Quando Deus Sai Ao Nosso Encontro

download Quando Deus Sai Ao Nosso Encontro

of 5

Transcript of Quando Deus Sai Ao Nosso Encontro

  • 8/18/2019 Quando Deus Sai Ao Nosso Encontro

    1/5

    QUANDO DEUS SAI AO NOSSO ENCONTRO

    Março 6, 2016 

    1. Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que

    dá a Vida verdadeira, baptizados e catecúmenos continuam a sua «caminhada»quaresmal: MEMÓRIA do baptismo [= execução do programa filial baptismal] para osbaptizados, PREPARAÇÃO para o baptismo por parte dos catecúmenos (SacrosanctumConcilium, 109), que têm neste Domingo IV da Quaresma os seus segundos«escrutínios»: segunda «chamada» para a Liberdade.

    2. O Evangelho deste Domingo IV da Quaresma (Lucas 15,1-32) é uma janela sublimee sempre aberta com vista directa para o coração de Deus, exposto, narrado, contado porJesus. Mas antes de Jesus começar a contar Deus, o narrador prepara cuidadosamente ocenário, dizendo-nos que os PUBLICANOS e PECADORES se aproximavam de Jesuspara o escutar, em claro contraponto com os ESCRIBAS e FARISEUS que estavam lá,não para o escutar, mas para criticar o facto de Jesus acolher os pecadores e comer comeles. Eles achavam que os pecadores eram merecedores de castigo severo e não demisericórdia, pois eram amplamente devedores a Deus, e não credores como os fariseuspensavam que eram. São visíveis, portanto, dois modos de ver, dois critérios: 1) ocomportamento novo, misericordioso, inclusivo, por parte de Jesus, que acolhe e abraçaos pecadores, até então marginalizados, hostilizados, descartados, excomungados; 2) ocomportamento impiedoso, rigorista e exclusivista para com os pecadores por parte davelha tradição religiosa dos escribas e fariseus.

    3. A estes últimos conta Jesus uma parábola, «ESTA PARÁBOLA» (taúten parabolên)

    (15,3), no singular. Sim, o texto diz expressamente «ESTA PARÁBOLA», o que querdizer que tudo o que Jesus vai contar até ao final do Capítulo é uma só parábola, e nãotrês, como vulgarmente se pensa, titula e diz. Sendo a parábola contada para osESCRIBAS e FARISEUS, então é desse lado do auditório que nós, leitores ou ouvintes,nos devemos colocar. Se nos colocarmos, como é usual e a nossa simpatia reclama, dolado dos PECADORES, da OVELHA perdida e encontrada, da DRACMA perdida eencontrada, do FILHO perdido e encontrado, a parábola passa-nos ao lado.

    4. O primeiro quadro mostra-nos a OVELHA PERDIDA lá longe e por amorPROCURADA e ENCONTRADA, e que dá azo à ALEGRIA condividida com osamigos e vizinhos. E Jesus conclui que é assim no céu sempre que um PECADOR se

    converte. Ao fundo da cena estão noventa e nove JUSTOS que não precisam deconversão. Era o que pensavam os escribas e fariseus, e nós tantas vezes também!

    5. O segundo quadro mostra-nos a DRACMA PERDIDA em casa, num chão de terra ede basalto negro, e cuidadosamente PROCURADA e ENCONTRADA, com a luz parailuminar o escuro e a vassoura para fazer tilintar a moeda no chão de basalto, e quetambém dá azo à ALEGRIA condividida com as amigas e vizinhas. E também aquiJesus conclui que é assim no céu sempre que um PECADOR se converte. Nestesegundo quadro não se faz menção dos noventa e nove JUSTOS ao fundo da cena, quenão precisam de conversão. Ora bem, quando na Bíblia dois retratos parecem iguais, achave de compreensão está naquilo que neles é diferente. São, portanto, os noventa e

    nove JUSTOS, que os escribas e fariseus pensam que são, e nós também, somos nós queestamos em causa!

  • 8/18/2019 Quando Deus Sai Ao Nosso Encontro

    2/5

    6. O terceiro quadro, que é o que vai ser exposto neste Domingo, mostra-nos um PAImaravilhoso com dois filhos que parecem diferentes. Ora bem, quando na Bíblia doisretratos parecem diferentes, a chave de compreensão reside naquilo em que são iguais.

    7. Vejamos então: o filho mais novo faz ao seu PAI um estranho pedido: pede a parte da

    herança que lhe toca. Note-se bem que se trata de um pedido fatal. O PAI dá três coisasaos seus filhos: o pão todos os dias, uma roupa nova pelas festas, mas há uma coisa quesó dá uma vez na vida, e em circunstâncias fatais, de morte próxima: a herança! Diz apropósito o Livro de Ben-Sirá 33,24: «No último dia dos dias da tua vida, na hora da tuamorte, distribui a tua herança». Então, ao pedir a herança, este filho como que mata oPAI e morre como filho! Em boa verdade, ele não quer mais ter PAI e não quer mais serfilho. Por isso, junta tudo, parte para longe e gasta tudo. Desce abaixo de porco, poisnem o que os porcos comem lhe é permitido comer. Decide então voltar para casa, eprepara um discurso com três pontos: 1) PAI, pequei contra o céu e contra ti; 2) não soudigno de ser chamado teu filho; 3) trata-me como um dos teus assalariados. Vê-se bemque não quer voltar mais a ser filho. Também não quer mais ter PAI. Quer ser um

    simples assalariado. Quer ter um patrão. Quer receber o ordenado que lhe passa a serdevido. Não quer receber de graça o amor do seu Pai.

    8. Voltou. O PAI viu-o ao longe, as suas entranhas moveram-se de compaixão, correuao encontro do filho, abraçou-o e beijou-o. É outra vez a surpresa a encher a cena!Quando nós regressamos a casa, entenda-se, a Deus, nunca encontramos um PAIdistraído ou ausente, que mudou de residência, ou que responde de forma brusca e fria.Note-se bem que a iniciativa surpreendente é do PAI. O filho começa a debitar odiscurso preparado em três pontos. Diz o primeiro. Diz o segundo. Não diz o terceiro,que era outra vez fatal, não porque o não quisesse dizer, mas porque o PAI o interrompe(belo que no n.º 17 da Bula Misericordiae vultus, que proclama o Jubileu Extraordinárioda Misericórdia, que estamos a viver, o Papapa Francisco refira este Pai que interrompeo discurso preparado pelo filho), dizendo para os criados: Depressa! Trazei o «primeirovestido» e vesti-lho! Entenda-se que o «primeiro vestido» é o vestido de antes, isto é, ode filho! Sim, é este PAI surpreendente que transforma em filho este candidato aassalariado! Manda matar o vitelo gordo e prepara-se para fazer em casa uma FESTA dearromba, com direito a banquete e orquestra! Note-se que, tal como Jesus, este PAI, queé Deus, acaba de acolher e abraçar um PECADOR e prepara-se para COMER com ele.Há ALEGRIA no céu.

    9. O filho mais velho estava no campo. Era, portanto, um dia de semana, de trabalho.

    Este PAI não escolhe fins-de-semana para fazer FESTA! E FESTA excessiva. Mandoumatar o vitelo gordo! Trouxe uma orquestra musical para animar a FESTA! O filhomais velho, ao aproximar-se de casa, ouviu música e danças. Esta «música» diz-se emgrego symphônía. Ora, symphônía é uma orquestra!

    10. Como tinha saído ao encontro do filho mais novo, o PAI sai agora também aoencontro do filho mais velho, para o instar a entrar para a FESTA, tal como o pastor queencontra a ovelha perdida e a mulher que encontra a dracma perdida convidaram osamigos e os vizinhos para a ALEGRIA. Mas este filho mais velho acusa o PAI deacolher um pecador e de se preparar para comer com ele. Exactamente o que faziam osESCRIBAS e FARISEUS, que criticavam Jesus por acolher os pecadores e comer com

    eles. Este filho mostra-se, portanto, um puro FARISEU, que sempre cumpriu as ordensdo PAI (patrão), achando-se credor e não devedor face ao seu PAI, face a Deus!

  • 8/18/2019 Quando Deus Sai Ao Nosso Encontro

    3/5

    11. Quando duas figuras parecem diferentes, é naquilo em que se assemelham quereside a chave de compreensão. O que assemelha estes dois filhos, que parecemdiferentes, é que ambos se sentem assalariados (e não filhos) e ambos olham para o PAIcomo para um patrão. É também interessante notar que os dois filhos deste quadrofalam ao PAI, ao seu PAI comum, como fazem os cristãos. Como fazemos nós. Mas em

    nenhum momento da história se falam um ao outro. Será que também neste ponto separecem connosco? Sim, às vezes, nós também só sabemos falar por trás, entre raivasacumuladas e insultos! Mas entramos sem problemas de consciência na Igreja, edizemos que rezamos!

    12. Todavia, o filho mais novo deixou-se mover pela compaixão do PAI. EstavaMORTO como filho e VOLTOU a VIVER, estava PERDIDO lá longe e FOIENCONTRADO! Tal como a ovelha PERDIDA e ENCONTRADA lá longe! Masatenção que a dracma estava PERDIDA em casa! Sim, tanto nos podemos perder lálonge, no deserto, como nos podemos perder em casa! Podemos, na verdade, andarperdidos em casa, numa casa fria, sem Pai e sem irmãos, sem mesa, sem lareira, sem

    alegria, como o filho mais velho da parábola!

    13. Afinal «ESTA PARÁBOLA» em três quadros foi contada por Jesus aos ESCRIBASe FARISEUS, ao FILHO MAIS VELHO, a NÓS. Mas ficamos sem saber, no final, se oFILHO MAIS VELHO entrou ou não entrou em casa, na alegria, para a FESTA. Onarrador não o diz, porque essa decisão de entrar ou não, somos NÓS que a temos detomar. Afinal foi para NÓS, TU e EU, colocados, na estratégia narrativa, do lado dosESCRIBAS e FARISEUS e do FILHO MAIS VELHO (única posição correta parasermos interpelados pela parábola), que Jesus contou a parábola. Então, a decisão énossa, é minha e é tua: entramos ou recusamos entrar na CASA do PAI, namisericórdia, na festa, na dança e na alegria?

    14. À entrada da Terra Prometida, em Guilgal, nas planícies de Jericó, vê-se na lição doLivro de Josué 5,9-12, que hoje temos também a graça de ouvir, o Povo de Deus, saídodo Egipto e depois de atravessar o deserto, sempre conduzido pela mão de Deus, celebraa Páscoa (Josué 5,10), a Festa da liberdade, e experimenta o sabor dos frutos da Terra.Esta é a terceira Páscoa celebrada pelo Povo de Israel, assinalando sempre um novoinício. A primeira foi no Egipto, antes do Povo sair para o deserto (Êxodo 12,1-28). Asegunda acontece no Sinai, antes do Povo levantar o acampamento para partir emdireção à Terra Prometida (Números 9,5).

    15. São Paulo escreve aos Coríntios sobre a centralidade e novidade da nossa vida emCristo (2 Coríntios 5,17-21. Em Cristo somos nova criatura, pois Cristo assumiu eabsolveu o nosso pecado, reconciliando-nos com Deus. Esta obra grande daReconciliação, Paulo experimentou-a bem, e vive-a, e assumiu também o ministério daReconciliação. Milagre ainda hoje exposto diante de nós.

    16. O Salmo 34 põe nos lábios dos pobres a bênção (berakah), que os une a Deus parasempre, e o louvor jubiloso e intenso (t ehillah), que é a sua verdadeira razão de viver(vv. 2-3). O pobre enche o olhar de Deus e fica radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deuso escuta e o salva, e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9). Ou talvez mais do queisso. Na versão grega deste v. 9, muito utilizado no momento da comunhão, também nas

    liturgias de rito bizantino, lê-se: «geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios»(«Saboreai e vede que Bom é o Senhor»), em que o adjectivo chrêstós, «bom», é lido na

  • 8/18/2019 Quando Deus Sai Ao Nosso Encontro

    4/5

    pronúncia viva: christós, o que vem a resultar, na actualização cristã: «Saboreai e vedeque Cristo é o Senhor». Belo e saboroso, sem dúvida. Deus segue sempre o pobre deperto, cerca-o de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem quebrados (v.21), tal como é dito do cordeiro pascal, o mais alto símbolo de libertação. No seuCaminho de perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos mais belos e e

    incisivos discursos sobre a pobreza: «A pobreza é um bem que contém em si todos osbens do mundo; ela confere um império imenso, torna-nos verdadeiramente donos detodos os bens cá de baixo desde o momento em que os faz cair aos pés».

    Vai adiantado o tempo da Quaresma,

    E eu continuo ainda aqui parado

    Nesta página em branco da calçada.

    Sei bem que foste tu que me puseste em movimento,

    Que teceste o meu ser,

    Que me deste a vida e de comer,

    Que me acolheste e me acolhes sempre em tua casa.

    Como é que estou então aqui parado na berma desta estrada,

    Pensando que fui eu que me pus no ser,

    Que sou dono de mim,

    Que esta vida é minha,

    Minha é esta casa, este pedaço de chão,

    Este naco de pão

    E até este coração?

    Não fiques aí parado, meu irmão.

    Ergue-te e vai pelos nós do vento,

    Chegarás por certo à pátria do Espírito,

  • 8/18/2019 Quando Deus Sai Ao Nosso Encontro

    5/5

    Submisso ao sopro obsessivo do silêncio.

    Olha com mais atenção

    O chão que sonhas,

    O céu que lavras.

    Recomeça!

    Conquista o espaço

    Onde a palavra cresça

    Longe do ruído das palavras!

    António Couto