Qualitativa Bogdan Biklen

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Conta um pouco da história das investigação qualitativa em pesquisas educacionais.

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  • ROBERT C. BOGDAN SARI KNOPP BIKLEN

    G COLECO CINCIAS DA EDUCAO

    Orientada por

    MARIA TERESA ESTRELA e ALBANO ESTRELA

    INVESTIGAO QUALITATIVA

    EM EDUCAO

    UMA I N T R O D U O

    | T E O R I A ^ ^ ^ E AOS M T O D O S

    PI Porto Editora UNIFESP

    Biblioteca da Escola de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

  • m investigador de trinta e poucos anos de idade encontrava-se no ptio de recreio de uma escola primria a observar a chegada, para o primeiro dia de aulas, de um

    ^ / autocarro cheio de crianas afro-americanas. Tratava-se do primeiro grupo de afro-americanos a frequentar esta escola. O investigador estava a desenvolver um estudo exploratrio sobre o processo de integrao. O estudo obrigava-o a visitar a escola regu-larmente, com o objectivo de observar as experincias de alunos e professores. Adicional-mente, entrevistou professores, o director, as crianas e os pais, tendo igualmente assis-tido a reunies. Este tipo de trabalho prolongou-se ao longo de todo um ano, resultando num registo escrito no qual foi anotado, de forma no intrusiva, aquilo que observara

    Noutro local dos Estados Unidos, alguns investigadores estudaram o significado que os itens dos testes tinham para as crianas que as eles se submetiam. Interrogaram crian-as da primeira classe sobre as suas respostas. Por exemplo, uma das questes do teste solicitava s crianas que escolhessem, de entre trs gravuras, aquela que melhor se rela-cionava com determinada palavra que as acompanhava. Muitas das crianas responderam palavra mosca, que acompanhava gravuras representando um elefante, um pssaro e um co, assinalando simultaneamente o pssaro e o elefante ou mesmo s o elefante (a res-posta "certa" era o pssaro). Quando questionados relativamente s suas respostas, as crianas disseram aos investigadores que o elefante era o "Dumbo", o elefante voador de Walt Disney. As crianas tinham compreendido o conceito que a questo do teste tentava evocar, mas responderam baseando-se numa perspectiva diferente daquela que os criado-res do teste tinham em mente. Este estudo pretendia investigar o raciocnio das crianas (Mehan, 1978).

    Numa grande cidade, determinada investigadora entrevistou um grupo de professoras, na tentativa de compreender das relaes entre as suas vidas privadas e as suas vidas pro-fissionais. A amostra era reduzida, menos de dez sujeitos. Acabou por conhecer bem estas mulheres, dado que as entrevistas eram longas e em profundidade, tendo sido conduzidas ao longo de todo um ano nas prprias casas e salas de aulas das professoras. A investiga-dora analisou os dados deste estudo de caso com o objectivo de identificar padres relati-vos s perspectivas das professoras face s suas vidas profissionais (Spencer, 1986).

    (Rist, 1987).

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  • Todos os exemplos anteriores so ilustraes de investigao qualitativa em educao. E bvio que no esgotam nem a diversidade de estratgias de investigao, nem os tpi-cos possveis. Outros autores que conduzem investigao qualitativa estudam os contos de fadas e os livros escolares para identificar as formas como so representadas as pessoas com deficincias fsicas (Biklen e Bogdan, 1977); analisam fotografias de crianas em lbuns familiares para identificar as formas como a famlia se representa (Musello, 1979); e visionam vdeos de estudantes a executar trabalhos escolares com o objectivo de com-preender os conceitos que as crianas tm sobre ordem (Florio, 1978; McDermott, 1976). As experincias educacionais de pessoas de todas as idades (bem como todo o tipo de materiais que contribuam para aumentar o nosso conhecimento relativo a essas experin-cias), tanto em contexto escolar como exteriores escola, podem constituir objecto de estudo. A investigao qualitativa em educao assume muitas formas e conduzida em mltiplos contextos.

    Ainda que os investigadores em antropologia e sociologia tenham vindo a utilizar a abordagem descrita no presente livro desde h um sculo, a expresso "investigao qua-litativa" no foi utilizada nas cincias sociais at ao final dos anos sessenta. Utilizamos a expresso investigao qualitativa como um termo genrico que agrupa diversas estrat-gias de investigao que partilham determinadas caractersticas. Os dados recolhidos so designados por qualitativos, o que significa ricos em pormenores descritivos relativa-mente a pessoas, locais e conversas, e de complexo tratamento estatstico. As questes a investigar no se estabelecem mediante a operacionalizao de variveis, sendo, outros-sim, formuladas com o objectivo de investigar os fenmenos em toda a sua complexidade e em contexto natural. Ainda que os indivduos que fazem investigao qualitativa pos-sam vir a seleccionar questes especficas medida que recolhem os dados, a abordagem investigao no feita com o objectivo de responder a questes prvias ou de testar hipteses. Privilegiam, essencialmente, a compreenso dos comportamentos a partir da perspectiva dos sujeitos da investigao. As causas exteriores so consideradas de impor-tncia secundria. Recolhem normalmente os dados em funo de um contacto aprofun-dado com os indivduos, nos seus contextos ecolgicos naturais.

    As estratgias mais representativas da investigao qualitativa, e aquelas que melhor ilustram as caractersticas anteriormente referidas, so a observao participante e a entrevista em profundidade. O investigador que observou as crianas afro-americanas a sair do autocarro estava a realizar um estudo de observao participante. O investigador introduz-se no mundo das pessoas que pretende estudar, tenta conhec-las, dar-se a conhe-cer e ganhar a sua confiana, elaborando um registo escrito e sistemtico de tudo aquilo que ouve e observa. O material assim recolhido complementado com outro tipo de dados, como registos escolares, artigos de jornal e fotografias.

    O caso da investigadora que estudou o grupo de professoras trata-se de um exemplo do recurso entrevista em profundidade. Por vezes, este tipo de entrevista designada por

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  • "no-estruturada" (Maccoby e Maccoby, 1954) ou "aberta" (Jahoda, Deutsch e Cook, 1951), "no-directiva" (Meltzer e Petras, 1970) ou, ainda, entrevista "de estrutura flex-vel" (Whyte, 1979). O objectivo do investigador o de compreender, com bastante deta-lhe, o que que professores, directores e estudantes pensam e como que desenvolveram os seus quadros de referncia. Este objectivo implica que o investigador passe, frequen-temente, um tempo considervel com os sujeitos no seu ambiente natural, elaborando questes abertas do tipo "descreva um dia tpico" ou "de que que mais gosta no seu tra-balho?", registando as respectivas respostas. O carcter flexvel deste tipo de abordagem permite aos sujeitos responderem de acordo com a sua perspectiva pessoal, em vez de terem de se moldar a questes previamente elaboradas. Na investigao qualitativa no se recorre ao uso de questionrios. Ainda que se possa, ocasionalmente, recorrer a grelhas de entrevista pouco estruturadas, mais tpico que a pessoa do prprio investigador seja o nico instrumento, tentando levar os sujeitos a expressar livremente as suas opinies sobre determinados assuntos. Dado o detalhe pretendido, a maioria dos estudos so con-duzidos com pequenas amostras. Nalguns estudos o investigador limita-se a traar uma caracterizao minuciosa de um nico sujeito. Nestes casos, onde o objectivo o de cap-tar a interpretao que determinada pessoa faz da sua prpria vida, o estudo designa-se por histria de vida.

    Se bem que utilizemos a expresso investigao qualitativa, outros autores recorrem a expresses diferentes e conceptualizam o tipo de investigao descrito no presente livro de modo algo diverso. Investigao de campo uma expresso utilizada por antroplogos e socilogos, devendo-se a sua utilizao ao facto dos dados serem normalmente recolhi-dos no campo, em contraste com os estudos conduzidos em laboratrio ou noutros locais controlados pelo investigador (ver Junker, 1960)'. Em educao, a investigao qualita-tiva frequentemente designada por naturalista, porque p investigador frequenta os locais em que naturalmente se verificam os fenmenos nos quais est interessado, incidindo os dados recolhidos nos comportamentos naturais das pessoas: conversar, visitar, observar, comer, etc. (Guba, 1978; Wolf, 1978a). A expresso etnogrfica igualmente aplicada a este tipo de abordagem. Enquanto que alguns autores a utilizam num sentido formal, para se referirem a uma categoria particular de investigao qualitativa, aquela a que a maioria dos antroplogos se dedica e que tem como objectivo a descrio da cultura, ela tambm utilizada de forma mais genrica - algumas vezes como sinnimo - da investigao quali-tativa tal como a estamos a descrever (Goetz e LeCompte, 1984).

    Existem igualmente outras expresses associadas com a investigao qualitativa. Referimo-nos a: inter accionismo simblico, perspectiva interior, Escola de Chicago, fenomenologia, estudo de caso, etnometodologia, ecologia e descritivo. A utilizao e definio exactas destas expresses, bem como de trabalho de campo e de investigao qualitativa, tm variado ao longo do tempo e entre diferentes utilizadores. Isto no signi-fica que todas estas expresses queiram dizer a mesma coisa, nem que algumas delas no lenham um significado preciso quando utilizadas por determinados autores (Jacob, 1987).

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  • Escolhemos privilegiar a expresso investigao qualitativa como englobando todo o conjunto de estratgias que designamos por "qualitativas". Iremos clarificar algumas das expresses anteriormente mencionadas no decorrer da exposio.

    At ao momento, limitmo-nos a introduzir o tpico de estudo. Voltaremos, no pre-sente captulo, a discutir mais detalhadamente as caractersticas da investigao qualita-tiva, bem como os seus fundamentos tericos. Mas, antes do mais, contextualizemos his-toricamente o nosso objecto de estudo.

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  • A tradio da investigao qualitativa em educao

    S \ s historiadores da investigao educacional tradicional citam o ano de 1954 como / I um ponto de viragem (Travers, 1978; Tyler, 1976). O Congresso aprovou legisla-v a / o que, pela primeira vez, permitia a atribuio de bolsas a instituies com pro-gramas de investigao educacional2. Tomando os subsdios federais como indicador, a investigao educacional tinha sido finalmente reconhecida. Contudo, o reconhecimento dos investigadores que trabalhavam com metodologias qualitativas cujo trabalho, poca, era considerado marginal, ainda teria de aguardar algum tempo. Para estes investigadores o ano de 1954 foi um ano como outro qualquer. Por razes sobre as quais nos debruare-mos nas prximas pginas, o desenvolvimento da investigao qualitativa em educao s se veio a verificar no final dos anos sessenta.

    Ainda que a investigao qualitativa no campo da educao s recentemente tenha sido reconhecida, possui uma longa e rica tradio. As caractersticas desta herana auxi-liam os investigadores qualitativos em educao a compreender a sua metodologia em contexto histrico3. As origens da investigao qualitativa encontram-se em vrias disci-plinas, donde que a nossa resenha histrica ultrapasse as fronteiras disciplinares. Propo-mos uma perspectiva relativa ao desenvolvimento dos mtodos de investigao qualita-tiva em educao.

    ORIGENS NO SCULO DEZANOVE

    Algumas das caractersticas da vida quotidiana do sculo dezanove nos Estados Uni-dos estiveram na base da investigao social. A urbanizao e o impacto da imigrao em

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  • massa deram origem a vrios problemas nas cidades: sanitrios, de sade pblica, bem--estar e educao. O fotgrafo Jacob Riis (1890) exps a vida dos pobres urbanos nas pginas de How the Other HalfLives. Jornalistas de investigao, como Lincoln Steffens (1904, 1931) e outros, denunciaram nos seus artigos a corrupo na gesto da cidade, a "vergonha das cidades" e outras calamidades. Entre 1870 e 1890, o papel tornou-se mais barato, a distribuio dos jornais expandiu-se enormemente e o "jornalismo sensaciona-lista" floresceu (Taylor, 1919).

    Este tipo de publicidade chamou a ateno para as condies degradadas da vida urbana na sociedade americana. A denncia jornalstica dos problemas sociais exigia res-posta, uma delas foi o "movimento dos levantamentos sociais", constitudo por um con-junto de estudos comunitrios coordenados, relativos aos problemas urbanos, e levados a cabo prximo do incio do sculo vinte. Estes levantamentos revestiram-se de determi-nada forma, dado o nascimento das cincias naturais ter estimulado o entendimento dc disciplinas, tais como a sociologia, como cientficas e no simplesmente filosficas (Harrison, 1931; Riley, 1910-1911). Foram igualmente antecedidos por levantamentos relativos aos pobres, conduzidos na Europa e na Inglaterra.

    Nos finais do sculo dezanove, o francs Frederick LePlay estudou famlias da classe trabalhadora, recorrendo ao mtodo designado por "observao participante" pelos cien-tistas sociais dos anos trinta (Wells, 1939). Por seu lado, LePlay designava o mtodo meramente por "observao" (Zimmerman e Frampton, 1935), utilizando-o na tentativa de encontrar um remdio para o sofrimento social. Enquanto observadores participantes, LePlay e os seus colegas viveram com as famlias que estudaram; participavam nas suas vidas, observando cuidadosamente o que faziam no trabalho, no tempo de lazer, na igreja e na escola. Este trabalho foi publicado sob o ttulo Les Ouvriers Europeans (o primeiro volume surgiu em 1879), e descreve detalhadamente a vida de famlia da classe trabalha dora na Europa.

    Por sua vez, a obra de Henry Mayhew, London Labour and the London Poor, publi-cada em quatro volumes entre 1851 e 1862 (Fried e Elman, 1968; Stott, 1973), consiste no registo, ilustrao e descrio das condies de vida dos trabalhadores e dos desempre gados. Mayhew apresenta histrias de vida e os resultados de entrevistas exaustivas com os pobres.

    A investigao de Charles Booth, um estatstico que comeou a fazer levantamentos sociais relativos aos pobres de Londres em 1886 (Webb, 1926), seguiu a tendncia da lite ratura urbana emergente. O empreendimento de Booth revestiu-se de dimenses incrl veis, prolongando-se por dezassete anos e dando origem a igual nmero de volumes esc i i tos. O seu principal objectivo era o de descobrir quantos pobres existiam em Londres e quais as suas condies de vida. Ainda que a sua principal preocupao fosse docutnen tar quantitativamente a extenso e natureza da pobreza em Londres, o seu trabalho contm descries exaustivas e detalhadas das pessoas que estudou. Tais descries foram reco lhidas durante os perodos de tempo em que Booth viveu, anonimamente, entre as pessoas que observou, com o objectivo de ter experincia directa das vidas dos seus sujeitos (vei Taylor, 1919; Webb, 1926; Wells, 1939).

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  • Professora e alunos, cidade de Nova Iorque, 1890

    Um dos colaboradores do projecto colossal de Booth foi Beatrice Webb (nome de sol-teira, Potter) que, juntamente com o marido, se tornou uma figura destacada do movi-mento socialista Fabiano. Com toda uma vida dedicada ao estudo das instituies sociais e do sofrimento dos pobres, o despertar do interesse, dedicao e empenho de Webb pela temtica, ficou a dever-se sua primeira experincia de trabalho de campo. Compreen-deu em primeira mo aquilo que Roy Stryker, outro estudioso dos pobres, viria mais tarde a escrever, "o povo constitudo por indivduos" (Stott, 1973)4:

    "Nunca tinha visto o trabalho como composto por homens e mulheres individuais, de diferentes formas e feitios. At ao momento em que me comecei a interessar pelas cincias sociais e a receber formao como investigador social, o trabalho no era mais do que uma abstraco que parecia denotar uma massa de seres humanos aritmticamente calculvel (cada indivduo como repetio do indivduo anterior), de forma muito semelhante ao facto do capital das empresas do meu pai consistir, pre-sumo, em soberanos de ouro idnticos a todos os outros soberanos de ouro, em forma, peso, cor e tambm em valor." (Webb, 1926, p. 41)

    Aquilo que no passava de mera abstraco ganhou carne e osso para Beatrice Webb, mediante o seu contacto em primeira mo com os seus sujeitos de investigao. Posterior-mente, o casal Webb publicou uma descrio da sua metodologia, obra que foi objecto de

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  • Escola nocturna numa modesta penso da Stima Avenida, comeos de 1890

    ampla leitura nos Estados Unidos (Wax, 1971 ) 5 , e que parece constituir a primeira dis-cusso prtica da abordagem qualitativa (Webb e Webb, 1932)6.

    Por sua vez, nos Estados Unidos, foi W. E. B. Du Bois que procedeu ao primeiro le-vantamento social. Publicado em 1899 com o ttulo de The Philadelphia Negro, con-sistia num trabalho levado a cabo durante cerca de um ano e meio de estudo apurado, recorrendo a entrevistas e observaes de sujeitos que habitavam essencialmente no Stimo Bairro da cidade. O objectivo da investigao era o de examinar "as condies de vida dos mais de quarenta mil indivduos de raa negra que habitavam na cidade de Filadlfia" (Du Bois, 1899 [1967], p. 1).

    Um dos levantamentos sociais mais significativos foi o de Pittsburgh, conduzido em 1907. O grupo que o conduziu tentou aplicar o "mtodo cientfico" ao estudo dos pro-blemas sociais. Ainda que os estudiosos ligados ao movimento dos levantamentos sociais tendam a acentuar a natureza estatstica destes (ver, por exemplo, Devine 1906--1908; Kellog, 1911-1912), os resultados do Inqurito de Pittsburgh, por exemplo, sugeriram que esta nfase se podia dever mais aos valores contemporneos inerentes quantificao como smbolo da abordagem cientfica do que ao contedo dos registos propriamente ditos. Ainda que o Inqurito de Pittsburgh apresente quantificaes esta-tsticas, relativamente a questes que vo desde o nmero de acidentes semanais e valor dos salrios, at aos tipos e localizaes dos sanitrios e a frequncia escolar,

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  • apresenta igualmente descries detalhadas, entrevistas, desenhos (executados em carvo por vrios artistas) e fotografias.

    Esta articulao entre o quantitativo e o qualitativo est bem patente na revista Charity and the Commons (que posteriormente se transformou na The Survey), que publicou resultados do Inqurito de Pittsburgh em trs nmeros que lhe foram dedicados em 1908-1909. Os relatos vo desde o planeamento educacional - "nesta cidade, os edifcios esco-lares", afirmou um experiente responsvel escolar de Allengheny, "so primeiro constru-dos e s depois que se reflecte sobre eles" (North, 1909), at s questes levantados pelos estudantes mais "dbeis" na escola, devido s caractersticas da abordagem dos pro-fessores do ensino elementar ao problema. Determinada professora:

    "teve 128 alunos num ano e 107 no seguinte. Dividiu as crianas em duas turmas. As crianas mais inteligentes vinham pela manh e era-lhes per-mitido proceder segundo o seu prprio ritmo, acabando por 'cobrir' entre seis e nove livros por ano; os com maiores dificuldades, em menor nmero, vinham pela tarde. Dedicavam-se essencialmente a brincar, e as sesses da tarde no duravam mais de duas horas; consequentemente, estas crianas no 'cobriam' mais de um livro por ano."

    Estes ltimos alunos acabavam por desistir, engrossando a "coluna de trabalhadores industriais iletrados" (North, 1909). Alm deste, abundam os registos semelhantes.

    A variedade dos dados dos levantamentos sociais devia-se natureza interdisciplinar da investigao: cientistas sociais, assistentes sociais, lderes cvicos, o investigador exte-rior culto (equivalente aos consultores modernos) e jornalistas, todos eles deram o seu contributo. Adicionalmente, os diferentes materiais eram discutidos em reunies pblicas e expostos comunidade (Taylor, 1919).

    Os levantamentos sociais tm uma importncia particular para a compreenso da his-tria da investigao qualitativa em educao, dada a sua relao imediata com os pro-blemas sociais e a sua posio particular a meio caminho entre a narrativa e o estudo cien-tfico. Por exemplo, em 1904, Lincoln Steffens apresentou a sua obra Shame of the Cities, com os seguintes comentrios:

    "Nada disto muito cientfico, mas eu no sou um cientista. Sou um jor-nalista. No recolhi todos os factos com indiferena, nem os ordenei pa-cientemente com o objectivo de serem preservados e laboratorialmente analisados. No os quis preservar, quis destruir os factos. O meu intuito foi to cientfico como o esprito da minha investigao e dos meus regis-tos; foi, como j referi, ver se os factos vergonhosos se apresentavam em toda a sua crueza, agitando a indiferena cvica e incendiando o orgulho americano. Era este o componente jornalstico, a inteno de convencer e de provocar reaces." (Steffens, 1904, em Harrison, 1931, p. 21)

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  • Steffens tinha esperana de, com os seus escritos, desencadear aces que conlri bussem para aliviar o sofrimento humano. Vinte e cinco anos mais tarde, em 1929, aps inmeros levantamentos sociais por todos os Estados Unidos, William Ogburn faria os seguintes comentrios, na conferncia de abertura da Sociedade Americana de Sociologia. Quo diferentes pareciam os mtodos cientficos e jornalsticos, data. Do ponto de visla profissional, a sociologia tinha de desenvolver novos hbitos para se tomar cientfica:

    "Um destes novos hbitos ser a escrita de artigos totalmente desapaixo-nados e o abandono do hbito corrente de tentar transformar os resultados da cincia em literatura... Os artigos necessitam sempre de ser acompa-nhados pelos dados em que se baseiam; desta forma, o texto ser mais pequeno e o espao ocupado pelos dados maior... E bvio que o soci-logo trabalhar com o tipo de problemas que tendem a transformar a sociologia num corpo de conhecimentos organizado e sistemtico, esco-lher, igualmente, para objecto de investigao, os problemas cuja solu-o beneficiar a espcie humana e a sua cultura... Mas, o socilogo cientfico atacar os problemas escolhidos com uma s ideia em mente: a construo de novos conhecimentos." (Harrison, 1931, p. 21)

    Rapazes do carvo da mina de Ewen em S. Pittston, Pensilvnia, 10 de Janeiro de 1911. O trabalho fotogrfico de Hine contribuiu para a aprovao^das leis relativas ao trabalho infantil.

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  • O levantamento social encontrava-se a meio caminho entre estes dois mundos: era 11 induzido com o objectivo de encorajar mudanas sociais, com base na investigao, e os seus mtodos apresentavam os problemas em termos humanos.

    () NASCIMENTO DA ANTROPOLOGIA

    As origens antropolgicas da investigao qualitativa em educao esto convincen-temente documentadas (ver, particularmente, Roberts, 1976)7. Franz Boas, fundador do primeiro departamento universitrio nos Estados Unidos, ter possivelmente sido o pri-meiro antroplogo a escrever sobre antropologia e educao, num artigo publicado em I K()X e dedicado ao ensino da antropologia a nvel universitrio. Boas e os seus cola-boradores foram igualmente dos primeiros antroplogos a residir nos contextos naturais ilos sujeitos, ainda que durante curtos espaos de tempo, e a basear-se em informadores competentes que falavam ingls, dado no terem conhecimento da lngua nativa.

    Para o nosso propsito, o desenvolvimento da investigao qualitativa em educao, o contributo mais significativo de Boas foi a sua participao no desenvolvimento da antro-pologia interpretativa, bem como o seu conceito de cultura. Em contraste com os antro-plogos anteriores, Boas era um "relativista cultural", acreditando que cada cultura estu-dada devia ser abordada de forma indutiva. Caso os etngrafos abordassem uma deter-minada cultura na expectativa de a compreender segundo a perspectiva ocidental, acaba-riam necessariamente por distorcer aquilo que observavam. Boas pensava que os antro-plogos deviam estudar as culturas com o objectivo de aprender a forma como cada uma delas era vista pelos seus prprios membros (ver Case, 1927).

    Igualmente em 1898, o ano do artigo de Boas, Nina Vandewalker, que Roberts (1976) descreveu como uma "acadmica desconhecida", aplicou, pela primeira vez, a antropolo-gia educao, no artigo "Some Demands of Education upon Anthropology", publicado no American Journal ofSociology. No artigo abordava as relaes entre a educao e a cultura (Vandewalker, 1898).

    Relativamente ao desenvolvimento das tcnicas de trabalho de campo necessrio, em primeiro lugar, considerar os estudos antropolgicos das culturas nativas. Ao contrrio de Boas, que se baseou mais em documentos e informadores do que em observaes directas e aprofundadas, Bronislaw Malinowski foi o primeiro antroplogo cultural a passar lon-gos perodos de tempo numa aldeia nativa, para observar o seu funcionamento (Wax, 1971). Foi igualmente o primeiro antroplogo profissional a descrever o modo como obteve os seus dados e a experincia do trabalho de campo. Estabeleceu as bases da antropologia interpretativa, ao enfatizar a importncia de apreender "o ponto de vista do nativo" (Malinowski, 1922, p. 25).

    Malinowski insistia que a teoria da cultura se devia basear em experincias humanas particulares e na observao, e ser construda indutivamente (Malinowski, 1960). E in-teressante o facto de a sua abordagem de campo se ter desenvolvido acidentalmente.

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  • Quando chegou Nova Guin, dispondo de meios financeiros muito limitados, verificou--se o incio da Primeira Grande Guerra. Deste modo, a sua viagem foi negativamente afectada, sendo obrigado a permanecer na Austrlia e nas ilhas at ao fim da guerra, em 1918. Tal facto contribuiu para a futura delineao do "trabalho de campo".

    Possivelmente, a primeira aplicao concreta da antropologia educao nos Estados Unidos foi efectuada pela antroploga Margaret Mead (ver, particularmente, Mead, 1942 e 1951). Essencialmente preocupada com o papel do professor e com a escola enquanto organizao, recorreu s suas experincias de campo em sociedades menos tecnolgicas, para ilustrar o quadro educativo em rpida mudana dos Estados Unidos da poca. Mead estudou a forma como contextos particulares - os tipos de escola que categorizou como a "pequena escola vermelha", a "escola de cidade" e a "academia" - necessitavam de pro-fessores especficos, e a forma como estes professores interagiam com os alunos. Defen-deu que os professores necessitavam de estudar, atravs de observaes e experincias em primeira mo, os contextos cambiantes dos processos de socializao dos seus alunos, para se tornarem melhores professores. Ainda que no tenha conduzido trabalho de campo formal nos Estados Unidos, reflectiu sobre a educao americana, focando-se nos conceitos antropolgicos mais do que no mtodo.

    Uma das figuras principais no desenvolvimento do mtodo qualitativo foi Robert Redfield, um antroplogo que estudou na Universidade de Chicago no perodo de desen-volvimento da sociologia. Era genro de Robert Park, outro socilogo que, como teremos oportunidade de ver posteriormente, foi um pioneiro no desenvolvimento da investiga-o qualitativa nesta disciplina. O trabalho de campo dos antroplogos constituiu um fundamento importante do modelo que ficou conhecido como a sociologia de Chicago (Douglas, 1976). Os estudos etnogrficos de Redfield tiveram muita influncia na inves-tigao de campo sobre as comunidades (Fris, 1967). Na perspectiva de Wax, um antroplogo, os "socilogos de Chicago" prosseguiram a tradio antropolgica do traba-lho de campo: "ao incidirem na 'observao participante', os socilogos de Chicago denunciaram a sua ligao tradio etnogrfica do trabalho de campo, iniciada por Mali-nowski" (Wax, 1971, p. 40).

    A SOCIOLOGIA DE CHICAGO

    Albion Small foi o fundador do departamento de Sociologia da Universidade de Chi-cago, em 1892; foi igualmente o primeiro e o maior de todo o mundo (Odum, 1951). A "Escola de Chicago", rtulo aplicado a um grupo de socilogos investigadores com fun-es docentes e discentes no departamento de sociologia da Universidade de Chicago, nos anos vinte e trinta, contriburam enormemente para o desenvolvimento do mtodo de investigao que designamos por qualitativo.

    Ainda que os socilogos de Chicago diferissem uns dos outros em aspectos impor-tantes, partilhavam algumas noes tericas e metodolgicas. Do ponto de vista terico,

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  • lodos eles entendiam os smbolos e as personalidades como emergentes da interaco UM ial (Fris, 1967). Do ponto de vista metodolgico, todos se baseavam no estudo de

    i MO, quer se tratasse de um indivduo, de um grupo, de um bairro ou de uma comunidade (Wiley, 1979).

    I )e entre as numerosas caractersticas da metodologia da Escola de Chicago, algumas lio essenciais para a compreenso da investigao qualitativa em educao. Em primeiro lugar, os socilogos de Chicago baseavam-se nos dados recolhidos em primeira mo para I I suas investigaes. Esta tcnica estabeleceu-se a partir do trabalho de dois autores: W I. Thomas e Robert Park. Thomas foi um dos primeiros alunos de ps-graduao do departamento de sociologia. O seu trabalho, juntamente com Florian Znaniecki, The l\'lish Peasant in Europe and America (Thomas e Znaniecki, 1927), reconhecido como mu "ponto de viragem na histria da investigao sociolgica", porque se concentrava na anlise qualitativa de documentos pessoais e pblicos", e "introduzia novos elemen-

    los na investigao e novas tcnicas para estudar esses elementos, tcnicas no caracters-iicas das investigaes empricas, no sentido tradicional" (Bruyn, 1966). Thomas no intendia os dados em termos quantitativos. Interessante o facto de ter sido acidental-nienie que comeou a utilizar as cartas como dados de investigao. Conta-se que um lia. passeando pelo gueto polaco de Chicago, se desviou para no ser atingido por lixo ai nado de uma janela. Encontrou, entre o lixo, um mao de cartas e, como sabia ler polaco, comeou a l-las. Deparou-se com uma descrio em primeira mo da vida de um imigrante (Collins e Makowsky, 1978, p. 184). Este incidente, tal como o de Malinowski ter ficado retido durante a Primeira Grande Guerra, teve uma influncia profunda no delinear da investigao social. Thomas partilhava com o antroplogo Boas o realar da importncia da compreenso dos pontos de vista e percepes da reali-dade de diferentes pessoas8.

    Depois de ter travado conhecimento com Thomas, numa conferncia sobre as relaes mire as raas, Robert Park foi para a Universidade de Chicago, em 1916 (Hughes, 1971). Apesar de Park se ter tomado numa das figuras principais da Escola de Chicago, esta no lii a sua primeira carreira. J tinha sido um reprter jornalstico, alm de ter trabalhado I orno relaes pblicas para a Booker T. Washington. Muitos historiadores da Escola de ( lcago associam o encorajamento dado pelo departamento aos estudantes de ps-gradua-ao, para penetrarem nos mundos sociais que queriam estudar, experincia jornalstica de Park (ver, por exemplo, Douglas, 1976; Fris, 1967; Matthews, 1977; Wax, 1971). Park enviava os seus alunos para as ruas de Chicago, nos anos vinte, para que pudessem observar pessoalmente o que se passava.

    A nfase na vida da cidade constitui a segunda caracterstica importante dos socilo-gos de Chicago. O que quer que estudassem, faziam-no sempre tendo como pano de I undo a comunidade como um todo, abordagem que Becker designou por "o mosaico cientfico" (Becker, 1970b). Park "encorajava regularmente os seus alunos a fazerem esiudos gerais, mas exaustivos, relativos a comunidades particulares, com o objectivo de

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  • as entender como um todo" (Fris, 1967). Os trabalhos destes alunos, posteriormente publicados, ilustram tanto o interesse por diferentes aspectos da vida comum, como uma preocupao com o estudo da etnicidade. Foram objecto de estudo o gueto judeu (Wirth, 1928), os bailes dos taxistas (Cressy, 1932), o gang dos rapazes (Thrasher, 1927), o ladro profissional (Sutherland, 1937), o vagabundo (Anderson, 1923), The Gold Coast and the Slum (Zorbaugh, 1929) e o delinquente (Shaw, 1966; publicado inicialmente em 1930). na nfase da interseco entre o contexto social e a biografia que residem as origens das descries contemporneas da investigao qualitativa como "holstica". Como afirmou um dos socilogos de Chicago, "o comportamento pode ser estudado, vantajosamente, tomando em considerao a situao em que surge" (Wells, 1939).

    Os socilogos de Chicago, como afirmmos anteriormente, assumiram uma aborda-gem interaccionista relativamente investigao (Carey, 1975), enfatizando a natureza social e interactiva da realidade. Park, por exemplo, na sua introduo metodologia de um estudo sobre as relaes raciais entre orientais e ocidentais na Califrnia, sugeriu que ele era importante pelo reconhecimento que fazia de que "todas as opinies, pblicas ou privadas, so um produto social" (Bogardus, 1926). Com efeito, os investigadores preten-diam captar as perspectivas daqueles que eram entrevistados. Muitos dos sujeitos partilha-ram as suas perspectivas relativas s dificuldades que experimentavam como americanos de origem oriental:

    "Pensava que era americano. Tinha ideais americanos, lutaria pela Am-rica, venerava Washington e Lincoln. Depois, no liceu, descobri que me chamavam 'Jap', me tratavam mal e me punham de lado. Afirmei que no conhecia o Japo, no sabia falar a lngua nem conhecia heris ou a histria do Japo. Contudo, diziam-me constantemente que eu no era americano, no podia ser americano e no podia votar. Sinto-me profun-damente triste. No sou japons e no me permitido ser americano. Pode dizer-me, ao fim de contas, aquilo que sou?" (Bogardus, 1926, p. 164)

    Os investigadores no s enfatizavam a dimenso humana, mas envolviam-se igual-mente em questes polticas importantes.

    Ainda que os socilogos de Chicago tenham estudado os problemas sociais e condu-zido investigaes relativas vida na cidade, aos problemas comunitrios e a carreiras desviantes, eles no eram, na sua grande maioria, defensores da reforma. O primeiro movimento dos levantamentos sociais verificou-se numa altura em que a sociologia ainda no se encontrava suficientemente diferenciada do "movimento organizado de caridade" (que posteriormente veio a ser conhecido como assistncia social). Quando a sociologia se diferenciou claramente da assistncia social, abandonou a sua vertente reformista e reteve exclusivamente a influncia do mtodo de estudo de casos. Esta abordagem no se limitava a ser um mtodo de campo, implicava igualmente o reconhecimento das inter-- relaes existentes entre os diversos problemas sociais (Taylor, 1919). A sociologia

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  • linha efectivamente alcanado o estatuto de cincia, contudo, aquilo que o grupo dos M K ilogos de Chicago escrevia no era o material rido que Ogburn apresentava nos encontros da Associao Americana de Sociologia.

    A SOCIOLOGIA DA EDUCAO

    Dado que o campo da sociologia da educao se desenvolveu numa altura em que o I )cpartamento de Sociologia de Chicago tinha atingido o seu znite, poderamos esperar que as estratgias de investigao qualitativa se reflectissem claramente nos planos de investigao da sociologia da educao. Contudo, no foi isto que se verificou.

    O incio oficial da sociologia da educao, como campo individualizado, verificou-se cm 1915, aquando da inaugurao do primeiro curso de "Sociologia da Educao" (Sned-den, 1937), mas o Journal of Educational Sociology s surgiu em 1926. Inicialmente, dois em cada trs dos seus responsveis vinham da Escola de Chicago: Harvey Zorbaugh de The Gold Coast and the Slum e Frederick Thrasher, autor de The Gang. Entre os res-ponsveis pela revista encontravam-se trs professores do Departamento de Sociologia de Chicago: Emory S. Bogardus, Ellsworth Fris e Robert Park. De facto, no incio do pri-meiro volume, um determinado editorial sugeria que o Journal of Educational Sociology representava a "perspectiva de Chicago" (1927,1:4, p. 177).

    Vrios nmeros do volume 1 sugeriam que a perspectiva de Chicago se encontrava presente: alguns artigos fizeram revises de The Gang de Trasher, seguiram o desenvol-vimento profissional do Professor Bogardus, mencionaram a publicao prxima de The Jack Roller de Shaw e registaram um discurso de Fris. Ainda que esta perspectiva no tenha dominado a revista, estava, sem dvida, representada.,

    Durante o perodo relativo ao volume 2 (1928-1929), contudo, a preocupao cons-tante com as cincias naturais e com a avaliao quantitativa subiu de tom. No terceiro nmero, por exemplo, o editorial debruava-se sobre as discusses dos ltimos anos rela-tivas questo "ser a sociologia da educao uma cincia ou poder vir a transformar-se em cincia"? Para se tornar cincia, explicava o editorial, a investigao em sociologia da educao tinha de ser experimental.

    Esta perspectiva, defendida pelo "movimento de medida da escola cientfica", reflecte as preocupaes essenciais da educao poca. Era o "reinado do empirismo" (Cron-bach e Suppes, 1969). O "mtodo cientfico" em educao identificou-se com a quanti-ficao. A sociologia da educao em geral (sempre parente pobre da psicologia da edu-cao) e a Revista, em particular, afastaram-se da perspectiva de Chicago, encami-nhando- se para uma abordagem quantitativa e experimental.

    Esta indisponibilidade para a Revista considerar outros materiais que no os dados esta-tsticos reflecte-se em artigos tais como "The Validity of Life Histories and Diaries" (Bain, 1929). O autor apresentava vrias razes para considerar as histrias de vida e os dirios como adequados ao trabalho social, mas no sociologia: estes documentos no eram

    29 UNIFESP Biblioteca da Escola de Filosofia,

    Letras e Cincias Humanas

  • suficientemente cientficos; no era possvel aos investigadores tratar documentos tais como as historias de vida, estatisticamente; e eles no podiam ser padronizados. "Podem ser 'inte-ressantes e impressionantes"', comentava Bain, "mas tambm o cinema o ..."9.

    A medida que os educadores foram aumentando a sua preocupao com a mensura-o, quantificao e predio, as estratgias qualitativas tais como a "investigao em pri-meira mo", a utilizao de documentos pessoais e a preocupao do investigador de campo com o contexto social tornaram-se menos relevantes para os educadores (Peters, 1937). Alm do mais, como j referimos anteriormente, os psiclogos dominaram a investigao educacional, e estes eram decididamente experimentalistas (Becker, 1983).

    Existe, possivelmente, uma outra razo para que a sociologia de Chicago tenha tido pouco impacto no desenvolvimento da sociologia da educao. Vamos mencion-la breve-mente, na esperana de que os historiadores venham a investig-la com mais cuidado. Entre 1893 e 1935, mais de uma centena de dissertaes de doutoramento foram realizadas no Departamento de Sociologia de Chicago. Contudo, s duas delas se relacionavam com a educao (Fris, 1967)l0. Se bem que um maior nmero de dissertaes de mestrado incidissem sobre a educao", estas constituam s uma pequena percentagem dos tpicos. Assuntos mais representados foram a socializao, a vida comunitria, a juventude, o tra-balho e a famlia. Ainda que estes tpicos possam reflectir a educao, no sentido mais amplo do termo, a sua componente mais profissional passou quase despercebida.

    Em parte, esta falta de interesse podia reflectir o carcter nefito da sociologia da edu-cao. No jantar anual da Sociedade Americana de Sociologia, em 1927, Ellsworth Fris "aproveitou a ocasio para chamar a ateno dos membros presentes para a importncia do campo da sociologia da educao, solicitando-lhes apoio na tarefa de alertar os soci-logos para os vrios problemas inerentes a este campo" (Journal of Educational Socio-logy, 1927,1:7). S recentemente que as palavras educao e sociologia tinham surgido juntas.

    Ainda que a quantificao representasse a tendncia dominante no tocante sociologia da educao (Peters, 1937; Snedden, 1937), apareceram algumas excepes, particu-larmente o trabalho de Willard Waller (Willower e Boyd, 1989). Waller obteve o seu mestrado com Ellsworth Fris no Departamento de Sociologia de Chicago, sendo a sua abordagem da sociologia da educao emprica mas "antiquantitativa", baseando-se num contacto directo com o mundo social, e preocupado com as relaes entre as partes e o todo. A importncia de Waller para a investigao qualitativa deve-se essencialmente actualidade da sua obra clssica Sociology ofTeaching (Waller, 1932).

    Na Sociology of Teaching, Waller baseou-se em entrevistas em profundidade, em his-trias de vida, na observao participante, no registo de casos, em dirios, cartas e outros documentos pessoais, para descrever o mundo social dos professores e seus alunos. Para Waller, a ideia base do livro era a crena de que "as crianas e os professores no consti-tuem inteligncias incorpreas, nem mquinas de ensino e de aprendizagem, mas sim seres humanos integrais, enlaados num labirinto complexo de interconexes sociais.

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  • A escola um mundo social por ser habitada por seres humanos" (Waller, 1932, p. I). Waller recorreu aos mtodos da "antropologia social", do "conto realista" e daquilo que hoje em dia designaramos por investigao qualitativa. O seu objectivo era o de auxiliar os professores a tomarem conscincia das realidades sociais da vida escolar, sentindo que, para alcanar este objectivo, tinha de ser realista e concreto:

    "Ser concreto significa apresentar os materiais de forma a que os per-sonagens no percam a sua qualidade de pessoas, nem as situaes a sua realidade humana intrnseca. A sociologia realista tem de ser concreta. No meu caso pessoal, esta preferncia pelo concreto levou a uma des-crena relativa nos mtodos estatsticos, que me pareceram de pouca utili-dade para os meus propsitos. Possivelmente, a compreenso da vida humana avanar tanto pelo estudo directo dos fenmenos sociais como pelo estudo dos smbolos numricos que so abstrados desses mesmos fenmenos."

    Para Waller era o "tomar conscincia" que devia orientar o mtodo cientfico, e no o contrrio (Waller, 1934).

    A importncia do trabalho de Waller sobre a vida social das escolas e dos seus interve-nientes reside no s na fora e rigor das suas descries, mas tambm nos conceitos socio-lgicos que utilizou. Entre estes era proeminente o conceito de W. I . Thomas de "defini-o da situao" (Thomas, 1923), um conceito claramente interactivo, que sugere que as pessoas examinem e "definam" as situaes antes de agirem sobre elas. Estas "defini-es" so exactamente o que torna as situaes reais para ns. Outra base importante do trabalho de Waller foi a ideia de Coolley de que eram as "inter-relaes dramticas" que constituam o trao distintivo do conhecimento social. Recorrendo metfora do jogo de tnis, Cooley escreveu que um jogador necessita sempre de algum do outro lado da rede para devolver a bola; no possvel jogar tnis sozinho (Cooley, 1927). O mesmo se passa com o crescimento pessoal e com a dialctica da compreenso social.

    DOS ANOS TRINTA AOS ANOS CINQUENTA

    Com poucas excepes de peso, e mesmo que os antroplogos culturais americanos tivessem continuado o seu trabalho (Marcus e Fisher, 1986), alguns acadmicos vem a investigao realizada entre os anos trinta e os anos cinquenta como um hiato da abordagem qualitativa. Podem assumir-se diversas perspectivas relativamente a esta posio, dependendo do modo como se define investigao, dos enviesamentos acad-micos e polticos de cada um e das fontes histricas que se utilizam. E sempre possvel lazer incluses e excluses. Por exemplo, os historiadores da investigao qualitativa nunca incluram Freud e Piaget entre os criadores da abordagem qualitativa, contudo, ambos se basearam em estudos de caso, observaes e entrevistas em profundidade.

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  • H qualquer coisa no trabalho destes dois homens que leva os historiadores da abordagem qualitativa a exclu-los deste domnio. Porm, os acadmicos de um campo diferente, a psicologia, poderiam incluir estes personagens numa discusso da psicologia qualitativa. Do nosso ponto de vista, no obstante os mtodos qualitativos no terem constitudo ins-trumentos populares de investigao durante estas dcadas, eles desenvolveram-se e melhoraram. De certa forma, a tradio floresceu; aquilo que essencialmente se modificou foram as pessoas que a utilizavam e os locais onde era utilizada (pelo menos durante os anos trinta e quarenta). A medida que relatamos os acontecimentos desses anos tentare-mos permanecer conscientes dos aspectos histricos que so tradicionalmente tomados em considerao pelos socilogos e antroplogos, bem como aqueles que no o so. O que aconteceu investigao qualitativa durante algumas dcadas, antes de voltar a surgir em fora nos finais dos anos sessenta?

    A influncia do departamento de sociologia de Chicago declinou durante os anos trinta, por uma variedade de razes. A Grande Depresso afectou o financiamento dos pro-jectos de investigao e o dinheiro de Laura Spelman Rockefeller, que tinha sido utilizado no financiamento dos estudos da comunidade de Chicago, deixou de estar disponvel. A Depresso teve igualmente outro efeito: transferiu a preocupao dos socilogos pelos imigrantes americanos e outras questes tnicas, preocupao at ento dominante na escola de Chicago, para os problemas do desemprego macio. Desacordos significativos entre os socilogos americanos relativamente a questes polticas e metodolgicas, bem como a reforma ou morte de muitas das figuras principais de Chicago, desempenharam um papel importante neste hiato. (Para uma discusso interessante destas questes, ver Wiley, 1979.) Apesar de tudo isto, os alunos da Escola de Chicago continuaram a desem-penhar um papel importante. Particularmente, Everett C. Hughes desenvolveu o campo da sociologia das profisses, tendo os seus alunos se transformado nos lderes da investiga-o qualitativa durante os anos cinquenta, muitos deles dedicando-se ao estudo de ques-tes educacionais (Becker, Geer, Hughes e Strauss, 1961; Becker, Geer e Hughes, 1968; Geer, 1973). Herbert Blumer criou o termo interaccionismo simblico em 1937, desenvol-vendo-o de forma significativa. A Escola de Chicago tambm influenciou os antroplogos sociais.

    Um campo amplamente reconhecido da utilizao continuada de abordagem qualita-tiva foi o trabalho desenvolvido pelos antroplogos sociais, que transportaram os mto-dos de campo que tinham utilizado no estrangeiro para os estudos conduzidos na cultura americana. Um destes primeiros casos foi o famoso Yankee City Series, conduzido sob a orientao de W. Lloyd Warner, aps ter regressado de estudar os aborgenes na Austrlia (Warner e Lunt, 1941). Um estudo de monta, este que tentou penetrar na cultura e vida de uma comunidade moderna. A investigao iniciou-se em 1930, se bem que os resul-tados, publicados em seis volumes, s tivessem sido dados estampa em 1941. Os inves-tigadores de Yankee City reconheceram a sua dvida para com os socilogos de Chicago

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  • (Warner e Lundt, 1941, p. 4), explicando que tinham seleccionado como objecto de estudo uma comunidade pequena, para que no fossem necessrias vrias geraes de investigadores para se alcanar os objectivos: compreender o efeito da comunidade no indivduo, explorar a forma como a comunidade se manifesta atravs dos seus membros individuais e descrever detalhadamente a natureza da comunidade. Uma parte deste tstudo debruou-se sobre a educao em Yankee City, particularmente sobre os aspectos lOciais da escolaridade.

    Outros estudos importantes sobre a comunidade que foram conduzidos durante este perodo, e que recorreram total ou parcialmente aos mtodos qualitativos, foram os estu-ilos dos Lynds sobre Middletown (Lynd e Lynd, 1929, 1937), que tinham partes significa-tivas sobre educao, e o Street Comer Society de Whyte, um estudo sobre a vida entre os homens italianos pobres de Boston (Whyte, 1955). O estudo de Whyte, publicado origi-nalmente em 1943, foi reeditado em 1955, incluindo uma descrio extraordinria da metodologia utilizada12.

    Estes esforos, bem como outros estudos etnogrficos da poca (Davis e Dollard, 1940; Davis, Gardner e Gardner, 1941; Davis e Havighurst, 1947; Dollard, 1937; Hol-lingshead, 1949), empreenderam aquilo que Charles Horton Cooley considerou o objec-tivo ltimo das cincias sociais: "Temos como objectivo, presumo, alcanar o significado humano dos processos inerentes s nossas instituies, na medida em que eles se reflec-tem nas vidas de homens, mulheres e crianas" (em Stott, 1973). Contudo, no foram s os socilogos acadmicos e os antroplogos que se dedicaram investigao qualitativa durante este perodo.

    A Depresso nos Estados Unidos deu origem a problemas de monta para a maioria dos cidados, e muitas pessoas, incluindo aquelas que trabalhavam para as agncias governa-mentais, voltaram-se para a abordagem qualitativa com o objectivo de documentar a natu-reza e extenso destes problemas. Por exemplo, a Work Projects Administration (WPA) produziu narrativas informativas. These Are Our Lives era composto por biografias orais e por histrias de vida de trabalhadores negros e brancos de trs Estados do Sul (Federal Writers' Project, 1939). Os seus autores no eram cientistas sociais; eram escritores que necessitavam de emprego, mas o mtodo utilizado sociolgico. Outros exemplos daquilo que hoje em dia designamos por histria oral so: uma histria popular da escra-vatura, uma srie de entrevistas com indivduos que tinham sido escravos, recolhidas em meados dos anos trinta (Botkin, 1945), e ainda um panfleto obscuro, "The Disinherited Speak: Letters from Sharecroppers", publicado, em 1937, pela Southern Tenant Farmers' Union (Stott, 1973). Este documento consistia num conjunto de cartas escritas por mem-bros do sindicato e dirigidas aos respectivos delegados, baseando-se no mesmo tipo de documentos que Thomas e Znaniecki (1927) utilizaram no seu monumental estudo, The Polish Peasant in Europe and America.

    De igual modo, o documentarismo fotogrfico incidindo sobre as dimenses do sofrimento dos americanos sem posses tambm se desenvolveu (ver, por exemplo, Evans, 1973; Gutman, 1974; e Hurley, 1972)13. Durante este perodo, os americanos sentiam-se

    IQE-3 33

  • Primeira classe, perto de Montezuma, Gergia

    atrados pela abordagem naturalista na literatura, no jornalismo, na fotografia e na investi-gao no acadmica, porque esta documentava de forma personalizada e detalhada o que a Depresso significava para um grande nmero de americanos - o trabalhador rural do Sul, o trabalhador do Norte e os sem-abrigo de Okie14.

    Nos anos quarenta, Mirra Komarovsky, uma sociloga que tinha publicado um dos dois estudos qualitativos mais conhecidos sobre a Famlia e a Depresso (Komarovsky, 1940; ver igualmente Angell, 1936), terminou um estudo sobre as mulheres no ensino superior, que viria a constituir um documento importante para o movimento feminista, no incio dos anos setenta. Recorrendo a uma abordagem qualitativa, conduziu oitenta entrevistas em profundidade com mulheres que estudavam no Barnard College e estudou o efeito dos valores culturais nas ati tudes das mulheres face aos papis psicossexuais, sublinhando a dificuldade por elas encon trada na conciliao do "feminino" com o "bem-sucedida" (Komarovsky, 1946).

    Para a investigao qualitativa, os anos cinquenta pareciam, primeira vista, continuar negros; contudo, no foi a investigao qualitativa em educao que beneficiou com o Cooperative Research Act. Ainda assim, verificaram-se alguns desenvolvimentos que pro-moveram e fizeram avanar a investigao qualitativa em educao. Mesmo que a aborda gem qualitativa nos anos cinquenta no possa, de modo algum, ser considerada dominante, um conjunto de desenvolvimentos aliaram-se para lhe dar uma alma nova.

    O trabalho dos antroplogos culturais pode j ser identificado ao longo dos anos cinquenta. O interesse dos antroplogos pela educao aumentou. De novo, recorrendo aos mtodos qualitativos, os antroplogos estudaram a educao no incio da dcada de

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  • Uma me negra ensinando, em casa, os nmeros e o alfabeto aos seus filhos, 1939

    cinquenta15 e escreveram sobre o que Philip Jackson (1968) viria a designar, uma dcada mais tarde, "o currculo escondido" - as mensagens implcitas sobre socializao, para alm das explcitas, que a escola transmite s crianas. Mes Henry importou os mtodos que tinha utilizado no Brasil, Argentina e Mxico para as escolas primrias de Chicago (Henry, 1955b, 1957), articulando-os com o seu interesse relativo ao modo como as pessoas comunicam (Henry, 1955a). E esta a investigao que se encontra na base do seu conhecido e popular livro Culture Against Man (Henry, 1963). Durante este perodo, os antroplogos dedicaram-se a explorar as relaes entre as duas disciplinas: realizaram conferncias sobre elas (Spindler, 1955), dedicaram-lhe nmeros especiais de revistas e leccionaram sobre tais relaes (Mead, 1951; Redfield, 1955; Spindler, 1959).

    Nos anos cinquenta verificaram-se igualmente desenvolvimentos significativos dos mtodos qualitativos e de trabalho de campo, tanto a nvel conceptual como metodolgico. I Hirante o perodo da "Sociologia de Chicago", as experincias individuais de investigao raramente mereceram publicao. Os prprios procedimentos de trabalho de campo torna-lam-se objecto de estudo, medida que os investigadores qualitativos se tomaram mais introspectivos relativamente s questes metodolgicas (ver Becker, 1958; Becker e Geer, 1960; Junker, 1960; Whyte, 1955). A Human Organization, publicao da Society for Applied Anthropology, voltou a publicar, em 1957, os artigos sobre mtodos de campo que tinham aparecido na revista nos ltimos dezoito anos (Adams e Preiss, 1960). Os desenvol-vimentos de carcter conceptual avanaram significativamente com a publicao, em 1959, do livro de Erving Goffman, The Presentation ofSelfin Everyday Life, que examinava os

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  • modos como as pessoas tentam manipular a forma como os outros as vem e como estas manobras afectam a realidade social (Goffman, 1959). Goffman designou a sua perspec-tiva por "dramatrgica".

    Outra evoluo metodolgica importante foi o desenvolvimento da entrevista como uma estratgia central de investigao qualitativa. O American Journal of Sociology devotou-lhe um nmero especial em 1956 (ver, por exemplo, Benney e Hughes, 1956; Dexter, 1956). Eram descritos os seus diferentes modos de utilizao, as vantagens e inconvenientes que oferecia e as diferentes formas de que se revestia (ver Hyman, 1954; Jahoda, Deutsch e Cook, 1951; Maccoby e Maccoby, 1954). Alm do mais, os socilogos comearam a tomar em considerao a "entrevista no-directiva", criada pelo psiclogo Carl Rogers para a terapia centrada no cliente (Rogers, 1945, 1951; Whyte, 1960).

    A mais significativa investigao qualitativa em educao, levada a cabo na dcada de cinquenta, foi realizada por Howard S. Becker, um aluno de Everett C. Hughes, no departamento de sociologia de Chicago. Becker entrevistou professores de Chicago, com o objectivo de compreender com maior clareza as caractersticas das suas carreiras e as perspectivas relativas ao seu trabalho. Trs artigos muito conhecidos, e ainda fre-quentemente citados, tiveram origem nesta investigao de doutoramento (Becker, 1951), e foram publicados no Journal of Educational Sociology (Becker, 1925b e 1953) e no American Journal of Sociology (Becker, 1925a). Um estudo de educao mdica que estava destinado a transformar-se num clssico da abordagem qualitativa, Boys in White (Becker et ai, 1961), foi igualmente realizado na dcada de cinquenta. No retrato que traava da cultura estudantil mdica, os investigadores tomaram seriamente em considerao a noo de perspectiva, uma expresso que faz parte do lxico de pala-vras-chave dos investigadores qualitativos. Esta investigao era uma tentativa para compreender aquilo que caracterizava a perspectiva dos estudantes de medicina relati-vamente escola.

    Ainda que no se possa afirmar que a abordagem qualitativa fosse "popular" entre os investigadores educacionais da poca, ela estava viva e de boa sade.

    OS ANOS SESSENTA: UMA POCA DE MUDANA SOCIAL

    Os anos sessenta chamaram a ateno nacional para os problemas educativos, rea-vivaram o interesse pela investigao qualitativa e tornaram os investigadores educa-cionais mais sensveis a este tipo de abordagem. At poca, a maioria dos inves-tigadores que utilizavam a abordagem qualitativa no esclarecimento das questes educativas eram acadmicos treinados em, e pertencentes, outras disciplinas, como a sociologia e a antropologia. Nos anos sessenta, os prprios investigadores educacionais comearam a manifestar interesse por estas estratgias, ao mesmo tempo que as agn-cias estatais comearam a subsidiar a investigao que utilizava mtodos qualitativos.

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  • I I H 1968 j existia um conjunto formalizado de investigadores interessados nas aborda-gens antropolgicas aplicadas investigao educacional, que se materializava no Coun-eil on Anthropology and Education (Erickson, 1986).

    Os anos sessenta foram igualmente uma poca de tumulto e mudana social. A ateno dos educadores voltou-se para a experincia escolar das crianas pertencen-te, a minorias. Uma das razes para este interesse era poltica: enquanto se verificavam tumultos nas cidades e as autoridades procuravam formas de evitar futuros protestos, Ussociava-se o desempenho escolar deficiente com a afirmao de que os negros recebiam M I vios inadequados. Os porta-vozes do movimento dos direitos civis insistiam que era necessrio dar a palavra queles que eram discriminados.

    Queria-se saber como eram as escolas para as crianas que no tinham rendimento e muitos educadores queriam ver o tema discutido. Concomitantemente, surgiram vrios relatos autobiogrficos e jornalsticos relativos vida nas escolas dos guetos (por exem-plo. Decker, 1969; Haskins, 1969; Hemdon, 1968; Kohl, 1967; Kozol, 1967). Estes escri-tores falavam baseados em conhecimentos em primeira mo, tentando captar a essncia de vida quotidiana das crianas que ensinavam. Reconhecendo o pouco que se sabia sobre o processo de escolarizao de diferentes grupos de crianas, os programas federais comearam a subsidiar a investigao relativa a estas questes e que recorria ao que hoje designamos genericamente por mtodos etnogrficos. Os mtodos qualitativos de investi-ao comeavam a ganhar terreno.

    Um dos maiores projectos subsidiados federalmente foi o Project True, levado a cabo cm 1963, no Hunter College, e cujo objectivo era o de compreender diferentes aspectos da vida nas salas de aula urbanas. Os investigadores basearam-se em entrevistas com direc-tores, professores, pais, membros do conselho escolar e membros da comunidade, para avaliarem o processo de integrao na escola (Fuchs, 1966). Recorreram igualmente a entrevistas em profundidade para examinar as experincia de novos professores em esco-las urbanas (Eddy, 1969; Fuchs, 1969). Utilizaram a observao participante para avaliar experincias individuais na sala de aula (Roberts, 1971), em escolas primrias (Moore, 1967) e em escolas urbanas integradas no contexto comunitrio (Eddy, 1967). Este grupo de socilogos e antroplogos entendia o seu trabalho como exploratrio. Enquanto grupo, mantinham a atitude de que a educao tinha fracassado para as crianas mais pobres, de que as cidades estavam em crise e de que estes problemas antigos tinham de ser estudados de formas novas.

    Dois importantes estudos subsidiados iniciaram-se nos anos sessenta e utilizaram uma abordagem qualitativa. Um deles inclua um estudo comparativo das escolas urbanas e foi realizado pela famosa antroploga Eleanor Leacock (1969). Este trabalho, que viria a transformar-se num clssico sobre os efeitos da escola e das expectativas dos professores nas vidas das crianas, constitui, tal como o trabalho de Becker na dcada anterior, uma referncia tanto para os socilogos como para os antroplogos. O outro estudo que utili-zou mtodos de trabalho de campo incidiu sobre questes raciais na educao, em escolas

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  • primarias de St. Louis, e foi dirigido por Mes Henry (ver Gouldner, 1978; Rist, 1970, 1973). Foi em funo da sua participao neste projecto que Ray Rist, um importante investigador qualitativo em educao, iniciou as suas investigaes.

    A audincia para a investigao qualitativa em educao cresceu na dcada de ses-senta. No se encontrando ainda firmemente estabelecido como um paradigma legtimo de investigao, o seu estatuto causou mltiplos problemas aos alunos que o pretendiam utilizar no seu trabalho. Mas as abordagens qualitativas provocavam entusiasmo. Quais as razes para a abordagem qualitativa em educao ter comeado a sair de um longo perodo de hibernao neste preciso perodo histrico? Podemos apreciar algumas delas.

    Em primeiro lugar, os tumultos sociais da poca indicavam claramente que no se sabia o suficiente sobre o modo como os alunos experimentavam a escola. Diversos rela tos expunham publicamente, em termos de educao, o mesmo que o jornalismo de inves-tigao tinha exposto, no sculo dezanove, relativamente s condies de vida sociais: desconhecemos o modo como vive grande parte da populao. Eram necessrias descri-es esclarecedoras. Alguns investigadores pretendiam comear por observar a vida quo-tidiana nas escolas e entrevistar os professores de melhor reputao (McPherson, 1972). A descrio qualitativa estava na ordem do dia.

    Em segundo lugar, os mtodos qualitativos ganharam popularidade devido ao reconhe-cimento que emprestavam s perspectivas dos mais desfavorecidos e excludos social-mente - os que se encontravam "do outro lado". A nfase qualitativa na importncia das perspectivas de todos os intervenientes num contexto desafia o que tem sido designado por "hierarquia de credibilidade" (Becker, 1970c): a ideia de que as opinies e perspecti-vas daqueles que se encontram em posies de comando so mais valiosas do que as dos outros. Como parte integrante de um processo de investigao tpico, os investigadores qualitativos que estudam a educao solicitavam a opinio daqueles que nunca eram valo rizados ou representados. Os mtodos de investigao qualitativa representavam o esp rito democrtico em ascendncia na dcada de sessenta. O clima da poca era propcio ao renovar do interesse pelos mtodos qualitativos, assim, surgiu a necessidade de professores experientes neste tipo de metodologia de investigao, abrindo-se caminho a inovaes e desenvolvimentos metodolgicos.

    No era exclusivamente o clima poltico da poca que era propcio. A sociologia e a antropologia, enquanto disciplinas acadmicas, tambm se encontravam em modificao. Os antroplogos constataram que um menor nmero de comunidades do Terceiro Mundo estavam na disposio de se submeterem a ser investigadas; consequentemente, os financia mentos diminuram. O nmero de povos que no tinham sido afectados de forma significa tiva pelos contactos com o mundo ocidental tinha diminudo, sabotando o empreendimenlo de descrever as diferentes culturas do mundo antes de serem "estragadas". Progressiva mente, os antroplogos viraram-se para o estudo das reas urbanas na sua prpria cultura.

    Na dcada de sessenta, o campo da sociologia, que tinha sido dominado pelas ideias da teoria estrutural-funcional durante vinte anos, comeou a virar-se para os escritos dos

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  • I. iiniiKiiologistas. Grupos de investigadores comearam a praticar o que viria a ser co-nhecido por etnometodologia. Outros autores organizaram-se volta da tradio j estabe-I'-i ida da interaco simblica. O interesse pelos mtodos qualitativos foi estimulado pela publicao de um conjunto de livros sobre teoria e mtodos. The Human Perspective in

    iology (Bruyn, 1966) apresentava as bases filosficas e metodolgicas da observao participante, enquanto que The Discovery of Grounded Theory (Glaser e Strauss, 1967) Hprescnlava o processo de recolha e anlise de dados descritivos como base para elaborar |0oi ia, esforos que ilustravam claramente o facto da investigao qualitativa no se limi-lai ii ser uma actividade meramente descritiva. Foram igualmente publicadas colectneas le tirtigos detalhados, relativos a questes mais especficas (Filstead, 1970; McCall e '.iiiinions, 1969). Desenvolveu-se uma audincia para aqueles que escreviam com base n.i abordagem qualitativa, tendo aumentado significativamente o nmero de artigos quali-tativos (Bogdan e Taylor, 1975; Carini, 1975; Denzin, 1987; Georges e Jones, 1980; Schwartz e Jacobs, 1979; Wolf, 1979).

    OS ANOS SETENTA: INVESTIGAO QUALITATIVA EM EDUCAO, A DIVERSIDADE

    Mesmo que a investigao qualitativa ainda no tivesse atingido a idade adulta, j eslava a sair da adolescncia. Menos suspeitas para os investigadores educacionais, a observao participante e, particularmente, a etnografia ganhavam um nmero crescente de adeptos. Na dcada de sessenta, a perspectiva qualitativa era ainda marginal em edu-cao, s praticada pelos mais heterodoxos. No incio dos anos setenta, ainda que os mtodos qualitativos no fossem, de modo algum, os dominantes, j no podiam ser vis-tos como marginais. As agncias federais de financiamento, tais como o National Insti-lute of Education, manifestaram um enorme interesse por propostas que fizessem uso das abordagens qualitativas, apoiando investigaes qualitativas de carcter avaliativo.

    Verificou-se, nas comunicaes apresentadas em associaes profissionais, como a American Educational Research Association, um aumento das que recorriam aos mtodos qualitativos, tendo estes mtodos obtido um reconhecimento crescente em campos como a investigao avaliativa (ver Guba, 1978; Patton, 1980).

    Contudo, prosseguiam os debates metodolgicos entre os investigadores quantitativos c qualitativos. Defensores de todas as perspectivas participaram nas discusses: "qualita-tivos" versus "quantitativos", "jornalismo" versus "investigao" e "cientfico" versus "intuitivo". Verificou-se uma mudana de atitude dos investigadores quantitativos relati-vamente investigao qualitativa, que passou de desdm para "dtente" (Rist, 1977). As tenses entre os investigadores qualitativos e quantitativos diminuram na sua expresso. I )e facto, instaurou-se um clima de dilogo entre os dois grupos. Alguns investigadores que ocupavam posies de grande proeminncia nos crculos quantitativos comearam a explorar a abordagem qualitativa e a defender a sua utilizao (i.e., Bronfenbrenner, 1976;

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  • Campbell, 1978; Cronbach, 1975; Glass, 1975). Grande nmero de investigadores educa-cionais comearam a sentir que as promessas da investigao quantitativa relativamente s suas possibilidades (os problemas que conseguia resolver) tinham atingido o limite. Os mtodos quantitativos, baseados no paradigma cientfico tradicional, no tinham cum-prido. Com a flexibilizao das atitudes, as abordagens qualitativas apoderaram-se da imaginao das pessoas (ver Scriven, 1972). Desta forma, a investigao qualitativa explodiu em educao. Efectuar revises de literatura, at data uma tarefa relativamente simples, tornou-se cada vez mais complexo, devido parcialmente diversidade crescente de mtodos, estilos e assuntos.

    Alguns investigadores qualitativos em educao efectuaram "trabalho de campo" observao participante, entrevistas em profundidade ou etnografia - despendendo grandes quantidades de tempo nos locais de investigao e com os sujeitos ou documentos de inves-tigao. Registaram os seus apontamentos por escrito como modo de preservar os dados a analisar, incluindo grande quantidade de descries, registos de conversas e dilogos. A investigao educacional possui muitos exemplos deste tipo. As observaes em escolas deram origem, por exemplo, a estudos sobre integrao racial (Metz, 1978; Rist, 1978), a vida de um director de escola (Wolcott, 1973), a experincia de professores em escolas rurais (McPherson, 1972) e inovaes na escola (Sussmann, 1977; Wolcott, 1977). Os investigadores educacionais tambm utilizaram a entrevista em profundidade para estudar as crianas excludas da escola (Cottle, 1976a), o sistema de transportes escolares (Cottle. 1976b), e os papis das mulheres como dirigentes educativos (Schmuck, 1975).

    Contudo, alguns investigadores educacionais sentiram que os estudos de campo con-vencionais eram "demasiadamente descritivos" (Mehan, 1978) ou que a investigao etnogrfica deveria assumir uma atitude mais "emprica" nos estudos sobre a escola (McDermott, 1976). Estes investigadores pertenciam a um grupo que defendia o que pode ser designado como uma abordagem mais empirista ao estudo das interaces humanas. Consequentemente, a "etnografia constitutiva" utilizava o vdeo e o filme como suportes de registo dos actos e gestos das pessoas (Mehan, 1978, 1979). Os investigadores que utilizavam este tipo de abordagem estavam preocupados com o facto de, frequentemente, as descries dos observadores reflectirem mais as noes destes do que as dos participantes, e tambm com o facto dos participantes no serem capazes de comunicar suficiente informao ao investigador (Florio, 1978). Portanto, tornava-se mais adequado a gravao mecnica dos acontecimentos. Investigadores que trabalharam neste registo foram Erickson (1975) e o sociolinguista Shuy (Shuy e Griffin, 1978; Shuy, Wolfram e Riley, 1967). Ainda assim, estas abordagens variavam no respectivo grau de intruso e no modo como eram estruturadas.

    Variava igualmente o modo como a investigao era conduzida e apresentada. Uma diferena estilstica residia na tenso entre as abordagens investigao, cooperativa versus conflituosa. Os autores que defendiam a perspectiva cooperativa defendiam que os investigadores de campo deveriam ser o mais autnticos possvel com os sujeitos que

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  • est Lidavam. Agarravam-se crena bsica e optimista de que as pessoas facilitariam a investigao sempre que lhes fosse possvel. Os seguidores desta perspectiva eram aque-les que se consideravam herdeiros da Escola de Chicago (ver Bogdan e Taylor, 1975). Por sua vez, os defensores da perspectiva conflituosa entendiam que muitos sujeitos leriam vontade de encobrir os seus comportamentos reais; os defensores da autenticidade e da investigao aberta obteriam menos informao. Particularmente se pretendesse penetrar no mundo dos grandes negcios, do crime organizado ou de grupos considerados desviantes, o investigador deveria ser circunspecto e no ser autntico na justificao da sua presena. Esta perspectiva era claramente defendida por Douglas (1976).

    Outra diferena estilstica residia na atitude do investigador relativamente aos infor-madores ou sujeitos a investigar. Determinado grupo, igualmente herdeiro da Escola de Chicago, pode afirmar-se ter tido uma perspectiva "emptica"; ou seja, defendia a simpa-lia e a compreenso face s pessoas estudadas. Deste modo, muitas das suas publicaes patenteavam a humanidade de vidas que, primeira vista, pareciam destitudas de sentido. Os defensores desta perspectiva eram, de facto, acusados de se identificarem excessiva-mente com aqueles que estudavam, quer se tratasse de indivduos desviantes, marginais ou pessoas influentes. No outro extremo deste contnuo encontravam-se aqueles cuja posio parecia reflectir a noo de que "a sociologia do que quer que fosse era ridcula". Esta perspectiva claramente reflectida no grupo designado por etnometodlogos (ver, por exemplo, Garfinkel, 1967; Mehan e Wood, 1975). Os etnometodlogos estudavam o modo como as pessoas geriam os rituais dirios das suas vidas, deixando, com alguma frequncia, os sentimentos delas de lado.

    A etnometodologia uma abordagem relativamente nova investigao qualitativa, cujas bases podem ser atribudas aos filsofos fenomenologistas. Harold Garfinkel (1967) e os seus colegas utilizaram esta metodologia e cunharam o termo, em meados da dcada de cinquenta. Durante as dcadas de sessenta e de setenta, tanto a abordagem como a expresso cresceram em popularidade, mas as pessoas no tinham a certeza de estarem a falar da mesma coisa. Garfinkel, referindo-se s confuses sobre a expresso em 1968, afirmou: "Penso que, na realidade, o termo pode ser errado. Adquiriu uma vida prpria" (Hill e Crittenden, 1968). Apesar de estar a aumentar em popularidade, no dei-xava de estar igualmente sob ataque. Os acadmicos discutiam se se tratava de algo ver-dadeiramente diferente das outras abordagens, tal como a interaco simblica. Os auto-res que escreviam dentro desta orientao eram criticados por serem obscuros nos seus escritos e utilizarem um estilo esotrico (Coser, 1979). Alm do mais, alguns dos segui-dores da etnometodologia tinham tendncia para utilizar tcnicas de recolha de dados que eram consideradas irreverentes em termos ticos, manifestando falta de preocupao com o sofrimento das pessoas. Tal facto levou a uma atitude de antagonismo por parte dos praticantes mais tradicionais da investigao qualitativa, muitos dos quais utilizavam uma abordagem humanista na investigao e tinham uma posio poltica de carcter liberal.

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  • (>S ANOS OITENTA E NOVENTA: (!< )MPUTADORES, FEMINISMO E A INVESTIGAO QUALITATIVA PS-MODERNA

    Muitas das questes debatidas pelos investigadores educacionais na dcada de setenta permaneceram como tpicos fulcrais na dcada de noventa. Os tericos da educao ainda discutem sobre as diferenas entre a investigao quantitativa e qualitativa e se as duas podem e devem ser articuladas (Smith, 1983; Stainback e Stainback, 1985; Howe, 19X8; Firestone, 1987; Smith e Heshusius, 1986). Permanecem, de igual modo, algumas tendncias. Nos anos oitenta, o nmero de publicaes para artigos qualitativos aumen-tou. Tambm na dcada de oitenta e, presentemente, na de noventa, se verificou o aumento desta tendncia. Surgiu uma nova revista, exclusivamente dedicada publicao de investigao qualitativa em educao (International Journal for Qualitative Studies in Idiication) e vrias editoras livreiras iniciaram sries de livros com uma preocupao semelhante (Transaction Press, Falmer Press, Sage Publications). Desde o acadmico American Educational Research Journal at revista de grande tiragem Phi Delta Koppan, os responsveis pelas publicaes peridicas de educao solicitam activamente I apresentao de manuscritos baseados em investigao qualitativa. Persiste a tendncia de alguns autores que praticam investigao qualitativa em educao para tomar mais for-mal a anlise de dados (e.g., Miles e Huberman, 1984), ainda que esta esteja em conflito Com a posio de alguns ps-modemos que defendem uma abordagem mais criativa, aberta e "experimentalista" na escrita e anlise de dados.

    Para alm deste prolongamento de questes das dcadas passadas, observaram-se nos ltimos quinze anos modificaes importantes e novos desenvolvimentos na investigao qualitativa em educao. Uma inovao significativa, de carcter mais tcnico do que con-ceptual, foi a utilizao do computador na recolha, gesto e anlise dos dados qualitativos ("Computers and Qualitative Data", 1984; Clarck, 1987; Pfaffenberger, 1988; Shelly e Sibert, 1986; ver igualmente os escritos de Gerson sobre computadores nos nmeros 1985--1988 de Qualitative Sociology). Antes da dcada de oitenta muito pouco se tinha feito neste domnio. Hoje em dia, os investigadores qualitativos registam os seus apontamentos em processadores de texto, muitos deles utilizando um dos vrios bons programas existen-tes (Ethnograph, TAP, Qualpro; QUALOG um conjunto de programas de mainframe uti-lizados para anlise) para ordenar os muitos pargrafos de dados produzidos num estudo qualitativo. Sendo este tipo de tecnologia particularmente importante para projectos de larga escala, tambm no o deixa de ser para muitos esforos individuais, para os quais as capacidades de muitos programas so essenciais. Discutiremos este tipo de inovaes mais detalhadamente no captulo sobre anlise de dados.

    A teoria e prtica feministas tambm influenciaram, de vrias formas, a investigao qualitativa na dcada de oitenta. Em primeiro lugar, o feminismo influenciou o tipo de sujeitos que os investigadores qualitativos (feministas) estudaram. Os papis psicossexuais emergiram como um tpico central em muitos projectos qualitativos de investigao (Warren, 1988). Recorrendo observao participante, anlise de documentos, inves-

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  • Rosalie Wax na reserva de Pine Ridge, Dakota do Sul, 1963, com os membros da famlia Sioux de que fala em Doing Fieldwork.

    tigao sobre histrias de vida e s entrevistas em profundidade, os investigadores quali-tativos tomaram seriamente em considerao actores sociais e categorias de comporta-mento previamente ignorados. O feminismo afectou o contedo das investigaes medida que os investigadores iam estudando a forma como os papis psicossexuais influ-enciavam a construo do mundo, enquanto professoras do sexo feminino (Biklen, 1987, 1985, no prelo; Middleton, 1987; Acker, 1989; Weiler, 1988), providenciadoras de sus-tento (DeVault, 1990), estudantes em subculturas femininas punk (Roman, 1988), leitoras de novelas (Radway, 1984) e consumidoras e intrpretes de conhecimento mdico sobre o corpo e a reproduo (Martin, 1987). As feministas tiveram um papel importante enquanto impulsionadoras da investigao sobre as emoes e os sentimentos (Hochschild, 1983). As investigadoras feministas nas cincias sociais foram atradas pelos mtodos

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  • i|lliilitutivos porque estes possibilitavam que as interpretaes das mulheres assumissem I I I I I . I posio central. Em segundo lugar, o feminismo afectou igualmente as questes metodolgicas. Alguns destes efeitos surgiram do questionar geral sobre a natureza dos mtodos de inves-ligito feministas nas cincias e nas cincias sociais (e.g., Harding, 1987), mas a prtica tambm promoveu mudanas. Por exemplo, Oakley (1981) centrou-se sobre a questo do poder na relao de entrevista. Smith (1987) desenvolveu a "etnografia institucional" I nino unia estratgia feminista de investigao, para desenvolver uma sociologia para as mulheres em vez de uma sociologia de homens. Para muitos, a questo mais importante i.i a de saber se as modificaes trazidas pelo feminismo metodologia eram to absolu-tas e significativas que tinham modificado o mtodo ao ponto de ser mais adequado design-lo por feminista e j no qualitativo. Para outros, a questo mais importante tinha que ver com a prtica metodolgica; ou seja, como que o feminismo influencia o modo | oino a investigao feita. Discutiremos algumas destas questes no captulo II I .

    Independentemente da forma que utilizemos para abordar a interseco do feminismo | "ni a investigao qualitativa, as influncias mtuas so sempre muito significativas. As leiiimistas contriburam para que no campo se se passasse a preocupar mais com as rela-es que os investigadores estabelecem com os seus sujeitos (DeVault, 1990), bem como p.ua um aumento do reconhecimento das implicaes polticas da investigao.

    Rivalizando em importncia com os contributos do feminismo para a investigao qualitativa nas dcadas de oitenta e noventa - nalguns casos como aliado e noutros como opositor - encontram-se os contributos dos socilogos e antroplogos ps-modernos (Marcus e Cushman, 1982; Marcus e Fisher, 1986; Clifford, 1983, 1988; Clifford e Mar-I us, Van Maanen, 1988; Denzin, 1989). O ps-modemismo (tambm designado por ps-cst naturalismo e desconstrucionismo) representa uma posio intelectual que reivindica o facto de vivermos num perodo "ps"-moderno, um tempo histrico real que difere do modernismo. Durante o modernismo, tentava-se explicar a condio humana e o pro-cesso pela crena nas virtudes do racionalismo e da cincia, pela ideia de um "eu" est-vel, consistente e coerente e pelo recurso a abordagens positivistas do conhecimento -I rencas que se tinham mantido firmes no Ocidente desde a "poca das luzes". Por sua Vez, os ps-modemistas defendem que este tipo de fundamentos j no faz sentido. A era nuclear afastou a possibilidade do progresso humano baseado no racionalismo e levou as pessoas, em muitas reas da vida humana, a questionar a integridade do progresso. A arquitectura, a arte, a moda e as produes acadmicas, todas elas foram tocadas pelo ps-modemismo.

    Os ps-modemistas defendem s ser possvel conhecer algo tendo como referncia uma determinada perspectiva. Tal posio desafia a possibilidade de alcanar a verdade atravs do adequado, ou seja, cientfico uso da razo. No possvel raciocinar ou con-ivptualizar para alm da localizao do eu num contexto histrico-social especfico; desta forma, esta perspectiva enfatiza a interpretao e a escrita como caractersticas centrais da

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  • investigao. Por exemplo, Clifford e Marcus (1989) chamaram sua colectnea sobre a potica e poltica da etnografia Writing Culture. Uma das principais influncias do ps--modernismo nas metodologias qualitativas foi a modificao no entendimento da natu-reza da interpretao e no papel do investigador qualitativo como um intrprete. Ao invs de entenderem o material escrito - textos, manuscritos, artigos e livros - pelo seu valor facial, os investigadores qualitativos ps-modemos tomaram-no como objecto de estudo. Os ps-modemos tornam problemtico o entendimento de determinado trabalho como "cientfico", reflectindo sobre quais as convenes e atitudes que fazem determinada forma de entender um trabalho, o discurso da cincia, cientfico. Examinaremos as impli-caes desta posio em maior detalhe, no captulo VI . O ps-modernismo comenta e cri-tica medida que o conhecimento se constri.

    Esta grande diversidade entre os investigadores qualitativos que se dedicam a estudar as questes educacionais reflecte a maturidade e sofisticao crescentes da abordagem. Contudo, apesar das diferenas serem reais, existem pontos comuns nos diferentes regis-tos qualitativos. Na seco seguinte procedemos listagem destas caractersticas comuns.

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  • 0

    Caractersticas da investigao qualitativa

    Alguns investigadores movimentam-se nas escolas munidos de blocos de aponta-mentos para registarem os dados. Outros recorrem ao equipamento vdeo na sala de aula e no seriam capazes de conduzir uma investigao sem ele. Outros ainda

    elaboram esquemas e diagramas relativos aos padres de comunicao verbal entre alunos e professores. No entanto, todos eles tm em comum o seguinte: o seu trabalho corres-ponde nossa definio de investigao qualitativa e incide sobre diversos aspectos da vida educativa. Na presente seco vamos reflectir sobre os pontos comuns e mostrar

  • tacto directo. Alm do mais, os materiais registados mecanicamente so revistos na sua totalidade pelo investigador, sendo o entendimento que este tem deles o instrumento--chave de anlise. Por exemplo, num importante estudo sobre educao mdica, os investigadores trabalharam numa escola mdica, na qual seguiam os alunos para as aulas, laboratrios, enfermarias e outros locais utilizados para situaes de encontros sociais: refeitrios, lares e salas de estudo (Becker et ai, 1961). Num estudo sobre estratificao educacional na Califrnia (Ogbu, 1974), foram necessrios 21 meses para que o autor fosse capaz de completar o trabalho de campo: visitas, observaes e entre-vistas a professores, alunos, directores, famlias e diferentes membros da gesto escolar.

    Os investigadores qualitativos frequentam os locais de estudo porque se preocupam com o contexto. Entendem que as aces podem ser melhor compreendidas quando so observadas no seu ambiente habitual de ocorrncia. Os locais tm de ser entendidos no contexto da histria das instituies a que pertencem. Quando os dados em causa so pro-duzidos por sujeitos, como no caso de registos oficiais, os investigadores querem saber como e em que circunstncias que eles foram elaborados. Quais as circunstncias hist-ricas e movimentos de que fazem parte? Para o investigador qualitativo divorciar o acto, a palavra ou o gesto do seu contexto perder de vista o significado. Como escreveu deter-minado antroplogo:

    "Se a interpretao antropolgica consiste na construo de uma leitura dos acontecimentos, ento, divorci-la do que se passa - daquilo que em determinado momento espcio-temporal pessoas particulares afirmam, fazem, ou sofrem, de entre a vastido de acontecimentos do mundo - o mesmo que divorci-la das suas aplicaes, tornado-a oca. Uma boa interpretao do que quer que seja - um poema, uma pessoa, uma histria, um ritual, uma instituio, uma sociedade - conduz-nos ao corao daquilo que pretende interpretar." (Geertz, 1973)

    Quer os dados sejam recolhidos sobre interaces na sala de aula, utilizando equipa-mento vdeo (Florio, 1978; Mehan, 1979), sobre educao cientfica, recorrendo entre-vista (Denny, 1978a), ou ainda sobre a desagregao, mediante observao participante (Metz, 1978), os investigadores qualitativos assumem que o comportamento humano significativamente influenciado pelo contexto em que ocorre, deslocando-se, sempre que possvel, ao local de estudo.

    2. A investigao qualitativa descritiva. Os dados recolhidos so em forma de pala-vras ou imagens e no de nmeros. Os resultados escritos da investigao contm citaes feitas com base nos dados para ilustrar e substanciar a apresentao. Os dados incluem transcries de entrevistas, notas de campo, fotografias, vdeos, documentos pessoais, memorandos e outros registos oficiais. Na sua busca de conhecimento, os investigadores qualitativos no reduzem as muitas pginas contendo narrativas e outros dados a smbolos numricos. Tentam analisar os dados em toda a sua riqueza, respeitando, tanto quanto o possvel, a forma em que estes foram registados ou transcritos.

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  • exemplo particularmente significativo da "profecia de auto-realizao" numa sala de aula de um jardim-escola -nos dado por um estudo de observao participante realizado com crianas afro-americanas, em St. Louis. Nos primeiros dias de aulas, as crianas foram divididas em grupos estabelecidos essencialmente com base em critrios socioeconmicos. A professora interagia mais com o grupo de nvel mais elevado, dava-lhes mais privilgios e at lhes permitia disciplinarem o grupo mais desfavorecido. O processo dc interaco diria encontra-se detalhadamente descrito (Rist, 1970). Este tipo de estudo foca-se no modo como as definies (as definies que os professores tm dos alunos, as definies que os alunos tm de si prprios e dos outros) se formam.

    4. Os investigadores qualitativos tendem a analisar os seus dados de forma indutiva No recolhem dados ou provas com o objectivo de confirmar ou infirmar hipteses cons trudas previamente; ao invs disso, as abstraces so construdas medida que os dados particulares que foram recolhidos se vo agrupando.

    Uma teoria desenvolvida deste modo procede de "baixo para cima" (em vez de "cima para baixo"), com base em muitas peas individuais de informao recolhida que so inter-relacionadas. E o que se designa por teoria fundamentada (Glaser e Strauss, 1967). Para um investigador qualitativo que planeie elaborar uma teoria sobre o seu objecto de estudo, a direco desta s se comea a estabelecer aps a recolha dos dados e o passai de tempo com os sujeitos. No se trata de montar um quebra-cabeas cuja forma final conhecemos de antemo. Est-se a construir um quadro que vai ganhando forma medida que se recolhem e examinam as partes. O processo de anlise dos dados como um funil: as coisas esto abertas de incio (ou no topo) e vo-se tomando mais fechadas e especli cas no extremo. O investigador qualitativo planeia utilizar parte do estudo para perceber quais so as questes mais importantes. No presume que se sabe o suficiente para reco-nhecer as questes importantes antes de efectuar a investigao.

    5. O significado de importncia vital na abordagem qualitativa. Os investigadores que fazem uso deste tipo de abordagem esto interessados no modo como diferentes pessoas do sentido s suas vidas. Por outras palavras, os investigadores qualitativos preocupam-se com aquilo que se designa por perspectivas participantes (Erickson, 1986; ver Dobbert, 1982, para uma perspectiva ligeiramente diferente). Centram-se em questes tais como: Quais as conjecturas que as pessoas fazem sobre as suas vidas? O que consideram ser "dados adquiridos"? Por exemplo, em determinado estudo educacional o investigador centrou parte do seu trabalho sobre as perspectivas parentais sobre a educao dos seus filhos. Pretendia saber quais as opinies dos pais sobre as razes para os filhos no terem bom rendimento escolar. Descobriu que os pais que faziam parte do campo de estudo sentiam que os professores no valorizavam as suas opinies sobre os seus prprios filhos, dada a sua pobreza e a sua falta de escolaridade. Os pais acusavam igualmente os professores que consideravam que estes factores significavam necessariamente que os seus filhos no iam ser bons alunos (Ogbu, 1974). Estudou igualmente as perspectivas dos professores e dos alunos sobre as mesmas questes, na

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  • esperana de encontrar pontos comuns, com o objectivo de explorar as suas implicaes para a escolarizao. Ao apreender as perspectivas dos participantes, a investigao qualitativa faz luz sobre a dinmica interna das situaes, dinmica esta que Irequentemente invisvel para o observador exterior.

    ()s investigadores qualitativos fazem questo em se certificarem de que esto a apreen-der as diferentes perspectivas adequadamente. Alguns investigadores que fazem uso do vdeo mostram as gravaes feitas aos participantes para compararem as suas interpreta-M H S com as dos informadores (Mehan, 1978). Outros investigadores podem mostrar rascunhos de artigos ou transcries de entrevistas aos informadores principais. Ainda outros podem conferir verbalmente as suas perspectivas com as dos sujeitos (Grant, 1988). Ainda que se verifique alguma controvrsia relativamente a estes procedimentos, eles reflec