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Tempos Gerais - Revista de Ciências Sociais e História - UFSJ Número #6 - 2014 - ISSN: 1516-8727 47 QUANDO O HERÓI SE TORNA HUMANO: A VISÃO DO CADERNO DE ESPORTES DA FOLHA DE S.PAULO SOBRE O JOGADOR RONALDO NA COPA DO MUNDO DE 1998 Miguel Archanjo de Freitas Jr. 1 Bruno José Gabriel 2 RESUMO Há algumas décadas vários pesquisadores têm se dedicado a compreender o processo de construção do mito do herói no esporte contemporâneo (GUEDES, 1995; RUBIO, 2001; HELAL, 2003; FORMETIN, 2006; GIGLIO, 2007; CAMPOS, 2008; CAVALCANTI, 2013). Ao analisar essas produções, verificou-se que um ponto convergente apresentado nesses estudos é a influência que a mídia exerce na criação de um imaginário coletivo, que busca estabelecer nos atletas escolhidos os atributos necessários para que as pessoas comuns se identifiquem com eles. Partindo dessa assertiva, este estudo buscou analisar o processo de construção da imagem do atleta Ronaldo Luís Nazário de Lima (Ronaldo), emitido pelos articulistas do caderno de esportes do jornal Folha de S.Paulo, durante o ano de duas Copas do Mundo – 1994 (Copa do Mundo dos Estados Unidos) e 1998 (Copa do Mundo da França). Percebeu-se que ao construir uma imagem discursiva de um ser humano como qualquer outro os articulistas do caderno de esportes da Folha de S.Paulo utilizam acontecimentos que aproximam o jogador dos torcedores, pois destacam o os seus erros, a constante luta para vencer os jogos e as lesões, a crise em um momento decisivo e a saudade da família. Tais valores humanizam o ídolo, aumentando e favorecendo um discurso de persuasão que potencializou a identificação com o torcedor. Palavras-chave: Mídia. Herói. Ronaldo. ABSTRAT Since some decades ago, various researchers have directed their efforts to understand the contemporary sport superstar building process (Guedes 1995, Rubio 2001, Helal 2003, Formetin 2006, Giglio 2007, Campos 2008, Cavalcanti 2013). By analyzing this bibliography, a common point can be observed: the influence exerted by the media in the collective imagination, giving to the elected athletes the attributes necessary to make the ordinary folk identify with them. In this study, we part from this premise to analyze Ronaldo Luís Nazário de Lima’s (Ronaldo) image building process, set forth by the Folha de São Paulo sportswriters during the years of two FIFA World Cups, namely 1994 (USA FIFA World Cup) and 1998 (France FIFA World Cup). It was observed that these sportswriters, when building a discursive image of a human being like any other, recurred to events that brought the athlete closer to the fans, highlighting his mistakes, his neverending struggle to win the matches and overcome the injuries, the challenges during a critical moment, the plight of being away from the family. Such values made the superstar more human, increasing and encouraging a persuasive rhetoric that increased the identification with the fanbase. 1 Professor doutor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). 2 Professor mestre da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

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QUANDO O HERÓI SE TORNA HUMANO: A VISÃO DO CADERNO DE ESPORTES DA FOLHA DE S.PAULO SOBRE O JOGADOR RONALDO NA COPA DO MUNDO DE 1998

Miguel Archanjo de Freitas Jr.1

Bruno José Gabriel2

RESUMOHá algumas décadas vários pesquisadores têm se dedicado a compreender o processo de construção do mito do herói no esporte contemporâneo (GUEDES, 1995; RUBIO, 2001; HELAL, 2003; FORMETIN, 2006; GIGLIO, 2007; CAMPOS, 2008; CAVALCANTI, 2013). Ao analisar essas produções, verificou-se que um ponto convergente apresentado nesses estudos é a influência que a mídia exerce na criação de um imaginário coletivo, que busca estabelecer nos atletas escolhidos os atributos necessários para que as pessoas comuns se identifiquem com eles. Partindo dessa assertiva, este estudo buscou analisar o processo de construção da imagem do atleta Ronaldo Luís Nazário de Lima (Ronaldo), emitido pelos articulistas do caderno de esportes do jornal Folha de S.Paulo, durante o ano de duas Copas do Mundo – 1994 (Copa do Mundo dos Estados Unidos) e 1998 (Copa do Mundo da França). Percebeu-se que ao construir uma imagem discursiva de um ser humano como qualquer outro os articulistas do caderno de esportes da Folha de S.Paulo utilizam acontecimentos que aproximam o jogador dos torcedores, pois destacam o os seus erros, a constante luta para vencer os jogos e as lesões, a crise em um momento decisivo e a saudade da família. Tais valores humanizam o ídolo, aumentando e favorecendo um discurso de persuasão que potencializou a identificação com o torcedor.Palavras-chave: Mídia. Herói. Ronaldo.

ABSTRATSince some decades ago, various researchers have directed their efforts to understand the contemporary sport superstar building process (Guedes 1995, Rubio 2001, Helal 2003, Formetin 2006, Giglio 2007, Campos 2008, Cavalcanti 2013). By analyzing this bibliography, a common point can be observed: the influence exerted by the media in the collective imagination, giving to the elected athletes the attributes necessary to make the ordinary folk identify with them. In this study, we part from this premise to analyze Ronaldo Luís Nazário de Lima’s (Ronaldo) image building process, set forth by the Folha de São Paulo sportswriters during the years of two FIFA World Cups, namely 1994 (USA FIFA World Cup) and 1998 (France FIFA World Cup). It was observed that these sportswriters, when building a discursive image of a human being like any other, recurred to events that brought the athlete closer to the fans, highlighting his mistakes, his neverending struggle to win the matches and overcome the injuries, the challenges during a critical moment, the plight of being away from the family. Such values made the superstar more human, increasing and encouraging a persuasive rhetoric that increased the identification with the fanbase.

1 Professor doutor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).2 Professor mestre da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

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Keywords: Media. Superstar. Ronaldo. 1. Introdução

Logo após o término da Copa do Mundo de Futebol de 1998, realizada na França, a qual foi marcada por acontecimentos inusitados dentro e fora do campo, uma das questões que dominou os noticiários esportivos mundiais, e de forma mais contundente a mídia brasileira, foi o mal súbito sentido por Ronaldo Luiz Nazário de Lima (Ronaldinho ou Fenômeno) horas antes da partida final. Esse fato foi analisado e recebeu as mais diversas explicações/especulações possíveis por parte da mídia esportiva e por alguns estudiosos.

Destarte, a grande maioria das tentativas de explicações ficaram no plano hipotético e no caso da mídia serviu de estratégia para tentar justificar a derrota sofrida pelo selecionado nacional na partida decisiva daquela competição, o que nesse caso se tornou comum tentar encontrar um culpado para o fracasso.

O jornalista da Folha de S.Paulo, Matinas Suzuki Junior (1998, p. 2), apresenta um bom relato sobre essa situação ao demonstrar que:

A verdadeira história de Ronaldinho, o jogador mais caro da história do futebol, nesta Copa do Mundo, está para ser contada. A real história de um conto de fadas às avessas precisa ser dita, não pela crise de pânico antes da final, mas também pela sucessão de boatos sobre o seu real estado atlético durante toda a competição.

É uma história real que reúne todos os elementos para fazer uma grande história de ficção: um menino pobre que fica rico, fama, poder, uma mulher ambiciosa... e sobretudo, uma história de vencedores e derrotados.

Por um lado, ele, um garoto do bem e ainda um pouco ingênuo é vítima de toda essa situação – situação que nem ele sabe ainda avaliar direito. Por outro lado, não há espaço no mundo competitivo e destruidor, para o qual ele nunca cansou de dizer sim...

Esse excerto apresentado pelo articulista de um dos principais jornais do Brasil remete para uma questão central presente no esporte/futebol – que são os fatos acontecidos fora das quatro linhas e que envolvem inúmeros interesses e percepção dos torcedores, cujo olhar está pautado pela paixão, logo, não sendo possível e nem desejável uma análise mais racional sobre o que acontece/aconteceu. Do outro lado, temos a mídia, um agente que passou a ganhar um papel central na construção e manutenção da memória, processo que foi destacado por ENNE (2004, p. 112) ao mostrar que:

[...] a ideia da objetividade passou a se tornar referência fundamental nesse novo modelo de jornalismo [desenvolvido no decorrer do século XX]. A opinião começou a ser depreciada exatamente por seu caráter subjetivo. A preocupação com a verdade dos fatos tornou-se uma obsessão. A função do jornalista passou a ser não a de opinar, mas a de informar para formar.

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Na sociedade contemporânea, a busca desenfreada pela instantaneidade da informação em “tempo real” faz com que o jornal perca o seu potencial investigativo. Atitude que poderia ser interpretada como algo negativo, mas que na prática acabou contribuindo para a criação de um imaginário de credibilidade popular em torno do trabalho de exposição dos fatos, que passaram a ser vistos como informação verdadeira.

Diante disso, vários estudos têm demonstrado que os profissionais da comunicação acabam sendo figuras centrais na criação dos mitos esportivos (GUEDES, 1995; RÚBIO, 2001; HELAL; SOARES; LOVISOLO, 2003; FORMETIN, 2006; GIGLIO, 2007; CAMPOS, 2008; CAVALCANTI, 2013), os quais passam a ser supervalorizados individualmente, mesmo que isso ocorra com atletas de modalidades esportivas essencialmente coletivas. Por suas características de incerteza, pela biografia de grande parte dos jogadores e pela sua aceitação social, o futebol se tornou um campo midiático privilegiado para a criação do mito do herói.

Partindo dessa assertiva, este estudo buscou analisar o processo de construção da imagem do atleta Ronaldo, emitido pelos articulistas do caderno de esportes do jornal Folha de S.Paulo, durante o ano de duas Copas do Mundo – 1994 (Copa do Mundo dos Estados Unidos) e 1998 (Copa do Mundo da França).

Para compreender a trajetória desse atleta, entendeu-se que era necessário perceber o final do ciclo do seu antecessor – Romário de Souza Faria (Romário). Para isso, nossa opção foi buscar subsídios nos estudos desenvolvidos por Guedes (1995) e Helal; Soares; Lovisolo (2003), por serem consideradas no meio acadêmico referências consistentes sobre esse tema.

Para realizar essa análise, executou-se inicialmente um levantamento da quantidade de reportagens sobre esses atletas, presentes no Caderno de Esportes do jornal Folha de S.Paulo, do qual criou-se a TAB. 1:

Tabela 1Número de reportagens no Jornal Folha de S.Paulo

MêsAno

Romário Ronaldo

1994 1998 1994 1998

Janeiro 44 28 1 30Fevereiro 30 44 18 31Março 64 23 15 22Abril 62 24 29 27Maio 142 72 60 53Junho 238 91 51 173Julho 304 25 48 169Agosto 64 20 23 31Setembro 25 10 4 23Outubro 19 21 12 43Novembro 13 10 2 36Dezembro 22 09 18 26

1.027 377 281 664Fonte: O autor.

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Não se trata apenas de quantificar, mas de observar o que é recorrente na textualidade das matérias, proporcionando uma relação de sentido, a partir da repetição de uma representação. A quantidade adquire um caráter significativo, na medida em que é um traço estruturante da construção discursiva. Mas ela passa a ser significante quando observamos a relação entre os acontecimentos, o que nos permite perceber as convergências e divergências discursivas sobre o tema estudado, principalmente no que se refere à forma como os acontecimentos são narrados ou silenciados e também sobre a recorrência com que o candidato a herói é veiculado nos periódicos.

Uma rápida observação nos indicadores presentes no quadro e no material selecionado para o estudo demonstra a estratégia do periódico em veicular a imagem do atleta de forma positiva, seja demonstrando suas bem-sucedidas atuações dentro de campo, seja realizando atividades filantrópicas quando os resultados esportivos não eram favoráveis. O importante para o sucesso do projeto era que o jogador estivesse na mídia.

Com base nesse levantamento, buscou-se subsídio nos métodos definidos por Bardin (2004) e que foram recapitulados por Duarte e Barros (2006), mostrando que se trata de uma análise sistemática, a qual segue um conjunto de procedimentos que poderá ser aplicada a qualquer outro tema analisado. O primeiro momento foi pautado por uma análise quantitativa que serviu para identificar a frequência de aparição de certos elementos da mensagem, fato esse que Bardin (2004, p. 76) vai identificar como Pré-Análise. No segundo momento realizou-se a análise qualitativa das fontes por meio da leitura flutuante, a qual foi fundamental para a definição do corpus da pesquisa, que levou em consideração três princípios apresentados por Bardin:

1. exaustividade – não foi descartada nenhuma matéria que pudesse causar prejuízo para a análise, ou seja, todas as matérias que tratavam do jogador Ronaldo foram inicialmente incorporadas ao estudo;

2. seletividade – incluiu-se todos os editoriais publicados no Caderno Especial Copa de 1998, publicado no jornal Folha de S.Paulo. Esse recorte corresponde a 36,44% do total das matérias presentes nesse periódico durante o ano da realização da Copa do Mundo da França (1998);

3. representatividade – a leitura flutuante dos documentos demonstrou que o período entre os dias 1º de junho e 15 de julho de 1998 foi o mais significativo para analisarmos o discurso, possibilitando identificar um material que estava em consonância com os objetivos do presente estudo.

As categorias utilizadas emergiram da leitura das fontes. Para ser considerada uma categoria, utilizou-se as Regras de Enumeração, ou seja, observou-se a quantificação das unidades de registro, que demonstravam com que frequência o tema apareceu (DUARTE; BARROS, 2006, p. 57). A partir desses procedimentos, obteve-se as seguintes categorias: relações políticas no futebol, sentimentos e treinamento. Mereceu destaque também o fato de silenciamento do periódico em determinados momentos.

O excerto de Suzuki Jr. vai ao encontro do que fora estabelecido por Roland Barthes (1993) ao mostrar que na construção do mito o discurso midiático muitas vezes induz o leitor menos atento a aceitar com naturalidade um fato que é noticiado para ser consumido como

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produto midiático. Nesse sentido, é possível perceber um discurso despolitizado, no qual o articulista olha para o passado e não nega os acontecimentos em torno de Ronaldo (Fenômeno), mas purifica-os, inocentando-o de qualquer tipo de culpa, criando um discurso ideológico, no qual este periódico mantém o seu projeto em torno da construção da figura do herói.

Ao analisar a produção bibliográfica sobre essa temática, verificou-se que um ponto convergente apresentado nesses estudos é a influência que a mídia exerce na criação de um imaginário coletivo, que busca estabelecer nos atletas escolhidos os atributos necessários para que as pessoas comuns se identifiquem com eles.

A história do herói, normalmente, é contada a partir de um roteiro (romântico) pré-estabelecido, fato que fora destacado por Campbell (2007) ao estudar o percurso do herói em diferentes sociedades. Para esse autor, o herói se depara com três etapas básicas: na primeira ele se separa do seu local de origem, lançando-se ao desconhecido; na segunda etapa o candidato a herói precisa viver inúmeros desafios e situações extremas que ao serem superadas tornam-se responsáveis por um rito de iniciação para transformá-lo em herói; a partir desses acontecimentos o indivíduo retornaria para o seu povo, trazendo-lhes a possibilidade de compartilhar os benefícios e as glórias alcançadas.

Entretanto, o próprio Campbell relata sobre a necessidade de perceber que o tipo clássico do herói, que foi construído com base na história dos Deuses, morreu com o advento do racionalismo:

O herói morreu com o homem moderno; mas, como homem eterno – aperfeiçoado, não específico e universal – renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte [...], retornar ao nosso meio transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu. (CAMPBELL, 2007, p. 372)

Nesse sentido, é possível afirmar que ele ainda mantém uma função essencial em certos setores da sociedade, fato que tem sido utilizado de forma recorrente pela mídia como estratégia para estimular a polêmica, o desejo de consumo e acima de tudo o interesse do público em acompanhar os diferentes acontecimentos esportivos. Dessa maneira, concordamos com o posicionamento expresso por Helal (1998, p. 154), quando ele relata que um fenômeno de massa como o esporte não consegue se sustentar muito tempo sem a presença de heróis, uma vez que eles apresentam entre os seus atributos o papel de fazer com que as pessoas se identifiquem com aquele evento, pois, dessa forma, é possível acreditar que mesmo em uma sociedade contraditória e desigual como a nossa todos têm a possibilidade de superar os insucessos e tornar-se uma pessoa reconhecida socialmente.

A política-editorial subjacente às publicações que posiciona o jornal quanto aos acontecimentos que envolvem o Ronaldo, e, sobretudo, a compreensão dos sentidos implicados no discurso interessado sobre o que se quer filigranar a imagem do jogador deve ser acompanhada por uma localização, ainda que resumida, tanto das características do jornalismo que a Folha de S.Paulo optou por praticar quanto dos seus atravessamentos culturais. Por isso, algumas pontuações sobre a história desse jornal foram necessárias no sentido de demarcar e compreender

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o processo que implicou na identidade que a FSP construiu como representativa de si para si mesma e para a divulgação para os outros.

2. Desenvolvimento

2.1. A Folha de S.Paulo

Reconstituir, ainda que brevemente, a história da FSP implica deparar-se com uma trajetória descontínua, repleta de rupturas e marcada por constantes mudanças e reformulações. Sobre essa questão, Sevcenko (2000, p. 9) destaca que:

Um dos aspectos mais marcantes da história da Folha de S.Paulo é o de que se trata de um jornal em constante reformulação. E isso em todos os aspectos, desde as mudanças sucessivas na direção da empresa até a linha editorial, os recursos tecnológicos, os tipográficos, os critérios jornalísticos e a feição de conjunto do jornal.

A história da Folha é por isso muito mais a trajetória de muitas mudanças do que o desdobramento linear de uma identidade permanente, estável, resolvida.

No entanto, para que compreendamos a política editorial que vigora atualmente na Folha, foco de interesse desta pesquisa, torna-se necessário retomar alguns aspectos importantes da sua trajetória histórica. Assim, será possível compreender as modificações, que mesmo ausentes de linearidade, acabaram por implicar nas especificidades que fazem esse jornal ser “reconhecido” na sociedade contemporânea.

A rigor, a história da FSP inicia-se quando o jornal passa a ser publicado sob a designação dessa unidade nominal, em 1960. No entanto, existem antecedentes, os quais não podem ser descolados da sua trajetória. Esses nos remetem à fundação da Folha da Noite em fevereiro de 1921 por Olívio Olavo de Olival Costa e Pedro Cunha, do qual a Folha da Manhã, surgida no dia 1º de julho de 1925 foi uma extensão natural, pois ambas se caracterizaram por uma orientação política bastante localista, voltada sobretudo para as questões de administração da cidade, como as deficiências dos serviços públicos. Não obstante, esses periódicos firmaram a base que constituiu a “Empresa Folha da Manhã Limitada”, em 1931. (SEVCENKO, 2000).

Na década de 1930, em decorrência dos acontecimentos posteriores à Revolução, quando a Aliança Liberal (AL) de Getúlio Vargas assume o poder, as instalações das Folhas são empasteladas (elas apoiaram a candidatura de Júlio Prestes à presidência da República) e os periódicos ficaram temporariamente sem circulação.

Em 1931 os seus despojos da Folha foram adquiridos por Octaviano Alves de Lima, que constituiu uma nova diretoria conformada por ele, Diógenes de Lemos Azevedo, Guilherme de Almeida e Rubens do Amaral. Segundo Taschner (1992), com a entrada em cena desse novo grupo, os jornais adquiriram uma personalidade bastante distinta da anterior. No tocante à linha editorial, a preocupação com temas urbanos cedeu lugar a um posicionamento político de apoio aos interesses dos cafeicultores paulistas.

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Em 1945, uma nova diretoria constituída por José Nabantino Ramos, Clovis Queiroga e Alcides Ribeiro Meirelles assume o comando das Folhas, transformando-as em uma sociedade anônima sob o nome de Empresa Folha da Manhã S.A., que assume claramente uma identificação com o discurso desenvolvimentista então em voga (SEVCENKO, 2000) e uma lógica de funcionamento capitalista. Nesse período, como expõe Taschner (1992, p. 67):

[...] não se trata mais de um jornal cuja organização tem forma de empresa, trata-se de uma empresa que tem a atividade jornalística. Ela é o sujeito, e não mais o jornal. Este é o produto da atividade da empresa. E a concepção das Folhas como empresa, que visa ao lucro, foi também assumida por seus diretores nessa fase, ao declararem que “nada justifica que a indústria jornalística opere em bases de lucro inferiores às normais”.

Decorrente dessa concepção surge em 1949 a Folha da Tarde, a qual é acrescida aos jornais até então editados, contabilizando um noticiário para cada período do dia.

Ao longo dos anos, os três jornais editados pela mesma empresa aproximaram-se naturalmente, adquirindo um padrão comum que fora concretizado por um noticiário geral básico. Por isso, em 1960, Nabantino Ramos decidiu reunir os três jornais sob a designação nominal Folha de S.Paulo, mantendo, no entanto, as três circulações diárias (matutina, vespertina e noturna). O editorial de 1º de janeiro de 1960 justificou as razões da mudança na nomenclatura e na direção política que o periódico passara a adotar por meio do slogan que vigora até os dias de hoje: “Um jornal a serviço do Brasil”.

Como anunciamos, a partir de hoje a “Folha da Manhã”, a “Folha da Tarde” e a “Folha da Noite” adotam o nome comum de FOLHA DE S. PAULO.

Os três nomes tiveram justificativa enquanto designavam órgãos de estrutura diferente. Mas o tempo encarregou-se de mostrar que jornais editados todo dias por uma mesma empresa teriam de aproximar-se, naturalmente, de um padrão comum, que em nosso caso se veio concretizando em um mesmo noticiário geral básico. Não havia, como não há, fatos novos, em quantidade suficiente para alimentar três jornais autônomos na feitura.

Somos efetivamente a FOLHA DE SÃO PAULO, porque em São Paulo se edita nosso jornal e a São Paulo se consagra. Sem eiva regionalista, todavia, antes com a preocupação de servir ao Brasil, que é a única maneira de defender eficazmente os interesses do Estado e do país. Essa a razão do “slogan” que a partir de hoje figura sob o titulo destas colunas: “Um jornal a serviço do Brasil.” (UM..., 1960, p. 3.a)

A partir de 1962 assumem a direção da empresa Folha da Manhã S.A. Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, cuja preocupação inicial direcionou-os para a reestruturação econômica, tecnológica e comercial da estrutura que estava subjacente ao jornal. Por isso, foi somente na década de 1970 que essa diretoria definiu uma nova linha de atuação prática para o jornal, “[...] visando pressionar no sentido da ‘distensão’ e ‘abertura’ do regime militar e lançando-se a seguir na campanha aberta pela Assembléia Nacional Constituinte e pelas eleições diretas em todos os níveis” (SEVCENKO, 2000, p. 9).

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No entanto, apesar dessa linha de atuação, que redundaria na implantação do Projeto Folha na década de 1980, o jornal Folha da Tarde (esse jornal ressurge em 1967) durante a ditadura militar adotou um posicionamento que coadunava e cooperava com os militares. Esse período foi estudado por Kushnir (2001), que observou que a partir de 1968 a redação desse jornal passou a ser composta por uma grande quantidade de policiais, os quais reproduziam notas divulgadas pela Polícia Federal, caracterizando-as como matérias jornalísticas. Devido a essa atuação, a Folha da Tarde ficou conhecida como o “diário oficial da Oban”, que abreviava o termo “Operação Bandeirante” – o centro de investigação e tortura do Exército Brasileiro.

Vale ressaltar, que essas questões foram apagadas da memória oficial do grupo Folha. Exemplar dessa questão pode ser observado no acervo online da FSP, no qual não há edições digitalizadas da Folha da Tarde e no livro Primeira Página, editado pelo Publifolha, no qual fora publicado as 216 primeiras páginas consideradas mais importantes desde 1921, o qual não incluiu as capas da Folha da Tarde. Para Pires (2007, p. 312) a atuação da Folha da Noite durante a ditadura militar é excluída da memória oficial da FSP, pois

[...] a atuação colaboracionista e de defesa explícita das políticas governamentais e da repressão estatal não se encaixa bem a imagem em construção do principal jornal do Grupo e, como conseqüência, à imagem da própria empresa que se confunde até os dias atuais com a da Folha de S. Paulo.

Por isso, complementa a autora, a emergência da FSP em 1986 como dos principais

jornais do país está vinculada à construção de uma autoimagem voltada à defesa da democracia. Esse engajamento com a política democrática redundou na consolidação de alguns aspectos que conformaram e ainda conformam a estrutura da FSP. Mais especificamente, refere-se à efetivação da implantação do projeto e do manual de redação da Folha. Esses documentos, retraduzidos em lógicas de funcionamento passaram a designar a identidade do jornal por meio da política editorial que se compromete com um jornalismo crítico, moderno, pluralista e apartidário.

Outro aspecto importante se refere ao princípio de “objetividade”. Embora o manual de redação do jornal assuma que não existe objetividade no jornalismo, pois toda a atividade humana é pautada em decisões subjetivas, o documento designa que o jornalista da Folha deve ser o mais objetivo possível a partir do relato fiel dos fatos, aspecto que depende de uma postura de afastamento e frieza por parte do profissional (FOLHA DE SÃO PAULO, 2013).

Essa discussão pode ser estendida à reflexão de Traquina (2001), quando ele argumenta que as notícias são narrativas marcadas pela cultura dos seus membros e pela cultura da sociedade onde na qual estão inseridos. E a argumentação de Gastaldo (2003, p. 3), que aponta como característica do jornalismo esportivo uma relativização ainda maior da “objetividade” desejada pela prática jornalística. Para o autor:

A menor exigência de “objetividade” de um jornalista esportivo faz com que os discursos da imprensa esportiva sejam mais passíveis de manifestação de elementos simbólicos da cultura na qual se inserem – machismo, racismo e outros preconceitos, inclusive – permitindo pensá-los como um interessante “ponto de observação” acerca da definição de imaginários simbólicos em nossa sociedade pela mídia.

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Essas questões permitem-nos afirmar que a subjetividade do jornalista esportivo possui maior liberdade institucional. Liberdade essa que torna esse gênero jornalístico mais propício no que se refere à participação no processo que define o imaginário coletivo acerca de determinados eventos e personagens como, por exemplo, o mito do herói. Por isso, a opção por analisar o discurso empreendido pelo caderno de esporte da FSP sobre o jogador Ronaldo.

Antes de adentrar na análise específica do discurso emitido pela Folha de São Paulo sobre Ronaldo, procurou-se compreender um momento pontual na trajetória da carreira de Romário, antecessor do estrelato do Fenômeno, pois ambos os atletas eram tidos como os principais jogadores do selecionado brasileiro para aquela competição. Ronaldo era uma promessa, mas Romário era um jogador maduro, que fora considerado herói na conquista do tetra. (GUEDES, 1998, p. 61-81)

Os estudos realizados por Guedes (1995) e Helal (2003) analisam a construção da imagem desse jogador por parte da mídia, utilizando como principal fonte documental o jornal O Globo; Guedes utiliza como fonte complementar o Jornal do Brasil.

Esse tipo de análise pode auxiliar na percepção de que a mídia acaba construindo e em certa medida substituindo os heróis do esporte e, nesse caso específico, do selecionado nacional, os quais parecem que têm um ciclo a ser seguido e que ao seu findar darão lugar a um novo candidato a herói. Como salientou Cavalcanti (1999, p. 36), “[...] o herói sempre existirá e associa a sua exaltação a partir do momento em que a mídia o reponha com certa freqüência e que tenham pessoas que o consumam”. No mesmo sentido, Helal (2003, p. 11) destaca que “Um fenômeno de massa não se sustenta sem a presença de ‘estrelas’. São elas que atraem as pessoas aos eventos e transformam-se em um referencial para os fãs.”

Observando a forma com que os estudos abordaram a trajetória de Romário, pudemos constatar que ambos partem do problema acontecido entre esse jogador e a comissão técnica do selecionado nacional durante o amistoso realizado contra a Alemanha, em 1992, no Rio Grande do Sul; momento em que Romário levou a público o seu descontentamento em permanecer no banco de reservas, atitude que foi vista pela comissão técnica como ato de indisciplina, algo que foi recorrente na carreira desse atleta.

Nesse episódio, ambos os autores apontam a disputa de força entre um protagonista da equipe e os treinadores do selecionado, que nessa oportunidade detinham maior poder. Como consequência desse ato, Romário foi afastado dos jogos realizados pela seleção brasileira nas eliminatórias sul-americanas para a Copa do Mundo de 1994, gerando inúmeras polêmicas entre torcedores e uma parte significativa da mídia que solicitava o seu retorno, principalmente pelo fato de o selecionado nacional não realizar uma campanha convincente, cujo ápice ocorreu com a necessidade de vitória no último jogo das eliminatórias que seria realizado no Maracanã, contra a equipe Uruguaia, que também precisava de uma vitória para se classificar.

Diante dessa situação o mito de 1950 era constantemente rememorado, criando uma pressão ainda maior sobre os atletas do selecionado. Os autores não analisam o motivo da convocação de Romário para esse jogo, indicando somente que seriam pressões externas e a contusão de alguns atletas. Não obstante, Helal (2003) vai destacar a forma com que a mídia

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relatava os fatos que envolvia esse atleta, para isso ele extrai um fragmento do jornal O Globo do dia 8 de setembro de 1993, momento em que Romário disse: “Sei que sou bom e estou em boa fase [...] Eu sempre soube fazer gols e isso é o que todo mundo quer. Em 13 jogos no Barcelona já fiz 17 gols. Na Holanda, em 142 jogos fiz 148 gols. Por isso eles gostam de mim”.

O jornal não trata essa declaração como egoísta e individualista, preferindo mostrar que além de esses fatos serem verdadeiros, o ser-humano Romário é uma pessoa solícita, que se preocupa com a família, com os parentes e amigos. Discurso esse que acaba criando uma tensão entre uma possível arrogância e as preocupações de alguém que ascendeu socialmente mas não se esqueceu das suas raízes, algo fundamental em um país como o Brasil.

Cabe ressaltar que no jogo decisivo contra o selecionado Uruguaio o Brasil venceu por 2 × 0, com dois gols de Romário, que garantiu a classificação do selecionado para o mundial e a sua permanência no selecionado nacional.

Com a chegada da Copa de 1994 e a convocação de Romário confirmada, esperava-se que ele não só ajudasse o Brasil a vencer, mas que trouxesse aquele futebol alegre, dionisíaco que fora citado alhures por Gilberto Freyre. Romário era em certa medida o símbolo da brasilidade, uma brasilidade que vive no limite entre a norma e o desvio de conduta, mas para o jornal e para os torcedores tudo está redimido se ele for bem (entenda-se fizer gols) e o Brasil vencer.

A Copa do Mundo de 1994 acabou sublimando a figura desse jogador em herói. Não no sentido clássico estabelecido por Campbell do bom moço que vence as dificuldades, pois a carreira de Romário sempre foi marcada pela polêmica. Como indicam Guedes (1995) e Helal (2003), a imagem de Romário foi sendo transmutada do sentido de um herói “Macunaíma”, (hedonista, não gosta de treinar, é preguiçoso), vai dando lugar a uma rebeldia mais politizada (denunciadora) que não tem medo de falar sobre alguns acontecimentos políticos que aparecem nos bastidores do futebol.

O estrelato de Romário está localizado entre o encerramento da carreira de Zico, em fevereiro de 1990, sua consagração na Copa do Mundo de 1994, na qual ele foi escolhido pelos jornalistas como o melhor jogador daquele mundial, e o surgimento da nova promessa do futebol brasileiro – Ronaldo Nazário.

2.2. Ronaldo nas páginas de esportes da Folha de S.Paulo

A trajetória de Ronaldo Nazário (Fenômeno) é marcada por uma origem humilde. Nascido em Bento Ribeiro, um bairro suburbano da Zona Norte do Rio de Janeiro, quando adolescente tinha dificuldades financeiras para poder pagar o transporte coletivo e chegar até o local do treino. A vida desse atleta foi marcada por acontecimentos inusitados e precoces, a começar pela convocação para a seleção brasileira, quando foi para a Copa do Mundo dos Estados Unidos (aos 17 anos); a ida ao desconhecido (Europa); a vitória sobre os desafios que poucos conseguem realizar (eleito por três vezes o melhor do mundo). Somadas as várias lesões e retornos inimagináveis, são os ingredientes necessários para que uma mídia carente de referências pudesse criar na figura desse atleta o arquétipo do herói brasileiro, pois sua trajetória

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assemelha-se ao percurso cíclico do herói indicado por Campbell (2002). Fato esse que foi relatado na Folha de S.Paulo na crônica escrita por Torero (2002, p. D9):

A vida de Ronaldo Nazário daria um filme. E isso não é uma figura de linguagem. A história desse personagem segue realmente todas as regras para uma boa história. Dizem os manuais de roteiro que para fazer sucesso uma narrativa deve ter obrigatoriamente seis pontos: apresentação do personagem, crise, recuperação, preparação para o grande confronto, clímax e final feliz. Pois bem, na Copa de 94 temos o primeiro passo, a apresentação do personagem. O menino dentuço é o reserva de um grupo que conquista o título para seu país após 24 anos de frustrações. Ele cresce e, na Copa de 98, já é o melhor do mundo. Tem tudo para vencê-la. Seria a maior glória de sua carreira. Mas aí vem o passo de número dois: a crise. Vemos sua convulsão, e a derrota por 3 a 0. É aquele momento em que o herói vê o seu sonho cair por terra. Ele sofre vários reveses. “Está acabado”, dizem todos ao ver o osso do joelho como que saltando para fora da pele. Mas Ronaldo continua lutando. Então vem a recuperação, o passo três, conseguida após um árduo trabalho. Passa o tempo, e ele ganha uma segunda chance. Está novamente numa Copa do Mundo. É a preparação para o grande confronto. Um a um os adversários vão caindo, até que chega a hora de enfrentar o inimigo final. Que, como deveria ser, é o mais poderoso possível: a Alemanha. Para deixar as coisas ainda melhores, o inimigo é personificado em Kahn, que tem nome e costeleta de vilão. Começa o duelo. O mocinho tenta uma, duas, três vezes, mas nada. O clima já é de apreensão quando, para a ira de Kahn, ele consegue vazar a meta contrária. Minutos depois, nosso herói sela a vitória e faz seu país explodir de alegria. Eis o último passo, o final feliz.

No futebol o jogador pode obter o título de herói em um lance decisivo de uma partida, porém isso é bastante fugaz, pois no jogo seguinte ele pode sair vaiado de campo pela mesma torcida que havia vibrado com ele dias atrás. O ídolo apresenta um maior capital simbólico,3 pois a sua trajetória é construída com base em diferentes acontecimentos, dentre os quais destaca-se a necessidade de jogar no selecionado nacional, a identificação com a torcida; somado a isso, precisa da potencialização da mídia, que por meio de um processo de exposição intensa do candidato a ídolo acaba influenciando o imaginário coletivo, sedimentando uma imagem quase intocável.

O surgimento efetivo de Ronaldo como atleta do selecionado nacional aparece em um momento de descrédito do futebol brasileiro. Há 24 anos sem vencer a Copa do Mundo, classificada para o mundial com muitas dificuldades e com uma equipe que não havia convencido o torcedor, pois a equipe só conseguia bons resultados contra seleções sem representatividade no cenário esportivo. Em jogos considerados clássicos, os resultados não permitiam que o torcedor acreditasse na equipe (FOLHA DE SÃO PAULO, 1996).

Além disso, o último herói era Romário, como mostramos anteriormente ele era uma figura polêmica, que não atendia aos anseios da imagem de um ídolo nacional. Somado ao fato de que Zagallo era o treinador do selecionado e que o relacionamento entre este e o atleta era no limite do profissionalismo, a ponto de Romário ser cortado da seleção por uma contusão ocorrida na panturrilha, dez dias antes do início da Copa do Mundo e em circunstâncias bastante duvidosas, que não nos cabe discutir neste trabalho (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998).3 O capital simbólico pode ser definido como uma medida do prestígios e/ou do carisma que um indivíduo ou

instituição apresenta em um determinado campo. Cf. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

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2.3. Antecedentes da Copa do Mundo

Como havia sido campeã da última Copa do Mundo, o selecionado nacional não precisou disputar as eliminatórias. Para suprir a falta de jogos, a seleção realizou dois amistosos preparatórios para a Copa do Mundo de 1998. O primeiro deles contra o Athletic de Bilbao, empatando de 1 × 1. O segundo contra a seleção de Andorra, a qual até aquele momento nunca havia vencido um jogo oficial e acabou perdendo para o Brasil por 3 × 0. Nesses dois jogos Ronaldo não marcou gols, criando um clima de desconfiança, pois assim como acontecera com Romário, os torcedores depositavam nele as suas esperanças. Fato esse que foi destacado por Matinas Jr. (1998, p. 2), ao mostrar que o desempenho do atleta nessa partida resumiu-se a “Uma bola na trave... quatro defendidas pelo goleiro... dois chutes para fora... e Ronaldinho não consegue marcar contra Andorra”.

A imprensa começou a questionar as atuações do jogador, pois elas não correspondiam com o que ele havia apresentado na Copa América, disputada na Bolívia em 1997, na qual o Brasil pela primeira vez em sua história conseguira vencer essa competição fora dos seus domínios e Ronaldo fora artilheiro com sete gols marcados.

Em outra reportagem publicada no mesmo dia, apresenta-se que: 25% dos paulistas apontam Ronaldinho o pior da seleção (4.6.98). Tais discursos revelam o sentimento dos torcedores e uma insatisfação generalizada, que não fica circunscrita à atuação do jogador, pois os próprios cronistas da Folha de S.Paulo valem-se de estratégias discursivas para retirar desse atleta qualquer possibilidade de culpa, como destaca Suzuki Jr. (1998, p. 2): “Ronaldinho continua a ressentir o fato de não receber uma bola limpa. Ronaldinho está aprendendo que a pior solidão não é a companhia de um paulista, como diria Nelson Rodrigues, é o ataque da seleção”.

A ausência de questionamentos sobre a atuação do jogador leva a entender que o discurso em torno de Ronaldo fora realizado para reforçar a sua importância para a equipe e a necessidade de ter nele a figura central desta. Ronaldo participou de todos os jogos da seleção no mundial da França, apresentando um resultado de quatro gols nos sete jogos que disputou, destes, dois foram decisivos (Chile e Holanda), sendo considerado o melhor jogador do mundial, mas tendo esses fatos sido secundarizados pelo mal súbito acontecido momentos antes do jogo final.

No dia 9, a Folha destaca que Ronaldinho virou estátua de cera, no Museu Grévin, em Paris. Uma justa homenagem para o jogador eleito o melhor do mundo pela FIFA nos últimos dois anos. Nos dias seguintes, várias matérias retratavam diferentes fatos sobre o jogador, tais como: Ronaldinho tem namorada, matéria que destacou o fato de Ronaldinho ter levado toda a família e namorada (Suzana Werner) para a França e alugar uma casa para que todos ficassem “perto” dele, o que criou uma imagem de um jovem responsável, que nos momentos de folga desejava ficar próximo da família (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 4).

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2.4. O Caderno Copa do Mundo

A Folha de S.Paulo, buscava estimular o leitor para acompanhar a cobertura feita por ela na Copa do Mundo, mostrando que estava enviando para a França a maior equipe da sua história, a qual era formada por 26 jornalistas, dos quais catorze eram repórteres, seis, colunistas, cinco, fotógrafos e um, coordenador (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 9). O Caderno Copa de 98 era o quarto caderno do jornal, tendo em média catorze páginas totalmente dedicadas ao Mundial. “Será a primeira grande cobertura esportiva da Folha sob a inspiração do novo Projeto Editorial do jornal, divulgado em agosto, que defende um produto que separe o relevante do incidental” (Ibidem).

A primeira categoria emergida refere-se às relações políticas presentes no selecionado nacional. Ao tratar do amistoso realizado pelo Brasil com a equipe do Atlético de Bilbao, na Espanha no dia 31 de maio, o jornalista Matinas Suzuki Jr. (1998, p. 2), fornece indícios sobre a ingerência da Patrocinadora Oficial sobre a equipe, ao relatar que “[...] no segundo momento a seleção da Nike, digo do Brasil”. Esse discurso, poderia ser considerado um lapso, mas ele foi repetido pelo articulista em outras passagens, o que minimamente remete para a interferência da empresa no que acontecia dentro de campo.

No dia seguinte, uma reportagem apresentada por Humberto Saccomano (1998, p. 11) caminha no mesmo sentido e demonstra que havia uma preocupação por parte da FIFA:

A FIFA montou uma comissão especial para investigar a relação entre empresas de material esportivo e federações nacionais de futebol. Na mira está a parceria entre a CBF e a Nike, o objetivo é analisar a crescente interferência de certos fabricantes de roupas esportivas na organização de amistosos internacionais e em outros âmbitos de certas associações atléticas, segundo o que foi apurado pela folha certos fabricantes leia-se Nike e certas associações leia-se EUA e Brasil. A FIFA impede que a patrocinadora exerça interferência sobre a organização técnica dos jogos [...]

O tom de denuncismo dessas reportagens chama a atenção para aspectos obscuros do futebol, mas não permite avançar além de possíveis hipóteses, pois não se localizaram outras informações relevantes sobre esses acontecimentos. As matérias que envolvem a relação entre a Nike e a CBF passaram a ganhar novos contornos discursivos, como a que fora publicada por Suziki Jr. (1998, p. 11) “Ronaldinho vestiu ontem uma camiseta e um boné da coleção R9, que a Nike lançará a semana que vem, tendo o jogador como modelo”. Mesmo diante dessa transformação discursiva, localizou-se um primeiro indício, mesmo que especulativo, sobre os diferentes acontecimentos que sucederam a trajetória brasileira nesse mundial.

Esses mesmos indícios reforçaram os argumentos apresentados pelo deputado do PCdoB-SP, Aldo Rebelo, que buscava as assinaturas necessárias na Câmara dos Deputados visando instaurar uma CPI, para analisar a regularidade do contrato entre a CBF e a Nike (AZEVEDO, 2001, p. 12). Entre as preocupações destacadas por Rebelo estava o fato de que na década de 1990 grandes grupos de investidores internacionais foram atraídos para o setor esportivo, patrocinando e tornando-se coadministradores de clubes e jogadores (RABELO; TORRES, 2001, p. 19).

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Os colunistas da Folha de S.Paulo, também apresentaram seus argumentos sobre a relação da patrocinadora com o selecionado nacional. Alberto Helena Jr. (1998, p. 36) escreve uma matéria intitulada Tragicomédia, na qual relata a interferência das empresas em questões organizacionais do selecionado brasileiro:

A bola rolou como se fosse um jogo de verdade, com hinos nacionais, juiz, bandeirinhas, os craques dos dois lados, ambos da NIKE e tudo mais (a equipe de Andorra ganhou uniforme da Nike para poder jogar o amistoso). E foi tudo virtual, como se fosse real; exatamente os treinos de ataque e defesa que Zagallo insiste em realizar.

Juca Kfouri (1998, p. 6) também se manifesta sobre a relação entre a Nike e o selecionado nacional, a partir de críticas feitas pelo capitão do selecionado para a agenda de compromissos dos jogadores da seleção. Pena que o Dunga não seja contratado da Nike, críticas aos compromissos da seleção com a patrocinadora ganhariam ainda mais força. O capitão está preocupado com o clima da seleção e espera por uma metamorfose no primeiro jogo para que um eventual fracasso não seja debitado aos velhos.

O jogador Dunga era patrocinado pela Rebook (concorrente da Nike), ele criticou o fato de que na quinta-feira o time teve de diminuir o seu tempo de treinamento para participar de um evento social promovido pela patrocinadora. Esses posicionamentos não eram consensuais, pois para o atacante Ronaldo, que tem um contrato vitalício com a empresa, “...a inauguração não atrapalhou em nada o cronograma da equipe”. Já o técnico Zagalo disse: “Se você tem um patrão, precisa aceitar as ordens dele”.

No dia 14 de Junho apresenta-se uma matéria na qual destaca-se o fato de a Nike ter superado a Coca-Cola na avaliação dos torcedores. Além dos aspectos esportivos, Ronaldinho é o centro da maior campanha promocional que uma Copa do Mundo conheceu. Embora não seja patrocinadora oficial da FIFA, a Nike mandou uma tropa para a França. Uma campanha publicitária de milhões de dólares (a empresa não revela o valor) está na mídia e numa cidade grande de Paris, a Nike montou um parque com motivos futebolísticos. A estrela principal é novamente Ronaldinho, seu garoto-propaganda (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 1).

No dia 9 de junho o jornal destaca a vitória de Joseph Blater como sucessor de João Havelange no comando da FIFA, fato que foi veementemente criticado pelo jornalista Juca Kfouri (1998, p. 8) com uma matéria intitulada “Negócios nos bastidores decidiram sucessão”, nessa matéria o jornalista indica suposta compra de votos das confederações africanas, o que na sua visão justificou a vitória de Blater, e na sua visão essa vitória não trará benefício algum para o futebol, que continuará utilizando o mesmo modelo em vigor, sem transparência e truculento.

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Para confirmar esse posicionamento o jornal publica uma entrevista realizada com o Presidente da Federação Angolana de Futebol, Armando Machado:

Folha: Quem vai ganhar a eleição?

Resposta: Depende dos Negócios.

Folha insiste: Que negócios?

Resposta: Afinal, que língua você fala. Não é português?

Esse diálogo retrata o ambiente que antecedeu a eleição para a presidência da FIFA, no qual rumores mostraram que ambos os candidatos utilizaram todos os meios possíveis para vencer, inclusive negócios, cuja natureza exata ninguém ousou especificar.

Além da cobertura sobre disputa política pela direção do mais importante órgão gerencial do futebol mundial, o jornal volta a dar destaque para o futebol brasileiro e também para a imagem de Ronaldo, que ficou quatro dias sem ser manchete do jornal. Esse fato chama atenção, pois, como destaca Pêcheux (1990, p. 21), a “língua serve para comunicar e para não-comunicar”, ou seja, o discurso ou a sua falta são elementos ideologicamente definidos de acordo com os interesses de quem os profere.

Também vale a pena destacar a forma como o jornal volta a expressar-se sobre Ronaldinho, publicando uma suposta votação realizada entre os repórteres que estavam cobrindo a Copa do Mundo, para saber quem era o jogador preferido deles – “Ronaldo apareceu em primeiro lugar com 18 votos, seguido de longe pelo francês Zinedine Zidane que somou apenas seis indicações” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 12). Não fora feita qualquer menção sobre quem foram os jornalistas entrevistados e nem em que circunstâncias a votação aconteceu, a questão que recebe destaque foi o fato de Ronaldo ser considerado o atleta preferido.

No dia 8 de junho o jornal dá ampla cobertura para a eleição realizada para escolher o novo presidente da FIFA. Mas na primeira página do suplemento Copa do Mundo, destacou que o técnico escocês havia dito que sua equipe faria marcação individual e especial sobre Ronaldinho, por considerá-lo o atacante mais perigoso do selecionado brasileiro. Nesse dia, o jornal apresenta também uma foto de Ronaldinho rindo, utilizando um brinco que ganhou de uma fã em Minas Gerais.

Após a estreia do Brasil no Mundial, com vitória de 2 × 1 sobre a seleção da Escócia, sem conseguir marcar um gol e principalmente sem ter uma apresentação expressiva, Alberto Helena Jr. (1998, p. 2), na crônica “Esmola ao nosso Futebol”, mostra que pelo alto padrão do estádio, pelo número de torcedores e por toda a estrutura montada, deveria ser um jogo melhor. “[...] É verdade que uma jogada aqui de Ronaldinho, um lançamento primoroso de Dunga [...] mas o jogo de abertura é sempre marcado pelo nervosismo”. Esse fato também foi destacado pelo próprio Ronaldinho, que ao ser entrevistado depois da partida relatou que estava muito feliz com a estreia, pois “[...] existe uma cobrança muito grande no primeiro jogo, mas a tendência daqui para frente é melhorar, pena eu não ter marcado um gol, mas o principal é vencer e ajudar os companheiros a conquistar este resultado” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 3).

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Juca Kfouri (1998) vai elogiar a atuação de Ronaldinho como um dos melhores do mundial na primeira rodada. O editor de esportes Melchiades Filho utiliza números para justificar a atuação de Ronaldo, mostrando que o seu rendimento poderia ser melhor se o meio campo do selecionado não o deixasse tão abandonado, essa matéria vem acompanhada de uma grande foto de Ronaldinho correndo para pegar a bola (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 3).

Nos três dias seguintes, o jornal publica fotos de meia página de Ronaldinho, sem fazer qualquer tipo de comentário sobre a sua atuação na partida de estreia, da expectativa do torcedor de que o melhor atleta de futebol do mundo fizesse a diferença, a opção do periódico foi utilizar a imagem como forma de naturalizar um discurso neutro em que não se questiona a atuação do jogador, mas possibilita veicular a sua imagem, que acaba funcionando como um dispositivo de afirmação da memória oficial, na qual Ronaldinho é visto como o melhor atleta do mundo. Para Pêcheux (1995, p. 23-24), todo discurso se constitui de uma memória e do esquecimento. Os sentidos vão se constituindo no embate com outros sentidos; cabe destacar que em uma das fotos Ronaldo aparece beijando sua namorada, a atriz Suzana Werner, em uma matéria intitulada “Ronaldo, Futebol e Amor”, a qual além de ter uma função de marketing sobre os produtos da Copa, apresenta uma mensagem subliminar dos sentimentos humanos e da vida regrada de um jogador que é candidato a ídolo de um país.

No dia 16 de junho, uma chamada em primeira página apresenta uma foto de meia página do jogador e destaca “[...] agora só falta ele. Brasil joga pela classificação; Ronaldinho, pela volta dos gols”:

Eleito pelos técnicos da maioria das seleções nacionais como o melhor do mundo em 1997, Ronaldinho continua sem aparecer na tabela dos goleadores da Copa. Hoje, no segundo do Brasil contra o Marrocos, o atacante enfrenta a pressão de precisar marcar para não ser eclipsado por seus concorrentes.

[...] Expectativa de que artilheiro volte a marcar é grande e também contagia os outros jogadores. Antes não havia nenhuma pressão. Agora todos os olhos vão estar sobre ele, apontado como o melhor do mundo (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p.1)

A trajetória do mito do herói vai paulatinamente sendo construída, pois diante das adversidades o herói precisa recuperar a sua força.

Após a vitória por 3 × 0 contra a equipe do Marrocos, o jornal posiciona-se da seguinte maneira “Brasil desencanta: seleção é a primeira a se classificar, Ronaldinho marca seu primeiro gol...” (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 1). O jornalista Juca Kfouri, relata o fato da seguinte maneira: “Passeio em Nantes – Ronaldo desencantou num belo lançamento de Rivaldo” (Ibid, p. 2). Para o articulista do periódico Alberto Helena Jr., “...Ronaldinho movimentou-se o tempo todo, brigou pela bola e quando de posse dela, fez algumas jogadas de arrepiar. Mais do que isso: exorcizou, com gol, o fantasma do esteio que rondava o nosso artilheiro (Ibid, p. 3). Situação que também foi retrata por Matinaz Suzuki Jr. ao mostrar que “A mesma ira de que esta a tirar Dunga do sério, entrou no espírito do fora de série no primeiro gol, Ronaldo disparou com a mais profunda das iras, com raiva de Deus e do Diabo por não ter acertado até aquele momento. E só precisou correr para o abraço” (ibid. p. 4).

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Nesse dia foi possível confirmar a ênfase dada a Ronaldo nesse periódico, pois em todas as páginas uma das reportagens tinha ele como destaque. Na página seis do jornal colocou-se uma foto de meia página do jogador, que aparece de corpo inteiro e destaca-se os hematomas que eram resultados da sua dedicação em campo. Destacou-se também a presença em campo de sua noiva Suzana Werner e do gol que ele dedicara a sua mãe, reforçando a imagem do bom menino.

A vida afetiva do jogador volta à pauta do periódico no dia 19 de junho, quando ele apareceu em público sem aliança, abrindo espaço para uma série de especulações, tais como: “Uma pessoa próxima ao casal, conta que certa vez, em três dias, em Milão houve oito discussões”. O periódico prossegue mostrando que nos últimos dias os dois aparentemente trocaram pequenas farpas. Como forma de legitimar essa argumentação, apresenta uma reportagem na qual Ronaldo havia ganhado uma camiseta de sua noiva com os seguintes dizeres: “Não olhe muito que minha mulher é ciumenta”. Cabe aqui destacar que essa mesma reportagem fora publicada no dia 12 de junho em um contexto que apresentava a imagem de um jogador brincalhão e apaixonado, cuja camiseta tinha a seguinte mensagem “Não olhe muito que minha mãe é ciumenta”.

A crônica de Janio de Freitas (1998, p. 4), respeitando os limites éticos da profissão, pode nos ajudar a compreender os motivos que levaram os jornalistas a ter esse tipo de atitude:

Você já escreveu? É um dos numerosos articulistas que encontra outro. Ou telefona por qualquer motivo aparentemente alheio a pergunta. Só aparentemente porque a pergunta, na verdade, vai muito além de si mesma. Seu propósito, ainda que inconsciente, é saber se o outro alcançou a suprema sorte de obter um tema razoável para mais um artigo diário. [...] Em todas as Copas, digamos modernas, as chefias das delegações brasileiras e outras, procuram preservar seus jogadores de contatos excessivos com os jornalistas. É o jeito de evitar a fofoquice que seduz repórteres e é incontrolável nos efeitos. Os possíveis exageros de um lado, geraram agora, o exagero do outro.

Diante dessas assertivas e do fato de que nos jogos seguintes o jornal permanece com o seu projeto de heroísmo em torno da figura de Ronaldo, os argumentos utilizados (bom menino; jogador dedicado ao grupo; voluntarioso e solidário mesmo quando não recebe passes dos colegas da equipe; imagens; silenciamentos) são reiterados, o novo fato foi uma lesão contraída pelo jogador, a qual foi resultado de sua paixão pelo futebol, sua dedicação e esforço pelo selecionado nacional “Ronaldinho vinha dizendo que o problema é ter uma semana entre os jogos. Que a cobertura sem notícia inventa. Andou irritado com insinuação de estar gordo, feito pelo médico e ecoada na tv. E com perguntas sobre o joelho. [...] Ontem na Globo ele abriu o jogo ‘os dois joelhos vão mal, mas pela Copa do Mundo vale qualquer sacrifício’” (SÁ, 1998, p. 2).

Em outra reportagem emblemática o periódico tenta justificar a fase do atleta:

Não receber bolas; pela equipe não se beneficiar dos espaços que ele cria; teme-se que o seu abatimento influencie no seu rendimento [...] Ontem ele se recusou a dar entrevista depois do treino. Fisicamente há o problema do tendão da rótula do joelho esquerdo que provoca dor após esforços, tecnicamente ele está impreciso; taticamente ele não é considerado a alma da seleção; no terreno afetivo vem sofrendo com as brigas com Suzana Werner, mesmo diante dos comentários que o rompimento será definitivo, ambos voltaram a usar alianças. (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 5)

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Os cronistas da FSP foram em defesa do jogador, justificando que o problema estava no comportamento dos demais jogadores da equipe que deixavam Ronaldo isolado no ataque do selecionado, mas mesmo assim, no dia 15 de junho, o jornal estampa uma foto de meia página destacando Ronaldinho e Suzana Werner juntos (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 5). Além disso faz uma entrevista com o jogador, na seção denominada Pingue-Pongue, na qual o jogador prevê o time cada vez mais ofensivo.

Dia 16 nova foto de Ronaldinho em meia página, fazendo sinal de positivo durante treino de reconhecimento do gramado. A matéria destaca a expectativa de que o jogador volte a fazer gol (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 1).

Após a vitória no segundo jogo por 3 × 0 contra Marrocos, garantindo a classificação antecipada, todos os cronistas voltam seus elogios para Ronaldo que fez o seu primeiro gol no mundial, além disso publica uma foto de meia página do jogador em corpo inteiro, destacando os hematomas obtidos durante a partida (FOLHA DE SÃO PAULO, 1998, p. 6). O jornal mostra que segundo pesquisa do Datafolha Ronaldinho foi eleito o melhor em campo. Nos dias seguintes a estratégia permanece a mesma, com ênfase para Ronaldinho, seja destacando seus feitos dentro de campo, seja criando acontecimentos que o coloquem no centro da reportagem quando eles não acontecem.

3. Considerações finais

Ao construir uma imagem discursiva de um ser humano como qualquer outro, os articulistas do Caderno de Esportes da Folha de S.Paulo utilizam acontecimentos que aproximam o jogador dos torcedores, pois destacam os seus erros, a constante luta para vencer, a crise em um momento decisivo, a saudade da família. Tais valores humanizam o ídolo, aumentando e favorecendo um discurso de persuasão que potencializa a identificação com o torcedor.

A derrota na partida final da Copa do Mundo e as incertezas sobre a convulsão de Ronaldo serviram de justificativas para manter a esperança do torcedor – se Ronaldo não tivesse passado mal, o resultado seria outro. Da mesma forma, abre-se a expectativa para o novo evento que aconteceria em quatro anos e o craque estaria com 24 anos de idade, com maior experiência e pronto para se redimir.

A leitura dos editoriais do Caderno de Esportes da Folha de S.Paulo nos leva a acreditar que eles induzem o leitor a pensar naquilo que seus redatores acreditam. Para isso, valem-se de um discurso mítico para criar a imagem de um jogador diferenciado dentro e fora dos gramados, e para reforçar essa ideia utilizam-se de estratégias discursivas que justificavam as atuações questionáveis a partir de acontecimentos extra campo, levando o leitor a acreditar que a ausência desse atleta seria muito pior.

Os textos analisados construíram imagens positivas em torno da imagem de Ronaldo “Fenômeno”, depositando nele toda a esperança dos torcedores brasileiros. Ao mesmo tempo, os editoriais desqualificaram as pessoas, movimentos e frentes políticas contrárias a essa construção ideológica, até mesmo os cronistas supostamente discordantes de seus posicionamentos míticos.

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Predominou a panaceia de adjetivos que, embora talvez não soassem agressivos ao leitor menos atento, tinha o destino certo de desqualificar os opositores ao talento de Ronaldo.

É importante destacar que Barthes tratava o conceito de mito decorrente da maneira como se proferia o objeto da mensagem. No discurso esportivo, fica ainda mais oportuno aplicarmos a definição de mito barthesiano, porque foi dessa forma que o assunto foi tratado nos editoriais. Foram raras as vezes em que algum cronista procurou refutar, por meio de explicações consistentes, os argumentos dos cronistas/torcedores que mantiveram em um ídolo toda a esperança de um país. Mas como vimos, a trajetória dos ídolos tem data de validade determinada e provavelmente nas outras edições da Copa do Mundo novos ídolos precisarão ser construídos, dentro e principalmente fora de campo.

Referências

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