Quando as eleições conspiram contra a democracia
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QQUUAANNDDOO AASS EELLEEIIÇÇÕÕEESS CCOONNSSPPIIRRAAMM
CCOONNTTRRAA AA DDEEMMOOCCRRAACCIIAA
Por que os democratas não podem apostar todas as fichas no processo eleitoral
AAUUGGUUSSTTOO DDEE FFRRAANNCCOO
Publicado originalmente no Facebook em 9 de setembro de 2014.
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Peço atenção para este artigo. Não é uma profecia. É uma análise do que
pode acontecer se o governo, claramente na contra-mão da opinião
pública, conseguir se reeleger mais uma vez.
A democracia não é uma sociedade ideal. A democracia é um movimento
de desconstituição de autocracia. Ou seja, é o processo de
democratização. Só por isso podemos chamar com a mesma palavra
(democracia) o processo que ocorreu entre 509 e 322 em Atenas (e,
talvez, adjacências), naquela experiência fundante que foi ensaiada pelos
antigos gregos para retirar do poder a tirania de Psístrato e seus filhos (e
impedir a sua volta) e as tentativas dos modernos de refrear o poder
despótico de Carlos I, na Inglaterra (quando a democracia foi reinventada
como democracia representativa, constrangendo-se a ser uma forma de
administração de uma estrutura guerreira, nascida da paz de Westfalia,
chamada Estado-nação), ou às tentativas de estabelecer regimes ex parte
populis em outros lugares da Europa e, sobretudo nos Estados Unidos. Foi
essa segunda democracia que se expandiu, notadamente no século 20,
para outros países, constituindo Estados democráticos de direito
minimamente capazes de observar a liberdade, a publicidade ou
transparência, a eletividade, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a
institucionalidade e, como consequência de todos esses princípios ou
critérios, a legitimidade.
Mas as democracias realmente existentes (coexistindo num mundo onde
remanescem 60 ditaduras e pouco mais de um centena de regimes
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híbridos: autocracias em processo de democratizaçação, democracias em
processo de autocratização, protoditaduras, democracias flaweds e
democracias parasitadas por governos neopopulistas manipuladores) não
são regimes perfeitos. Nelas o processo de democratização (que é, de
fato, o que devemos entender quando falamos de democracia) é
fortemente constrangido pelas remanescências hierárquicas e
autocráticas que estão presentes no Estado-nação. Assim, remanescem
também, em maior ou menor grau, quistos autocráticos, dinâmicas
autocráticas e, consequentemente, comportamentos autocráticos nas
democracias realmente existentes (em especial aqueles voltados para a
guerra, quer dizer, para a construção e manutenção de inimigos como
pretexto para organizar cosmos sociais segundo padrões hierárquicos
regidos por modos autocráticos de regulação: seja a guerra quente, seja a
guerra fria, seja a política praticada como arte da guerra, quer dizer, como
continuação da guerra por outros meios). Acrescente-se que mesmo essas
tentativas fugazes de adotar a democracia (ou experimentar processos de
democratização) nunca conseguiram se exercer no plano internacional,
onde vige a política do equilíbrio competitivo ou realpolitik (que é
autocrática).
Portanto não há um modelo de democracia que possa servir de referência
para se dizer o que é e o que não é democracia. Toda vez que o processo
de democratização consegue, mesmo intermitentemente, prosseguir,
dizemos que estamos numa democracia, devendo-se entender por isso o
seguinte: estamos conseguindo tornar modos de regulação de conflitos
menos autocráticos e padrões de organização menos hierárquicos, nada
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garantindo, porém, que vamos definitivamente para o céu: sempre pode
haver retrocesso quando - no caso da democracia dos modernos (a
democracia representativa realmente existente nos países que a adotam)
- restringe-se a liberdade, viola-se a publicidade, frauda-se a eletividade,
falsifica-se a rotatividade, descumpre-se a legalidade e degenera-se a
institucionalidade. Quando algumas dessas coisas são feitas a partir de
certo grau que começa a inviabilizar a continuidade do processo de
democratização, dizemos que não estamos mais numa democracia (ou
seja, que a democracia que temos não está mais conformando-se como
um ambiente favorável a caminharmos em direção à democracia que
queremos). Mas os limites não são fixos.
Cabe frisar que se a democracia, no sentido forte do conceito, é um
movimento de desconstituição de autocracia, tal processo se fragiliza toda
vez que as eleições são usadas contra esse sentido. Como isso está
ocorrendo com frequência, o sistema representativo está batendo nos
seus limites. Sistemas eleitorais em países que não são democráticos
estão sendo usados contra o processo de democratização que emerge das
manifestações das sociedades por mais liberdade. Vejamos alguns
exemplos recentes:
Uma forte fermentação social eclodiu na Síria em janeiro de 2011,
até que a guerra veio e matou a rede (sim, a guerra é feita para isso)
e o pior momento para o possível florescimento de um processo de
democratização naquele país foi o 4 de junho de 2014 (dia da
reeleição fajuta do ditador-genocida Assad).
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Um processo de democratização construído pela sociedade egípcia
teve seus pontos fortes em 11 de fevereiro de 2011 na Praça Tahrir
(que levou à queda do ditador Mubarak) e de novo em 30 de junho
de 2013 em todas as cidades do Egito (que levou à queda de Morsi,
o jihadista da Irmandade Muçulmana, mas não em 17 de junho de
2012, dia da sua eleição).
O mesmo ocorreu em maio de 2013 na Turquia (mas não em 10 de
agosto de 2014, dia da reeleição do protoditador Recep Erdogan).
O que significa tudo isso? Significa processos (formais) eleitorais
conspirando contra o processo (substantivo) de democratização.
É claro que - nos países formalmente democráticos - devemos defender a
democracia que temos contra qualquer tentativa de autocratização. Mas
sem deixar de reconhecer que a democracia que temos não está mais
conformando um ambiente muito favorável à caminhada em direção à
democracia que queremos. O que significa que o sistema não pode ser
consertado por dentro, elegendo-se pessoas boas, como recomendam os
que querem congelar uma forma de democracia (a democracia
representativa) surgida no século 17. A questão é a continuidade do
processo de democratização e não a manutenção de um modelo.
A continuidade do processo de democratização (ou de democratização da
democracia) precisa das formas atuais da democracia realmente existente,
mas não terá solução nos ambientes configurados por essas formas. Ou
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seja, se os problemas da democracia representativa não podem ser
resolvidos com a abolição da democracia representativa, eles também não
podem ser resolvidos nos marcos da própria democracia representativa.
Os ápices da democracia estão hoje, portanto, nas novas experimentações
de democracia que sejam: mais distribuídas, mais interativas, mais diretas,
regidas mais pela lógica da abundância do que da escassez, mais
vulneráveis ao metabolismo das multidões e mais responsivas aos
projetos comunitários, mais cooperativas, mais diversas e plurais (não
admitindo apenas uma única fórmula internacional mas múltiplas
experimentações glocais). Ora, tudo isso aponta para uma nova
reinvenção da democracia.
Mas mesmo nos países democráticos atuais, o processo eleitoral tem sido
usado, em muitos casos, para enfrear a democracia, não para consolidá-la,
expandi-la ou democratizá-la (quer dizer, para dar continuidade ao
processo de democratização). Vejamos o caso do Brasil, em que as
eleições têm sido instrumentalizadas como artifício de um grupo privado
autocrático contra a democracia. Como se sabe, além de não ter proteção
eficaz contra o discurso inverídico, a democracia também não tem
proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições)
contra a própria democracia. A Venezuela é o exemplo mais flagrante de
país democrático que virou na prática uma ditadura usando o processo
eleitoral. É claro que o Brasil é diferente. Mas as diferenças entre o Brasil e
a Venezuela não estão no fato da orientação de seus governos serem
muito diferentes (não, ambos são autocráticos) e sim no fato de que a
sociedade brasileira é mais complexa e suas instituições são mais sólidas.
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No caso brasileiro é possível (não podemos afirmar que vai acontecer,
tomara que não, mas é possível) que, mesmo com todos os ataques ao
regime democrático e à República que o grupo no poder tem cometido, há
mais de uma década, o atual governo não seja removido pelas eleições de
2014. Reconhecer isso não é desacreditar da democracia, como podem
pensar os analfabetos democráticos que estão em todo lugar, inclusive
nos partidos ditos de oposição. Pois democracia não é sinônimo de regime
eleitoral. Só se pode caracterizar como legítimo um regime
declaradamente democrático se, além da eletividade, outros critérios
forem minimamente observados, como a liberdade, a publicidade ou
transparência, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a
institucionalidade. A legitimidade democrática - como sempre nos
lembrava o saudoso Ralf Dahrendorf - é uma consequência da observância
de todos esses critérios e não apenas da eletividade.
Um governo que tenha sido eleito democraticamente mas que não
governe democraticamente não pode ser considerado como democrático.
Um governo que parasita a democracia para violar sistematicamente os
outros critérios democráticos mencionados acima, não deve ser
considerado democrático só porque concorre a eleições e é eleito. Um
governo que para falsificar a rotatividade investe contra a legalidade e
degenera as instituições, não pode ser considerado como democrático. Os
democratas devem ter a coragem de reconhecer - e proclamar - que o
governo do PT tem feito isso e, portanto, que ele não é democrático.
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Não, não vivemos numa ditadura e seria um erro tremendo fazer tal
confusão. Mas devemos assumir claramente que o nosso regime é
democrático apesar do governo do PT e não por causa dele.
Nestas circunstâncias os democratas não devem jamais violar as práticas
democráticas, pois isso - além de ser contraditório e incorreto - apenas
faria o jogo dos bandidos que nos governam. Mas também não podem
apostar todas as fichas nos processos eleitorais. Se uma organização
autocrática privada, que chegou ao poder pelo voto, usa a máquina do
governo para comprar dezenas de milhões de eleitores, transformando-os
em pensionistas do Estado por meio de programas de transferência de
renda (e ameaçando cortar os benefícios concedidos se não for reeleito) e
usa o governo para conformar uma base parlamentar artificial,
convertendo-a de base-aliada em base-alugada com recursos
provenientes do crime, então as chances dessa organização ser
substituída pelo processo eleitoral ficam muito reduzidas. Quando a
metade da população foi capturada pelo clientelismo e o sistema político
foi corrompido pelo banditismo de Estado, o mais provável é a
manutenção do status quo. Mesmo que a opinião pública (que não é a
soma das opiniões privadas, que pode ser aferida por pesquisas de opinião
ou pela totalização aritmética dos votos depositados secretamente na
urna) esteja francamente contra tal governo, ele pode, ainda assim,
remanescer.
Pode-se dizer que a democracia é assim mesmo, mas isso está errado. Não
é, não! Democracia, mesmo a democracia representativa, não é apenas
eleição e sim um conjunto de procedimentos que devem obedecer
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também, além de à eletividade, aos princípios da liberdade, da
publicidade ou transparência, da rotatividade ou alternância, da
legalidade e da institucionalidade.
Diante de governos desse tipo, os democratas devem resistir por todos os
meios pacíficos à sua disposição. Um desses meios - e o principal em
circunstâncias como a que poderemos estar vivendo em muito breve - é a
desobediência civil e política. Existem formas democraticamente legítimas
de exigir o fim de governos autocráticos enquistados em democracias
formais: a recusa da população de permanecer sob seu domínio, a
exigência social de renúncia desse governo, não por atos violentos e sim
por meios que não agridam a Constituição. Sim, é possível.
Os analfabetos democráticos que ocupam os partidos ditos de oposição
torcerão o nariz. Mas isso apenas revelará o que eles são: analfabetos
democráticos, eleitoralistas, disputadores de eleições como quem faz um
concurso para concorrer a um cargo público. Por isso eles continuam sem
entender as memoráveis manifestações de junho de 2013 no Brasil. Eles
não conseguem admitir que a voz das ruas não se traduza em votos nas
urnas (para elegê-los, é claro).
Mas a voz das ruas não se calou, está apenas seguindo o seu fluxo próprio:
poderosas correntes continuam ativas subterraneamente e vão
novamente emergir ainda com mais vigor nos próximos anos.
Não sabemos quando, não sabemos onde e não sabemos em que
condições esse reflorescimento da sociedade desorganizada (quer dizer,
não arrebanhada, não liderada por algum condutor de rebanhos ou não
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convocada por alguma organização hierárquica) vai acontecer. Mas que
vai, vai. Ondas de alta interatividade vão assomar, simplesmente porque a
sociedade mudou, não é mais a mesma, está mais interativa (e eles não
viram).
Se os maiorais do PT soubessem disso talvez preferissem perder as
eleições de 2014 do que ganhá-las de qualquer jeito.