marcados por interesses políticos e compromete a ampla
demonstração de posicionamento de determinados grupos.
O sistema de TV Digital, no entanto, cria oportunidade para novos espaços públicos
para radiodifusão, com a participação direta de produtores independentes e de toda a
sociedade civil. Para melhor aventar como chegamos à outorga para operar a TV Kirimurê,
faz-se imprescindível reconhecer o conjunto de ações que o fizeram possível, a começar pela
discussão da TV pública inaugurada em 2003 no país.
2.2 A TELEVISÃO COMO POLÍTICA PÚBLICA DE CULTURA
As políticas públicas para a cultura devem ser encaradas como parte do
projeto geral de construção de uma nova hegemonia em nosso País. Como
parte do projeto geral de construção de uma nação realmente democrática,
plural e tolerante. Como parte e essência de um projeto consistente e criativo
de radicalidade social. Como parte e essência da construção de um Brasil de
todos. (Gilberto Gil, 2003).
Importante avanço para o campo público da TV se deu a partir das políticas de
comunicação e cultura propostas por Gilberto Gil, quando esteve à frente do Ministério da
Cultura (2003-2008), durante a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ao propor o
que chamou de “do-in antropológico” em seu famoso discurso de posse, Gil (2003) incluiu a
televisão pública entre pontos vitais a serem massageados, dando início ao processo que
culminaria no surgimento da primeira emissora pública a existir juridicamente no Brasil, a TV
Brasil, e compondo um novo quadro na soma de melhorias, mas também de instabilidades da
radiodifusão pública.
No período, teve relevante participação a Secretaria do Audiovisual (SAV), por sua
missão de reestruturar e desenvolver o audiovisual no país, visando principalmente a
diversidade e a democracia. Com o cineasta Orlando Senna como secretário (2003-2007),
tiveram destaque o investimento na democratização da produção e difusão, e o pensamento do
audiovisual em seu conjunto, considerando todos os processos da cadeia produtiva – criação,
produção, distribuição, preservação e formação – e finalmente incluindo a televisão como
parte desse projeto (MOREIRA et al, 2010). Além disso, o entendimento quanto às políticas
39
públicas se amplia com uma aproximação da comunicação e cultura, na busca por abandonar
os padrões unilaterais positivados pelo estado brasileiro durante décadas.
Sobre a centralidade da cultura desde a revolução cultural no século XX e sua relação
estreita com a comunicação, Hall (1997) discute que os meios para produzir, circular e trocar
bens culturais se expandem nesse mesmo momento em que a cultura assume função de
importância sem igual na organização da sociedade e de seus processos de desenvolvimento.
E acrescenta que a mídia é simultaneamente parte da infraestrutura material das sociedades e
um dos principais meios para fazer circular suas ideias e imagens.
Sendo a tevê o principal veículo nesse processo de circulação de bens simbólicos entre
os campos da comunicação e da cultura, ao propor políticas integradas para o audiovisual
brasileiro, o MinC revela sua proposta de pensar a função cultural das comunicações. De
forma que, diante de uma sociedade mundial que passava por intensas transformações ante a
globalização e as tecnologias digitais, o Ministério assume também o compromisso de
fomentar a produção e a formação no campo do audiovisual, preservar a história fílmica do
país, além de abrir espaços para exibir o seu próprio conteúdo (MOREIRA et al, 2010).
Incluída desde o programa de governo apresentado por Luiz Inácio Lula da Silva
quando candidato a presidência em 200215
, a televisão pública é vista na agenda nacional
como estratégica, e frente ao debate da democratização da mídia é tomada como fundamental.
Seu percurso, no entanto, foi fortemente refreado pelos interesses dos radiodifusores
comerciais. Enquanto se discutia o papel do Estado nas redes de financiamento e gestão do
audiovisual, através de ações como o Programa Brasileiro de Cinema e Audiovisual: o Brasil
de todas as telas, as políticas para a TV pública ficaram estagnadas até 2006.
O reconhecido DOCTV – Programa de Fomento a Produção Audiovisual e
Teledifusão do Documentário Brasileiro (2003) – ratifica a disparidade no desenvolvimento
prático de diferentes frentes de atuação da SAV. Descrito como “um projeto que inicia um
novo tempo para o audiovisual independente, ao incentivar a produção de documentários a
serem veiculados no campo público da televisão” (CAETANO, 2011, p. 13), o DOCTV
realiza bem a política de fomento à produção16
, mas não propõe ações direcionadas ao
fortalecimento da televisão pública. Embora ela apareça como parte central no processo de
15
Propostas de políticas públicas de cultura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro mandato
disponíveis no documento “A Imaginação a Serviço do Brasil” (2002). 16
No total, foram cerca 170 filmes brasileiros produzidos e mais de três mil horas de exibição, além de 27
documentários elaborados em parceria com países ibero-americanos, o que atingiu mais de 20 milhões de
telespectadores. Mais sobre o histórico do DOCTV acessar o documento DOCTV Operação em Rede de 2011.
40
difusão e distribuição dos documentários, não se encaminha, no entanto, debates sobre sua
necessária reelaboração estrutural, política, econômica e cultural.
Em 2006 há uma retomada de fôlego, quando se inicia uma política especificamente
voltada para a TV Pública no Brasil e o MinC em parceria com a SAV reuniu associações de
emissoras não-comerciais para compor o que veio a ser chamado de Diagnóstico do Campo
Público da Televisão. Nessa fase preparatória, cabia às representações levantar dados sobre
eixos temáticos comuns, entre os quais estavam apresentar a história do setor, suas legislações
e marco regulatório, programações e modelos de negócio, e suas formas de financiamento e
infraestrutura. Tais informações foram base para as discussões promovidas durante o I Fórum
Nacional de TVs Públicas que aconteceu em Brasília, em 2007.
O evento trouxe um encontro inédito e a criação de diretrizes introdutórias para a
comunicação pública no Brasil, ao que se soma outra conquista: o compromisso do Estado de
construir uma rede nacional de tevês públicas. Ao conseguir agrupar representações de TVs
comunitárias, educativas, culturais, universitárias e legislativas, a gestão Gil evidencia uma
visão estratégica sobre a TV pública como espaço de encontro e fortalecimento das frentes
produtoras de conteúdos contra-hegemônicos. Além de se posicionar quanto ao entendimento
do papel público das TVs estatais, em suas obrigações com a transparência da informação.
O debate se redimensiona ainda mais forte quando são incluídos os ativistas sociais,
profissionais da cultura e a sociedade civil organizada, que, juntos, durante o I Fórum
Nacional de TVs Públicas, também discutiram como o Brasil deveria proceder sobre o tema.
A carta de Brasília (2007) ratifica os interesses defendidos por essa frente popular, e entre
outros o documento recomenda que o sistema a ser implantado deve promover mecanismos
que viabilizem a produção e veiculação de comunicação pelos cidadãos e cidadãs brasileiros.
De acordo com Orlando Senna (2006), a razão e o motor dessa ação conjunta é a
importância social da TV Pública e da sua missão de prestar serviços educativos e culturais à
comunidade. Para ele, a televisão pública é um veículo exponencial – uma ferramenta
essencial para educação cidadã do povo – capaz de expandir horizontes filosóficos e culturais
do indivíduo, preparando-o melhor para uma condição protagonista na inserção social.
Essas iniciativas culminaram na criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC),
instituída pela Medida Provisória 398/2007, depois substituída pela Lei 11.652/2008, e que
trata dos princípios e objetivos da radiodifusão pública. Foi um processo marcado por fortes
disputas dentro do próprio governo, conforme explicita Valente (2009) ao analisar a criação
41
da TV Brasil e sua inserção no modo de regulação setorial da televisão brasileira. A
composição original da EBC agrega, além de sites, agências e rádios17
, também a TV Brasil,
que surge em 2007 como a primeira televisão definida como pública no país.
Importante ressaltar que, nesse período, a radiodifusão pública é prevista para ser
explorada no âmbito federal, sem esclarecimento quanto às gestões regionais. O projeto prevê
que a EBC deve ser a responsável por prestar esse serviço de rádio e TV públicos, ainda que
em colaboração com outras entidades da administração indireta, visando estabelecer a Rede
Nacional de Comunicação Pública.
O modelo de gestão da Empresa inclui quatro instâncias: Conselho Curador, Conselho
Administrativo, Diretoria Executiva e Conselho Fiscal. Na diretoria inaugural, Orlando Senna
assume como diretor-geral em 2007, o que inclui o MinC como parte da administração18
e
gera importante oportunidade para que o projeto inicial tenha andamento, mesmo a EBC
estando subordinada diretamente ao gabinete da Presidência da República. O Conselho
Curador, por sua vez, garante a participação da sociedade civil, com quinze representantes
responsáveis por deliberar sobre as diretrizes educativas, artísticas, culturais e informativas
integrantes da política de comunicação propostas pela Diretoria Executiva, garantindo uma
abertura, ainda que frágil, para o acesso e a inclusão do interesse popular.
Vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, estão
entre outras competências da EBC: I - implantar e operar as emissoras e explorar os serviços
de radiodifusão pública sonora e de sons e imagens do Governo Federal; III - estabelecer
cooperação e colaboração com entidades públicas ou privadas que explorem serviços de
comunicação ou radiodifusão pública, mediante convênios ou outros ajustes, com vistas na
formação da Rede Nacional de Comunicação Pública e VIII - exercer outras atividades afins,
que lhe forem atribuídas pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República
ou pelo Conselho Curador da EBC.
Sua programação deve ser educativa, artística, cultural, informativa, científica e
promotora de cidadania, descrição que se repete diversas vezes em todo o texto da lei.
Buscou-se uma diferenciação pelo jornalismo, pelos debates, programas culturais e infantis
(INTERVOZES, 2009), tendo este último se tornando referência em sua grade. A discussão
17
Sobre a Empresa Brasil de Comunicações http://www.ebc.com.br/institucional, Acesso em: jul. 2018. 18
Outros dois diretores eram oriundos do Ministério da Cultura: Mário Borgneth (Diretor de Relações e Redes) e
Leopoldo Nunes (Diretor de Conteúdo e Programação).
42
sobre a regionalização também foi central, na perspectiva de que não se repetisse a lógica de
centralidade de conteúdo do eixo Rio de Janeiro e São Paulo replicado em emissoras locais.
Previa-se que, na Rede Nacional, os conteúdos de todos os estados convergiriam em
uma programação de acesso para todo país. Assim, programas locais produzidos na Bahia, por
exemplo, estariam diariamente compondo a grade de programação da EBC, sendo transmitido
tanto na Amazônia quanto no Piauí, que também teriam produções veiculadas, e todos, em
cada canto do país, se veriam e seriam visto.
Quanto aos recursos, eles devem ser de receitas provenientes de dotações
orçamentárias, apoio cultural e publicidade institucional de entidades de direito público e de
direito privado (sendo proibida a veiculação de anúncios de produtos ou serviços), recursos
provenientes de acordos, convênios e outras fontes, desde que estas não comprometam os
princípios e objetivos da radiodifusão pública. Princípios estes que, já em seu primeiro item
dispõe sobre atender a complementariedade dos sistemas público, privado e estatal; instituir
autonomia da EBC em relação do Governo Federal, além de promover a cultura nacional,
estimulando a produção regional e a produção independente, entre outros.
Seus objetivos também apontam para realizar uma radiodifusão participativa e crítica,
com incentivo ao desenvolvimento cidadão e à produção de conteúdo diferenciado do
hegemônico comercial. Entre eles destacamos o objetivo que trata de “estimular a produção e
garantir a veiculação, inclusive na rede mundial de computadores, de conteúdos interativos,
especialmente aqueles voltados para a universalização da prestação de serviços públicos”, o
que transparece uma tentativa de diálogo com a convergência de mídias em debate, mas sem
citar diretamente a TV Digital, projeto que acontecia concomitantemente no Brasil.
Entre algumas contradições materializadas, a EBC reforça o abismo da
complementariedade, ao acolher, debaixo do mesmo guarda-chuva, meios estatais e públicos,
ao fundir a Radiobrás e as TVEs do Rio de Janeiro e do Maranhão. E assim a dualidade mais
uma vez é colocada em foco, subjugada à forma errônea de compreender o espaço estatal
como governamental e não como público. Em um plano ideal, o Brasil poderia inaugurar uma
prática inédita de prestação de serviço público de comunicação aos cidadãos, reunindo todos
os campos para que, em um mesmo lugar, seus conteúdos pudessem ser acessados. Mas na
prática não foi o que se deu.
Embora com grandes avanços, confirmando a premissa de Rubim (2012) sobre as
instabilidades das políticas públicas no Brasil, o do-in proposto por Gil, trabalhado pelo
43
Secretário de Audiovisual Orlando Senna e outros importantes agentes da gestão da cultura no
Brasil, enfrentou problemas estruturais para se conformar. De acordo com Valente (2009), em
meio aos debates dos fóruns nacionais de TV Pública, no início de 2007, o ministro das
comunicações, Hélio Costa passa a se interessar pelo tema. Em janeiro do mesmo ano, o
ministro anunciou que o governo estudava criar uma nova rede pública de TV e de rádio,
gerando uma grande celeuma junto ao MinC. De curta duração, o embate foi logo substituído
pela configuração da então nova Secretaria de Comunicação Social do Governo (Secom), que
veio a ser a gestora da EBC.
As divergências se fizeram tão presentes dentro do governo que, em junho de 2008,
Orlando Senna pede exoneração da presidência da EBC, ao que justificou por discordar da
gestão adotada pela empresa que estava a impedir o exercício autônomo da TV pública,
engessando sua operação. Também o processo de implantação do Sistema Brasileiro de
Televisão Digital Terrestre – SBTVD foi pauta de disputas.
Ao tempo em que se discutia o modelo para TV Pública do Brasil, havia também um
direcionamento para que essa tevê ocupasse o espaço digital. Ao anunciar o I Fórum de TVs
Públicas, Gilberto Gil chamou atenção para a necessidade de evitar que a TV Digital fosse
apenas uma repetição do modelo analógico, e que o governo estava discutindo com grande
responsabilidade sobre o tema. Enfatizou igualmente a imprescindível participação de toda
sociedade no processo, tendo ela o papel de criticar as propostas do governo e contribuir com
ideias para a instituição de um modelo de TV pública digital inclusiva e diversa 19
.
Essa breve digressão histórica ajuda a compreender melhor as rotas da Kirimurê que
seguirão nesta análise. É exatamente na TV digital que se faz possível o Canal da Cidadania,
como parte de um conjunto de políticas públicas iniciado com o olhar do Ministério da
Cultura em 2003, e o seu projeto de debater a comunicação e a cultura como direitos, dentro
de um complexo sistema nacional.
Como aponta Gil no texto que abre o Caderno de Debates do I Fórum Brasileiro de
TVs Públicas (2006), tendo o Brasil uma população que foi alfabetizada na leitura audiovisual
antes da completa alfabetização escrita, a realização plena e qualificada da tevê pública
brasileira é estratégica para o desenvolvimento da cultura nacional e a consolidação de um
país mais antenado com as forças criativas de seu povo. O Canal da Cidadania é fruto desse
19
Informações disponíveis em
<http://www.cultura.gov.br/noticias-destaques/-/asset_publisher/OiKX3xlR9iTn/content/gilberto-gil-anuncia-
forum-nacional-para-discutir-a-tv-publica-76369/10883>. Acesso em: set. 2018.
44
processo de digitalização da televisão brasileira, cuja estruturação só se fez possível pela
gestão de um novo pensamento sobre a cultura televisiva no país. O próprio Canal é uma
grande onda dentro da história da TV pública nacional e precisou vencer muitos quebra-mares
para alcançar o seu projeto final, instituído a partir de uma ressignificação das cidadanias.
A proposta de um canal público que não fosse para exclusiva exploração do Governo
Federal, que tivesse sua programação formada por conteúdo independente e chegasse para
toda população da região onde for implantado precisou gradualmente revisar a ideia de
público como estatal e mesmo a de cidadania limitada à prestação de serviços. De tal forma,
as inovações trazidas pelas tecnologias digitais foram imprescindíveis para instituir o Canal
da Cidadania, mas a busca por uma tevê pública a partir da perspectiva cultural certamente foi
base essencial para o seu surgimento.
45
3. NAGEVANDO NAS ROTAS KIRIMURÊ
Senhoras e senhores telespectadores, boa noite. A TV brasileira entra hoje na
era digital. Começa aqui, na cidade de São Paulo, um processo que em
pouco tempo vai permitir um grande salto tecnológico, econômico, social e
cultural no Brasil. É uma verdadeira revolução. Por um lado, vai
proporcionar um aumento extraordinário nos espaços de difusão da cultura
brasileira e na veiculação de informações. Por outro, vai estimular nossa
indústria, gerando emprego, renda e oportunidades para o país (Luiz Inácio
Lula da Silva, 2007) 20
.
Entre outras transformações para radiodifusão, na última década, o Brasil assistiu à
mudança do seu sistema analógico terrestre para a distribuição do sinal digital de TV.
Baseado em uma difusa combinação de decretos e portarias, o sistema contabiliza em sua
trajetória avanços importantes para o debate da TV Pública e toda rede de informação no país,
ao mesmo tempo em que ratifica uma série de problemas históricos no campo da regulação,
financiamento e concentração das outorgas para operar os canais de televisão.
Ao ponderar o processo de implantação da TV digital brasileira, Bolaño e Brittos
(2007b) a consideram uma plataforma tecnológica capaz de transformar a comunicação
principalmente porque realiza a convergência de inúmeros serviços e reduz barreiras entre as
indústrias culturais e seus modelos de organização. Também para os autores, a digitalização
representa a possibilidade de construir uma esfera pública mais democrática. Para o professor
da Universidade da República do Uruguai Gabriel Kaplún (2007), o caso brasileiro de TV
digital é também uma chave para compreender, em toda América Latina, o que está
acontecendo e o que pode acontecer, o que já foi feito e o que se pode fazer.
O tema da digitalização da TV e seu futuro levaram pesquisas por rotas diferentes no
Brasil. Muitas divergências se deram (e perduram) sobre a democratização a partir da
ocupação, pensando, por exemplo, que o conteúdo de um canal de TV pode ser feito por
todos. Isso é um grande mito, diz o professor Newton Cannito (2010, p.10) “é claro que
qualquer um pode pegar a câmera e filmar alguma coisa, mas será que todos um dia
conseguirão fazer um programa de TV que interesse um grupo maior que o de seus amigos?”.
Ao passo em que Crocomo (2007) discute como o receptor, em meio a essa revolução
20
Discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, proferido em rede nacional de TV aberta, na ocasião do
lançamento da TV Digital no Brasil. Disponível na integra em http://g1.globo.com/Noticias/0,,MUL201695-
15515,00-LULA+PROMETE+R+BILHAO+PARA+A+TV+DIGITAL.html. Acesso em: ago.2018.
46
tecnológica, pode ser cada vez mais também um emissor – ainda que limitado, pontuando a
formação como essencial no processo.
Seja por uma abordagem técnica, seja por uma leitura mais sociopolítica, grandes
expectativas e questões estão sendo levantadas em toda a cadeia produtiva e também
acadêmica sobre a televisão digital. Discutem-se ainda aspectos decisórios para essa nova
cultura televisiva do país, distinguindo as formas de poder estabelecidas na estrutura política e
nas relações jurídico-econômicas do processo.
Ao defender a esfera pública popular como real espaço dialógico, por exemplo, a
pesquisa de Cinthya Pires Oliveira (2016) aponta a necessidade de discutir as reais exclusões,
inerentes ao sistema capitalista, e de descontruir as estratégias para a manutenção do poder
baseadas em táticas financeiras e ideológicas praticadas pelo Estado e pelos setores privados
também no campo midiático. Há também trabalhos com atenção especial ao campo público da
TV, a exemplo da desenvolvida por Viviane Lindsay Cardoso (2012), que debateu a
digitalização da televisão pública, com foco no caso da multiprogramação na TV Cultura.
Mesmo com tanto navegar, a multiprogramação ainda é alvo de poucos olhares. As
pesquisas que discutem esse tema, em geral, o tratam como uma possibilidade ou uma
promessa, e tais fatos se justificam por um recorte temporal, já que há uma distância relevante
entre o projeto de lei e a realização de um projeto concreto de multicanais públicos. No caso
experimental da TV Cultura (CARDOSO, 2012) a análise ainda não dispunha de dispositivos
legais que regulassem os multicanais e permitissem o seu efetivo funcionamento, mas a
discussão foi essencial para o que se alcançou com a implantação.
O recorte ao qual esta dissertação se detém na leitura da TV digital está exatamente a
multiprogramação, sua regulamentação e consequente oferta do Canal da Cidadania, com foco
na experiência da TV Kirimurê, primeira a entrar em funcionamento no Brasil. É importante
pontuar que a existência da TVK começa a partir da autorização que o Ministério das
Comunicações concede a TV Educativa do Estado – a TVE BA para multiprogramar. O
percurso é especialmente marcado em 2003, a partir do decreto nº 4.901, pelo qual se instituiu
o SBTVD, ao tempo em que foi encaminhado o planejamento da transição da TV aberta
analógica para a digital.
47
3.1 ROTA NACIONAL: TV DIGITAL E MULTIPROGRAMAÇÃO
A digitalização provoca maior impacto na televisão terrestre, hertziana, cuja
transição em nível internacional está mobilizando governos, agentes
econômicos e algumas poucas entidades não governamentais que conseguem
intervir nos debates usualmente pouco inclusivos, envolvendo uma alteração
conceitual com impactos sobre o conjunto da indústria televisiva e suas
diferentes trajetórias tecnológicas (BOLAÑO, BRITTOS, 2007b, p. 56).
A TV digital já era debatida no país durante o segundo governo de Fernando Henrique
Cardoso, mesmo período da privatização das telecomunicações. Na ocasião, o mercado
mundial estava em corrida por estabelecer as tecnologias digitais para o novo sistema de
televisão que viria a ser predominante, e os EUA e a Europa saíram na frente, com os sistemas
ATSC (Advanced Television Systems Committee) e o DVB (Digital Video Braadcasting),
respectivamente. O Japão veio em seguida, com a oferta do ISDB (Integrated Service Digital
Broadcasting) e se juntou como proposta na busca por melhoria na qualidade da imagem e o
aumento da oferta de canais de TV. Três tecnologias estavam, portanto, disponíveis para
venda a todo o mundo.
Entre outras iniciativas, as ondas internacionais chegam ao contexto brasileiro em
1999, quando o país deu início a testes entre os três sistemas disponíveis até então21
, atividade
que foi realizada pela Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV), pela SET
(Sociedade de Engenharia de Televisão e Telecomunicações) e pela Universidade Mackenzie.
Também foram realizados estudos técnicos e mercadológicos pela Fundação CPqD (Centro de
Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações), a partir de demanda da Anatel (Agência
Nacional de Telecomunicações). Pouco depois, em 2002, houve novo aceno em relação à
definição acerca do assunto, mas, frente à chegada de um novo governo, o então presidente
optou por deixar a decisão ao novo ocupante do Palácio do Planalto (Intervozes, 2006, p.8).
O recorte temporal aqui apresentado, no entanto, toma como ponto de partida a
iniciativa de 23 de novembro de 2003, quando da instituição do Sistema Brasileiro de
Televisão Digital (SBTVD), pelo decreto 4.901. Dez artigos distribuídos em três laudas
compõem o Decreto e entre as providências previstas, está a criação de três instâncias para
gerenciar o Sistema: dois comitês, um de Desenvolvimento, interministerial e vinculado à
Presidência da República, e outro Consultivo, formado por representações empresariais e de
21
Havia ainda um quarto modelo digital sendo desenvolvido, o chinês, país com o qual o Brasil tentou parceria
para elaborar um sistema original para ambas as nações, mas não foi prevalente.
48
setores sociais, responsável por propor as ações e diretrizes fundamentais do Sistema; além de
um Grupo Gestor, encarregado pela execução operacional e administrativa do projeto. Esse
formato gerencial tinha a missão de trabalhar em consonância com os objetivos do SBTVD,
entre os quais estava o de promover a inclusão social e a diversidade cultural do país por meio
do acesso à tecnologia digital, visando à democratização da informação.
Foram três anos até escolha definitiva pelo modelo a ser adotado, com intensos
debates que marcaram as políticas públicas para implantação da TV Digital brasileira.
Universidades tiveram a oportunidade de desenvolver pesquisas na busca de, sobretudo,
propor um sistema próprio nacional e a ANATEL administrou os trabalhos direcionados à
escolha do modelo que melhor atendesse as necessidades do país. Em convênio assinado entre
a CPqD e o Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel),
foram investidos 65 milhões de reais em consórcios destinados a desenvolver propostas desde
a camada de hardware até os aplicativos para TV digital 22
.
Entre os sistemas de modulação testados, o modelo nipônico foi escolhido pelo
governo federal para servir de base ao padrão brasileiro, instalado em junho de 2006, agora na
gestão do ministro das comunicações Hélio Costa, quando publicado o Decreto 5820/06. A
versão final ficou conhecida como nipo-brasileira, um padrão híbrido que trazia como
contribuições brasileiras o middleware Ginga e o aperfeiçoamento das tecnologias de
compressão e transmissão e as contrapartidas interativas, que foram dadas como principais
motivos para escolha do padrão japonês, que aceitava tais adaptações.
O Ginga é uma espécie de sistema operacional para TV interativa, que permite ao
usuário fazer várias operações, como marcar consultas ou comprar online, por exemplo. Foi
planejado para oferecer principalmente ao cidadão de baixa renda um canal de retorno para
interatividade, e aquilo que faz pouca diferença para quem já possui computador com internet
em casa, poderia ser uma revolução para a classe mais pobre, de acordo com o projeto.
Desenvolvido por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e da
Universidade Federal da Paraíba, o ginga é o que há de mais nacional no projeto da TV digital
brasileira, e quando combinado aos multicanais e aos múltiplos meios digitais, configura uma
expansão significativa para a navegabilidade televisiva, sendo uma característica diferenciada
e consonante às convergências midiáticas.
22
Documento com esse e outros dados disponível em http://www.set.org.br/wp-content/uploads/2017/05/SET_-
_especial_pt.pdf. Acesso em: jul. 2018.
49
Houve, no entanto, forte resistência do mercado radiodifusor e dos grandes fabricantes
de aparelho de TV ao uso do middleware brasileiro, tanto por não concordar com a
multiprogramação, no primeiro caso, como por reserva de mercado, já encabeçados pelas
smarts TVs, no segundo. Desse modo, pressionado, o governo federal cumpriu com a entrega
de milhões de kits (set-top-boxes) 23
com antena e conversor digital para beneficiários de
programas como Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, mas todos sem modem, portanto,
sem acesso à internet e à possibilidade de utilizar o Ginga.
A determinação pelo modelo japonês ratifica um complexo espaço de disputa
comercial, política e simbólica, que pode ser demonstrado, entre outros dados, na condição do
ministro Hélio Costa, que trabalhou durante anos para a Rede Globo de Televisão. Hélio
Costa foi apontado por muitas lideranças de ONGs e outros atores da sociedade civil e
associações envolvidas no projeto da TV digital, como representante dos interesses dos
radiodifusores comerciais. De acordo com Rodrigues (2008), ao substituir Miro Teixeira, que
defendia um padrão de TV digital brasileiro, Costa, que foi ainda antecedido por Eunício de
Oliveira, chega ao governo como moeda de troca para amenizar os ânimos da grande mídia,
aguçados pela crise de governabilidade gerada por denúncias de corrupção24
.
A cargo do Fórum de TV Digital (que substituiu o Grupo Gestor disposto no Decreto
do SBTVD), controlado pelo empresariado e por representantes de segmentos comerciais, a
decisão sobre a escolha do sistema ocorre sem consulta ao Conselho Consultivo, um entre os
motivos que levaram o Ministério Público Federal (MPF) em Belo Horizonte a entrar com
uma ação civil pública. De acordo com o MPF, a administração pública, ao escolher um
padrão tecnológico que onera o usuário, deveria fundamentar sua opção ou demonstrar que o
padrão japonês é mais vantajoso por outros motivos, o que não aconteceu (BOLAÑO E
BRITOS, 2007b, p. 173).
Segundo dados do Relatório do modelo de referência do SBTVD, produzido pelo
CPqD em 2006, o sistema japonês era o mais caro para o consumidor. O europeu ou o
americano garantiriam preços mais acessíveis, e o DBV europeu traria ainda mais vantagens
econômicas, uma vez que era o sistema mais adotado no mundo e a larga escala de produção
reduziria os custos de parte dos componentes técnicos (CANNITO, 2010). O Brasil acabou
por se isolar do mercado internacional ao implantar uma tecnologia híbrida, e a inclusão de
23
Set-top-boxes são kits que acoplados a um aparelho de TV analógico permitem que receba o sinal digital. 24
Processo que foi amplamente midiatizado e ficou conhecido como Mensalão, descrito como esquema de
compra de votos de parlamentares, deflagrado no primeiro mandato do governo de Luís Inácio Lula da Silva.
50
todos os cidadãos no processo de digitalização do sistema televisivo ficou comprometido em
função dos altos custos previstos – para compra obrigatória de novos televisores ou de
conversores digitais.
A ousada iniciativa do governo federal de regulamentar a comunicação junto com a
cultura, criando para estes bases para o exercício da soberania nacional, é assim tomada por
uma inversão de prioridades (FNDC, 2005). O projeto que tinha por base a defesa da esfera
pública da comunicação passa a operar através do modelo de negócio das grandes empresas
de radiodifusão do país, limitando o desenvolvimento da indústria e a inclusão social, em
mais uma onda de instabilidade para as mídias públicas do país.
Durante a implantação do sistema de TV digital, o jogo que tem a televisão como forte
instrumento para manter a ordem simbólica é conservado. Para o cidadão comum nenhuma
dessas estruturas de interatividade, multiprogramação, ou usabilidade foram apresentadas para
uso efetivo. Em geral, para ele, o entendimento sobre TV digital se limita ao produto final
entregue em imagem e som de alta qualidade na tela do aparelho de TV, superando chuviscos
ou antenas inoperantes, outrora dependentes de esponjas de aço para retornar a programação.
Tais fatos refletem uma ausência histórica, no projeto político brasileiro, de debates
públicos abertos que tratem da comunicação como direito de todos. Desde a pauta do que
prevê a Constituição Federal de 1988, no que diz respeito ao direito à informação, liberdade
de expressão e imprensa, até os esclarecimentos sobre o amplo significado da migração para o
sistema de TV digital. Lacunas que são aumentadas pelo predomínio da linguagem técnica e
jurídica no trato do tema, e pela abordagem reduzida divulgada pela grande mídia.
A Rede Globo de Televisão, por exemplo, anunciou por um longo período a sua
campanha sobre o desligamento da TV analógica, ensinando aos telespectadores como
instalar a antena digital e ligá-la ao aparelho de TV. Entre outros artistas populares do
período, a cantora Anitta traz em um dos vídeos da ação: “Prepara, que agora é hora da Globo
Digital invadir sua TV e deixar tudo legal, a imagem fica show e o som sensacional”, e
completa “É simples de fazer, só precisa uma antena UHF, é um plug só” 25
, mensagem
repetida de maneira enfática em todas as peças, acionando a migração digital apenas por seu
aspecto técnico e omitindo qualquer perspectiva de decodificação ampliada.
25
Campanha explicada em https://redeglobo.globo.com/tv-digital/noticia/tv-globo-digital-sorriso-maroto-anitta-
e-ludmilla-estrelam-campanha.ghtml. Acesso em: jul. 2018.
51
O entendimento da população brasileira sobre essa nova tecnologia ampliaria (o que
ainda pode vir a ser) as chances de consolidar elementos essenciais da TV Digital, como
maior interatividade, autonomia e participação popular para gerir, distribuir e compor a
programação na tevê aberta terrestre do país, o que compreende, além da TV e rádio, as
telecomunicações e todas as multiplataformas digitais. Havendo assim uma prática
contemporânea da inteligência coletiva, como proposto por Levy (1994) e reforçado por
Jenkins (2009), considerando-a como uma inteligência distribuída por toda parte,
incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que pode resultar em uma
mobilização efetiva das competências. De tal modo, a relação dos cidadãos com os meios
digitais compreende uma perspectiva mais inclusiva, principalmente pela fragmentação das
formas de elaborar e veicular conteúdo, agora também na TV aberta.
Em documento destinado aos três poderes e a toda sociedade brasileira, publicado em
2006 com propostas para a implantação do sistema digital nacional, o Coletivo Intervozes
chama atenção para o fato de que o sistema escolhido definiria parte do futuro das mídias
audiovisuais do país, já que incluía questões sobre democratização da mídia, acesso e inclusão
digital, convergências, indústria e produção local, além de regulação. Também salienta que
todas as decisões sobre o SBTVD poderiam ajudar o Brasil a se desenvolver na perspectiva do
interesse público, ou aprofundar erros históricos, como aumento da distância entre as
pequenas e grandes emissoras, mantendo a concentração da mídia.
Na prática, ainda que marcada por controvérsias e fortes divergências, é certo que a
chegada da TV digital no Brasil representa um momento de mudanças estratégicas e o
vislumbre de novas possibilidades, especialmente para o campo público da comunicação. O
momento de transição, em curso, permite mensurar a reorganização do sistema televisivo, e
entre desenvolver e aprofundar erros, é possível identificar subsídios para os dois lados, sem
exatamente polarizar os resultados ou encaminhamentos.
Um dos elementos de maior relevância para o debate da democratização da TV é a
multiprogramação, definida como “transmissão simultânea de vários programas dentro de um
mesmo canal de 6MHz”, como descrito na Norma Geral nº01/2009 para Execução do serviços
de Televisão Pública Digital, aprovada pela Portaria Nº 24 do Ministério das Comunicações,
de 11 de fevereiro de 2009. Ela foi destacada no relatório do Grupo de Trabalho “Migração
Digital”, do I Fórum Nacional de TVs Públicas (2007), como modelo estratégico para as TVs
públicas por ampliar o número de canais e permitir uma programação diferenciada, atendendo
52
a necessidade de produzir e veicular conteúdos para todas as demandas da sociedade, com
suporte para abordagens locais e regionais, sendo também um espaço para experimentação de
linguagens. Assim, se por um lado houve direcionamento para os interesses das empresas
privadas, a multiprogramação é, sem dúvidas, uma grande conquista para o campo público
dentro do projeto original do SBTVD.
Tecnicamente, há possibilidade de dividir um espaço antes analógico em até treze
faixas digitais, uma vez que a tecnologia atual compacta os dados de áudio, vídeo e softwares
e transforma tudo em combinações numéricas binárias de “zeros” e “uns”. Cada pixel passa a
ser representando por essa combinação e é por isso que a informação é digital (CROCOMO,
2007, p.57). O conteúdo chega sem nenhuma perda de qualidade ao decodificador digital nos
aparelhos de recepção – que podem ou não ser uma TV – o que deixou ainda mais fácil “ver”
o resultado da transição. Na TV binária, é como se a o aparelho televisivo passasse a ser um
computador com funções reduzidas, mas com um uso mais eficiente, permitindo que diversos
conteúdos sejam difundidos em um mesmo canal.
As terminologias técnicas ajudam a melhor compreender a organização desse espaço:
uma das fatias é destinada ao one-seg, que é a transmissão para receptores portáteis ou
móveis, e as outras 12 para receptores fixos terrestres. Entre as combinações possíveis, são
necessárias 12 fatias26
para uma transmissão em Full HD, seis para uma transmissão em HD –
High Definition, e três para uma transmissão em SD – Standart Definition, o que pode ser
lido, em síntese, como a possibilidade de multiplicar em até quatro (SD), o número de canais
nacionais, além do conteúdo para dispositivos móveis.
Vale dizer que mesmo o formato SD digital é muito superior em qualidade se
comparado às resoluções de som e imagem analógicas, mas a oferta da imagem em alta
definição foi usada por muitas emissoras de TV comerciais como prioridade na transmissão
digital, e a multiprogramação acabou como pauta de tantos outros embates, como veremos.
O decreto que institui o sistema de TV digital não trata diretamente da
multiprogramação, mas já indica que poderão ser explorados diretamente pela União pelo
menos quatro canais digitais de radiofrequência com largura de banda de seis mega-hertz: os
canais do Poder Executivo, o Canal de Educação, o Canal de Cultura e o Canal da Cidadania.
26
De acordo com Fernando Crocomo (2006), em termos técnicos, na programação digital o correto é usar o
termo “programa” ao invés de “canal”. Quando falamos em canal de TV de 6 MHz, a referência é feita aos
canais atuais de TV aberta no Brasil. Quando nos referimos à possibilidade de vários “canais” onde existe um
canal de 6MHz, na verdade, podem ser transmitidos vários programas de TV digital simultaneamente. Aqui
usamos termos semelhantes para melhor ilustrar o aspecto físico do canal, a exemplo da palavra “fatia”.
53
Para o primeiro canal, a proposta é transmitir atos, trabalhos, projetos e sessões do Poder
Executivo, algo próximo as já conhecidas TV Câmara e TV Senado. O ensino a distância,
capacitação de professores e outras transmissões destinadas ao aprimoramento do processo
educativo eram conteúdos esperados para o Canal da Educação, retomando a retrógrada ideia
de educação estrita às pedagogias de sala de aula.
As maiores novidades estavam nas nomenclaturas da Cultura e de Cidadania. Um
descrito em lei como canal para transmissões de produções culturais e programas regionais, e
o outro para divulgar programações das comunidades locais. Para o de Cidadania estava
previsto também divulgar atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos
federal, estadual e municipal, dando continuidade a um confuso modo de distinguir e regular a
radiodifusão brasileira, mas já prevendo a necessidade de transformar o modo broadcasting
centralizador da TV analógica.
Em 2009, através da Norma Geral nº 01, para execução dos serviços de TV Pública
Digital, são regulamentadas regras para o compartilhamento de canais utilizados pela União e
a multiprogramação passa a ser prevista e regulada, surgindo de maneira restrita e assegurada
apenas às emissoras consignatárias do serviço de radiodifusão – as TVs Públicas Federais.
Excluía-se oficialmente qualquer emissora comercial e mesmo as TVs educativas estaduais do
projeto inicial de multicanais. Nas disposições finais da Norma, em seu último artigo,
ratificava-se “A multiprogramação somente poderá ser realizada nos canais a que se refere o
artigo 12 do Decreto no 5.820, de 29 de junho de 2006, consignados a órgãos e entidade
integrantes dos poderes da União”.
A justificativa do MiniCom para a medida restritiva residia, nas palavras de seu
consultor jurídico Marcelo Bechara de Souza Hobaika durante entrevista coletiva sobre o
assunto, na preocupação de não abrir uma brecha legal para o uso irregular dos multicanais.
Em seu discurso, Bechara assegurou que as normas de multiprogramação para as educativas e
comerciais sairiam em outro momento, sobretudo para impedir que os canais digitais fossem
subcontratados, compartilhados, cedidos ou transferidos a terceiros, como aos serviços de
televendas ou igrejas, por exemplo, o que iniciaria com vícios o recurso de multiprogramar.
As redes comerciais de TV, proibidas por lei de utilizar a multiprogramação, dividiram
opiniões sobre o tema, o que em parte ajuda a esclarecer os inúmeros entraves sobre ela. Para
algumas, como a Rede Globo, a multiprogramação representaria abertura de novos espaços,
mas não a geração de novos anunciantes ou verbas publicitárias. João Roberto Marinho, em
54
entrevista à Folha de São Paulo, em 2006, confirma que a prioridade é a transmissão em alta
definição, e que a aposta é na qualidade da imagem, atrativo principal para o canal aberto 27
.
Ou seja, para a emissora era preferível usar as doze fatias do canal digital para operar uma só
faixa, com qualidade full HD.
Dissonantes, as diretorias das TVs Bandeirantes e da Record se manifestaram contra a
proibição, e a consideravam uma medida incoerente, já que a tecnologia escolhida pelo Brasil
tem a multiprogramação como uma de suas principais vantagens 28
. A Associação Brasileira
de Radiodifusores (ABRA) defendia que a decisão de usar ou não o recurso deveria ser
exclusiva para cada emissora, considerando a restrição ilegal, o que a levou a mover uma ação
ordinária junto ao Supremo Tribunal de Justiça, na qual solicitava suspender os efeitos
restritivos publicados pelo Ministério das Comunicações. O pleito, no entanto, não foi
atendido, e a proibição foi mantida 29
.
Renato Cruz (2008) afirma que a maior preocupação das grandes redes de televisão era
evitar que o canal de 6 MHz, em alta definição, fosse subdividido entre elas e as empresas de
telefonia, como aconteceu na Europa por exemplo, aumentando a disputa pelo mercado de
produção e difusão de conteúdo audiovisual. A dissensão, como se vê, tratava sobre como
deveriam ser ocupadas as faixas do canal digital, o que por sua vez abriria um distinto espaço
de disputa, agora com outras possíveis produtoras de conteúdo.
Por outras razões, os debates sobre a multiprogramação mobilizaram também o
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que em 2007, junto com outras entidades, ajuizaram
uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o decreto do SBTVD. O partido era contra
os artigos que permitem às redes já outorgadas para operar as faixas analógicas,
automaticamente passarem a ter consignação para a faixa digital. O argumento foi de que
conceder a multiprogramação para as mesmas empresas que já operavam canais analógicos
aprofundaria o oligopólio existente, ferindo o artigo 223 da Constituição Federal 30
e criando
um novo latifúndio eletromagnético.
Na Ação Direta de Inconstitucionalidade, o partido alegava ainda que a TV digital
deveria se configurar em um novo serviço, o que foi julgado improcedente pelo STF. Ao
27
Entrevista concedida à jornalista Patrícia Zimmermann, em 29 de junho de 2006. Disponível em
https://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u109010.shtml. Acesso em: abr. 2018. 28
Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,tvs-reagem-a-proibicao-da-
multiprogramacao,368286. Acesso em: set. 2018. 29
Matéria da FNDC, publicada em 07/07/2009, disponível em http://www.fndc.org.br/clipping/abra-vai-a-
justica-para-derrubar-proibicao-a-multiprogramacao-398967/. Acesso em: maio 2018. 30
(ADI) nº 3.944, contra os artigos 7º a 10 do Decreto 5.820/2006
55
justificar seu voto, o ministro Ayres Britto, relator do processo, afirma: “Não considero a
televisão digital um novo serviço em face da TV analógica, trata-se ainda de transmissão de
sons e imagens, mas passa a ser digitalizada, a comportar avanços tecnológicos sem perda de
identidade jurídica” 31
. Sobre os monopólios e oligopólios, Britto afirmou que, se estão a
ocorrer nos meios de comunicação brasileiros, tal fato não se deve ao decreto contestado, mas
é algo preexistente, e conclui enfatizando que a imprensa e o governo se façam dignos da
decisão, atuando no campo da proibição da oligopolização e da monopolização.
As emissoras públicas tiveram destaque nesse debate com a TV Cultura de São Paulo,
que começou a multiprogramar sem licença, desafiando o MiniCom. O ministro Hélio Costa
se manifestou em entrevista ao Jornal Estado de São Paulo, quando disse que “A permissão
para multiprogramar sem uma normatização é prejudicial. A sociedade perde o controle,
assim como aconteceu com as rádios comunitárias. Não vamos saber quem está fazendo
televisão” 32
. Até que, depois de ampla negociação, a TV Cultura conseguiu autorização para
testar os multicanais em caráter científico e experimental, oficializada no Despacho emitido
pelo ministro em Diário Oficial da União, em maio de 2009.
A TV Cultura colocou no ar duas faixas, uma para o Univesp TV (Universidade
Virtual do Estado de São Paulo) e outra para o Multicultura, indicando estratégias possíveis
para muitas outras emissoras públicas locais, tanto no aspecto técnico quanto para
programação, com conteúdo e ferramentas de apoio para formação de alunos do ensino
superior público, e a oferta de séries, documentários, musicais e exibição de muito conteúdo
raro do acervo de mais de 40 anos da Cultura.
Ressalte-se que, como traz Viviane Cardoso (2012), ao conseguir multiprogramar,
ainda que em formato experimental, a TV Cultura se tornou um referencial para as TVs
públicas digitais no país, e também um modificador da própria legislação que estava sendo
estruturada. A Cultura também expandiu as discussões sobre possibilidades de uso da
tecnologia digital, criando precedentes para explorar de modo mais amplo as potencialidades
da multiprogramação como uma alternativa à cultura televisiva predominante, e evidenciando
o espaço para regionalização de conteúdo no país.
31
Disponível em http://www.telesintese.com.br/multiprogramacao-da-tv-digital-fica-proibida/. Acesso em: jan.
2018. 32
Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,tv-cultura-desafia-helio-costa-e-lanca-mais-2-
canais,334948. Acesso em: jun. 2018.
56
E não só a multiprogramação aparece como estrutura importante para o debate e a
regulamentação das mídias públicas junto ao sistema de TV digital. No texto da Norma Geral
nº1, previa-se no item 2 que trata das definições :
Estação Reforçadora de Sinal – É a estação destinada a melhorar a
recepção do sinal da estação geradora ou retransmissora de televisão digital
terrestre em área de sombra no interior do seu contorno de serviço;
Interatividade – é a funcionalidade de uma determinada mídia que
proporciona ao telespectador a possibilidade de atuar sobre o conteúdo ou a
forma de comunicação acessível localmente ou mediante canal de retorno
para a emissora de televisão pública digital; Multisserviços – é a oferta de
serviços provenientes da convergência de mídias, tais como vídeo, áudio e
dados, em um mesmo canal consignado;
Operador de Rede de Televisão Pública Digital – é a entidade encarregada
do transporte dos sinais de radiodifusão pública produzidos, gerados ou
retransmitidos pelos consignatários e destinados aos telespectadores;
Plataforma Única e Integrada de Multisserviços e Multiprogramação –
infraestrutura comum e compartilhada capaz de possibilitar a oferta de
multisserviços e multiprogramação; Retransmissora de Televisão Pública
Digital – é o conjunto de receptores e transmissores, incluindo equipamentos
acessórios, capaz de captar sinais de sons e imagens e retransmiti-los, bem
como inserir programação local, para recepção pelo público em geral;
A maior parte desses pontos, no entanto, não voltou a ser pautada pelo Ministério das
Comunicações ou por outras frentes do governo federal. O projeto do Operador Único de
Rede de TV Pública Digital, por exemplo, previa constituir uma rede de antenas com sinal de
televisão digital em centenas de cidades brasileiras, que seriam responsáveis pela transmissão
dos sinais de diversas emissoras de caráter público e estatal, nacionais e locais, que fizessem
parte do sistema público. Este projeto estava inscrito nos Ministérios da Comunicação,
Ministério da Educação, Ministério da Cultura, a TV Câmara, TV Senado e TV Justiça, e
estes estavam responsáveis por compartilhar os custos de implantação do Operador de Rede,
calculados em quase três bilhões de reais 33
. Previa-se que a instalação se daria por uma
parceria público-privada, a partir de editais.
A Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que coordenou o projeto de implantação do
Operador, realizou debates e audiências públicas sobre o tema, mas o projeto não saiu do
papel. Por consequência, o mesmo se deu com a Rede Nacional de Televisão Pública (RNTP).
33
Dados disponíveis em https://frentecom.wordpress.com/tag/operador-unico-de-rede-de-tv-publica-digital/.
Acesso em jul. 2018.
57
No site da EBC há um espaço específico para informações sobre o Operador Único da Rede
Nacional de TV Pública Digital Terrestre (RNTPD), mas nada consta além de hiperlinks que
são direcionados para abas com a mensagem “página não encontrada”. A saber, o último link
tem como título “TVs e entidades do Campo Público cobram definição governamental sobre
Operador Único da Rede Pública Digital” e data de 14 de junho de 201134
.
No curso geral da digitalização da TV Pública, a multiprogramação se manteve ativa.
A Norma Geral nº1 foi sucedida por uma Portaria35
assinada pelo então ministro Paulo
Bernardo Silva, agora na gestão da presidente Dilma Rousseff, em 2012. O texto apenas
ratifica as regras já estabelecidas, e mantem a operacionalização dos canais para os órgãos da
União, mas abre uma discussão sobre a possibilidade de estabelecer parcerias, de forma não
onerosa, entre a União e órgãos, autarquias e fundações públicas dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, para compartilhamento de conteúdo. Além disso, estabelece a
multiprogramação para transmissões simultâneas em, no máximo, quatro faixas.
3.2 ROTA LOCAL: TVE-BA DIGITAL E O PRIMEIRO CANAL DA CIDADANIA DO
BRASIL
“A esperança parece vir do mar e das antenas de TV” 36
O termo “Canal da Cidadania” nasce com confusa explicação para o cidadão
brasileiro. Na letra da lei, como previamente aqui descrito, esse seria um entre os quatro
canais previstos no decreto que instituiu o SBTVD, para exploração exclusiva da União, se
juntando ao Canal do Poder Executivo, Canal da Educação e ao Canal da Cultura. Todos os
quatro Canais passariam a ser operacionalizados a partir de normas complementares, embora
a descrição do serviço para o Canal da Cidadania apontasse, já nesse primeiro texto, para a
execução de serviços públicos de governo eletrônico.
Os dispositivos técnicos disponíveis a partir da tecnologia digital, especialmente o
middleware Ginga, reforçavam o aspecto da cidadania a partir do acesso aos serviços básicos
oferecidos pelo Estado. Previa-se, entre outros, que o cidadão poderia marcar um atendimento
do Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC) ou solicitar uma informação à ouvidoria do
34
Conforme link http://www.ebc.com.br/institucional/sobre-a-ebc/noticias/2011/09/operador-unico-da-rede-
nacional-de-tv-publica-digital-terrestre-rntpd. Acesso em: ago. 2018. 35
Portaria nº106, de 02 março de 2012. Disponível em http://www2.camara.leg.br/comunicacao/rede-legislativa-
radio-tv/arquivos/legislacao-arquivos/portarias-ministerio/Portarian10602MAR2012Multiprogramao.pdf. Acesso
em: ago. 2018. 36
Trocadilho com a música Alagados, da banda brasileira Paralamas do Sucesso. EMI MUSIC, 1996.
58
município a partir da TV, que agora teria conexão direta com a internet. Aos poucos a
percepção sobre as funções do Canal cidadão foi ampliada, e ao contrário dos outros três que
não se materializaram para a população, o Canal da Cidadania passou a ter destaque em 2010.
O primeiro ato oficial foi a Portaria nº189, publicada em 24 de março de 2010 pelo
Ministério das Comunicações e estabelecendo diretrizes para operacionalização do Canal da
Cidadania. Foi a última ação do ministro Hélio Costa sobre o tema, ele que já havia criado
muitas expectativas a respeito, na ocasião da Conferência Nacional de Comunicações, a I
CONFECOM, em 2009, ocasião onde também se destacaram as dissidências entre os
articuladores do campo público da comunicação.
O texto da portaria mantém a autorização apenas para a União, o que só viria a mudar
em 2012, primeiro com o decreto nº 7670, no qual finalmente o Ministério das Comunicações
autoriza outorgas para Estados, Distrito Federal e Municípios explorarem o Canal. Com a
multiprogramação agora autorizada para outras instâncias governamentais, a margem de
disputa para ocupação de espaços na faixa de frequência da radiodifusão era reaberta, e assim
também os debates e dissensões a respeito.
Em seguida, o Canal da Cidadania recebe sua Norma Regulamentar, também
publicada em forma de decreto (489/2012), e as regras ficam disponíveis e mais claras para
quem desejava obter esse espaço na TV aberta:
Por meio da multiprogramação, o Canal da Cidadania será dividido nas
seguintes faixas de programação: uma faixa de programação para a
veiculação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos do Poder Público
municipal; uma faixa de programação para a veiculação de atos, trabalhos,
projetos, sessões e eventos do Poder Público estadual; e duas faixas de
programação para a veiculação de programas produzidos pela comunidade
do Município ou que tratem de questões relativas à realidade local.
Antes da publicação do texto final da Norma, durante o período de um mês, o
Ministério das Comunicações disponibilizou o documento em seu site para consulta pública.
A novidade da regulamentação, se comparada às normas anteriores sobre o Canal da
Cidadania, era exatamente o modelo baseado na multiprogramação em quatro faixas. Ao
tratar da relevância do Canal, o então coordenador-geral de Radiodifusão Comunitária do
MiniCom, Octavio Pieranti, afirma que a ideia era permitir que a sociedade acompanhasse o
trabalho do poder público local e que a população se expressasse direta e gratuitamente na
59
radiodifusão aberta digital 37
. Assim se consolidando, a cidadania implicada no projeto do
Canal poderia (pode) ser lida de maneira ampliada, tanto na perspectiva do direito à
informação pública – no exercício de sua transparência, quanto da livre expressão e ocupação
do espaço público de radiodifusão por diferentes discursos.
Sem grandes mudanças, a publicação do Decreto se deu em dezembro de 2012, e
trouxe esclarecimentos sobre os princípios do Canal da Cidadania, as condições básicas para
explorar o seu serviço e descreveu sobre os requisitos para a outorga e o compartilhamento do
Canal. Sobre a outorga, a exploração fica por competência dos estados, municípios, Distrito
Federal e fundações e autarquias a eles vinculadas, aos quais compete igualmente a
responsabilidade de implantar e explorar o Canal da Cidadania, transmitir a programação em
todas as quatro faixas e arcar com os custos relativos à operação e à transmissão.
As associações comunitárias não podem ser responsáveis legais pelo Canal da
Cidadania – uma vez que seria contra a legislação. Por outro lado, depois de autorizada a
operação do Canal, as entidades ganham o direito de solicitar duas das quatro faixas e
organizar o conteúdo prioritariamente local, demandado por seus agentes sociais e articulado
com de maneira horizontal, dialógica e inclusiva, embora a condução de tais atividades nas
perspectivas de autonomia financeira e de gestão não tenha sido firmadas.
Os municípios, na letra do decreto, tinham prioridade para solicitar a autorização. E
não só as prefeituras poderiam fazê-lo diretamente, mas também órgãos diretamente a elas
vinculados. Para isso, era necessário: o município enviar solicitação ao MiniCom juntamente
ao projeto técnico do Canal; Montar o Canal após autorização do projeto pela ANATEL e
pelo ministério – quando a gestão municipal compra todo o equipamento necessário para
instalação e transmissão do Canal; Depois de montado, o Canal passa a transmitir a
programação local; e por fim, depois de inaugurado o Canal, o órgão estadual e a entidade
civil selecionada ocupariam suas faixas.
Somando um total de 29 exigências para alcançar a licença, cada uma dessas fases
previa documentos e encaminhamentos detalhados. Na primeira delas, o município solicitante
deveria juntar entre outros itens, um ato normativo em que disponibilizava recursos
financeiros para o Canal da Cidadania – a comprovação de que dispunha de orçamento ou se
comprometia a destinar verbas específicas para o Canal e um Projeto Técnico. Para este, um
37
Entrevista disponível em http://www.brasil.gov.br/editoria/educacao-e-ciencia/2012/03/ministerio-das-
comunicacoes-quer-ouvir-a-sociedade-sobre-o-canal-da-cidadania. Acesso em: jan. 2018.
60
engenheiro de telecomunicações com registro no CREA (Conselho Regional de Engenharia e
Agronomia) deveria avaliar: o local da antena, a potência do transmissor, o direcionamento da
antena, a necessidade de repetidores, a necessidade de um link entre o estúdio e o transmissor
e os custos de todo esse projeto. Estava posto um caminho com muitas variáveis para que o
Canal da Cidadania chegasse ao município.
A contar da publicação do decreto – 18 de dezembro de 2012, as cidades brasileiras
tiveram o prazo de dezoito meses para solicitar ao Ministério das Comunicações autorizações
para operar o Canal. Depois de vencido o prazo, em localidades onde as prefeituras não se
manifestassem, os governos estaduais poderiam entrar como solicitantes. Dos mais de cinco
mil municípios brasileiros, entretanto, pouco mais de trezentos registraram pedido, e
encerrado o prazo de 18 de junho de 2014, nenhum canal havia sido colocado no ar.
A principal justificativa apresentada pelos gestores das receitas públicas municipais
para a baixa adesão ao Canal da Cidadania é o que chamam de alto custo para implantar e
manter a iniciativa. De acordo com cartilha elaborada pela Associação de Comunicação
Educativa Roquette Pinto (Acerp), os custos iniciais variam entre 500 e 600 mil reais, além
dos gastos com manutenção, recursos humanos e produção de conteúdo38
. Outro motivo
pontuado foi a ausência de know-how para conduzir um canal televisivo, o que se explica pela
descrição do projeto técnico, por exemplo.
Um levantamento realizado pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel),
através do Sistema de Acompanhamento de Controle Societário – Siacco, no entanto, orienta
o olhar para um dado crucial nesse jogo: dezenas de parlamentares são proprietários,
associados ou sócios de canais de rádio e de TV no Brasil. Desse modo, descaracterizar o
habitus do campo da radiodifusão brasileira e esclarecer os cidadãos sobre seus direitos para
assumir os controles dos meios de produção, como propõe Pierre Bourdieu (1997), é tarefa
mais complexa do que criar uma legislação.
Em 2013, a bússola começa a apontar para a cidade de Salvador, quando o MiniCom
passa a autorizar que as emissoras educativas que já possuíam outorgas para transmitir o sinal
de TV digital, desde que vinculadas a governos estaduais e municipais, pudessem solicitar
38
Cartilha disponível em https://pt.slideshare.net/CanaldaCidadania/cartilha-canal-da-cidadania. Acesso em: jul.
2018.
61
anuência da Secretaria de Radiodifusão e utilizar o recurso de multiprogramação 39
. A Bahia
foi vanguardista no processo, e através de sua TV Educativa, ligada ao Instituto de
Radiodifusão Educativa do Estado (IRDEB), começa suas navegações com o fim exclusivo de
transmitir as quatro faixas dispostas na Norma Regulamentar do Canal da Cidadania.
É importante esclarecer que a digitalização da TVE BA não começa com o Sistema de
TV Digital Brasileiro, tampouco com a multiprogramação, o que por sua vez chama atenção
para o fato da migração digital incluir uma série de processos que envolvem desde hardwares
e softwares até a mudança no comportamento dos espectadores e dos meios de consumo.
Ainda em 1990 o governo do estado da Bahia investiu em tecnologia e aparelhamento de todo
IRDEB e a TV substituiu seus equipamentos analógicos por digitais (ROCHA, 2009), além de
digitalizar seu acervo e iniciar mudança de linguagem e identidade visual. Tudo já apontando
para as transformações conceituais e culturais em curso, e bem por isso a TVE BA já estava
tecnicamente preparada para multiprogramar no sistema digital.
Segunda emissora da Bahia a colocar o sinal da TV digital no ar 40
, a TVE BA foi
também pioneira e hoje carrega o título de primeira do Brasil a operar o Canal da Cidadania.
Para ela, o sistema digital se traduz principalmente em três frentes. Uma delas é a
possibilidade de seu sinal chegar a cidades que outrora não chegava. O modelo analógico e a
má qualidade do sinal prejudicavam a distribuição do seu conteúdo, enquanto o sinal digital é
praticamente imune a interferências.
Depois, o diálogo da TVE BA com as multiplataformas digitais se amplia: “O portal
do IRDEB, moderno, e de fácil navegabilidade, disponibiliza o conteúdo da TVE e da rádio
educadora em tempo real, em grandes eventos, alcança picos de até seis milhões de acessos,
num universo registrado de mais de 800 cidades, e 90 países”, divulga seu vídeo institucional
(2015) 41
. A iniciativa do novo portal multimídia, lançado em 2009, visa aumentar o alcance
das ações do instituto e trabalhar a convergência das mídias e linguagens.
O portal auxilia também na apuração do índice de alcance da audiência da TVE. Com
o levantamento permitido a partir dos acessos ao site e às mídias sociais, tem-se melhor
39
Portaria nº 57, de 13 de março de 2013 – Disponível em
http://www.mctic.gov.br/mctic/opencms/comunicacao/paginas/receber-outorga-de-canal-da-cidadania.html.
Acesso em: maio 2018. 40
Os canais digitais funcionam do espectro de 14 a 51, faixas UHF. Os canais de 2 a 7 deixarão de existir. A
TVE Digital passa a operar então o canal de radiofrequência 24 do Plano Básico de Televisão Digital, que chega
sintonizado nas residências no canal virtual 10 e assim subdividido em 10.1, 10.2, 10.3 e 10.4. 41
Vídeo institucional que documenta os 46 anos do IRDEB, produzido em 2015. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=v3D9D-OAALI. Acesso em: jan. 2018.
62
dimensão sobre abrangência e interesse dos telespectadores pela Educativa da Bahia, números
que podem ter grande relevância para novas políticas públicas do campo público da
radiodifusão regional. Agora a TVE além de “singular e plural”42
, é também digital e
potencialmente internacional.
A terceira frente diz respeito à oportunidade de, diante de tão complexo panorama,
ampliar o exercício da cidadania e da democratização da comunicação, valores tão caros à TV
pública no país. Isso através da materialização do Canal da Cidadania de Salvador, que foi ao
ar depois de anos de processos, editais, portarias, decretos e impedimentos.
De acordo com o diretor geral do IRDEB no período, Pola Ribeiro, a solicitação partiu
da emissora porque seus dirigentes consideraram importante a implementação do Canal da
Cidadania e souberam aproveitar a alteração que foi feita na Norma. Ele indica que o pedido
foi feito ao MiniCom em 26 de dezembro de 2013, e a autorização foi publicada no Diário
Oficial da União de 12 de janeiro de 2014, menos de um mês de processo transcorrido43
.
Agora com um Canal da Cidadania autorizado, estão disponíveis quatro novas faixas44
para serem preenchidas por conteúdos diversos. E assim chega-se a segunda fase da ação, que
é a ocupação delas. À época, a TVE BA, entidade pública detentora da outorga, tinha suporte
técnico para operar apenas mais uma faixa além da sua, o que significa que, de imediato,
somente a prefeitura, ou o governo do estado ou uma associação comunitária poderia colocar
uma conteúdo no ar. Nesse sentido, visando esclarecer e estimular o terceiro setor, o IRDEB
realizou em julho de 2014 o Seminário Canal da Cidadania.
ONGS, Associações e OSIPs puderam esclarecer dúvidas junto à representação do
MiniCom45
e compreender melhor o procedimento para pleitear uma faixa do Canal da
Cidadania, uma vez que o aviso de habilitação do Ministério das Comunicações já estava em
andamento. Entre as questões levantadas, o coordenador da TV Pelourinho, canal comunitário
ligado a ONG Ação Pela Cidadania, pergunta: “A entidade local da cidade pode solicitar
diretamente o Canal junto ao Ministério?”, ao que é respondido: “Não. Esse é um Canal para
o poder público executivo municipal ou estadual. Se nenhum dos dois tiver interesse, abrimos
42
Solgan da TVE BA durante o período. 43
Disponível em http://www.fndc.org.br/clipping/salvador-e-rio-se-adiantam-para-ter-canal-da-cidadania-
934899/. Acesso em: jul. 2018. 44
A TVE (e também as demais TVs Educativas que solicitarem operar o Canal da Cidadania) tem cinco faixas.
Uma delas é destinada a programação já veiculada atualmente pela emissora. 45
Patrícia Ávila, secretária de Serviços de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações, disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=u-EDCE_q1cE. Acesso em: jul. 2018.
63
uma exceção para que uma TV educativa da cidade possa pedir”, e encerra “A associação
comunitária vai entrar sempre em parceria com um desses três” 46
.
Foi na ocasião do Seminário que os produtores independentes de Salvador, Aline Cléa
Souza e Anderson Soares Caldas 47
- que mais tarde passaram a fazer parte da comissão
gestora da TV Kirimurê – conheceram o Canal da Cidadania. A partir disso, provocaram
outras frentes e junto com a Organização Filhos do Mundo-FEME, reuniram manifestações de
apoio de dezenas de entidades da sociedade civil organizada, entre Fundações, ONGs e
Universidades, que juntos entraram na disputa para assumir uma faixa de programação,
processo que será detalhado na seção de análise da Kirimurê.
Ainda em 2014 o Ministério das Comunicações publica o resultado da habilitação que
incluía a FEME como a única Organização Social habilitada para operar a faixa do Canal de
Salvador, mas não veio na mesma velocidade a autorização para produzir e transmitir na
faixa. Primeiro porque o país entrou em processo eleitoral para a presidência da república e
depois, com a reeleição de Dilma Rousseff (2015-2018), mais uma vez o Estado passava por
uma grande crise de gestão, agora com o processo de Impeachment da presidente.
O cenário ideal para que o Canal da Cidadania enquanto política pública pudesse se
consolidar acontece entre 2015 e 2016 e incluía Juca Ferreira como Ministro da Cultura,
franco defensor da tevê Pública como “Uma TV eficiente, que vibre e que participe da
construção do Brasil” 48
; o jornalista Emiliano José como secretário de Serviços de
Comunicação Eletrônica – responsável por intermediar os pedidos de outorga junto a
ANATEL; e Pola Ribeiro como Secretário do Audiovisual, personagem político que
participou diretamente dos projetos da TV pública digital, e com declarado interesse no Canal
da Cidadania como plano para democratizar as práticas culturais em comunicação. Entretanto,
tudo ficou comprometido pelas mudanças causadas pelo contexto político nacional.
O período seguinte foi de intenso embate no cenário político de todo país, com forte
mediação das grandes mídias comerciais televisivas, o que aqui cabe como reflexão sobre a
relevância de oferecer à sociedade espaços de escuta e de fala alternativos e proporcionais ao
grande discurso hegemônico. Depois do interstício de mais de um ano sem nenhum
encaminhamento legal sobre o Canal, em um de seus últimos atos, no uso de suas atribuições,
46
Palestra completa disponível em https://www.youtube.com/watch?v=u-EDCE_q1cE. Acesso em: jul. 2018. 47
Informações sobre os produtores disponíveis em http://www.cinearts.com.br/quem-faz. Acesso em: jun. 2018. 48
EBC Coloca em discussão os desafios da TV Pública no Brasil. Disponível em
http://www.cultura.gov.br/banner2/-/asset_publisher/B8a2Gazsrvex/content/ebc-coloca-em-discussao-desafios-
da-tv-publica-no-brasil/10883. Acesso em: jul. 2018.
64
a presidente Dilma Rousseff assinou a portaria nº 2.027, de 10 de maio de 2016, e tendo em
vista o que constava no processo nº 53900.010574/2014-12, designou a Associação Filhos Do
Mundo, entidade sediada na localidade de Salvador, Estado da Bahia, para operar uma das
faixas de programação do Canal da Cidadania. E assim, remando contra todas as marés, se
oficializa a história da TV aberta dos Tupinambás, a TV Kirimurê.
3.3 ROTA INAUGURAL DA KIRIMURÊ – PORQUE NAVEGAR É PRECISO
É isso ai meu pai, é isso ai minha mãe, a sua TV chegou. Assim como na
lenda, a ave kirimurê deitou sobre a costa da Baía de Todos os Santos, e fez
daquele lugar um lugar frutífero. E hoje a TV kirimurê chega na cidade
fazendo frutificar olhares diversos sobre si 49
.
Na voz do ator João Miguel, a narração anuncia a chegada da TV Kirimurê, faixa da
sociedade civil do Canal da Cidadania de Salvador. Fruto de encontros coordenados pela
FEME, com debates sobre a identidade da TVK, seu nome, programação, acessibilidade,
financiamento, o grupo de trabalho para implantação do Canal resolve uma data para sua
primeira aparição pública.
Salvador, Bahia, 20 de novembro de 2016. O ator e gestor cultural Bertrand Duarte
abre a primeira transmissão oficial – e ao vivo – da TV Kirimurê e conta sobre a lenda por
trás do nome, que vale dizer, foi escolhido entre mais de duzentas outras opções apresentadas,
através do método de concertação de marca comunitária (criar a identidade de grupos
comunitários por meio da escolha de nome e marca), o que já anuncia uma importante
estratégia para demarcar o compromisso da nova TV com a democracia e a diversidade.
Bertrand Duarte complementa que lançar a TVK é importante porque nesse país um
dos assuntos mais engavetados que existe é a democratização da mídia. Problematiza que há
uma total falta de compromisso dos canais comerciais com a cidadania e a regionalização, e
que de forma verticalizada o processo televisivo exclui iniciativas populares. Portanto,
continua afirmando que vivemos um grande marco na história do Brasil ao lançar uma TV
“que dá voz a pessoas como eu e como você, e que respeita todas as crenças e orientações”.
Em evento aberto e gratuito, na praça de alimentação de um shopping da capital, o
lançamento – que não pôde ser transmitido pela TV aberta por problemas técnicos –
49
Vídeo institucional da TV Kirimurê disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vuLDxv4NOcA.
Acesso em: jan. 2018.
65
aconteceu via internet e reuniu diversos elementos que representam as promessas da TVK:
desde a data de inauguração, dia nacional da consciência negra, até os figurinos, cenários,
linguagens e a escolha dos apresentadores e de toda a programação.
Em um evento que totalizou aproximadamente quatro horas de transmissão, os artistas
Pedro Albuquerque e Pretha Souza, que também participaram como apresentadores,
reforçaram as intenções da entusiasta e jovem TV de trazer uma nova perspectiva para o
audiovisual baiano. Vai falar “a comunidade indígena, a agricultura familiar, produtores de
alimentos orgânicos, artesãos, pescadores, marisqueiras, o povo do teatro, o povo do cinema,
o povo da música, da dança”, descreve Pedro, com seu acentuado sotaque local. É um
movimento na direção de pagar uma dívida histórica que a TV tem com seu espectador,
deslocando-o do lugar exclusivo de receptor e estabelecendo uma relação bidirecional, como
defende Crocomo (2007), na qual o público seja também parte dos processos de produção e
colabore na construção de um novo modo de fazer e ver televisão.
As propostas para gestão administrativa e financeira da TVK aparecem de maneira
dissolvida durante o lançamento, e refletem os princípios descritos na Norma Regulamentar
do Canal da Cidadania, entre os quais se aponta que seus gestores, organizados em um
Conselho Local, devem garantir a participação dos diversos segmentos da comunidade. Dos
aspectos econômicos, são permitidos recursos provenientes de publicidade institucional de
empresas públicas ou privadas, e assim assistimos à apresentadora Dina Lopes, que diz: “aqui
pode sim falar o nome do shopping, pois ele é um grande apoiador da Kirimurê, além de
amparar muitas atividades de economia solidária”. O espaço na praça de alimentação foi
cedido gratuitamente pelo Salvador Norte Shopping, o cenário foi todo produzido por grupos
de economia solidária, os equipamentos de transmissão foram cedidos por parceiros e os
apresentadores e artistas se disponibilizaram voluntariamente a participar a propósito “se você
quiser adquirir essas cadeiras que estamos sentados aqui durante a entrevista, procure a loja
Santis móveis planejados, aqui no segundo piso”, também diz a apresentadora.
Sobre a dicotomia entre o estatal e o público, Pedro Albuquerque, ao entrevistar o
então Secretário do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Estado da Bahia (SETRE),
Álvaro Gomes, ratifica que a SETRE é uma parceira importante, mas Kirimurê não é uma TV
estatal, não é uma televisão na qual o Estado manda, mas uma TV pública em que o Estado
também participa, como sociedade. Um reforço sobre como a televisão estatal é aplicada no
Brasil, limitada pelo excesso de interferências dos gestores públicos e associada à ideia
66
retrograda de Estado, que durante anos foi designado como território extremamente fechado,
determinado pela orientação central e administrado por estruturas fortemente burocráticas
(REY BELTRÁN, 2002, p. 84).
De certo que a TVK tem a perspectiva de ser uma TV autônoma, tanto dos interesses
comerciais, baseados principalmente nas linhas de financiamento, quanto na administração do
Canal, que incluem ausência de proselitismos político e religioso. Dina Lopes, ainda durante o
programa, no entanto, provoca ao dizer: Fora Temer!50
E também Pola Ribeiro, entrevistado
já no último quadro da transmissão inaugural, quando afirma que “acabamos de passar por um
golpe midiático, jurídico e institucional, mas foi um golpe da mídia principalmente”, abrindo
margem para discussões sobre os desafios ideológicos a serem encarados pela Kirimurê.
O projeto de programação, por sua vez, foi apresentado, sendo a primeira transmissão
uma espécie de resumo do conjunto de programas planejados para a grade da TVK. “Iniciar
com mulheres negras entre entrevistadoras e entrevistadas é começar com as águas que aqui
caem desde ontem, e conduzem essa TV feita em uma cidade onde todo mundo é de Oxum,
Iemanjá, Xangô. Essa cidade de tanta diversidade cultural”, diz a entrevistada Lindinalva de
Paula, líder da Rede de Mulheres Negras da Bahia.
A maior parte dos talk shows trataram de temas sobre empoderamento feminino,
visibilidade da mulher e a importância de espaços representativos para que elas falem e sejam
ouvidas. O papel feminino nas políticas democráticas e sua importância para a diversidade das
culturas baianas foram predominantes nas pautas das entrevistas. Outro exemplo foi a
conversa com de Madá, fundadora da Negrif, que comenta: “Eu não tinha o hábito de comprar
roupa pronta. O que eu queria eu pedia que mainha fizesse [...] Então eu estudei e virei
estilista, e depois comecei a oferecer isso a outras pessoas”, ao explicar sua trajetória como
empreendedora de sucesso 51
.
Além disso, a apresentação musical com Marcionílio Prado, cantor, compositor, multi-
instrumentista e arranjador da década de 1980; as entrevistas com personagens políticos da
cidade, além do bit da DJ Luana Passos, que levou seu som de hip hop e funk de vertentes
africanas, coreografado por Gleyce Manu. Nomes por muitos desconhecidos, mas símbolos de
50
Após sofrer processo de impeachment, a presidente Dilma Rousseff, eleita para o mandando 2014-2018, deixa
o cargo em 2016, e assume o seu vice-presidente, Michel Temer. O processo foi considerado ilegítimo por
grande parte da sociedade brasileira, que se manifestava contra o mandato de Temer – que passou de temporário
a permanente (e assim se manteve até as eleições presidenciáveis de 2018). Muitas dessas manifestações, em
todas as capitais do país foram permeadas com a expressão #foraTemer. 51
Idealizada por Madalena Bispo, a Negrif é uma grife que aposta em roupas com identidade afro-baiana e busca
atingir um público diferenciado com estilo que não está disposto a consumir roupas em série.
67
um processo de construção de identidades ligadas ao pertencimento racial, à religiosidade, e a
regionalidade, e parte do compromisso da Kirimurê de praticar um discurso diferente e em
oposição ao já difundido, além de divulgar atividades invisibilizadas pela grande mídia.
Por causa das tecnologias da comunicação, hoje se produz muito e em diferentes
lugares circulam informações de todo tipo e com muito mais facilidade diz a cantora baiana
Carla Visi, também entrevistada no programa inaugural da TVK. Continua ao dizer que a
internet ainda não tem filtro, e a televisão ainda não tinha um canal aberto orientado
prioritariamente para o cidadão. Então, é esse o papel da TV Kirimurê, é ela quem vai tratar
com responsabilidade e respeito o que é produzido pelo cidadão e para ele.
Quando lhe perguntaram se “ser mãe é padecer no paraíso?”, Carla Visi aproveita para
cobrar um tratamento diferente da pauta feminina, lembrando que o conteúdo da TVK deve
estar atento as novas formas de maternidade, com pais sendo mães, mães casadas com outras
mães, e mulheres decidem, simplesmente, não serem mães. Assim chama atenção para que
não se reproduzam práticas miméticas, como em uma tentativa não percebida de alcançar o
modelo comercial. Embora não opostas, as TVs comercias e públicas devem ser
complementares, pois quando se igualam ou perseguem funções e conteúdos análogos, ora, se
assim fosse, a sociedade não precisaria de TV Pública (BUCCI, 2006).
Mas não só de discursos e propostas declaradas se fez o lançamento. A leitura atenta
do evento traz outras questões importantes. A começar pelo fato de que todo o planejamento e
lançamento da Kirimurê foram realizados por profissionais voluntários que prospectaram
apoios a partir de suas redes de contato para financiar a primeira aparição da TVK. Seguidos
de problemas técnicos enfrentados para transmissão via rede aberta de TV e a baixa
receptividade do evento nas redes sociais, sem resposta do público.
Para continuar a navegar, era também preciso demarcar território, ocupar a faixa na
multiprogramação alcançada pela TVE-BA, institucionalizar a TV Kirimurê e assim
confirmar todo percurso iniciado ainda antes, com o pedido de autorização realizado junto ao
Ministério das Comunicações. Promessas, tensões e novas perspectivas marcaram a primeira
transmissão da TVK, com a reunião de muitas variáveis que serão discutidas nas seções de
análise que seguem.
68
4. TVK, UMA TELEVISÃO A CONTRAPELO
“É que a televisão me deixou burro, muito burro demais. Agora todas as
coisas que eu penso me parecem iguais. Ô Cride, fala pra mãe que tudo que a
antena captar meu coração captura” (Titãs, 1985). 52
Em suas críticas ao modo hegemônico de contar o passado, dirigindo-se ao
historicismo alemão, Walter Benjamin (1940) elabora elementos reflexivos que encontram
forte eco nas estruturas sociais ainda hoje. Ao discutir as teses sobre o conceito de história,
Benjamin empreende uma defesa para valorização dos acontecimentos negligenciados pelas
narrativas oficiais e propõe a quebra de verdades únicas, escovando a história a contrapelo.
Agora, quando a televisão se converteu no centro cultural das sociedades, se tornando
responsável por grande parte dos relatos sobre o mundo, pensar tevês a contrapelo é
fundamental para o fortalecimento da democracia e para garantia dos direitos e liberdades no
campo da comunicação.
O projeto de televisão pública autônoma, aberta e participativa, defendido
internacionalmente, se estabelece como alternativa nesse jogo de descentralização das
narrativas na radiodifusão no Brasil e no mundo. A TV pública como um “trabalho de
construção de memórias, geração de verdades plurais [grifo nosso] e criação de relatos de
identidade”, como afirma Martín-Barbero (2002, p.329), deve superar os interesses da TV
comercial e romper com limitações do conceito de público aplicado pelas TVs estatais.
Uma TV do campo público deve ser, portanto, capaz de dar visibilidade ao que foi
negligenciado pelas tevês hegemônicas, tanto quanto ter habilidade para recontar narrativas já
publicadas ou reinventar produtos simbólicos, colaborando para construir mais
democraticamente uma consciência pública e cidadã. Nesse roteiro para uma TV a contrapelo,
a história da TVK pode representar um espaço para escovar ao contrário as formas e
narrativas hegemônicas de televisão no Brasil.
Ao analisar o Canal da Cidadania e a TV Kirimurê como possibilidades para pensar
novas estratégias e modelos culturais para a tevê pública, a perspectiva a contrapelo é
reforçada também pela iniciativa de escolher contar sobre a existência da TV dos
Tupinambás, pouco vista, pouco falada e ainda pouco acessada. Retomando a informação
ressaltada por Albino Rubim (2012b) quanto à escassez de referências acadêmicas sobre a
52
Trecho da música “televisão” da banda brasileira Titãs. Composta por Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e
Tony Bellotto, WEA, 1985.
69
televisão pública, ao trazer a leitura de uma realidade objetiva, esta dissertação pretende
colaborar com outros atores sociais que desejem tratar sobre o campo público da comunicação
e que talvez estejam em busca de uma televisão que nos deixe críticos, muito críticos demais.
4.1 NOVAS PERSPECTIVAS, VELHOS DESAFIOS
Quantos canais públicos não poderiam estar ocupando os novos espaços se
uma lei de meios tivesse determinado a divisão do espectro entre eles e os
privados em partes iguais? (Lalo Leal Filho, 2017).
Atualmente, ao ligar o televisor de uma residência soteropolitana, região que já teve o
sistema analógico de televisão desligado e, portanto, opera apenas no sinal digital da TV
aberta terrestre, é possível acessar os seguintes canais: 4.1 (TV Aratu), 5.1 (TV Itapoan/ Rede
Record), 6.1 (TV Baiana, que retransmite a TV Cultura de São Paulo), 7.1 (Band), 9.1 (TV
Ouro Negro – TV Universal), 10. 1 (TVE BA), 10.2 (TV Kirimurê), 11.1 (Rede Globo, TV
Bahia), 13.1 ( Ideal TV/TV Mundial), 14.1 (Rede Brasil), 18.1 (CNT Digital), 22.1 (Rede
TV), 23.1 (TV Aparecida), 31.1 (Record News), 34.1 (Rede Canção Nova), 39.1 (Novo
Tempo), 44.1 (Rede Vida), 45.1 (TV Metropolitana – Rede Brasil de TV), 48.1 (Rede 21
HD), 49.1 (RIT HD), 50.1 (RCI/TV Mundial), 57.1 (Rede Família), 61.1 (TV Câmara), 61.2
(TV Assembleia), 61.3 (TV Senado), 61.4 (TV Câmara Municipal) 53
.
Ao comparar este cardápio televisivo digital com o analógico que antecedeu a chegada
do SBTVD, no qual havia menos da metade da oferta acima, os números podem sugerir uma
real ampliação de emissores e a divisão do espaço aberto da TV, mas na prática são faixas
ocupadas por empresas que já possuem certa dinâmica hegemônica no mercado, a exemplo de
grandes grupos religiosos. Na lista de 26 canais, apenas dois se apresentam como públicos, e a
multiprogramação transforma esses dois em seis faixas que comportam TVs educativas,
legislativas e a TV Kirimurê. Também para Lalo Leal (2017), estamos perdendo uma grande
oportunidade de avançar na qualidade dos conteúdos com a participação de novos
realizadores, capazes de sacudir o marasmo que caracteriza a televisão aberta no Brasil.
Nessa dinâmica televisiva digital, o telespectador não se surpreende em notar, muitas
vezes, que de repente um novo canal é sintonizado, ampliando sem aviso a oferta de conteúdo
e deixando muitas dúvidas sobre a origem e rotina das respectivas grades de programação.
53
Dados disponíveis em http://www.portalbsd.com.br/. Acesso em: jan. 2019.
70
Esta é uma entre as mudanças culturais da TV digital, que ora migra canais que eram das
redes a cabo ou por assinatura para a rede aberta, ora substitui emissoras já outorgadas por
outras que não encontravam espaço ou não conseguiam operar tecnicamente na tevê aberta.
O canal sintonizado na faixa 10.2, a TV Kirimurê, acaba por se diluir dentro desse
contexto, mesmo com sua nova e relevante função conceitual e política de Canal da
Cidadania. Para o telespectador da TV aberta de Salvador, ele é mais uma opção no conjunto
de novidades, e sua diferenciação fica ainda mais difícil pela ausência de uma programação
exclusiva da TVK, que, em geral, cria elos mais profundos com o público. Ainda assim, a
faixa do Canal da Cidadania é um diferencial entre as outras seis que, embora se denominem
canais públicos, são partes de um sistema limitado e dependem das subvenções diretas dos
governos. A Kirimurê, ao contrário, é mais autônoma e possibilita que cidadãos “se
expressem e se representem a si mesmos, procurando reduzir as lacunas entre comunidades e
atores sociais”, como discute Martín-Barbero (2002, p.337).
No âmbito regional, ao analisar a trajetória da Televisão Educativa da Bahia e sua
relação com as políticas de comunicação e cultura do Estado, Renata Rocha (2009) afirma
que, embora a TVE BA pertença ao campo público, ela não possui autonomia em seus
campos de gestão, financiamento e programação em relação às gestões governamentais, e que,
portanto, não se pode considerar que a Bahia tenha um projeto de TV pública consolidado.
Sua pesquisa ratifica que há mais de um conceito e aspectos pré-estabelecidos para definir
uma TV Pública, mas que sua constituição deve corresponder “de fato, às necessidades e
expectativas do público, promovendo diversidades e novas maneiras de expressão, trazendo a
cidadania para tela e promovendo a mobilização social” (ROCHA, 2009, p.132).
Ao reiterar a importância de ofertar ao cidadão uma TV realmente pública, o
esclarecimento pela continuidade e fortalecimento do Canal da Cidadania ganha mais força.
Como parte de um processo ainda recente, a TV Kirimurê reacende o debate sobre o campo
público com uma nova perspectiva, tratando-o a partir de sua missão de servir a um projeto de
sociedade mais igualitária. A TVK também discute os conceitos contemporâneos de
democracia, cidadania e consumo cultural, que permitam ser a experiência desse canal um
laboratório para o caráter público da televisão brasileira.
E como, de fato, essas e outras possíveis transformações podem ser percebidas a partir
da Kirimurê? Quais são os entraves e limites impostos para que o projeto de TV cidadã se
consolide em Salvador? A começar por seu slogan: Para Se Ver, Ouvir e Pensar, é possível
71
traduzir algumas potencialidades da TVK: trata-se de uma pretensa TV feita pelo cidadão e
para que ele se identifique, possa se manifestar e livremente pensar; uma TV realizada,
financiada e controlada pelo público e para o público, conforme prevê a UNESCO (2000).
O compromisso da TVK com as narrativas contra-hegemônicas dentro da tevê aberta
do país é ratificado no seu regimento, que apresenta entre seus principais objetivos e
princípios “Contribuir com a luta pela democratização dos meios de comunicação, pela
democratização da informação e pela institucionalização do Direito de Comunicar”
(REGIMENTO KIRIMURÊ, 2018, p.2), alinhado aos dispostos das normas regulamentares
do Canal da Cidadania. Mas sobre qual democratização se fala?
“É apenas a mídia para fins democráticos, criar um ambiente que conduza ao processo
democrático por meio da unidade, da empatia e do discurso civil? Ou significa entregar os
meios de produção e distribuição, que é a lógica do acesso público?”, provoca Henry Jenkins
(2009, p.323) ao tratar da democratização da TV e de sua política participativa. Nesta
dissertação, como já posto, defende-se a democracia pelo acesso e participação cidadã, pela
abertura de espaços de poder para ocupação popular, e, portanto, pela entrega dos meios de
produção e distribuição, formando uma real esfera pública.
Essa democratização que corresponde ao futuro previsto por Rey Beltrán (2002),
quando escreveu que a sociedade civil cada vez mais assume a observação e a interlocução
com o poder dos meios de comunicação e informação, o que trará para o futuro uma
“modificação das relações tradicionais entre os cidadãos e a mídia. Entre as regulamentações
jurídicas, a auto-regulamentação ou a displicência das mídias, está a deliberação ativa da
sociedade e sua crescente pressão” (REY BELTRÁN, 2002, p.105).
Resultado de uma pressão da sociedade civil, o tema das políticas públicas para
democratização da mídia ganhou muita força no Brasil durante a campanha à reeleição de
Dilma Rousseff à presidência, em 2014, que colocou a regulamentação dos meios entre suas
promessas. Rui Falcão, presidente do Partido dos Trabalhadores (PT) à época, defendeu um
novo marco regulatório para a comunicação nacional e afirmou que a democracia se
aprofunda em ambientes onde há mais diálogo e onde as diferenças regionais têm espaço
equilibrado na mídia em geral. A ONU, por sua vez, também ao tratar do tema, declarou que é
72
preciso evitar o monopólio e o oligopólio, mas igualmente ter cuidado para que a legislação
não dê ao governo uma forma de controlar os conteúdos 54
.
Após a reeleição, entre outros desdobramentos, o governo federal lançou o Plano
Nacional de Outorgas (PNO), propondo o aumento de concessões para radiodifusão
comunitária e educativa no país. Os planos previam editais com autorizações para muitos
municípios brasileiros, e seriam publicados entre agosto de 2016 e julho de 2019. No entanto,
com o afastamento da presidente Dilma e posterior assunção do vice-presidente Michel
Temer, as publicações foram suspensas. “O governo revogou o Plano Nacional de Outorgas e
não publicou os editais para os anos de 2016/2018, que possibilitariam que cada município
brasileiro tivesse, pelo menos, acesso a uma estação” (INTERVOZES, 2009).
Além do aumento da oferta de canais públicos, as entidades em defesa da
democratização da comunicação no Brasil colocavam a necessidade de definir um novo
marco regulatório para a comunicação nacional. Também a revisão do controle da mídia, com
base na CF de 1988, que dispõe no parágrafo 5º, artigo 220: “Os meios de comunicação social
não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”.
A mobilização se justifica a partir de dados como os publicados no relatório Quem
controla a mídia no Brasil (REPORTERES EM FRONTEIRAS, 2017), no qual se aponta que
o país está em alerta vermelho sobre indicadores de risco ao pluralismo e à independência da
mídia. O documento, produzido pela ONG internacional Repórteres sem Fronteiras e pelo
Coletivo Intervozes, revela alta concentração da audiência e da propriedade, além da
sintomática ausência de controles de supervisão e fiscalização externos.
A pesquisa avaliou cinquenta veículos de comunicação no Brasil, divididos em quatro
grandes grupos: TV, rádio, impresso e online. O resultado indica que desses veículos, 26
pertencem ou são controlados por grupos de economia privada. “Nove são do Grupo Globo,
cinco do grupo Bandeirantes, outros cinco de Edir Macedo, quatro da RBS, afiliada da Rede
Globo no Rio Grande do Sul e três do grupo Folha” (REPORTERES EM FRONTEIRAS,
2017). O relatório também chama atenção para o fato de deputados e senadores serem donos
de dezenas de concessões de rádios e tevês no Brasil, contrariando a Constituição que
expressamente os proíbe de possuírem ou de serem sócios ou associados de empresas
concessionárias do serviço público de radiodifusão.
54
“O que significa regular a mídia?”, matéria disponível em
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/11/141128_regulacao_midia_lab. Acesso em: nov. 2018.
73
De um lado, pressionado por órgãos nacionais e internacionais que defendem a
democratização da comunicação, e, por outro, pela oposição de parte do Congresso Nacional
e das grandes empresas de comunicação, o projeto para discutir a regulação da mídia
brasileira perdeu consistência. Chegou-se a falar que regular era censurar a mídia e todo seu
conteúdo e, consequentemente, limitar a democracia. O deputado Fábio Sousa, então
presidente da Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, declarou em entrevista à TV
Record, em 2015, que “Controle de mídia pra mim é o controle remoto. Se o cidadão não
concorda com o que está passando na televisão, ele muda de canal” 55
.
Mas como o espectador pode escolher se as opções continuam concentradas nos
grandes veículos, com suas programações pouco diversificadas, marcadas pela
superficialidade e dirigidas em função do lucro? Se o mesmo conteúdo disponível nos canais
de televisão costuma ser o que está nos grandes portais, revistas e rádios? E mais, é papel do
público apenas escolher a programação, ou deveria haver um lugar para um cidadão emissor,
que se reconheça como agente nos processos de gestão e produção de conteúdo? Canclini
(2006) defende que é preciso (re)significar o consumo para além dos impulsos irracionais e
gastos inúteis, e passar a exercitá-lo como espaço para pensar e organizar parte da
racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades.
Trata-se, portanto, não somente de consumir, mas de ensejar decodificações que vão,
junto aos processos de consciência e educação cidadã, alcançar o entendimento da cidadania
pela visibilização dos diferentes, a partir da fala dos próprios sujeitos. É como a utopia da
democratização das diferenças, proposta pela cidadania visual, que remete a uma leitura do
visível a contrapelo, “evidenciando a pluralidade das representações sociais correntes e a
parcialidade mesma daquelas visibilidades hegemônicas” (ROCHA, 2012, p.38), o que
coaduna diretamente como o projeto do Canal da Cidadania para a TV aberta e gratuita.
Nessa história de constate remar contra maré da comunicação pública diante das
políticas de estado, a autorização para o funcionamento do Canal da Cidadania foi um dos
últimos atos do governo federal em 2016 sobre o tema da radiodifusão, como já posto
anteriormente. Sendo o Canal uma alternativa para revisar o lugar do cidadão nos dispositivos
sociais de controle e poder, a TVK pode ser tratada hoje como marco de resistência, e ao que
55
Disponível em http://recordtv.r7.com/jornal-da-record/videos/proposta-de-regular-meios-de-comunicacao-no-
brasil-e-alvo-de-criticas-da-oposicao-06102018. Acesso em: nov. 2018.
74
pese a legislação, muito se pode avançar na real autonomia para uma nova TV Pública. A
começar por um projeto de gestão e financiamento abertos, com participação da população.
4.1.1 Gestão aberta e participativa
Pela primeira vez na história do Brasil um canal de TV será
operacionalizado por uma organização social. E essa organização envolve
também você, que está ai nos assistindo (Pedro Albuquerque, 2016). 56
A gestão institucional e administrativa da TV Kirimurê teve início mesmo antes da
autorização para seu funcionamento, ainda na fase de solicitação junto ao Ministério das
Comunicações. Uma vez que a TV Educativa da Bahia estava autorizada a multiprogramar e
passava a ser a responsável legal pelo Canal da Cidadania, era agora o momento dos
responsáveis pela programação pleitearem suas faixas: uma para o Poder Público municipal,
uma para o Poder Público Estadual, e as outras duas para associações de natureza comunitária
– responsáveis por difundir conteúdos produzidos pela comunidade do município ou que
tratem de questões relativas à realidade local.
As entidades associativas e comunitárias saíram na frente. Logo após outorga para
TVE BA, o MiniCom lançou aviso de habilitação para selecionar associações dispostas a
operar as faixas de programação, seguindo rito descrito na Norma Regulamentar do Canal da
Cidadania (2012b). Também de acordo com a Norma, para que uma organização social
dispute um espaço na multiprogramação e passe a ser integralmente responsável pela faixa
por ela programada, é necessário enviar ao Ministério os seguintes documentos:
I - inscrição no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da
Fazenda – CNPJ/MF, com finalidade compatível com o disposto nesta
Norma;
II - Estatuto Social, devidamente registrado;
VI - Ata de eleição da diretoria em exercício, com a duração do mandato dos
diretores, devidamente registradas;
VIII - Prova de que seus diretores são brasileiros natos ou naturalizados há
mais de dez anos e maiores de dezoito anos ou emancipados;
IX - comprovante de endereço da sede da entidade;
X – declaração, assinada por todos os dirigentes da entidade, inclusive seu
representante legal, especificando que: a) todos os dirigentes residem no
município e não participam da direção de outras entidades executantes do
serviço de radiodifusão de sons e imagens; e b) a entidade não é executante
56
Fala do ator e apresentador Pedro Albuquerque durante o evento de lançamento da TV Kirimurê, em 2016.
75
de serviço de radiodifusão ou de serviço de acesso condicionado, bem como
de que a entidade não tem como integrante de seu quadro diretivo ou de
associados, pessoas que, nessas condições, participem de outra entidade
detentora de outorga para execução de qualquer dos serviços mencionados;
XIV - manifestação de apoio de associações comunitárias, entidades
associativas e instituições de ensino superior constituídas há mais de dois
anos no município, assinadas pelo representante legal e acompanhadas de
cópias do CNPJ, do estatuto e das atas de fundação e de eleição da diretoria
das respectivas entidades apoiadoras; (BRASIL, 2012b). 57
O processo de organização dos documentos e inscrição para solicitar uma das faixas
de programação do Canal da Cidadania de Salvador foi realizado por grupo multidisciplinar
denominado “construtor do Canal” 58
, pessoas que depois passaram também a ser os gestores
da Kirimurê. A Organização Social Filhos do Mundo – FEME, por sua disponibilidade e por
atender às exigências do edital de habilitação do MiniCom, foi apresentada como CNPJ
responsável pela articulação do Canal. Entretanto, conforme atas das reuniões do período, nos
debates e encontros para elaboração do projeto do Canal, o discurso sobre gestão aberta e
compartilhada já era predominante. Esse é o senso do Canal da Cidadania, todos devem
construir juntos, sem centralizações diz o relatório Kirimurê (2016/2017).
Isso se deu tanto no sentido de dividir responsabilidades quanto sobre a clareza de que,
ao contrário do que em geral acontece na TV brasileira, essa faixa não teria um dono. A
FEME deve funcionar como um fio condutor na rede de gestão do Canal a ser programado, e
todos podem e devem participar como gestores. Alguns mecanismos legais operacionalizam
essa prerrogativa, a exemplo da manifestação de apoio de associações comunitárias, entidades
associativas e instituições de ensino superior, exigida no Edital de Seleção Pública para
inscrição de associações interessadas em operar uma faixa de programação do Canal da
Cidadania como parte do processo de seleção da entidade para assumir a faixa.
57
As documentações exigidas nos itens III, IV, V, VII, XI, XII, XIII, foram revogados pela Portaria
6413/2015/SEI-MC, publicada no DOU de 02/12/2015, parte do processo de desburocratização para licença do
Canal da Cidadania, na tentativa de facilitar o acesso as faixas da cidadania. 58
De acordo com relatório de implantação da TVK (2016/2017), estavam entre o grupo de trabalho para
operacionalizar o canal da cidadania de Salvador: Aline Clea Souza, Anderson Soares Caldas, Vasco Aguzzoli,
Augusto Barreto, Leonardo Silva, Noildo Paixão, Wiltonauar Moura, Manu Moraes, Marcelo Rocha, Ana Paula
de La Ordem, Mel Campos, Katharine Lopes, Dina Lopes, Pola Ribeiro, Tati Rabelo, Lindinalva da Silva,
Nadinho do Congo, Marcus Alexandre Silva do Congo, Hudson Silva do Congo, Mariana Lima, Alessandra
Novaes, Wilson Sena Militão, Viviane Andrade, Glenda Lima, Alisson Santos, Cristiane Nery, Carla Almeida,
Efson Lima, Paulo Carneiro, Gustavo Erick Andrade, Lia Vasnconcelos, Vanessa Cançado, Marcus Maia,
Roberto Salles, Henrique Duarte. Profissionais técnicos, artistas, gestores, professores, articulares sociais e
culturais, e cidadãos e profissionais voluntários.
76
No caso da Kirimurê, estavam entre as cartas de apoiadores enviadas ao MiniCom, as
assinadas por universidades estaduais e federais, pelo Fórum Baiano de Agricultura Familiar,
pela Federação Nacional de Afoxés e outros. Entre os documentos é possível identificar
organizações locais que lutam pela democratização da cultura e da comunicação há bastante
tempo, como o Fórum Social do Beiru (unidade representativa da sociedade civil organizada
do bairro do Beiru – em Salvador), que age em dez bairros periféricos da cidade e no texto
indica que “sabemos que teremos espaço e voz para que nossa comunidade possa se
expressar” (Relatório TV Kirimurê, 2016/2017).
Dessas manifestações de apoio entende-se que as entidades, associações e
organizações se comprometem a caminharem juntas na construção do canal, devendo ser
igualmente mobilizadoras para que a sociedade civil se organize para ocupá-lo. O número de
entidades apoiadoras é, inclusive, descriminado no edital como critério principal para
desempate no caso em que, em um mesmo município, existam mais de duas entidades
interessadas em operar as duas faixas de programação.
Vinculada ao Movimento Social dos Povos Brasileiros (MSPB), a FEME foi fundada
em 1998 e tem título de Organização Social (OS) de caráter público estadual. Atua com
implantação de políticas públicas e sociais em sete territórios de identidade e cidadania do
estado da Bahia, em 13 municípios do estado de Alagoas e, em 10 municípios do estado do
Maranhão, articulando uma rede de trabalhadores e organizações59
.
Está entre os objetivos basilares da FEME criar uma rede de produção e
comercialização, integrada às políticas públicas do estado e dos municípios, tudo através de
ações nos eixos de Economia Solidária, Assistência Técnica e Extensão Rural, Segurança
Alimentar e Comunicação, Arte e Cultura – e a TVK se institucionaliza neste último contexto
temático, conforme consta em seu Regimento Interno. A FEME e o MSPB também inscrevem
a TVK como parte da iniciativa “O Brasil Reconhece o Brasil – Educação para a Cidadania”,
que promove ações de empoderamento sociopolítico, formação crítica e emancipatória,
preservação da memória, fortalecimento e afirmação da identidade territorial através de
linguagens artísticas, entre elas a linguagem audiovisual 60
.
59
Texto disponível no site da FEME, < http://feme.org.br/?page_id=468>, acesso em janeiro de 2018. 60
Há pouca informação disponível em rede aberta sobre o projeto “O Brasil Reconhece o Brasil – Educação para
a Cidadania”. Em matéria do Ministério da Cultura, de 2015, ele é citado como essencial na base do MSPB,
conforme matéria disponível em http://cultura.gov.br/tv-comunitaria-e-tema-de-reuniao-na-caravana-da-cultura/.
Acesso em: mar. 2018.
77
No edital de seleção, outro aspecto definidor do modus operandi para a gestão da faixa
do Canal da Cidadania descreve as características para as entidades interessadas em
programar. Entre não terem fins lucrativos, serem autônomas e não estarem subordinadas
administrativa, financeira ou editorialmente a nenhuma outra entidade privada ou pública, está
a necessidade de assegurar, em seu Estatuto Social, “o ingresso gratuito, como associado, de
todo e qualquer cidadão domiciliado no município [grifo nosso], bem como de outras
entidades associativas ou comunitárias sem fins lucrativos nele sediados”. Como qualquer
pessoa deve poder se associar a entidade responsável, também por essas vias, todos terão
oportunidade de participar com voz e voto sobre as deliberações do Canal.
Há também convergência para horizontalizar a gestão no trato entre a faixa a ser
operada pela FEME e a entidade detentora da outorga, a TV Educativa da Bahia. Está entre as
responsabilidades da TVE BA instituir um Conselho Local, com composição plural, que
contemple a participação de diversos segmentos do poder público e da comunidade local, e
que tenha como fundamento zelar pelo cumprimento das finalidades da programação,
estabelecer mecanismos de diálogo com a sociedade e, quando necessário, encaminhar
denúncias junto ao Ministério das Comunicações (BRASIL, 2012b). Um modo de reunir
diversos atores sociais para trabalhar pelo Canal em sua dimensão ampliada, não somente a
faixa da cidadania, mas também as faixas dedicadas aos governos estaduais e municipais.
Martín-Barbero (2002) reforça que para uma TV pública e cidadã ser instituída, ela
deve ir além da consideração da audiência e intervir especialmente no seu controle público e
na deliberação social sobre seu funcionamento e relevância pública. Um reforço aos
princípios defendidos para uma televisão pública, cultural e de qualidade, que deve ser gerida
por meio de um “chamado público, através de alocação de espaços transparentes e
participativos, coerentes com as políticas culturais de comunicação e educação do país e
baseado no mérito dos realizadores e produtores” (RINCÓN, 2002, p.31).
Estas características podem ser observadas no modelo de gestão proposto para um
Canal da Cidadania, e que parece ser atendido nessa primeira fase de planejamento e pleito da
faixa do que virá a ser a TVK. Reunir pessoas de várias frentes, entre professores, gestores
públicos, artistas, representações comunitárias e abrir o debate para a sociedade civil
organizada entender e participar da concepção do Canal foi fio condutor do processo de
pedido da faixa de programação da TV Kirimurê junto ao Ministério das Comunicações.
78
Toda documentação prevista em edital do Aviso nº1/2014, com solicitação para operar
uma das faixas de programação do Canal da Cidadania de Salvador, foi submetida ao
MiniCom com abertura do processo de nº 53900.010574/2014-2012, em 06 de agosto de
2014, direcionado ao grupo de Trabalho de Radiodifusão Educativa e Consignações da União.
Até que o aviso de habilitação final fosse autorizado, em 11 de maio de 2016, entretanto, o
processo foi submetido a alguns ajustes.
Em fevereiro de 2016, um o relatório técnico anual de execução de contrato de gestão,
disposto na nota técnica nº 2707/2016, emitida em fevereiro pelo MiniCom, indicava que a
Associação Filhos do Mundo descumpria um dos itens que Norma, que veda manutenção de
vínculo com entidade do governo de qualquer esfera. O documento apontava celebração de
contrato entre FEME e a Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte do Estado da
Bahia (SETRE), indeferindo sua participação na seleção pública.
A este indeferimento, a FEME respondeu em março de 2016 com documentos que
esclareciam sobre a aparente irregularidade indicado que, embora tivesse projetos executados
junto a SETRE, não possuía qualquer vínculo de subordinação ou dependência com essa
Secretaria. O grupo construtor mais uma vez se mobilizou e, munido dos documentos e
declarações se dirigiu a Brasília para tratar diretamente com os gestores públicos. “[...] Para
além de enviar documentações, resolvemos solicitar uma audiência, por entender que o senhor
Ministro comunga dos mesmos objetivos precípuos ao Canal da Cidadania e por se tratar de
um assunto de máxima importância para nosso povo”, era parte do texto do ofício nº 10/2016
da FEME, que solicitava reunião com o Ministro das Comunicações André Figueiredo e o
Secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica, Roberto Pinto Martins.
Até o ato final que deu início a autorização formal para a FEME operar a faixa de
programação, as travessias da Kirimurê também foram marcadas pelas iniciativas do grupo
construtor de articular e planejar o funcionamento do Canal. Para isso, no interstício entre
submeter documentos (2014), reunir com gestores e finalmente poder programar (2016),
foram formados grupos de trabalho com finalidades específicas para dar andamento à
montagem do Canal – GT Comercial, GT Financeiro, GT de Programação, GT de
Comunicação, GT de criação de marca.
Aconteceram também ciclos formativos para esses GTs. Em agosto de 2015 houve
formação sobre o método Canvas para planejamento do Plano de Negócios da Kirimurê,
ministrado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE-BA) e
79
no mesmo período o historiador Marcelo Rocha palestrou sobre TVs Públicas, TVs privadas e
Canal da Cidadania. Em setembro de 2015, Mauro Bonis, professor do Departamento de
Design do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), via Skype,
ministrou o curso de concertação de marcas para criação da identidade visual da Kirimurê.
Somam-se ao processo formativo os seminários sobre o Canal da Cidadania, a
exemplo do III Encontro do Cinearts, que em fevereiro de 2016 reuniu, em Salvador, dezenas
de interessados em debater a democratização da comunicação. Na ocasião, falou-se sobre a
importância de uma nova frente para produzir conteúdo audiovisual local e de como o Canal
da Cidadania de Salvador estava sendo planejado de forma colaborativa 61
. Ao convidar a
sociedade soteropolitana a participar, os eventos fizeram surgir também novos parceiros.
Com a abertura para que a sociedade civil integre sua gestão, os processos formativos
são essenciais para que a TVK possibilite o real acesso a esse espaço de poder: um canal
aberto de televisão. Formação que pode ser alinhada ao que Bourdieu (1997) pondera como
domínio dos instrumentos de produção, quanto à sua crítica sobre as condições habituais para
se falar na programação televisiva. É um poder dizer alguma coisa, mas também saber como
fazê-lo dentro desse ambiente que é dominado pela inciativa privada por décadas no país.
Considerando o aspecto experimental da gestão da faixa, a TVK evidencia também uma
estratégia atenta à construção de sua autonomia. Cifuentes (2002) reforça que, ao entender
sobre a produção televisiva, uma gestão cidadã pode impedir que determinadas conjunturas
políticas comprometam a existência de uma TV pública.
Foram esses grupos de trabalho que, a partir da data de publicação da habilitação, em
maio de 2016, passaram a contar dezoito meses como prazo máximo para colocar a
programação da TV Kirimurê no ar, conforme Norma Regulamentar do Canal da Cidadania.
Todos trabalharam para executar o evento de lançamento oficial do Canal, que resultou na
rota inaugural da Kirimurê, como aqui navegada. As instabilidades e ausências, no entanto,
voltaram a operar no período subsequente: não havia fundo para manter os profissionais
voluntários trabalhando, e a divisão de tarefas passou a ser um problema. Assim também o
encaminhamento de outras questões, como a inscrição do Canal na ANCINE ou aquisição de
equipamentos para transmissão para antena da TVE BA, por exemplo.
61
Material disponível na página do facebook do MSPB, através do link
https://www.facebook.com/mspbbahia/posts/828024404010622?__tn__=K-R. Acesso em: dez. 2018.
80
De tantos parceiros, de tantas pessoas que iniciaram nesse processo, no momento só
essa equipe está podendo atuar [...] se o Canal não for ao ar agora, então é provável que a
gente não consiga levar adiante, revela ata de reunião dos grupos de trabalho disponível no
relatório da TVK (2016/2017). Mesmo fazendo um lançamento oficial, em novembro de
2016, a equipe não conseguiu colocar no ar o canal 10.2, e a lei determinava que isso devesse
acontecer até novembro de 2017 ou a entidade perderia o direito a programar a faixa.
Não existe no dispositivo da Norma Regulamentar do Canal da Cidadania ou de
quaisquer outras publicações legais nenhuma regra específica para montar a gestão
administrativa do Canal, exceto pela exigência de formação de um Conselho Local,
encabeçado pelo responsável pela outorga. Esse conselho, por sua vez, deve nomear um
ouvidor cuja obrigação é exercer a crítica interna da programação veiculada, observando os
princípios do Canal e analisando as manifestações dos telespectadores (BRASIL, 2012b). E é
exatamente nessa fase de estruturação orgânica do Canal que se evidenciam fragilidades na
condução da sua gestão e que perduram até o momento de finalização desta dissertação.
Ao apontar tais fragilidades, no entanto, é imprescindível reforçar que, do modo como
foi planejado e legislado, um Canal da Cidadania tem funcionamento estrutural convergente
ao que se considera adequado para uma TV Pública. Desde a outorga para uma TV Educativa,
o que azeitou o caminho para a implantação do Canal, até a seleção das entidades para
programar e que culmina na horizontalidade proposta em Conselhos abertos, tudo direcionado
para uma TV feita pelo cidadão e para o cidadão, em um grande encontro social. Ao poder
decidir sobre como gerir um canal de TV, a sociedade tem acesso ao que é próprio do
exercício da cidadania na contemporaneidade, na reunião dos heterogêneos e dissidentes, em
um movimento recíproco do que se reconhece como a opinião e a esfera pública.
Na experiência da Kirimurê há também que se apontar o que ainda não está ajustado.
De maneira resumida, os recursos humanos imprescindíveis para seu funcionamento são:
técnicos programadores, responsáveis por enviar o conteúdo da TVK para a TVE BA, de
modo que a emissora educativa possa irradiar a programação para toda Salvador e região
metropolitana; e uma equipe mínima especializada para receber e selecionar o conteúdo para
programação além de manter relações institucionais com as demais frentes do Canal da
Cidadania e, claro, com a sociedade civil.
Esse número exíguo de profissionais se dá porque a TV Kirimurê não é uma emissora,
mas uma programadora e, portanto, não é obrigada a produzir conteúdo – embora possa
81
produzi-lo. A TVK deve organizar a programação da sua faixa no Canal, como se verá melhor
na seção que trata especificamente sobre programação.
Na busca por formalizar uma equipe de trabalho para a TVK, a equipe construtora
elaborou documento de apresentação do Canal, como parte do seu Plano de Negócios, e ali
surge o primeiro organograma imaginado para a TV, que tem estrutura com base em um
Conselho Curador, ao qual se ligavam diretamente um presidente e um vice-presidente,
seguidos de sete diretorias que se subdividiam em outras oito gerências. No documento,
direcionado para possíveis colaboradores financeiros do canal, falava-se na geração de mais
de mil postos de trabalho diretos e indiretos (RELATÓRIO KIRIMURÊ, 2016/2017).
Com um organograma complexo e que demanda numerosas contratações, o
planejamento indicava um alto custo inicial de recursos humanos para a TVK, o que não
correspondia à realidade de uma faixa da sociedade civil no Canal da Cidadania. Na ausência
de recursos financeiros e com o contínuo afastamento da equipe que deu início a TV
Kirimurê, esse organograma se tornou inexequível e o resultado foi um número ainda menor
de colaboradores para dar continuidade ao Canal.
Também houve demasiada concentração de esforços dos grupos de trabalho
comerciais e de financiamento, gerando expectativas de retornos financeiros que antecediam a
própria primazia da democratização da TV. É certo que muito já havia sido feito até o
lançamento, mas a mobilização da sociedade civil para que outros cidadãos passassem a se
responsabilizar pelo Canal perdeu ênfase e isso comprometeu o andamento das tarefas. Dados
do relatório da TVK (2016/2017) ilustram tais assertivas. O primeiro semestre de 2017 foi
marcado por reuniões com instituições diversas, entre governamentais e da iniciativa privada,
com pautas destinadas a apresentar a Kirimurê para potenciais financiadores. Foram criados
panfletos, planejados pacotes de veiculação e para propagandas institucionais, além de
planilhas com orçamento para manutenção da TV. Não se trata de uma crítica ao projeto de
captação de recurso, que na verdade teve grande relevância para a Kirimurê, mas à dedicação
enfática no desenvolvimento dessa frente.
Em junho de 2017, durante reunião ordinária, o grupo gestor discutia ainda formas de
rentabilizar o Canal. Na ocasião, Anderson Soares, um dos coordenadores do grupo, citou a
importante cobertura jornalística que a TVK pretendia fazer do Fórum Social Mundial, evento
que estava por acontecer em Salvador. O Fórum é um grande encontro internacional
organizado por iniciativa da sociedade civil de vários continentes e voltado para constituição
82
de redes entre os movimentos e organizações sociais, um relevante evento para debater a
democratização da comunicação.
Muitos integrantes da equipe TVK eram também produtores independentes, e já
haviam produzido vídeos institucionais, reportagens e outros produtos audiovisuais para o
Canal, fazendo uso de seus próprios recursos. Entretanto, sem orçamento, Anderson Soares e
outros membros da Kirimurê enfatizaram que o trabalho de cobrir eventos envolve custos e
que não havia mais condições de continuar a fazê-lo voluntariamente (Relatório Kirimurê
2016/2017). Tudo se convertendo no problema central do orçamento.
Embora sejam necessárias condições mínimas financeiras para gestão de um canal
programador de TV, ainda que popular e participativo, aqui se considera que nas condições já
alcançadas pela TVK, no lugar de focar em produzir conteúdo e, portanto, angariar recursos
para produzi-los, era preferível continuar a centrar esforços para convocar a participação da
sociedade civil e dividir responsabilidades. Mesmo que não haja um manual de gestão a ser
seguido, não se pode negligenciar o fato de que há décadas o grande divisor de águas entre as
produções televisivas é o financiamento. Ao contrário de ceder às mesmas pressões de
mercado já praticadas, a TVK pode aproveitar sua autonomia para criar um projeto com
modelos próprios de gestão e financiamento.
“Por meio dos índices de audiência, é a lógica comercial que se impõe às produções
culturais” (BOURDIEU, 1997, p.37), e o modelo predominante fundado na propaganda e
venda para formação de consumidores ainda é muito estrutural, carecendo de profunda
mudança na cultura televisiva. Embora a procura da TVK seja por entidades alinhadas a
política de democratização da comunicação e com interesse em apoiar o Canal, investir em
retorno imediato é a lógica do capital – o valor do espaço publicitário está de acordo com o
número de consumidores que assistem TV em determinado horário e dia.
Diante de todas essas navegações turbulentas e sem orçamento próprio, a TV Kirimurê
conseguiu retransmitir diretamente de seu sinal a programação da TV Escola, cumprindo com
as exigências legais e mantendo o Canal no ar. O grupo de trabalho mais uma vez voltou a
enxugar no final de 2017, com destaque para o afastamento de Anderson Soares Caldas e
Aline Clea Souza, que coordenaram a maior parte das atividades da TVK desde a solicitação
de autorização junto ao Ministério das Comunicações.
Em 2018 quem passa a responder como representante da TV Kirimurê é Dina Lopes, e
apesar de importantes avanços alcançados, não há nenhum relatório oficial do período. No site
83
da TVK, há informações de que a TV (com coordenação de membros da FEME) elaborou e
divulgou proposta para seu Regimento Interno, realizou uma série de oficinas de formação
para jovens das periferias de Salvador – que mais tarde vieram a colaborar com a grade de
programação, e celebrou alguns contratos não onerosos para exibidores no canal, conseguindo
colocar conteúdo local e de produção independente no ar 62
.
O regimento que está publicado traz a sugestão de um novo organograma, com
descrições mais específicas sobre as composições e competências e uma estimativa de custos
menor que o anterior. As instâncias previstas para estrutura gestora da TVK são os Conselhos
Deliberativo, Fiscal e Local Consultivo, além de uma Coordenação Colegiada Executiva. Um
parágrafo único descreve a mecânica geral em que “a Coordenação Colegiada atuará
cumprindo as decisões do Conselho Deliberativo, que ouvirá o Conselho Local, sendo o
Conselho Fiscal o órgão de controle, para operacionalizar o pleno funcionamento do Canal da
Cidadania de Salvador TV Kirimurê” (REGIMENTO KIRIMURÊ, 2018, p.4).
Órgão máximo é o Conselho Deliberativo. Ele deve, inclusive, aprovar o texto final
do regimento interno da TVK. Responsável por tratar dos planos de trabalho, proposta
orçamentária e normas administrativas e operacionais da faixa, o Conselho segue o princípio
de reunir vozes de diversas entidades e setores da sociedade civil organizada, replicado em
todos os demais Conselhos dispostos no documento. Sua formação reúne dezoito membros
efetivos entre representantes dos povos e comunidades tradicionais, dos professores de ensino
médio, dos movimentos LGBT, negro e das mulheres, e outros.
Importante ressaltar que mesmo com a ampla representação proposta para formar o
conselho, uma gestão que pretende expressar pluralidade e diversidade social e que se propõe
a ser um espelho da sociedade soteropolitana precisa ter atenção e inovar. De tal modo, deve
se aproximar mais diretamente do cidadão comum e não restringir as representações aos
movimentos organizados, entidades que muitas vezes, por excessiva partidarização, se
afastam dos interesses das suas comunidades.
Em 04 de abril de 2018 foi publicada, no site da TVK, uma convocação para constituir
o Conselho Deliberativo, no aguardo de entidades interessadas se manifestarem. Sem
respostas, não houve quórum, e a Kirimurê continua sem um Conselho formado oficialmente.
O grupo de colaboradores que segue com a faixa da cidadania se mantem resumido e, de
62
De acordo com o CAP VI, Art. 22, do regimento interno da Kirimurê: Todos os conteúdos entregues para
exibição no Canal da Cidadania serão submetidos previamente à formalização de um contrato.
84
maneira voluntária, se responsabiliza por receber o conteúdo enviado a Kirimurê e manter as
articulações junto à sociedade. Do mesmo modo, o Conselho Local previsto para ser instalado
pela TVE BA, até então, não se formou.
Todo esse jogo de ausências envolve outros elementos além do interesse político.
Entre eles uma questão relevante diz respeito à preparação da sociedade para as novas formas
de gestão do espaço televisivo. Há uma dificuldade prática de exercitar essa participação, que
envolve desde a falta de entendimento da informação como direito até o que Jenkins (2009)
chama de provável falta de interesse. Será que a sociedade baiana está pronta para expandir a
participação, ou esse público está mais propenso a se conformar com as relações já
estabelecidas e cristalizadas com os meios?
A televisão, mesmo a comercial, não pode continuar a praticar o seu modelo vertical,
não quando predominam as novas mídias digitais horizontalizadas, com aparente controle do
usuário. Mas, conforme problematiza Jenkins (2009, p.326), uma vez que “o público não vai
reconsiderar sua relação com a mídia da noite para o dia, e a indústria da mídia não vai
renunciar ao seu domínio”, como se fará a nova TV? Para o campo público essas duas forças
se encontram aumentando a resistência da sociedade em participar: cidadãos que ainda não
entendem a sua importância para TV pública são constantemente seduzidos por uma televisão
comercial que se esforça para renovar as relações com a audiência, servindo de laço entre o
poder público e a sociedade, mudando suas narrativas, olhando mais para as periferias e
estimulando a participação popular.
A TV Kirimurê, uma faixa dedicada à autonomia popular, é um acontecimento ainda
mais novo para a TV aberta e a mudança certamente exige tempo. Mas a experimentação
permite encontrar estratégias diversas e o caminho escolhido não pode prescindir de chegar o
mais perto possível da população e trazê-la para comandar a Kirimurê. O resultado recente da
experiência soteropolitana aponta a mobilização social como imperativo, promovendo diálogo
com outras mídias independentes e formando uma rede capaz de se expandir e consolidar.
Igualmente indica a necessidade de se aproximar da gestão pública nacional, estadual
e municipal e exigir um alinhamento sobre as suas responsabilidades com a manutenção do
projeto do Canal da Cidadania. A defesa pela autonomia da intervenção estatal não exime os
governos de responderem pela comunicação pública como o fazem com a saúde ou educação,
por exemplo: os representantes governamentais não são donos das universidades ou hospitais
públicos, mas respondem pela existência e manutenções deles.
85
Essa fase de análise do percurso Kirimurê, ao mesmo tempo em que evidencia um
exponencial esforço de cidadãos de várias frentes que desejam realizar o projeto de uma TV
cidadã, também expõe importante fato para os debates que seguirão: os registros formais
ainda não são comuns à rotina da TVK, e, quando o são, ainda é pouco organizado. O
relatório oferecido para esta dissertação, totalmente impresso (sem versão digital), por
exemplo, não tem folhas numeradas, embora tenha centenas delas.
No trato de uma gestão autônoma e independente, na qual o cidadão é protagonista e
há uma cuidadosa remodelação dos espaços públicos e dos dispositivos que se perdem ou se
recriam para o reconhecimento de múltiplas vozes da sociedade (CANCLINI, 2006), gerir um
Canal ainda é algo que está sendo aprendido, sendo mais um desafio para continuar a navegar.
4.1.2 Controle e Independência Financeira
O mercado não pode gerar inovação social, pois esta pressupõe diferenças e
solidariedades não funcionais, resistências e dissidências, enquanto o
mercado trabalha unicamente com rentabilidade (MARTÍN-BARBERO,
2002, p.45).
O financiamento é tomado como base por todas as linhas de defesa para um modelo de
televisão pública independente, tanto no que se refere ao mercado e sua prática baseada no
consumo publicitário, quanto ao estado, margeado por uma intromissão ideológica que
compromete a existência da TV pública. Espera-se de uma tevê do campo público uma gestão
capaz de captar recursos que mantenham a sua autonomia, ou até mesmo o
autofinanciamento, sendo esse sempre um dos itens que causa maior vulnerabilidade para
manutenção dos sistemas públicos em todo o mundo.
Na lógica de construir um campo público para a radiodifusão como alternativa ao
modelo comercial hegemônico, o fator financeiro é predominante. Para alcançar uma
televisão como espaço estratégico que represente o vínculo entre os cidadãos e seus
pertencimentos a uma comunidade, essa TV precisa fazer algo que a comercial não pode,
“devido a sua tendência estrutural a uma obsolescência acelerada e generalizada, não apenas
dos objetos, mas também das formas e instituições”, completa Martín-Barbero (2002, p.45).
Quanto ao Estado, no entanto, a dicotomia não é coerente, já que como direito
garantido constitucionalmente, a comunicação deve ser parte dos planos de políticas públicas,
86
sem que isso incorra em autoridade para qualquer governante destituir um veículo de
comunicação pública. De certo que um sistema público de TV não deve depender apenas da
dotação orçamentária estatal, especialmente com o predominante declínio desses orçamentos
na atualidade, mas os poderes públicos precisam entrar como subsidiários no processo de
financiamento dos sistemas públicos (CIFUENTES, 2002), pelo menos até que se
estabeleçam formas estáveis para suas manutenções.
Em termos de orientação legal para o financiamento da radiodifusão pública no Brasil,
é central a proibição da publicidade comercial de qualquer tipo. Tal regra é inaugurada em
1967, com a legislação para TV Educativa que veda “a transmissão de qualquer propaganda,
direta ou indiretamente, bem como o patrocínio dos programas transmitidos, mesmo que
nenhuma propaganda seja feita através dos mesmos” (BRASIL, 1967), e perdura até os dias
atuais em toda legislação para TV Pública digital e seus desdobramentos, como o Canal da
Cidadania. Sobre esse último dispõe-se que, em relação aos recursos econômicos: “são
vedadas, em todas as faixas de programação do Canal, a veiculação de anúncios de produtos e
serviços e a venda de horários da programação” (BRASIL, 2012b).
Apesar da clareza sobre a proibição para financiamento comercial, o que garante a
autonomia da TV pública ante o mercado, durantes décadas nenhum ato complementar legal
ou política pública determinou diretrizes para financiar as TVs desse campo. Disso resulta que
a maioria das emissoras implantadas é contraditoriamente63
financiada por um modelo de
negócios misto, no qual “os recursos são provenientes, em grande parte [grifo nosso], do
tesouro (municipal, estadual e/ou federal), e, em menor escala, da venda de serviços,
patrocínios e licenciamento de produtos” conforme aponta o Diagnóstico do Campo Público
da TV (Fórum Nacional de TVs Públicas, 2006, p.50).
A TVE BA se inscreve nesses dados e é mantida com orçamento majoritariamente
oriundo do Governo do Estado, através de recurso da Secretaria Estadual de Educação – já
tendo sido subordinada à Secretaria de Comunicação anteriormente. Ao receber autorização
para implantar o Canal da Cidadania, a relação financeira da TV Educativa com o Governo do
Estado da Bahia se mantém, embora agora ela seja responsável também por, além dos custos
de implantação, possibilitar a transmissão do conteúdo de todas as quatro faixas de
63
Gabriel Priolli (2006) explica que com as políticas de privatização e de enxugamento das funções do Estado
brasileiro, a partir dos anos 1990, os orçamentos TVs educativas minguaram a um ponto quase insustentável.
Com malabarismos jurídicos e boa dose de tolerância dos organismos de fiscalização, algumas educativas
contornaram as restrições legais e se abriram à publicidade comercial.
87
programação e por arcar com os custos relativos à operação e à transmissão do Canal,
conforme disposto na Norma Regulamentar do Canal da Cidadania (BRASIL, 2012b).
O alto custo para implantar e manter um Canal foi um dos motivos apontados para o
recuo das prefeituras e governos estaduais ainda na fase de solicitação de outorga junto ao
Ministério das Comunicações, e em Salvador a implantação se fez financeiramente possível
porque a TVE BA já está implantada e digitalizada. Tendo a TVE BA como entidade
financeira encarregada de montar e dar manutenção ao sistema de transmissão, cabe à gestão
da TV Kirimurê, responsável pela faixa de programação para a qual foi habilitada, estabelecer
acordos de cooperação, convênios e ações de colaboração com entidades públicas ou
privadas, com vistas a produzir conteúdo e à transmissão do canal; além de custear o
transporte dos sinais da sua própria programação até o sistema irradiante (BRASIL, 2012b).
Há, portanto, duas frentes que carecem de investimento e financiamento no plano de
gestão da TVK: a primeira, imprescindível, é custear o tráfego de seu conteúdo até a antena
irradiadora da TVE, e a segunda é organizar o conteúdo para grade de programação. De modo
a atender prerrogativa número um, o primeiro investimento do grupo construtor da TVK foi
direcionado à compra dos equipamentos para transportar o sinal da sua sede no bairro da
Barra para a antena da TVE BA, no bairro da Federação, ambos em Salvador. De acordo com
o relatório da TVK (2016/2017) foram investidos cerca de vinte e cinco mil reais na compra
de hardwares e softwares para montagem de um sistema com autonomia para trabalho remoto,
de modo que o programador, de qualquer computador conectado a internet, pode enviar e
alterar o conteúdo da programação da Kirimurê.
O recurso foi parte de doações diretas de produtores ligados ao grupo construtor,
baseado na Norma que autoriza que a receita do Canal pode ser proveniente também de
“doações que lhe forem destinadas por pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou
privado” (BRASIL, 2012b). Logo que implantando, o equipamento de transmissão apresentou
problemas para levar o sinal até a antena da TVE BA, ao passo em que, com autorização do
então diretor geral do IRDEB BA, Flávio Gonçalves, o transmissor da TVK passou a ficar
alocado diretamente nas instalações da TVE BA (Relatório Kirimurê, 2016/2017).
Ainda na primeira frente, atente-se para a necessidade de ter profissionais que
executem as demandas de receber e identificar o conteúdo de acordo com os princípios do
Canal da Cidadania e que, tecnicamente, organizem a programação. Hoje toda essa atividade
continua sendo executada por colaboradores voluntários e é urgente que a TV Kirimurê
88
consolide uma equipe de trabalho. Isso pode ser feito por meio de recursos provenientes de
dotações orçamentárias; de apoio cultural de entidades de direito público e de direito privado;
sob a forma de patrocínio de programas, eventos e projetos; de publicidade institucional de
entidades de direito público e de direito privado; de recursos provenientes de acordos e
convênios firmados com entidades públicas ou privadas; e de rendas provenientes de outras
fontes, desde que não comprometam os princípios e objetivos do Canal (BRASIL, 2012b).
Na frente que trata sobre o financiamento para a programação, com base na defesa de
que uma TV pública independente, com garantia de orçamento necessário para sua
manutenção, de previsibilidade da receita a ser recebida e de real autonomia frente ao estado e
ao mercado (Rumphorst, 2007), a proposta de um canal que é programador e não tem
obrigação de produzir conteúdo desponta com forte alinhamento.
“A grande inovação, aliás, é não produzir programas nem os financiar, adquirindo o
que precisa de terceiros, em geral produtores independentes de toda parte do mundo” 64
,
defende Gabriel Priolli como forma de cortar custos e fomentar a produção independente. Tal
iniciativa possibilita financeiramente a existência da TV pública no Brasil e democratiza a
entrada de diferentes conteúdos na programação, também de acordo com Priolli. A essa
perspectiva de produção independente, no contexto do Canal da Cidadania, deve-se ampliar
para o fato de que, qualquer conteúdo que não fira os princípios do canal, produzido por
qualquer cidadão em pessoa física ou jurídica, deve ser transmitido na programação da TVK.
Ainda soa utópico imaginar que um canal de TV possa montar sua grade de
programação apenas com vídeos produzidos por pessoas comuns, ou mesmo que todo cidadão
esteja disposto a ser um realizador de conteúdo audiovisual. Mas hoje, com a transição do
formato broadcasting – de conteúdo diluído, pensado para atingir o público e agradar a
maioria da audiência – para um formato narrowcasting, consumo mais personalizado e que
permite ao telespectador acessar apenas o conteúdo que mais o interessa, essa utopia ganha
forma de sonho alcançável. E isso não somente pela perspectiva do cidadão poder escolher o
que assistir e na hora que quer, mas por se tratar de um conteúdo com laços mais “estreitos”,
construído para públicos direcionais.
Soma-se o fato de a TV Pública não precisar ter compromisso com a grande audiência,
já que sua função basilar é pautada no fluxo de programas diversificados, sobretudo com a
64
Matéria disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/2007/07/01/ha-publico-para-uma-tv-publica/. Acesso
em: out. 2018.
89
produção de conteúdo local atento às preferências e necessidades do cidadão. Juntos, então,
esses fatos apontam o Canal da Cidadania como espaço potencial para experimentação de
conteúdo, o que em muito colabora para diminuir os seus custos de manutenção.
Importante avanço no trato entre a TV Kirimurê e as produtoras independentes
aconteceu em 2017, na ocasião do evento NordesteLab. A iniciativa é uma plataforma de
articulação desenvolvida a partir de ações de formação, articulação e desenvolvimento de
mercado audiovisual, com ênfase nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste e com apoio do
FSA e da ANCINE. Em um dos seus eixos centrais, o Nordeste Lab promove as rodadas de
negócio, voltadas para produtoras que desejam submeter seus projetos audiovisuais para
avaliação dos canais de televisão 65
.
A TV Kirimurê participa do evento como canal de televisão em busca de conteúdo, e
dezenas de projetos como parceiros para exibição de conteúdo na sua grade de programação
(Relatório Kirimurê 2016/2017). Na ocasião, a dinâmica entre a TVK e as produtoras se dá a
partir do edital do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro, o
PRODAV, programa de financiamento do Fundo Setorial do Audiovisual, ligado a ANCINE,
e destinado ao fomento de projetos de produção, programação, distribuição, comercialização e
exibição de obras audiovisuais brasileiras de produção independente.
Há um circuito estabelecido em que uma produtora independente, que busca
financiamento para produzir seus conteúdos, encontra possibilidades em programas de
incentivo do governo, como o PRODAV, mas que para escoar essas obras precisa receber
pela licença do conteúdo que deve ser paga pela emissora interessada em exibir. Os valores
das licenças variam de acordo com o modelo da emissora (pública ou comercial) e também
com o valor a ser financiado, pois quanto maior o valor do projeto, maior o valor da licença.
No ciclo, a cada exibição na TV, as produtoras independentes somam pontos que são
critérios de avaliação quando retornam para editais de seleção em programas como o
PRODAV, e assim, quanto mais exibirem, mais chances têm de conseguir o financiamento.
Além disso, é preciso que a produtora apresente à ANCINE um pré-contrato assinado com a
TV que deseja veicular o produto quando submeter aos editais de financiamento, uma
confirmação de que terá onde exibir seu conteúdo, o que exige uma parceria TV x produtora
independente – é aqui que as rodadas de negócio do NordesteLab se configuram.
65
Mais sobre o NordesteLab em http://www.nordestelab.com.br. Acesso em: dez. 2018.
90
Mas como a TV Kirimurê pode participar dessa engrenagem se não tem orçamento?
Durante as rodadas de negócios ela se apresenta como canal exibidor, e dispõe os seguintes
critérios para aprovação dos produtos: ter conexão com Salvador e região metropolitana;
representar a cultura brasileira, nordestina e baiana; ter custo de até R$ 900 mil reais; fazer a
entrega para as comunidades quando o produto for ao ar; estar de acordo com os princípios do
Canal da Cidadania; priorizar produtoras pequenas que dificilmente teriam projetos aprovados
em rodadas de negócio; e a produtora deve trazer o parceiro comercial para pagar a licença
(Relatório Kirimurê, 2016/2017).
O regulamento geral do PRODAV 66
permite que a produtora viabilize em seu projeto
um parceiro comercial para pagar pela licença do conteúdo. A Kirimurê, durante o
NordesteLab, estabeleceu um contrato com produtoras para que elas se responsabilizem,
através do alinhamento com a empresa interessada67
em apoiar seus projetos, pelo pagamento
da licença para exibição no Canal. Em resumo, a TVK entra com o espaço de exibição na TV
de sinal aberto e digital e a produtora disponibiliza seu conteúdo financiado junto a ANCINE
através do PRODAV, com a condição de incluir em seu orçamento a licença que deveria ser
paga pela faixa do Canal da Cidadania, sem custos para a TVK.
Entre séries documentais, filmes de ficção e programas televisivos, nenhum dos
projetos assinados com a Kirimurê e submetidos ao edital PRODAV foi concluído, mas o
processo deixa um mapa para as TVs públicas que procuram caminhos que viabilizem sua
programação. Muitos editais municipais, estaduais e federais para produtoras independentes
ficam estagnados porque não há TVs interessadas em pagar pelo conteúdo, então ter uma TV
como a Kirimurê como primeira janela de exibição para produtores independentes interrompe
uma ausência histórica, e mais que isso, faz com que a TVK possa ser uma startup,
impulsionando iniciativas pelo país inteiro (Relatório Kirimurê, 2016/2017).
De tal modo, a ação do grupo construtor no NordesteLab pode ser uma alternativa ao
mercado independente do audiovisual, atendendo tanto a política de fomento à produção
(como aconteceu com o DOCTV) quanto fortalecendo a TV Pública através do plano de
exibição no Canal. Além disso, um novo ciclo é gerado e permite que, como programadora,
66
Disponível em https://fsa.ancine.gov.br/sites/default/files/regulamento-geral-do-
prodav/Regulamento_Geral_do_PRODAV___versao_26.12.2013.pdf. Acesso em: dez. 2018. 67
Esse parceiro comercial pode ser qualquer pessoa física ou jurídica interessada em apoiar o projeto e que nele
encontre feedback que pode variar entre assinatura como apoio cultural nos conteúdos até propaganda
institucional, sem apelo comercial, na própria Kirimurê.
91
ao exibir conteúdo local de produtores independentes, a TVK consequentemente fortaleça sua
imagem e ganhe a confiança da sociedade para que tenha interesse em se manifestar.
Completando dois anos de inaugurada em novembro de 2018, a TV Kirimurê ainda
não tem uma linha de financiamento instituída, mas o projeto Kiriamigos do Canal também
teve destaque na busca por sua sustentabilidade orçamentária entre os anos de 2016 e 2017. A
inciativa consiste em alcançar empresas públicas ou privadas da região que, motivadas pelo
baixo custo para inserir sua publicidade institucional em um Canal de TV aberta, se tornassem
parceiras da Kirimurê. Estavam previstos acordos com pacotes de R$ 5.000/mês,
R$10mil/mês e R$15.000/mês, com os respectivos modelos: 8 inserções de 30 segundos todos
os dias, 16 inserções de 60 segundos todos os dias, 20 inserções de 60 segundos todos os dias.
Para sensibilizar as potenciais parcerias, o grupo da TVK anunciava que, ao fecharem
um contrato logo na primeira fase do Canal, as empresas escreveriam seu nome na história
por acreditarem na primeira TV Cidadania do Brasil. Estavam entre as contrapartidas para os
colaboradores, além da inserção de seu material na programação, o recebimento de um Selo
Exclusivo, entregue de forma digital e como placa comemorativa, e um pacote de veiculação
e visibilidade exclusiva durante os 12 primeiros meses de funcionamento do Canal. A
previsão era de que apenas 20 empresas fossem comtempladas com o Selo Kiriamigo
(RELATÓRIO KIRIMURÊ, 2016/2017).
A venda é permitida pela Norma Regulamentar do Canal da Cidadania (2012b), que
autoriza orçamento oriundo sob a forma de patrocínio de programas, eventos e projetos e de
publicidade institucional de entidades de direito público e de direito privado. Por publicidade
institucional entende-se a divulgação de dados não comerciais das empresas, sem que seja
noticiada qualquer informação sobre produtos, promoções ou valores específicos. O mesmo
vale para entidades públicas, que podem pagar para distribuir publicidade legal, baseada na
transparência e na lei de acesso a informação.
No plano há também a previsão de pacotes para patrocínio de programas e
propagandas institucionais com valores variáveis, para que o investimento retornasse ao
apoiador através de assinaturas no oferecimento dos programas da TVK, agradecimentos nos
créditos finais da programação, inserção da marca em todas as mídias da Kirimurê (cartazes,
folders, eventos, outdoors, e outros). A relação tempo de duração da inserção x turno
apresentava valores que variavam do mínimo de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) ao máximo de
R$ 400 (quatrocentos reais), incomparáveis a qualquer tabela de TV comercial.
92
A iniciativa se distingue por tentar criar um modelo de negócio adaptado ao padrão de
publicidade do mercado, defendido por alguns autores como alternativa para que uma TV
pública alcance seu autofinanciamento. O livro televisão pública, do consumidor ao cidadão
(RINCÓN, 2002) sugere tomar entre as linhas prioritárias para alcançar um modelo de
financiamento sustentável, a busca por entender como a TV Pública pode encontrar
estratégias de publicidade com critérios e responsabilidade cidadã e aproveitar a convergência
para oferecer serviços comunicativos, mesmo que os estados não cumpram com suas
responsabilidades em prestar esses serviços.
Sobre isso não há unanimidade. Nem mesmo sobre a conservação da publicidade
como parte de uma grade televisiva pré-determinada. Por um lado Newton Cannito (2010)
defende que a tendência da TV digital (aqui falando de televisão em geral, e não pública
especificamente) é acabar com o intervalo comercial. Para ele esse intervalo “já perdeu
terreno com a chegada do controle remoto [...] e outros modelos comerciais ganharão força,
como o anúncio simultâneo de TV, que possibilita dividir a tela e fazer o anúncio enquanto o
programa é exibido” (CANNITO, 2002, p. 116).
Entretanto, contrariando a lógica de “não adianta inserir publicidade na grade porque
os espectadores não vão mais aceitar”, atualmente os anúncios e propagandas são obrigatórios
para quem assiste a um vídeo gratuito no youtube ou no intervalo de um jogo gratuito no
celular, por exemplo. O espaço antes reservado apenas para os trailers no cinema, agora são
tomados por propagandas de todo tipo, e os aplicativos gratuitos de celular para uso de banco
ou acesso a música streaming, inserem propagandas entre um clique e outro, entre uma
música e outra, e anunciam: se você contratar a assinatura premium ficará livre dos anúncios
publicitários. Tudo isso ainda é parte de mudanças em andamento, compondo um grande
processo de convergências e com uma série de regras e transformações que nenhum de nós
entende ou domina por completo (JENKINS, 2009), e por isso a experimentação é essencial.
Saliente-se que há grupos que defendem a publicidade na TV pública e outros que são
veementemente contra inserir qualquer anúncio, mesmo que institucional, na sua grade. Estes
apoiam modelos de financiamento como o da BBC de Londres, baseados em uma taxa anual
que seus cidadãos pagam exclusivamente para manutenção da TV pública, ou na experiência
da televisão pública colombiana, que taxa emissoras comerciais com impostos direcionados a
manutenção dos sistemas públicos (INTERVOZES, 2009).
93
Pola Ribeiro, em muitas de suas palestras e debates públicos, defende que fazer
televisão não é caro, porque mesmo que seja necessário certo investimento e que ele seja
maior se comparado a outras mídias, a televisão é um veículo de grande alcance, e
principalmente muito acessada. No caso da TVK, esse custo é ainda menor e pode ser
organizado de maneira que a padaria, o barbeiro, ou farmácia do bairro e mesmo entidades
associativas e outros tantos segmentos que se reconhecem na tela da TVK, sejam apoiadores,
mesmo que se demore a alcançar uma receita ideal. Considerando a possibilidade de
fortalecer a Kirimurê como programadora, sua metodologia de gestão se fundamenta,
portanto, no modo como seu grupo gestor se articula com as comunidades. Uma mobilização
difícil, mas possível.
Embora aqui separadas para análise, a gestão, o financiamento e a programação são
ligados intrinsecamente, e a autonomia real de um veículo público perpassa pela
independência e alinhamento desse tripé: Superando a programação baseada no valor pago
pelos anunciantes, o financiamento estatal que apoia TVs públicas apenas por interesses
partidários, e gestões verticalizadas que não conceda à população o direito de se colocar. De
certo que a TV Pública Tupinambá da cidade de Salvador precisa mergulhar em muitas
experiências na busca por instituir o seu próprio modelo de financiamento, e sem demora,
experimentar, como se propõe a fazer também nos seus projetos de gestão e programação, de
modo a se manter no ar como a TV que invade território de colônia.
4.2 CONTEÚDO PARA “SE VER, OUVIR E PENSAR”
A televisão pública deve contar estórias para gerar conexão com mais
públicos, e essas estórias deverão procurar os novos tons do experimental,
que os novos instrumentos tecnológicos permitem gravar, editar, imaginar. A
TV Pública deve ser o cenário do underground, da criação independente, o
bufão da casa homogênea do maciço; deve seduzir, através de relatos
sedutores, experimentais, irônicos, que viabilizem o excluído da imagem
comunicada; deve reconhecer essas e outras técnicas que nunca vimos na
tela; deve nomear e representar essas e outras maneiras de fazer sociedade
(RINCÓN, 2002, p.325)
O processo produtivo da programação de tevê envolve fases que são constantemente
revisadas a partir das tecnologias da comunicação e informação. Dentro do circuito comercial
e hegemônico da radiodifusão, pautas, roteiros, formatos, produção, edição e meios de
divulgação são itens de um jogo complexo que atende aos interesses de grandes empresas de
94
comunicação movidas pelo capital (financeiro e simbólico) de outras grandes empresas
financiadoras. Assim chega-se a histórias contadas de modos quase sempre reconhecíveis pela
grande audiência, tal qual o próprio hábito dos horários da grade de programação da TV.
Embora um enorme desafio, a ousadia, a invenção e a experimentação são elementos
chave para descontruir esse complexo jogo comercial, na direção de uma TV pública que
encontra espaço no projeto do Canal da Cidadania. É o contar outra vez proposto por Rincón
(2002), reprogramando a televisão pública e reinventando o audiovisual, em um grande
movimento criativo. E é no conteúdo, talvez mais que nos aspectos de gestão e orçamento,
que melhor se reconhece o movimento a contrapelo, deixando de lado o critério autoritário da
verdade única e promovendo ilimitados encontros sociais, não só na forma de produzir, mas
também de consumir a programação.
A grade de programas ainda é o eixo mais estável para reconhecer ‘o que é uma
televisão’. Ela, junto com o aparelho de TV, por muitos anos explicou de maneira exata essa
questão posta, e os hábitos dos telespectadores se pautaram na programação fluida,
previamente estabelecida, contínua e coesa, com seus horários demarcados, típicas da
produção analógica. A manhã dos desenhos animados, que passou a ser a manhã dos
programas de variedades; o jornal do meio dia, a novela das nove, o futebol na quarta feira à
noite, ou o programa da tarde de domingo, tudo isso incluído na rotina diária da família
brasileira de maneira tão frequente quanto naturalizada.
Mas nas últimas décadas, com uma televisão que é um computador em menor escala,
conectada à internet e que recebe conteúdo em alta resolução compactado em zeros e uns, o
que muda para a programação? Como se configura essa nova dimensão fora do aparelho
televisivo, na qual o espectador tem experiências com conteúdo fragmentado, acessível em
multitelas? Para Bolaño e Brittos (2007b) a digitalização é mais uma, e talvez a principal, das
muitas mudanças que os sistemas televisivos de todo o mundo enfrentam. A fidelização do
espectador exige novas estratégias, e se por um lado a programação convencional e que busca
atingir a todos de maneira simultânea é mantida, essa precisa ser conjugada “com a via da
segmentação, em que os produtos são criados, realizados e reunidos em um ou vários blocos
com base em variáveis como classe social, gênero, idade, escolaridade e preferências de
consumo” (BOLAÑO, BRITTOS, 2007b, p. 213).
Para os empresários da radiodifusão, além da prioritária transmissão em alta definição,
de uma TV nítida que proporciona uma imagem sem chuviscos e um som sem chiados, têm
95
forte apelo os novos mercados de vídeo on demand e streaming, e também uma possível
ampliação da interatividade. Com os recursos digitas, ao assistir a programação da TV, os
telespectadores podem ter informações detalhadas de um programa, responder a perguntas em
participações ao vivo, conhecer melhor produtos e serviços que deseja comprar, e outros.
No site oficial que apresenta a TV Digital68
, os exemplos esclarecem sobre a
interatividade. Em uma novela basta usar o controle remoto para ver o resumo do capítulo
anterior e obter informações sobre atores e suas personagens. Se o consumidor gostar de
reality shows, além de ver o perfil de cada participante, poderá se atualizar sobre os últimos
acontecimentos do programa ou adquirir os produtos dos patrocinadores, por exemplo. Já em
uma partida de futebol, é possível conferir a escalação das equipes, ver o resumo sobre o jogo
ou conferir a classificação do time no campeonato, tudo apertando botões no controle remoto.
Todas essas promessas ainda estão longe de se tornarem realidade nas casas dos
consumidores, espectadores que convivem diariamente com as experimentações técnicas e
também com as novas formas de consumir o conteúdo televisivo.
Se para as corporações midiáticas a TV digital é uma vasta oportunidade de negócios,
para o campo público, criaram-se muitas expectativas sobre um novo modelo de
relacionamento com o cidadão. As perspectivas estão especialmente fincadas na interatividade
a partir de aplicativos que proporcionam acessos e consultas a serviços de utilidade pública
como informações sobre Assistência Social, vagas de emprego e dados do Fundo de Garantia
do Tempo de Serviço (FGTS); declaração do imposto de renda; marcação de consultas
médicas na rede pública, além de atividades de educação e formação à distância.
A Empresa Brasil de Comunicação chegou a criar o projeto Brasil 4D, que buscou
através da aplicação do middleware Ginga permitir ao cidadão acessar informações acerca dos
serviços disponibilizados pelos governos federal, estadual e municipal 69
. A proposta teve fase
teste em residências na Paraíba e no Distrito Federal, sendo oferecida a famílias inscritas no
projeto Bolsa Família. As quatro letras “D”, contidas na nomenclatura Brasil 4D, representam
as missões do projeto: Digital – universalização da televisão digital e de suas potencialidades;
Desenvolvimento – com novas tecnologias e informação; Diversidade – ver e estimular a
pluralidade da cultura brasileira; e Democracia – com a participação maior dos cidadãos nos
conteúdos e serviços oferecidos pelo poder público, por meio da interatividade da TV Digital.
68
Disponível em www.dtv.org.br. Acesso em: dez. 2018. 69
Dados sobre o projeto Brasil 4D disponíveis em http://www.ebc.com.br/brasil-4d/2014/02/o-que-e-o-projeto-
brasil-4d. Acesso em: jan. 2019.
96
Os resultados podem ser considerados controversos. Em parte porque, assim como
outras iniciativas e políticas públicas para comunicação no país, a população, que é a maior
interessada, pouco é ouvida durante o planejamento. Aplicar os “4Ds” falando em
democracia, mas colocando o cidadão como mero usuário, replica mimeticamente práticas
criticadas por muitos pesquisadores da comunicação pública. Também porque vários serviços
disponibilizados, como consultar informações sobre direitos da mulher, por exemplo, não
encontram assistência fora da tela, o que gera um abismo entre o projetado e o vivido.
Mas há também a economia de tempo de dinheiro para procurar emprego, como relata
Gildete Oliveira, uma das moradoras do Distrito Federal contemplada para fase teste do Brasil
4D. E ela completa: “Imagem bonita né? A gente fica feliz de poder assistir tudo limpinho,
ouvir tudo direitinho” 70
. O depoimento corrobora com a proposta da TV digital de melhorar a
chegada do sinal das TVs públicas no território brasileiro e ter na tevê um pequeno
computador para cidadãos sem acesso à internet. Fato é que o Brasil 4D não passou da fase
teste, e o ginga não chegou para a maioria da população. Também a cobertura do sinal digital
ainda não é total, criando bolsões analógicos pelo país.
Observe-se que as experiências de participação popular na TV Digital, em muitas
frentes das políticas públicas e também em pesquisas acadêmicas, seguem a linha da
bidirecionalidade a partir do consumo em novos aplicativos e serviços, ou do envio de
material para uma emissora de televisão. Mesmo Crocomo (2007), por exemplo, que defende
a participação cidadã na TV pública digital, dedica grande parte do seu livro para apresentar a
Produção Interativa de Tevê, um modelo para produzir e enviar vídeos que permite ao
telespectador “participar da programação de uma emissora de TV, recebendo programação
normal e retornando informações, inclusive conteúdo de vídeo” (CROCOMO, 2007, p.31).
Nesse contexto, o que pode ser tomado como diferencial na multiprogramação e no
Canal da Cidadania é a proposição de entregar à sociedade civil um canal para que ela mesma
faça a gestão e programe, sem a comum mediação vista até então. Ao contrário de uma
participação e interação mediadas pelos mesmos interesses comerciais predominantes, ou pelo
governo e seus serviços, é a promoção de um espaço para experimentar e exercer a
inteligência coletiva, sendo ela uma fonte alternativa ao poder midiático (JENKINS, 2009).
70
Reportagem disponível em https://www.youtube.com/watch?time_continue=7&v=ONFCMWC2T20. Acesso
em: fev. 2019.
97
No percurso da TV Kirimurê, a equipe gestora tem a missão de discutir a programação
buscando equilibrar a necessidade de atender a uma grade reconhecível para um canal de TV
e a possibilidade de criar modelos inovadores e independentes. Uma vez que a TVK pode e
deve receber e exibir conteúdo cujos responsáveis são pessoas físicas e cidadãos comuns, a
organização de sua grade de programação demanda intenso processo de estudos e tentativas.
Ainda na fase de planejamento, com a equipe construtora da TVK, o GT de
Programação propôs as seguintes faixas temáticas, que foram inclusive as apresentadas no
evento de lançamento do Canal, em novembro de 2016: KiriCine, KiriMúsica, KiriGuri,
KiriClasses, KiriDiversidade, Faixa Factual, KiriJornalismo, KiriEsportes, KiriMelhorIdade,
KiriEducação, KiriHomem, KiriMulher, KiriSeries, KiriVariedades e KiriArtes.
Correspondendo aos nomes que acolhem, cada faixa abriga os conteúdos que melhor a ela se
alinham, passando pela avaliação de uma diretoria de programação. A previsão, de acordo
com o relatório da Kirimurê (2016/2017) era de que sua programação fosse formada de 5% de
jornalismo local – cumprindo com o que determina a Norma Regulamentar do Canal da
Cidadania, 70% de conteúdos licenciados das produtoras locais e 25% de produção própria –
tendo para isto parceria estabelecida com a Associação de produtores e Cineastas da Bahia.
Ressalte-se que este planejamento busca também atender aos princípios e objetivos
para a programação dispostos na Norma Regulamentar do Canal da Cidadania, entre os quais
estão: propiciar a formação crítica do indivíduo para o exercício da cidadania e da
democracia; expressar a diversidade de gênero, étnico-racial, cultural e social brasileiras;
contemplar a produção local e regional; e fomentar a produção audiovisual independente,
ampliando a presença de conteúdos autônomos em sua programação (BRASIL, 2012b).
No entanto, de modo semelhante ao projeto de organograma inicial proposto pelo
grupo construtor, e já com indícios de falha sobre a participação direta das frentes populares –
uma vez que o planejamento esteve muito direcionado para as produtoras independentes com
conteúdo licenciado, essa proposição não se consolidou. Com a dificuldade de preencher e
organizar a grade de programação, somada a já muito citada diminuição dos membros
voluntários dos GTs da TVK, a programação passou a ter por base a retransmissão de outra
emissora, e a primeira delas a ocupar a faixa foi a TV Escola.
98
4.2.1 Da TV Escola à TVT
Como parte do processo de implantação do Canal da Cidadania, a TV Educativa da
Bahia colocou no ar para teste o canal 10.2, retransmitindo a TV Escola. A faixa, entretanto,
precisava ser ocupada pela TVK, que deveria assumir a responsabilidade sobre a programação
do Canal até novembro de 2017. Foi exatamente quando, ainda sem sua grade original de
programas, a Kirimurê passou a retransmitir diretamente o sinal da TV Escola.
A escolha se deu em função da disponibilidade da emissora, pela urgência de não
perder a autorização e, sobretudo, por essa transação ser gratuita, já que a Escola é um canal
pertencente ao Ministério da Educação, e pode ser retransmitida por qualquer programadora
pública interessada (RELATÓRIO TV KIRIMURÊ, 2016/2017). Sua chegada à rede de tevê
digital aberta em Salvador representa uma oferta importante, já que até a digitalização a
Escola chegava ao território nacional apenas através de antenas parabólicas e TVs a cabo.
Entretanto, por longo período, a TV Escola foi a única programação da TVK, passando longe
da regionalização do conteúdo prevista como princípio do Canal da Cidadania.
Com sede no Rio de Janeiro, a TV Escola foi fundada em 1996 para levar educação a
todos os cantos do Brasil, em especial aqueles isolados e sem acesso aos principais meios de
comunicação. Enfatiza-se que não se trata de uma TV para divulgação de políticas públicas da
educação, mas de uma política pública em si, com o objetivo de subsidiar a escola e não
substituí-la, tampouco substituir o professor. A TV Escola é uma ferramenta pedagógica
disponível ao professor, tanto para complementar sua própria formação quanto para ser
utilizada em suas práticas de ensino e tem programação própria produzida para 24h por dia,
disponível também na internet e em aplicativo próprio pelo celular 71
.
Apesar de ter sido essencial para manter a TVK no ar, a grade de programação da TV
Escola não corresponde ao projeto conceitual da faixa Kirimurê. Além de seu conteúdo e
forma serem predominantemente sulistas, o que pode ser percebido tanto nos sotaques dos
apresentadores quanto na escolha das pautas e programas, o conteúdo da TV Escola é muito
pedagógico e se aproxima da ideia de tele-educação, fazendo uso de modelos didáticos para
formar a população. Sobre esse aspecto, compartilhamos da ideia de Viviane Mosé (2015),
quando defende que quanto mais pedagógica uma TV for, menos educativa ela é, pensando os
71
Dados disponíveis em https://tvescola.org.br/. Acesso em: nov. 2018.
99
processos formativos a partir das dinâmicas contemporâneas, com novas relações entre
professores e alunos e os novos elementos culturais e comunicacionais disponíveis.
Parte de uma política de mudança de programação da Kirimurê, que desejava trazer
conteúdo mais crítico e cultural para sua grade, no lugar da TV Escola, a TVK passou a
retransmitir a programação da TV dos Trabalhadores, a TVT, emissora educativa filiada a TV
Brasil e outorgada à Fundação Sociedade Comunicação Cultura e Trabalho, entidade cultural
sem fins lucrativos, mantida pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e pelo Sindicato dos
Bancários e Financiários de São Paulo, Osasco e Região. A TVT se apresenta como um canal
de ampliação da voz dos movimentos sociais, comprometido com a democracia, o
fortalecimento da cidadania e a justiça social.
Ao passar a retransmitir a TVT, a Kirimurê dispõe um formato de programação que
chama atenção: a TVT usa a TV Brasil como base para sua programação; a TV Brasil
retransmite outras muitas TVs educativas brasileiras, inclusive da TV Educativa da Bahia; a
TVE BA também usa a TV Brasil com base de sua programação; e assim vez ou outra a TVT
está transmitindo a TVE BA através da retransmissão da TV Brasil. Por vezes, ao olhar para o
televisor, o cidadão soteropolitano se vê desafiado a identificar a origem do conteúdo, com as
marcas da TVT, da TV Brasil, da TVE-BA e da Kirimurê distribuídas na tela.
O conteúdo de autoria da TVT tem assinatura forte de temas políticos, socioculturais,
econômicos, ambientais e artísticos, e a organização de sua grade muito pode ensinar a
Kirimurê e a outras TVs do campo público. Ao sintonizar na TV do Trabalhador, o
telespectador tem acesso a uma programação que reúne debates sobre democracia, inclusão e
acessibilidade tratados em formatos capazes de alcançar diversos públicos, incluindo as
crianças e adolescentes. Nos programas e interprogramas, o conteúdo quase sempre crítico
traz informações sobre leis, estatísticas e muitas explicações sobre direitos e deveres sociais.
O Artvismo pode ser tomado como exemplo. O programa combina uma diversidade de
conteúdos enviados diretamente pelos telespectadores e busca pautar a produção artística
independente a partir de questões sociais e políticas. Sem apresentadores fixos e com
informações segmentadas, o resultado se aproxima da linguagem de vídeos web. Produzidos
em várias regiões do Brasil, videoclipes, videoinstalações e muitas produções de baixo custo
encontram espaço no programa.
Mas há igualmente exemplos que não devem ser seguidos. O Seu Jornal, programa
jornalístico diário da emissora, em geral, revela a forte inclinação partidária da TVT no trato
100
das pautas políticas, um ponto importante no debate sobre proselitismo na TV pública e
essencial para o projeto do Canal da Cidadania. Mesmo com a missão de exibir “o outro lado
dos fatos”, a TVT muitas vezes replica a lógica da verdade única do jornalismo das grandes
emissoras comerciais, sem dispor de contraditórios.
Hoje a TV Kirimurê continua tendo a retransmissão da TVT como base para sua
programação. Embora possa ser considerado muito mais amplo que o da TV Escola, o
conteúdo da TV dos Trabalhadores é também caracterizado pelas pautas de sua região e se
distancia da função de regionalizar a TV aberta de Salvador-BA.
Fechar a grade de programação é desafio para muitas TVs do campo público no Brasil,
e bem por isso há inúmeras iniciativas para compartilhamento de conteúdo entre as emissoras
educativas, desde a criação da TV Brasil. Retransmitir é a opção para a maioria delas,
mesclando suas produções com a programação da emissora usada como base. Uma rede
similar pode ser tomada como mecanismo para alimentar a grade de programação da TVK: se
todos os mais de cinco mil municípios brasileiros tivessem as suas faixas da cidadania
funcionando e trocassem conteúdo, a regionalização seria em muito ampliada.
Com entrevistas a personalidades locais, o primeiro programa em parceria com a TV
Kirimurê é o Conversa de Preta, que vai ao ar em fevereiro de 2018. O conteúdo já era
produzido para internet e sua apresentadora, Dina Lopes (atualmente também gestora da
TVK) traz edições inéditas para a TV aberta. Aos poucos, outros programas produzidos na
região começam a circular na grade Kirimurê, uns pensados exclusivamente para o Canal e
outros que migraram também da internet para televisão. Reunindo inovações, mas também
conservadorismos, assistir à programação da TVK ajuda a compreender as possibilidades de
superar desafios e de aproveitar a experimentação como nova perspectiva.
4.2.2 Conversa de Preta e Simões Filho no Ar
“Bem vindas e bem vindos ao programa Conversa de Preta aqui na TV
Kirimurê. Eu sou Dina Lopes e hoje nós vamos estar conversando [sic]
com a empreendedora negra Joana Angélica Moreira, ou somente Angélica
como gosta de ser chamada. Angélica é a mentora intelectual do projeto
Ajeum da Diáspora e nós vamos estar conversando sobre comida com
identidade” (Dina Lopes, 2018)72
72
Edição de estreia do programa Conversa de Preta na TV Kirimurê. Disponível na íntegra no link
<https://www.youtube.com/watch?v=R6PKtnxDQcI>. Acesso em: jun. 2018.
101
O Conversa de Preta busca evidenciar personagens da cena local, predominantemente
mulheres, para falar de temas de suas especialidades, valorizando suas histórias. Importante
conquista para grade da TV Kirimurê, o programa era produzido de maneira independente e
distribuído pela internet, através de canal no youtube, e teve estreia na TV aberta terrestre
gratuita graças à TVK. O programa tem periodicidade semanal, vai ao ar sempre as segundas-
feiras, às 20h, com reprise aos sábados, às 16h, e desde o seu lançamento na Kirimurê é
oferecido de maneira regular, com poucas interrupções ou ausências na grade.
O protagonismo da mulher negra, destacado no discurso do programa, os sotaques
acentuados, facilmente reconhecíveis pelo cidadão soteropolitano, e o cenário ornado com
muita chita e estrados de madeira, coadunam com a premissa de contar estórias que geram
conexão com quem as assiste, em uma TV que rompe com as pautas habituais. O programa dá
visibilidade a “diferentes atores da sociedade, ampliando as agendas de opinião, de tal forma
que a diversidade de vozes, a multiplicidade de temas, e as diferentes perspectivas de análise
estejam representadas em um debate público” (MARTÍN-BARBERO, 2002, p.341).
Conversa de Preta se encontra com os princípios do Canal da Cidadania
especialmente no que tange a expressão da diversidade de gênero, étnico-racial, cultural e
social brasileiras, com a promoção do diálogo entre as múltiplas identidades (BRASIL,
2012b), uma máxima para exercitar a democracia na TV aberta. Em quase um ano, foram
dezenas de programas transmitidos para toda Salvador e região metropolitana, em encontros
com personagens da cena baiana e suas narrativas que fomentam outras produções locais.
Apesar do formato de entrevista tradicional, com jogo de câmeras entre perguntas e
respostas, entrevistador e entrevistados sentados em posições perpendiculares em uma mesa
de centro com xícaras de água para pausas e etc., quando se trata da escolha de suas pautas e
fontes o programa rompe com os hábitos tradicionais da TV privada. Isso se faz notável pela
visibilidade dada aos atores sociais não publicizados na grande mídia televisiva e, sobretudo,
por privilegiar um campo de expressão para os cidadãos, levando cultura e informação de
maneira plural e diversa, com independência editorial (UNESCO, 2000), não sendo conteúdo
estruturado para atender a intencionalidades comerciais ou governamentais.
Ter uma mulher negra como apresentadora e figura central do programa é outro
elemento de grande relevância do Conversa de Preta. Em um país onde vira notícia (em
2019) o fato de uma mulher negra apresentar pela primeira vez, em cinquenta anos, o mais
102
emblemático jornal da TV aberta brasileira, o Jornal Nacional, da Rede Globo 73
, ter esse
dado no programa inaugural da Kirimurê é um marco. Representa o que Rose Rocha (2012)
trata por reciclagem do visível, numa constituição de espaços político-comunicacionais de
negociação e de conflito. Ademais, soma-se a expressiva representatividade feminina e negra,
que reverbera no fortalecimento das múltiplas identidades brasileiras. Tanto por aquilo que
conta, como sobre o que conta e muito sobre quem ajuda a contar, o programa pode ser lido
como produto a contrapelo na tevê brasileira.
Em geral, o Conversa de Preta se apresenta dividido em três blocos e têm duração
média total de trinta minutos, sem cortes de edição entre os blocos, aspecto importante, já que
pouco conteúdo é perdido. Destaca-se também sua realização técnica, que se dá a partir da
parceria entre voluntários. Nos intervalos entre os blocos, o telespectador assiste a vídeos com
divulgação da própria grade da Kirimurê, além do institucional feito para apresentar o Canal e
informações de serviços públicos, como prazos para o cadastramento biométrico – material
produzido pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE-BA). Com o projeto Kiriamigos
funcionando, pequenos empresários e empreendedores locais poderiam ser patrocinadores do
Conversa, uma ação a ser perseguida.
Na programação de segunda a sexta-feira, das 11h30 às12h, outra estreia na grade da
Kirimurê em 2018 é o programa jornalístico Simões Filho no Ar. Inicialmente é apresentado
por Guilherme Santos, repórter com histórico em muitas outras emissoras de TV e rádio e
conhecido pela alcunha de “O repórter Olho Vivo”. Pouco depois, assume a apresentação do
programa o cineasta simoesfilhense e também diretor do Simões Filho no Ar, Mario Sérgio
Santana – o famoso Dragão Marinho, expoente do cinema local e conhecido por suas
produções de baixo custo e por incentivar a cultura de sua região.
Esse é o primeiro programa da cidade de Simões Filho na televisão aberta e tem entre
os seus objetivos democratizar a informação e mostrar a referida cidade para além de seu
título de terceiro município mais perigoso do Brasil, segundo ranking de 2018 do Instituto de
Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Na tentativa de replicar o formato de um telejornal
tradicional, há um apresentador que em um cenário de estúdio fala diretamente com o
espectador e apresenta as matérias antes delas entrarem. De modo prático, o que assistimos na
73
Na noite de 16 de fevereiro de 2019, a jornalista Maria Julia Coutinho, conhecida como Maju, se tornou a
primeira mulher negra a apresentar o jornal Nacional, maior programa jornalístico da Rede Globo de televisão.
Dados disponíveis em https://f5.folha.uol.com.br/televisao/2019/02/maju-coutinho-estreia-na-bancada-do-jn-e-
se-torna-primeira-mulher-negra-a-apresentar-o-telejornal.shtml. Acesso em: fev. 2019.
103
tela da Kirimurê também demonstra as limitações técnicas do programa, com imagem de
baixa qualidade e um áudio quase sempre estourado.
Por outro lado, apesar de não inovar no formato, é possível creditar ao programa a
tentativa de experimentar, isso por sua produção de conteúdo jornalístico tão especificamente
local. Em geral são pautas tratam de questões do município, apresentadas por repórteres
locais, em matérias com maior duração que as convencionais e uma abordagem direta, sem o
tempo limitado comum às grandes emissoras de TV.
Em uma das matérias do programa piloto, o apresentador anuncia “Aqui em Simões
Filho acontece uma coisa interessantíssima: O que eu posso fazer com um real? Nada! Mas
aqui é diferente! Com um real você tem lanches, você tem suco. O nosso repórter Cuica do
Cavaco vai mostrar tudo pra você. Venha de lá, Cuica!” 74
. O repórter por sua vez apresenta
opções de lanchonetes que vendem coxinhas, cachorro-quente e até hambúrguer por um real!
Essa e outras pautas, como a reunião no centro de cultura do bairro ou a cobertura de eventos
beneficentes da cidade, coadunam para o exercício democrático e expressam o que Rincón
(2002) chama de reencantamento pela existência humana, ao lembrar que nas relações sociais,
para conviver com os diferentes, é preciso torná-los estórias, expressá-los em relatos
audiovisuais e reconhecê-los como sujeitos e coletivos feitos de imagens.
No aspecto público o conteúdo do Simões Filho no Ar se alinha no compromisso com
a expressão, o acesso e a participação das múltiplas formas de ser cidadão que formam parte
da audiência do canal. Sobre isso, Teresa Otondo (2002) ratifica que a TV Pública procura
atender a públicos segmentados, e não ao mercado. Que sua força está no conjunto dos
segmentos atendidos ao longo do dia ou da semana, e que como não precisa se preocupar em
“satisfazer os caprichos do anunciante e oferecer a eles consumidores para seus produtos,
pode se dar ao luxo de ter programas vistos por poucas pessoas. Mas deve descobrir sua
audiência em nichos desprezados pela televisão comercial” (OTONDO, 2002, p. 285).
Quanto ao projeto do Canal da Cidadania, esse programa atende ao princípios de
oferecer mecanismos à formação e à integração da comunidade, estimulando o lazer, a cultura
e o convívio social (BRASIL, 2012b). Também expressa a muito discutida regionalização da
programação, saindo, inclusive, da capital baiana e ampliando a presença de conteúdo local e
de interesse da cidade de Simões Filho.
74
Simões Filho no ar, programa piloto. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=NgV4OrJctls. Acesso
em: jan. 2019.
104
Com evidentes limitações técnicas e de recursos humanos, o programa já pratica o
financiamento por meio de agentes comerciais locais da cidade de Simões Filho, anunciados
quase sempre ao fim de cada edição. Na lógica de construir produtos, narrativas e gestões,
Simões Filho no Ar é parte de um projeto de televisão sobre o que importa às audiências e
sobre o que pode ser feito a partir do dia a dia, na dinâmica de um reconhecimento recíproco.
4.2.3 Candomblé e seus caminhos e Catado de cultura
“A maior parte dos pedidos de pautas dos artistas convidados do programa
vem da internet. Por isso, parafraseando de propósito nosso próprio nome,
fizemos esse catado na web”, explicou a publicitária Fernanda Blanco,
apresentadora e Social Media do Catado. E foi ecoada pelo diretor Cultural e
também apresentador, Rafael Manga: “A nova temporada está quente porque
dá voz a uma galera, inserida nas diversas nuances da cultura, que vem
batalhando por espaço há muito tempo” (Jornal Correio 24h, 2018). 75
A proposta do Catado de Cultura é dar visibilidade a artistas baianos independentes.
Um projeto que começou na internet, como parte do site Bahia na Lupa, o programa entra na
programação da Kirimurê no segundo semestre de 2018, quando estreia sua nova temporada.
Apresentado por Rafael Maga, Cadu Freitas e Fernanda Blanco, personagens locais que se
dividem nas entrevistas, o Catado leva também para tela da TV aberta um conteúdo que já
encontra eco nas redes e mídias digitais, como instagram, facebook, youtube e site.
Tendo como pauta central a cultura e os movimentos artísticos, o programa ganha
representatividade ao evidenciar as múltiplas identidades culturais da Bahia. Em um
importante diálogo com a convergência de mídias, o Catado é uma boa mostra de como
produzir conteúdo para a TVK. Três colegas, formados nas áreas de comunicação e cultura, se
reuniram a partir do desejo de criar um programa audiovisual independente. O projeto começa
sem orçamento, com equipamentos não profissionais, para ser exibido nas plataformas web, e
já com clareza sobre seu conceito alternativo.
Em pouco mais de dois anos, o Catado se profissionalizou e alcançou, em sua quarta
temporada, a grade aberta de TVs soteropolitanas. Primeiro entrou para a programação da TV
ALBA (canal da Assembleia legislativa da Bahia), e em 2018 passa também a compor a grade
da TV Kirimurê. Com exibição aos sábados à tarde, e reprisados aos domingos, às 16 horas, o
75
Disponível em https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/nova-temporada-do-catado-de-cultura-tem-pre-
estreia-nesta-quinta-30/. Acesso em: fev. 2019.
105
programa Catado de Cultura colabora para que a TVK dê oportunidade à difusão de ideias,
elementos de cultura, tradições e hábitos sociais da comunidade local (BRASIL, 2012b).
Com cerca de dez episódios, cada temporada leva para a TVK episódios com locações
que valorizam diferentes bairros e espaços culturais de Salvador, incluindo a periferia da
cidade e outros ambientes populares. Museus e praças também fazem quadros para compor as
narrativas do programa. Assim, o som da banda Reunião de Condomínio e Deu Flow, a
tapeçaria internacional de Kennedy Bahia, as vozes de Mel Leone e Pablo Moraes se
encontram no bate-papo com artistas como Vagner Jesus e o humorista Franklin Reis, além da
poesia do Coletivo Pés Descalços ou da rima do rapper Cosca, tudo na mistura do Catado.
Hoje a realização do programa já se estrutura de maneira mais complexa e seus
créditos finais revelam parcerias técnicas e financeiras que auxiliam no andamento. Na quarta
temporada, o Catado passa a contar com apoio das lojas Piticas – camiseteria nacional de
forte impacto comercial, e também da produtora de capital privado, Tony Ávila Filmes, que
assina como responsável pela captação de áudio e vídeo. Há também uma equipe técnica com
diretor de cena, finalizador, diretor de fotografia, produtores e design gráfico, e entre
estudantes, colegas e apoios culturais, o programa vai ao ar sem custos para a Kirimurê.
“Eu sou a Yalorixá Jaciara Ribeiro e convido você a participar do programa
Candomblé e seus Caminhos, aqui na TV Kirimurê”.76
O convite feito pela apresentadora é
para outro produto independente que integra a grade da Kirimurê já no final de 2018. Toda
quarta-feira às 17 horas, com reprise às 21 horas, o espectador assiste ao programa com
entrevistas que levantam temas ligados a religião Candomblé, com abordagens
comprometidas a combater a intolerância, valorizar e esclarecer sobre a religião. “Não se trata
de um programa para ensinar rituais nem para falar sobre o sagrado, o oculto, porque o
segredo é o sagrado. O programa é para falar de educação, de futuro e de perspectivas,
evidenciando ações e iniciativas que possam auxiliar na formação cultural das pessoas”,
conforme explica Jaciara Ribeiro em uma das edições do programa 77
.
Em um cenário fixo montado com muitos elementos visuais ligados à cultura do
Candomblé, o que melhor caracteriza o programa não são seus recursos técnicos, mas as
narrativas simbólicas que constrói, desde a estrutura estética até a abordagem do tema,
incluindo a figura de sua apresentadora. Líder do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, Jaciara
76
Chamada do programa "Candomblé e Seus Caminhos", disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=_HJynMQ3OaE. Acesso em: nov. 2018. 77
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=vZHlT1ltcU8. Acesso em: dez. 2018.
106
Ribeiro é conhecida por sua luta contra a intolerância religiosa, principalmente em função da
perseguição religiosa que sua mãe, a Yalorixá Gildásia dos Santos e Santos – Mãe Gilda –
sofreu, em um caso emblemático que virou manchete nacional. Toda história de Mãe Gilda
foi base para a iniciativa da Câmara de Vereadores de Salvador instituir o “Dia Municipal de
Combate à Intolerância Religiosa”, em 21 de janeiro de 2000, data de sua morte 78
.
Em tempos em que as entidades religiosas, destacadamente as de origem protestante,
assumem inúmeros canais de televisão aberta no Brasil, discutir liberdade de culto e respeito a
religiões de matriz africana é um passo importante na perspectiva de democratização e
formação para cidadania na radiodifusão do país. Ademais, no jogo da cidadania visual, é
também a prática de uma política de visibilidade que percorre e reestrutura o campo das
materialidades, sendo os emissores os próprios atores e não apenas “reféns de artimanhas de
‘objetualização’ ou ‘iconização’ compulsória” (ROCHA, 2012, p.36) dentro do sistema
comunicacional que rege nosso país.
Por inciativas como o Conversa de Preta e Candomblé e seus Caminhos a TVK foi
homenageada pela Secretaria de Promoção e Igualdade Racial (Sepromi-BA), com o prêmio
Antonieta de Barros, que tem o objetivo de fortalecer e reconhecer projetos de comunicação
que valorizam o povo negro e combatem o racismo. Mais um incentivo que ratifica o lugar e
importância de uma TV pública popular e inclusiva.
Outros produtos pontuais foram transmitidos na programação da Kirimurê, como
coberturas jornalísticas (realizadas pela equipe da TVK) das festas populares de Yemanjá,
Carnaval e Lavagem do Bonfim. Durante a campanha eleitoral para Presidente da República,
Senadores, Governadores, Deputados Federais e Deputados Estaduais de 2018, a Kirimurê
realizou o que chamou de Bate-Papo Político, comandado por Dina Lopes e Tony Ávila,
reunindo pesquisadores, jovens ativistas e representantes de frentes populares para tratar sobre
a importância do voto 79
.
A escolha dessas pautas chama atenção para um grupo importante de temas que são
caros à cultura local e que quase sempre recebem tratamentos hegemônicos das TVs
comerciais. É, portanto, um campo fértil para que canais como a Kirimurê sejam porta-vozes
78
Em outubro de 1999, o jornal "Folha Universal" - que pertence à igreja Universal do Reino de Deus - publicou
uma foto da Yalorixá Gildásia dos Santos e Santos para ilustrar a reportagem "Macumbeiros charlatões lesam o
bolso e a vida dos clientes". Na foto publicada, mãe Gilda aparece ao lado de recortes oferecendo serviços de
ajuda espiritual para resolver problemas. O texto afirma que o "mercado de enganação" estava crescendo muito
no Brasil. Disponível https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2303200421.htm. Acesso em: mar. 2019. 79
Dados disponíveis no site da TV Kirimurê www.tvkirimure.tv.br. Acesso em: fev. 2019.
107
de narrativas diferenciadas, reunindo olhares diversos, dissidentes, no caminho de criar uma
rede de conteúdos menos efêmeros e mais próximos das realidades múltiplas da cidade.
Como promessa para lançamento em 2019, encontram-se na página da TVK os
anúncios dos programas Escutaê, com variedades e informações sobre os bairros de Salvador;
Conexões, uma produção do Instituto Hori; Hip Hop Vai Além, conduzido pelo artista local e
rapper Negro Davi e A Bronca do Jó, produção independente do educador social e
autodeclarado repórter cidadão Jocemar Santos, que já tem ativo um site homônimo. Todos os
programas já estão sendo exibidos no período da finalização desta dissertação.
O projeto de inovação e experimentação dentro da faixa Kirimurê evidencia a
necessidade de reconhecimento de pertença por parte da comunidade soteropolitana que ainda
está em curso. Na medida em que a sociedade conhece e se apodera do espaço público que lhe
pertence e descobre suas possibilidades de interlocução, o Canal da Cidadania, assim como
outras mídias contra-hegemônicas, passa a ser uma alternativa real para democratizar a
comunicação e promover uma televisão pública social, cidadã e soberana.
Disso depende uma profícua articulação para que a gestão do Canal se forme de modo
diverso e inclusivo, e que esse grupo passe a captar conteúdo que dê forma a TVK, e vale
dizer, não somente conteúdo para tela da TV, mas para todos os outros instrumentos digitais
disponíveis. A migração digital não deve ficar restrita a criticada ideia de uma TV com
qualidade de imagem e som, mesmo já sendo um avanço ter uma TV popular no sinal aberto.
É imprescindível que o planejamento da Kirimurê nade a favor da corrente nesse cenário
digital de vídeos streaming e on demand, aplicativos, de grupos sociais e políticos ativos nas
redes sociais, de uma geração de crianças que assiste a tudo pelos aparelhos móveis,
aproveitando também esses espaços para construir uma grande rede de conteúdo público.
Tudo isso sem perder de vista a missão da programação de uma TV Pública, que deve
servir para “conectar as pessoas em torno de boas ideias, como estratégia na luta pela
dignidade e o reconhecimento, como lugar de liberdade, como tática para dar visibilidade ao
que foi esquecido pelo comercial, e como construtora de consciência pública” (MARTÍN-
BARBERO, 2002, p. 330). Ao mesmo tempo, continuar inovando e se aproximando do
público para, como propõe Rincón (2002), desenvolver sensibilidades na prática de novos
modos para perceber e sentir, ouvir e ver, reconhecer e representar, ver e fazer tevê, e
promover uma interlocução produtiva entre a educação, a cultura e a tevê.
108
Nesse navegar para construir uma nova cultura de televisão pública, a TV Kirimurê
deve ser uma janela para que os cidadãos enviem suas mensagens para sociedade, valorizando
o local, promovendo debates críticos, e se colocando como Canal capaz de produzir conteúdo
surpreendente, mas reconhecível.
4.3 A TELEVISÃO PÚBLICA DO FUTURO?
A TV digital promete uma possibilidade muito maior de democratização, de
conteúdo para acesso, de formação de comunidades a partir de interesses
específicos, mas há muito pouco tempo atrás a gente tinha essa promessa de
forma ampla e irrestrita para qualquer que fosse o conteúdo e o tema, e a
gente viu, num passe de mágica, isso ser concentrado, verticalizado e nós
todos nos tornamos reféns de duas corporações específicas – o Facebook e o
Youtube. Elas extinguiram nossa capacidade de circular e de passear pela
internet. Como é que a gente vai entender o quanto pode a TV digital? Está
tudo tão em jogo, tudo tão veloz (Miguel Jost, 2018).
Não à toa há uma grande desconfiança para com as políticas públicas de
democratização da comunicação no Brasil. Entre os acontecimentos mais atuais, em 2017,
durante a gestão do presidente Michel Temer, o país assistiu a mudanças expressivas no
estatuto legal da Empresa Brasil de Comunicação, entre as quais está a destituição do
Conselho Curador, principal órgão de participação e controle social da EBC. Já em 2019,
quando Jair Bolsonaro assume a presidência, o projeto para a Empresa, uma das principais
conquistas do movimento pela democratização da comunicação em tempos recentes, é o Plano
de Aposentadoria Voluntária, que pretende cortar o valor total investido e manter funcionando
apenas a NBR (agência oficial do governo federal), a Rádio Nacional e a Voz do Brasil.
Como tantas outras experiências que carregam instabilidades, autoritarismos e
ausências, características tratadas por Rubim (2012), esses fatos reforçam a crença de que
construir um sistema brasileiro e público de televisão parece utópico, e muito já falamos sobre
isso até aqui. Demonstra também que, diante da nova e ainda frágil democracia nacional,
qualquer processo que deseje modificar a realidade sociopolítica e cultural deve ser pensando
de forma estrutural, criando redes de apoio para sua consolidação.
A coerente assertiva do professor Miguel Jost (2018), que inicia esta subseção e que,
em certa medida, se encontra com os temores de Pierre Bourdieu (1997) de duas décadas atrás
– quando o sociólogo francês pondera sobre converter a TV em instrumento de opressão
simbólica – é um alerta essencial, uma espécie de guia para que os projetos de democratização
109
não se percam em suas realizações práticas. Para traçar rotas e encontrar formas de
navegações rumo a uma TV a contrapelo, olhar para a história é imprescindível, em especial
diante das turbulentas águas do campo público da comunicação. Mas, se ainda há tantas
incertezas, se a sociedade está tentando aprender a exercer o poder da participação nos
grandes meios, se é tudo tão novo e rápido, que outras crenças podem ser reforçadas?
A começar pela ideia de que o direito à comunicação é eixo central para democracia
contemporânea e sem o qual não é possível discutir cidadania, é preciso não abrir mão de um
projeto crítico de TV para o Brasil. Se experiências pelo mundo comprovam que tanto os
processos de desenvolvimento econômico, como também político, social e cultural têm direta
relação com o conhecimento e a informação, e se a televisão é o que há de mais importante de
tudo aquilo que é menos importante para vida humana na terra, como afirma Rincón (2002),
então o país não pode privar sua população de uma oferta transparente e diversa.
Enquanto as fragilidades persistem, também as resistências continuam conforme
defende Jenkins (2009, p.331) “o potencial de uma cultura midiática mais participativa
também é um objetivo pelo qual vale a pena lutar”. Em 2019, as agendas prioritárias do
Coletivo Intervozes e do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, por
exemplo, continuam incluindo a defesa por um Plano Nacional de Outorgas (PNO) para os
Canais da Cidadania, e a denúncia de políticos com posse de canais de Rádio e TV.
Funcionários da Empresa organizam o movimento Frente em Defesa da EBC e da
Comunicação Pública – buscando lutar contra o seu fechamento –, e Salvador vive a realidade
de uma faixa da Cidadania em funcionamento e que, gradualmente, pode ser uma rica
referência para o futuro da TV Pública no país.
Nessa cidade do cinema de Glauber Rocha e sua “estética da fome”, nasce também um
projeto de televisão destinado a romper com tradições clássicas e a lidar com a escassez de
recursos, reeditando linguagens e formas. Talvez seja esse o momento de consolidar uma TV
que, com certa autonomia para voar, pode fazer o mesmo que “um cineasta com uma câmera
na mão e uma ideia na cabeça fez, ao se refletir e fazer conhecer o nosso cinema no Brasil e
no mundo”, como anuncia a voz do ator João Miguel no vídeo institucional da TVK.
Olhando para o futuro, rumo a uma TV pública mais prazerosa, afetiva e experimental,
como propõe Rincón (2002), serão aqui colocadas algumas propostas a serem discutidas no
encaminhamento desse projeto tão potente do Canal da Cidadania e da TV Kirimurê.
Tomando os resultados da análise aqui alcançados e a realidade atual da TVK, pode-se
110
começar por propor uma aproximação com as TVs universitárias (TVUs) baianas, tão carentes
de espaço para exibir seus conteúdos.
As quatro universidades públicas da Bahia têm TVs universitárias, e no caso da capital
e região metropolitana, há também a Universidade Federal da Bahia com a TV UFBA. A
maioria delas exibe seu material apenas via internet, em canais web, e há muita produção
disponível, em várias categorias. Grandes polos de experimentação, as universidades e
faculdades, com conteúdo produzido por estudantes, professores e técnicos, são uma fonte
criativa e diversa para ajudar a montar a grade da Kirimurê. Projetos de conclusão de curso,
documentários, produtos de disciplinas da graduação, animações, longas ficcionais, além de
muito material produzido pelas TVUs estão entre as opções.
Apoiada em outras iniciativas, a TVK pode encontrar suporte nas universidades
públicas também para sua gestão, financiamento, divulgação e mobilização social, através de
centros acadêmicos, empresas juniores, estágios voluntários e projetos de extensão, por
exemplo. Também com pesquisadores para ajudar com a montagem da grade, estudantes e
colaboradores com ideias inovadoras sobre formatos, novas mídias e articulação de grupos
culturais, a disponibilidade de laboratórios de vídeo para experimentações, além do contato
com as comunidades que já possuem laços com as universidades, a Kirimurê se encontra com
a comunidade acadêmica para trocas mútuas.
A Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por sua forte presença em todo estado e
seu projeto de universidade inclusiva e participativa, ganha destaque nessa conjuntura. A
UNEB também carrega o título de instituição jovem, e com 39 anos de mobilização de frentes
periféricas e formação de professores, une-se à perspectiva de inovação da TVK. Assim,
auxilia para atingir os princípios da formação crítica do indivíduo para o exercício da
cidadania e da democracia, e da oferta de mecanismos à formação e à integração da
comunidade, como disposto na Norma Regulamentar do Canal da Cidadania.
Os sindicatos, centros comunitários, coletivos culturais, associações e conselhos
representativos também são potenciais aliados. Alguns deles, inclusive, já investem em
produtos para serem veiculados nas TV comerciais e podem encontrar na TV Kirimurê um
meio para se manifestar e estabelecer diferentes frentes de diálogos com seus públicos. O
conselho regional de medicina, por exemplo, que já possui palestras na íntegra e outros
produtos audiovisuais disponíveis na plataforma youtube, pode trabalhar com seus
profissionais de comunicação e regularmente exibir conteúdo na TVK. Em troca, esses
111
mesmos profissionais podem ajudar na organização das mídias da Kirimurê, em mais uma
simbiose produtiva, de modo que além do conteúdo, iniciativas como esta possam auxiliar no
enfretamento dos problemas administração do Canal.
A aproximação com quaisquer dessas frentes, privadas ou públicas, não pode
descaracterizar a autonomia da TVK, e ao contrário, deve servir de suporte para que nesse
projeto de apropriação social dos meios, a capacidade criativa da Kirimurê seja reforçada. Na
defesa do Canal da Cidadania, Adilson Cabral Filho e Cinthya Oliveira (2015) ratificam que
potencializar a participação da comunidade e transformar positivamente suas relações com
esses canais são ações primordiais a serem perseguidas, e sem as quais não há razoável
possibilidade de formar uma faixa da cidadania na TV aberta.
E aqui vale retomar a questão da democratização dos processos de produção. Esse
elemento é um divisor de águas tanto para os cidadãos comuns, que podem se apropriar e
entender os possíveis usos das tecnologias como modos de enfrentamento, denúncia e
produção cultural, como para as entidades envolvidas com o Canal da Cidadania, que poderão
produzir a baixo custo. Se a homogeneidade da televisão brasileira se dá também pelo
controle do capital e bens simbólicos de produção e veiculação, agora com um canal digital
aberto de TV e celulares que são pequenas filmadoras, a discussão sobre diversidade ganha
fôlego com a TVK, que deve buscar promover o uso crítico das novidades tecnológicas.
De tal forma, a TVK não pode se limitar ao uso da linguagem audiovisual e a tela do
aparelho de TV. No jogo das redes sociais, dos youtubers e digital influencers, neste tempo
cultural em que milhões de brasileiros passam em média cinco horas dos seus dias
conectados, é importante fazer uso desses espaços para se aproximar do público e ao mesmo
tempo aproveitá-los para ecoar as vozes da comunidade local. Desde quando lançada em
2016, a Kirimurê tem no ar páginas do youtube, facebook e instagram e site próprio, mas que
não recebem atenção dedicada. Há algumas formas possíveis de resolver essa ausência, uma
delas é que, por essa área ter se transformado em campo de trabalho (analistas de mídias
sociais ou Social Media), muitos estudantes podem se interessar por monitorias voluntárias.
Fotógrafos, poetas e escritores das comunidades, também podem ser convidados a colaborar
com imagem e texto para manter as plataformas atualizadas, num exercício de também
retomá-las para o trato horizontal e inclusivo.
Os aplicativos de celular têm sido relevantes no apoio à distribuição do conteúdo de
canais como a TVT e a TV Cultura de São Paulo, e com tecnologia de baixo custo servem
112
como referência para TVK. A organização de plataformas streaming como youtube ou vimeo
segue a mesma lógica de ampliação da oferta de meios para acessar conteúdos e fortalecem o
consumo segmentando. Hoje, a TVK publica parte da sua programação no youtube, e o
próximo passo pode ser disponibilizar toda sua grade, de maneira planejada e respeitando as
particularidades desse meio, usando-o em favor da melhoria da Kirimurê.
Sobre o tradicional papel da televisão de atingir todo mundo, é importante acentuar o
que Bourdieu (1997) questiona: o que temos a dizer está destinado a atingir todo mundo? E
mais, todo conteúdo deve interessar a todo mundo? A essas questões a TV pública responde
que não, porque sua mensagem é outra. Ainda mais segmentada regionalmente, a TVK pode
enfatizar as particularidades e carências de públicos negligenciados, e promover uma
informação mais independente e plural. É possível que o conteúdo produzido pelo Sindicato
dos Trabalhadores em Limpeza Pública de Salvador pouco interesse a outros públicos da
TVK, por exemplo, mas cada horário cumprirá com seu papel de atender as diferenças.
Os resultados dessa segmentação reverberam para cuidar de outro grande problema
enfrentado pela Kirimurê: a falta de interesse e participação dos cidadãos. Quando o
telespectador acessa na tela da TV aberta, no site da TVK, ou em suas redes sociais, produtos
nos quais se reconheçam, com conteúdos próximos de suas realidades e tratados de forma
transparente, torna-se possível pensar em uma mobilização pela aproximação. É um caminho
de acesso às minorias do sistema midiático, para que possam se tornar visíveis e desejem ser
donos desse espaço televisivo ainda visto como lugar apenas dos poderosos.
Ainda sobre a programação, muitas vivências podem potencializar as riquezas da TVK
por suas competências estéticas e tratamento de conteúdo. O canal Curta!, hoje disponível
apenas para assinantes da TV paga, tem produções irreverentes e acolhe experimentação de
seus parceiros realizadores. Ele é um canal independente, que primeiro nasce como
distribuidor de conteúdo e só depois organiza uma grade própria para torna-se parte das TVs
por assinatura80
. Apesar de uma fórmula da iniciativa privada, é possível fazer uma analogia e
pensar na sociedade civil soteropolitana como um grande Curta!, produzindo conteúdo rico,
potente e questionador, com a diferença de já possuir a janela de exibição da TV Kirimurê.
Há que se ponderar que a experimentação nem sempre diz respeito à ideia de
originalidade, como exigida no conceito clássico de arte, por exemplo. Muito menos requer
um vanguardismo desvinculado dos interesses do público. Televisão é uma linguagem com
80
Informações disponíveis no site http://canalcurta.tv.br/. Acesso em: fev. 2019.
113
características próprias, e os gêneros e formatos narrativos que são predominantes nas TVs
comerciais refletem anos de estudos e tentativas que já são bem aceitas pelos telespectadores.
Trata-se, portanto, de buscar rupturas capazes de criar identidades próprias, descontruindo
padronizações e atentando para o que Martín-Barbero (2002) chama de um imaginário
diferente da tevê pública, ao mesmo tempo discute que não se pode considerar que o mal está
na TV comercial e o bem está na pública.
Sobre isso, Eugênio Bucci (2006) defende que as emissoras públicas e privadas devem
funcionar como dois pratos na balança, e que tal balança é um espaço público e democrático,
deixando-as em uma relação complementar e não opostas. “As demandas do mercado são
legítimas e vitais a democracia, só não podem ser as únicas a definir o conjunto da
comunicação social. É ai que entra o papel da tevê pública”, completa Bucci (2006, p.13). As
definições estão, portanto, na missão de cada uma, como afirma Fuenzalida (2002), pois
enquanto a TV comercial não pode deixar de responder as demandas dos anunciantes,
maximizando seus lucros; a TV pública deve, de maneira plural e inovadora, interpelar o
cidadão além do consumidor, elevando o interesse público.
A cobertura ao vivo do Carnaval de Salvador, realizada pela TV Educativa da Bahia
ajuda na compreensão deste aspecto. As emissoras comerciais durante décadas montaram seus
estúdios de transmissão ao vivo nos melhores pontos dos circuitos do carnaval da cidade,
valorizando sempre blocos, artistas e camarotes de grande porte. Nos últimos anos, a TVE BA
se destaca por trazer outro olhar para essa transmissão, ao vivo pela TV e redes sociais,
incluindo circuitos alternativos e sendo, inclusive, a única a transmitir o circuito Pelourinho.
São horas mostrando a passagem dos blocos afro e independentes, entrevistando artistas de
rua e outros personagens à margem, pautas que transforam o Carnaval da TVE em expoente
de aproximação da emissora com a população de Salvador.
Mas ainda falta, porque mesmo durante o carnaval, tem o palco do rock, as rodas de
samba e o reggae; “tem hip hop, rock, arrocha, e afoxé. E tem o cordeiro e o ambulante, que
também fazem a festa acontecer. E isso aqui, na TV Kirimurê, você também vai poder ver”,
descreve o vídeo institucional da TVK.
Outra referência é o programa #ThechoiceItabuna, um reality show musical realizado
via instagram. O concurso foi criado por dois jovens empreendedores, Tarso Cardoso e
Gabriel K, para divulgar os talentos da região de Itabuna, na Bahia. Seguindo regras similares
ao do programa The Voice Brasil, os concorrentes puderam se inscrever via direct ou por
114
whatsapp e foram selecionados para compor as equipes dos artistas locais Sinho Ferray, Kaio
Oliveira e David Nascimento. Cerca de 100 artistas se inscreveram em apenas 15 dias. A
votação aconteceu através de enquetes no instagram, além de serem computadas as curtidas e
os votos dos técnicos. O programa contou com ampla participação do público e apresentando
muitas novidades para a produção audiovisual, encerrou sua a primeira edição com mais de
sete mil seguidores na rede social. Seu modo de movimentar a cena cultural da cidade dá
sinais sobre como a Kirimurê pode trabalhar.
Quantas bandas independentes locais não produzem videoclipes que poderiam ser
publicados nas telas da Kirimurê? Quantos reality shows como o #ThechoiceItabuna podem
ser parceiros desse Canal? Transmissões ao vivo de congressos, seminários, shows de artistas
locais, eventos culturais das comunidades; pequenas entrevistas com personagens que contem
a história da cidade ou dos bairros; tantos outros olhares, falas e oportunidades. Há muito para
ser divulgado pelas antenas da Kirimurê, e essa TV pode assumir compromissos com muitos
públicos para formar sua grade de programação, se aproximanado de segmentos que
igualmente retornem e assumam compromissos com esse canal popular.
Mas sua existência não pode ser isolada, é preciso ter outras TVs cidadãs com as quais
trocar, e por isso fortalecer a Kirimurê repercute em desdobramentos para toda comunicação
pública brasileira. Ao pensar apenas na Bahia e seus 417 municípios, por exemplo, são
centenas de possibilidades para falar sobre:
A cidade de Maetinga, a cidade de Mortugaba, cidades que nunca
apareceram na televisão porque sempre se tem a mesma novela, sempre se
vê nos filmes algo que aconteceu ou fora do país ou em São Paulo. Se pegar
um jornal só vai saber o que acontece em Salvador, e também não é toda
Salvador que aparece na televisão [...] Então o que o Canal da Cidadania está
procurando é uma forma de reconhecimento. A cultura das pessoas e a
capacidade delas de trocarem determinam as suas capacidades de interação
com o território, que pode mudar as relações entre as comunidades, das
pessoas com o meio ambiente e das pessoas com o capital e com a política. E
isso é possível com o Canal da Cidadania (Pola Ribeiro, 2014). 81
Além da breve experiência e oportunidades para a faixa da sociedade civil trazidas
pela Kirimurê, há perspectivas que reforçam também todo projeto do Canal da Cidadania
como potência para uma nova cultura televisiva. Em sua versão geral, que reúne uma faixa
81
Texto retirado de vídeos disponibilizados no Canal do Cineasta Pola Ribeiro, disponível em
<https://www.youtube.com/watch?v=ZcHt49Q-x6U&list=PLw9Cl2vhPd3KqBLWjAzrJs_MLfXP-
dd4c&index=2&t=0s>. Acesso em: dez. 2018.
115
para o município e outra para o governo estadual, o complexo jogo das complementariedades
se apresenta obrigando os poderes a lidarem com a informação em seu aspecto público,
quebrando a lógica praticada pelos planos de publicidade governamentais até então.
No Canal da Cidadania, seja qual for o governo que esteja no poder, os gestores
deixarão de pagar milhões às TVs comerciais para divulgar vídeos institucionais de 30
segundos ou um minuto, e passarão a ter obrigações com os cidadãos através do meio
televisivo, o mais usado pela população brasileira para se informar. Transmitir atos e
trabalhos, explicar projetos, justificar prioridades e investimentos, tratar sobre políticas
públicas, expor relatórios, dados, tudo em uma lida direta com a transparência. Essa prática
ajudaria a vencer a estatização do público, como afirma Martin-Barbero (2002), além de ser
um forte aliado contra a corrupção, a má administração e a manipulação política.
Ao mesmo tempo, o modelo do Canal da Cidadania tende a ser um caminho para
superar a dispersão histórica entre as tevês Educativas, Culturais, Universitárias, Legislativas
e Comunitárias no Brasil. Ao propor uma via de ação comum, com reconhecimento de que
todas compõem um mesmo todo complementar em torno do Campo Público de Televisão, um
Canal convergente concretiza o proposto na Carta de Brasília (2007).
Há inúmeros problemas a serem resolvidos no campo público da comunicação do
Brasil e de muitas outras nações, especialmente na América Latina. Ao fim do livro Televisão
pública, do consumidor ao cidadão, ao que chama conclusões, Martín-Barbero (2002) elenca
três grandes problemas a serem resolvidos: a distinção entre televisão pública e televisão do
governo; entre TV pública e TV comercial; e entre consumidor e cidadão. A Kirimurê, por
tudo aqui apresentado, consegue superar grande parte dessas questões.
Além disso, Martín-Barbero (2002) traz outras pendências e reúne propostas para fazer
da televisão pública uma alternativa de qualidade e cultural. E mais uma vez muitas delas
encontram eco no projeto da TVK, tais como: assumir o cidadão que existe no consumidor e
que não está satisfeito com esse tipo de cidadania, buscando vias mais ativas e democráticas
de participação; ter uma programação que reconheça processos sociais chaves para
comunidade (sugeridos por mulheres, indígenas, negros, jovens, crianças e grupos
minoritários); determinar mecanismos públicos, participativos e transparentes para sua
sustentabilidade; e promover a apropriação comunitária da televisão pela sociedade civil.
Repetindo e completando frases do cineasta Geraldo Moraes, que iniciam essa
dissertação: “Esse modelo de televisão é o que tem a ver com o futuro da TV, e ele já é o
116
presente, na verdade. O futuro é por ai, e ele está junto com o desenvolvimento da cidadania.
Porque o meio de expressão de agora é o audiovisual, então nasce uma nova forma de
participação política e vocês ai, da TV Kirimurê, chegaram na hora certa” 82
.
Enquanto não há vontade política suficiente para realizar os projetos de Canais da
Cidadania pelo Brasil, em tempos onde há grande silenciamento das narrativas antagônicas –
mesmo vindas dos veículos hegemônicos, enquanto ainda se descobrem caminhos para um
futuro da TV pública, a utopia de uma televisão a contrapelo, feita pelo público, para o
público e com dinheiro do público se materializa na invasão Kirimurê à rede aberta de tevê
digital baiana.
82
Vídeo disponível em https://tvkirimure.tv.br/o-modelo-da-tv-kirimure/. Acesso em: mar. 2019.
117
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Criar meu website, fazer minha homepage, com quantos gigabytes, se faz uma
jangada um barco que veleje? Que veleje nesse infomar, que aproveite a vazante da infomaré
[...]”, cantava Gilberto Gil há pouco mais de vinte anos sobre as mudanças no campo da
comunicação 83
. Esta canção, cujo título é Pela Internet, foi um grande divisor de águas na
indústria fonográfica nacional, sendo a primeira música lançada e transmitida ao vivo pela
internet no Brasil. Até então, o país só conhecia transmissões ao vivo pela rádio ou pela TV.
O projeto pioneiro encontrava inspiração no primeiro samba nacional gravado, o Pelo
Telefone, composta por Donga e Mauro de Almeida em 1917, e nesse jogo de vanguardas
ambas as canções marcaram épocas, promovendo encontros entre a comunicação e a cultura.
Pedindo licença à arte da música, é possível pensar uma analogia entre os supracitados
pioneirismos de 1917 e 1996 e um mais recente, em 2016: o lançamento da TV Kirimurê,
primeira faixa da sociedade civil de Canal da Cidadania que vai ao ar no Brasil. O mar
pensado por Gil ao cantar a internet atinge uma releitura com a TV digital, que agora agrega
tecnologias televisivas e binárias, trazendo para o campo público da comunicação uma
perspectiva renovada, com ampla participação popular e democratização dos meios.
O diálogo entre a comunicação e a cultura foi o que viabilizou o surgimento do Canal
da Cidadania na TV digital brasileira, e no campo das políticas públicas a analogia proposta
ganha efeito. Quando, em 2003, o Ministério da Cultura reconheceu que a tevê se tornou
elemento constitutivo para formação socioeconômica e cultural da nação, e a incluiu na
agenda do audiovisual do país, a criação de espaços na radiodifusão para narrativas a
contrapelo se fortaleceu. E foi assim que, mesmo diante das continuadas ausências e
instabilidades, e apesar do projeto ter perdido fôlego desde a sua concepção inicial, a TV
Educativa da Bahia (TVE BA) ganhou autorização para multiprogramar, abrindo portas para
que a sociedade soteropolitana ocupasse a faixa da cidadania, inaugurando a TV Kirimurê.
Embora não se deva comparar a recente experiência da TVK com os sucessos
alcançados pelos projetos e canções aqui trazidos, ao olhar para as rotas iniciadas no mar
kirimurê é possível ver, pela TV, algumas vertentes a serem exploradas rumo a uma nova
cultura para a TV pública brasileira.
83
Mais sobre a história do projeto por trás da canção Pela Internet, composição de Gilberto Gil
(Mesa/Bluemoon Recordings, CD Quanta, 1997) disponível em http://www.maurosegura.com.br/pela-internet-
gilberto-gil/. Acesso em: mar. 2019.
118
Esta análise identificou a TVK como capaz de se converter em área estratégica para
produzir e reformular as imagens que a população soteropolitana tem de si mesma e de como
quer ser reconhecida pelos outros, como defende Martín-Barbero (2002). Ao poder abandonar
uma programação sumária e projetar novos fluxos narrativos e estéticos, com participação
direta do cidadão e uso democrático das mídias e tecnologias digitais, a Kirimurê e o Canal da
Cidadania estimulam a produção audiovisual independente e se abrem como janela de
exibição para produtos negligenciados pela grande mídia, em um grande encontro social.
Na prática, isso é refletido na grade da TVK em programas como Candomblé e Seus
Caminhos, Catado de Cultura, Conversa de Preta e Simões Filho no Ar, muitos produzidos
de forma colaborativa e projetando diversidade de gêneros, formatos e de manifestações
culturais e religiosas. Aqui se consolida parte do que foi planejado durante as rotas navegadas
pelo grupo construtor da TVK, na busca por poder confirmar que “Sim, cidadão! A TV
Kirimurê é pra você. Mas não só pra você assistir, ela é também pra você fazer e aparecer. E
quando o seu vizinho perguntar se foi você que estava na TV, diga que sim, diga que sim!
Porque essa é sua TV Kirimurê!”, como sugere o seu vídeo institucional.
A rede colaborativa da TVK se expande para sua gestão e financiamento, tendo o
projeto a possibilidade de ser independente de governos e partidos, e também de se apartar
dos jogos publicitários. Com plano de negócios orientado para captar recursos com parceiros
locais, a Kirimurê deu sinais de formas para converter financiadores em amigos, o que pode
continuar a ser tentado. Contudo, embora vislumbre experimentações para formas próprias de
gerenciamento, é aqui a transformação mais difícil no processo da TVK (e de qualquer TV
pública no Brasil), já que apesar de seu orçamento baixo, se comparado a outras iniciativas de
mídia de grande alcance, os mecanismos de captação, ainda muito vinculados ao modelo
comercial de TV, exigem mudanças estruturais que estão longe de serem praticadas pelo
Estado e pela sociedade.
Sobre isso, Gilberto Gil (2003), em seu discurso de posse no MinC, salienta que em
matéria de cultura (o que abrange a televisão) é indispensável examinar e corrigir distorções
inerentes à lógica do mercado que é sempre regida, em última análise, pela lei do mais forte.
Completa que “é preciso, em muitos casos, ir além do imediatismo, da visão de curto alcance,
da estreiteza, das insuficiências e mesmo da ignorância dos agentes mercadológicos. Sabemos
que é preciso suprir as nossas grandes e fundamentais carências” (Gilberto Gil, 2003).
119
Ao colocar em questão a possibilidade da TV Kirimurê representar um frescor para o
campo público da radiodifusão, a busca fundamental ainda é para suprir carências e, por esse
motivo, mesmo ao perceber as potencialidades de uma iniciativa como esta, não se pode
perder de vista o histórico hegemônico da TV comercial brasileira. É elementar, como sugere
Bourdieu (1997), que sejam ponderados os mecanismos que fazem da televisão um
extraordinário instrumento de manutenção da ordem simbólica, e por isso foi parte desta
análise também pontuar as fragilidades que envolvem o projeto da TVK.
A TV Kirimurê completou dois anos em novembro de 2018, e como insistimos em
enfatizar, toda sua história é ainda recente e repleta de perspectivas. De tal modo, mesmo
conscientes da necessária e justificada desconfiança sobre o futuro, é possível mergulhar em
outros aspectos para projetar o que Ríncon (2002) diz sobre materializar as missões, intenções
e políticas em uma TV boa e competitiva, capaz de inovar, criar espaços para diversidade e
traduzir múltiplas identidades em imagens.
Ainda agora, por exemplo, enquanto se encerra a escrita destas considerações finais,
o programa Me Despache, uma iniciativa da empresa social MerC’afro 84
, acaba de estrear na
grade da TVK. O programa traz conteúdo sobre a vida financeira e o desenvolvimento
pessoal, com ênfase na população negra. Outro fato relevante aconteceu durante o carnaval de
Salvador 2019, quando a Kirimurê transmitiu ao vivo (pela TV e redes sociais) os festejos do
Momo em Cajazeiras, bairro periférico e um dos mais populosos da cidade, em parceria com a
rede comunitária Fala Cajazeiras: A gente mostra, todo mundo vê 85
. Essas inaugurações
significam um importante “continuar a navegar”, que fortalecem e oxigenam a radiodifusão
pública brasileira, e apontam para novidades que precisam permanecer nas pautas da
academia e da sociedade baiana.
Como potencializar as mídias alternativas da TVK? Quais estratégias podem ser
aprofundadas para trazer os cidadãos para que ocupem o espaço dessa faixa? Por que a
academia continua a falar sobre uma TV que não assiste? Como fazer da Kirimurê um canal
que não replique a cidade de Salvador por suas características efêmeras? Quantas outras
84
Fundado em Salvador, Bahia em outubro de 2014, o MerC’afro é um negócio social, que tem como objetivo
compartilhar conhecimentos via produção de conteúdo e serviços educacionais e de formação, que tenham como
propósito transformar soluções digitais em desenvolvimento econômico, para empreendedores e consumidores
de economia vulnerável. 85
Transmissão na íntegra disponível em https://www.youtube.com/channel/UCcxt24EFcyNAwzBm4-
FaziA/videos. Acesso: em mar. 2019.
120
questões podem levar a debates profundos e transformadores para a comunicação pública de
todo país? É fundamental não parar de perguntar e de buscar respostas.
Ao falar de futuro, em um artigo publicado em 2013, o jornalista Daniel Fonseca, da
Carta Capital, questionou “Canal da Cidadania: democratização da televisão ou mais uma
miragem da TV digital?”. E depois de levantar dados sobre as leis, passar pela
multiprogramação, pelo sistema híbrido nipo-brasileiro e o middleware Ginga, concluiu com
desconfiança que havia poucas garantias de que as promessas de implantação de Canais pelo
Brasil fossem cumpridas 86
. Com razão, as conclusões da reportagem se inclinam para definir
como miragem o projeto do Canal da Cidadania. Apenas três anos depois, em 2016, o Brasil
viu ser inaugurada a sua primeira faixa cidadã, e assim uma nova pauta poderia ser somada as
questões acima: seria a TV Kirimurê uma miragem, uma lenda, fadada a não funcionar?
Aproveitando o mar, as ondas e as músicas que ajudaram na condução desta pesquisa,
a TVK parece acompanhar Milton Nascimento quando ele canta: “Quero a utopia, quero tudo
e mais. Quero que a justiça reine em meu país. Quero a liberdade. Quero nossa cidade sempre
ensolarada, os meninos e o povo no poder, eu quero ver” 87
. E se ainda há tanta dificuldade de
mobilização social para que a população ocupe esse espaço na TV aberta, há também um
necessário embate que se aproxima dos processos de transformação imprescindíveis para o
enfrentamento de tantos agentes contrários no mercado, na política, no poder.
E por tudo que foi tratado aqui, é importante deixar a televisão ligada e vez ou outra
sintonizada na TVK, para que ela seja sempre uma escolha possível, promovendo novos
olhares dentro da televisão aberta soteropolitana. É preciso também que a Kirimurê seja
contestada, fiscalizada e continuamente acompanhada para que não se desvie de seu caminho.
Ela pode ser uma tevê que funciona como uma ponte identitária, um canal da sociedade de
Salvador-BA, onde os cidadãos, de forma consciente, reconstruam o espaço televisivo ainda
tão hegemônico, e reacendam as discussões sobre a abertura de novos Canais da Cidadania
em todo território brasileiro. A Kirimurê, ave que se transformou em mar, lenda que deu
nome a uma TV, continua em seu processo de transformação, e deve encontrar formas para
manter suas rotas na democracia e na cidadania.
86
Reportagem disponível em https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/canal-da-cidadania-
democratizacao-da-televisao-ou-mais-uma-miragem-da-tv-digital-421.html. Acesso em: maio 2018. 87
Trecho da música Coração Civil, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant. EMI Music, 1981.
121
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APÊNDICE: Organização de documentos, reportagens e vídeos sobre a TV Kirimurê.
Tendo em vista a dificuldade de encontrar, de forma organizada, informações sobre os
temas do Canal da Cidadania e TV Kirimurê, e considerando o material de apoio para esta
dissertação (que em parte, inclusive, não está mais disponível nas redes) pode servir para
facilitar pesquisas futuras e manter a memória da TVK, este apêndice se apresenta em uma
mídia (DVD). Os arquivos em vídeo, texto e imagem reúnem dados (legislação, programas,
vídeos institucionais e transmissões na íntegra) localizados durante o período de escrita desta
dissertação, e a sua forma de apresentação também evita que o volume deste trabalho tomasse
uma proporção muito grande. Todos os anexos estão disponíveis também no link público:
https://drive.google.com/open?id=1qzuHqtEWI1pb9d8CbuqZCwY4ZjliNDdS.