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Quim. Nova, Vol. 32, No. 9, 2487-2491, 2009 Educação *e-mail: [email protected] MODELOS DA QUÍMICA QUÂNTICA NO ESPAÇO DE MOMENTO: DIFERENTES REPRESENTAÇÕES DE UM MESMO SISTEMA Willian Hermoso e Fernando R. Ornellas* Departamento de Química Fundamental, Instituto de Química, Universidade de São Paulo, CP 26077, 05513-970 São Paulo - SP, Brasil Recebido em 10/12/08; aceito em 18/5/09; publicado na web em 1/10/09 QUANTUM CHEMISTRY MODELS IN THE MOMENTUM SPACE: DIFFERENT REPRESENTATIONS OF THE SAME SYSTEM. The conventional approach to simple quantum chemistry models is contrasted with that known as momentum representation, where the wavefunctions are momentum dependent. Since the physical interactions are the same, state energies should not change, and whence the energy differences correlating with the real world as spectral lines or bands. We emphasize that one representation is not more fundamental than the other, and the choice is a matter of mathematical convenience. As spatial localization is rooted in our brains, to think in terms of the momentum present us a great mental challenge that can lead to complementary perspectives of a model. Keywords: momentum representation; coordinate representation; quantum chemistry models. INTRODUÇÃO O ensino de Química Quântica é hoje um componente fundamen- tal na formação dos estudantes de Química, pois a compreensão de fenômenos químicos e físicos sob uma óptica microscópica requer necessariamente uma abordagem quântica. Tradicionalmente, o aluno tem seus primeiros contatos com conceitos de Química Quântica ao estudar sistemas fisicamente simples que permitem ilustrar uma maneira de pensar distinta daquela da física clássica. Obviamente, nessa fase, e até mesmo em cursos ou textos mais avançados, não é salientado que o desenvolvimento teórico a que está sendo introduzido corresponde ao que se convencionou chamar espaço das coordenadas ou representação da posição. Sem nos preocuparmos com rigores de formalismo, podemos dizer que, nessa representação, a função de onda associada à descrição do estado de um sistema é função das posições das partículas que o constituem. Isso, naturalmente, induz o aluno a adquirir uma falsa impressão que a descrição dos sistemas na Química Quântica está sempre baseada na posição de cada uma das partículas, não havendo outra possibilidade de caracterização. Neste artigo, mostramos que a estrutura matemática da Mecânica Quântica nos permite apresentar a Equação de Schrödinger numa outra forma praticamente desconhecida do químico, em que a função de estado não é mais função das coordenadas das partículas, mas sim de seus momentos lineares. Essa apresentação alternativa é conhecida como espaço ou representação de momento. Como as interações físicas que caracterizam o sistema permanecem inalteradas, as energias (autovalores da Equação de Schrödinger) próprias de cada estado têm que ser invariantes à forma de representação. Aqui, em particular, vamos examinar os modelos do oscilador harmônico, do átomo de hidrogênio e o de uma partícula numa caixa unidimensional e mostrar que não precisamos ter nosso raciocínio enraizado numa descrição em termos das posições das partículas que compõem o sistema para caracterizar energeticamente seu estado. Essa perspectiva obviamente leva a uma visão não-usual que é im- portante para ilustrar ao aluno a distinção entre modelo e realidade e a conveniência de se trabalhar numa ou noutra das representações. Apesar de nesse contexto a transição de uma para outra representação ser novidade para o aluno, o conceito matemático de representação pode ser encontrado na Termodinâmica ao tratar os conceitos de entropia, energia de Gibbs e energia de Helmholtz, por exemplo. Todas são funções termodinâmicas que caracterizam um sistema e nos permitem definir condições de equilíbrio e espontaneidade, mas a escolha de uma ou outra é uma questão de conveniência prática ou teórica que, matematicamente, significa a escolha de uma ou outra representação e que, nesse caso, é definida através de uma operação matemática conhecida como transformação de Legendre. 1 ASPECTOS TEÓRICOS Pelo fato de não ter familiaridade com equações diferenciais, a Equação de Schrödinger independente do tempo, como apresentada abaixo (em uma dimensão por questão de simplicidade), tem um impacto assustador no estudante de química. (1) Numa seqüência lógica, o significado físico de cada um de seus termos é apresentado e uma concepção nova de representação de variáveis físicas em termos de operadores matemáticos (diferenciais e multiplicativos) é introduzida. Nesse contexto, ao aluno é ensinado que, em uma dimensão, a posição de uma partícula será associada ao operador multiplicativo x, e seu momento linear ao operador diferencial –ih - /x. 2 Como classicamente a energia cinética de um sistema é igual a p 2 /2m, mostra-se ao aluno que essa associação é coerente com o termo do operador de energia cinética (-h - 2 /2m) 2 /x 2 na Equação 1. Muitas vezes, nessa fase mostra-se, também, que esses operadores satisfazem uma relação de comutação fundamental na mecânica quântica, expressa na Equação 2, cuja interpretação nos diz que é impossível conhecer simultaneamente, com precisão arbitrária, a posição e o momento linear de uma partícula. 3,4 (2) Uma vez apresentada, a seguir passa-se à aplicação dessa equa- ção a alguns sistemas simples, enfatizando que: (1) a quantização da energia surge de forma natural; (2) a função de onda Ψ(x) não tem uma interpretação física associada a ela; e, (3) que Ψ(x)*Ψ(x) representa uma distribuição de probabilidade, sendo Ψ(x)* Ψ(x) dx a

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  • Quim. Nova, Vol. 32, No. 9, 2487-2491, 2009

    Educao

    *e-mail: [email protected]

    MODELOS DA QUMICA QUNTICA NO ESPAO DE MOMENTO: DIFERENTES REPRESENTAES DE UM MESMO SISTEMA

    Willian Hermoso e Fernando R. Ornellas*Departamento de Qumica Fundamental, Instituto de Qumica, Universidade de So Paulo, CP 26077, 05513-970 So Paulo - SP, Brasil

    Recebido em 10/12/08; aceito em 18/5/09; publicado na web em 1/10/09

    QUANTUM CHEMISTRY MODELS IN THE MOMENTUM SPACE: DIFFERENT REPRESENTATIONS OF THE SAME SYSTEM. The conventional approach to simple quantum chemistry models is contrasted with that known as momentum representation, where the wavefunctions are momentum dependent. Since the physical interactions are the same, state energies should not change, and whence the energy differences correlating with the real world as spectral lines or bands. We emphasize that one representation is not more fundamental than the other, and the choice is a matter of mathematical convenience. As spatial localization is rooted in our brains, to think in terms of the momentum present us a great mental challenge that can lead to complementary perspectives of a model.

    Keywords: momentum representation; coordinate representation; quantum chemistry models.

    INTRODUO

    O ensino de Qumica Quntica hoje um componente fundamen-tal na formao dos estudantes de Qumica, pois a compreenso de fenmenos qumicos e fsicos sob uma ptica microscpica requer necessariamente uma abordagem quntica. Tradicionalmente, o aluno tem seus primeiros contatos com conceitos de Qumica Quntica ao estudar sistemas fisicamente simples que permitem ilustrar uma maneira de pensar distinta daquela da fsica clssica. Obviamente, nessa fase, e at mesmo em cursos ou textos mais avanados, no salientado que o desenvolvimento terico a que est sendo introduzido corresponde ao que se convencionou chamar espao das coordenadas ou representao da posio. Sem nos preocuparmos com rigores de formalismo, podemos dizer que, nessa representao, a funo de onda associada descrio do estado de um sistema funo das posies das partculas que o constituem. Isso, naturalmente, induz o aluno a adquirir uma falsa impresso que a descrio dos sistemas na Qumica Quntica est sempre baseada na posio de cada uma das partculas, no havendo outra possibilidade de caracterizao. Neste artigo, mostramos que a estrutura matemtica da Mecnica Quntica nos permite apresentar a Equao de Schrdinger numa outra forma praticamente desconhecida do qumico, em que a funo de estado no mais funo das coordenadas das partculas, mas sim de seus momentos lineares. Essa apresentao alternativa conhecida como espao ou representao de momento. Como as interaes fsicas que caracterizam o sistema permanecem inalteradas, as energias (autovalores da Equao de Schrdinger) prprias de cada estado tm que ser invariantes forma de representao.

    Aqui, em particular, vamos examinar os modelos do oscilador harmnico, do tomo de hidrognio e o de uma partcula numa caixa unidimensional e mostrar que no precisamos ter nosso raciocnio enraizado numa descrio em termos das posies das partculas que compem o sistema para caracterizar energeticamente seu estado. Essa perspectiva obviamente leva a uma viso no-usual que im-portante para ilustrar ao aluno a distino entre modelo e realidade e a convenincia de se trabalhar numa ou noutra das representaes. Apesar de nesse contexto a transio de uma para outra representao ser novidade para o aluno, o conceito matemtico de representao pode ser encontrado na Termodinmica ao tratar os conceitos de

    entropia, energia de Gibbs e energia de Helmholtz, por exemplo. Todas so funes termodinmicas que caracterizam um sistema e nos permitem definir condies de equilbrio e espontaneidade, mas a escolha de uma ou outra uma questo de convenincia prtica ou terica que, matematicamente, significa a escolha de uma ou outra representao e que, nesse caso, definida atravs de uma operao matemtica conhecida como transformao de Legendre.1

    ASPECTOS TERICOS

    Pelo fato de no ter familiaridade com equaes diferenciais, a Equao de Schrdinger independente do tempo, como apresentada abaixo (em uma dimenso por questo de simplicidade), tem um impacto assustador no estudante de qumica.

    (1)

    Numa seqncia lgica, o significado fsico de cada um de seus termos apresentado e uma concepo nova de representao de variveis fsicas em termos de operadores matemticos (diferenciais e multiplicativos) introduzida. Nesse contexto, ao aluno ensinado que, em uma dimenso, a posio de uma partcula ser associada ao operador multiplicativo x, e seu momento linear ao operador diferencial ih- /x.2 Como classicamente a energia cintica de um sistema igual a p2/2m, mostra-se ao aluno que essa associao coerente com o termo do operador de energia cintica (-h- 2/2m) 2/x2 na Equao 1. Muitas vezes, nessa fase mostra-se, tambm, que esses operadores satisfazem uma relao de comutao fundamental na mecnica quntica, expressa na Equao 2, cuja interpretao nos diz que impossvel conhecer simultaneamente, com preciso arbitrria, a posio e o momento linear de uma partcula.3,4

    (2)

    Uma vez apresentada, a seguir passa-se aplicao dessa equa-o a alguns sistemas simples, enfatizando que: (1) a quantizao da energia surge de forma natural; (2) a funo de onda (x) no tem uma interpretao fsica associada a ela; e, (3) que (x)*(x) representa uma distribuio de probabilidade, sendo (x)* (x) dx a

  • Hermoso e Ornellas2488 Quim. Nova

    probabilidade de encontrar a partcula entre x e x + dx. Neste ponto, oportuno o professor enfatizar que, em contraste com a mecnica clssica, a equao de onda no descreve a dinmica da partcula (como ela se movimenta, ou mais simplesmente, o que ela faz). Com essas solues podemos somente fazer previses probabilsticas sobre a ocorrncia de um dado evento e determinar mdias das va-riveis associadas s quantidades fsicas de interesse. interessante tambm enfatizar que a conexo da teoria com o mundo atmico e molecular se faz atravs de diferenas de energia entre os estados de um sistema; essas diferenas de energia podem ser associadas s linhas ou bandas nos diferentes tipos de espectros, ou determinadas como entalpias no caso de reaes.

    Fazemos notar, entretanto, que um aluno com um pouco mais de curiosidade matemtica poderia ter apontado ao professor que ele verificou que o par de operadores (p e ih- /p) tambm satisfaz a relao (2) e que fisicamente esses operadores poderiam ser associa-dos ao momento linear e posio da partcula, o que, obviamente, levaria a uma Equao de Schrdinger distinta da Equao 1. De fato, a Equao 3 uma forma equivalente Equao 1 em que a funo de onda e os operadores de energia cintica e potencial so agora expressos em funo do momento linear da partcula.5

    (3)

    Aqui, o termo correspondente energia cintica tem semelhana com a expresso clssica, mas o termo associado energia potencial assume agora a forma de um operador integral. Na Equao 3, U(p p) conhecido como kernel da integral e dado por

    (4)

    em que V(x) a energia potencial da Equao 1.Essa perspectiva distinta de descrio do estado de um sistema

    em termos de funes de onda dependentes do momento da partcula pode ser obtida atravs da resoluo da Equao integral 3 ou, alter-nativamente, atravs da transformada de Fourier da correspondente soluo no espao de coordenadas ou da posio, definida pela relao (5), dada em uma dimenso por simplicidade.6

    (5)

    ESPAO DO MOMENTO: UM ESTUDO DE CASOS

    Nesta seo, vamos ilustrar uma forma alternativa, mas equiva-lente, de descrio de trs modelos simples amplamente discutidos nos cursos de Qumica Quntica, mais especificamente, o oscilador harmnico, o tomo de hidrognio e uma partcula confinada numa caixa unidimensional com paredes infinitas. Procuraremos nos limitar s equaes mais essenciais; detalhes matemticos sobre a obteno das equaes e as transformaes realizadas podem ser encontrados na ref. 7.

    Oscilador harmnico

    A Equao de Schrdinger para um oscilador harmnico, mos-trada abaixo, amplamente discutida e sua soluo apresentada em detalhes nos cursos iniciais de Qumica Quntica.

    (6)

    A resoluo dessa equao leva naturalmente quantizao da energia do oscilador, expressa como E(v) = (v + ) h- , em que a frequncia angular, e = 0, 1, 2, 3,... o nmero quntico vibracional. Como bem conhecido, sua soluo geral tem a forma

    (x) = N

    v H

    v(x) exp{-a x2/2} (7)

    em que a igual a

    , N a constante de normalizao, dada

    pela relao e Hv(x) o polinmio de Hermite

    de grau v.Sabendo que na representao do momento a posio da partcula

    associada ao operador diferencial ih- /p e o momento linear ao operador multiplicativo p, pode-se mostrar que a Equao 3 para o caso especfico do oscilador harmnico toma a seguinte forma:7

    (8)

    em que a massa reduzida da sistema, k a constante de fora do oscilador e E sua energia.

    Neste caso, em particular, chamamos a ateno primeiro para a forma matemtica das duas Equaes 6 e 8. Deve-se notar que o termo correspondente energia cintica na representao de coordenadas, expresso na forma de um operador diferencial, agora associado a um operador multiplicativo; no caso do operador multiplicativo associado energia potencial ( kx2), sua representao no espao do momento toma a forma de um operador diferencial.7 Do ponto de vista mate-mtico, essas duas equaes so idnticas e o mesmo procedimento apresentado nos livros-textos para a resoluo da equao no espao de coordenadas se aplica equao no espao do momento, levando mesma expresso para a energia escrita acima e s solues

    (9)

    em que a igual a . Ressaltamos, novamente, que a ener-

    gia associada a certo estado v independe de qual representao se esteja trabalhando. Restringindo-nos, por simplicidade, ao estado fundamental (0), temos

    (10)

    que tem a mesma forma analtica da soluo no espao de coorde-nadas mostrada abaixo.

    (11)

    Alternativamente, essa mesma soluo poderia ser obtida atravs da transformada de Fourier definida pela Equao 5, ou seja,

    (12)

    Aqui se pode salientar a propriedade da transformada de Fourier de uma funo do tipo gaussiana gerar outra funo tambm do tipo gaussiana.6

    Na Figura 1 ilustramos as distribuies de probabilidades no espa-o do momento para vrios estados do oscilador harmnico, resultado esse nunca apresentado nos livros-textos. Nos grficos deve-se notar que apesar da energia de cada estado ser bem conhecida, o momento da partcula no bem definido, o que bem contrastante com a previso determinista da mecnica clssica. Sendo uma distribuio,

  • Modelos da Qumica Quntica no espao de momento 2489Vol. 32, No. 9

    a simetria embutida nesses grficos mostra claramente que o valor mdio do momento em qualquer estado ser sempre zero, resultado esse que normalmente proposto como um exerccio a ser provado no espao de coordenadas. Nota-se tambm que, conforme o nmero quntico vibracional aumenta, o sistema tende a se aproximar de um comportamento clssico, obedecendo assim ao princpio da corres-pondncia.8 Da forma analtica semelhante das funes de onda nas duas representaes podemos tambm inferir que o clculo de pro-babilidades de transies levar mesma regra de seleo (Dv = 1).3

    Neste modelo, a semelhana das equaes nas duas representa-es torna irrelevante a escolha de uma abordagem ou outra. Entretan-to, poderamos imaginar que se por algum fator operante na evoluo da mecnica quntica (ou de nosso crebro) somente a equao no espao de momento tivesse sido proposta, o pensar em termos do deslocamento do oscilador (p.ex., das posies dos tomos num sistema diatmico) certamente no estaria to enraizado em nosso subconsciente e no acharamos estranho raciocinar em termos do momento, como o achamos agora. Como tudo o que previsto numa representao pode ser tambm previsto na outra, nenhuma delas mais fundamental ou mais relevante que a outra. A escolha entre uma e outra uma questo de convenincia ou de preferncia pessoal.

    tomo de hidrognio

    O modelo do tomo de hidrognio o caso prottipo para a compreenso inicial de espectros e de sistemas atmicos mais com-plexos. Ao ser exposto primeiro ao modelo de Bohr, o estudante confrontado ao mesmo tempo com o sucesso momentneo e com as limitaes de tal modelo.9 Mais adiante, ao ser introduzido Equao de Schrdinger, vivencia outro choque, o da generalidade de aplicao

    da equao simultaneamente perda de uma visualizao clssica. Um novo paradigma surge. Uma nova forma de pensar ento cons-truda. Apesar da impossibilidade de anlise clssica imposta pela Mecnica Quntica, o resultado relevante que conecta a teoria com o mundo real, o espectro atmico, corretamente previsto.

    As Equaes 13 e 14 contrastam a forma da Equao de Schrdin-ger nas representaes de posio e de momento para o tomo de hidrognio:

    (13)

    (14)

    A Equao 13 analisada em detalhes nos cursos de Qumica Quntica;3,4,8-10 j a Equao 14 foi resolvida por Fock,11 logo no comeo da nova teoria quntica. Funes de onda no espao de mo-mento, obtidas via transformada de Fourier, foram ainda estudadas por Podolsky e Pauling12 tambm nos primrdios da mecnica quntica. A soluo matemtica da Equao 14 extremamente complexa.7 Da, talvez, sua no-popularidade nos livros-textos de Qumica Quntica. Entretanto, o ponto essencial que queremos destacar que, sendo a funo de onda no espao de momento dependente do momento do eltron, (p)*(p) vai nos fornecer uma distribuio de probabilidade do momento que contrasta com nosso pensar inconsciente de tentar associar a partcula a algum ponto no espao, como ocorre na outra representao. Para podermos examinar um pouco mais esse aspec-to, vamos analisar as solues para o tomo de hidrognio nos dois espaos, restringindo-nos, por simplicidade, ao estado fundamental. As Equaes 15 e 16 so duas funes com variveis bem distintas, mas que corretamente descrevem o estado fundamental do tomo de hidrognio, ou seja, ambas predizem o valor -0,5 u.a. para a energia do tomo no estado fundamental.7

    (15)

    (16)

    Como o pensar quntico probabilstico, na Figura 2 mostramos as distribuies radiais correspondentes a essas duas funes de estado.

    Nos cursos usuais, o mximo na distribuio radial no espao de coordenadas interpretado como indicativo da posio mais provvel de encontrar o eltron no estado fundamental. Acidentalmente (ou reflexo de algo mais profundo), a distncia correspondente a esse mximo exatamente igual ao raio calculado no modelo de Bohr. Por coerncia lgica na estrutura da Mecnica Quntica, a mesma forma interpretativa vale para a distribuio no espao de momento,

    Figura 1. Distribuies de probabilidades do momento do oscilador harm-nico para os estados v = 0, 1, 2, 3, 4 e 10

    Figura 2. Distribuies radiais de probabilidades do tomo de hidrognio para o estado fundamental

  • Hermoso e Ornellas2490 Quim. Nova

    ou seja, o mximo na distribuio do momento est associado ao valor (absoluto) mais provvel do momento. Usando essa distribuio para calcular o valor mdio de p2/2m, obtemos a energia cintica mdia, que pelo teorema do virial igual ao negativo da energia total do sistema. Note que ambas as descries so equivalentes, nenhuma mais fundamental que a outra. Ambas fornecem as mesmas energias para o tomo de hidrognio e, dessa forma, fazem a conexo do mo-delo com o mundo real, ou seja, o espectro do tomo de hidrognio. Pensar em termos do momento do eltron algo no-usual e at certo modo difcil de ser concebido. Como a localizao no espao algo que trazemos inconscientemente, pensar em termos da distribuio da posio nos parece mais familiar, mas importante enfatizar que a Mecnica Quntica no nos diz o que o eltron est fazendo no tomo, nem como ele se movimenta. Quando um eltron excitado do estado 1s para o estado 2p, por exemplo, ela no nos diz como isso ocorre, mas somente a probabilidade de sua ocorrncia e nas duas representaes ns somos capazes de fazer a previso correta. Como j enfatizado, matematicamente mais fcil trabalhar na representao das coordenadas, mas deve ficar claro que ela, e toda a interpretao fsica resultante, no so mais fundamentais que as correspondentes no espao de momento.

    Partcula numa caixa unidimensional

    A descrio quntica de uma partcula confinada numa caixa unidimensional de largura L, em que o potencial igual a zero entre os extremos L/2 e L/2 e infinito fora desse intervalo, estando, por-tanto, livre para se movimentar em seu interior, o primeiro modelo examinado em detalhes num curso de Qumica Quntica e ilustra de forma simples a quantizao da energia em sistemas confinados. As Equaes de Schrdinger correspondentes s duas representaes so mostradas abaixo:

    (17)

    (18)

    A Equao 17 uma das primeiras introduzidas ao aluno e, mes-mo que no saiba nada de equaes diferenciais, ela muito fcil de ser resolvida; basta que ele faa a pergunta: que tipo de funo (x), que derivada duas vezes, resulte em 2mE/h- 2 (x)? Sua soluo usualmente apresentada na forma (x) = A sen kx + B cos kx, em que k2 = 2mE/h- 2. Como conhecido, a imposio das condies de contorno, (-L/2) = (L/2) = 0, introduz o par de restries (B = 0 e kL/2 = n com n = 2, 4, 6,...) e (A = 0 e kL/2 = n com n = 1, 3, 5,...), que leva quantizao da energia (E

    n = n2h2/(8mL2)).3,4,8-10 No

    espao de momento, entretanto, apesar da equao ter uma aparncia mais simples, sua soluo no de imediato percebida pelo estudante sem o conhecimento de propriedades da funo delta de Dirac.6 Se o intervalo em que o potencial zero se estendesse infinitamente, nosso problema se transformaria no de uma partcula livre e a soluo da Equao 18 seria igual a5

    (p) = B [(p + p0) + (p - p0)] (19)

    que, fisicamente, representa uma onda plana (partcula) com igual probabilidade de estar se movendo nas direes x. No interior da caixa (energia potencial igual zero), a forma funcional da soluo deve ser semelhante da soluo 19, mas devidamente modificada para refletir as condies de contorno do problema. Entretanto, a imposio dessas condies est longe de ser trivial13 e no ser

    discutida aqui. No entanto, para que possamos analisar a soluo no espao de momento, vamos express-la como a transformada de Fourier da soluo no espao de coordenadas.

    (20)

    Devido simetria da caixa, as solues no espao de coordenadas so expressas como dois conjuntos de funes (pares e mpares); de forma semelhante, no espao de momento podemos tambm escrever

    , n = 1, 3, 5... (21)

    , n = 2, 4, 6... (22)

    Embora no parea claro numa primeira inspeo, a descrio do estado de uma partcula nessa caixa, usando as funes 21 e 22, totalmente equivalente feita pelas funes de onda expressas em termos da posio da partcula. Novamente, a grande dificuldade que nosso crebro no foi educado para pensar no espao do momento. Apesar dessa dificuldade, vamos procurar ilustrar como essas funes podem nos ajudar a apontar um erro recorrente nos livros-textos.14-18

    Ao analisar as solues pares (cos kx), por exemplo, e fazendo uso da relao

    (23)

    interpreta-se essa soluo como uma superposio de duas ondas planas (eikx + e-ikx) movendo-se em direes opostas, em que o valor de k est fixo pela energia associada ao estado atravs da relao k2 = 2mE/h- 2. Essa interpretao incorreta14-18 e, infelizmente, encontrada em vrios livros-textos. Para verificar por que incorreta basta olhar as distribuies de momento para vrios estados mostradas na Figura 3. Nesses grficos, nota-se claramente que todas elas so indicativas de que o momento no tem um valor fixo, mas varia dentro de um dado intervalo. medida que o sistema se aproxima do limite clssico (n ou L ), essa distribuio se estreita e se reduz a funes- centradas em k.16

    De passagem, salientamos tambm que o modelo da partcula numa caixa unidimensional tem ainda problemas adicionais como a desconti-nuidade da derivada primeira e da segunda (em relao x) nos pontos extremos que, normalmente, no so apresentados nos livros-textos usuais. Sua discusso tambm envolve uma abordagem matemtica mais avanada, que poder ser estudada nas referncias originais pelo leitor com um maior embasamento terico. Apesar de no rigoroso, o procedimento usual para a obteno da energia no afetado.17,18

    Figura 3. Distribuies de probabilidades do momento para uma partcula numa caixa unidimensional para os estados n = 1, 2, 3 e 10

  • Modelos da Qumica Quntica no espao de momento 2491Vol. 32, No. 9

    Conexo com o mundo real

    J ressaltamos nas sees anteriores que diferenas de energias, obtidas pela soluo da Equao de Schrdinger, se correlacionam com o mundo real atravs das linhas e bandas espectrais. inte-ressante ainda destacar que distribuies de momento podem ser determinadas experimentalmente. Uma dessas tcnicas baseia-se no chamado efeito ou espalhamento Compton,19,20 em que se observa uma diminuio na frequncia da radiao (raios X) espalhada, em relao incidente, aps sua coliso com eltrons num determinado alvo. Na realidade, observa-se um alargamento da linha da radiao espalhada, resultando, assim, numa banda de espalhamento. Na literatura, essa banda denominada perfil de Compton e expressa pela relao abaixo derivada com o auxlio da Mecnica Quntica:

    em que q um comprimento de onda efetivo e I(p) a distribuio radial de momento, que pode ser calculada conhecendo-se a funo de onda no espao de momento. A outra tcnica conhecida como espectroscopia de momento de eltron, ou espectroscopia de coin-cidncia eletrnica, simbolizada por (e, 2e).21-23 Aqui, eltrons so direcionados a um alvo de onde ejetam outros eltrons e se espalham. Com um arranjo experimental apropriado, o eltron espalhado e o eltron ejetado so detectados simultaneamente. Usando leis de conservao de momento e de energia, possvel determinar a ener-gia e o momento do eltron ejetado antes da coliso. Como a taxa de eltrons espalhados numa dada direo expressa pela seo de choque diferencial (ds/d), pode-se provar teoricamente que essa seo de choque est relacionada funo de onda no espao de momento pela relao

    ds/d = C |(p)|2

    que ressalta, mais uma vez, o papel central dessa funo na anlise de dados experimentais nesse tipo de experimento.

    CONCLUSES

    Neste trabalho, procuramos mostrar uma alternativa distinta de apresentao e discusso de alguns modelos simples estudados em cursos introdutrios de Qumica Quntica. Pensar em termos das posies das partculas (ou de eltrons em tomos e molculas) no uma condio necessria para se descrever sistemas qunticos. O uso de uma ou outra das duas representaes aqui discutidas no implica que uma seja mais fundamental ou mais importante que a outra, mas sim que o ferramental matemtico mais simples de ser tratado. Pensar em termos de funes de onda que dependam do(s) momento(s) da(s) partculas obviamente um grande exerccio mental, principalmente quando entramos no universo qumico, visto

    que temos enraizado em nosso crebro a localizao espacial. Sair do tratamento usual e analisar uma ligao qumica no espao de momento se constitui num problema bastante desafiador, que pode trazer uma perspectiva complementar nossa abordagem tradicional desse universo, mas isso um problema que voltaremos a abordar num prximo trabalho.

    AGRADECIMENTOS

    W. Hermoso agradece ao CNPq pela concesso de uma bolsa de mestrado e F. R. Ornellas grato ao CNPq e FAPESP pelo constante apoio acadmico. Aos membros do grupo pelas discusses animadas e enriquecedoras.

    REFERNCIAS

    1. McQuarrie, D. A.; Statistical Mechanics, 1st ed., Harper & Row: New York, 1976.

    2. Ornellas, F. R.; Quim. Nova 1990, 13, 211. 3. Pilar, F. L.; Elementary Quantum Chemistry, 2nd ed., Dover: New York,

    2001. 4. Levine, I. N.; Quantum Chemistry, 4th ed., Prentice Hall: New Jersey,

    1991. 5. Guillaumn-Espaa, E.; Salas-Brito A. L.; Martnez y Romero, R. P.;

    Nez-Ypez, H. N.; Rev. Mex. Fs. 2001, 47, 98. 6. Arfken, G. B.; Weber, H. J.; Mathematical Methods for Physicists, 6th

    ed., Elsevier: San Diego, 2005. 7. Hermoso, W.; Dissertao de Mestrado, Universidade de So Paulo,

    Brasil, 2008. 8. Schiff, L. I.; Quantum Mechanics, 3rd ed., McGraw-Hill: New York,

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