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JJ é uma edição do Clube de Jornalistas >> n.º 69 Jan/Abr 2019 >> 2,50 Euros JORNALISMO E CINEMA O MEDO DA FICÇÃO | MEMÓRIA MITOS E REALIDADES DO TEMPO DA CENSURA | JANELAS PARA O MUNDO LUCÍLIA MONTEIRO HISTÓRIAS DE JORNALISTAS O LOCUTOR DE RÁDIO QUE FOI INFORMADOR DA PIDE | SITES LIÇÕES DO MASSACRE DE CHRISTCHURCH ENTREVISTA FERRO RODRIGUES “Esforço de combate às fake news não pode ser apenas legislativo” QUANDO A COBERTURA MEDIÁTICA CAUSA TRAUMA LUCÍLIA MONTEIRO

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JJ é uma edição do Clube de Jornalistas >> n.º 69 Jan/Abr 2019 >> 2,50 Euros

JORNALISMO E CINEMA O MEDO DA FICÇÃO | MEMÓRIA MITOS E REALIDADESDO TEMPO DA CENSURA | JANELAS PARA O MUNDO LUCÍLIA MONTEIROHISTÓRIAS DE JORNALISTAS O LOCUTOR DE RÁDIO QUE FOI INFORMADORDA PIDE | SITES LIÇÕES DO MASSACRE DE CHRISTCHURCH

ENTREVISTA FERRO RODRIGUES“Esforço de combate às fake newsnão pode ser apenas legislativo”

QUANDO A COBERTURAMEDIÁTICA CAUSA TRAUMA

LUCÍLIA MONTEIRO

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Director

Direcção Editorial

Conselho Editorial

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Secretária de Redacção

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Tratamento deimagem

Impressão

Tiragem deste número

Redacção,Distribuição,

Venda eAssinaturas

Mário Zambujal

Eugénio AlvesPaulo Martins

Fernando CascaisFernando Correia Francisco MangasJosé Carlos de VasconcelosManuel PintoMário Mesquita

José Souto

Palmira Oliveira

CLUBE DE JORNALISTASA produção desta revista sóse tornou possível devido aosseguintes apoios:l Santander Tottal Casa da Imprensal Lisgráfical Fundação Inatel

ImpressEstrada da Ribeirinha,nº 92Pavilhão DAlcolombal de Baixo2705-832 Terrugem

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Clube de JornalistasR. das Trinas, 1271200 LisboaTelef. - 213965774 e-mail:[email protected]

N.º 69 JANEIRO/ABRIL 2018

SUMÁRIO

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS SÓCIOSDO CLUBE DE JORNALISTAS

E AOS ASSOCIADOS DA CASA DA IMPRENSAPERIODICIDADE TRIMESTRAL

Site do CJ www.clubedejornalistas.pt

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ANÁLISE 1 MÉDIA E TRAUMAA dor da gente não sai no jornalA cobertura mediática de acontecimentos trágicospode produzir efeitos danosos a três níveis. Desdelogo, nas vítimas e seus próximos, por avivar o trauma.Mas igualmente no público e nos próprios jornalistas.Por Diana Andringa

ANÁLISE 2 JORNALISMO E CINEMARepórteres e cineastas: o medo da ficçãoJornalista de investigação e docente universitário,Jacinto Godinho debate os laços entre jornalismo e ci -nema, através de uma abordagem tão rigorosa quantoprofunda, sem receio de suscitar controvérsia.Por Jacinto Godinho

MEMÓRIAJORNALISTAS E JORNALISMO NO TEMPODA CENSURA: REALIDADES E MITOSNos 45 anos do 25 de Abril de 1974, é oportuno eimportante mais uma vez evocar, para memória futura,mas também para reflexão actual, o que foi a Censurafascista nas décadas salazarentas até finais de 60 edepois prosseguida, muito toscamente disfarçada, pelomarcelismo. Fernando Correia

HOMENAGEMCarlos Veiga Pereira Por Paulo MartinsJosé Queirós Por Joaquim Fidalgo

ENTREVISTA FERRO RODRIGUES“Esforço de combate às fake news não podeser apenas legislativo”O presidente da Assembleia da República elegeu ofuturo do Jornalismo como um dos temas a debater porocasião do 45.º aniversário do 25 de Abril. EugénioAlves e Paulo Martins

JANELAS PARA O MUNDOVENEZUELA, ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU Por Lucília Monteiro

HISTÓRIAS DE JORNALISTASO LOCUTOR DE RÁDIO QUE FOIINFORMADOR DA PIDE Por Gonçalo Pereira Rosa

SINDICATODEBATER O PAPEL DO ESTADO É URGENTEPor Leonor Ferreira

JORNAL[56] Noticiário [58] Sites[62] Livros

CRÓNICAREPORTAGEM ONTEM E HOJE Por Rui Pacheco

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Colaboram neste número

Carla Martins, Diana Andringa, Fernando Correia,Gonçalo Pereira Rosa, Jacinto Godinho, João MiguelRodrigues, Joaquim Fidalgo, José Frade, José Rocha,

Leonor Ferreira, Lucília Monteiro, Luís Taklim,Mário RuiCardoso, Martins Morim, Miguel Carvalho,

Rui Pacheco e Sofia Branco.

A ortografia dos artigos publicadosnesta revista corresponde à opção

dos respetivos autores.

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MÉDIA E

ANÁLISE 1

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TRAUMA

A cobertura mediática deacontecimentos trágicospode produzir efeitosdanosos a três níveis.Desde logo, nas vítimas eseus próximos, por avivaro trauma. Mas igualmenteno público, pelo medo eangústia que é passível desuscitar, e nos própriosjornalistas, também sereshumanos, expostos adistúrbios mentais, e cujador não é muitas vezesconhecida. DianaAndringa, jornalista quetem investigado a questão,empreende nestas páginasuma reflexão cada vezmais necessária, com aajuda de especialistas,como ela ligados aoCentro de Trauma doCentro de Estudos Sociaisda Universidade deCoimbra. Propõe a criaçãode um núcleoespecialmentevocacionado para o estudoe acompanhamento decasos de Distúrbio deStress Pós-Traumático.

Correspondentes de guerra

arriscam-se a desenvolver sintomas

de stress pós-traumático

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"Ninguém morou na dor que era o seu malA dor da gente não sai no jornal"Chico Buarque, Notícia de Jornal

Desastres, mortes, catástrofes, conflitos, vio-lência são matérias frequentes nos órgãosde Informação, mesmo naqueles cujolema não é - pelo menos abertamente -"espreme que sai sangue". São, também,situações potencialmente geradoras deDistúrbio de Stress Pós-Traumático (nor-

malmente referido como PTSD, Post-Traumatic Stress Disorder)- uma patologia reconhecida pela American PsychiatricAssociation (APA), em 1980, e pela Organização Mundial deSaúde a partir de 1992 - e que a APA definia em 2000 como "odesenvolvimento de sintomas característicos a seguir àexposição a um stressor traumático extremo, implicando umaexperiência pessoal direta, com um acontecimento que envolvamorte ou ferimento grave, ou outra ameaça à integridade física;ou observar um acontecimento que envolvamorte, ferimento ou ameaça à integridade físicade outra pessoa; ou ter conhecimento acerca deuma morte violenta ou inesperada, ferimentograve ou ameaça de morte ou ferimento vividopor um familiar ou amigo íntimo", acrescentan-do que "a resposta da pessoa ao acontecimentodeve envolver um medo intenso, sentimentode incapacidade de obter ajuda ou horror (ou,em crianças, a resposta deve envolver compor-tamentos agitados ou desorganizados)" .

Mais recentemente, em 2013, a APA viria aconsiderar que o PTSD poderia surgir, alémde por exposição direta, testemunho e tomada de conheci-mento, por "exposição repetida ou extrema a pormenoresaversivos dos acontecimentos traumáticos" . Daí a necessi-dade, para jornalistas e órgãos de informação, de ponderarcuidadosamente a cobertura e o tratamento noticioso dessesacontecimentos, tendo em conta que a abordagem pode vir arefletir-se, a curto, médio e longo prazo, na saúde mental nãoapenas das vítimas e seus próximos, mas também da comu-nidade envolvente - o público - e, naturalmente, na dospróprios profissionais dos média.

Na verdade, os jornalistas que fazem a cobertura dessassituações são sujeitos, eles também, a uma imensa tensão,desde logo no seu primeiro contacto com os diretamenteenvolvidos - muito dos quais severamente traumatizados -mas também no esforço de conseguir conciliar, no tratamentonoticioso, rigor e compaixão, distância e compromisso com adefesa dos Direitos Humanos, a obrigação de informar e orespeito pela privacidade, equilíbrio que o contexto emo-cional tende a dificultar. Acrescendo a isto que, em algunscasos, para lá de relatores do acontecimento traumático,podem vir a ser eles próprios vitimas primárias dele .

JORNALISTAS: TRAUMA "EM SEGUNDA MÃO"?Como refere o Dart Center for Journalists and Trauma - umprojeto da Escola Superior de Jornalismo da Universidade deColumbia, em Nova Iorque, com delegações em Londres eMelbourne, que bem poderia inspirar uma versão lusófona -os jornalistas confrontam-se com desafios fora do comum, aocobrir conflitos ou tragédias. Interagem com vítimas com um

elevado grau de sofrimento.Muitas vezes, constroem ummuro de defesa profissional entreeles e os sobreviventes e outrastestemunhas que entrevistam.Mas, depois de privarem efalarem com pessoas que sofr-eram perdas imensas, essemesmo muro pode impedi-los dereagir à sua própria exposição àtragédia. E, no entanto, váriosficam marcados pela tragédia queacabaram de reportar. Pela dor

dos outros. Pela sua impotência perante essa dor. Pela culpa dea testemunharem sem a sofrer. Ou de, terminado o seu trabal-ho, poderem fazer as malas e partir. De regresso à redação,não há tempo para refletir naquilo por que passaram. Novostrabalhos os esperam, a história que acabaram de viver é jápassado e a sua dor, se a têm, não é tema de jornal.

Poucos dias após a destruição das torres gémeas de NovaIorque, em 11 de setembro de 2001, Al Tompkins, do PoynterInstitute for Media Studies, assinalou: "Repórteres, fotojornal-istas, engenheiros de som e de imagem, produtores no ter-

ANÁLISE 1 Média e trauma

A DORDAGENTENÃO SAI NO JORNALDiana Andringa *

Vários jornalistas ficammarcados pela tragédiaque acabaram dereportar. Pela dordos outros. Pela suaimpotência perante essador. Pela culpa dea testemunharem sema sofrer

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reno, trabalham muitas vezes lado a lado com o pessoal dosserviços de emergência. Os seus sintomas de Stress Pós-Traumático são muito semelhantes aos de polícias ebombeiros que trabalham na sequência imediata da tragédia,mas normalmente recebem pouco apoio após terem enviadoas suas histórias. Enquanto ao pessoal de emergência é dadoaconselhamento após o trauma, os jornalistas são, simples-mente, enviados para cobrir outra história".

Mergulhados na nova investigação, limitam-se, muitasvezes, a surpreender-se com uma irritabilidade acrescida per-ante contrariedades comezinhas, maior dificuldade de con-centração, insónias frequentes e uma espécie de impaciênciaperante tarefas que antes os entusiasmavam, como se, derepente, o dia-a-dia se tivesse tornado enfadonho. Mas a vidacontinua, há prazos dos trabalhos a cumprir, o tempo - queparece ter-se acelerado - falta até para falar com colegas,família e amigos, quanto mais para a introspeção…

No entanto, a exposição a histórias traumáticas - tãocomum aos jornalistas - pode provocar alterações profundasnestes profissionais, normalmente mais atentos aos outros doque a si próprios e em relação aos quais não se verifica, porparte das instituições a que pertencem, e até dos camaradasde redação, a atenção e o cuidado prodigalizadas a outrosgrupos profissionais expostos aos mesmos cenários.

Embora já em 1974 Sarah Haley tenha descrito a pertur-bação causada nos terapeutas pelo trabalho com veteranos deguerra, e desde 1980, se admita que os efeitos do PTSDpodem ser transmitidos a pessoas que não estiveram direta-mente expostas à situação traumática, a noção de "traumati-zação indireta" é ainda bastante recente e mais recente aindao reconhecimento da possibilidade do seu aparecimentoentre jornalistas.

Duas classificações surgem, normalmente, em relação a

esta espécie de "trauma em segunda mão": Stress TraumáticoSecundário e Traumatização Vicariante. Por vezes usadospara classificar o mesmo fenómeno, alguns autores (Baird &Kracen, 2006, Deighton, Gurris & Traue, 2007) consideramque estes termos representam fenómenos diferentes, resul-tando o Stress Traumático Secundário da tensão derivada deviver ou cuidar de alguém com PTSD (Figley, 1998), podendoa pessoa que interage ou que tem uma ligação emocional coma vítima de trauma experienciar sintomas semelhantes, pelaexposição às reações emocionais e físicas do traumatizado e aTraumatização Vicariante (McCann & Pearlman, 1990;Pearlman & Saakvitne, 1995) da exposição e do envolvimentoempático com histórias traumáticas, refletindo-se emmudanças cognitivas, afetivas e relacionais, com impacto naalteração da visão sobre si próprio, sobre os outros e sobre omundo. Seria então essa "traumatização vicariante" a maiscomum entre jornalistas que, mesmo quando não assistemou acorrem ao acontecimento traumático que descrevem,recolhem os relatos de quem o sofreu.

Em 2002, um estudo sobre correspondentes de guerraindicou que cerca de um terço destes desenvolve, nummomento ou outro da sua carreira, sintomas de PTSD. Váriosoutros estudos apontam no mesmo sentido, mostrando, tam-bém, que nem sempre é necessária a presença física nos locaisonde ocorrem as situações para que os profissionais venhama sofrer desse distúrbio. Mas esta é "a dor da gente que não sainos jornais", porque o jornalista é o narrador da história deoutros, não um protagonista dessa história.

Essa será, eventualmente, uma das razões para a falta deatenção dos jornalistas e dos órgãos de Informação emrelação aos efeitos nos profissionais das situações que são le-vados a cobrir. Outra poderá ser uma certa cultura existentenas redações, impiedosa para aqueles que dão parte de fracos

Os repórteres não estão a salvo da emoção, ao narrarem tragédias

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(seja chorando durante um "direto" de uma zona de guerra,seja escusando-se a avançar para locais de perigo ou, estandoneles, pedindo para serem retirados do local).

Pessoalmente, só ao fazer o curso de Psicotrau matologiado Centro de Trauma do Centro de Estudos Sociais daUniversidade de Coimbra (em ligação com a ESTSS,European Society for Traumatic Stress Studies), pude darnome a algumas experiências que tinha vivido, após fazer, em1983, para a RTP, uma série de reportagens sobre refugiados(era o tempo dos boat-people, mas também dos que fugiam daGuatemala, de Salvador, da Nicarágua, do Afeganistão, daguerra civil em Angola).

Recordei o editor de vídeo que, na sala de montagem aolado daquela em que trabalhava, me veio perguntar se o meutrabalho ainda demorava muito, porque as histórias que ouviaaos meus entrevistados há muitos dias lhe perturbavam osono. Lembrei-me de como saíra, em lágrimas, a meio do filme“A Missão”, numa cena que me recordava algumas dessashistórias que tinha ouvido na América Latina, como a do cam-ponês guatemalteco que me falou da aldeia cercada, dos paise mães obrigados a deixar os filhos na igreja e ficar a verenquanto o exército incendiava o edifício e se ouviam os gritosdas crianças que morriam queimadas. De como durante tantotempo continuara a ouvir vozes como a da professora sal-vadorenha golpeada, queimada e violada com uma espingar-da pelos militares, que me pediu desculpa das suas lágrimas,"porque é doloroso recordar, mas é importanteque no teu país saibam o que fazem os solda-dos de Napoléon Duarte" ou a da catequistaguatemalteca que me contara, em tommonocórdico e enquanto fazia maquinal-mente tamales, a morte de 17 membros da suafamília, assassinados pelo Exército de RíosMontt.

E lembrei-me também como, nesse tempoem que não havia correio eletrónico nemtelemóveis, estando uma equipa de três pes-soas - eu, um operador de câmara e um assis-tente - em campos de refugiados e zonas de conflito durantemais de três meses, a única preocupação demonstradaconnosco à chegada foi o número de horas extraordináriasfeitas na deslocação…

Deve-se ao trabalho de grupos como o Dart Center umamaior consciência de que - por estranho que a nós própriospor vezes pareça - os e as jornalistas também são sereshumanos e também podem sofrem os efeitos das históriasque cobrem. Recentemente - recorrendo a uma "bengala lin-guística" atualmente muito em voga - "fez-se História" naAustrália, quando o Tribunal de Comarca de Victoria decla rouque um jornal, como qualquer empresa, tem "o dever detomar precauções quanto ao risco de lesão previsível, incluin-do lesão psiquiátrica" dos seus trabalhadores . A decisãopoderá vir a ter consequências internacionais, alertando asempresas de média para eventuais pedidos de compensação,se não tiverem os necessários cuidados com os jornalistas que

cobrem regularmente eventos traumáticos.A 22 de fevereiro, o tribunal condenou o jornal The Age,

de Melbourne, ao pagamento de uma indemnização de cercade 113 mil euros a uma jornalista, por lesão psicológica sofri-da durante a década em que nele trabalhou. A jornalista, queo tribunal identificou apenas como "YZ", trabalhara nassecções de Crime e Tribunais, tendo coberto mais de 32homicídios e sofrido ameaças ligadas a alguns dos casos queacompanhara. Depois de se ter queixado de já não conseguirsuportar "morte e destruição", chegara a ser colocada nasecção de Desporto, mas foi persuadida a mudar para a deTribunais, onde voltou a ser exposta à narração e imagens decrimes horrendos.

Em tribunal, "YZ" alegou que o jornal não tinha nenhumsistema que a ajudasse a lidar com o trauma do seu trabalho,não lhe providenciara apoio e treino para a cobertura deacontecimentos traumáticos, não interviera quando ela e out-ros se queixaram e transferira-a para a reportagem de tri-bunais, depois de ela já ter feito saber que não conseguiasuportar o trauma que sentira na reportagem de crimes.

Embora o jornal tenha contestado que ela sofresse dePTSD e argumentasse que ela deveria saber que o seu tra-balho "implicava um elevado risco de lesão", o tribunaldecidiu a favor da jornalista. Durante o julgamento, foinotório algo atrás referido e que estudos académicos têmconfirmado: o facto de a cultura vigente nas redações con-

tribuir para que os jornalistasreceiem expressar preocupaçãoem relação à cobertura de acon-tecimentos traumáticos, pormedo de parecerem fracos ouincapazes para o trabalho. Amensagem implícita é:"Endurece, princesa!"

Na Austrália há já, no entanto,uma empresa de média que faz adiferença: a Australian Broad -casting Corporation tem, há uma

década, um programa de apoio interpares. Como teste-munham os próprios, coisas aparentemente tão simplescomo telefonar a um/a camarada de trabalho que esteja acobrir uma situação potencialmente geradora de traumapodem fazer toda a diferença.

As alterações depressivas do humor, os comportamentosdissociativos e os comportamentos aditivos são respostas fre-quentes na sequência do impacto de uma experiênciatraumática, mas o mais destacado desses quadros de sofri-mento é, sem dúvida, o Distúrbio de Stress Pós-Traumático.Este surge em resposta a uma situação potencialmente ger-adora de trauma psicológico e manifesta-se, após um períodode latência de algumas semanas ou meses, através de com-portamentos de evitamento e de reexperienciação do acon-tecimento perturbador (memórias intrusivas como flash-backs, pesadelos) bem como de hiperativação (insónias, difi-culdade de concentração irritabilidade, impulsividade).

ANÁLISE 1 Média e trauma

Há uma certa cultura nasredações, impiedosa paraaqueles que dão parte defracos, seja chorandodurante um "direto" deuma zona de guerra, sejaescusando-se a avançarpara locais de perigo

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Acrescem, por vezes, sentimentos de "embotamento afetivo",afastamento dos outros, desinteresse, ou mesmo ideação sui-cida. Há repercussão do desempenho em termos pessoais,familiares, profissionais e sociais . São estes os sinais de alertaa que os jornalistas - os próprios e os seus camaradas de tra-balho - as empresas de Comunicação Social e as organizaçõesda classe devem prestar atenção. Como o caso de "YZ"demonstrou, podemos não acreditar no PTSD dos jornalistas,mas ele existe.

JORNALISMO: RETRAUMATIZAÇÃO DAS VÍTIMAS?Se é importante que as empresas tenham em conta que os jor-nalistas também sofrem os efeitos das situações potencial-mente geradoras de trauma, não menos importante é que osjornalistas, ao chegar ao local do acontecimento que devemcobrir, não esqueçam que vão encontrar vítimas e seus fami -liares, muitas vezes em estado de choque. E, sabendo queesse estado de reação ao acontecimento traumático podedeixar essas pessoas desorientadas e confusas, cabe aos jor-nalistas protegê-las do risco de retraumatização que a própriacobertura jornalística pode provocar.

Também nesse capítulo o Dart Center tem um papel derelevo, difundindo manuais sobre trauma e recomendandoregras de conduta para os jornalistas no terreno. Algumasdessas regras, além de óbvias, fazem parte do nosso CódigoDeontológico - como a que manda "respeitar a privacidadedos cidadãos" e "antes de recolher declarações e imagens,atender às condições de serenidade, liberdade, dignidade eresponsabilidade das pessoas envolvidas" (artigo 10) - e tam-bém do Estatuto do Jornalista - "abster -se de recolher decla -

rações ou imagens que atinjam a dignidade das pessoasatravés da exploração da sua vulnerabilidade psicológica,emocional ou física" (artigo 14.º, n.º 2, d). Assim, nas "dicas"sobre como entrevistar vítimas, lê-se que devem ser tratadascom "dignidade e respeito - como desejaríamos que nostratassem na mesma situação".

E aqui é impossível não recordar reportagens como aquelaem que um jovem jornalista de televisão perguntou a umadas vítimas de um acidente de aviação, que acaba de saberque ficou tetraplégica, "e como é que vai lidar com isso?". Ouaquela outra em que uma jornalista - também de televisão -pergunta a uma mãe cujos filhos morreram no incêndio dabarraca onde os deixara sozinhos durante o tempo de ver atelenovela na barraca vizinha: "E não se sente culpada pelamorte dos seus filhos?".

Passo por cima de todas as vezes que jornalistas pergun-tam a vítimas de desastres ou seus familiares o batido e inútil"e o que é que sente?" - segundo Mark Brayne, antigo diretorpara a Europa do Dart Center, a mais abusada e menos perti-nente de todas as perguntas jornalísticas - para referir umcaso contado, na sequência do incêndio em Pedrógão, poruma psicóloga bombeira: uma jornalista, que insistia emobter imagens de uma mulher que se escusava, protestou queestava a ser impedida de fazer o seu trabalho, "por pessoasque se calhar nem tinham sofrido nada". A pessoa em causatinha perdido vários familiares no incêndio.

Prevendo situações como esta, Mark Brayne, recomenda,em "Trauma & Journalism, A Guide for Journalists, Editors &Managers": "Onde há indivíduos em óbvio sofrimento, aceiteque por vezes é preciso oferecer ajuda e suporte antes de

Repetição exaustiva de imagens de incêndios reaviva o trauma das vítimas

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começar o trabalho de reportagem. Apesar de tudo, emprimeiro lugar somos seres humanos e só depois jornalistas".E também que, seja qual for a forma como as vítimas reajam,uma extrema calma ou um imenso desespero, tenhamos emconta o impacto emocional do que se passou, aproximando-nos das pessoas com cuidado, respeito e gentileza. Cuidado,respeito, gentileza desaparecem muitas vezes sob a pressãoda redação, do editor, da concorrência - o espetáculo dos jor-nalistas em ação lembra mesmo, por vezes, o abater de umamatilha sobre a presa.

Como também escreve Mark Brayne em "Emotions, traumaand good Journalism": "Os relatos televisivos de um acidente deavião podem mostrar parentes no aeroporto em choque aosaberem que um avião atrasado caiu com a perda de todos abordo. E além de mostrar os que lamentam a perda de seusentes queridos, as filmagens por trás deles revelam fileirasfuriosas de câmaras e repórteres. O pequeno grupo de parentesé literalmente cercado por jornalistas cujo único real interesse éo espetáculo da dor para ilustrar sua nova grande história" .

À já referida pergunta "e como se sente?", disparada a pes-soas que acabaram de perder um familiar, um amigo, a casa,somam-se outros lugares comuns que, à medida que seinstala nos media a cultura do fait divers sensacionalista, setorna cada vez mais frequente nas reportagens televisivas."Com demasiada frequência, jornalistas que cobrem tragé-dias como um tiroteio, uma tragédia comunitária ou um pro-cesso judicial envolvendo violência sexual,ficarão de pé diante da câmara e declararãosolenemente que esse povoado ou essa escolanunca se recuperará. Dirão também queestão ali profissionais especializados paraapoiar as vítimas, mas poucos compreendemo que isso significa (…)", notou Mark Braynenaquela obra.

Já por várias vezes me ocorreu, também,perante imagens em direto de um acidente deviação, sem cuidar de ocultar os pormenores,se a reportagem não poderá estar a dar aalguém "conhecimento acerca da morte vio-lenta ou inesperada, ferimento grave ouameaça de morte ou ferimento vivido por umfamiliar ou amigo íntimo". Ou seja: a provocarum trauma. Ou, nos casos de insistentesrepetições de imagens de catástrofes, aretraumatizar vítimas e próximos.

Profissionais que acompanharam de perto as vítimas dosgrandes incêndios de 2017, referiram, em reuniões organi-zadas pelo Centro de Trauma, que as pessoas que passarampor esses acontecimentos e os seus familiares e amigos, sequeixam de ver sistematicamente repetidas as imagens dodesastre nos noticiários televisivos, de ouvir ad nauseam aexpressão "estrada da morte" e, por vezes, de constataremque se expuseram demasiado, sob o efeito do choque, peloque gostariam que as reportagens em que aparecem deixas-sem de ser emitidas.

Um exemplo: uma pessoa que conseguira fugir da EstradaNacional 236, entrevistada pouco depois por um canal detelevisão, declarou não saber se teria atropelado alguém nasua fuga. Não é esse um daqueles casos em que o/a jornalistadeveria ter recordado o artigo 10º do Código Deontológico eo 14.º, n.º 2, d) do Estatuto? E fará sentido, em cada aniver-sário ou ocasião em que o tema ressurja, repetir as imagens daemoção de um governante que, sabe-se, fora também, anosantes, vítima de um incêndio? Conciliar o cuidado com aretraumatização das vítimas e a necessidade de noticiar exigedos jornalistas uma reflexão que nem sempre o fluxo noti-cioso permite.

Não se trata de condenar cegamente as reportagens sobresituações potencialmente geradoras de stress traumático ouas entrevistas com vítimas, familiares, ou membros dasequipas de socorro. Apenas de ter em conta que o relato deum acontecimento traumático nem sempre é positivo para avítima, podendo, pelo contrário, fazê-la passar de novo pelaprovação que acaba de viver. E que, por vezes, o silêncio e aprivacidade são mais indispensáveis às vítimas do que arecolha de depoimentos e de lágrimas aos repórteres.

Há outros factos a ter em consideração: a investigação temdemonstrado que as experiências traumáticas decorrentes decatástrofes naturais provocam menos problemas crónicosnaqueles a elas expostos (Riggs & Foa, 2004) do que as cau-sadas por mão humana (violência abusiva, guerra,

perseguições ou mesmo aci-dentes de viação). Ora o que fize-mos nós com os grandes incên-dios dos últimos anos?Precipitámo-nos na busca de cul-pados, como se responsabilizaralguém, a GNR, a EDP, a PT, oGoverno, os próprios bombeiros,resolvesse algum problema ime-diato ou aliviasse o luto das pop-ulações envolvidas. Mas seria defacto - para a comunidade quesomos e para a qual trabalhamos- o melhor a fazer naquelemomento? Ou poderíamos/dev-eríamos ter tido em conta que háum tempo para o luto e umtempo para apontar responsabili-

dades - e, sobretudo, para apontar soluções e verificar o seucumprimento?

Recorde-se que a atual correspondente da RTP emMadrid, Daniela Santiago, que participou na cobertura datragédia resultante da queda da ponte Hintze Ribeiro, em 4de março de 2001, viria, na sua tese de mestrado - "O recon-forto da televisão. Uma visão diferente sobre a tragédia deEntre-os-Rios", mais tarde editada em livro pela MinervaCoimbra - a defender que, "apesar de todas as críticas acercado trabalho dos jornalistas", a comunicação social "desempen-hou um papel extremamente importante para a população

ANÁLISE 1 Média e trauma

O relato de umacontecimento traumáticonem sempre é positivopara a vítima, podendo,pelo contrário, fazê-lapassar de novo pelaprovação que acaba deviver. Por vezes, osilêncio e a privacidadesão mais indispensáveisàs vítimas do que arecolha de depoimentos ede lágrimas aosrepórteres

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local" e que "a televisão pode ajudar a superar momentos dedor, sofrimento e mesmo isolamento, exercendo uma funçãode reconforto".

É que, tal como os terapeutas, também os jornalistaspodem dar significado aos traumas vivenciados pelos queentrevistam. Uma boa história, contada com princípio, meio,fim e um infinito respeito por aquele ou aquela cuja históriacontamos, pode ajudar à sua recuperação. Tal como - mesmosabendo que a violência e o drama, o sangue e as lágrimas sãosedutores em termos de audiência - termos por vezes a cor-agem de não contar, quando o silêncio nos parece ser a mel-hor terapêutica. Ou pelo menos aquela atitude que, colocan-do-nos no lugar do outro, na sua situação, gostaríamos quetivessem connosco.

E O PÚBLICO?Falámos de pessoas diretamente envolvidas ou dos seus famil-iares. E as restantes? A verdadeira avalanche de más notíciasem que os órgãos de Comunicação Social se especializaramnão levam o público, ou pelos aqueles mais sensíveis entre ele,a uma das condições de eclosão de PTSD, "observar um acon-tecimento que envolva morte, ferimento ou ameaça à integri-dade física do próprio ou de outra pessoa"?

Recorro, uma vez mais, a uma pequena história pessoal:algures entre 1996 e 1998, estava eu presidente do Sindicatodos Jornalistas e decorria a chamada guerra do Kosovo,quando, ao sair de casa, uma voz feminina me grita: "Diana,tens ideia do que os teus meninos estão a fazer aos meusmeninos?" Era a minha amiga Maria Clementina Dinis,

psicóloga clínica no Júlio de Matos. Percebi logo que "os meusmeninos" eram os jornalistas, e "os dela" os pacientes queseguia no hospital. Desafiei-a para um café, durante o qualme explicou que a guerra do Kosovo vinha há muito aaumentar as perturbações chegadas ao hospital.

Era uma guerra europeia, mais próxima e, logo, maisassustadora, e a nossa forma de noticiar - batalhas, destru-ições, mortos, muitas vezes passando por cima do contexto,já várias vezes contado - davam ao público a ideia de umaviolência sem razão que, tal como irrompera no Kosovo,podia irromper em Portugal, um perigo imediato e impre-visível, que desestabilizava as pessoas mais frágeis e irrompianas psicoses de alguns dos seus doentes.

Lá lhe argumentei que não podíamos deixar de informar,mas a Tina conhecia-me há anos suficientes para não desistir:precisaríamos mesmo de dar todos os dias imagens que emnada adiantavam ao conhecimento do que se passava e sóperturbavam quem as via? Para dizer a verdade, não. Namaior parte dos dias, limitávamo-nos a fazer uma macabracontabilidade de mortos e feridos, em cidades desconhecidaspara a maior parte dos portugueses, sem que isso con-tribuísse de algum modo para o esclarecimento do público,menos ainda para a solução do problema.

Saí do café angustiada. A ideia de que havia pessoas cujadoença piorava pela nossa ação profissional era-me difícil deenfrentar. Conhecia a Tina para saber que não estava a falarpor falar, mas sabia que não era fácil convencer jornalistas eeditores a trocar os mortos de cada dia por uma peça apro-fundada no final da semana, ou quando alguma verdadeiranotícia justificasse falarmos do tema. Mas talvez esse seja umaspeto de que só nos apercebemos quando - por folga, baixa,desemprego ou reforma - estamos longe da redação, na situ-ação de consumidores (e não fazedores) de notícias.

Em todo o caso, esses são aspetos também tratados peloDart Center. Entre os materiais que podemos encontrar nasua página, um texto de 2005, intitulado "Covering trauma:Impact in the public", aborda a questão dos efeitos da cober-tura mediática de acontecimentos traumáticos. Chamando aatenção para que quase toda a informação então existente sereferia a casos com múltiplas vítimas e se baseava sobretudoem noticiários televisivos, avançava-se que a investigaçãoconfirmava que o público consome mais noticiários e lhespresta mais atenção em ocasiões de catástrofe.

Pesquisas levados a cabo após o 11 de setembro de 2011documentaram reações de stress, angústia e tristeza. Foramdocumentados dois casos de reação psicótica. E um inquéritofeito a 2273 adultos estadunidenses dois meses depoismostrou uma correlação entre o número de horas de vision-amento de notícias sobre os atentados e a prevalência deprovável PTSD, sendo esta mais elevada nos habitantes deNova Iorque. Parecia assim poder haver uma relação entreangústia subclínica e consumo dos média entre adultos nãodiretamente afetados pelo acontecimento. A escassa literatu-ra existente à época não permitia generalizações, não estandodeterminado se as pessoas angustiadas consomem mais notí-

Pesquisas após o 11 de setembro

de 2001 documentaram reações

de stress, angústia e tristeza

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cias traumáticas ou se são estas a criar-lhes angústia. A cober-tura mediática pode, contudo, avivar o trauma das pessoasafetadas pelos acontecimentos .

Do mesmo modo, embora diversos estudos indiquemque, nas crianças, a exposição a um número elevado de notí-cias sobre situações traumáticas está associadaa um maior nível de sintomas de PTSD, prob-lemas comportamentais e ansiedade, não foipossível determinar se esses fenómenos sãocausados pela exposição aos média ou se sãoas crianças mais angustiadas que consomemmais esse tipo de notícias. Os estudos sug-erem, no entanto, que após a exposição as cri-anças mostram medo, preocupação, tristeza eangústia. A presença de imagens e a proximi-dade geográfica são fatores que podempotenciar essas reações .

Voltando-nos de novo para nós, jornalis-tas: como lembra Mark Brayne, a tradicionalfantasia jornalística de invulnerabilidade edistância não passa mesmo disso, de fantasia.Também nós podemos sofrer traumas e, na sequência, desen-volver depressão, ansiedade, problemas relacionais, se calharalguma tendência para abuso de álcool ou calmantes. Porisso, se após um trabalho em situação propiciadora de traumaou de grande sofrimento moral (refugiados, crianças abu-sadas, suicídio juvenil…) tiverem pensamentos intrusivossobre eles, flasbacks ou pesadelos; se se sentirem incapazes deser felizes ou de planear o futuro, e experimentarem sintomasde maior irritabilidade ou angústia, não tenham receio de

passar por fracos, consultem um especialista, falem com oscamaradas de redação.

Citando Kapuscinski: o jornalismo não é uma profissãopara cínicos - e poder desenvolver Distúrbio de Stress Pós-Traumático é por vezes o preço a pagar por isso. Alguns estu-

dos mostram que a prevalênciade PTSD nos jornalistas tende aser maior do que na populaçãogeral. Jornalistas expostos a situ-ações traumáticas podem sermais suscetíveis a problemas desaúde, como hipertensão eataques cardíacos .

Talvez possamos diminuiresse risco profissional acrescen-tando este tema nos curricula doscursos de jornalismo e integran-do-o nas reivindicações laborais,desenvolvendo grupos de apoiointerpares e - porque não? - crian-do um núcleo especialmente

vocacionado para o estudo e acompanhamento dos casos dePTSD não apenas para os jornalistas portugueses, mas paratodos os jornalistas falantes de Português.

Impossível? Sejamos realistas e passemos à prática.

* Com Guida Manuel, psicóloga, investigadora do Centrode Trauma do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e Luísa Sales, psiquiatra, coordenadorado Centro de Trauma.

ANÁLISE 1 Média e trauma

Reportagens sobre refugiados também sujeitam os jornalistas a experiências dolorosas

Tal como os terapeutas,também os jornalistaspodem dar significadoaos traumas vivenciadospelos que entrevistam.Uma boa história,contada com princípio,meio, fim e um infinitorespeito por aquele ouaquela cuja históriacontamos, pode ajudar àsua recuperação

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