Quadrilatero Wesleyano [Gidalti Guedes]

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GIDALTI GUEDES DA SILVA

A IMPORTNCIA DA CRIAO PARA O MTODO QUADRILTERO WESLEYANOSubsdios para pensar uma eco-teologia da salvao

Monografia apresentada Congregao da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista como requisito para concluso do Curso de Especializao em Estudos Wesleyanos Latu Sensu.

UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE TEOLOGIA DA IGREJA METODISTA

So Bernardo do Campo - SP 2006

A Comisso, tendo examinado o presente Trabalho Final de Curso, o considera

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Profo Helmut Renders Orientador

So Bernardo do Campo - SP, novembro de 2006.

Aos meus pais.

AGRADECIMENTOS

Ao Deus Trino, na perfeita dinmica do seu amor, que a todos une e relaciona. Ao Prof Dr. Rui de Souza Josgrilberg, por acreditar no carter autctone da teologia wesleyana amaznida. Ao Prof Mr. Cludio Verneque Guerson e famlia, pelo apoio pastoral, amizade e cumplicidade docente e missionria. Ao Prof e Orientador, Helmut Renders, pelo exemplo de seriedade da pesquisa no campo dos Estudos Wesleyanos.o

Aos colegas de turma do Curso de Especializao em Estudos Wesleyanos, pela partilha de experincias e conhecimento. Aos irmos e irms da Igreja Metodista em Nova Braslia Ji-Paran/RO, pelo apoio por ocasio das viagens de estudo; por acreditar neste jovem pastor e telogo metodista.

A pedra canta, a planta fala O rio v O vento sente, a chuva chora O raio l O peixe sonha, a roda dana Tudo o mesmo ser ... Gaia, Gaia, tudo est vivo Tudo respira, eu e voc A nuvem sabe, a lua entende O sol nascer O fogo escreve, a estrela dorme. O povo cr O cu esquece, a onda lembra Tudo o mesmo ser

Nilson Chaves e Eliakin Rufino (Amaznia Brasil)

Dentro da mata tem a lei do mato Dentro da mata tem um rei Quem fere a mata e a lei do mato Ferir o rei tambm

BADO (Amaznia Brasil)Derrubam a mata O ninho do gavio real Matam os rios Transformam em pasto o reino animal Exigimos respeito lua, ao sol, s araras, floresta No pintem de cinza o cu Onde aprendemos com os antigos no dia-a-dia A valorizar a cultura do povo Surui A nossa terra nos d tudo Exigimos o respeito de quem no conhece a floresta Amaznica Exigimos respeito, Exigimos respeito, Exigimos respeito!

ALMIR NARAYAMOGA SURUI (ndio Surui Pait)

SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................................................ CAPTULO 1 PREMISSAS DA TEOLOGIA DE JOO WESLEY ......................................... 1.1. Wesley e o mtodo teolgico de Richard Hooker .......................................................... a) Wesley e a Bblia .................................................................................................... b) Wesley e a Tradio ............................................................................................... c) Wesley e a Razo ................................................................................................... 1.2. Prope-se um Quadriltero Wesleyano: Wesley e a Experincia ................................. 1.3. E a criao? Onde est? ............................................................................................... CAPTULO 2 MODERNIDADE E TEOLOGIA DA CRIAO ...................................................... 2.1. A secularizao da criao ............................................................................................ 2.2. A emergncia do paradigma ecolgico .......................................................................... 2.3. O lugar da criao no Quadriltero Wesleyano ............................................................. CAPTULO 3 A CRIAO NA TEOLOGIA DE JOHN WESLEY ................................................. 3.1. Do conhecer a Deus por meio da criao ...................................................................... 3.2. Escatologia e Criao: anlise do Sermo a Nova Criao .......................................... 3.3. Pistas para uma eco-teologia da criao na herana wesleyana .................................. a) Criao versus o antropocentrismo ........................................................................ b) Criao versus o dualismo ...................................................................................... c) Criao versus o individualismo .............................................................................. d) O carter ecolgico da santidade operada no ser humano .................................... CONCLUSO ................................................................................................................................ BIBLIOGRAFIA ...............................................................................................................................

07 09 10 13 16 17 19 23 24 24 30 33 37 37 43 46 46 46 47 48 50 52

INTRODUO

A teologia no est pronta. No est acabada. O falar sobre Deus desafio que estar a frente do ser humano todas as vezes que a histria lhe apresentar novos desafios, novos contextos, novas culturas. Toda tentativa de apresentar uma compreenso definitiva sobre Deus incorre no risco de cair no pecado da idolatria da palavra, idolatria do conceito, que efmero e transitrio. O Esprito de Deus est em toda a criao, como veculo do logos criador e mantenedor de toda e qualquer forma de vida. Ele possui uma dinmica que transpassa os tempos e culturas, toma formas e mais formas, no intuito de revelar ao mundo criado Seu propsito salvfico de tornar novas todas as coisas. Reconhecemos o valor de tantos missionrios e telogos metodistas que se empenharam em nos transmitir o legado metodista. Mas no de hoje que o metodismo brasileiro tem rumado em caminhos de autonomia teolgica. Desde a dcada de 1960, a condio de metodistas latino-americanos nos fez compreender as dimenses scioeconmicas da libertao que Deus deseja operar nas sociedades humanas. A Bblia foi devolvida aos seus autores, os empobrecidos, que se viram livres para mais uma vez interpret-la e clamar por Jav, o Deus que se compadece de seu povo sofredor, e desce para livr-los de todas as formas de opresso. Nos ltimos anos, a teologia se apercebeu que no somente os oprimidos clamam por libertao. Tambm a criao tem gemido, no aguardo da redeno que Deus manifestar em plenitude, no devido tempo. A Terra est doente, e seu clamor de sofrimento por tanto tempo foi obscurecido pelo barulho da indstria, da fbrica, da moto-serra. Hoje, sua dor tanta, que seus gritos agonizantes se fizeram ouvir. No h como negar sua dor. Todos so obrigados a ouvi-la, especialmente a teologia.

A teologia metodista se deparou com o grande desafio de se reconciliar com a criao de Deus. A teologia chamada a ouvir o clamor do mundo criado, e compreender como a Graa de Deus se manifesta por meio dele e para ele. Eis aqui nosso propsito neste trabalho: verificar como o legado teolgico wesleyano pode fornecer elementos para que a reconciliao teologia-criao acontea de modo satisfatrio. No primeiro captulo, apresentamos um breve histrico da formao do mtodo Quadriltero Wesleyano, tal como proposto pelos setores metodistas de maior expresso no mundo desde a dcada de 1970. Ainda, questionamos sobre a ausncia da criao no mtodo. No segundo captulo, refletimos acerca da relao entre modernidade e criao, considerando como o estilo de vida moderno influenciou na compreenso teolgica da criao. Conclumos este captulo ressaltando a crtica que o metodismo brasileiro faz ao Quadriltero Wesleyano, propondo-lhe a insero da criao enquanto premissa teolgica. Por fim, no terceiro captulo, procuramos apresentar especificamente o pensamento de John Wesley sobre a criao, refletindo sobre: como se d a revelao de Deus por meio da natureza; as implicaes ecolgicas da santificao; e, a compreenso escatolgica de Wesley e suas implicaes para a teologia da criao. Que este trabalho possa somar esforos com tantos que se dedicam no constante refazer dos sonhos, esperanas e conceitos, tudo para que seja preservado o princpio teolgico por excelncia: a vida.

1 Captulo A formao do Quadriltero Wesleyano

Durante muitos anos, o servio prestado por Wesley no campo teolgico tem sido ignorado. Talvez isto ocorra por ele no ter se dedicado elaborao de uma obra semelhante s Institutas de Calvino. De fato, Joo Wesley no teve a inteno de produzir um compndio de teologia sistemtica, no qual todos os temas estivessem bem definidos e objetivamente expostos. Segundo, Jos Carlos de Souza:

Ao dirigir-se prioritariamente s populaes empobrecidas, ele contribuiu de forma decisiva para estabelecer novos fundamentos para a prtica missionria. Por essa razo, as suas contribuies tm sido fixadas em diversos campos. Ele visto como evangelista, organizador, educador, lder religioso, reformador social, pregador inflamado, etc. Porm, no so muitos os que lhe atribuem um papel importante como telogo 1.

semelhana de Lutero e outros cones da histria do cristianismo, Wesley apresenta sua teologia em seus sermes, nas cartas, nos dirios, nos comentrios bblicos, nas regras, nos manuais litrgicos, nas msicas, nos livretos para orientao popular, etc. Seu objetivo o povo, as pessoas simples e carentes de orientao, famintas tanto do alimento quanto do conhecimento sobre Deus e Sua Palavra. Longe de ser uma atividade especulativa, o objetivo

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SOUZA, Jos Carlos de. Fazendo teologia numa perspectiva wesleyana. In: VVAA. Caminhando. Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista UMESP. Ano VIII, n 12. So Bernardo do Campo: Editeo, 2 semestre/2003, p. 125.

declarado da teologia, na perspectiva wesleyana, fomentar a santidade, a renovao da imago Dei no ser humano e a restaurao do mundo criado, conforme o propsito de Deus 2. Nas ltimas dcadas, a partir da necessidade de melhor compreender sua identidade teolgica, metodistas de muitos pases tm priorizado o estudo do pensamento de Wesley. Tais pesquisas redundaram em descobertas que notabilizaram o lder do metodismo tambm como telogo. Um dos frutos deste renascimento wesleyano foi a difuso de um mtodo teolgico representado na figura geomtrica do quadrado, denominado Quadriltero Wesleyano (QW). Este interesse pelo mtodo se justifica pela conscincia de que a perpetuao do legado (da identidade) metodista no se d pela mera reproduo do passado. Ao conhecer o mtodo de Wesley, os telogos identificam as balizas que norteiam a produo de um conhecimento sobre Deus que tanto busca ser fiel aos princpios do passado, quanto responder s presentes necessidades da misso. Desta feita, o Quadriltero Wesleyano surgiu no sculo XX como uma provvel redescoberta de pressupostos epistemolgicos do pensamento de Wesley no sculo XVIII.

1.1. WESLEY E O MTODO TEOLGICO DE RICHARD HOOKER John Wesley nasceu, cresceu e foi educado na Inglaterra, recebendo influncia direta da Igreja Anglicana, na qual seu pai (Samuel Wesley) atuava como pastor e telogo. A formao acadmica de Wesley tambm estava sob a tutela da Igreja oficial, seja na adolescncia, quando estudou no Charterhouse, seja na Universidade de Oxford. Logo, o Quadriltero Wesleyano carrega em si uma herana teolgica anglicana, que procuraremos melhor compreender agora. As origens do cristianismo na Inglaterra remontam um perodo bem anterior ao da Reforma Protestante. Alguns autores como o prprio Richard Heitzenrater, historiador metodista, afirma que o cristianismo foi introduzido na Inglaterra no sculo VI por Santo Agostinho de Canturia (Canterbury), cuja estratgia era converter o rei saxo Etelberto; sua esposa, a rainha Berta, era crist [no sc.VI.] 3. De fato, o trabalho evangelizador de Agostinho de Canturia marcou a insero do cristianismo sob influncia da Igreja de Roma na Inglaterra. No entanto, deve-se considerar a presena do cristianismo celta entre os povos bretos desde o sculo V.2 3

SOUZA, Jos Carlos de. Fazendo teologia numa perspectiva wesleyana, p. 141. HEITZENRATER, Richard. Wesley e o povo chamado metodista. So Bernardo do Campo/Rio de Janeiro: Editeo/Bennett, 1996, p. 2.

O assim chamado cristianismo celta foi introduzido na Inglaterra pelo trabalho missionrio do jovem So Patrcio (390-460), tambm conhecido como o Apstolo da Irlanda. A misso desenvolvida por So Patrcio transcendeu as fronteiras do Imprio Romano, pois a Irlanda foi o nico lugar da Europa ocidental, junto com a Calednia (atual Esccia), que nunca fora conquistado pelos romanos. A ilha preservou, assim, traos da religiosidade nativa, seu sistema legal particular e sua prpria economia e lngua. Quando os invasores brbaros conquistaram a Gr-Bretnia oriental e destruram os templos que ali estavam, os cristos clticos embora separados do resto do mundo cristo mantiveram o cristianismo vivo na parte ocidental da ilha. O fato de parte da Gr-Bretnia subsistir tanto aos brbaros quanto ao Imprio Romano contribuiu para que o povo ingls, especialmente os cristos celtas, mantivesse certa autonomia de pensamento e teologia com relao aos pases do continente europeu e prpria Igreja de Roma. Esta relativa autonomia de pensamento foi determinante para que acontecessem profundas reformas na Igreja e em todo o pas. Como destaque aparece o pr-reformador Joo Wycliffe (1328-1384), que j no sculo XIV lutava pela moralizao do clero, defendia a realizao dos ofcios clticos na lngua popular, fez a traduo do Novo Testamento para a lngua inglesa e organizou um grupo de pregadores leigos chamados lolardos, que velozmente difundiam suas idias. Em 1401, estas idias foram condenadas pelo Parlamento Ingls e, em 1417, no Conclio de Constana, a Igreja declarou herticos os ensinos de Joo Wycliffe, condenando igualmente seus seguidores.4 No sculo XVI, as transformaes na Igreja da Inglaterra encontraram mais fora pela contribuio do Rei Henrique VIII que, pelo Ato de Supremacia (1534), com o apoio do Parlamento, tornou-se soberano tanto do Estado quanto da Igreja. Essa ruptura da Igreja da Inglaterra (Anglicana Ecclesia) com Roma permitiu que, gradativamente, os ideais da Reforma Protestante ganhassem mais espao no somente entre os camponeses, como tambm entre as autoridades do pas. O governo de Henrique VIII, desta feita, foi caracterizado por uma crescente valorizao da teologia dos reformadores. Seu filho Eduardo VI tambm seguiu o mesmo caminho, permitindo que inovaes protestantes como O Livro de Orao Comum (publicado em 1549 e revisado em 1552) se tornasse por ato do Parlamento a liturgia oficial da Igreja estabelecida, alm da publicao dos Quarenta e Dois Artigos, que possuam uma teologia

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John Huss, natural do Pas de Gales, destacou-se como grande difusor das idias de Wycliffe na Gr-Bretnia e tambm na regio da Bomia, onde os hussitas (taboritas) perpetuaram os sonhos de reforma a despeito das perseguies das autoridades eclesisticas.

protestante de cunho calvinista. Entretanto, com a subida de Maria ao trono, os processos de reforma foram bloqueados e muitos ingleses adeptos do protestantismo sofreram perseguies, ao ponto de sofrerem o exlio ou morte. As atitudes sanguinrias de Maria acenderam ainda mais os ideais de uma reforma anti-catlica na Inglaterra. Aps sua morte, sem herdeiros, sua irm Elisabete sob ao trono, adotando uma postura totalmente diferenciada de governo. Diante de duas grandes tendncias religiosas na Europa ocidental, a Calvinista (em Genebra) e a Catlico Romana (no Conclio de Trento), a rainha Elisabete I valeu-se de grande capacidade de articulao poltica e religiosa para firmar o Estabelecimento Elisabetano. Segundo Richard P. HEITZENRATER 5,

... ela [a rainha] descobriu ser necessrio confrontar as duas realidades [catolicismo e protestantismo] em seu prprio pas a reinstaurao da f romana no reinado de sua irm, e o calvinismo revitalizado dos exilados da poca de Maria que regressavam Inglaterra.

A essa capacidade de sntese entre protestantismo e catolicismo deu-se o nome de o caminho do meio ou a via mdia. Um novo Ato de Supremacia (1559), o Ato de Uniformidade (1559) que definiu a utilizao do Livro de Orao Comum (BCP), os Trinta e Nove Artigos de Religio e o recurso obrigatrio ao Livro de Homilias foram alguns instrumentos utilizados por Elisabete na reorganizao equilibrada da Igreja Anglicana. Essa tentativa de estabelecer uma via mdia no foi aceita nem pelos protestantes, nem pelos catlicos, e tenses foram estabelecidas entre as partes. At o ano de 1570, quando o Papa Pio V excomungou Elisabete e apelou aos sditos que ela fosse deposta. Os ingleses foram obrigados a escolher entre a Rainha e o Papa. O Arcebispo Richard Hooker exerceu um importantssimo papel na resoluo destas tenses, publicando uma explicao definitiva do Estabelecimento Elisabetano, chamada Of The Laws of Ecclesiastical Polity (Das Leis da Estruturao Eclesistica 1595). Mais tarde, nos tempos de Wesley, este documento ainda definiria as fontes de autoridade para a teologia e prtica da Igreja Anglicana. Ou seja, Joo Wesley, no sculo XVIII, teve como base do seu mtodo teolgico a proposta elaborada por Hooker no final do sculo XVI. Segundo Hooker, a teologia deve ter como fundamento: as Escrituras, a Tradio e a Razo. A elaborao deste mtodo teolgico ainda em pleno sculo da Reforma Protestante e Contra-Reforma Catlica evidenciou uma extrema capacidade de sntese e busca de

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HEITZENRATER, Richard. Wesley e o povo chamado metodista, p. 2.

equilbrio. Diante das fortes tenses entre protestantes e catlicos neste perodo, tem-se a defesa de uma postura pr-unidade crist presente na conciliao da Tradio (nfase dos catlicos) com a Bblia ou Palavra (nfase dos protestantes), que seriam discernidas sistematicamente pela Razo. Segundo William Hinson, a busca do equilbrio uma das marcas fundamentais da teologia de Wesley. Compreendemos que o estabelecimento da via mdia na Igreja Anglicana foi determinante para que a teologia wesleyana assumisse como um de seus pilares epistemolgicos esta capacidade de estabelecer snteses e buscar o equilbrio. Vejamos abaixo como Wesley trabalhou com os elementos do mtodo de Richard Hooker 6. a) Wesley e a Bblia Wesley procurou sempre se utilizar da Bblia na construo de sua teologia. Pode-se dizer que ele constri uma teologia bblica da salvao. Um dos Sermes mais festejado pelos estudiosos do metodismo tem como ttulo: O Caminho Bblico para a Salvao, publicado em 1756 (The Scripture Way of Salvation). A Bblia tratada como o conselho de Deus, que nos mostra o caminho para os cus, como Wesley afirma no seu prefcio aos Sermes:

Uma coisa desejo conhecer: o caminho do cu e como ancorar a salvo naquela praia feliz. O prprio Deus condescendeu em apontar o caminho; justamente para isto, ele desceu do cu, escrevendo o roteiro num livro. Oh! d-me este livro! A qualquer preo, d-me o livro de Deus! Eu o possuo: nele h conhecimento suficiente para mim. Que seja eu homo unius libri.7 O termo homo unius libri pode ser literalmente traduzido por um homem de um s livro. Esta expresso de Wesley j foi e continua sendo mau interpretada. Muitos afirmam que Wesley no manifestava qualquer interesse na leitura de outros livros que no os livros da Bblia. Esta uma inverdade das mais grotescas, uma vez que o prprio Wesley recomenda a leitura de outros textos. Em suas recomendaes aos clrigos, Wesley adverte sobre a necessidade do conhecimento das cincias, da filosofia natural, da geografia e histria, que seria adquirido com a leitura de outras bibliografias 8. Wesley sempre procurou mostrar que todos os livros e conhecimentos podem ser usados. Porm, somente a Bblia possua carter6

Segundo Jos Carlos de Souza, ressalta que enquanto estudante e professor em Oxford, ressalvadas certas nuanas, Wesley simplesmente corrobora a posio anglicana oficial que, desde Richard Hooker, recorria, com freqncia, a essas trs fontes: Escrituras, tradio e razo. Contudo, Wesley aduz mais dois elementos, a experincia e a criao (SOUZA, Jos Carlos. Fazendo teologia numa perspectiva wesleyana, pp. 137-8). 7 WESLEY, John. Sermes. So Paulo: Imprensa Metodista, 1997. V.4, p. 17. 8 Cf. OW, Tomo XI, pp. 199.

central e paradigmtico para o cristo. Os outros conhecimentos devem ser utilizados como auxiliares na interpretao da Bblia. Wesley recomenda o estudo das lnguas originais, para que o pregador fizesse uma interpretao mais correta do texto. O trabalho exegtico era levado a srio, e valorizava o sentido literal, como vemos nas seguintes palavras:

El conocimiento de las Escrituras es necesario si vemos que la Escritura interpreta a la Escritura, que uma parte aclara el sentido de outra. Ya sea cierto o no que um buen citador de textos es um buen pastor, s es cierto que nadie puede ser um buen pastor si no conoce bien los textos. De outro modo no podr interpretarlas, cerrar la boca a los adversrios. Com el fin de hacer esto adecuadamente, no debera conocer el significado literal de cada palabra, versculo y captulo, sin lo cual no puede haber um cimiento firme sobre el cual pueda fundarse el significado espiritual? No debera ser capaz tambin de deducir los corolrios apropriados, especulativos y prcticos, de cada texto, para resolver las dificultades que surgen y para contestar las objeciones que existen o las que puedan surgir, y para hacer la aplicacin adecuada a la conciencia de sus oyentes? 9

O mtodo de leitura da Bblia de Wesley pode ser bem observado nas suas Notas aos textos bblicos, tanto do Antigo, como do Novo Testamento. Segundo o telogo Rui Josgrilberg, os princpios de interpretao bblica adotados por Wesley foram inspirados em Benguel, e podem ser sumarizados da seguinte forma:

1. O sentido literal enfatizado. 2. todo texto tem na Bblia um contexto pleno. 3. A Escritura a melhor prova da Escritura. 4. O texto deve ser aplicado vida e tambm confirmado na experincia. 5. A interpretao racional. 6. A interpretao deve ser simples e sem complicaes filosficas. 7. A regra geral para interpretar a Bblia esta: O sentido literal do texto deve ser retido se no for contrariado por outros; no caso de um texto obscuro deve ser interpretado por outro mais claro. [Grifo deste autor] 10

Wesley se apropria do mtodo teolgico de Richard Hooker, elegendo a Bblia como premissa teolgica fundamental. Toda e qualquer concluso da teologia deve possuir um fundamento escriturstico. Porm, a hermenutica bblica de Wesley entra em conflito com a9

Cf. OW, Tomo IX, pp. 198. JOSGRILBERG, Rui de Souza. Teologia e Bblia em Joo Wesley. In: VVAA. Wesley. So Paulo: CEDI/Editeo, 1991, pp. 30 e 31.10

leitura literalista dos puritanos, estremados no princpio do sola escriptura. Wesley cr que as Escrituras so inspiradas por Deus e que revelam verdadeiramente o caminho que conduz salvao. Porm, em momento algum, ele despreza as contingncias humanas no processo de assimilao e escrita da Revelao bblica, pois assim afirma:

... Deus fez dos homens os instrumentos imediatos de toda a revelao, a f evanglica deve ser em parte fundada sobre o testemunho humano. O Velho e o Novo Testamentos foram escritos pelos homens. Se ns os abstrairmos da sua autoridade divina, eles devem ser to dignos de aceitao pelo menos quanto todos os outros escritos antigos 11.

Wesley continua o texto defendendo a confiabilidade da Bblia como testemunho divino-humano acerca das verdades que conduzem salvao; ele nunca abriu mo deste princpio. No entanto, admitir o elemento humano no processo de formao do texto bblico foi passo essencial para o desenvolvimento de uma teologia bblica menos dogmtica, mais preocupada com elementos centrais da f que com questes secundrias que poderiam se restringir a culturas ou momentos especficas da Bblia. Exemplo deste saudvel equilbrio do mtodo de interpretao bblica de Wesley est no seu estudo sobre a Igreja. Ele compreende os condicionamentos histricos e culturais presentes na nascente estrutura da igreja primitiva. Por isso mesmo, Wesley no procura identificar no Novo Testamento um nico modelo eclesiolgico, rgido e esttico, mas sim interpreta o texto bblico para identificar princpios pelos quais a igreja de seu tempo deveria se nortear. Trata-se de uma maneira equilibrada, interdisciplinar e madura de estudar a Bblia, capaz de enfatizar os princpios essenciais (nevrlgicos) que devem direcionar a teologia crist em todo e qualquer tempo e cultura.

b) Wesley e a Tradio A presena da tradio no mtodo teolgico metodista tem causado desconforto a tantos que ignoram a contribuio que os cristos do passado tm a dar, por meio de seus feitos e palavras. A repudia herana crist-metodista como premissa teolgica, alegando que a verdadeira interpretao das Escrituras deve ocorrer a revelia da tradio, na verdade, manifesta claramente o interesse de fazer teologia a partir de outras tradies; pois todo

11

BURTNER & CHILES. Coletnia da teologia de Joo Wesley. So Paulo: Junta Geral de Educao Crist, 1960, p. 22.

pensamento teolgico e espiritualidade possui razes na histria e nas tradies de pensamento. Vejamos como Wesley lida com a questo. No mtodo de Richard Hooker, A Tradio (...) proporcionava um modo de vida e de pensamento desde os primeiros sculos do cristianismo muito perto da pureza dos testemunhos apostlicos, bem como era passvel de ser (em seu consenso) uma autntica reflexo e explicao do testemunho bblico 12. Como telogo anglicano, Wesley aprendeu a valorizar a tradio. Ele preocupou, por exemplo, com o conhecimento da tradio filosfica e teolgica da Escolstica, chegando a recomendar a busca de tais conhecimentos aos clrigos de seu tempo. 13 Tambm, Wesley partilhava da preocupao renascentista de retorno s origens da f crist. No mesmo texto auto-avalitivo recomendado aos clrigos, ele pergunta:

Conozco a los Padres, por lo menos a esos hombres venerables que vivieron durante los primeros siglos de la iglesia? He ledo una y otra vez los ures restos de los escritos de Clemente de Roma, de Ignacio y Policarpo y, por lo menos, he ledo una vez la obras de Justino Martir, Tertuliano, Orgenes, Clemente de Alejandra y Cipriano? 14

Estas perguntas refletem verdadeiramente a maneira como Wesley se utiliza da tradio crist para fazer teologia. O Sermo da montanha (stimo discurso) discorre acerca do jejum, conforme Mateus 6.16-18. Neste estudo, Wesley se utiliza do conceito de semijejum de Tertuliano15

. No texto Un catecismo catlico romano, dentre tantos assuntos

discutidos, Wesley advoga que todas as pessoas devem ter acesso s Escrituras Sagradas. Considerando que esta liberdade de interpretao incorre na possibilidade de erros interpretativos, Wesley aponta para a proposta hermenutica de Agostinho de Hipona (Si quisiera probar la existencia de la Iglesia, no lo lograra mediante doctrinas humanas sino mediante la palabra de Deios) e de Clemente de Alexandria (La manera de interpretar las Escrituras es demonstrar, desde ella misma, todo lo que a ella concierne).16 A tradio era utilizada como auxlio no estudo de textos bblicos de difcil interpretao. Tambm, Wesley possua vasto conhecimento da histria do cristianismo,12 13

HEITZENRATER, Richard. Wesley e o povo chamado metodista, p. 10. Cf. OW, Tomo XI, p. 210. Si Entiendo la metafsica? Si no las profundidades de los sabios, las sutilezas de Duns Escoto o de Toms de Aquino, por lo menos los rudimentos, los principios generales de esa til ciencia?. Todos os estudos do Curso de Artes na Universidade de Oxford (estudo anterior ao teolgico) estavam fundados na filosofia aristotlica. 14 OW, Tomo XI, p. 211. 15 OW, Tomo II, p. 165. 16 OW, Tomo VIII, pp. 191-192.

estudou a teologia da patrstica, da escolstica, da reforma, alm de conhecer as resolues administrativas e teolgicas dos conclios. A Tradio no fora recebida da mesma maneira do catolicismo romano. Ela era passiva de crticas e, portanto, no poderia ser objeto de venerao, nem ser colocada com o mesmo valor e autoridade das Escrituras. Apesar disto, era sempre valorizada no conjunto da teologia de Wesley. c) Wesley e a Razo Ao apresentarem um breve panorama histrico sobre o problema do conhecimento de Deus pela razo, Klaiber & Marquardt consideram que o ponto comum a todas as formas de argumentao que, atravs da reflexo sobre conexes existentes, aparece a sua causa que, pela reflexo sobre objetos a nosso alcance, encontramos em Deus, que ento afirmado como origem da realidade em considerao 17. No mtodo de Richard Hooker, A razo (...) fornecia os meios pelos quais as Escrituras e a tradio poderiam ser examinadas e entendidas por pessoas sensatas a verdade revelada pode, s vezes, estar acima da razo, mas jamais estar contra a razo18

. Wesley

recebe tais influncias de um modo muito interessante. No sermo A imperfeio do conhecimento humano, Wesley afirma que o desejo do conhecimento um princpio universal no homem, fixado em sua natureza mais ntima 19. Segundo Wesley, este desejo insacivel, ... ele plantado em toda a alma humana para propsitos excelentes. Com ele, pretende-se impedir nossa inrcia em qualquer coisa aqui em baixo; erguendo nossos pensamentos para objetos mais altos, mais merecedores de nossa considerao, at que ascendamos Fonte de todo o conhecimento e toda excelncia, o Criador de toda a sabedoria e toda graa. Mas, embora nosso desejo de conhecimento no tenha limites, nosso conhecimento, em si mesmo, tem. De fato, ele confinado em limites bem estreitos; muito mais estreitos do que as pessoas comuns possam imaginar ou homens letrados esto dispostos a admitir: uma forte sugesto (...) de que haver um estado futuro de existncia em que o desejo agora insacivel ser satisfeito, e j no haver uma distncia to grande entre o apetite e o seu objeto. 20

17

KLAIBER, Walter & MARQUARDT, Marquardt. Viver a graa de Deus: um compndio de teologia metodista. So Bernardo do Campo/So Paulo: Editeo/Cedro, 1999, p. 29. 18 HEITZENRATER, Richard. Wesley e o povo chamado metodista, p. 10. 19 WESLEY, John. Sermo 69: a imperfeio do conhecimento humano. In:RENDERS, Helmut e outros. Sermes de John Wesley: texto ingls com duas tradues em portugus. So Bernardo do Campo: Editeo, 2006 [CD-ROM]. 20 Idem.

Segundo Klaiber & Marquardt, Joo Wesley, apesar de sua convico de que a imagem de Deus no homem foi destruda pelo pecado, manteve firmemente a idia de que os homens, quando mentalmente capazes de usar sua razo, conhecem alguma coisa de Deus 21. Wesley no abre mo da razo. Em busca de defender o metodismo da acusao de ignorar a razo, para ele: As pues, nos unimos a ustedes en el deseo de una religin fundada en la razn y concordante con ella. Pero todava queda una pregunta: Qu quieren decir por razn? Yo supongo que se refieren a la razn eterna, o sea, la naturaleza de la realidad: la naturaleza de Dios y del ser humano, y sus mutuas relaciones. Es decir, una religin perfectamente compatible con esa realidad. Compatible con la naturaleza de Dios, puesto que comienza por conocer a Dios.22

Numa carta escrita ao Sr. Rutherforth, Wesley toma uma postura semelhante de defesa. O Sr. Continua: princpio fundamental na escola metodista que todos os que entram para ele devem renunciar a sua razo. Est o Sr. acordado? A menos que o Sr. esteja conversando dormindo, como pode o Sr. dizer uma inverdade to grosseira? Ns temos o princpio fundamental de que o renunciar a razo renunciar a religio, que a religio e a razo caminham de mos dadas e que toda a religio sem a razo falsa.23

Recorremos novamente ao texto Um discurso a los clrigos, quando Wesley prope indagaes auto-avaliativas acerca da necessidade do conhecimento de instrumentos racionais de discernimento e anlise.

Tengo un conocimiento adecuado de las ciencias? He pasado por la puerta de ellas, la lgica? Si no, no podr ir muy lejos, antes de tropezar en su umbral. La comprendo de manera que puedo usarla, tenerla siempre a la mano para aplicar cualquiera de sus reglas, casi tan naturalmente como muevo mi mano? Las comprendo? () Puedo siquiera reducir un modo indirecto al directo, un silogismo hipottico a categrico? Mi estpida indolencia y pereza no me impulsan a creer lo que los falsos sabios afirman, que la lgica no vale para nada? 24

21

KLAIBER, Walter & MARQUARDT, Marquardt. Viver a graa de Deus, p. 29. A dinmica entre pessimismo do pecado e otimismo da graa est presente na teoria do conhecimento sobre Deus no pensamento wesleyano. 22 OW, Tomo VI, p. 24. 23 BURTNER & CHILES. Coletnia da teologia de Joo Wesley, p. 25. 24 OW, Tomo XI, p. 210.

A razo dom de Deus e, portanto, no pode ser negligenciada. Wesley a toma como instrumento de crtica e anlise das Escrituras, da Tradio e, como veremos mais adiante, da experincia e da prpria criao. Segundo Rui Josgrilberg,

... Wesley evita cuidadosamente o zelo parcial, o unilateralismo que toma a parte pelo todo, tornando-se incapaz de avaliar a complexidade do real. Com efeito, os critrios referenciais da reflexo teolgica, segundo John Wesley os compreende, no podem ser considerados isoladamente, mas em mtua correlao e interdependncia. 25 Sendo assim, para Wesley, a razo (pura) no vista como me do conhecimento. Ela alcana toda sua potencialidade ao trabalhar em conjunto com todas as possveis fontes do conhecimento, como a experincia.

1.2. PROPOE-SE UM QUADRILTERO WESLEYANO: WESLEY E A EXPERINCIA Segundo Helmut Renders, o metodismo norte-americano fez uma ampliao deste mtodo, durante o processo de criao da Igreja Metodista Unida.

Nesta poca, procurava-se esclarecer a identidade do novo corpo eclesistico por meio do esclarecimento do mtodo teolgico a ser usado. A Igreja Metodista (do Brasil), uma igreja nacionalmente independente, porm, afiliada Igreja Metodista Unida, acolheu, em seguida, os mesmos princpios, mas ampliou sua base com mais um elemento. O Quadriltero metodista inicial relaciona o papel da Bblia, tradio e experincia na revelao de Deus e o uso da razo como instrumento de interpretao dos trs. 26

Abaixo est uma ilustrao do Quadriltero Wesleyano proposto pela Igreja Metodista Unida.Mtodo teolgico Quadriltero Wesleyano (1972):

25

REILY, Duncan Alexander, SOUZA, Jos Carlos e JOSGRILBERG, Rui de Souza. Teologia em perspectiva wesleyana. So Bernardo do Campo: Editeo, 2005, p. 20-21. 26 RENDERS, Helmut. A teoria da imagem. In: Caminhando. Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista Umesp. v.11, n.17. So Bernardo do Campo: Editeo, jan-jun/2006, pp. 56-57.

Este primeiro Quadriltero Wesleyano prope a insero da experincia como mais um elemento epistemolgico, somado aos elementos presentes no Mtodo de Richard Hooker (via mdia). A elaborao do Quadriltero Wesleyano reaproximou o metodismo contemporneo do pensamento teolgico de Joo Wesley, que se utilizou indubitavelmente da experincia no seu fazer teolgico. Segundo Theodore Runyon,

... o acrscimo da experincia foi uma inovao metodolgica significativa. Wesley indroduziu explicitamente um componente emprico na argumentao teolgica, previamente denominada por um apelo a trs autoridades: as Escrituras, a tradio e a razo 27.

De fato, a insero da experincia no mtodo plenamente coerente forma de Wesley fazer teologia, especialmente ao considerarmos o mtodo teolgico (cientfico) emergente em sua poca. O sculo XVIII foi marcado profundamente pelo empirismo, sobretudo na Inglaterra, que j vinha sob a influncia de Thomas Hobbes e outros expoentes. Nesse perodo, Joo Locke (1632-1704) fora o maior expoente do pensamento emprico28

.

Segundo estudiosos, Locke foi o primeiro filsofo que formulou de modo metdico o problema crtico do conhecimento 29. Para ele, o ser humano no nasce com idias inatas. A pessoa passa a ter idias como resultado de sua relao com a realidade exterior a ela, por meio dos sentidos. Trata-se de um conhecimento emprico, ou seja, conhecimento adquirido por meio da experincia. Locke desenvolve uma gnosiologia, numa preocupao prtica (tpico dos puritanos). Em se tratando do conhecimento da existncia de Deus, Locke apresenta uma teoria sobre o assunto:

Somos capazes de conhecer com certeza que h um Deus. Embora Deus no nos tenha dado idias inatas de si prprio e no tenha estampado caracteres originais em nossas mentes, pelos quais pudssemos ler seu ser, tendo, no27

RUNYON, Theodore. A nova criao: a teologia de Joo Wesley hoje. So Bernardo do Campo: Editeo, 2002, p. 35. Runyon afirma que Wesley foi influenciado pelo pensamento de John Locke, que havia sustentado a necessidade de se levarem a srio as evidncias e experincias empricas como uma fonte para se fazerem julgamentos (p. 36). 28 Nascido no seio de uma famlia burguesa da cidade de Bristol, recebeu influncia familiar puritana. Quando adolescente Locke fora educado na Westminster School at 1653, quando transferiu-se para o Christ Church College da Universidade de Oxford. Nesta Universidade permaneceu at 1684, primeiro como aluno, depois como fellow. Incrvel semelhana com o fundador do metodismo (Cf. LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. So Paulo: Nova Cultural, 2005 Os Pensadores, p. VI). 29 REALE, Giovanni & ANTISERI, Dario. Histria da filosofia. Vol II. 2 ed. So Paulo: Paulus, 1990, p. 506.

obstante, nos fornecido estas faculdades de que nossas mentes so dotadas, ele no deixou a si mesmo sem testemunha, desde que temos sentidos, percepo e razo, e no podemos carecer de uma prova clara dele enquanto nos ocuparmos de ns prprios.30

Locke compreende Deus como realidade exterior ao ser humano, mas no imperceptvel. Por meio dos sentidos, da percepo e da razo podemos vir a conhecer algo da pessoa de Deus. Neste sentido, a f, condio nica para nos aproximarmos de Deus segundo as Escrituras, uma experincia do ser humano como um todo. Na experincia de Deus, os sentidos, a percepo e a razo esto presentes. Logo, f e razo no so antagnicos. Mais ainda, a autntica experincia de f no pode se dar no desprezo s faculdades mentais relacionadas ao raciocnio humano, que juntamente com as sensaes e percepes espirituais nos auxiliam no processo do conhecimento de Deus. Do mesmo modo, o conhecimento de Deus no se d nica e exclusivamente pelo instrumental da razo, como se esta pudesse ser plenamente desvinculada do sentimento. Aqui vale ressaltar que Wesley estabelece uma diferena entre emoes e sentimentos. As emoes so dados externos e podem variar de pessoa para pessoa, mas os sentimentos so dados internos, manos subjetivos e mais objetivos. a presena de sentimentos corretos (ortopatia) que ratifica empiricamente a experincia com Deus. No sermo intitulado O testemunho do Esprito II, Wesley busca alicerar teologicamente a doutrina do Testemunho do Esprito, baseada na Carta aos Romanos 8:16. Wesley afirma que la experiencia es suficiente para confirmar una doctrina baseada em las Escrituras31

. H o entendimento que o conhecimento da Bblia essencial para que o ser

humano percorra o caminho da salvao, no entanto este conhecimento cognitivo precisa tomar dimenses existenciais. A prpria Bblia mostra como necessrio que a Palavra de Deus esteja gravada tanto na mente como no corao. Existem elementos da Palavra que somente so assumidos como revelao salvfica quando so experimentados, como resultado da ao do Esprito Santo na pessoa. Eis uma diferena significativa entre Wesley e Calvino e outros telogos protestantes, os quais apresentam a f como certeza (no cientfica), como convico acerca de um conjunto de doutrinas, especialmente a doutrina cristolgica da justificao pela f. Wesley no perde de vista esta compreenso racional, mas enfatiza que f no algo que

30 31

LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano, p. 308. OW, Tomo I, p. 244.

simplesmente se confessa (palavra-lgica), mas que se sente, que se vive, numa relao com o Esprito de Deus, com o outro (ser humano) e com a natureza. Esta proposta do mtodo teolgico Quadriltero Wesleyano no ficou isenta de questionamentos. Segundo Renders, Esta primeira edio sofreu muitas crticas, especialmente quanto ao papel atribudo Bblia como mera referncia entre referncias Como resultado das crticas o Quadriltero recebeu uma nova configurao:32

.

Mtodo teolgico Quadriltero Wesleyano reconfigurado (1988):

Esta redefinio do mtodo wesleyano poderia transparecer uma inteno dos telogos metodistas se enquadrarem mais na perspectiva teolgica reformada? Provavelmente sim. Porm, isto no tira o valor da crtica, uma vez que Wesley sempre deu primazia s Escrituras. Entretanto, a despeito das questes relativas centralidade da Bblia no mtodo, permanecem os elementos da proposta de 1972, a saber: a Bblia, a Tradio, a Experincia e a Razo. Mas ento, inevitavelmente, questionamos: e a criao? Existe alguma forma bblicamente coerente de fazer teologia desconsiderando a criao como fonte do conhecimento de Deus?

1.3. E A CRIAO? ONDE EST? No ano de 1960, mesmo antes do debate sobre o mtodo wesleyano ganhar maior evidncia nos EUA e no Brasil, a Junta Geral de Educao Crist da Igreja Metodista do Brasil publicou a obra Coletnia da Teologia de Joo Wesley, organizada pelos telogos Robert W. Burtner e Robert E. Chiles. No primeiro captulo da obra, intitulado conhecimento religioso e autoridade, os autores destacam cinco fontes do conhecimento sobre Deus: Bblia, Razo, Experincia religiosa, Tradio crist, e Criao natural. Note-se bem que, seguindo a tendncia geral dos telogos cristos, a criao j era reconhecida, ou ao menos no era totalmente negligenciada.33

32 33

RENDERS, Helmut. A teoria da imagem, p. 57. Cf. BURTNER & CHILES. Coletnia da teologia de Joo Wesley. So Paulo: Junta Geral de Educao Crist, 1960.

Diante disto, questionamos: quais fatores contriburam para que o Quadriltero Wesleyano proposto pela Igreja Metodista Unida de 1972 sequer mencionasse a criao? John Wesley viveu no sculo da razo. Muitos de seus contemporneos na Universidade de Oxford se dedicavam ao estudo da natureza, por meio de experimentos cientficos dos mais diversos. A sociedade inglesa do sculo XVIII foi a primeira a experimentar as abruptas transformaes da modernidade, a saber: a revoluo intelectual (iluminismo), a revoluo urbano-industrial, a secularizao, etc. Heitzenrater afirma que todos os telogos srios viam-se obrigados a se ocupar com assuntos referentes ao iluminismo,34 o que culminou no surgimento do desmo (tambm conhecido como religio natural) que concebia uma idia de Deus e da criao baseada na razo. A partir do sculo XVIII, a forma de interpretao mtica da realidade seria abertamente contestada nos grandes centros de cultura e pesquisa. Importa colocarmos este assunto em pauta, visto que a cosmo viso trazida pela modernidade modificou diretamente a maneira como a civilizao ocidental lida com a natureza. Ainda que esta pesquisa nos indique que Wesley no tenha usufrudo cegamente das influncias iluministas no trato da criao, as geraes metodistas posteriores foram absorvidas pelas tendncias da modernidade. No prximo captulo, portanto, dedicaremos especial ateno ao estudo das influncias da modernidade na teologia, especialmente, na teologia da criao.

34

HEITZENRATER, Richard P. Wesley e o povo chamado metodista, p. 19

2 Captulo Modernidade e teologia da criao: Tenses e possibilidades

Abrimos espao neste captulo para identificar como a modernidade influenciou a compreenso crist acerca da criao. Alm disso, trataremos da emergncia do paradigma ecolgico e suas conseqncias para as cincias, especialmente, a teologia wesleyana no contexto brasileiro. 2.1. A SECULARIZAO DA CRIAO Segundo Harvey Cox, o homem pr-secular [pr-moderno] vive numa floresta encantada. Os vales e bosques esto infestados de espritos. As rochas e os riachos so vivos e encerram demnios amigos ou diablicos. A realidade est carregada de poderes mgicos que surgem aqui e ali para ameaar ou beneficiar o homem 35. De fato, ainda hoje, as sociedades que no foram plenamente alcanadas pela cultura moderna buscam encontrar explicaes e dar sentido a muitos fenmenos naturais valendo-se da religio, do mito, das crendices e supersties. A natureza tratada como uma extenso das divindades e integra o culto e a espiritualidade popular. Fazendo uma crtica sociedade pr-moderna, Harvey Cox apresenta uma viso claramente otimista para com as tendncias da sociedade moderna, que trouxe consigo o35

COX, Harvey. Cidade do homem: a secularizao e a urbanizao na perspectiva teolgica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968, p. 32.

fenmeno da secularizao, que viabiliza a libertao do homem da tutela religiosa e metafsica, a volta da sua ateno dos outros mundos para este36. Segundo ele,

... o processo estrepitoso de modernizao no algo que os cristos devem temer. Devemos festeja-lo. Trata-se de uma das maneiras pelas quais Deus trabalha para libertar os homens do cativeiro. No uma maldio negra nem uma bno pura. , antes, uma oportunidade, um chamado maturidade, exigindo dos indivduos e das sociedades que escolham, em plena conscincia, onde desejam ir e o que desejam ser. Sou da opinio de que o lugar em que surge este senso de resposta humana, , tambm, o lugar em que o cristianismo est agindo na histria. Deus mais plenamente Deus onde o homem se torna mais plenamente homem. 37

Este otimismo de Cox para com a modernidade se justifica no fato de que somente a sociedade secular apresenta um cenrio ideolgico-cultural favorvel para o pleno desenvolvimento do potencial humano por meio das cincias, na busca de superao das mais diversas ambigidades e limitaes humanas. Alm do que a modernidade oferece ao ser humano a oportunidade de escolha, negando as bitolas cientficas, culturais, sociais e polticas impostas pelos dogmas da religio medieval. Certamente, o avano das cincias contribuiu e tem contribudo em muito para a superao de tantos males que afligem a humanidade. No entanto, o antropocentrismo iluminista, a secularizao e os avanos cientficos tambm tm sido motivos de preocupao para muitos. No incio de sua caminhada, a secularizao moderna aproximou os estudiosos de sua prpria condio natural, na busca de melhor compreender a humanidade e ao prprio Deus por meio da criao (desmo). Com o passar dos anos, as cincias no julgavam mais necessria qualquer explicao ou sentido religioso para a realidade. Para Peter Berger, a secularizao mais que um processo socioestrutural. Ela afeta a totalidade da vida cultural e da ideao (...). O ocidente moderno tem produzido um nmero crescente de indivduos que encaram o mundo e suas prprias vidas sem o recurso s interpretaes religiosas38

. As

cincias seculares passaram a tratar de todos os assuntos referentes natureza, enquanto que a teologia reduziu drasticamente sua rea de atuao e ficou confinada aos centros de estudos teolgicos, preocupada em tratar de temas mais intimistas, existenciais e emocionais.

36 37

COX, Harvey. Cidade do homem, p. 27. Idem, p. 8. 38 BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociolgica da religio. 2a ed. So Paulo: Paulus, 1985, p. 119.

A criao tornou-se secular juntamente com a sociedade moderna, e nesta sociedade as explicaes teolgicas acerca da sociedade e da natureza so secundrias ou desnecessrias. Luiz Carlos Susin nos adverte que

A teologia crist da criao, nos ltimos sculos, ficou paralisada diante dos dados novos e surpreendentes das diversas cincias. As cincias da natureza progrediram espantosamente, e a teologia se refugiou junto s cincias histricas, com o pressuposto de que estas seriam mais prximas da experincia humana, mais dinmicas, mais criativas. A natureza seria um campo esttico, repetitivo, sem revelao, um mero palco para o desenrolar da histria humana. Assim, a prpria teologia abdicou tacitamente da natureza, deixando-a s observaes, catalogaes e experincias cientficas, que resultaram em novas tecnologias.39 [Grifo deste autor]

Retomamos Harvey Cox, quando afirma que a secularizao relativizou as concepes religiosas do mundo e as tornou incuas. A religio passou a ser privativa. (...) Os deuses das religies tradicionais sobrevivem como fetiches particulares ou como patronos de grupos congeniais, mas no desempenham nenhuma funo significativa na vida pblica da metrpole secular40

. neste contexto que a a criao, na mentalidade moderna ocidental,

secularizou-se: mais do que um momento de revelao divina, tornou-se um processo humano, histrico e criativo, a partir do qual se solidificou a crena no progresso, este grande mito da modernidade 41. A criao, uma vez secularizada, sem qualquer relao com os princpios de f, perde seu encanto. Harvey Cox tem esse fato como necessrio para o desenvolvimento das sociedades humanas, pois este desencantamento do mundo natural prov uma precondio absoluta para o desenvolvimento da cincia natural42

. O ser humano diante de uma criao

secularizada e desencantada sente-se moral e religiosamente livre para manipular a natureza conforme suas necessidades e ambies. A sociedade crist ocidental pde, ento, explorar a natureza segundo seus interesses capitalistas, industriais e antropocntricos. Mas o que a teologia crist moderna afirma sobre a relao entre ser humano e natureza? O socilogo Saulo Batista faz uma crtica tradio judaico-crist, afirmando que, na verdade, ela contribuiu para o desencantamento da natureza, apresentando um Deus que 39 40

SUSIN, Luiz Carlos. A criao de Deus. So Paulo/Valncia: Paulinas/ Siquem, 2003, p. 11. COX, Harvey. Cidade do homem, p. 13. 41 SUSIN, Luiz Carlos. A criao de Deus, p. 11. Mais adiante aprofundaremos nossa reflexo sobre o chamado mito do progresso moderno. 42 COX, Harvey. Cidade do homem, p. 34.

transcendente e criador. Na Bblia, a natureza foi criada, portanto finita em espao e tempo. uma obra para ser admirada, estudada e controlada 43. Segundo Cox,

A concepo hebraica da criao assinala uma sada marcante deste crculo fechado. Estabelece separao entre a natureza e Deus e distingue o homem da natureza. o comeo do processo de desencantamento. (...) A narrativa do Gnesis da criao realmente uma forma de propaganda atesta. Destina-se a ensinar aos hebreus que a viso mgica, pela qual a natureza tida como uma fora semidivina, no tem nenhuma base de fato. Jeov, o Criador, cujo ser se centraliza fora do processo natural, que chama este processo existncia e d nome s suas peas, permite ao homem perceber a prpria natureza como matria de fato.44

Porm, ainda que concorde com Saulo Batista na sua crtica secularizao da natureza, Luis Carlos de Souza apresenta uma outra verso acerca do papel exercido pela tradio judaico-crist, discordando inclusive de Cox. Para Luis Carlos de Souza, na verdade, a ordem no livro de Gnesis para subjugar todas as criaturas vem sendo lida no contexto da expanso do capitalismo e da modernidade. Este fator, sim, pode explicar o porqu do relacionamento to cruel e violento entre a humanidade e a natureza na histria recente45

. Isto , para Souza, os condicionamentos culturais e scio-econmicos da

modernidade secular estabeleceram uma hermenutica bblica conveniente. Jrgen Moltmann apresenta uma descrio muito interessante desta forma moderna de se fazer teologia.

Enquanto Deus era pensado como o sujeito absoluto, o mundo tinha de ser visto como o objeto de sua criao, conservao e salvao. Quanto mais Deus era pensado de modo transcendente, tanto mais o seu mundo era compreendido de forma imanente. Atravs do monotesmo do sujeito absoluto, Deus foi sendo cada vez mais retirado do mundo, e o mundo foi tornado cada vez mais secularizado.46

43

BAPTISTA, Saulo. A questo da Amaznia. In: CASTRO, Clvis P (Org.). Meio ambiente e misso: a responsabilidade ecolgica das igrejas. So Bernardo do Campo: Editeo, 2003, p. 126. 44 COX, Harvey. Cidade do homem, p. 33. 45 SOUZA, Jos Carlos. Criao, nova criao e o mtodo teolgico na perspectiva wesleyana In: CASTRO, Clvis (Org.). Meio ambiente e misso: a responsabilidade ecolgica da Igreja. So Bernardo do Campo: Editeo, 2003. p. 70. 46 MOLTMANN, Jrguen. Doutrina ecolgica da criao: Deus na criao. Petrpolis: Vozes, 1993, p. 17.

Ao considerar teologicamente a maneira pela qual o ser humano deveria se relacionar com a criao, Moltmann afirma:

Como imagem de Deus sobre a terra, a pessoa humana, conseqentemente, tinha que se compreender como sujeito do conhecimento e da vontade e confrontar-se com seu mundo como sendo esse o seu objeto. Pois, somente atravs do seu domnio sobre a terra, a pessoa poderia corresponder ao seu Deus, o senhor do mundo. Assim como o Deus criador o senhor e proprietrio do mundo, assim, e de uma forma correspondente, o ser humano tinha que se esforar para ser senhor e proprietrio da terra. Esta foi a idia das teologias centralistas e o fundamento das doutrinas hierrquicas de soberania.47

O grande equvoco da teologia moderna est em condicionar a leitura da Bblia, sobretudo as narrativas da criao, percepo cartesiana e fragmentada da realidade. Na modernidade, o conhecimento cientfico construdo a partir do isolamento e reduo do objeto estudado, supondo que quanto mais dissociado de influncias externas ele estiver, mais precisas sero as concluses acerca dele. Esta compreenso da realidade despreza os vnculos de interdependncia presentes em todo o universo, despreza uma das mais importantes variveis para o estudo cientfico: a relao entre tudo e todos. Na defesa de um mtodo cientfico que leve em considerao a complexidade das relaes, Leonardo Boff adverte:

A cincia clssica se orientava pelo paradigma da reduo e da simplificao. Antes de mais nada arrancava-se o fenmeno de seu ecossistema para analisa-lo em si mesmo. Exclua-se tudo o que fosse meramente conjuntural, temporal e ligado a contingncias passageiras. A cincia, dizia-se, do universal, quer dizer, da estrutura de inteligibilidade daquele fenmeno e no de sua singularidade. Por isso, procura-se reduzir o complexo ao simples, pois o simples que forma as invarincias e as constantes sempre reproduzveis. Tudo deve obedecer ao princpio da ordem. S ele racional e funcional. As imponderabilidades e as situaes de no equilbrio dinmico so desconsideradas.(...) Ademais, o sujeito no deve envolver-se no objeto analisado, pois s assim garante o carter objetivo do saber. 48

47 48

MOLTMANN, Jrguen. Doutrina ecolgica da criao, pp. 17 e 18. BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. 2 ed. So Paulo: tica, 1996, p. 50. na pg. 49, Boff tambm destaca: H a lgica da complementaridade/reciprocidade. Ela prolonga a lgica dialtica. Abstraindo da antropologia cultural, esta lgica foi elaborada modernamente pelos fsicos qunticos da escola de Copenhague (Bohr, Heisenberg) ao se darem conta da extrema complexidade do mundo subatmico. Nela aparecem articulados, formando um campo de foras, matria e antimatria, partcula e onda, matria e energia, carga positiva e negativa das partculas primordiais, etc. Mais do que ver as oposies como na lgica dialtica, importa ver as complementariedades/reciprocidades no sentido da formao de campos de relaes cada vez mais complexos e unificados.

Seguindo esta tendncia, o estudo de Deus passou a desprezar a relao entre Criador e mundo criado, e entre o ser humano e a natureza. A teologia sups haver uma compreenso de um Deus dissociando-o da relao que Ele mesmo se props a manter com a criao, mediante a permanente ao criadora, mantenedora, renovadora (ou consumadora) do Esprito Santo. Sups-se, ainda, que poderamos construir um conhecimento sobre Deus a partir de certa neutralidade cientfico-teolgica, como se o estado existencial, polticosocial, cultural e ideolgica no condicionasse de algum modo a formao de nossos conceitos sobre Deus. A compreenso do homem como parte de um todo, de um ecossistema, facilmente percebida na relao que sociedades de religiosidade pr-modernas mantm com o meio ambiente. Cita-se parte de uma carta-resposta enviada pelo lder de uma tribo indgena norte americana (Chefe Seattle) ao Presidente do E.U.A., no aceitando sua oferta de compra das terras indgenas:

...Somos parte da terra, do mesmo modo que ela parte de ns prprios. As flores perfumadas so nossas irms, o urso e a grande guia so nossos irmos. As rochas escarpadas, os midos prados, o calor do corpo do cavalo e do homem, todos pertencemos mesma famlia... o homem branco (...) trata sua me a Terra, e seu irmo o Firmamento, como objetos que se compram, se exploram e se vendem... 49

Mas a modernidade construiu uma teologia do Deus distante, o totalmente outro, transcendente, que nos tm como seus objetos, onde a aliana entre Deus e seres humanos se d pela aceitao e obedincia de seus preceitos revelados outrora. Da porque a teologia moderna enfatiza a pessoa de Deus Pai (soberano) e do Deus Filho (humano), mas esquece o papel do Deus Esprito, que estabelece a relao entre o Pai e o Filho, transcendncia e imanncia. Toda teologia da Revelao e Graa de Deus deve ser interpretada como relao permanente entre Criador e criao, uma vez que de acordo com as tradies bblicas, toda a ao divina pneumtica em seu resultado. sempre o Esprito que leva ao seu objetivo o agir do Pai e do Filho. Por isso, o Deus trino inspira ininterruptamente a sua criao 50. Concluindo este sub-ponto da pesquisa, citamos Moltmann quando diz:

49

MINC, Carlos. Como fazer movimento ecolgico e defender a natureza e as liberdades. Petrpolis: Vozes, 1987 Coleo Fazer, p. 15. 50 MOLTMANN, Jrguen. Doutrina ecolgica da criao, p. 27.

As normas, segundo as quais as sociedades esto organizadas, derivam das suas tradies culturais. Estas resultaram de uma inter-relao entre o sentido de vida captado e a forma social e cultural da vida humana. Sistemas de sentido e valor enrazam-se profundamente no subconsciente humano ao decorrer de uma longa histria. Modifica-los algo doloroso e, via de regra, bastante demorado. Sociedades que no conseguem modificar fundamentalmente o seu sistema de valores e sentidos, para assim adequar-se a novas situaes, no podem modificar-se e no podem pr fim destruio que provocam. Ao invs disso, a destruio praticada no meio-ambiente natural age de forma destruidora sobre elas prprias e provoca nelas perda de valores e crises de sentido. 51.

Cabe, portanto, teologia do sculo XXI, reavaliar sua caminhada a partir de novos paradigmas, no mais se firmando na fragmentao, que redunda na completa secularizao da criao, mas na integralidade do cosmos. Esta condio para que a teologia d uma nova contribuio para a Terra, na tentativa de gestar uma novo ethos, uma nova espiritualidade, um novo saber comprometido com as sustentabilidade de toda forma de vida que emana de Deus. Do contrrio, a teologia continuar legitimando os aspectos destrutivos da sociedade moderna secular.

2.2. A EMERGNCIA DO PARADIGMA ECOLGICO Harvey Cox, entusiasta da secularizao, j nos idos de 1965, admite:

verdade, como tm assinalado certos escritores modernos, que a atitude do homem moderno para com a natureza desencantada tem, muitas vezes, demonstrado elementos de vindita. Como uma criana libertada, subitamente, do rigor paternal, este apresenta um orgulho selvagem esmagando e brutalizando a natureza 52.

Porm, Cox tenta explicar este quadro de gerao de morte da seguinte maneira:

Talvez seja esta uma espcie de vingana desencadeada por um ex-prisioneiro contra o seu algoz, mas representa, inquestionavelmente, uma fase infantil e passageira. O homem secularizado maduro nem reverencia nem devasta a natureza. A sua tarefa de cuidar e de fazer uso dela, assumindo a responsabilidade atribuda ao Homem, Ado 53.51 52

MOLTMANN, Jrguen. Doutrina ecolgica da criao, p. 47. COX, Harvey. Cidade do homem, p. 34. 53 Idem.

O fato que os habitantes da Terra enfrentam uma nova situao de crise de sustentabilidade da vida no planeta, que existe da humanidade a capacidade de modificar fundamentalmente o seu sistema de valores e sentidos. A teologia, a espiritualidade e a tica da sociedade secular no oferecem sustentao para que a humanidade saia desta fase infantil passageira. Se a sociedade moderna no se deixar guiar por outros paradigmas, continuaremos rumo autodestruio. Moltmann ressalta:

A situao presente est determinada pela crise ecolgica de toda a civilizao tcnico-cientfica e pelo esgotamento da natureza atravs da interveno humana. Esta crise no s fatal para as pessoas, mas, j h tempos, tambm para os outros seres vivos e para o meio-ambiente natural. Caso no ocorra uma converso radical nas orientaes fundamenais das sociedades humanas, no ser possvel realizar uma prxis de vida alternativa. Esta crise, ento, desembocar numa catstrofe global 54.

O reconhecido Ambientalista brasileiro Maurcio Waldman alerta:

O mundo presencia uma crise socioambiental sem precedentes, e nesta assertiva pouco h de drstico. Essa crise, em decorrncia do carter generalizado dos desequilbrios ambientais, de tal ordem que no poucos sugerem que a biosfera como um todo esteja ameaada. Contrariamente ao passado, quando as crises ambientais eram geralmente sucedidas pela revitalizao do ambiente natural, a atual no sugere nenhuma recuperao posterior ao esgotamento dos ciclos biolgicos dos ecossistemas 55.

A crise ecolgica est instaurada, e j vem sendo anunciada por muitos grupos (ONGs) que nos ltimos anos tm militado pela proteo da natureza. O trabalho destes grupos , por vezes, considerado sem relevncia para a sociedade global contempornea. A prpria utilizao do termo ecologia tem passado por uma srie de reformulaes. Primeiramente foi entendido como proteo do meio ambiente e de animais em extino. No havia uma plena compreenso de que as questes levantadas pela ecologia viriam interferir qualitativamente na vida de bilhes de pessoas que integram o sistema global-capitalistaurbano. Por ignorncia, muitos poderiam dizer que a ecologia no lhe dizia respeito. A fragmentao das cincias conduziu a sociedade moderna a se firmar em concluses parciais, incompletas. As cincias econmicas, por exemplo, no procuraram mensurar a54 55

MOLTMANN, Jrguen. Doutrina ecolgica da criao, p. 42. WALDMAN, Maurcio. Para onde vamos? In: CASTRO, Clvis (Org.). Meio ambiente e misso: a responsabilidade ecolgica da Igreja. So Bernardo do Campo: Editeo, 2003, p. 13.

problemtica ecolgica na construo do modelo de desenvolvimento industrial

56

.

Arquitetou-se uma poltica econmica global, viabilizada pelas transnacionais sediadas nos pases ricos e estabelecidas nos pases pobres com suas filiais.57 O interesse econmicoprodutivo dessas empresas imperou e ordenou a explorao da natureza, compreendida aqui tanto como recursos e sistemas naturais quanto a corporeidade. Ou seja, a criao e o ser humano (o pobre) tm sido tomados como objetos de consumo da sociedade industrial.58 A lgica foi sempre ganhar mais reduzindo os custos. Porm, a falta de relao entre economia e ecologia dificultou a percepo de que o estilo de vida da sociedade contempornea est gerando um dficit ecolgico que comprometer a sustentabilidade da vida na Terra. Motiva por este quadro, Boff faz o seguinte questionamento:

A questo que se coloca ento esta: possvel manter a lgica de acumulao, de crescimento ilimitado e linear e ao mesmo tempo evitar a quebra dos sistemas ecolgicos, a frustrao de seu futuro pelo desaparecimento das espcies, a depredao dos recursos naturais, sobre os quais as futuras geraes tambm tm direito? No h um antagonismo entre nosso paradigma hegemnico de existncia e a preservao da integridade da comunidade terrestre e csmica? Podemos responsavelmente levar avante esta aventura como foi conduzida at hoje? Com a conscincia que hoje temos destas questes no seria sumamente irresponsvel e por isso antitico continuar na mesma direo? Ou urge mudar de rota? 59

Partindo de uma preocupao semelhante, h uma crtica ao vulgo entendimento do que venha a ser a crise ecolgica: A crise ecolgica, tambm conhecida sob o inofensivo chavo poluio do meio-ambiente, torna consciente, hoje, o fato de que teologia e cincias naturais, junto com muitas outras cincias, tm um destino comum. certo que com o conceito crise ecolgica a questo tambm caracterizada de forma muito fraca e inexata, pois trata-se na verdade de uma crise de todo o sistema de vida do mundo industrializado moderno, dentro da qual as prprias pessoas se colocaram a si e ao seu meio-ambiente natural e dentro da qual continuam imergindo cada vez mais.6056 57

WALDMAN, Maurcio. Para onde vamos?, pp. 14 e 15. Cf. MARTINS, Jos P. Soares. Depois do arco-ris: uma proposta ecolgica. So Paulo: FTD, 1991 Coleo Biblioteca de Ensino Religioso, p. 31. 58 Leonardo Boff estabelece um diagnstico atualidade, dando destaque a trs crises globais: a crise social, a crise do sistema do trabalho e a crise ecolgica. (Cf. BOFF, Leonardo. Ethos Mundial. Braslia: Letraviva, 2000, pp. 13-16). 59 BOFF, Leonardo. Ecologia, p. 26. 60 MOLTIMANN, Jurgen. Doutrina ecolgica da criao, p. 47.

Falar de ecologia, hoje, implica num dilogo mais profundo que envolve o reconhecimento de que vivemos uma crise do paradigma civilizacional61

, que faz com que,

forosamente, as cincias reconheam os vnculos de interdependncia e complexidade que regem a vida na Terra. Hoje estamos entrando num novo paradigma. Quer dizer, est emergindo uma nova forma de dialogao com a totalidade dos seres e de suas relaes62

Trata-se da emergncia do paradigma ecolgico, que estabelece de modo transdisciplinar novas condies a todas as formas de pensamento e pesquisa cientfica. A economia se v obrigada a pensar um modelo de desenvolvimento sustentvel, conceituado em linhas gerais como toda trajetria capaz de satisfazer as necessidades da gerao presente, sem comprometer a capacidade das geraes futuras de satisfazer suas prprias necessidades63

. A sociologia, a antropologia, a histria, a biologia, a pedagogia e

outros saberes especficos se deparam com a necessidade imperativa de preservao da vida no planeta. A teologia, por sua vez, tambm tem estabelecido um dilogo qualitativo com o paradigma ecolgico. Apesar das teologias majoritrias assumirem uma nfase conservadora, e at reacionria, setores especficos tm dado ouvidos aos clamores do mundo, rediscutindo a temtica da criao numa perspectiva ecolgica (eco ou bio teologia), seja na busca de implicaes tico-religiosas, seja at na prpria tentativa de reformulao do mtodo teolgico.

2.3. O LUGAR DA CRIAO NO QUADRILTERO WESLEYANO Como vimos no primeiro captulo, apesar da natureza sempre ser mencionada na narrativa teolgica da criao e de alguns telogos metodistas fazerem meno revelao de Deus na criao, o mtodo teolgico Quadriltero Wesleyano proposto pela Igreja Metodista Unida em 1972 no conferiu prpria criao o status de fonte do conhecimento de Deus. Porm, no Brasil, a partir da dcada de 1980, este quadro teolgico passou a ser questionado, com a publicao de algumas obras referenciais, como: Deus na criao: doutrina ecolgica da criao, de Jrgen Moltmann; Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, de Leonardo Boff; dentre outras. De acordo com as citaes feitas acima, percebemos que estas obras j procuravam apresentar um saber teolgico em dilogo com o paradigma61 62

BOFF, Leonardo. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. 2 ed. So Paulo: tica, 1996, p. 27. Idem, p. 29. 63 CAMARGO, Jos Mrcio. Desenvolvimento econmico e sustentabilidade ambiental. In RUBIO, A. Garcia, MARCONDES, Danilo e outros. Reflexo crist sobre o meio ambiente. So Paulo: Loyola, 1992, p. 139.

emergente. Seguindo este caminho, no mesmo ano de publicao da obra de Moltmann em portugus, telogos metodistas brasileiros refletiram a criao como premissa teolgica, o que teve como conseqncia a insero da criao no mtodo Quadriltero Wesleyano. A partir da proposta brasileira, o Quadriltero Wesleyano teria a seguinte configurao:Mtodo teolgico Quadriltero Wesleyano 64 proposto por telogos brasileiros (1993):

Na poca, Jos Calos de SOUZA defendeu a proposta valendo-se das seguintes palavras: ... cabe destacar que Wesley estava totalmente convencido de que era possvel, atravs da observao da criao, reconhecer a glria divina (Cf. Sl 19.1), de que algum conhecimento de Deus poderia ser alcanado, por analogia, por intermdio do estudo da natureza. O conhecimento advindo dessa fonte conta, ademais, com uma vantagem adicional: ele pode ser compreendido, de imediato, por todas as pessoas independentemente de seu nvel de instruo ou da lngua que fala (...). No obstante, Wesley reconhece que, parte da revelao, esse conhecimento insuficiente para nos comunicar a correta compreenso da essncia de Deus e de seu propsito para o mundo. Desse modo, o naturalismo rechaado como via exclusiva de acesso verdade teolgica.65

Em nota mais recente, o mesmo autor ressalta que:

De fato, John Wesley jamais empregou essa expresso [Quadriltero Wesleyano]. Foram os intrpretes de seu pensamento, sobretudo Colin W. Williams e Albert C. Outler, que desenvolveram, com base no estudo dos escritos de Wesley e no dilogo ecumnico, o padro qudruplo de autoridade64

A proposta brasileira de insero da criao no mtodo Quadriltero Wesleyano foi apresentada em 1993, na Revista Caminhando no VI (Revista da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista) e republicada recentemente em forma de livro com o ttulo Teologia em Perspectiva Wesleyana pela Editora da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista UMESP. O texto recente veio com pequenas alteraes (atualizaes), a maioria delas presente nas notas de rodap. (Cf. Cf. REILY, Duncan Alexander, SOUZA, Jos Carlos e JOSGRILBERG, Rui de Souza. Teologia em perspectiva wesleyana. So Bernardo do Campo: Editeo, 2005). 65 REILY, Duncan Alexander, SOUZA, Jos Carlos e JOSGRILBERG, Rui de Souza. Teologia em perspectiva wesleyana, p. 20.

teolgica: Bblia, Tradio, Razo e Experincia. No h dvidas de que tal interpretao corresponde inteno de Wesley e se constitui num desdobramento legtimo de sua teologia. Contudo, j h tempos tem-se defendido, no Brasil, a tese de que essa viso permanece incompleta se excluir a criao natural.66

Houve um grande avano na dcada de 1980, com o clamor pelo reconhecimento do lugar da criao no mtodo. Porm, at onde temos informao, a teologia metodista ainda no manifestava formalmente uma preocupao especfica com a responsabilidade do cristo ou da Igreja no cuidado da natureza. No havia uma formulao sobre a dimenso ecolgica da santificao que o Esprito Santo deseja operar no mundo, por conseguinte, o respeito natureza ainda no era ressaltado como elemento constitutivo da vida crist. A dimenso social e a poltica j estavam presentes devido a influncia do pensamento latino-americano (Teologia da Libertao). Porm, at aquele momento, a teologia wesleyana no Brasil no apresentou uma Teologia da Salvao refletida a partir da dimenso ecolgica 67. Mais recentemente, dois eventos marcaram decisivamente a reflexo teolgica acerca da criao. O primeiro foi a 51 Semana Wesleyana 68, promovida pela Faculdade de Teologia da UMESP, em maio de 2002, intitulada Misso e Meio Ambiente, que teve como fruto a publicao da obra Misso e meio ambiente: a responsabilidade ecolgica das Igrejas69

. No

mesmo ano, Jos Carlos de Souza, professor da rea de Histria da Igreja na Faculdade de Teologia, defendeu a tese da insero da criao no Quadriltero Wesleyano, na apresentao do texto Criao, nova criao e o mtodo teolgico na perspectiva wesleyana no Grupo de Trabalho Wesley Studies end Early Methodism, por ocasio do 11 Instituto Oxford de Estudos Teolgicos Metodistas, realizado em Oxford, nos dias 13 a 23 de agosto de 2002. Ainda em 2002, publicada em portugus a obra de Theodore Runyon, A Nova Criao: a Teologia de Joo Wesley Hoje, que apresenta uma compreenso mais ampla da ao da Graa de Deus no mundo criado 70. Notamos que ao longo dos anos o tema teologia e criao foi aprofundado em diversos aspectos, sobretudo no tocante responsabilidade66 67

VVAA. Teologia em perspectiva wesleyana, p. 21. O penltimo captulo da citada Revista Caminhando, que fora republicada como livro recentemente, trata da espiritualidade comprometida, onde h destaque tanto aos atos de piedade (santidade interior), quanto aos atos de misericrdia (santidade exterior). H uma nfase na busca de uma vida socialmente comprometida, mas no h uma preocupao especfica na manifestao da santidade de Deus no cuidado da criao. 68 A Semana Wesleyana um evento realizado anualmente pela Faculdade de Teologia da UMESP, em So Bernardo do Campo SP, com o objetivo de fomentar debates teolgicos de relevncia para o mundo atual. 69 Cf. CASTRO, Clvis P(Org.). Meio ambiente e misso: a responsabilidade ecolgica das igrejas. So Bernardo do Campo: Editeo, 2003. 70 RUNYON, Theodore. A nova criao: a teologia de Joo Wesley hoje. So Bernardo do Campo: Editeo, 2002. A primeira publicao desta obra foi em 1998, na lngua inglesa.

ecolgica dos cristos. Vale ressaltar que a proposta de insero da criao no Quadriltero Wesleyano parte do pressuposto que, mesmo sendo originria do sculo XVIII, o pensamento de John Wesley conseguiu compreender a relao teologia e criao de um modo que nos desafia em pleno sculo XXI. Neste ponto, algum poderia sugerir que Wesley no tinha maiores preocupaes com a questo da criao. Poderia considerar que estamos fazendo uma leitura forada da teologia de Wesley, tomando-a como pretexto para fundamentarmos preocupaes ecolgicas que so unicamente atuais. De fato, corremos este risco e, sem sombra de dvida, a emergncia do paradigma ecolgico mudou os rumos da teologia wesleyana no mundo. Ademais, responsabilidade e desafio do telogo metodista contemporneo assumir a herana wesleyana de modo criativo e atualizador, num processo respeitoso de recriao da tradio. Ainda assim, levantamos mais uma vez a questo: Wesley valorizou a criao como premissa teolgica? A proposta de insero da criao no Quadriltero Wesleyano possui fundamentao na histria e teologia de Wesley? Tambm, de que modo a presena da criao no Quadriltero interfere no resultado final da teologia da salvao em Wesley? Na busca de maior consenso sobre o tema, dedicaremos o prximo captulo exclusivamente ao estudo da criao na teologia de John Wesley.

3 Captulo A criao na teologia de Joo Wesley

A teologia metodista posterior a Joo Wesley caminhou de mos dadas com a modernidade e no deu criao a devida ateno metodolgica. Como vimos no captulo anterior, somente no final do sculo XX pensadores defenderam a incluso da criao no mtodo teolgico, julgando ser esta atitude coerente com a forma de Wesley fazer teologia. Neste ltimo captulo, buscamos verificar a importncia da criao para a teologia wesleyana. Duas perguntas direcionam esta reflexo; primeira: pode o ser humano conhecer a Deus por meio da criao? Segunda: de que modo Deus manifesta sua salvao ao mundo criado?

3.1. DO CONHECER A DEUS POR MEIO DA CRIAO A f crist tem como um de seus fundamentos o reconhecimento da existncia de Deus como realidade outra, no material, como numen de vontade e pensamentos prprios, com poder e conhecimento ilimitados, meta-histrico, meta-fsico, etc. Vimos como, na modernidade, o carter transcendente de Deus recebeu bastante nfase. Porm, a f crist tambm se firma na doutrina da Graa, que ressalta a inteno que Deus tem de manifestar ao mundo o seu amor. Para tanto, coube a Ele se auto-revelar, digo, de algum modo, tornar-se imanente. neste sentido que a doutrina da Graa de Deus escndalo para a filosofia grega e para tantos cientistas e filsofos modernos, uma vez que essa transcendncia-imanente de Deus apontada como paradoxo e problema lgico insupervel.

Reconhecemos que a teologia crist sempre se viu diante de um grande dilema, pois a transcendncia absoluta de Deus inviabiliza por completo o Seu projeto de salvao; igualmente, inviabiliza a prpria a teolgica, reduzindo-a a discurso especulativo e infundado acerca daquilo que nunca se pode conhecer. Porm, a doutrina da Graa pressupe que Deus se vale de meios pelos quais o ser humano se torna conhecedor do prprio Deus. Ainda que no em plenitude, Sua glria, vontade, sentimento e projeto restaurador necessita ser conhecido pelo ser humano, para que este d a Deus uma resposta. Na tentativa de superao de tal dificuldade epistemolgica, a teologia crist tem defendido que, no decorrer dos tempos, Deus em seu intuito salvfico e por meio de seu poder soberano, irrompe a histria e as leis naturais para que seus desgnios sejam conhecidos pelo ser humano. Esta superao do abismo entre a transcendncia de Deus e a imanncia da criao testemunhada nas manifestaes de Deus aos profetas do Antigo Testamento e, especialmente, na vinda do Cristo ao mundo como plena manifestao do carter e amor divinos. Enquanto teologia fundante do cristianismo, o Novo Testamento j apresenta formulaes sobre o carter da revelao de Deus em Cristo. O Evangelho de Joo d testemunho acerca do logos de Deus, a razo criadora e sustentadora do cosmos que se manifesta ao mundo em Cristo Jesus. Em Filipenses 2, apstolo Paulo declara como Cristo Jesus, mesmo subsistindo em forma de Deus, no julgou como usurpao o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhana de homens (...). Da a centralidade das Escrituras no mtodo teolgico. Elas so o registro humano inspirado pelo Esprito Santo das manifestaes de Deus ao ser humano no decorrer da histria do povo de Deus. O conhecimento de Deus, hoje, se d, portanto, pelo estudo e compreenso do Evangelho revelado na Bblia. Sobretudo nos ciclos cristos que sofrem influncia do pensamento da Reforma, esta tem sido a soluo epistemolgica para a teologia. No entanto, esta forma de compreender a auto-revelao de Deus no apresenta uma soluo para a contradio transcendncia de Deus e imanncia da criao. Ambos continuam separados enquanto essncia e so compreendidos como realidades distintas. Mesmo que o prprio texto bblico indique caminhos epistmicos alternativos, a teologia crist tem apresentado o carter extraordinrio e sobre-natural da revelao. A contradio transcendncia-imanncia no foi superada, ao passo que o carter permanente, ordinrio e natural do agir de Deus na criao no ressaltado. Portanto, a questo que permanece : pode o ser humano conhecer a Deus por meio da criao?

Para Wesley, sim. Ele d aos clrigos uma orientao acerca do preparo mnimo que deveriam ter para serem bons pregadores da Palavra de Deus, e questiona:

No debera el ministro estar familiarizado, al menos en trminos generales, con la fisolofia natural? No es ella una gran ayuda para la compreensin correcta de varios pasajes de la Escritura? Con su ayuda, puede compreender y en algunas ocasiones explicar a otros, cmo las cosas invisibles de Dios son vistas desde la creacin del mundo, cmo los cielos cuentan la glria de Dios y el firmamento anuncia las obras de sus mano [Sl 19.1], hasta que exclamen: Cun innumerables son tus obras, oh Jeohv! Hiciste todas ellas con sabidura! [Sl 104.24]. 71

Adiante, no mesmo texto, Wesley relaciona algumas perguntas auto-avaliativas: Tengo un conocimiento adecuado de las ciencias? () Entiendo la filosofia natural? Si no la he estudiado a fondo, por lo menos he digerido sus puntos generales? Domino a Gravesande, Keill, la obra Principia de Sir Isaac Newton con su Teora de la luz y los colores? 72

Para Wesley, o estudo da filosofia natural instrumental auxiliar na interpretao da Bblia. Mas no se trata somente disto. Segundo KLAIBER e MARQUARDT, a opinio de que existe um, embora provisrio, conhecimento de Deus fora do mbito e da fonte da mensagem bblica, sempre foi e afirmada na Teologia Metodista 73. O meio ambiente, os cus a terra, a flora, os mares, o prprio ser humano e todos os seres vivos trazem na sua natureza elementos que observados de modo crtico ou piedosamente contemplados conduzem o ser humano a certa compreenso de que existe um Deus que transcende em perfeio e beleza a todas as coisas criadas. Wesley levou a srio o fato de poder conhecer melhor a Deus por meio do estudo da natureza, chegando a publicar um Compndio de Filosofia Natural onde afirmou, dentre outras coisas:

O mundo ao redor de ns o poderoso volume onde Deus se revelou. As lnguas e os caracteres humanos so diferentes nas diferentes naes. Os de uma nao no so entendidos pelo resto. Mas o livro da natureza foi escrito

71 72

OW, Tomo XI, pp. 199-200. OW, Tomo XI, p. 210. 73 KLAIBER, Walter & MARQUARDT, Marquardt. Viver a graa de Deus, p. 19.

em caracteres universais e qualquer homem pode l-lo na sua prpria lngua. Ele no consiste de palavras mas de coisas que pintam as perfeies divinas. 74

Esse texto deixa claro a influncia que os msticos teutes tiveram na teologia de Wesley por meio da literatura de Toms de Kempis e outros. Eles acreditavam poder conhecer a Deus por meio da contemplao da natureza. Para tanto, o ser humano ver na criao uma obra de arte divina, como se as perfeies e a beleza da criao pudessem revelar metaforicamente o carter e essncia de seu autor. A teologia resultante de tal mtodo apresenta uma linguagem potica e figurativa, resultado do estado de pasmar do ser humano que, sendo to limitado em suas potencialidades criativas e cognitivas, se depara com a grandiosidade e complexidade do universo. Vejamos como Wesley desenvolve uma teologia natural:

O firmamento estendido sobre todas as partes com toda a sua multido de estrelas declara a imensidade e a magnificncia, o poder e a sabedoria do seu Criador. O trovo, o relmpago, as tempestades, os tremores de terra e os vulces mostram o terror da sua ira. A chuva na sua estao prpria, a luz solar e a colheita mostram a sua abundncia e bondade e demonstram como ele abre a sua mo e enche todas as coisas de abundncia. 75

Continuando, ele chega a concordar com a teologia escolstica e reconhece o valor das afirmaes da filosofia do sculo XVIII, quando afirma que o constante suceder de geraes de plantas e de animais implica a eternidade de sua causa primeira. A vida subsistindo em milhes de formas diferentes mostra a vasta difuso do seu poder animador e a morte indica a infinita desproporo entre ele e todas as coisas vivas 76. Entretanto, Wesley reconhece que a contemplao racional da natureza oferece boas possibilidades, mas no se constitui em fundamento o bastante confivel para a formulao de um conhecimento sobre Deus. Tanto que ele reconhece sua incapacidade de conhecer verdadeiramente a Deus desta forma:

Como me ser possvel conhecer a Deus a menos que ele se me revele? Por analogia ou proporo? Muito bem; mas onde encontrar-se essa proporo? Que proporo existe entre uma criatura e o seu Criador? Qual a proporo entre o finito e o infinito?

74 75

BURTNER & CHILES. Coletnia da teologia de Joo Wesley, pp. 36 e 37. Idem, p. 37. 76 Idem.

Conhecendo a existncia das criaturas demonstra a existncia do seu Criador. Toda a criao diz que existe um Deus. Isso muito claro. Mas quem me mostrar o que esse Deus? Quanto mais reflito, tanto mais me conveno que no possvel a uma qualquer ou a todas as criaturas tirarem o vu que existe no meu corao de modo que eu possa discernir esse Deus desconhecido; a descerrar a cortina que est sobre ns de modo que eu possa ver aquele que invisvel.77

Vejamos que, enquanto ser que contempla, que observa, o ser humano assume a condio de sujeito e criao a condio de objeto observado, como se ele no fizesse parte dela. Aqui percebemos como a teologia de Wesley vai mais alm na compreenso da presena de Deus no mundo criado, pois ele no considera a questo a partir do antropocentrismo teolgico j habitual em seu tempo. Na teologia, o antropocentrismo impossibilita a compreenso do ser humano como parte e totalmente dependente da criao. A afirmao que Deus se d a conhecer na natureza deve incluir no somente a presena de Deus no meio ambiente, como tambm no prprio ser humano, que, enquanto ser natural-criado, recebe de Deus a capacidade para discernir a existncia e presena de Deus em todo o mundo. Este agir de Deus sobre toda a criao que confere ao ser humano a capacidade de conhecer, crer e co-responder ao Criador. Refletindo acerca do agir de Deus na criao, Wesley considera:

Si tomamos esto em su mxima extensin, habr de incluir todo lo que es realizado en el alma por lo que frecuentemente se llama conciencia natural, o ms apropriadamente, gracia antecipante; toda atraccin del Padre, los deseos que se dirigen hacia Dios, los cuales, si nos rendimos a ellos, aumentan ms y ms; toda aquella luz por la cual el Hijo de Dios alumbra A todo hombre que viene al mundo, enseando a todo hombre a hacer justicia, amar misericordia y a humillarse ante su Dios, todas las convicciones que su Espritu de tiempo en tiempo opera en todo ser humano. 78 Wesley muda a nfase para a terceira pessoa da Trindade, no que Outler chama de soteriologia peneumatocntrica. (...) Para Wesley, a iniciativa do Esprito a essncia dinmica de toda a graa79

. Isto equivale em afirmar que Deus se revela por meio de seu

Esprito que habita em todo o mundo criado, como fonte e sustentador de toda e qualquer forma de vida. a presena do Esprito Santo no mundo que confirma a imanncia de Deus e a relao indissocivel entre Criador e criao. Esta afirmao teolgica contesta a metfora77 78

BURTNER & CHILES. Coletnia da teologia de Joo Wesley, p. 39. OW, Tomo III, p. 90. 79 ALTLER apuld RUNYON, Theodore. A nova criao, p. 40.

do Deus-relojoeiro, segundo a qual Deus criou o mundo, estabeceu as leis naturais e se manteve separado e indiferente trama histrica que veio a se desenrolar. Para Wesley, Deus no deu por encerrada sua obra criadora, muito menos se recolheu a uma transcendncia indiferente. Pelo contrrio, Ele seguiu o curso do amor incondicional que tem por sua criao, revelando-se pela incansvel obra do Esprito, que manifesta a Palavra re-criadora (hema logos) de tempos em tempos. Especificamente na relao com o ser humano, a presena de Deus na criao d a toda pessoa condies de discernir Sua presena e vontade, seja pela conscincia natural, seja pela ao cativante do Esprito. Wesley denomina de Graa Preveniente (antecipante) a esta ao silenciosa (ou sitil) do Esprito que auxilia a resposta humana como estmulo que a faz surgir80

. a

compreenso pneumatolgica da graa de Deus que estabelece a grande diferena entre o arminianismo wesleyano e a predestinao calvinista. A graa preveniente ocorre mediante ao do Esprito que opera em todo o ser humano. Logo, a presena de Deus no mundo no se d pela imposio de Sua vontade (como por uma graa irresistvel), ou pela pr-seleo de alguns que sero salvos, mas sim pela ao interpelativa do Seu Esprito, que age sobre todos. Wesley no acreditava que todos sero salvos (universalismo), mas que a oferta da Graa de Deus para todos, e cabe a cada pessoa dar-Lhe uma resposta: no ou sim; incredulidade ou f. A doutrina wesleyana da salvao caminha para a conciliao entre a vontade de Deus e a liberdade humana. Deus aquele que verdadeiramente se importa e deseja a restaurao de toda a sua criao. Este desejo decorre de seu grande amor. Uma vez que ama, nada impe, mas dialoga com a liberdade que Seu prprio amor estabelece. Vale ressaltar que tanto o conhecer a Deus (revelao, oferta divina), quanto o responder a Ele (f, frutos de arrependimento) so aes que se manifestam pela mesma via: a experincia religiosa (tal como compreendida no primeiro captulo). Ou seja, assim como o conhecimento de Deus, a vivncia da f se d primeiramente por uma experincia que envolve sentidos, sentimentos e capacidade cognitiva. Percebemos que a gnosiologia de Wesley, antes de ser um reconhecimento da experincia como premissa teolgica, o da criao. Experincia e criao se tornam elementos indissociveis para a teologia, uma vez que o Esprito no algo exclusivo do ser humano, pelo contrrio, somente atua sobre ele enquanto parte da criao. Foi por meio desta relao indissocivel criao-experincia que a revelao de Deus se deu aos patriarcas na Bblia e, tambm, aos povos que nunca tiveram acesso revelao

80

RUNYON, Theodore. A nova criao, p. 40.

Bblica. Surge aqui um solo frtil para o desenvolvimento de uma teologia das religies, que questione os critrios universais que Deus estabelecera para a manifestao plena de seu perdo (justificao) e obra de santificao na vida humana e na criao. Tais aprofundamentos podero ser feitos em outra ocasio. At aqui, neste primeiro ponto, refletimos sobre como Deus se d a conhecer por meio da criao. A seguir, indagamos sobre com Deus age em prol da criao no decorrer da histria. 3.2. ESCATOLOGIA E CRIAO: ANLISE DO SERMO A NOVA CRIAO Dedicamos este ponto para fazermos uma anlise simples e objetiva do sermo 64, A Nova Criao. Neste texto, Wesley expe suas esperanas e convices teolgicas acerca do final dos tempos. Ele d incio ao sermo especulando sobre o real sentido do texto de Ap 21.5: Eis que fao novas todas as cousas (RA). Primeiramente, ele constata a escassez de conhecimento sobre tal revelao, seja entre os povos cristos, seja entre no cristos. Wesley afirma que

Debemos admitir que aun despus de realizar toda clase de estudios, nuestro conocimiento de la gran verdad revelada en estas palavras contina siendo extremadamente limitado e imperfecto. Tratndose unicamente de una cuestin de revelacin, que excede la capacidad de nuestras facultades, no nos es posible ahondar en ella, ni conceptualizarla adecuadamente.81

Analisando as possveis interpretaes do texto, Wesley discorda dos que sustentavam que esta profecia bblica j se havia cumprido com o florescimento da igreja imperial, no sculo IV da era crist. Esta crtica tambm est presente nas Notas sobre Ap 21.1: San Juan no est descri