Qual a função do corpo na anorexia e na bulimia

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    15Reverso Belo Horizonte ano 33 n. 61 p. 15 20 Jun. 2011

    Qual a funo do corpo na anorexia e na bulimia que se apresentam na clnica da neurose?

    Qual a funo do corpo na anorexia e na bulimia

    que se apresentam na clnica da neurose?Alinne Nogueira Silva Coppus

    O corpo faz parte do dispositivo analtico.Freud ressaltou a necessidade de estarmosatentos forma como o corpo se apresen-ta durante a sesso. Ele deu ouvidos, porexemplo, participao na conversa que

    as pernas de Elisabeth Von R tiveram du-rante o seu tratamento (FREUD, 1996,p.173). O corpo tem participado de for-ma bastante peculiar do desenvolvimen-to da psicanlise. O que afeta o corpo sem-pre fez parte do material analtico.

    Dentre os vrios sintomas que se apre-sentam na neurose e colocam em cena ocorpo do sujeito, destacamos, como pos-sibilidade de trabalho, a anorexia e a buli-mia pela maneira evidente com que elascolocam em cena a relao do corpo como desejo e com o gozo. Elas nos servirocomo um guia, extrado da clnica, para ademonstrao dos impasses que o sujeitovive com seu corpo.

    Este artigo destaca a relao entre aanorexia e a bulimia, suas articulaes com

    ResumoO analista faz do corpo falado um instrumento na sua prtica. Ele materializa o desejo e localizao gozo do sujeito que se encontra no campo da neurose. Elegemos a anorexia e a bulimia comoum recurso que permite ilustrar, a partir da clnica, os impasses que ter um corpo implica para osujeito. Com eles apontaremos os efeitos da fixao do sujeito em um modo de satisfao pulsio-nal, no caso a oral, bem como o lugar desse sintoma na trama fantasmtica do sujeito. Essessintomas nos mostram a dimenso que a imagem pode alcanar na dinmica libidinal do sujeito.

    Palavras-chaveAnorexia, Bulimia, Corpo, Imagem.

    o corpo do sujeito, bem como a funo quea imagem possui para o mesmo. Ressalta-mos tambm que esses sintomas nos per-mitem abordar o estranhamento do sujei-to em relao ao seu corpo prprio, o no

    reconhecimento de si na imagem e o cor-po como substncia gozante.

    A partir do olhar psicanaltico, desta-camos que a anorexia e a bulimia, ao me-nos as que se apresentam na estruturaneurtica, colocam o corpo em cena tan-to em sua relao com o desejo como como gozo. Com eles apontamos os efeitos dafixao do sujeito em um modo de satisfa-o pulsional, bem como o lugar dessessintomas na trama fantasmtica do sujei-to. Vistas como uma resposta do sujeitoem relao ao Outro, a bulimia apresen-tada como um efeito de forte alienao dosujeito no Outro e a anorexia seria umatentativa, s avessas, de separao, geran-do uma pseudosseparao, para ser maisexata1 .

    1. Para maior aprofundamento dessa temtica consultar a tese de doutorado O corpo nas neuroses: inibio, sintoma eangstia, defendida em 2010 na UFRJ pela autora do artigo.

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    Nosso intuito, porm, no fazer ge-neralizaes nem criar frmulas que defi-nam esses sintomas e seu tratamento; jh um discurso que caminha nesse senti-do. Os artigos mdicos da atualidade abor-

    dam a anorexia e a bulimia como um dis-trbio alimentar, uma disfuno orgnicana qual o sujeito no estaria implicado, ecujo tratamento na maioria dos casos aobrigatoriedade de comer (atravs de in-ternao) juntamente com uma ao me-dicamentosa (antidepressivos e ansiolti-cos) e a indicao de um trabalho tera-putico, de preferncia, de orientao cog-nitivo-comportamental.

    A pergunta chave do artigo : como

    o corpo se apresenta na anorexia e na bu-limia? A psicanlise nos diz que, sobretu-do nesses casos, houve uma fixao dosujeito na forma oral da satisfao pulsio-nal (FREUD, 1918-1914), cujo resultado, dentre outros, o estabelecimento de umarelao especial entre a comida e a satis-fao sexual. Outro ponto a ser destacado a presena de uma fixao tambm nocampo escpico, tanto na busca por umaimagem perfeita, que vela a castrao, comona tentativa de fisgar o olhar do Outro comseu corpo emagrecido ou adoecido pelosefeitos dos mtodos purgatrios.

    A anorexia um sintoma que se dei-xa ver por sua alterao no corpo. Sabe-mos que um sujeito est apresentandoanorexia pela imagem emagrecida de seucorpo e algumas alteraes no seu funcio-namento como amenorreia, perda ponde-ral, hiperatividade, dores de cabea e pro-

    blemas gstricos. A partir de um olharanaltico afirmamos que o aguamento dafome, para alm de suas consequncias f-sicas, uma forma de autoerotismo, deerogeneizao do corpo. O corpo magroaparece, em um primeiro momento, comoideal de beleza feminina, servindo comoinstrumento capaz de fisgar o olhar doOutro e apresentando-se em seu valor f-lico. Sem ter limites, a busca pelo ideal damagreza descarna o corpo e o torna cada-

    vrico, atraindo agora olhares de horror ecuriosidade.

    Os efeitos da bulimia no costumamser to aparentes, no geram uma altera-o considervel da imagem. Ela no al-

    tera o peso do paciente, deixando-se apre-ender atravs dos vmitos e uso de laxan-tes. O passar mal, to caracterstico des-se sintoma, vai aos poucos tornando p-blico os excessos do sujeito com a comidae o corpo.

    Porm, ficar centrado nesse transtor-no enquanto apenas alimentar um modode no ver o mal-estar subjetivo que seapresenta na complexidade desse sintoma.Quando se trata de pulso oral seja na

    compulso ou na restrio , temos a pre-sena de outros objetos, para alm do ali-mento, como o uso abusivo de medicao muito presente na clnica atual e o l-cool. A anorexia e a bulimia no so ape-nas patologias da alimentao e sim umaproblemtica que liga o desejo e o gozoatravs da relao do sujeito com deter-minados objetos (GORALI, 2000, p.108).Alm disso, se fixamos nossa escuta naalimentao, deixamos de lado pontosimportantes como a funo da imagem, arelao do sujeito com a castrao, o lu-gar do sintoma no jogo fantasmtico como Outro, dentre outros.

    A psicanlise leva em consideraopara a constituio da imagem corporaltanto a fantasia inconsciente como seuvalor libidinal, destacando o gozo que per-tence relao do sujeito com a prpriaimagem investida narcisicamente. Reto-

    mando a histria cientfica da anorexia, oSimpsio de Gottingenn de 1965 (COBE-LO, s/d), de forma pioneira, ressaltou aimportncia da imagem do corpo no quese refere anorexia, interpretada comondice de uma dificuldade na construodessa imagem.

    Lacan trabalha profundamente a re-lao entre a causalidade psquica e a ima-go em sua teoria do estdio do espelho(1949), momento em que advm uma es-

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    Qual a funo do corpo na anorexia e na bulimia que se apresentam na clnica da neurose?

    pcie de costura da imagem corporal dosujeito. a imagem corporal que forneceum contorno, um limite para o eu do su-jeito. Localizamos nesses sintomas a am-pliao do valor libidinal da imagem do

    corpo como uma estratgia para o sujeitosubtrair-se do preo imposto pela castra-o. Este , efetivamente, um elemento cen-tral na clnica da anorexia-bulimia: a exis-tncia de um gozo da imagem (RECAL-CATI, 2004, p.114).

    O sujeito goza com a imagem de seucorpo. Gozar da imagem nos faz retomar onarcisismo, que definido por Freud (1914)como a possibilidade do corpo, enquantoimagem, ser investido libidinalmente. La-

    can (1974) tambm nos disse que

    o corpo, se introduz na economia dogozo (foi da que parti) pela imagem docorpo. A relao do homem, do que se

    chama por seu nome, com seu corpo, seh algo que sublinha bem que ela ima-

    ginria, o alcance que a toma a ima-gem (LACAN, 1974, p.55).

    Como a imagem possibilita um gozoao sujeito (especificamente) nesse sinto-ma? A imagem do corpo pode vir comoum substituto da falta de significante querepresentaria o sujeito no Outro (SORIA,2001, p.41). A mulher comprova essasubstituio com a prevalncia desses sin-tomas em seu campo. Uma modalidadepela qual a histrica buscaria se nomearcomo mulher ser atravs da imagem de seucorpo, procurando esgotar na imagem a per-

    gunta sobre a feminilidade (Idem, p.42).Tentativa que encontra o fracasso. Aimagem que constitui o sujeito ao mes-mo tempo uma imagem perdida para sem-pre, tal qual o objeto perdido da primeiraexperincia de satisfao (LACAN, 1953/1998, p. 249-251).

    Lacan diz que a estrutura narcsicapossui um carter irredutvel para o sujei-to (1955/1998, p.428). Isto significa queexiste um gozo que pertence imagem e que

    est fora do simblico, fora da ordem da leisimblica... (RECALCATI, 2004, p.118).Esse resto de libido que pertence ima-gem e que no cede lei simblica indicaa obstinao do gozo narcsico e sua insis-

    tncia no plenamente simbolizada.Acreditamos que o que denomina-

    do percepo distorcida da imagem, tan-to pela medicina quanto pelas outras te-rapias, efeito do excesso de gozo que osujeito experimenta na busca pelo controlee consistncia de sua imagem. O a maisque s ele enxerga no espelho e tenta eli-minar a qualquer custo retorna atravs dadeformao da imagem especular (SO-RIA, 2001). o que vem demonstrar a

    angstia que o sujeito sente diante do es-pelho: algo a mais sempre permanece naimagem, indicando um ponto irredutvel,cego na cena.

    O sujeito que apresenta esses sinto-masbusca a coincidncia entre seu eu e oideal. Busca que aponta para um fracasso,testemunhado pela percepo equivoca-da do prprio corpo: ainda que seu corpoesteja reduzido a um esqueleto, existe sem-pre, em alguma parte, um excesso de car-ne, um excesso de gordura.

    O sujeito se agarra imagem, ao sen-tido que a imagem fornece para ele (LA-CAN, 2007).A anorexia coloca em ato atentativa de fazer valer o poder e o con-trole da imagem, tendo como objetivoapaziguar o sujeito. possvel situar a aaspirao anorxica de existir como puraimagem (SORIA, 2001, p.38).

    Tendo a clnica como parmetro, afir-

    mamos que esse sintoma geralmente apa-rece aps o encontro traumtico do sujei-to com o real seja na puberdade, sejacom a perda do amor , sendo o corpo umapossibilidade de enquadrar o excesso degozo experienciado pelo sujeito, e vamosna direo apontada por Lacan de quetoda formao humana tem, por essncia, e

    no por acaso, de refrear o gozo (LACAN,2003, p.362). Lacan (1975-76) deixa issoainda mais claro, afirmando que o corpo

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    serve para enquadrar o gozo atravs de suaimagem: ...o enquadramento tem sempreuma relao pelo menos de homonmia como que lhe suposto contar como imagem(LACAN, 2007, p.144).

    Sentir os ossos, ver as veias e os ms-culos marcarem a pele, apalpar o corpo emrenovadas inspees, realizar contnuasoperaes de purificao, deixa vista apossibilidade de se fazer do corpo um ins-trumento de gozo.

    A busca por uma imagem ideal tam-bm se apresenta na bulimia. O sujeito seagarra consistncia que a imagem lhefornece, tentando se reduzir a ela. A ima-gem, porm, no diz tudo. O ponto que

    escapa a ela, ou seja, o vazio que no sereflete e ao mesmo tempo a sustenta, re-torna como um a mais que insiste em apa-recer na imagem do espelho. O uso cons-tante de laxantes e a compulso presenteno vmito e nos ataques de comilana nosfazem lembrar que a comida pode encar-nar o carretel do conhecido e eterno jogodofort-da.

    A psicanlise opera e atravs delaque o sujeito poder dar um sentido paraseu sintoma. Ela permite que o sujeito acei-te a impossibilidade de haver um savoir-

    faire do sujeito em relao ao corpo. Sa-bendo da impossibilidade de uma relaotranquila com o corpo, marcada por umasatisfao ideal, cabe ao sujeito inventaruma relao possvel com seu corpo.

    A anlise oferece uma outra via parao tratamento do gozo que se materializano corpo. A associao livre, sustentada

    pela ateno flutuante e pelos efeitos datransferncia, permite um novo posicio-namento do sujeito diante do seu corpo.Ele se mantm como campo de gozo, masno s. A satisfao pulsional permite quealgo do desejo aparea e nessa direoque a anlise caminha.

    WHAT FUNCTION DOESTHE BODY HAVE IN ANOREXIA

    AND BULIMIA THAT TAKESPLACE IN THE NEUROSISCLINIC?

    AbstractThe psychoanalyst makes the body, whichtalks, an instrument in his/her practice. Thebody materializes the desire and the enjoy-

    ment of the subject who is found in the neu-rosis field. We choose the anorexia and buli-

    mia as a resource which illustrates, as far as

    the psychoanalytic practice is concerned, thesticking points that having a body can repre-sent to the subject. Having it in mind, we will

    point out the effects of the subjects fixationin a certain way of drive satisfaction in thiscase, the oral kind and also discuss the pla-ce this symptom has in the subjects phantas-

    magorical plot. These symptoms show us thedimension that the image can have in thesubjects libidinal dynamics.

    Keywords

    Anorexia, Bulimia, Body, Image.

    Bibliografia

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    Qual a funo do corpo na anorexia e na bulimia que se apresentam na clnica da neurose?

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    LACAN, J. O seminrio,livro 10: a angstia (1962-63). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

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    LACAN, J. Alocuo sobre as psicoses da criana(1967). In: Outros escritos. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 2003, p.359-368.

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    RECALCATI, M. La ltima cena: anoexia y buli-mia. Buenos Aires: Editora Del Cifrado, 2004.

    SORIA, N. O corpo na anorexia: da imagem aosemblante. Correio: Revista da Escola Brasileira dePsicanlise, So Paulo, n.35, 2001, p.38-42.

    RECEBIDO EM: 25/01/2011APROVADO EM: 11/04/2011

    SOBRE A AUTORA

    Alinne Nogueira Silva CoppusPsicanalista. Doutora em Teoria Psicanalticapela UFRJ. Professora da Ps-Graduao

    em Psicanlise da UFJF. Severino Sombrae Unifenas. Coordenadorado Corpo Freudiano Seo Juiz de Fora.

    Endereo para correspondncia:Rua Chanceler Oswaldo Aranha, 180/603So Mateus36025-007 JUIZ DE FORA/MGTel.: (32)3224-5945 e (32)9104-6758E-mail: [email protected]