QUANDO A DOR SE TORNA UMA DOENÇA EM SI...2019/01/01  · a dor. A dor aguda apresenta uma função...

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José Tadeu Tesseroli de Siqueira Alexandre Henriques Annes CD, PhD - Cirurgião Dentista - Coordenador da Equipe de Dor Orofacial da Divisão de Odontologia e do Curso de Aprimoramento do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/USP) Presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) 2013-2014 MD - Médico Psiquiatra - Contratado do Serviço de Dor e Medicina Paliativa do HCPA Diretor Científico da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) 2013-2014

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SE TORNA SE TORNA SE TORNA UMA DOENÇA UMA DOENÇA UMA DOENÇA

EM SIEM SIEM SIEM SIEM SIEM SI

José Tadeu Tesseroli de Siqueira

Alexandre Henriques Annes

CD, PhD - Cirurgião Dentista - Coordenador da Equipe de Dor Orofacial da Divisão de Odontologia e do Curso de Aprimoramento do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/USP)

Presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) 2013-2014

MD - Médico Psiquiatra - Contratado do Serviço de Dor e Medicina Paliativa do HCPA Diretor Científico da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) 2013-2014

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INTRODUÇÃO o longo dos anos, a formação da grande maioria dos profissionais da saúde apresenta o conceito de que a dor é um sintoma comum em inúmeras doen-ças e também um dos principais motivos que leva o paciente a procurar atendimento em saúde (até 80% das vezes) (Sternbach, 1986; Gatchel et al, 2007), em todos os níveis de Atenção. A ocorrência de dor não é somente comum após cirurgias ou traumatismos, mas sua prevalência em Doenças Crônicas é cada vez maior. Em grande parte dos casos, quando a doença é tratada ou a área operada ou traumatizada é cicatri-zada, o sintoma dor tende a desaparecer. E isso é o esperado. Porém, não é a regra. Gradativamente, a comunidade científica fala da dor como sendo uma doença em si, e é aqui que surgem incertezas nos próprios profissionais de saúde e, especialmente, nos pacientes e na população em geral: afinal, um sintoma corriqueiro, chamado dor, também pode ser ou transformar-se em uma doença? E daqui surgem outras questões: “como

Quando a Dor se torna uma Doença em si.

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QUANDO A DOR SE TORNA UMA DOENÇA EM SI

AO LONGO DOS ANOS, A FORMAÇÃO DA GRANDE MAIORIA DOS PROFISSIONAIS DA

SAÚDE APRESENTA O CONCEITO DE QUE A DOR É UM SINTOMA COMUM EM INÚMERAS

DOENÇAS E TAMBÉM UM DOS PRINCIPAIS MOTIVOS QUE LEVA O PACIENTE A PROCURAR

ATENDIMENTO EM SAÚDE.

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diferenciar o sintoma dor da doença dor?”, “o trata-mento é o mesmo para ambas?” (Siqueira e Teixeira, 2011), “por que isso está ocorrendo comigo?”, “o pa-ciente apresentará continuamente dor?”, entre outras. Embora a pesquisa científica tenha melhora-do acentuadamente nosso entendimento sobre inúmeras doenças que afetam a humanidade, e também nos ajudado a compreender melhor a fisiopatologia da dor, permanece a questão sobre os motivos que ainda limitam o tratamento da dor crônica (Sullivam et al., 1991), já que esta é realmente considerada o problema principal a enfrentar. Em geral, o médico e os pro-fissionais da saúde não entendem por quais razões pacientes sem alterações orgânicas significativas po-dem desenvolver dor crônica, sendo muitas vezes de intensidade incapacitante (Osterweiss, 1987). Muitos desses pacientes receberam inúmeros tratamentos, farmacológicos e não farmacológicos, para a dor e, a despeito disso, continuam queixando-se ou, pior ainda, referindo que a mesma piorou, com maior impacto negativo. Como ajudar esses pacientes é a questão que os estudiosos e pesquisadores em dor se pergun-

José Tadeu Tesseroli de Siqueira - CD, PhD - Cirurgião Dentista - Coordenador da Equipe de Dor Orofacial da Divisão de Odontologia e do Curso de Aprimoramento do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/USP) - Presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) 2013-2014

Alexandre Henriques Annes - MD - Médico Psiquiatra - Contratado do Serviço de Dor e Medicina Paliativa do HCPA - Diretor Científico da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) 2013-2014

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tam constantemente, principalmente porque parte desses pacientes passa a concentrar sua atividade de vida nesse problema, envolvendo família, colegas de trabalho e a sociedade de um modo geral (Jacobson e Mariano, 2001). Embora muito se fale da dor crônica, nem sempre se tem a dimensão do problema, particular-mente pelos profissionais da saúde, e tampouco pelos próprios pacientes e seus familiares. Por isso, é ob-jetivo deste artigo fazer uma breve revisão sobre o tema, de modo a procurar esclarecer esse conceito da dor como um doença em si.

POR QUE “ESTUDAR” A DOR? Já na década de 1960, o professor americano John Bonica, médico anestesista e pioneiro em trazer a questão da dor para uma nova abordagem, da multi-disciplinaridade, enfatizava: “Como sempre, o tratamento da dor permanece uma das mais importantes preocupações da sociedade, e uma preocupação específica da comunidade cientí-fica e dos profissionais da saúde. Esta importância deriva do fato de que dor, seja aguda ou crônica, aflige milhões de pessoas anualmente; e em muitos pacientes com dores crônicas, e uma significativa parcela daqueles com dor aguda, ela é inadequa-damente aliviada. Conseqüentemente dor é a mais frequente causa de sofrimento e incapacidade que compromete seriamente a qualidade de vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. Nos EUA, 15 a 20% da população têm dor aguda, e entre 25 e 30% dor crônica” (Bonica e Loeser, 2001). No Brasil têm surgido bons estudos epidemiológicos, em dife-rentes regiões, que sugerem prevalências semelhantes para a dor crônica (Gonçalves et al., 2010; Moraes e Vieira, 2012), embora sejam escassos os estudos so-bre dor aguda, exceto sobre a dor de dente, que ainda é uma das principais causas de dor aguda no Brasil (Goes et al., 2006).Eis aí, portanto, a primeira boa razão para a necessi-dade de estudar a dor: reduzir o sofrimento de milhões de pes-soas ao redor do mundo. Muitas delas sem melhora, a des-peito dos múltiplos tratamentos realizados para a dor. Nesse contexto, profissionais de diferentes profissões e especialidades, principalmente da área da saúde, reúnem-se em associações como a International Association for Study of Pain (IASP), da qual a Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED) é o capí-

tulo em nosso pais, para estudar a dor. Atualmente, a SBED é o capítulo da IASP com o maior número de associados na América Latina. Além disso, a Or-ganização Mundial de Saúde, em 2003, apresentou uma relação das 10 doenças mais comuns que afligem a humanidade, realçando que a dor é um problema em comum a todas essas patologias. Muitas vezes, os pacientes com essas doenças crônicas, indicam a dor como o principal limitante para desfrutar de uma qualidade de vida adequada. O impacto do problema da dor no atendimento público de saúde, por sua vez, é imenso. Torna-se maior nos países pobres ou em desenvolvimento, onde há carência de recursos hu-manos, técnicos e econômicos. Em 1996, iniciou-se uma mobilização para instituir a Dor como o 5º Sinal Vital. A principal meta dessa proposta foi aumentar a conscientização sobre a presença, o impacto e o tratamento da dor, entre os profissionais de saúde. Nessa perspectiva, todos os pacientes são avaliados quanto à ocorrência e à inten-sidade de dor, de forma padronizada e documentada, associando a condutas terapêuticas. Em países como os Estados Unidos e Portugal, a aplicação do 5º sinal vital está respaldada por legislação específica. No Bra-sil, algumas instituições já adotaram esse modelo dos cinco sinais vitais. Atualmente, a sistematização do adequado gerenciamento e manejo da dor, através da utilização do 5º Sinal Vital e de escalas padronizadas de mensuração, é um dos critérios indispensáveis ao pro-cesso de Acreditação Hospitalar chancelado pela maior agência acreditadora norte-americana - a Joint Commis-sion Accreditation Healthcare Organization (JCAHO)(Dahl e Gordon, 2002). Dor não tratada ou subtratada acar-reta consequências físicas e psíquicas ao paciente, com aumento significativo nos custos em saúde.

EXISTE DEFINIÇÃO PARA DOR?

Há controvérsias. Um dos principais objeti-vos da IASP, e da SBED, é estabelecer, disseminar e educar os profissionais de saúde, quanto às definições da terminologia em dor e de suas principais sín-dromes, cuja útlima atualização ocorreu em 2011. O Comitê de Taxonomia da IASP define dor como “uma experiência sensitiva e emocional desagradável, associada à lesão real ou potencial dos tecidos, ou descrita em tais termos”

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(Merskey e Bogduk, 1994; Loeser e Treede, 2008). Essa ‘experiência’ é individual - subjetiva - implican-do em que pacientes diferentes podem ter respostas diferentes ao mesmo estímulo (ou à mesma doença), bem como a mesmos tratamentos. Portanto, a per-cepção de dor não é um fenômeno simples, mas sim multidimensional. Não se explica só pela lesão em si (estímulo nociceptivo), embora esta possa ser a causa inicial da representação final dessa percepção álgica em nosso cérebro. Multidimensional significa ter minimamente comprometidos (do ponto de vista do paciente), e compreendidos e manejados (do ponto de vista da Equipe Multidisciplinar), os seguintes componentes: sensitivo-discriminativos, afetivo-comportamentais, neurovegetativos e cognitivos. Portanto, a percepção de dor engloba desde a sensação periférica decorrente da lesão até o sofrimento dela decorrente e seus des-dobramentos, em níveis individual e supraindividual. À medida que o tempo passa, e nem sempre é ne-cessário muito tempo, a persistência de dor vai cau-sando mudanças comportamentais no paciente, as quais podem ter grande impacto em sua vida e serem também causas de outras morbidades, principalmente de natureza psicológica/psiquiátrica. Portanto, o tempo de existência da dor pas-sou a ser o parâmetro para a classificação convencional sobre tipos de dor: Aguda e Crônica. Não é suficiente, porém oferece um critério, que a despeito das contro-vérsias é útil na clínica e na pesquisa. Além das diferen-ças neurobiológicas entre a dor aguda e a dor crônica, as diferenças clínicas são facilmente perceptíveis:1- Dor Aguda – é aquela de início recente (dias ou poucos meses), geralmente relacionada à inflamação (traumatismos ou cirurgias) e que cessa com a cicatri-zação dos tecidos. Ela é o sintoma da doença, o que significa que, ao ser identificada e removida, cessará a dor. A dor aguda apresenta uma função adaptativa, alertando o indivíduo a respeito de alguma alteração em seu organismo. A importância de reconhecer a dor aguda é de tal valor que, como mencionado acima, ela foi instituída como o 5º Sinal Vital, com igual importância aos demais sinais vitais: tempera-tura, pressão arterial, pulso e frequência respiratória. A presença de dor é capaz de modular alguns desses sinais, causar sofrimento e complicações ao doente.

Como regra geral, sempre que houver dor aguda re-fratária ao tratamento, ou persistente, deve-se inves-tigar minuciosamente, não desconsiderando tanto doenças benignas como malignas, ou mesmo ser a dor um possível sinal de alerta para possível urgência ou emergência.2- Dor Crônica – como já foi dito acima, considera-se crônica a dor que não cessou após o término do processo de cicatrização, ou aquela que persiste por meses – geralmente três meses sob o ponto de vista clínico e seis meses sob o ponto de vista de pesqui-sa clínica (Merskey e Bogduk, 1994). A dor crônica não tem valor biológico, nem sempre encontram-se doenças ou sinais visíveis que a justifiquem; os pacientes podem ter histórico de inúmeros tratamentos, além de apresentarem morbidades associadas como de-pressão, ansiedade e alterações do sono. Nesses casos, pode ser considerada como uma Doença em si. A per-sistência da dor, o excesso de consultas e tratamentos, por vezes iatrogênicos, afetam profundamente o pa-ciente, física, psíquica e socialmente (biopsicossocial) (Bonica e Loeser, 2001). Dor persistente após cirurgias é outra questão importante (Kehlet et al., 2006). Pa-cientes com dor crônica têm maior número de mor-bidades na área da saúde mental (McWilliams et al., 2003). Além disso, os pacientes com dor crônica são mais susceptíveis à iatrogenia (Kouyanou et al., 1998). Existem situações de doenças crônicas, como a osteoartrose e a artrite reumatóide, em que pode haver tanto dor aguda como crônica, concomitantes. Esta situação pode ser confusa, porém a distinção é fundamental (Merskey e Bogduck, 1994; Jacobson e Mariano, 2001). A dor é uma experiência consciente que re-sulta da atividade cerebral em resposta a um estimulo nociceptivo em qualquer local do organismo, e esta bidirecionalmente relacionada com processos sensiti-vos, emocionais e cognitivos cerebrais. Não há testes laboratoriais ou procedimento diagnóstico para iden-tificar e mensurar a dor definitivos. O diagnóstico e o tratamento da dor podem ser difíceis, mas, certamente é, na dor crônica, em que está o maior desafio à Equipe de Saúde. Portanto, a sensação de que entendemos dor, por considerá-la sin-toma comum para o diagnóstico de muitas doenças, não preenche toda a dimensão em que ela se expressa

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em cada paciente e no mesmo paciente ao longo dos anos. Também não explica a razão pela qual inúmeros pacientes não têm alívio da dor a despeito dos trata-mentos recebidos e, tampouco, explica as alterações que ocorrem no indivíduo ou na sua vida, como al-terações emocionais, depressão, distúrbios do sono ou perda do emprego. Isso tudo, certamente, exige novas estratégias de tratamento (Tauben, 2012). Em situações de Dor Crônica, como Doença em si, as consequências estão muito além de qualquer causa óbvia imediata. Ultimamente, a prevalência pontual da Dor Crônica está crescendo mais do que a prevalência pontual da Dor Aguda (Tunks et alli, 2008).

DOR CRÔNICA: DOR COMO DOENÇA?

Historicamente, Dor Crônica era considera-da como uma síndrome (ou um grupo de síndromes), porém evidências recentes, especialmente através de estudos de neuroimagem, sustentam que Dor Crôni-ca pode ser considerada como uma Doença em si (Tracey e Bushnell, 2009). Evidências de ordem fun-cional, anatômica e neuroquímica sustentam esse di-recionamento na mudança de paradigma, porém essas alterações, atualmente, são perceptíveis somente após a transição para o estado de cronificação da Dor. Em nível político, a primeira vez que o con-ceito de dor crônica como doença em si foi estrutu-radamente veiculado foi em outubro de 2001, através da Declaração da Federação Européia dos Capítulos da IASP (EFIC), ao Parlamento Europeu, durante a Semana Européia Contra a Dor (Niv e Devor, 2004). A dor crônica apresenta causas multifatoriais, perpassando pelos fatores genéticos (ainda em início de investigação mais estruturada), ambientais, cogni-tivos, comportamentais, entre outros. Por isso, a dor crônica, independe da extensão da lesão ou do local do corpo humano em que ocorre, não pode prescin-dir de uma Equipe Multidisciplinar na sua aborda-gem e manejo. Ao mesmo tempo, todo profissional de saúde apresenta como responsabilidade mínima a compreensão básica desse fenômeno, bem como o conhecimento de alguns posicionamentos terapêuti-cos essenciais nesses casos.

Como exemplo, podemos citar uma das dores consideradas, há mais de 100 anos, como uma das mais difíceis de diagnosticar e tratar: a “dor facial atípica” ou “odontalgia atípica”, dor crônica que se manifesta com todos os sinais típicos dessa doença - dor crônica - embora possa ocorrer em apenas um dente que sofreu algum traumatismo. Desse modo, conhecendo o fato de que a dor tem múltiplas dimen-sões, o profissional que atende tais casos deve evitar comentários depreciativos à queixa do paciente, poden-do agir mais rapidamente, no sentido de compreender e encaminhar casos complexos de dor e, principal-mente, desvendando mitos e idéias inadequadamente preconcebidas- algumas vezes aprendidas em sala de aula, durante a graduação, de que dor é “só” um sin-toma e teria uma relação predominantemente linear de causa-efeito em sua expressão.Algumas condições de saúde, as quais apresentam a dor como sintoma cardinal, já são consideradas “doen-ça em si”, como enxaqueca e nevralgia do trigêmeo. Particularmente, a dor crônica exige uma abordagem ampla e diferente daquela usualmente aplicada em dor aguda: a abordagem biopsicossocial.

ABORDAGEM BIOPSICOSSOCIAL DA DOR

O modelo Biomédico tradicional, enfocava a dor como um indício de uma doença de base ou um mero estado fisiopatológico, enfatizando mais na doença do que em como a pessoa enfrenta a doença (Leo, 2006). Nessa perspectiva, ocorre uma exaus-tiva busca pela(s) etiologia(s) da doença, objetivando o tratamento específico dessa(s) causa(s). Contudo, tal modelo não se mostra suficiente em boa parte dos casos de dor crônica. Em boa parte dos casos, controlar o processo etiológico não corresponde linearmente ao controle da dor crônica (Henriques, 2012). Atualmente, o modelo que explica a Dor Crônica com maior abrangência e utilidade clínica é o Modelo Biopsicossocial (Engel, 1977; Nielson, 2001). Esse modelo pondera e objetiva integrar os fatores biológicos/físicos, psicológicos/psiquiátricos da dor, os quais são: nocicepção, dor propriamente dita, sofrimento e comportamento doloroso. Esse

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modelo tem sido discutido e ampliado recentemente, incluindo outros aspectos como a espiritualidade, entretanto, indica que os profissionais da saúde en-volvidos com o tratamento da dor crônica necessitam ter experiência com esses pacientes, para inclusive di-mensionar a complexidade da relação “profissional da saúde-paciente” no contexto de dor crônica. Estudo brasileiro mostrou que menos de 50% dos médicos dão importância a essa relação, o que é pior para os dentistas, dos quais menos de 25% acreditam ser essa relação importante, acreditando que os procedimentos técnicos são os mais importantes no tratamento da dor crônica (Berzin e Siqueira, 2010). A partir desses aspectos, fica evidente a neces-sidade de, inicialmente reconhecer, pelo menos, duas condições simultâneas ao avaliar e tratar pacientes com dor: duração da dor - tempo - e a doença envolvida, a qual pode ser a própria dor, quando esta é crônica (Jacobson e Mariano, 2001). Recordando, a dor aguda está relacionada claramente à lesão tecidual e ao pro-cesso inflamatório, enquanto na dor crônica não existe uma clara ligação entre lesão tecidual ou inflamação com a dor, e esta persiste após a cicatrização tecidual, quando há história de traumatismo ou lesão (Bonica, 1953). Na dor aguda, a dor é o sintoma de uma doença ou lesão tecidual, enquanto na dor crônica a própria dor pode ser a doença (Stembach, 1981). A com-preensão destas diferenças levou à adoção de modelos conceituais de dor que levassem em consideração sua multidimensionalidade, que gerou um novo modelo de atenção à saúde: o modelo biopsicossocial.

A ÉTICA E A QUESTÃO DA DOR

A dor é realmente uma questão complexa: tem conotação de sofrimento e está presente na vida humana constantemente. Aos profissionais da saúde, que buscam geralmente uma relação causa-efeito, nem sempre é fácil compreender sua complexidade. IASP discute os aspectos éticos que envolvem a dor na clínica e na pesquisa (Fields, 1995). Entre os con-ceitos filosóficos dessa relação é fundamental ao pro-fissional da saúde relembrar a necessidade de:1. Distinguir os aspectos subjetivos dos aspectos ob-jetivos obtidos na avaliação da dor.

2. Distinguir entre dor e sofrimento.3. Compreender que existem diferenças individuais e de grupos, no que concerne à intensidade e ao significado da dor.

Entre as obrigações éticas destaca-se: 1. Respeitar as culturas individuais, lembrar dos direitos humanos básicos e da responsabilidade pro-fissional. 2. Entender o significado moral do sofrimento desnecessário por dor. 3. Entender que dor moderada a intensa provoca e/ou exacerba danos físicos e psíquicos. 4. Obedecer os princípios da beneficência (fazer bem aos outros), da autonomia (privacidade, vera-cidade, deliberação e consentimento) e da não-ma-leficência (não provocar dano). 5. Ter consciência que a dor agride a dignidade hu-mana; e que a dor iatrogênica, de certa forma, compa-ra-se à dor das vítimas de tortura. 6. Entender o princípio de justiça no manejo e pesquisa em dor.

CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS

A despeito da melhoria de nosso enten-dimento sobre dor, ainda persiste a dificuldade de compreender a complexidade da dor crônica. Quando esta recebe o status de doença, parece que realça a dificuldade de diagnosticá-la e tratá-la. En-tretanto deveria ser distinguida de doenças crôni-cas, como a osteoartrite, que podem causar episó-dios agudos de dor, mas também podem causar dor crônica. A presença de uma doença crônica como causa da dor crônica, em parte facilita seu entendi-mento dentro do modelo biomédico - causa-efeito - em que são formados os profissionais da área da saúde, porém já tal modelo não se mostra efetivo o suficiente para compreender e manejar pacientes com dor crônica. Já a dor crônica que não apre-senta alterações orgânicas evidentes sempre foi o mistério e merece compreensão para novos modelos de estratégias terapêuticas.

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REFERÊNCIAS

QUANDO A DOR SE TORNA UMA DOENÇA EM SI

A publicação “Quando a dor se torna uma doença em si” é produzida e editada por Esfera Científica, e patrocinada por Cristália - Produtos Químicos Farmacêuticos. Toda correspondência deverá ser dirigida para Esfera Científica. Praça Santa Rita de Cássia, 27 – Mirandópolis – 04048 - 010. São Paulo-SP – Tel.: (11) 5593-5555 - E-mail: [email protected] – Diretor Responsável: Fábio Lifschitz – Editor de Arte: Cecil Rowlands. O conteúdo deste material é de responsabilidade exclusiva de seu(s) autor(es) e não reflete, necessariamente o posicionamento da Editora e da Cristália - Produtos Químicos Farmacêuticos. Propriedade Intelectual. Material destinado exclusivamente à classe médica.

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