Quase - livro

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gustavo ferreira martins gomes quase PORÉM Hoje eu não fui campeão do mundo Não bati nenhum recorde Não descobri a cura da aids Não marquei um gol de placa Não dirigi um fórmula 1 Não escrevi a melhor crônica do mundo Não encontrei o maior diamante da África do Sul Não salvei nenhuma espécie ameaçada Não ganhei na loteria Não ganhei o Pritzker Não mereci o Nobel Não recebi um Oscar Não resolvi todos os problemas do Brasil Não acabei com as mazelas de Ourinhos Não escalei o Everest Não mergulhei no Caribe Não saltei de pára-quedas Não compus a décima de Beethoven Não fui eleito. Hoje eu acordei ao lado da Karina Beijei Luisa e Lauro Almocei bife e rabanete Trabalhei com meus amigos 7

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gustavo ferreira martins gomes quase

PORÉM

Hoje eu não fui campeão do mundo

Não bati nenhum recorde

Não descobri a cura da aids

Não marquei um gol de placa

Não dirigi um fórmula 1

Não escrevi a melhor crônica do mundo

Não encontrei o maior diamante da África do Sul

Não salvei nenhuma espécie ameaçada

Não ganhei na loteria

Não ganhei o Pritzker

Não mereci o Nobel

Não recebi um Oscar

Não resolvi todos os problemas do Brasil

Não acabei com as mazelas de Ourinhos

Não escalei o Everest

Não mergulhei no Caribe

Não saltei de pára-quedas

Não compus a décima de Beethoven

Não fui eleito.

Hoje eu acordei ao lado da Karina

Beijei Luisa e Lauro

Almocei bife e rabanete

Trabalhei com meus amigos

Hoje foi,

Outra vez,

O melhor dia da minha vida

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VIVA JUNINHO

20.12.2002-10:30

esta noite morreu um menino. jovem. leucemia. júnior. hoje fui ao mais terrível dos cerimoniais ocidentais. velório. o pai, que escolheu seu próprio nome para legar sabe lá o que, sentindo a dor de ter que se legar a dor. muita gente que não se conhecia, unidos por uma dor comum. mas não é comum, a dor. é particular. não se mede pelo choro ou soluço. cada um externa a seu jeito. e lá, o júnior externando sua paz. era o único com sensação de dever cumprido. todos os demais sentiam alguma falta, alguma culpa. todas caras de "se". já vi morte e sei que temo. quero vida após a morte. torço por isso. mas não gostaria de ver meu velório. é pior que aniversário. quem veio? quem não veio? lembrou de mim? vai sentir? melhor não ver. hoje à tarde tem o enterro.

20.12.2002-17:30

multidão. impressionante o número de pessoas tocadas por aquele jovem. ou pela família. hora do enterro. pessoas saem apressadas do velório, na direção contrária ao esperado. jovens ligam suas motos. várias. todas ao mesmo tempo. ruído infernal. aceleram de forma exagerada. talvez a mais tocante homenagem que assisti. lá fora as motos choram a dor que, agora, júnior não sente mais. choram a dor que, agora, a família sabe que é pra sempre. senti medo do tamanho do simbolismo daquelas motos. júnior, motociclista. não teve tempo de comprar sua suzuki, seu sonho. ganhou uma loja de motos. não teve tempo de aproveitar esse presente. foi com muitos sonhos por realizar. mais sorte que muitos, que ficam, sem sonho algum. hora de fechar o caixão. último adeus. alguém grita. viva Juninho. todos repetem. viva. muitos aplausos. multidão saindo. cabisbaixa. o caixão desce. juninho sobe. viva juninho. aquela multidão manterá juninho vivo.

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SAUDADE, NÉ?

Pra uma amiga distante

Saudade, né? Na gente, assim, vai crescendo, ficando maior do que a gente pensava e vai crescendo, ficando do tamanho do peito, maior que o peito, maior que meu todo, maior que tudo. Quando a gente vê, tá ali, tomando conta do ambiente todo, e a gente sai na rua e a rua é Saudade e a cidade toda é saudade. O sanduíche de mortadela tá com gosto de saudade e trovoa, cabrum, rambôu, e cai raio e tudo e chove saudade, aquela saudade fina que rega a cidade e segura o pó no chão e tudo fica umedecido e impregnado. A televisão, agora, só fala de saudade e meu cd é todo de saudade, o guarda roupa, todinho, pobre, só tem roupas cor de saudade, até aquela cueca, que havia sido comprada para um fim de ano, branca, na época, parece que foi pra máquina de lavar junto com uma saudade nova que desbotou e tingiu tudo, a meia, aquela calça jeans, não era stone washed?, agora é saudade. E a voz da moça da padaria mudou, só tem som de saudade e ela só fala saudade, mas a rádio esganiçada fm também tá tocando saudade e a gente não sabe mais de onde vem essa saudade. E conclui que é impossível não sentir saudade, assim, se tudo é saudade e a gente nem queria saudade, mas ela tá ali, grande, barulhenta, corpulenta, colorida, saborosa, saudosa. Então, ela é tão saudade em tudo, tão tudo saudade, que dá saudade de uma saudade mais simples, daquelas que a gente sentia antigamente, quando, no lugar desta saudade toda, global, universal, tinha você.

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CARTA A GABRIELA

Querida Gabriela,

Não sei se começo pedindo desculpas ou esperando que você me agradeça. Você sabe que eu quis você, muito tempo da minha vida. Na verdade, foi pouco tempo, cronologicamente falando. Mas foi em uma época muito importante da minha vida, a adolescência. Como todo mundo sabe, é uma fase muito marcante, com mudanças radicais e inseguranças naturais. Fase em que o tempo voa se arrastando.

Eu a quis muito. Porém, com a maturidade chegando, passei a não desejá-la mais. Percebi que não tinha necessidade de você. E, principalmente, a luz dos tempos corridos me ajudou a entender que você não precisava de mim.

Fui me tornando responsável, e a responsabilidade de tê-la não me parecia um peso impossível de carregar.

Xingaram-me, como ainda xingam, de medroso, b...-mole, insensível, egoísta. Chamaram-me de pouco viril, incompetente. Mas não me abalei. Eu queria não querê-la, para preservá-la.

Preservá-la de mim, da minha geração, do meu mundo.

Quanto mais eu não a queria, mais eu a amava. E mais certeza tinha que não seria bom, nem para mim, muito menos para você, que você convivesse comigo.

Preferi deixá-la onde está. Este ambiente não nos serve. Mas eu já estou aqui. Não posso sair, por enquanto.

Meus contemporâneos destruíram tudo que havia de bom neste lugar. Não haverá condições de ser feliz e saudável aqui. Por amá-la, não posso e não devo submetê-la a estas condições.

Fique onde está, espere-me. Talvez seja logo, talvez demore um pouco. Mas nós nos encontraremos aí. E seremos felizes, muito mais do que seríamos aqui.

Preciso confessar que sempre penso em você, que fui realmente egoísta em tomar esta decisão sem sua chance de opinião. Mas sei que você há de agradecer.

Amo você, Gabriela. Tenho saudade de algo que jamais existiu, exceto dentro de mim.

Amo você e todas as mães que você poderia ter tido.

Ama-me, por favor, minha filha, e entenda que se você tivesse nascido, nós sofreríamos juntos por este mundo inóspito que eu daria como lugar pra viver. Na sua dimensão, seremos mais felizes e livres para sermos tudo o que sonharmos.

Beijo.

Gustavo, seu eterno e nunca pai.

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DESCOBRI SER UM ANTI-ECOLÓGICO

Tenho pensado muito sobre a natureza, a sábia natureza. E, principalmente, sobre seus grandes defensores.

Tenho ficado aflito com a incoerência das manifestações. Porque devastar uma floresta é crime e irrigar uma região seca não é? E o ecossistema de clima árido? Por que não retirar da região seca o elemento que não se adapta a ela, o homem? Será que ninguém vê que alterar a umidade de uma região, pra mais ou pra menos, é igualmente prejudicial?

Bem, mas pensando sobre isso, percebi que não sou um ecologista defensor da natureza. Descobri que luto pela preservação de espécies animais e vegetais, encorajo a reciclagem de lixo e me preocupo com as reservas de água potável e ar respirável. Mas não é por motivos éticos. É meramente questão de sobrevivência, um certo instinto de perpetuação da espécie.

Não, não é só filosófico ou ideológico. É racional. Não é por ética.

Porque, pela ética, eu sou radicalmente contra a natureza e sua “sabedoria”. Sou colérico contra as leis da natureza, ou as leis-da-selva. Sou contra a vitória inevitável do mais forte sobre o mais fraco. Sou contra o abandono à morte das crias defeituosas. Não aceito a eliminação sumária dos dementes, considerados incapazes. Não suporto a imagem dos idosos sendo separados dos bandos para morrerem à míngua.

Sou a favor da inversão desta sabedoria, substituída por outra sabedoria, que enxerga a arte do demente, que incentiva a criatividade do diferente, que se inspira na experiência dos mais velhos, que, enfim, alia a força do mais forte à sensibilidade de mais fraco para um desenvolvimento mais abrangente, menos preocupado com as capacidades genéticas.

Assim, pela ética faço uma vez por semana um ato de anti-ecologia e me permito colaborar com uma entidade de apoio aos deficientes físicos, A.A.D.F.

Ali, me esforço para aprender a lidar com um mundo que me foi escondido durante quase toda minha vida. Ali descubro quão incapaz eu sou, em comparação aos usuários que, a cada momento precisam desafiar a natureza. Ali inspiro-me a lutar por uma causa, que, aparentemente não é minha, mas é.

Na A.A.D.F. vejo as dificuldades de uma associação genuinamente ourinhense, e exercito minha criatividade para criar mecanismos de vencer a falta de dinheiro, a falta de compreensão e a resistência das pessoas a ajudarem sem pensar em retorno imediato.

Mecanismos tais como escrever este texto e esperar que leiam e me entendam.

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ENQUANTO ISSO

Guerra no Líbano.

Bombas zunem nos ouvidos civis ensurdecendo os chefes militares.

Mortes úteis a alguns. Inúteis a quem morre.

Bombas em carros. Carros-bomba.

Homens-bomba esperando 40 virgens que já não existem sequer no paraíso.

Enquanto isso, milhares de fotógrafos acompanham cada passo de Gisele ‘Bindixen’.

Terrorismo na Europa. Aviões parados. Aeroportos cheios, ‘bombando’ de tanta gente.

Estações de metrô com gases e outras armas cruéis.

Xiitas esperançosos e rançosos ainda ameaçando Salman Rushdie pelos Versos Sacânicos, mais comentados do que lidos.

Religiosos diversos fazendo o diabo em nome de deuses de nomes diversos.

Enquanto isso, reuniões sobre o futuro da cidade têm poucos presentes, porque foram marcadas na hora da novela.

Baixaria descontrolada. Velhos ladrões da política se espantam com a cara-de-pau dos jovens deputados.

Executivos executam, senadores se nadam e deputados de putam. Juizes de direito fazem errado.

Dinheiro sujo se suja ainda mais. Morrem coitados pelo simples motivo que são coitados.

Não há justiça onde a esperávamos cega. Ficamos cegos de tanto ver.

Saber dá medo. Entender apavora.

Enquanto isso, fãs choram nos shows dos Rebeldes.

Polícia com medo de tomar tiro. Presos turistas em spas-nitenciárias.

Celulares de baterias infinitas e créditos ilimitados mandam ordens mortais.

Governo sorrindo do caos.

Cidades com sutis toques de recolher.

O medo tem nome, sobrenome, rg, cpf, número telefônico, e-mail e orkut.

E recebe camarão na quentinha em sua cela com closet e hidromassagem.

Enquanto isso, colunistas escrevem coisas óbvias, numa indignação quase confortável, não fosse o teclado do lap top...

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AFINAL, POR QUE UM DIA INTERNACIONAL?

“A história das mulheres é a história da pior forma de tirania que o mundo já conheceu: a tirania do fraco sobre o forte. É a única tirania que consegue durar.”

Oscar Wilde

Esse artigo é exclusivamente escrito para os homens. (É claro que eu sei que esta frase é como uma senha para fazer com que as mulheres queiram lê-lo...)

Caros colegas de gênero (quase usei a expressão “colegas de sexo”, mas iria dar uma conotação péssima), já está mais do que na hora de aprendermos a lidar com as mulheres. Já não podemos mais aceitar sermos enganados diariamente. O dia 8 de março deve passar a ser nosso dia de luta! É a marca mais gritante da nossa inferioridade.

Toda data comemorativa é um dia para homenagear uma classe trabalhadora, uma profissão ou uma minoria. Mulheres são maioria e, apesar de muitas ganharem dinheiro pelo simples fato de existirem, mulher não é profissão.

Onde foi que nós erramos? Quando foi que as deixamos nos enganar desta forma? Passamos o ano todo fazendo esforços para conquistá-las e agradá-las e chega o dia 8 de março e lá se vão caminhões de flores, entopem-se restaurantes e motéis. Sem falar no peso na consciência, por sermos homens.

Elas, em segredo, se riem às fartas, caçoando da nossa estupidez, e maquinando novos planos de dominação. Abusam cotidianamente de nosso cérebro pouco evoluído, através da sedução, controlando nossas atitudes e massacrando qualquer tentativa de fuga do subjugo.

Sandálias de salto alto, minissaias, decotes, calças justas. Somente alguém estúpido como um homem para não associar o sofrimento para se usar essas peças ao uso de pesadas e desconfortáveis armaduras. Sim, amigos, elas estão vestidas para a guerra.

Quando não utilizam armas visíveis, são ainda piores e tiranas. A sedução através de palavras certas, críticas mordazes, raciocínios complexos mata-nos ou imobiliza-nos. Olhares são fatais como lâminas.

E o que dizer do uso cruel das palavras sim e não? Como somos facilmente decifráveis, elas apelam. Dizem não, quando queremos sim. E sim, quando elas querem sim. E vice-versa, talvez, se lhes interessar.

Precisamos nos unir! (Xi, ficou ruim. Estou queimando meu filme, com essas frases...) Bem... Precisamos evitar que esta situação de controle pela ditadura da fragilidade continue. Precisamos nos armar, nos instrumentalizar. Enquanto estivermos hipnotizados assistindo ou jogando futebol, esvaziando nossos cérebros com situações esportivas previsíveis, elas estarão trabalhando em silêncio criando artifícios para aumentar nossa condição de culpados. Arrumar a casa, cozinhar e lavar louça são partes de um estratagema ardiloso, visando tão somente uma sensação de culpa por estarmos, ao mesmo tempo, esparramados no sofá..

Homens, precisamos aprender mais sobre esse ditador. Precisamos conhecer a fundo suas estratégias. Necessitamos urgente decifrar os códigos que usam para, secretamente, nos fazer de

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capacho, a despeito da histórica impressão de que somos o “sexo forte”. Urge desvendar suas armadilhas.

Então, larguemos já o controle remoto (artifício hipnotizante, prova inconteste de nossa inferioridade), queimemos as Playboys, as Placares, as QuatroRodas. Atiremo-nos com avidez à leitura de Marie Claire, Cláudia, Nova. Vamos compreender seus métodos.

Fica estabelecido que cada um de nós precisa assistir “Tomates Verdes Fritos”, “Thelma e Lousie” e “Como Água para Chocolate” até entendermos. Até que rolem lágrimas genuínas de nossos olhos (sinal inicial de evolução).

“Nunca fui capaz de responder à grande pergunta: o que uma mulher quer?”Sigmund Freud

Agora, falando sério, já está mais do que na hora de nos esforçarmos a aprender a conversar com as mulheres (isso significa “falar” e “ouvir” - algo muito importante). Precisamos aprender a falar menos DE mulher e falar mais COM mulher.

E, se tivesse alguma mulher lendo, eu até diria parabéns...

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O HOMEM IDEAL

O homem ideal é forte para abrir um vidro de azeitona,Mas não para bater em outro ser.

É decidido e convicto,Mas coerente e flexível.

Sabe falar,Mas é melhor ouvinte.

Tem tesão o tempo todo,Mas sabe esperar as horas certas para demonstrá-lo.

O homem ideal é corajoso,Tão corajoso que assume seus medos.

É ambicioso,Mas não é ganancioso.

Gosta de beber,Mas sabe fazê-lo.

O homem ideal adora competir,Mas sabe perder com elegância.

Tem uma cultura invejável,Mas não gosta de provocar inveja.

Sabe apreciar uma mulher bonita,Mas não fica ridículo só para fazê-lo.

O homem ideal sabe que um carro é só um meio de transporte,Que cerveja é só uma bebida,Que futebol é só um esporteE que sexo não é esporte.

O homem ideal sabe cozinhar,Mas reconhece que cozinhar todo dia é uma tarefa ingrata.

Não é neurótico com arrumação,Mas entende que a roupa não fica limpa e passada por mágica.

O homem ideal sabe que sua mãe e sua mulher são pessoas diferentes,E agradece a Deus todo dia por isso.

É perfumado,Mas não provoca rinite.

Veste-se bem,Mas gosta de uma camiseta velha.

Entende o ritual de uma mulher em frente ao espelho.

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Conhece estria, celulite e cicatriz,E ama cada marca que o tempo deixa na história da pessoa amada.

O homem ideal é viril e orgulhoso,Mas sabe rir de si mesmo quando broxa.

Respeita as diferenças e luta pelos direitos alheios.

Sabe rir e chorar.

Tem humor e amor, não necessariamente nesta ordem.

E, sobretudo,Sabe exatamente o lugar da mulher:Ao seu lado.

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INVEJA DA FÉ

“Se um homem tiver realmente muita fé, pode dar-se ao luxo de ser cético.”Friedrich Nietzsche

Ontem recebi uma carta junto com minha correspondência. Uma carta escrita à mão. Sem selo, foi entregue na portaria do edifício. Gisele, da Vila Odilon, a remetente. Estranhei. Não conheço Gisele na Vila Odilon. Abri. “Prezado leitor...” Vocativo impessoal, deveria ser uma corrente. Já imaginei o texto. Mas a curiosidade falou mais alto. Segui a leitura.

O texto falava sobre a morte e a ressurreição. Afirmativas definitivas, baseadas na Bíblia. Talvez Gisele quisesse me confortar e, assim, me convencer a estudar a Bíblia e aprender “a esclarecer qualquer dúvida”, no templo das Testemunhas de Jeová. Que, agora eu sei, fica na Vila Odilon.

Mal sabe Gisele que falar sobre a morte, jamais vai me trazer conforto.

Meu primeiro sentimento, com a carta na mão, foi de pena. Sempre tive a impressão de que as pessoas exageradamente religiosas têm o mundo muito estreito. Como todo fanático. Basear toda sua sabedoria em um único livro sempre me pareceu uma visão muito acanhada da vida.

A Bíblia. Traduzindo, “O Livro”. Para muitos o único, por ser sagrado. Eu acho curioso as pessoas atribuírem a Deus a autoria da Bíblia. Afinal, foram homens que escreveram, reescreveram, traduziram, divulgaram, editaram, reeditaram. Homens são falíveis. Homens interpretam segundo suas culturas. Homens, involuntariamente, ou não, distorcem os fatos pela sua visão. Enfim, eu não confio tanto no Homem, para por toda credibilidade em qualquer livro escrito por ele.

Esta carta de Gisele contrasta muito com outra notícia, que também recebi ontem. Fui aprovado no curso de Mestrado em Marília. Minha primeira providência, a partir de agora, é ler. Muito. Muitos livros, de autores diversos, muitas vezes com opiniões contrárias. E depois de lê-los, preciso extrair, de acordo com meus próprios conceitos, opiniões, conclusões e certezas. Certezas? Dificilmente terei tantas certezas, após ter sido bombardeado por tanta informação e conhecimento. Mas também creio que é assim que se constrói o conhecimento. Desencadeando perguntas que serão respondidas com novas perguntas.

Ao final do dia, pensando no importante passo que estou dando na carreira profissional, olhei mais uma vez a carta da Gisele e senti, no fundo, uma inveja. Seria tão mais fácil, tão mais tranqüilo, se eu pudesse ter todas as respostas em um só livro. Poderia afirmar as coisas baseadas em frases definitivas. Iria me bastar a leitura de um só volume. Diariamente, procurando as respostas e encontrando. Deve ser muito mais confortável acreditar. Que inveja desta paixão. Que inveja desta fé. Creio que nunca chegarei lá. Nas vezes que li a Bíblia, fechei o livro com mais perguntas do que respostas. Aliás, como faço com todo livro. Não sei se sou sem fé ou se sou um curioso incurável.

Provavelmente, procurar a resposta para esta pergunta irá me trazer ainda mais perguntas.

“A Fé pode ser definida em resumo como uma crença ilógica na ocorrência do improvável.”

H. L. Mencken

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BEIJOS, SABORES

A Menina do sorvete me beijou gostoso. Não teve gosto de menina. Nem gosto de sorvete. Nem sequer só gosto de beijo, apenas. Teve gosto de gostoso.

Beijos são tão efêmeros. Passam. Você escova os dentes e já foi. Aquele gosto impessoal de menta, sei lá, apaga o sabor do agora há pouco.

Beijos são eternos. Lembro de quase todos. Minto. Não lembro os beijos. Lembro as bocas. Suas donas.

Mulheres têm perfumes. Às vezes as mesmas marcas. Cada marca marca diferente. Mulheres têm perfumes diferentes. Beijos têm perfumes diferentes.

Quem beija bem ama bem. Ou vice versa? É impossível pensar um delicioso amante de beijos insossos. Vejo assim. Se o beijo não anuncia um amor quente, não se beija mais, não se ama, tampouco.

Putas, geralmente, não beijam. Guardam o beijo como presente legado aos pobres amantes das putas. Amantes sinceros, beijam e amam. Pagam em beijos. Valores invertidos de um mundo invertido.

Beijos são necessários.

E a menina do sorvete não mais me beijou. Ficou a saudade da menina. Ficou o gelado do sorvete. Ficou o gosto do não mais.

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EU ME MATO!

“Dívida e fracasso levam homem a tentar acabar com a vida” (manchete da edição 104 de 27/09/2003, Diário de Ourinhos)

Quanta gente se mata? Por quais motivos? Ainda fico na dúvida sobre suicídios: são atos de covardia ou de coragem?

A dor da morte violenta e a morte em si, que é totalmente desconhecida, são desafios que demonstram muita coragem por parte de quem toma esta decisão. Mas os motivos por trás dos suicídios, geralmente, são covardes. Não agüentar a pressão das dívidas, ou um desamor, ou qualquer desilusão e apelar para a morte é como a criança que diz “não brinco mais” frente ao resultado negativo.

É realmente assustadora a situação de alguns chefes de família que, desempregados, não podem sustentar seus filhos e esposa. Conta a cobrança da sociedade machista, que esfrega na cara do ‘fracassado’ as incompetências masculinas.

Mulheres suicidam-se menos. São as verdadeiras responsáveis pela tarefa de perpetuação da espécie. Homens, em qualquer espécie, se lançam a lutas e guerras para defender territórios, fêmeas ou ideais(?).

Mas o que mais me intriga é saber que o maior número de suicídios ocorrem nos países nórdicos (Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca). Há quem explique o fenômeno dizendo que o tédio é muito mais desesperador do que o fracasso. Deve ser bastante insuportável saber que não é preciso fazer esforço algum, porque sua vida está garantida, desde a escola até o seu último emprego, por uma política de governo organizada e coerente. Será? Eu duvido. Mas faço força para acreditar, para me sentir mais confortável com esta situação maluca em que vivemos, na qual preciso vender a cama para comprar o colchão.

Eu, particularmente, não me suicidaria. Acho que sou covarde para tanto. Mas anuncio o contrário: sou muito macho para enfrentar este mundo. Pensando bem, deve doer um bocado. Tiro, enforcamento, afogamento, veneno, queda do 10º andar? Não, obrigado. Prefiro conta no fim do mês. Prefiro até ser corno. Choro, esperneio, juro vingança, mas não mato nem me mato. Vê lá! Pra essas coisas tem remédio. Pra morte, até que o Chico Xavier apareça (hoje em dia) na minha frente para me convencer do contrário, não tenho nenhuma certeza.

E o rapaz, que conseguiu manter-se incógnito, não se atirou lá de cima do J. J. Carvalho. Alguns populares queriam vê-lo se esborrachando na laje do Café do Ponto. Até xingaram o pobre coitado, pela incompetência. “Nem se matar o cara consegue, tsc, tsc.” Tenho pra mim que quando alguém deseja mesmo morrer, se mata e pronto, não avisa, não ameaça, não chama a atenção. Vai lá e, puft, já era. O motorista do táxi só vai entender o que aconteceu uma semana depois, quando se recuperar do susto com o barulho de 70 quilos caindo de 50 metros em cima do porta-malas.

Suicidas elegantes deixam bilhetes elegantes. Poucas palavras, diretas, literatura. Quase poesia. “Chega. Não dá mais. Elaine, você me machucou além.” Mas morte, apesar de séculos de propaganda enganosa (Romeu e Julieta, Bang-bangs, arakiris, kamikases), é sempre feia. Sempre sobra um corpo desfalecido e deformado a dar provas da feiúra da falta de vida.

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Mais um motivo para eu não me suicidar. É antiestético morrer. Um arquiteto não pode pactuar com essa falta de beleza. Então tá!

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DIPLOMAS E PASTÉIS

Breve Cronologia:19 de maio de 1965 – nasci;dezembro de 1982 – prestei vestibular para Publicidade e Propaganda;janeiro de 1984 – passei no vestibular de Arquitetura;dezembro de 1988 – me formei em Arquitetura;março de 1997 – terminei pós-graduação em Administração de Marketing;25 de janeiro de 2003 – comprei um pastel.

Sempre busquei me envolver em atividades nas quais a criatividade tivesse papel importante. Minha tentativa frustrada de entrar no curso de Publicidade e Propaganda foi útil para que eu me definisse por uma profissão na qual eu desenvolveria minha criatividade aliada à técnica e ao bom-senso.

Hoje, acredito que a arquitetura exige mais bom-senso do que qualquer outra habilidade do profissional. Criar espaços confortáveis, surpreendentes e bonitos, e que, ainda por cima, agradem o instável gosto dos clientes é um quebra-cabeça. Exige muito bom-senso, bastante bom gosto, um tanto de conhecimento técnico e uma noção de psicologia. Se sobrar tempo e espaço (e o cliente deixar), um pouquinho de criatividade.

Quando decidi fazer Marketing, além de resgatar meu sonho inicial de 1982, procurei entender um pouco mais sobre as ferramentas utilizadas para se atingir o sucesso de um produto ou serviço. Foi uma escolha positiva, que somou noções importantes de análise e planejamento ao conhecimento técnico da arquitetura.

Mas, então, eu comi um pastel.

Sábado passado, 10 horas da manhã, resolvi comprar pastéis para “fazer uma boquinha” com os colegas de trabalho no escritório de um cliente.

Entrei, inocentemente, no Bar Ipiranga, na esquina da Duque de Caxias com Rua Amazonas.

Entrei, olhei, prestei atenção. “Quero meu dinheiro de volta”, eu pensei. Mas eu nem tinha comido ou pedido. Eu queria todo meu dinheiro, investido em estudos, de volta.

O Bar Ipiranga contraria absolutamente tudo (ou quase tudo) o que aprendi nas escolas.

O ambiente é antigo, sem chegar a ser histórico. A decoração é nula. O atendimento é frio, gelado. Você não chega a ter certeza que seu pedido foi escutado. O cardápio é mínimo. A atenção ao cliente beira o descaso, sendo que às dez horas, horário crucial, deixam a massa acabar e nem se desculpam por fazer você esperar mais de dez minutos por um pastel.

E, a despeito disto tudo, o lugar está sempre lotado. Muito lotado.

Em qualquer exemplo teórico, em um curso de Marketing, o Bar Ipiranga teria falido. Mas o pastel é ótimo, e é isso que derruba qualquer conceito (ou preconceito) acadêmico.

Antes de sair, pensei em perguntar o nome da família e os dados como data de fundação do Bar. Mas desisti diante de um não-sorriso-quase-desprezo.

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Sábado, dez horas e vinte e poucos minutos. Saí do Bar Ipiranga furioso com meus professores. E feliz comigo. Tinha, nas mãos, pastéis deliciosos. E, na cabeça, assunto para escrever no jornal do sábado seguinte.

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MORRER DE BEM COM A VIDA

“Morrer deve ser bom, afinal, niguém volta!”

O Conselho Federal de Medicina resolveu que o médico pode, com o consentimento da família, abreviar o sofrimento do paciente terminal.

É muito fácil tomar esta decisão, estando do lado de fora do problema.

Eu sempre achei natural e clemente, ajudar uma pessoa a não sofrer. Quando meus parentes morreram (e não foram poucos), eu sempre me confortei imaginando que eles estariam aliviados, com suas almas libertas de corpos irremediavelmente doentes.

A dor física de uma doença terminal é cruel. Mas é pequena perto da dor emocional e psicológica de uma doença que destrói aos poucos e faz o ser humano encarar o inevitável: todos vamos morrer. Todos sabemos que iremos morrer. Só não sofremos tanto com isso porque não sabemos o quando e o como. A doença terminal desvenda estas duas variáveis. E isso dói. Dói mais que a dor.

Apesar de toda essa experiência, passei por outra situação que me faz pensar muito sobre abreviar o fim.

Quando meu irmão teve um AVC (o popular “derrame”), os médicos afirmaram categóricos: “ele só tem 5% de chances de sobreviver”. O tom grave da frase demonstrava que a chance de qualidade de vida, caso sobrevivesse, era zero. Ele sofreria eternamente a dependência dos outros.

Mas a vida, essa caixinha de surpresas, fez com que meu irmão, agarrado em um fiapo de chances e um enorme desejo de continuar, se curasse, evoluísse e voltasse a ser o mesmo irmão de sempre, produzindo e fazendo alegria.

Difícil saber se a eutanásia é a melhor solução. É uma decisão complexa demais. Ninguém sabe se é bom morrer. Se é mesmo um alívio.

Gosto da filosofia espírita, porque nos conforta quanto a esta incógnita. Prefiro pensar que existe um porquê, após esta vida. É uma forma de entender o que, afinal, estamos fazendo neste planeta cheio de “leis naturais” e regras não-naturais.

O mais complicado é que quem deveria dizer o fatal “desliguem as máquinas!” dificilmente está lúcido para fazê-lo. E nós ficamos sem saber a real opinião do maior interessado.

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MENTIRAS

Algumas frases-feitas são tão batidas quanto reais. Uma delas é: "Quem conta um conto aumenta um ponto". É sempre assim.

Muitas vezes, começa como uma verdade. Mas vai tomando outro rumo.

Um homem morre na esquina, atropelado. Um veículo fazendo a conversão à direita. O motorista, preocupado com o fluxo de carros vindo pela esquerda, não percebe o desatento pedestre que tenta atravessar depressa, para não perder o ônibus que se aproxima. Batida boba, em baixa velocidade, mas o desequilíbrio do choque faz o homem bater a cabeça no chão. Desfalecido, não resiste aos ferimentos que a roda do carro faz em seus órgão internos. Morre no hospital.

História comum, coisa de cidade grande ou crescendo. Cidade pequena, as pessoas morrem de raio, queda em poço, coice de mula e facada de amor. Cidade grande mata com equipamentos modernos, carros e revólveres.

Mas, de tão comum, banal, quem conta pro amigo não acha graça em repetir o que viu. Deixa a imaginação fluir. Na hora da aglomeração - cidade grande tem aglomeração na morte; na cidade pequena, morre-se sem rodinha em volta - escutam-se muitas coisas, todas úteis para compor a 'releitura' da história, a ser repassada.

Alguém fala, solene, que o morto morreu como um passarinho. Já posso dizer que o falecido era colecionador de passarinhos, inclusive, vinha sendo procurado pelo Ibama. Algo a ver com alguns espécimes do Pantanal.

Outro diz que parece o pai do balconista da loja da esquina. Ótimo, o falecido era dono da loja da esquina. E não é que o pobre filho viu tudo, de dentro do balcão e não pode fazer nada?

O atropelado levava uma sacola de supermercado, um saco de arroz estourou e espalhou o produto. Certo. A filha do falecido, à beira do casório, terá que desmarcar a cerimônia. Triste, não terá quem acompanhá-la ao altar. O arroz pra jogar na noiva, sujo de sangue, era a prova cabal de uma infelicidade vindoura.

O motorista quase desmaia ao ver a situação do atropelado. Já me sinto autorizado a afirmar que o motivo do acidente foi um ataque epilético do motorista. Se alguém comentar que tem um parente que tem esse problema, que trata com o dr. Tal, já me empolgo e posso passar que o coitado do motorista foi vítima do descaso do dr. Tal, que trata muitos pacientes ao mesmo tempo e não prescreveu a medicação certa. Ou será que a medicação foi prescrita, mas a Secretaria de Saúde não forneceu? Ou forneceu remédio vencido?

Tem graça falar só a verdade? Claro que não! Como fazer para manter a atenção dos interlocutores? Ninguém mais pára para escutar que um homem morreu na esquina. Mas se a história for de um mega-empresário, epilético, em alta velocidade (quase 170 km/h), fugindo da polícia federal com dólares falsos, que atropelou um pobre aposentado que estava se esforçando para ajudar no casamento da triste filha, saída recentemente do convento, de onde saiu curada milagrosamente de uma paralisia nas duas pernas, aí pode ser que os ouvintes se interessem. Se houver requintes de terror, com detalhes das víceras do homem se espalhando, tomando vida

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própria pelo asfalto, sabendo-se que o coração do homem ainda não foi encontrado, mas que há indícios de que bate forte dentro de um bueiro próximo.... aí sim, a história pega...

Não é por mentira gente, não é maldade. A culpa é do IBOPE. A gente precisa apimentar o fato, pra ele sobressair. Senão o povo te deixa falando sozinho. E é muito triste falar sozinho. Só não é mais triste que escrever crônicas que ninguém lê...

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HOMO-HIPÓCRITUS

(Desculpem-me, essa carapuça é regulável)

O homem, além de se diferenciar dos outros animais por ter um cérebro evoluído e o polegar opositor, com o qual pode segurar e manipular ferramentas e mudar o mundo, tem uma característica única no reino animal. A hipocrisia.

Esta característica especial é fruto de anos e anos de utilização do cérebro avançadíssimo. Com esse cérebro, o Homem pode desenvolver o raciocínio, a lógica, o discurso. E, utilizando esse conjunto de ferramentas inteligentes, o Homem desenvolveu o cinismo e a hipocrisia.

Não seria verdade afirmar que o Homem só produz hipocrisia da soma destas ferramentas incríveis. Existem milhões de exemplos de usos da inteligência para o bem, é claro! Mas o que assombra no Homem é a capacidade de dizer milhares de verdades para justificar uma mentira.

Essa introdução toda me surgiu por causa da Zona Azul de Ourinhos.

É incrível como o ourinhense, apesar de não se manifestar abertamente, tem orgulho da Guarda Mirim (AMO-SIM). Todo mundo nesta cidade conhece um bom número de exemplos de homens e mulheres que passaram pela guarda e, apesar de um histórico social e/ou familiar negativo, venceram na vida e são profissionais e pessoas reconhecidamente competentes.

Mas esta mesma população, aparentemente, fez um grande barulho, se revoltando contra o aumento de 100% do valor da Zona Azul.

Devo frisar a palavra “aparentemente” no parágrafo anterior. Porque o barulho foi criado justamente por quem mais pode pagar. Mas o ser humano, hipócrita que é, não assume sua mesquinhez. Quando o dono do carro importado, com IPVA acima de R$ 2000,00, reclama do novo valor, nunca fala “Eu acho caro, não quero pagar!” Afinal, é óbvio que esse discurso é ridículo e vergonhoso. Então, esse mesmo, que pára duas “horinhas” para tomar um cafezinho de R$ 1,35, comprar um perfuminho de R$ 150,00 e uma lingerie de R$ 200,00, reclama que “é um absurdo esse aumento, porque o pobre não agüenta mais tantos impostos e taxas e o governo não tem pena dos desfavorecidos”.

No discurso fica bonito... Mas eu me pergunto: a que pobre esta pessoa se refere? O pobre, mesmo, não tem carro, anda a pé, de bicicleta ou de ônibus. Alguns, com grande suor, adquiriram um veículo, mas, devido às dificuldades gerais, sabem que andar algumas quadras para estacionar o carro faz bem à saúde e ao bolso.

O discurso hipócrita, geralmente se apóia na ignorância. Na maior parte das vezes na ignorância do ouvinte, mas também na do discursante. E, para reforçar a indignação com o “aumento abusivo” joga a culpa na Prefeitura, que é Judas conhecido, devido à má fama dos políticos que o PT federal ajudou a enlamear de vez.

É claro que não interessa ao incomodado perceber que NENHUM centavo da Zona Azul de Ourinhos reverte para a Prefeitura. Toda a renda vai para a Guarda Mirim, que acolhe, educa, prepara para a vida centenas de jovens ourinhenses, a maioria de famílias que não conseguiriam garantir a formação de um cidadão completo.

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Esses hipócritas, socialmente míopes, em suas viagens “de reciclagem cultural” por São Paulo ou Curitiba, olham para os meninos abandonados nos semáforos e exclamam, mais uma vez indignados: “Isso é um absurdo, ALGUÉM deveria fazer ALGUMA coisa!”

Alarmante é pensar que esse “alguém” que deveria fazer algo é a própria pessoa, parte da sociedade, com capacidade de ajudar. Assusta mais ainda é que essas pessoas não entendem que Ourinhos não tem meninos nos semáforos, justamente porque tem, entre outras instituições, a Guarda Mirim. Então, em Ourinhos, ALGUÉM está fazendo ALGUMA coisa.

Mas entender isso, desta forma, custa míseros cem centavos. Muito barato para termos este orgulho.

Infelizmente é caro demais para o bolso do hipócrita.

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EU SOU MEDÍOCRE

“No exato minuto em que um homem se convence de que é interessante, ele deixa de sê-lo”Stephen Leacock

Certa vez, li uma pesquisa que concluía que sempre mais de 80% das pessoas de qualquer grupo julgam estar entre os 10% melhores. Pelo menos 70% sempre estão errados. Sem contar que alguns dos realmente melhores têm humildade suficiente para não se julgarem entre aqueles 10%.

E não precisa ir muito fundo na pesquisa. Entre em uma roda de pessoas. Qualquer que seja o grupo (exceto em grupos de auto-ajuda para suicidas...), a conversa será em torno dos feitos heróicos de cada um. Se não for isto, o assunto será a incompetência de outrem, que de qualquer maneira enobrece os feitos dos presentes. O ser humano é assim, vaidoso, orgulhoso.

É claro que o fracasso é muito punido em qualquer sociedade. Mas isso virou motivo para as mentiras mais exageradas. Todo mundo é herói, todo mundo é competente, todo mundo sabe tudo sobre tudo. Bah! Que nojo! Cansei.

Tenho uma teoria interessante sobre os efeitos da miopia na personalidade das pessoas. Desde pequeno eu enxergava mal. Era o caçula de uma família de ótimos “enxergadores”. Lá em casa, ninguém usava óculos. Eu, obviamente, (desculpem o trocadilho) custei muito a enxergar a verdade: eu precisava de óculos. Só sucumbi à verdade aos 13 anos. Até então, olhava o mundo com olhos nus e via-o muito mal. À distância, as pessoas eram todas iguais, tinham todas expressão nenhuma. Por não reconhecer as expressões dos outros, sempre odiei grandes grupos, com conversas à distância. Eu viajava e só reconhecia com nitidez as imagens próximas. Isto foi me tornando introspectivo. As imagens mentais eram mais ricas e nítidas do que as paisagens.

Assim, sempre preferi pequenos grupos, conversas cara-a-cara, proximidade. Aprendi a compartilhar, por causa disso, conversas mais francas, onde, sem o poder de censura dos grandes grupos, as pessoas podem ser sinceras e, portanto, terem defeitos e errar.

Estou muito farto da exigência do mundo atual por pessoas perfeitas e infalíveis. Isto não gerou um ser humano melhor. Pelo contrário, gerou um ser humano mais mentiroso e mais artificial.

Eu sou falível, sou medíocre, estou na média, sou igual a todo mundo. Já errei, já menti, já falhei, já pedi desculpas, já deixei de pedir desculpas, já pequei, já quis o mal, já deixei de ser bom, já roubei, já fui pego em delito, já traí, já fui fiel a quem não merecia, já apanhei, já bati em mais fraco, já corri de briga, já acusei sem prova, já dedei, já chorei de medo, já ri de vingança, já perdi por merecimento, já escolhi mal, já broxei, já senti tesão sem razão, já fiz sexo sem amor, já fiz amor sem sexo, já exagerei, já fui quadrado, já fui preconceituoso, já descriminei, já fui o pior do grupo, já fui o melhor sem humildade, enfim, já fui humano.

E chega dos meus defeitos, que esta página não é só minha.

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MEU DIREITO DE NÃO SER

Às vezes, o conceito de ética resvala no conceito de moral e o homem tem muita dificuldade de separá-los.

Não apenas separar os conceitos, que até os dicionários têm problemas. Ética é algo que está acima da cultura, que depende, inclusive, dos instintos. Matar um animal para se alimentar é algo que independe de lei ou regra social. Matar um animal de forma indolor, não cruel e sem desperdício também seria algo dentro da ética.

A moral, por outro lado, está diretamente ligada à cultura. Portanto, refere-se aos costumes de um povo, um local, uma época. Lida com as coisas da religião, de classes sociais, de assuntos mutáveis. O que era imoral há 50 anos é normalíssimo, hoje. O que hoje é “pecado” hoje, amanhã pode ser comum. Ou crime, quem sabe.

O Homem tem dificuldades de separar esses conceitos porque é fartamente contaminado por preconceitos. Existem muitas “emoções” que são justificadas por “sentimentos naturais”. Amar um irmão, respeitar a mãe, sofrer por um filho, chorar a morte do outro. São sentimentos cobrados aos seres humanos, como se fossem obrigações. Independente do irmão não merecer, a mãe ter sido uma criminosa, o filho ser um delinquente, o outro ter morrido porque já era hora. E aí de quem não se sentir de acordo com as regras sociais! É taxado de insensível, desumano, anti-ético.

Ter um filho é um destes “mandamentos naturais”, que todo ser humano tem obrigação de “precisar”. Uma pessoa que declare publicamente que não deseja jamais ter um filho é considerada uma pessoa sem coração, egoísta, imatura. É inconcebível uma pessoa não querer conceber.

Pois bem. Eu sou um destes desumanos. Nunca, na minha idade adulta, desejei ser pai. Mesmo antes, na adolescência, já achava que para criar um filho não é preciso fazê-lo. Sempre defendi que a adoção de uma criança já nascida, dando condições de desenvolvimento e crescimento a um ser existente, seria mais “ético” do que gerar uma nova.

Alguns dos argumentos das pessoas que me criticam pelo meu radicalismo, defendem que existem bons motivos para se ter um filho:

-“Quem vai continuar o seu trabalho após sua morte?” (isso se chama Orgulho) De cara, pressupõe que um filho meu teria orgulho do meu trabalho e seguiria este rumo. Balela! Nem eu sei se quero continuar meu trabalho, imagine um ser de outra geração

-“Quem vai te fazer companhia na velhice?” (isso se chama Egoísmo) Que pena eu tenho de quem acredita nisso! Quantos idosos, cheios de filhos espalhados no mundo, morrem sozinhos? Olhe a sua volta.

-“Se todos pensassem assim, o que seria da espécie?” (isso se chama Burrice) Se ninguém pensar assim e não se reduzir drasticamente o crescimento populacional, com certeza o futuro da espécie estará, de fato, comprometido.

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Bem. Tenho certeza que não quero, não desejo, não preciso e nem posso ter um filho. Seria irresponsável ter um filho neste mundo sem perspectivas. Eu sofreria de culpa todos os dias. Iria me sentir responsável pelo fim da água e do ar, e traindo meus princípios.

Mas não posso fazer uma vasectomia. Por conta de uma ética profissional, os médicos não podem me fazer responsável. Que ética é essa, que me proíbe de ser livre?

Seria ética? Ao não querer ter um filho, tenho certeza que estou ajudando a garantir a sobrevivência de outros. Considero-me ético. Bastante! Não seria uma moral, torta, que me considera incompetente para definir se quero ou não deixar aflorar o instinto básico de reprodução?

Baseado em quê? Diversos médicos defendem que eu posso vir a me arrepender, no futuro, caso eu venha a querer ter um filho. Mas, se eu me arrepender de NÃO ter um filho, quem vai sofrer? Eu, somente eu!!!! E se eu tiver um filho, mesmo sem querer, e vier a me arrepender, quantas pessoas vão sofrer?

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ANDANDO PRA FRENTE

Estou acreditando muito em 2005.

Sou assim, crédulo. Acreditei em 2004 e me dei mal. Gostei de muita coisa daquele ano, mas no balanço geral, saí meio esburacado. Buraco no bolso, buraco no banco, buraco na rua, buraco na cabeça.

Mas 2005 vai ser diferente.

Vou aprender muito neste ano. Vou ter a chance de trabalhar em algo com que sempre sonhei. Vou ver algumas reformas. Apesar de saber que mudanças causam medo, vou me esforçar para fazer diferente. Quero ajudar a ver Ourinhos de forma diferente.

Uma das diferenças que espero ver e ajudar a ser vista é na forma de encarar o futuro de Ourinhos.

O passado todo mundo sabe, é só lembrar ou ler. O presente, todo mundo vive.

Mas o futuro depende de análise. Saber o passado e o presente não é suficiente. Sabendo, apenas, só repetiremos. E teremos um futuro baseado nesta repetição.

Para se projetar um futuro e se ter possibilidade de faze-lo melhor, é preciso aprender a analisar o passado e o presente.

Analisar para entender o processo. Se nós olhamos o passado como uma fotografia, não compreendemos os mecanismos que nos levaram ao presente e que, se não houver ações, levarão a um futuro onde os problemas se repetirão e se multiplicarão. Só analisando o passado e o presente da cidade como se analisa um organismo vivo que evolui é que poderemos realmente ser responsáveis por um futuro de acertos.

Não se faz um projeto de cidade do futuro pensando pontualmente, olhando esquina por esquina, terreno por terreno. Um planejamento eficiente não pode ser baseado em vontades e desejos particulares. Para que Ourinhos se desenvolva forte e saudável é imprescindível que olhemos para a Cidade contemplando todos os aspectos, para não se fazer o “planejamento de remendos” que se faz normalmente nas cidades brasileiras.

Chamo de “planejamento de remendos” a prática de se “consertar” um problema imediato sem prever as conseqüências no entorno. Por exemplo, verifica-se a falta de vagas de estacionamento para o comércio de uma rua. Um planejador-retalhista simplesmente transforma a rua em mão única e coloca o estacionamento em 45 graus. Muito bem. Mas, no mesmo dia, todo o trânsito daquela rua é desviado para outro ponto, gerando tráfego e problemas a dois quarteirões do problema inicial. Outro exemplo: verifica-se a necessidade de uma escola em um bairro. O único terreno vazio da Prefeitura é em uma avenida de alto tráfego. Certo! Façamos a escola! Assim que inaugura-se, os carros dos pais querendo embarcar e desembarcar crianças cria um problema novo, assim como os atropelamentos iminentes.

Planejar para o futuro, mesmo, é quando você estuda, baseado em dados, quais as vocações da Cidade, quais as vocações da Região, do Estado, do País e até do Mundo, em matéria de crescimento populacional, crescimento econômico, fontes de energia, tratamento das poluições, recursos ambientais, e induz o crescimento para fugir dos problemas. Às vezes, é preciso criar

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um problema pequeno agora, para evitar um problema grande ou insolúvel para gerações futuras. Algumas doenças sérias só são curadas com remédios amargos.

Mas esta visão, infelizmente, poucas pessoas querem ter. O ser humano é, pra azar da espécie, muito imediatista.

Na verdade, andar pra frente, ao contrário do que dizem, não é tão simples assim...

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VIVER E O CARNAVAL

“Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe”Oscar Wilde

Mais um carnaval chegando. E as pessoas se preparando para a festa. O mundo se organizando para ser feliz. Só por uma semana.

E eu morro de pena.

É mais uma faceta da “maldição das datas”. O carnaval é a maior prova da infelicidade geral humana.

Como é triste assistir às pessoas contando no calendário, no relógio, quanto tempo falta para serem felizes.

Eu prefiro ser feliz, ou pelo menos me permitir tentar ser feliz, o ano todo, todos os dias.

Assim como prefiro ser bom (ou não) o ano todo, ao invés de esperar pelo natal. Ou ainda demonstrar o carinho e o orgulho que sinto por uma pessoa, independente de ser seu aniversário.

Sinto muita pena da pequenez das pessoas que desperdiçam 51 semanas do ano, rezando pela chegada do carnaval. Mesmo fora de época, ouvem o samba. Mas com nostalgia e/ou esperança.

“Tô me guardando pra quando o carnaval chegar”

Chico Buarque

Também me entristece ouvir as reclamações insistentes sobre as segundas-feiras.

Sempre penso: “Não é a segunda-feira que é ruim, é a sua vida!”

Se alguém não tolera ir pro trabalho, não precisa de mais sábados e domingos. Precisa de um novo trabalho. Ou de uma nova forma de encarar o trabalho. O trabalho ocupa tanto tempo na vida que não pode ser visto como “emprego”, “tarefa”, “obrigação”. É necessário que seja assumido como um dom, uma aptidão, um ofício, um desafio saudável. Caso contrário, até os domingos ficam horríveis.

Caso contrário, a “musiquinha do fantástico” continuará soando como uma banda marcial, anunciando os últimos passos do “condenado à segunda-feira”.

As datas comemorativas não devem ser dias especiais para ser feliz. Devem ser dias de felicidades especiais.

Tente ser feliz. Sempre. Mesmo depois do carnaval. Mesmo antes do natal.

“Viver bem é a melhor vingança.”Provérbio Basco

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JOVENS SUICIDAS

Na maioria das espécies animais e na maioria das civilizações, existe a capacidade fisiológica de um mesmo macho engravidar diversas fêmeas. Por estes motivos biológicos, um macho consegue ser fértil (ejacular) mais de uma vez por dia, todos os dias. As fêmeas, por sua vez, só conseguem reproduzir (engravidar e parir) uma ou duas vezes ao ano.

Essa diferença explica a natureza dos machos e das fêmeas em relação às conquistas e ao sexo. O macho quer quantidade. Deseja espalhar sua semente o mais abrangentemente possível. A fêmea quer qualidade. Escolhe pacientemente o melhor pai para sua prole.

Isso ocorre ainda hoje, apesar de limitado pelas regras anti-naturais da sociedade. Mas, matematicamente, existe mais capacidade masculina do que escolhas femininas.

Isso leva os jovens machos de qualquer espécie ou civilização a uma guerra com seus iguais para determinação de quais os mais aptos a serem escolhidos pelas fêmeas.

Isso explica o espírito competitivo masculino. Homem gosta de disputar, competir, lutar, apostar. Mulheres também, mas em menor escala e de uma forma, geralmente, bem menos agressiva.

Por isso, homem mente mais, para ser sempre o ‘bom’. E mulher fofoca mais, para obter o máximo de informações.

Também por isso, os jovens humanos sempre criaram rituais de lutas sangrentas para demonstração de capacidade. Os mais fortes e lutadores seriam, naturalmente, pais de filhos fortes e lutadores. Valentões produziriam valentões, para assegurar a sobrevivência do grupo.

Não é à toa, portanto, que no meio da adolescência os meninos sejam tão violentos, brigões e valentes. É o início dos hormônios gritando pela ancestralidade. E a sociedade ocidental reforça esta natureza. Um simples e emblemático exemplo é o Exército. Aos dezoito anos, os meninos são separados do convívio normal para se prepararem para a Guerra. Vão aprender a matar e morrer, para confirmar seu lado animal.

Aliás, as guerras sempre se basearam nessa força jovem e bruta, ávida para vencer e ser herói (e merecer a paternidade das donzelas esperançosas) ou perder e ser mártir (sem filhos, para sorte da sociedade).

Esta semana - assim como todas as semanas -, em Ourinhos – assim como em todas as cidades -, um carro capotou cheio de jovens. Pequenos ferimentos em alguns, gravíssimos ferimentos em um deles.

É uma fatalidade horrível, que machuca os corações dos pais, assombra os amigos, choca a cidade toda. Um rapaz com um grande futuro, de uma família com capacidade de dar as melhores condições de crescimento e desenvolvimento, pode ter suas capacidades interrompidas e negadas.

Foi apenas mais uma vítima da ancestralidade. Em toda e qualquer cidade, jovens e mais jovens arriscam suas vidas em rituais violentos, desafiando a morte, para provar à sociedade e principalmente para si mesmo, sua virilidade, sua coragem, sua habilidade. Destemidamente colocam suas vidas em jogo. Utilizam de drogas variadas para aumentar o desafio ou para

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aumentar a coragem. Geralmente usam armas de alto calibre, conhecidas como automóveis ou motocicletas.

Fico pensando se é inevitável. Será possível impedir essa natureza suicida dos jovens? Será que não é um artifício importante para a evolução da espécie que somente os mais hábeis resistam a esses jogos?

Será que temos que manter este lado animal do ser humano? Já conseguimos domar tanto nossa natureza bruta e selvagem, conseguindo quebrar barreiras e dar oportunidades aos inválidos, aos deficientes, aos aparentementemente incapazes. É lógico que são necessárias leis e controle social para que essas regras anti-naturais (que desdenham a ‘lei das selvas’) sejam cumpridas.

Será que, por uma necessidade de provação juvenil, continuaremos a permitir essas festas (rituais assassinos) cujo único chamariz é a “bebida na faxa”? Será que teremos que continuar a diminuir nossa culpa por falta de tempo com os filhos colocando carros cada vez mais possantes nas mãos destes suicidas inconscientes?

Eu não sou pai. E não sei as respostas. Apenas imagino a situação de quem é.

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NOMES

Nomes são marcas. Assim como uma grande empresa preza seu nome mais que qualquer outro patrimônio, as pessoas precisam cuidar de seus nomes com carinho. Na verdade, os pais deveriam fazer um curso de Marketing antes de partir para o cartório. O nome da criança é um dos principais fatores da personalidade e do sucesso de uma pessoa para o resto da vida.

Nomes duplos são úteis. Na minha infância, minha mãe sempre me chamou de Gustavo, independente de seu humor ou do assunto. Se eu tivesse um segundo nome, teria a chance de me preparar para a conversa. Todos sabem que se a mãe chama apenas pelo primeiro nome:“Gustavo”, a situação está bem, sinal verde... Mas, se a mãe brada “Gustavo Henrique”, a situação é delicada, é bronca...

Alguns pais já pensam no nome projetando os apelidos. Passam toda a gravidez imaginando formas de falar fazendo biquinho para fazer a criança rir. Outros pais, por outro lado, odeiam apelidos e fazem esforços para evita-los.

A já famosa Tia Chiquita é um dos casos mais marcantes. Preocupado com a possibilidade de vir a ter um apelido na filha, meu bisavô, pai dela, ao invés de nomear a pequena prodigiosa com Francisca, cortou caminhos e batizou-a Chiquita, assim mesmo, projetando uma personagem para a posteridade.

Meus avós, inspirados por esta “apelidofobia”, procuraram, quando minha mãe nasceu, um nome tão simples e curto que jamais solicitasse um apelido. Foi assim que batizaram-na “Eli”. Curto, rápido, “inapelidável”. Porém, nove anos mais tarde, quando o segundo filho veio, algumas promessas para santos fizeram meu tio ter o nome “José Augusto”, nome que “solicita” apelido até em situações formais... Destino...

Os nomes têm época. Existem fases, modas, manias. A televisão tem produzido este fenômeno. Cada personagem de novela que se sobressai e é uma febre de Julianas, Matheus, Thiagos, Diegos, Cauês, Carolinas... Lógico que tem os estragos... surgem as Tiêtas, as Chispitas, até os Magaivers, inspirados no personagem Mc Giver... Valha-me Deus...

Um colega de trabalho, em São Paulo, foi agraciado com um filho. Quando o pai levou a certidão de nascimento do pimpolho para o Departamento Pessoal, o nomezinho do infeliz foi revelado ao público: Yuri Moses Will Jeans Malone Segura Teixeira... Pode???? O pai, sorridente e orgulhoso, dizia, feliz: “É que eu adoro Basketball e são nomes de jogadores americanos...” Destino???

Colocar nome em filho é uma tarefa difícil e importante. Deveria haver um Comitê Nacional de Nomenclatura Humana. Ninguém merece ser batizado com um singelo “Jhenniffer Helloyzy”!!! Nenhum pai poderia sair ileso de um pecado assim...

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GUSTAVO, O RETORNO

Eu tirei férias. De escrever nesta coluna semanal. Nas demais funções, pelo contrário, trabalhei tanto ou mais.

Mas dei férias para meus leitores. Foi um alívio aos coitadinhos.

Meus leitores puderam passar pouco mais de um mês sem essas opiniões. Ficaram livres desse meu humor sarcástico.

Se bem que ficaram, também, sem a possibilidade de assistir de camarote minhas rusgas com vivos e mortos, aqueles menos perigosos que estes. Aprendi a ter medo dos mortos apenas aos quarenta anos. Filmes de terror nunca me assustaram. Mas tudo mudou.

Nestas férias, aconteceram coisas marcantes.

O futebol mostrou, mais uma vez, que o Brasil não merece esse tipo de gente com tanto poder. Não dá para aceitar que tratem com tanta baixaria um esporte que deveria ser exemplo para o brasileiro. O futebol é tão importante para o brasileiro, mas é conduzido pelos piores caráteres. Ladrões, bandidos, estelionatários, especuladores, sem-vergonhas, inescrupulosos. São cartolas, diretores e presidentes de clubes, associações e federações, além de jogadores, alguns que recebem muito mais do que merecem, e que não têm vergonha de expor todo o país ao ridículo de participar de uma Copa do Mundo para perder. Sim, porque só quem não quer ver não entendeu que o Brasil vendeu, mais uma vez, assim como em 98, a derrota na Copa para poder garantir a Copa aqui no Brasil em 2014.

Eu já torcia contra a Seleção Brasileira, por achar que é uma baixaria o que ocorre no futebol. Agora, por enquanto, eu odeio o futebol brasileiro. Espero, sinceramente, que sejamos desclassificados, já nas eliminatórias, para a próxima Copa, na África do Sul. Talvez um grande vexame ajude a moralizar essa bandidagem.

O futebol não deveria ter tanta importância para o brasileiro, faminto e inculto, mas tem. Portanto, que seja respeitado tanto quanto é adorado.

Bem... começaram as eleições. Três meses de propaganda eleitoral, com brindes proibidos. Pena. Eu adoro camiseta de deputado. Dá um ótimo pijama.

Brincadeiras à parte, estou curioso para ver como os brasileiros vão driblar as proibições desta nova lei. Duvido que o as empresas de brindes vão deixar barato. Parece que o lobby foi muito fraco. Mas deve ter um truque já preparado.

Não. Eu não vou falar da quantidade de candidatos de Ourinhos. Nem vou dizer nada sobre Ourinhos não ter deputados. Não tenho opinião formada. Principalmente porque Ourinhos já teve. E agora, que não tem, recebeu mais verbas e mais auxílio do que nunca! O que importa, talvez, não seja apenas ter deputado, mas ter gente interessada no crescimento do município, independente de ser daqui ou não. Sei lá.

Eu estava com saudades de vocês, leitores... Precisamos fazer um grande encontro entre mim e todos os meus leitores. Já reservei duas moto-táxis para levá-los todos à Pastelaria Ipiranga, onde tomaremos uma tubaína e pastéis à vontade.

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PRESUNÇÃO E ÁGUA BENTA

“E Deus criou o homem a sua imagem e semelhança”

Muitas são as concepções usadas para diferenciar os homens dos animais. Alguns afirmam ser a inteligência, outros, o espírito ou a alma. Alguns, a capacidade de transformação. Uns, mais céticos, acusam o polegar humano, com seu movimento independente dos demais dedos, o responsável pelo empunhar de ferramentas, e daí toda a diferença.

Na minha concepção, a principal característica humana, que distingue a espécie dos demais animais, é a presunção, a empáfia.

Tão orgulhoso de si, o Homem se acredita, na evolução das espécies, o produto final, como se estivesse acabado, perfeito.

Tanto é que, em sua suprema soberba, escreve um livro atribuindo-o a Deus, e neste livro escreve que Deus o criou a sua imagem e semelhança. Oh, Deus, tenha piedade. Ele não sabe o que faz.

Deus, ser superior e perfeito, não há de ser tão limitado para realizar as obras “maravilhosas” como as que nós homens fizemos.

O ser humano é a única criatura que usa sua inteligência avançada para modificar o habitat em que vive até torná-lo inabitável. É o único animal com teimosia suficiente para querer viver contrariando suas características biológicas. Não se vê um pingüim no deserto nem leão no Alaska. Mas homem tem. Sentindo sede ali e frio acolá. Mas sempre com o sentimento de conquista. Pobre ser!

O ser humano, mestre da engenharia, transforma seus excrementos de forma genial. Se os atira na terra, são adubo e fertilização. Mas com sua imaginação e domínio da técnica, os envia, através de longos tubos, às águas, transformando-os em poluição e morte. Gênios!

Tão fabuloso, extinguiu e dominou seus predadores. Afinal, o ser humano se basta. Não precisa de outro animal para matá-lo. Matam-se uns aos outros de forma exemplar. Se bem que ele eliminou e domou grandes feras, mas morre todo dia de vírus e bactérias, alguns criados pelo seu próprio intelecto avançado. Bravo!

Deus, definitivamente, não pode ter criado este homem como sua imagem e semelhança.

“Deus criou o mundo em seis dias, e no sétimo, descansou”

Vendo toda desordem, toda a desgraça, tanta injustiça, tanto desequilíbrio, chego a uma triste conclusão.

Estamos ainda no “sétimo dia”. E Deus ainda descansa.

Esta descordenação toda só pode ser fruto de algum anjo estagiário.

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QUERO MEU DINHEIRO DE VOLTA

Sinto-me profundamente enganado. Quando eu morava em São Paulo, a capital, a metrópole da insegurança e da impessoalidade, violenta e desumana, sempre ouvi dizer que o sonho maior do paulistano é poder viver longe daquele mundo inóspito e poder ter uma vida saudável no campo.

Eu consegui realizar este sonho.

Vivo, não exatamente no campo, mas numa cidadezinha pacata do interior. Vida mansa e pacata?

Uma ova! Meu Deus, misericórdia! Corro feito um desesperado nesta cidade.

Não que a culpa seja da cidade. Acredito que a culpa seja minha. Ansioso e curioso, quero ver, conhecer, participar de tudo.

Ofereceram-me ser professor. Aceitei.

Pediram pra ser voluntário. Opa! Estou nessa!

Desafiei-me com um mestrado. Oba, vou aprender mais. É pra mim!

Solicitam uma coluna neste jornal. Legal! Adoro escrever!

O Prefeito me convida pra ser diretor de planejamento urbano. Claro!

Minha ex-mulher me contrata para fazer um projeto de arquitetura. Não posso recusar!

Sem contar os amigos, cada vez em maior número, o jogo de vôlei, os afazeres de uma casa, os livros que tenho vontade de ler, além dos que as escolas me exigem.

Só não estresso porque não dá tempo. Brincadeira. Tudo que eu enumerei aí, faço por amor e prazer. É uma loucura, mas uma loucura saudável. Até certo ponto, claro, uma vez que não dá tempo de dormir e a cabeça começa a falhar por conta de umas noites mal dormidas e de outras nem dormidas.

Mas, às vezes, sento na cama, a televisão tentando conversar comigo, que não a ouço mais, e penso. Penso da promessa da vida pacata, na beira do rio. Andar descalço, conversar na esquina. Brincar com as crianças. Andar a pé, devagar. Comer fruta no pé.

Balela!!!

Procon, me ajuda! Fui enganado. Dá até saudade do trânsito parado das marginais paulistanas. Lá, horas perdidas no engarrafamento, dava pra respirar e programar a única tarefa do dia. Não havia tempo pra mais de uma.

Aqui, claro, consigo sair do trabalho, tomar banho e chegar em um compromisso em apenas 20 minutos. Por causa disso, a agenda diária é insana.

Pelo menos, nesta segunda-feira, terminei o mestrado. Sou mestre, afinal, após 30 meses de peso na consciência. Vai sobrar tempo? Sim, vai sobrar tempo para eu pensar o assunto do doutorado. Cruzes! Procon!

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TRAIÇÃO

Um dos maiores xingamentos, ainda, é “corno”. Engraçado. Sempre, em toda história, houve adúlteros de toda espécie.

Parece que a maior parte da literatura mundial trata de traição. Quem não foi traído?

Eu já tive meus momentos Bentinho. Assim como já fui Capitu. Quem diz que nunca foi traído, ou está mentindo ou está mal informado. Minha primeira namorada me traiu. Eu tinha só quinze anos e a danada, com um mês de namoro, beijou outro. Eu tentei desculpá-la e ela não aceitou. Quanto amor!!! Minha trajetória de corno começou bem.

É incrível a importância que o ser humano dá para a traição. Tem casal que não se toca há meses, não trocam uma palavra de carinho há anos, mas na hora da traição partem para cenas enérgicas e furiosas. Por que tanta energia depois do leite derramado? Não seria mais nobre manter o carinho e a atenção durante?

Olhem, não estou esquecendo que sou humano e faço parte deste time de bobos que não dão a atenção certa na hora certa. Também deixei as coisas desandarem para depois perceber que a traição, feita ou recebida, poderia ter sido evitada.

Mas se essas traições íntimas, particulares, intra-lares, pessoais, individuais (ainda que às vezes sejam públicas demais), doem nos chifres de machos e fêmeas, algumas traições doem em todos, de forma abrangente, generalizada.

Quando o Brasil votou 13, em 2002, colocando o Lula no Governo, apostou muito no discurso moralizante do PT. Mesmo quem votou contra, no começo, pensou que a baixaria acabaria. Sempre houve roubalheira nas esferas governamentais e sempre houve um petista gritando contra.

Nós confiamos, apostamos, investimos nosso crédito em rostos que nos transpareciam algo bom.

Além do presidente, um dos rostos que mais decepcionaram foi o do Palocci. Nós desculpamos a traição dele com o povo de Ribeirão Preto, que ele havia prometido não abandonar se fosse eleito prefeito. Foi eleito e abandonou. Mas era pelo bem geral da nação. Tudo bem.

Mas não ficou só nesta pequena traição, nesta pequena “olhadinha-de-soslaio-ao-rabo-de-saia-que-passa”. Três anos depois, o Brasil descobre que o rapaz era e foi infiel. Uma sensação triste. Provoca aquele comentário equivalente aos das comadres do bairro: “traidor, ele?,mas tem uma cara de bom moço...”

O pior é que nós, brasileiros, teremos uma chance, agora em 2006, de mostrar que nossa fama de corno-manso é só fama. Será que vamos mostrar ao mundo todo e nós mesmos que o chifre é nosso destino?

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TRISTES DIPLOMADOS

Pobres matemáticos. Insistem em 2 mais 2 igual a quatro. Nunca viram nossas pernas entrelaçadas.

Aflitos geógrafos. Teimam em atlas e mapas-mundi. Desconhecem as formas como exploramos nossos relevos.

Infelizes médicos. Afirmam conhecer o corpo humano. Nem fazem idéia do real tamanho de um coração amando.

Coitados dos historiadores. Acreditam em datas e evoluções. Jamais sentiram quantos anos cabem em um segundo de nossa paixão.

Arquitetos desolados. Pensam que sabem erguer espaços. Se olhassem para os vazios e cheios de nossa noite de amor…

Sofredores engenheiros. Imaginam conhecer os cálculos estruturais. Mas não sabem equilibrar o meu sorriso sobre seu olhar.

Perdidos advogados. Dominam as leis. Mas nem todas. Algumas leis estão nos nossos edredons, nunca foram escritas nos códigos.

Desorientados Administradores. Controlam metas, cifras e valores. Mas não têm noção do fluxograma do nosso beijo.

Absurdos gramáticos. Sabem toda análise sintática. Porém hesitam entre sujeito e objeto, nas nossas orações coordenadas.

Tristes diplomados. Estudaram anos e anos. Nunca saberão do nosso amor. Não existe formatura nesse curso.

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SORTE GRANDE

Ele deu sorte, desta vez.

Na verdade, apesar das más línguas e da perversidade da vizinhança, ele sempre se considerou um cara de sorte. Sempre teve mais ou menos o que quis. É certo que, com o tempo, ele aprendeu a querer cada vez menos. E cada vez mais se contentava com o mais ou menos o que o destino lhe oferecia. No fundo, sem ele sequer perceber, a sorte dele foi sendo uma questão de ajuste: reduzir exigências e aumentar a satisfação com as migalhas. Simples. Aliás, era essa sua auto-definição. “Eu sou um cara simples!”

Tinha vinte e poucos anos. Às vezes, parecia menos, se visto em seus trajes de lazer. Não tinha tido tempo de apurar seus gostos, então ainda gostava das mesmas coisas da adolescência, quase que por desconhecimento de novos prazeres. Seus relacionamentos também seguiam o mesmo ritmo. Diferiam dos namoros adolescentes só pela velocidade em que os beijos viravam sexo. No resto, a profundidade do envolvimento, o sentimento de responsabilidade e o companheirismo, iguais aos de oito, dez anos antes.

Seu aspecto físico, por outro lado, causava uma imagem de mais idade. Havia passado fome, várias vezes. A babá que sua mãe escalava para tomar-lhe conta era muito relapsa. As televisões são assim mesmo. Só falam, falam, cantam, mas teimam e não ouvir choro de fome. Tinha sérios problemas de fígado e adjacências. Era muito jovem quando sua mãe descobriu que um pouquinho de rum ou pinga no leite do filho garantiriam a ela oito ou mais deliciosas horas de sono. Ele amava sua mãe. Punha a culpa na avó. Essa sim era má. Ele odiava a avó, sobretudo suas surras. Uma surra dela teria feito sua mãe nunca mais voltar. Essa era sua versão.

Seu herói sempre fora Robin Hood. Além de herói, era um maravilhoso álibi. Conquistou muita coisa baseado em sua filosofia de vida. Teve até um carro, aos dezesseis anos. A polícia levou o carro, estacionado na frente de uma boate legal. Nem ligou. Veio fácil, foi fácil. Depois dos dezoito anos diminui seu ímpeto. A experiência na cadeia não foi muito nobre. A memória selecionou poucas cenas para reter. Mas essas poucas já eram suficientes. Havia uma dor numa cicatriz na costela e outra, numa cicatriz na alma, que sempre doíam anunciando chuva.

Aprendeu, a contra-gosto, que trabalhar como funcionário era um bom caminho para fugir de encrenca. Toda vez que estava desempregado entrava em alguma enrascada. Era sempre uma boa idéia de alguém que virava uma péssima idéia sem dono. E ele ali, no meio da má idéia. Trabalhando, faltava tempo pra se atrever a viver boas idéias.

Foi assim que uniu o útil ao agradável.

Com cinco anos de idade reparou pela primeira vez numa motocicleta. Aquele barulho, a velocidade, os riscos de cores que ficavam no lugar onde os olhos não conseguiam acompanhar. Aquela bicicleta rápida do namorado da mãe era seu sonho, desde então. O namorado, ele, nem ela, nunca mais viu. Mas a imagem da moto ficou.

Desempregado, pouco dinheiro, muitos nãos em lojas e fábricas, inventou um fiador, entrou num financiamento arriscado e aceitou ser moto-táxi. Vestiu um jalequinho de cor forte, um capacete encebado no cotovelo, acelerou forte em sua primeira corrida. Meia noite e meia, sexta feira. O baile estava fraco, muita gente se movimentava pra sair. Se ele fosse muito rápido faria

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muitas viagens. Na primeira noite, já seria uma boa grana. Mas tinha que ser muito rápido. Que bom. Velocidade era o tempero certo.

Ele tinha visto muito acidente. Sendo jovem e aventureiro, viu muito amigo ralar muita área do corpo. Viu muito motoqueiro quebrar ossos inimagináveis. Teve amigos com tanto pino na perna que não podiam entrar em porta giratória de banco. A danada sempre travava, com tanto metal. Ele era invicto. Era visto como muito bom de braço. Tinha fama de “fera”. Era até respeitado por gente que ele não conhecia. Justo ele, que achava que cicatriz era troféu.

Na terceira viagem baile-bairro, ele deu muita sorte. Sorte grande. Um caminhão, na Rodovia, vinha mais rápido do que parecia. Se ele parasse para conferir o cálculo da velocidade do caminhão, perdia o embalo. A moto, velha, não iria subir gostoso a ladeira com aquela passageira gorda. “Gorda em baile é encrenca até quando sai”, ele pensou, rindo solto dentro do capacete. Puxou o manete e sentiu a aceleração aumentar, para cruzar na frente do caminhão e vencer a maldita ladeira com a maldita gorda atrás. O caminhão estava mais rápido do que parecia. A gorda talvez fosse mais gorda do que devesse. A moto mais velha do que seu preço. O conhaque mais forte do que os cálculos de velocidade.

Ele deu sorte, desta vez. Sorte grande. Nem sentiu a dor. Como dizem, morreu em paz.

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TORCEDOR

Até os quinze anos eu era Corintiano.

Para um corintiano, puro, verdadeiro, esta frase aí acima prova que eu nunca fui corintiano. Os corintianos roxos juram que não existe ex-corintiano e que, se alguém se julga ex, é porque nunca foi.

Mas eu me lembro de ter torcido freneticamente nas finais de 77 e 79 contra a Ponte Preta. Na época eu ainda também torcia pela seleção brasileira e chorei de raiva com a derrota do Telê na Copa.

Porém, a evolução do futebol, com os jogadores mudando de time o tempo todo e só ficando no Brasil os jogadores-refugo, transformou o esporte num programa muito chato. Desisti do Corinthians e de todos os demais clubes. E a bandalheira e roubalheira dos cartolas me tiraram o prazer das copas do mundo.

Tornei-me um chato, sem paixões.

Desde pequeno, não me apeguei a religiões. Nasci cartesiano, amante da lógica. Logo no começo da minha formação cristã me disseram que Deus estava em todo lugar e que eu tinha que ir à igreja para falar com Deus. Pela lógica, se Ele está em todo lugar, qualquer lugar serviria pra falar com Ele. Eu perguntei isso e tomei bronca, ao invés de resposta. Odiei e, reação natural, me afastei da falta de lógica. Hoje, eu entendo o poder do grupo, da energia do ritual, e compreendo o que é que se deve fazer na igreja. Mas a birra ficou.

Essa birra atrapalhou minha fé. Creio em Deus e O respeito. Mas nenhuma religião me conquistou a ponto de freqüentar cultos.

Esse ceticismo desapaixonado me acompanhou até que eu conhecesse Ourinhos.

É isso que me deixa feliz aqui.

Aqui eu reaprendi a torcer. E torcida gostosa é como a fé. É cega. E penetrante como a faca amolada da música do Milton Nascimento.

Torço por Ourinhos, incondicionalmente. Seja lá em que situação for. Nos “dias do desafio”, adoro ver Ourinhos dar lavada nas desconhecidas cidades andinas contra as quais disputamos. No basquete, é uma vibração. Tenho verdadeira saudade daquele time adversário de Americana que nos tirava o sono e sobre o qual era delicioso vencer.

Torço pelo sucesso da cidade. Torço pelo progresso do comércio, da indústria, dos serviços. Torço pela força política. (Quando me escolheu para ser coordenador do Plano Diretor, o prefeito talvez tenha escolhido o maior torcedor, característica necessária para que eu fizesse um trabalho tão empolgado)

Ourinhos me devolveu o prazer genuíno da torcida. Um prazer que estava distante, desde a adolescência. Essa emoção é o que mais me prende aqui.

Continuo chato, eu sei, mas pelo menos tenho paixões.

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UMA FACA, MUITO ÓDIO

“Homem é encontrado morto com 19 facadas” (manchete da edição 105 de 04/10/2003, Diário de Ourinhos)

A faca ficou ali, escondida, envergonhada, atrás da cômoda, cheia de sangue e medo, por cinco dias. Imóvel, sentindo ainda a força necessária para cortar os tecidos humanos, os órgãos e tirar, junto com aquele sangue todo, os sopros de vida. A faca lembrou da dor de machucar. Ela, que tinha sido forjada para cortar carnes inertes, para preparar alimento e dar prazer e vida, tinha sido, no final de sua história, relegada ao papel de ‘prova de crime’. Não, ela sabia, ela não era ‘prova’ de crime. Era instrumento. Era isso que mais envergonhava a faca. Por isso ela permaneceu imóvel, assustada, atrás da cômoda. Enganou policiais experientes mas sem estrutura. Mas não ludibriou a faxineira. Ah, a faxineira era difícil. Só quem conhece uma casa de homem solteiro sabe como uma faxineira é capaz de achar coisas. Na trajetória infeliz, da hora que entrou na casa, junto às coisas do assassino, até o momento que fora ensacada e etiquetada como “prova número x do crime y”, a faca viu coisas largadas e abandonadas, típicas de uma casa de solteiro. Agora, a faca ficaria ali, naquela gaveta de arquivo de delegacia, sabe lá quantos anos, sem direito a banho para limpar aquele sangue coagulado. Que destino.

Quantas facadas são necessárias para matar um homem?

Quantas facadas são necessárias para matar um ódio?

19 facadas. Talvez muito menos seriam suficientes para fazer alguém sangrar até a morte. Mas um ódio? Não! Um ódio mesmo, daqueles grandes, adultos, remoídos, aqueles atávicos, daqueles ódios que a gente cultiva debaixo da cama, alimentando todo dia com vergonhas, humilhações, espancamentos, insultos, esse exige muita facada. Na verdade, exige mais, muito mais que 19. A gente pára na facada 19 porque o braço já não agüenta o esforço e o sangue cheira forte. Aliás, essa mania de sangue espirrar na roupa da gente, isso incomoda. Então, a gente joga a faca atrás da cômoda, torcendo para que só haja policiais na busca. Se tiver faxineira é problema, elas encontram cada coisa. E aí, a gente pega essa raiva que restou, e volta a uma nova cena de um novo crime e dá mais um pouco de facada, até o braço doer, para ir matando esse ódio. Grande ele. Talvez chamem a gente de “serial killer”... Assassino em série. Burros! Será que não percebem que não é uma série? É um ódio só!!! É grande, mas é um só.

O ‘suposto’ namorado do morto depôs. Dizem que homossexuais são mais sensíveis, mais delicados, mais artísticos. Pode ser verdade. Mas é incrível como são passionais. Isso é bonito. Paixões são avassaladoras. Eu sou apaixonado por paixões. Se eu pudesse, me apaixonava uma vez por dia. Talvez duas. Se possível, pela mesma pessoa.

Mas paixões são perigosas. São fortes e incontroláveis. Homossexuais são, por força da ebulição das emoções, passionais de fazer inveja a personagem de novela mexicana. Mas também podem ser, por força das pressões sociais, com seus preconceitos e rótulos, violentos como personagens de filmes brasileiros. Imagine viver, dia após dia, anos a fio, convivendo com uma imagem que não é a sua, em um corpo que não respeita suas necessidades, em um meio que não entende que amor é muito mais que mecanismo de procriação. Imagine ter que viver de forma promíscua, amando a esmo, se entregando e se oferecendo ao léu porque ninguém tem coragem de assumir um amor verdadeiro fora do convencional. Essa é a verdadeira violência: amar demais para aplacar o desamor. Desses amores, sim, nascem alguns dos ódios mais

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profundos. E quem morre no final? Aquele um, que teve a pequena coragem de amar sem amor. Ofereceu minutos de sexo e vergonha. E morreu. Porque sexo e vergonha são emoções não miscíveis, como água e óleo. Na lei, contam-se apenas as dezenove facadas. A lei, o texto, não permite ver a surra no menino pré-adolescente gostando do guarda-roupa da mãe.

Algumas pessoas comentam a manchete no jornal: “Nossa!, dezenove facadas? Você viu? Ourinhos tá parecendo cidade grande! É o progresso!”

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FICANDO VELHO

Segunda-feira, dia 19, completei 43 outonos. O eufemismo comumente utilizado é “primaveras”, mas como eu nasci no outono, ainda não cheguei na primavera deste ano.

Minha mãe, em sua bondade enorme, falou, com uma justeza assustadora: “Mas, tu tá ficando velho, hein?”

Eu concordo. Estou envelhecendo muito rapidamente. O cabelo caindo, a barriga caindo pra fora da calça, as verrugas aparecendo, as juntas cada vez mais rangendo...

Fisicamente, a situação está periclitante.

Em compensação, a cabeça e o coração não param de rejuvenescer. Estou cada dia mais moleque, mais alegre, mais feliz. Não significa que eu esteja menos responsável. Pelo contrário. A experiência me deixa cada vez mais confiante, e essa confiança em minhas capacidades – que também se reflete na assunção dos meus limites – me deixa mais leve para viver as emoções.

A experiência me fez entender que um amor não resolve meus problemas e que não posso depositar minha felicidade nas mãos de uma outra pessoa. Se quero ser feliz plenamente, preciso que minha felicidade dependa exclusivamente de mim e do meu amor por mim mesmo.

Mas amar alguém que merece o meu amor é bom demais. Eu não dependo desse amor para ser feliz, mas sei o quanto é mais deliciosa a vida quando se tem objetivos. Hoje, um dos meus objetivos é construir. Não uma casa, um prédio. Construir um lar, uma família.

Eu seria burro, desonesto e injusto se dissesse que os outros amores que vivi foram menores ou menos importantes do que o que vivo hoje. Não se trata de haver comparação.

O que eu devo e posso afirmar é que hoje eu tenho mais maturidade para viver um amor. E como Deus escreve bonito por linhas harmoniosas (a gente é que lê torto!), as coisas acontecem na hora certa. Aos 43 anos, minha hora certa é agora.

Minha hora de amar, de ser feliz, de ser maduro, de ser criança, de ser moleque, de amar duas crianças, de amar três crianças, duas crianças-moleques e uma criança-madura.

Hora de amar meus trabalhos, minha cidade, minha casa, meus amigos, minha mãe, meu irmão, minha Karina, minha Luisa e meu Lauro. Todos meus, que não me pertencem, mas me contém e estão contidos em mim.

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MEDÉIA

Segundo a lenda grega, Medéia ajudou muito Jasão e este um dia se apaixonou por Glauce e deixou Medéia a ver navios. Medéia tinha filhos com Jasão. De raiva por ter sido abandonada, Medéia estrangulou os filhos. Depois, Medéia casou com Egeu e conspirou contra a vida de Teseu, filho do segundo marido.

A linda Medéia, além de mãe cruel, foi madastra terrível. Mesmo assim virou deusa olímpica.

Portanto, não é de hoje que pais, mães, madrastas e padrastos trucidam, esganam, estrangulam, incendeiam, sufocam, afogam, atiram, explodem, enterram, picotam, recortam, abatem a pauladas e/ou defenestram seus filhos e enteados.

O fato de ser algo antigo e mais corriqueiro do que se espera não diminui em nada o horror de saber que alguém atirou uma menina pela janela do apartamento.

Eu não tive filhos, mas venho sido filho de minha mãe desde que nasci. Sempre esperei dela que me protegesse dos piores males, mesmo quando ela estava furiosa por algum ato meu. Eu recebi algumas palmadas, uns puxões de orelha e umas chacoalhadas de minha mãe. Agradeço muito a ela por ter me dado essas repreensões. Crianças e adolescentes testam o tempo todo os limites. Os limites próprios, os limites do perigo, os limites sociais e os limites da paciência dos responsáveis. Palmadas são ótimas para lembrar onde estão as bordas dos limites.

Palmadas e puxões de orelha, porém, não me mataram.

Hoje, convivendo com duas crianças e sendo co-responsável pela educação delas, vejo como é difícil amar tanto e, mesmo assim, ter que dizer não para algumas de suas vontades. Essa obrigação de impor limites e, principalmente, ser o tempo todo exemplo, é de uma responsabilidade enorme. Tão grande quanto a recompensa de receber um sorriso e um beijo mesmo após ter dado uma bronca. Tão grande quanto o elogio mudo que uma criança faz quando segue seu exemplo.

Mas por que será que uma pessoa mata seu filho ou enteado? A resposta não está na loucura dos dias atuais, na correria, no stress, no trânsito das metrópoles, na poluição atmosférica, no buraco da camada de ozônio, na política de juros do governo Lula.

A resposta está na atávica, eterna, interior e anterior loucura humana. Psicólogos e Psiquiatras debruçam-se sobre casos e casos de Medéias históricas e não encontram respostas fáceis. Não existem respostas, talvez.

Não sou eu que hei de tentar entender. Loucura é atenuante? Todo mundo é louco? Machado de Assis estava certo em “O Alienista”? Matar é cura? Mãe e pai, padrastos e madrastas, não podem matar? Os outros podem? Quem mata pode ser morto, como castigo? Não sei. Jamais entenderei.

Só sei que há quase um ano tornei-me padrasto de Lauro e Luisa e desde então minha vida ganhou novo objetivo: tornar melhor a vida presente e futura deles e, conseqüentemente, a minha e de sua mãe. Meu mote é evitar qualquer arranhão, tanto físico quanto sentimental.

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Estou aprendendo a importância de negar, de repreender. Porém, mais do que nunca, entendendo o prazer de viver e conviver.

Que Deus cuide do espírito de Isabella. E que também cuide da alma atormentada dos culpados. E que Deus também evite que o exagero da mídia neste caso não incentive malucos adormecidos, carentes de amor, carentes de remédios e/ou carentes de exposição nas televisões.

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AS COISAS QUEBRAM

Amadurecer é aprender a aceitar que as coisas quebram.As coisas não são, sempre, para sempre.As coisas quebram, e precisam de conserto.As coisas quebram, e devem ser jogadas fora.As coisas não quebram, mas devem, também, ser jogadas foras.As pessoas quebram, e devem ser consertadas.As promessas quebram.As juras quebram.As pessoas mudam. Algumas devem ser jogadas fora.Os papéis rasgam.Os brinquedos e jogos perdem peças.Os produtos se desgastam.As tecnologias transformam-se.As relações mudam. Umas devem ser jogadas fora. Outras devem ser acostumadas.As regras mudam. As leis devem ser jogadas fora.Os códigos quebram.As pessoas mudam-se.O dinheiro perde o valor.Os valores se perdem por dinheiros.Os produtos deixam de ser fabricados.Os sabores mudam.Os odores mudam. Os tatos também.As convicções quebram.Os medos dificilmente quebram.Algumas coisas deveriam quebrar.Mas não quebram.Casas caem.Preços sobem.Medos crescem.Amores mudam.Amadurecer é entender que as coisas só não quebram na memória.

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CHORAR É BOM

Obrigado por me dar de volta a mim mesmo.

Havia muito tempo eu não chorava. Depois de muito tempo sem um bom motivo, me deu vontade de chorar, no avião, voltando de Barcelona (Pudera!). Até hoje não entendi que tipo de solidão foi aquela.

Mas não chorei. Acho que fiquei alguns anos sem lágrimas. Achei até que tinha secado por dentro.

Tudo mudou! Desde junho, reaprendi a chorar. Tenho chorado bastante. Mesmo assim, fazia um bom tempo que eu não me sentia tão feliz.

Chorar é útil. É bom. Gostoso. É uma prova de que se está vivo. Sentir emoção profundamente, com força, tanta força que sacode, sacoleja, chacoalha o corpo todo e fica inevitável “vazar” os olhos, lava a alma.

Um choro emocionado, de amor, é tão confortante quanto uma boa gargalhada.

Estar à vontade com as próprias emoções a ponto de chorar copiosamente por sentir o perfume da mulher amada é tão compensador quanto rir ridiculamente no cinema, num filme de Woody Alen. Ambos, sem medo de sentir integralmente, fazem um colorido especial na vida.

Voltei a chorar. E o melhor disso é saber que o que me faz chorar, hoje, é uma felicidade madura, que me deixa jovem, adolescente.

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NUNCA É DEMAIS

Nunca é demais dizer que você me faz sentir um homem completo, um ser humano melhor, uma pessoa feliz, um ser que sabe amar e ser amado.

Obrigado por ter me oferecido um gole de vinho, naquele 8 de junho mágico.

Obrigado por ter aceitado dançar.

Obrigado por ter confiado e aceitado a carona.

Obrigado por sorrir bonito e me cativar.

Obrigado por ter roubado meu coração.

Obrigado por cuidar tão bem do meu coração.

Obrigado por me obrigar a ser competente, conveniente, consciente... e outros "entes".

Obrigado por testar meu amor. Eu precisava saber que eu consigo amar ainda.

Obrigado por me fazer broxar por causa de tanto amor dentro do peito.

Obrigado por me satisfazer só de sentir sua respiração ofegante.

Obrigado por me deixar entrar na sua família. E por ser minha família.

Beijo enorme.

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O GRANDE PALHAÇO

(Esta é uma história de ficção. O palhaço não existe!)

O grande palhaço faz qualquer coisa pelo humor. Qualquer coisa mesmo. Se joga no chão, finge que escorrega, bate a cabeça, espirra coisas na platéia.

Tudo pelo humor.

E, sobretudo, o palhaço faz piada. Sua matéria-prima é o cotidiano. As coisas que acontecem no dia-a-dia. Ou não. O palhaço inventa, cria, distorce a realidade. Tudo pelo humor. Muito humor.

Mas, infelizmente, sua cidade não tem um circo. O palhaço, na busca do humor, sem uma lona para o abrigar, vira saltimbanco.

Sai à rua, desesperado, procurando tirar humor de onde pode.

E, na falta de picadeiro e lona, o palhaço escreve. Seu objetivo único é o humor. Tirar humor das coisas e pessoas. Quanto mais, melhor. Afinal, o palhaço precisa de humor para viver. Não importa como e de onde. Tudo pelo humor.

E como o objetivo é o humor, puro e simples, o palhaço ameaça e caçoa de quem não lhe dá humor. Ele quer humor, cada vez mais.

Se um jornal de sua cidade faz sucesso e tira dele a chance de crescer e conseguir humor, o palhaço xinga, tripudia a família, fala escancaradamente de um problema familiar, humilha uma respeitada senhora de idade. Mas é piada. Piada e ética não combinam. Afinal, ele quer e precisa de humor.

Se a Prefeitura de sua vila não lhe dá humor, afinal a Prefeitura, supostamente, tem muito humor, o palhaço inventa histórias, fala mal, desdenha currículos, cria ligações escusas.

O palhaço é criativo. Mas nem tanto. Então ele se inspira na própria vida, para criar personagens. Se o palhaço tem uma amante (afinal, palhaço também tem desejos proibidos, oras, coitado) ele faz piadas com pessoas, dizendo que têm amantes. Se o palhaço já roubou água para encher sua piscina (afinal, coitado, o palhaço precisa ter seus números aquáticos), ele então fala que outro rouba água. Se ele foi demitido da Prefeitura por total incompetência, então ele faz piada dizendo que aqueles que têm experiência, não têm. Se a mulher do palhaço tem o nome ligado a fraudes, ele então faz piada com os juízes e promotores. Mas é piada, e ninguém dá bola. Ele pede humor. Quem não dá, ele faz piada, mesmo que seja maldosa. Ele quer humor, pois.

Se uma empresa presta um serviço muito bom, com uma aprovação popular de quase 100%, ele pede humor. Se não consegue, ele escreve. Pra tentar o humor que ele tanto quer. E como é piada, ele não se importa com a veracidade. É tudo mentira. Afinal, é piada.

Um dia, o palhaço vai conseguir a piada maior. Ele está procurando a grande gargalhada. Ele já está fazendo por merecer. Ele mesmo é quem vai rir demais. Vai morrer de tanto rir. Vai ser a grande piada e vai ficar sem seu humor. E nós, a grande platéia, vamos rir por último. E melhor.

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UM PEDIDO DE DESCULPAS

Venho a público pedir desculpas por minha coluna há algumas semanas, neste jornal.

Tenho sido procurado por diversos representantes de uma certa categoria profissional, alguns irritados, outros irados, uns apenas incomodados pela comparação que fiz da categoria com um certo ser que anda rondando a paz da cidade.

Apesar de tentar amenizar o impacto das broncas com o argumento de que usei a comparação de forma metafórica e jocosa, para zombar de assunto trágico, sinto que preciso me retratar com estes profissionais que tanto doam de sangue e suor pelas causas mais nobres.

Desculpem-me.

Desculpem-me palhaços de Ourinhos, palhaços brasileiros, palhaços do mundo.

Eu não deveria tê-los usado como objeto de comparação, com aquele ser vil, estúpido, idiota, rasteiro, anti-ético, imoral, nojento, falso, mentiroso, inescrupuloso, ridículo.

Nem de brincadeira, apropriar-me de uma nobre profissão para referir-me a um escroque daquele tipo, foi correto.

Sinto, com pesar, que os palhaços sentiram-se ofendidos.

É natural.

Uma pústula daquelas não saberia jamais entreter crianças e adultos com a sutileza do escracho, com a delicadeza da pantomima. Se aquele monstro nos faz rir, não é por ser sutil ou sublime. É por um sentimento misto de raiva, nojo, pena.

Pena, sim. Pena por ter sido criada uma criatura inútil, em que se desperdiçou material humano. Com a mesma quantidade de músculos, ossos e sangue, poderia ter sido criado um homem com alguma serventia para o resto da humanidade. Desperdiçou alimentos, água e ar, durante estes anos, pois nada produziu que servisse de orgulho a quem quer que fosse.

Espero que a classe dos Palhaços compreenda minha metáfora, quando usei a profissão boa para referir-me a algo ruim, assim como utilizei a sensação-boa “humor” para me referir ao vil metal.

Mais uma vez, desculpem-me.

Juro que vou evitar escrever sobre aquilo. Pensei em referir-me a aquele monte inútil como “câncer”, uma vez que seu objetivo é destruir o tecido bom da sociedade. Mas devo evitar, por dois motivos.

Posso ofender a sensível e tão produtiva Rede de Combate ao Câncer, entidade maravilhosa, que jamais deveria ter seu nome associado àquele estrupício. Além de quê, havemos de concordar: câncer, ao contrário daquilo, evolui, e tem tratamento.

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AINDA MAIS

Amor da minha vida...

Você tem sido muito mais do que uma mulher, mais que uma namorada, mais que uma amiga, mais que uma amante.

Você tem dado lições de vida, sem ser minha professora.

Tem me assistido, sem ser médica.

Tem me orientado, sem ser advogada.

Tem me construído, sem ser engenheira.

Tem me projetado, sem ser arquiteta.

Tem me ajustado, produzido, ensaiado, preparado, sem ser minha diretora.

Tem me medido sem ser costureira.

Tem me divertido sem ser meu brinquedo.

De fato, você é tudo. Tudo e muito mais.

Você é tudo isso em uma coisa só: Karina.

Você tem me feito mais Gustavo, por ser Karina.

Obrigado.

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CRIANÇAS

“Quando o sujeito é uma besta e não é capaz de fazer nada, faz filhos.”Nelson Rodrigues

Durante 42 anos da minha vida eu concordava plenamente com Nelson Rodrigues.

Este ano fui obrigado a rever muitos conceitos.

Lauro e Luisa mudaram minha vida. Mudaram para melhor.

Eu não tive filhos, mas estou sendo obrigado a entender crianças. Crianças são maravilhas.

Até o século XIX acreditava-se que crianças eram iguais os adultos, porém pequenos e incapazes.

Hoje, cada vez mais, sabe-se que crianças são capazes. Com capacidades e habilidades diferentes das adultas, crescem e aprendem tanto quanto fazem crescer e ensinam. Basta o adulto se preparar para entender este outro mundo.

Estou feliz.

Eu tinha certeza que para gostar de alguém era preciso, sempre, entendimento e troca de experiências no mesmo nível. Era preciso um amor lógico e racional.

Que besta!

Hoje eu me encontro acordado de madrugada, com saudades de uma criança, pensando em como fazer para ensinar a importância de preservar a natureza. E acho que nunca fui tão recompensado.

Um beijo de uma criança é muito mais valioso do que eu jamais pensei.

Nunca fui tão rico.

Pensando bem, fazer filhos, pelo processo antigo, aquele em que o papai-põe-a-sementinha-na-barriga-da-mamãe, é bem fácil. É coisa que qualquer besta pode fazer. Ter um filho, tem-se a toda hora, sem critérios ou responsabilidades.

Agora, ser pai de verdade, ser aquela pessoa que ajuda uma criança a ser cidadão, responsável e feliz, isso é tarefa pra grandes Homens.

Estou muito longe disto, reconheço.

Mas estou me esforçando muito para deixar de ser apenas uma besta.

Lauro e Luisa merecem.

Eu também.

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DECISÃO

Um dia ele acorda, pisa no gato, vira a xícara de café quente na mesa e a margarina acaba.

Desliga a tv que fala de enchentes distantes e gols insossos.

Põe uma roupa qualquer, penteia-se de qualquer jeito e sai de casa sem verificar, como sempre faz, se a porta ficou bem trancada. Nem se preocupa se deixou alguma lâmpada acesa.

O carro, preparado na noite anterior para aquele passeio, range uma partida precisando de revisão. Pra quê? Amanhã alguém pensa nisso.

Não liga o rádio do carro, como é costumeiro. O som do pensamento silencia os ruídos internos e externos. A revisão do carro é urgente, a julgar pelos ruídos internos. A revisão da cidade, pelos ruídos externos.

Cego e surdo, pelos pensamentos rápidos que giram em sua cabeça, consegue deixar sem aqueles xingamentos matinais os motoristas desavisados que lhe fecham ou por ele são fechados.

Amanhã, todos saberão dos seus xingos.

Chega a seu destino. Bate a porta do carro automaticamente, assim como tranca automaticamente com o alarme. Para que trancar um carro que nunca mais há de dirigir? Mas tranca sem pensar no gesto.

Porta em sua mão esquerda o objeto que lhe fará famoso.

Ele não lerá as manchetes que lhe trarão fama. Mas sua mãe, seu pai, seus irmãos e principalmente aquela lá, lerão as manchetes e ouvirão os rádios exaustivos.

Entra na escola decidido, descarrega seu rifle em tantos idiotas quanto é possível mirar.

Guarda uma bala pro idiota maior.

Sua mãe chora, assustada com o alívio doído no peito.

Deus deve ter uma explicação.

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AGORA

Nesta mesma hora, em algum lugar do mundo, tem alguém abrindo um jornal local e, sem querer, lendo uma crônica desavisadamente.

Nós nunca somos tão originais quanto pensamos. Nossas idéias super inovadoras já foram pensadas. Nossas opiniões revolucionárias não provocaram nenhuma mudança.

Nós não temos muito a acrescentar, com pensamentos.

Discursos inflamados, geralmente não inflamam nada além da garganta e do rosto do discursante. As idéias defendidas vorazmente não são tão vorazes quanto o discurso.

Sim, estou concluindo que o mundo não foi feito de idéias. Muito menos de discursos.

O mundo vem mudando e evoluindo, há milhares de anos, por causa das ações.

Para se agir é necessário pensar, discutir, convencer, ceder. Mas nada disso substitui a ação.

Cuidado com quem fala muito.

Cuidado com quem discursa.

Dizer que algo está errado, que deveria ser feito diferente, é fácil, quase ridículo.

Dizer que sabe a solução, é banal.

Mas, por outro lado, explicar de fato, como deveria ser certo, isso sim, é complexo. Quem só aponta erros geralmente não tem a menor idéia de como seria certo.

Atenção aos faladores. Eles são muito úteis. É bom conhecê-los bem, para poder evitá-los.

Como alguém pode defender uma revolução, uma mudança radical, dizendo apenas que “deveria investir-se mais em educação e saúde”? Tem coisa mais óbvia?

Como alguém pode dizer, de peito inflado e cara de sábio, que “as prioridades deveriam ser a criação de empregos, a educação das crianças, a saúde dos desvalidos, a cultura popular e o saneamento público”?

É muita cara de pau. Primeiro porque “prioridade” é uma coisa só. Ninguém pode priorizar diversas ações. É ir contra o dicionário. Depois, porque quem diz isso apenas está dizendo tudo que já é obrigação do poder público.

Neste momento, em algum lugar, alguém está pensando algo que você pensa. Alguém, mais corajoso, está falando o que você pensa. Este alguém haverá de impressioná-lo, pois as palavras que você pensa e não fala, ecoarão no seu cérebro como algo que “combina com você”.

Mas seu pensamento não é novo nem inovador.

Em algum outro lugar, alguém pode estar fazendo, de fato, aquilo que você pensa. Mas, como quem faz tem pouco tempo para discursos inócuos, é muito provável que as palavras sejam mais impressionantes que os atos.

Cuidado. Preste atenção. Olhe em volta. Leia, escute, mas tenha sua própria opinião.

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Alguém deve estar querendo enganá-lo.

Lembre sempre que para fazer alguma coisa são necessários recursos, mão-de-obra, instrumentos e, também, idéias apropriadas. Mas as idéias não fazem nada. Gente pra falar como deveria fazer, tem muita. Gente pra arregaçar a manga e fazer, isso é difícil.

Em quem você prefere acreditar e apostar?

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AS VIÚVAS

- “Antigamente é que era bom...” “A gente vivia melhor...”- “É verdade...”- “Todo mundo ganhava melhor, era tudo mais fácil... Não era essa bandalheira!”- “Tem razão... Agora você disse tudo!”...- “Esse trânsito, esses políticos, o desemprego...”- “Trânsito, né?... mas eu não tinha carro...”- “Eu também, mas... então...”- “Os políticos... que coisa! Meu irmão foi vereador...”- “É mesmo, né? Onde ele anda?”- “Cuidando das fazendas que ele ganhou na época... mas ele, bem... ele deveria ser

honesto...”- “Mas o desemprego...Está uma vergonha...”- “Saudade dos bons tempos...” ... “Eu trabalhava na Companhia de Luz...” ... “Ganhava

bem, acho, dava pra fazer quase tudo...”- “Esse monte de empresas na cidade... mesmo assim... é fogo... está todo mundo parado...”- “Fogo... por exemplo.... o... não, não... ele está trabalhando... mas o... também não...”- “Pensando aqui... na minha família, fora aquele cunhado da minha filha, que nunca

trabalhou... é... está todo mundo trabalhando.... mas... é fogo o desemprego, viu?!”- “É...”- “Saudade daquele tempo... todo mundo era mais informado... era tudo mais fácil...”- “Eu vi na Internet uma pesquisa sobre isso...”- “Internet...”- “Bom era o tempo daquele prefeito, aquele que pôs o nome do meu pai naquela rua da

Vila... lá perto do córrego...”- “Gente boa aquele homem!”- “Honesto, trabalhador...” ... “Naquele tempo o salário mínimo era muito melhor!”- “Mas salário mínimo, quem define não é o Prefeito, é?”- “Não... mas...” ... “Naquela época a inflação era outra coisa...”- “Inflação não é coisa do Presidente?”- “Hummm... talvez... é!”- “A educação era melhor... a saúde...”- “Verdade... minha irmã morreu de sarampo... mas precisa ver o cuidado das enfermeiras...

naquela época era diferente...”- “A educação... na época daquele prefeito os professores eram respeitados.”- “Tudo funcionário estadual, respeitado...” ...- “Estadual, né...”- “A segurança... hoje é um risco sair na rua até de dia!”- “O prefeito é quem manda na polícia?... não, né?”- “Hum... é... não...”- “Vai ver aquele prefeito nem era tão bom...”- “Aquela rua que ele pôs o nome do meu pai... no fundo da vila... que desrespeito, né? Meu

pai era para merecer uma avenidona no centro!”- “Mas... deixa pra lá... estava bom pensar que antigamente era bom...”- “Isso!”.... “Antigamente era bom!”...

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UP & DOWN

Dia 21 de março é comemorado o Dia Internacional da Síndrome de Down.

Até dois anos atrás, eu havia tido um único contato com um Down. Foi com Henrique Sá, aqui mesmo em Ourinhos. Eu já tinha mais de 30 anos e nunca tinha conversado com alguém que nasceu com a síndrome, na cidade de São Paulo, onde eu nasci e vivi.

O mundo mudou muito quanto à inclusão. Hoje os Down são vistos em público e expostos pelas famílias. Hoje não se usam mais termos pejorativos como “retardados” ou “mongolóides”.

Em 2002, recebi um prêmio de segundo lugar em um concurso de fotografias promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Ourinhos. Era a foto de um usuário da APAE, em um espetáculo de mímica no Teatro Municipal de Ourinhos. Talvez apenas uma coincidência, na época.

Nunca havia me interessado pelo assunto da síndrome, nunca havia lido qualquer texto sobre o assunto, nem conversado com ninguém.

Porém, como a vida é tão sábia quanto esquisita, em junho de 2007 conheci a mulher que mudaria minha vida para melhor em inúmeros aspectos. Conseqüentemente, conheci seus filhos. Karina é mãe de Lauro e Luisa.

Lauro, 12 anos, é Down. Eu, obviamente, me apaixonei, primeiro, pela mãe. Mas o convívio me levou, naturalmente, ao amor pelos dois anjos.

Por força do convívio, aprendo diariamente sobre as características que a síndrome de Down apresenta.

Não tenho me dedicado à leitura profunda sobre a síndrome. Mas tenho me dedicado ao conhecimento profundo da mente do Lauro. Aliás, mente e coração. Não me interesso tanto pela teoria. Mas a prática tem me levado a uma loucura. Loucura de amor.

Eu, que nunca quis ser pai, nunca tive o sentimento egoísta de deixar na terra um legado com cabeça, tronco e membros, entendi a delícia de ser padrasto.

Nunca imaginei que acordaria durante a noite para ir até o quarto das crianças apenas para sentir “cheiro-de-bochecha-de-criança”.

Tenho aprendido alguma coisa sobre a síndrome de Down, tenho aprendido um pouco sobre crianças, tenho entendido um pouco sobre o Lauro. Mas tenho aprendido absurdamente sobre mim mesmo.

Tenho certeza absoluta de poucas coisas nessa vida. Mas posso afirmar sem medo que o Lauro apareceu na minha vida na hora certa, e que já o conhecia de outras vidas.

Algumas pessoas pensam que uma deficiência genética como a síndrome de Down é um castigo para a família. A ‘moda’ do politicamente correto exige que as pessoas que têm a síndrome sejam chamadas de “especiais”.

Independente da moda, considero o Lauro uma pessoa especial, muito especial. E tenho certeza que a síndrome não é castigo, mas um presente. Lauro é uma criança deliciosamente

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feliz, que aprende com uma velocidade mais saudável do que exigem os cursinhos vestibulares, que não mede as palavras e que tem urgência nos seus desejos. Enfim, ele é o que todo mundo queria ser, mas o mundo não deixa, pela estúpida pressa que rege nosso cotidiano.

Por um “trocadilho-do-destino”, o pesquisador que descobriu e determinou a síndrome tinha o sobrenome Down, que em inglês significa “para baixo”. Mas o Lauro não tem nada de down, nada depressivo e “para baixo”. Ele é, quase sempre, o responsável por minha primeira risada do dia. E da última também.

Lauro ainda nem sabe que tem uma síndrome. Por outro lado, ele sabe muitas coisas mais úteis, como brincar, sorrir, abraçar, beijar e dizer “te amo”.

Dia 21 é seu dia, Lauro, mas, ao invés de parabéns, eu lhe direi obrigado.

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AS DIVERSAS FÉS

Em tudo o que se faz, nessa vida, é preciso acreditar. Nós só aprendemos com os mais velhos porque acreditamos.

Acreditamos nas pessoas, acreditamos no que eles dizem ou acreditamos nas experiências deles.

Quando nós vemos discordância entre o que eles dizem e o que eles fazem, surge nossa primeira descrença. As crianças acreditam muito no que os pais, avós, tios e correlatos dizem. Mas o que eles fazem serve para confirmar confianças ou plantar inseguranças.

Aquilo que nos dizem e não há como comprovar vai depender enormemente da construção das confianças. Se, através de exemplos sólidos, os mais velhos mostram que podemos crer no que eles falam, suas palavras viram leis e surgem os conceitos de crenças no invisível.

Assim se constrói a fé.

É claro que é apenas o início e que existem outras variáveis.

Minha mãe me ajudou a gostar de aprender e me incentivou a questionar as coisas. Toda criança pergunta o porquê de tudo. Eu também. Mas minha mãe, pacientemente, respondia o porquê de tudo. Isso me levou a duvidar de tudo que não fosse lógico. “É assim porque é assim, e pronto!” é uma resposta que nunca me satisfez.

Se, por um lado, eu cresci aprendendo muito e acreditando nos mais velhos (pelo menos naqueles que me rodeavam), tive muita dificuldade com a construção da minha fé.

As religiões foram criadas para responder o “irrespondível”. Sempre foi o recurso do inexplicável, o apoio aos atrasos da ciência ou ao inatingível da tecnologia.

Bem, eu não sou um homem de fé. Nem sou ateu, pois sinto a presença de algo que justifica essa vida. Não entendo essa força como algo que criou tudo e, portanto, dirige todos os destinos. Não. Acredito que sou responsável, principalmente, pelas besteiras que cometo e pelas escolhas que faço. Se eu correr a 90 quilômetros por hora em uma rua residencial e atropelar uma criança que escapou da mão da mãe, não foi Deus quem quis assim. Se eu andar armado no trânsito estressante de São Paulo e me sentir impelido a atirar no motorista do carro ao lado, não foi desejo de Deus. Se eu estudar muito, concluir uma faculdade e conseguir um emprego bom, não foi apenas um desígnio divino. Por que Deus não atropela a criança, não atira em gente que buzina, nem contrata funcionários.

Eu entendi que não tinha fé apenas quando, já pós adolescente, percebi porque não conseguia torcer fervorosamente por um time de futebol. Apesar do paralelo chulo, torcer por um grupo de desconhecidos, amar um símbolo, sentir-se irmanado com estranhos, sofrer ou regozijar-se com os feitos alheios como se fossem seus próprios, acreditar que fazer parte deste grupo te preenche os vazios existenciais, é algo muito próximo da religião.

Porém, apesar de ser um “homem-sem-fé”, sou um “homem-que-acredita”. Acredito no meu trabalho, acredito no poder do trabalho e do conhecimento, acredito no planejamento para corrigir e prevenir, acredito na força da união, acredito na sabedoria da maioria, acredito no trabalho em grupo, acredito na comunicação.

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E, por acreditar, sou um “homem-que-defende”. Defendo minhas idéias, defendo meu grupo, defendo as experiências, defendo o conhecimento, defendo, principalmente, aqueles que acreditam no que eu acredito.

Por acreditar e defender, sou um “homem-que-leva-porrada”. Por falar e escrever tudo que acredito e defendo, firo algumas convicções. Por comunicar que creio na comunicação, incomodo quem não comunica. Por imaginar que a verdade cura, machuco quem não crê na verdade como remédio. Por reconhecer que algumas verdades mudam, interfiro em quem teme mudança. Por defender quem acredita no que eu acredito, levo porrada de quem acredita cegamente em verdades que já mudaram.

Demorei muito para interpretar a expressão de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, “fé cega, faca amolada”. Sim, a fé cega é cortante, afiada, perigosamente útil.

Minha crença não é cega, mas é forte. É afiada. É uma importante ferramenta para a construção dos meus ideais e para a condução do meu trabalho. Hei de sofrer alguns cortes, assim como algumas ameaças, por apontar esse fio.

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ARCO-ÍRIS

Um arco-íris de todas as cores.

Verde como a luz refletida nas gotas sobre a grama depois da chuva.

Preto como um café, esquentando uma conversa.

Branco como o sorriso da Luísa, quando conhece uma nova brincadeira.

Bordô como uma noite de aniversário de namoro.

Laranja como um Chevette que me levou a Parati e me ensinou muito sobre mecânica e paciência.

Azul como os olhos do Lauro, solto num outro mundo, onde ele manda ainda mais.

Violeta como um quadro expressionista.

Anil, como o jornalzinho mimeografado do meu jardim de infância.

Vermelho como a boca da Karina, quando fala, me ensinando, quando ri, me alegrando e quando beija, me levando ao céu.

Amarelo como a onda vitoriosa de uma torcida amiga.

Roxo como um alegre hematoma no joelho depois de brincar de luta com e como criança.

Cinza como a paisagem em dia de neblina.

Marrom, como a mesa de jantar redonda e firme, num apartamento quadrado e firme, de uma família redonda e nem tão firme.

Rosa como a minha pele, meu maior órgão, responsável por muito do que eu sou.

Um arco-íris com muito mais que sete cores e muito mais do que um sentido.

Vermelho como o amor; Laranja como o sabor de frutas; Amarelo como abraçar o irmão; Verde como o cheiro do mar; Azul como o vento; Índigo como vestir uma calça nova; Violeta como um filme de suspense.

Um arco-íris, para colorir o céu da boca.

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VOX POPULI?

Uma coisa me intriga na democracia.

Todo mundo quer democracia.

Democracia é o poder emanando do povo.

Mas só é boa se eu ganhar.

Se eu ganhar, é a vitória da democracia. É o povo sabendo exigir seus direitos e decidindo por conta própria seu destino, de forma consciente e madura.

É o desejo popular vencendo os poderosos. É a retomada da sabedoria popular. É a demonstração da inteligência das massas. É o povo no poder!

Mas, se o meu lado perder, não. Não foi a maioria que escolheu. Se eu perder, é uma prova da manobra dos poderosos sobre a massa massacrada, dominada e cega.

É o povo sendo enganado, usado como gado, em detrimento dos desejos mais puros e íntimos.

Afinal... Não é o mesmo povo? Esse povo, quando escolhe um lado, “este lado” fica feliz e diz que o povo é genial, que tem a "voz de Deus", que sabe escolher, que é maduro, que é consciente.

Na eleição seguinte, se este povo tem outra opinião, se percebe que quer mudar, então, para “este lado”, o povo é burro, manobrado e dirigido no cabresto.

Oras... não é o mesmo povo?

Democracia é o avesso do avesso, então?

Caetano me explique isso, que de avesso você entende.

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A BELEZA DA IDADE E OUTRAS BELEZAS

"Amo ter 48, e é por isso que ainda sou sexy"Sharon Stone

Outro dia, conheci uma jovem senhora na internet. Numa daquelas coincidências da vida, de fato, nós já nos conhecíamos de outros encontros não virtuais.

Mas foi ali, na internet, que tivemos um maior contato. Engraçado como o virtual às vezes é mais íntimo que o real. Pois é, conheci-a e começamos a falar de tudo. Vida, passado, casamento, filhos, trabalho, artes. a certa altura, me lembrei que ela usava um apelido para se identificar que não condizia com ela. O apelido falava de uma jovem. Ela, no começo da conversa, tanto comigo como com qualquer outro, evitava falar da idade de forma incisiva. Mas, ao falar dos filhos, se a conversa empolgasse, ela dizia ter 3 filhos, um deles com 28 anos. Ela não seria, portanto, a jovenzinha que faria parecer em sua conversa.

Perguntei o que levava a "mentir" a idade. "Se eu disser a verdade, de cara, quase ninguém vai querer falar comigo, os homens só querem menininhas." Ok, concordo. Mas, e ela?, se interessa por um homem que queira menininha? Será que interessa perder tempo com um homem que, de fato, quando souber e vir a verdade dará uma desculpa e sairá correndo?

O ser humano é gozado. Finge ser o que não é, para conquistar pessoas que não gostam daquilo que ele realmente é. E, conscientemente, não gostam das pessoas que gostam de outra coisa. Mas tentam conquistar. E, sem querer, afastam as possibilidades de conquistar quem, de verdade, gosta daquilo que a pessoa é, mas está disfarçado. Ficou confuso? Claro! O ser humano é confuso. Conquista quem não quer enquanto afasta o que quer. Por insegurança, fica mais inseguro.

E isso não ocorre só com a idade. Com o peso é a mesma coisa. A internet é lotada de gordinhas. São gordinhas, fofinhas e cheinhas. Mas, as que se chamam assim, de fato, são gordas, fofas e cheias. As "inhas" se auto-denominam magras. Todas mentem. E também mentem à toa. Existem muitos homens que adoram mulheres gordas ou gordinhas. Referem-se às mulheres "que têm onde pegar" como suculentas, carnudas, recheadas, substanciosas... São elogios que só entende quem vê o desejo nos olhos dos admiradores.

Mas as mulheres têm medo de serem o que são. E perdem oportunidades enormes de serem felizes. Procuram a felicidade no corpo alheio e na idade alheia. Procuram prazer nos olhos de quem gosta de outra coisa. Perdem tempo.

Olhar no espelho e saber que cada ruga é uma marca da vitória de sua luta até o presente momento. Enxergar que cada quilo é um pouco mais de você mesma, a ser oferecido a quem te deseja mais e mais.

Sharon Stone tem 48 anos. E eu me sinto velho perto da menina.

E as jovens? E as magras? E as magras-jovens? Ah. Elas que falem a verdade também, e fiquem com quem gosta delas.

E os homens? Os homens que deixem de ser bestas, porque, quando definem o tipo de mulher que preferem, perdem de vista um monte de mulher interessante, por que peso, idade, altura. são apenas números. E nenhuma mulher pode ser medida apenas em números.

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ÁCARO CRISTÃO

Hoje, de manhã, fui tomar um café na Pão e Vinho (o pão é divino, o vinho eu nunca experimentei...). Após o café, voltando para o carro, senti uma atração forte. Fui sugado para dentro da modernidade recente de Ourinhos.

Ourinhos já é uma cidade grande. Viva!!! Já temos um sebo. De fato, já há muito que existem algumas bancas na Antonio Prado que vendem revistas e livros usados. Uma próximo à linha de trem e outra no Centro de Convivência. Não sei se os donos sobrevivem daquilo, mas sempre tive a impressão de que nunca há clientes... pelo menos para as revistas e livros... sei lá se há outro comércio possível ali.

Mas voltemos ao Sebo da Rua Antônio Carlos Mori. Como havia dito, fui sugado. Quando dei por mim estava dentro da loja, folheando livros. Por ser professor de Estética, no curso de Educação Artística das FIO, os livros de arte brilhavam aos meus olhos. Uma maravilhosa coleção sobre os principais museus do mundo. Nossa!!!

Em uma prateleira mais à frente, deparei-me com livros de arquitetura. Tenho que me preparar para o curso de arquitetura que as FIO, provavelmente, oferecerão o ano que vem. Para ser professor do curso, terei que me preparar muito. Formamos um grupo muito bom de professores para definir o currículo deste novo curso. Quando terminamos o trabalho e enviamos o estudo para o Ministério da Educação, todos tínhamos a sensação de que aquele teria sido o curso ideal para nós, na nossa época. As FIO (e nós também) estão de parabéns.

E a seqüência de prateleiras com livros foi me deixando cada vez mais encantado.

Por sorte, eu estava sem dinheiro. Sim, sorte. Porque, caso contrário, teria cometido uma sandice. Não fosse a carteira vazia, seria preciso um carrinho de supermercado para transportar meus desejos. Agora sei que preciso me preparar psicologicamente antes de entrar novamente ali.

Mas o livro que mais me chamou atenção foi um livro grande e preto. Estava perto da porta de entrada, mas só o vi na saída. Um livro grande, de capa fosca, com as bordas das páginas douradas e nenhuma legenda externa. Era preciso abrir para saber de que se tratava.

Sebo é lugar de curiosos, então abri o livro. Grandes letras se apresentaram: Bíblia Sagrada.

Um grande livro, de papel bom, capa resistente, tinta dourada nas laterais. Uma impressão primorosa. Um verdadeiro investimento. Apenas pessoas com orçamento folgado poderiam comprar.

A presença daquela bíblia me deixou com muitas questões. A Bíblia, como seu nome mesmo diz, é “o livro”. Quase que se impõe, pelo título, como o principal, o único, o definitivo. É o livro de todos, para todos. Sua lição maior, a mensagem principal é o exemplo de Jesus: humildade, modéstia, desapego às coisas materiais. E, ali, aquela Bíblia luxuosa, cheia de dourados, feita de pompa e de riqueza.

Só não estranhei mais aquele livro porque me lembrei, imediatamente, do Vaticano, talvez o país mais rico do mundo, e que não vende nem exporta um centavo por ano.

Saí dali com a uma impressão ruim. Imaginei quem teria vendido aquela Bíblia para o sebo. O que levaria um cristão a investir uma pequena fortuna em uma Bíblia tão luxuosa e depois, um

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certo dia, a colocou entre revistas e livros velhos para vender. O que será que seu dono perdeu? O dinheiro que tinha quando pode comprá-la? A fé? Ou será que adquiriu humildade ao ler o livro?

Cada livro que está exposto ali, de fato, tem uma história diferente e provavelmente interessante desde sua impressão até aquela prateleira. Mas aquela Bíblia me deixou ainda mais curioso.

Será que o antigo dono, após a venda para o sebo, deu parte do valor como dízimo?

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CADA VEZ MAIS EX

Dias destes estava olhando meus arquivos no computador e abri meu currículo. O tal curriculum vitae. Comecei a lê-lo atentamente e me senti triste. Aquele documento é a prova cabal de que a vida é um acumular de ex. Você vai envelhecendo e se tornando ex. Cada vez mais ex.

A sua carreira é tão mais extensa quanto mais você deixou de ser coisas. Se você ainda é, há muito tempo, a mesma coisa, seu currículo é pobre. Você é muito pouco ex.

Leio lá. Ex-trabalhador do escritório x, ex-estudante, ex-projetista, ex-desenhista, ex-diretor de Prefeitura, ex-consultor em Osasco. Como eu já fui! Mas isso me deixa reflexivo. Será que esse tudo que eu fui significa tudo que eu sou? Será que demonstra o que eu vou ser?

O que eu vou ser? Isso é que deveria realmente importar no meu currículo. Alguém poderia pensar: “Se esse cara fosse bom no que ele foi, ele ainda seria”. E eu nem tenho bons argumentos para negar. Eu, talvez, diria: “É que eu evoluí e passei a ser algo ainda melhor, tá vendo?, lê aí no currículo...”

Seria interessante um currículo que falasse só sobre o que a pessoa quer vir a ser. Um currículo futuro, pensando nos desejos e nos anseios. Pra que serve o passado? Vou tentar escrever um. Vou começar pela última colocação, como é costume em currículos? Então começo com “moribundo saudável”. Lógico, a última colocação vai ser justamente aquela antes de morrer. Mas “moribundo saudável” não é absurdo? É, talvez. Mas eu me imagino com 156 anos, já quase morrendo, mas com a saúde em dia. Só morrendo de velhice mesmo. Sem dor, sem solidão, sem angústia, sem arrependimentos. Feliz. Começou bem, meu currículo.

Mas é muita coisa! De hoje até a minha morte em 2159 (otimismo é fundamental) dá pra encher 35 páginas de currículo. Melhor desistir. Muito trabalho. E ninguém vai querer acreditar em mim.

Melhor manter os padrões, e continuar com meu currículo-sequência-de-ex. É o que as pessoas sabem avaliar. Só o que você já fez. Ninguém quer acreditar nas suas capacidades futuras. E você há de exagerar, mesmo, assim como eu faria.

Então continuo sendo cada vez mais ex. As pessoas acumulam, também, ex-coisas. Ex-chefes, ex-amigos, ex-namoradas, ex-emprego, ex-maridos, ex-esposas, ex-apartamento, ex-escola, ex-carro. Vamos guardando o passado em álbuns e prefixando ex em tudo.

Muita gente se orgulha da maioria dos seus ex-objetos e se ressente de suas ex-pessoas. Eu, como sempre, sou do contra. Descarto meus ex-objetos da memória e aprendo a gostar dos meus atuais. E, principalmente, me orgulho das ex-pessoas, assim como me orgulho das pessoas atuais.

Vejo muita gente sofrer como escravo egípcio em filme épico por causa de ex-mulher/marido. São rancores e ofensas distribuídos como vinho branco barato em coquetel de inauguração. A dignidade que se lasque, os ex querem mesmo é machucar, para curar machucados incuráveis.

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Eu, do contra, me sinto cada vez mais feliz. Ao invés de rancor, olho hoje pra minha ex-mulher e a admiro, como sempre admirei. Inclusive a acho cada dia mais elegante. Pena que o mundo não é civilizado e coerente assim.

Faço o mesmo com os trabalhos, com os cursos. Olho pra trás e me orgulho. Meus chefes? Aprendi com eles. Os colegas de trabalho e de escola? Aprendemos juntos.

Bem, pensando profundamente, vou reescrever meu currículo, de maneira muito mais simples, muito mais verdadeira, também:

“Gustavo Ferreira Martins Gomes, feliz e orgulhoso do que foi, do que é e do que vai ser”. Ponto final. Nada mais.

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CAINDO DE MADURO

No início de um novo ano, com um horizonte de 12 meses, 366 dias, pela frente, o otimista afirma, empolgado: “Eu vou é cair de boca!”. O pessimista, categórico, retruca: “Eu vou quebrar a cara!”

E eu, que já me disse resignado com relação às pouquíssimas mudanças que se descortinarão neste novo ano, fiz, ao mesmo tempo, a vez do otimista e segui o fatalismo do pessimista: caí de boca e quebrei a cara. Logo no começo do ano.

Não. Eu não fiz grandes apostas e perdi uma bolada. Nem tive tempo pra isso. Num lance de grande destreza e ginga, tropecei de forma grotesca em um defeito da calçada e me projetei de forma ridícula, vergonhosa, com a cara no cimentado. Doeu. Doeu muito, e ainda está doendo o suficiente. Mas o que mais machucou – muito mais que o lábio, o queixo ou as mãos – foi o orgulho. Como dói se sentir estúpido!

Um tombo destes pode levar a diversas discussões, algumas até mesmo acaloradas. Certa vez, o Secretário de Obras e Meio Ambiente de Canitar (não tenho certeza se é este o nome do cargo dele, mas é algo equivalente), Engenheiro Agrônomo Paulo Munhoz, me pediu que o auxiliasse a definir as ruas da cidade a terem prioridade na colocação de asfalto. Eu afirmei, sem titubear: “Se você quer dar dignidade ao cidadão de sua cidade, em relação ao trânsito e ao conforto do contribuinte, invista primeiro na qualidade das calçadas. A segurança do pedestre é o primeiro objetivo dos órgãos de trânsito.”

Lembrei-me disso enquanto a água oxigenada espumava ruidosamente sobre minhas escoriações. Lembrei novamente, sob o chuveiro, ao mesmo tempo em que urrava vexamosamente no banheiro. Raladas doem demais. Ardem.

Porém, no silêncio do quarto, tentando encontrar uma posição menos desconfortável para dormir, surgiu o pensamento sobre a finitude das coisas e a dificuldade de se prever os eventos da vida.

Naquele momento em que caí e transformei meu rosto em mostruário de cores, eu estava planejando uma noite tranqüila e romântica com meu amor. Um descuido e “vapt”, preenchi minha madrugada com outros “ais” e “uis”, sofridos e dolorosos.

Sei que perdi pouco, apenas adiei um encontro romântico. Mas fiquei pensativo, preocupado com a morte. Não só a morte definitiva, a mais temida. Também pensei nas mortes cotidianas, dos sonhos, dos planos, dos projetos. Mortes causadas por eventos incontroláveis como um tombo, uma notícia, uma derrota, um acidente, uma descoberta desagradável, uma traição, uma mentira.

Senti-me pequeno, incapaz. Senti-me ser humano, apesar de saber que o ser humano é o mais soberbo dos animais (usei aqui um adjetivo dúbio, propositadamente...). Senti que os dados do meu destino estão sempre nas mãos de um jogador cínico e despreocupado.

Entre um gemido e outro, lembrei de minha querida amiga Inês Francisco, ligada definitivamente a uma cadeira de rodas por ter aceitado carona de um irresponsável embriagado. Um segundo de descuido. Lembrei de suas dificuldades e de sua enorme força de vontade em fazer o melhor pelo mundo e por todos aqueles que precisam de um exemplo positivo,

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trabalhando na AADF, Associação de Assistência aos Deficientes Físicos de Ourinhos. Pensei na dor e no medo, mas senti esperança. Senti o calor de um bom exemplo.

Quebrei um relógio, os óculos e um dente, na queda. Um tombo esclarecedor, cheio de significados, repleto de mensagens. Um tombo que me fez pensar no passar do tempo, na visão do mundo e nas coisas que se tem que mastigar para poder engolir e sobreviver. Uma queda cheia de metáforas e metonímias. E muita dor. Digitar este texto foi muito dolorido, inclusive. Em muitos sentidos.

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CONFLITO

“A consciência é aquela voz interior que nos adverte de que alguém está olhando ”H. L. Mencken

-Não, não e não! Hoje não!- Vai, Gustavo, força um pouco...-Nem dá. Hoje está impossível...-Pára de frescura, vai! Larga de palhaçada. Olha a hora.-Não!. Liga lá e diz que hoje não vai ter.-É mais um vexame, cara. De novo?-Só hoje.-Não pode, Gustavo. Você tem um compromisso.-Mas são só uns doze, treze, no máximo. Todos meus amigos, eles entendem.-Entendem nada. Imagina a situação deles... dá muita raiva... comprar pra ver você e você

não estar...-É...-Então, como é que?-Tá, me ajuda...-Eu?...-É... que que eu falo?-Sei lá, qualquer coisa. Política! Você manda bem neste assunto...-Já encheu, não acha? É sempre falando pro povo votar direito.-Então, ótimo, conscientizar o povo... é útil...-Mas os 10 que lêem já são conscientes... o povo, “povo” mesmo, nem compra...-10, não, Gustavo, não se rebaixa, não se subestima... você tem muito leitor... 13 ou 14...-Ahã... mas e daí? Que eu escrevo? Tô pensando em escrever sobre a importância da

escolha de vereador para se aprovar o novo Plano Diretor...-Boa!-Mas tenho que escolher bem o tom... depende do jeito que eu escrever vai parecer crítica

aos que estão aí... e nem é “só” culpa deles... tem que falar da cobrança popular... vai parecer, também, que vereador tem que ser advogado ou arquiteto, ou engenheiro... não é por aí... sei lá...

-Pára de frescura, Gustavo...-Faz tempo que eu não escrevo nada emocionante, ou divertido... ando muito sério... tô

ficando chato...-Isso lá é verdade...-Não precisa concordar, pô....-Foi mal... mas escreve aí...-Nem... liga lá pro Eloy, diz que eu tô em coma na UTI da Santa Casa... manda ele

republicar uma antiga... semana que vem a gente se explica...-Deixa de ser picareta... Ele é “amigo da Santa Casa” ele sabe que você não tá lá...-Então tá, Consciência, cala essa boca e me deixa em paz... vou mandar qualquer coisa... o

que sair... depois eu vejo o que saiu... semana que vem falo de plano diretor, falo de amor, falo de basquete, sei lá... vai ser o mesmo problema de novo... ah...

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CONHECER: VERBO TRANSITIVO DIRETO

Onde foi parar a poesia?

Há tempos que não escrevo nada lírico. Toda semana, meus dedos percorrem linhas técnicas, opiniosas, conscientizantes, politiqueiras, atacáveis. Não dedico mais nada a ninguém.

O que eu fiz da saudade e dos beijos? Guardei em que lugar os ritmos exaspirantes e as palavras galopantes?

Será que estou desapaixonado? Envelheci?

Terei me resignado? Procuro aqui e ali uma seqüência de palavras atordoantes, umas frases inesperadas, uma combinação de elementos nova, que revele a alquimia da língua. Nada. Tem sido um texto frio, distante.

É só o texto, eu sei. Mas não parece.

Meus leitores, comuns folheadores de jornais semanais, talvez agradeçam. Ler arroubos emocionais não combina com café expresso e pão de queijo. Uma cutucada no sistema político, sim: este é o tempero apropriado para sábado às 10.

Mas quem me ama pergunta se eu não tenho mais palavra de amor no meu estoque.

Tenho sim. Ou nem tenho. Nunca tive. Tenho, com certeza, a certeza que não existem palavras de amor.

O amor é mais pra lá do que as palavras de amor. A paixão está atrás de qualquer palavra. Ou melhor: está antes.

O que mudou? Onde foi parar a poesia?

No começo de todo amor existe a metáfora. Flor é delicada. Céu é futuro. Dor é prazer. Distância é luto. Respiração é alimento.

Mas o amor maduro é outro. O tempo traz conhecimento.

Conhecer não é ato. É processo. Cada vez a conheço mais. Assim como encontro desencontros, descubro descobertas.

Amor maduro exige metonímia. Se eu te dou um tijolo, significa ‘quer construir comigo?’. Se eu te dou lápis significa ‘vamos escrever algo juntos?’. Não quero mais matar canteiros. Não quero celofanes de óbvios bombons no meu edredon.

Presentes úteis. Palavras úteis. É disso que se faz amor maduro. E é tão amor quanto sempre foi.

Onde foi parar a poesia?

Amadureceu e virou prosa.

Quer escrever comigo?

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DELA PRA ELE, DELE PRA ELA

1.

Não sei explicar o que estou sentindo...acho que é um pouco de...impotência... insegurança...indiferença... indecisão...incerteza... impaciência... ineficiência...incapacidade... incompetência...e outros "ins", e outros "ências"...

2.

A gente sempre acha que é imprescindível.

Mas ninguém é insubstituível. Nem a gente. Aí, a coisa desanda dentro de nós...

O que é preciso? Erguer a cabeça, procurar o orgulho, que correu pra baixo do tapete, e pensar num plano B.

Sabe o que é legal, nessa hora? É lembrar que todo mundo ao seu redor, aqueles que realmente valem a pena, te amam e querem o seu melhor e querem te ajudar.

Olha, vê se não esquece que eu sou O OMBRO. Eu sou o cara que decidiu, depois de uma dança rave, que queria ser seu e ter você, independente de tudo, porque eu escolhi liberar meu coração pra gostar de você, feliz, infeliz, legal, chata, bacana, incômoda, sexy, de pantufa, mulher, mãe, filha, sempre!

Eu preciso de você, mesmo chata, mesmo com a auto-estima ferrada*. E você precisa de mim, porque você deveria saber que sua auto-estima melhora comigo.

Hoje deveria ter sido o dia que você mais deveria se expor pra mim. Se mostre fraca, que é quando eu saberei mais a sua força.

Lembre. Lembre, mesmo. Eu sou o cara. O cara que você escolheu pra ser o responsável por seu coração. Portanto, deixe que eu cuide dele, enquanto você só se preocupa com seus pâncreas e vesículas...

Te amoMuitoMais que muitoPra Caramba*Pra Caramba e meioPra mais que muitos carambasTe amo como você sonhava ser amadaOu nem nunca sonhou tanto...

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DESCULPEM

Hoje o Gustavo não vai escrever nesta coluna.

Por motivos alheios à vontade do titular do espaço, os leitores assíduos e os esporádicos terão que amargar a dura ausência das letras de Gustavo.

Não adianta procurar, ávido e trêmulo, em outras páginas, folhear nervosamente o coitado do periódico. O Gustavo, esta semana estará ausente.

E, a você, fiel leitor, que se pergunta quase choramingando, pensando em devolver o jornal ao jornaleiro, temos apenas que explicar, sem muitos rodeios, os motivos desta irreparável carência.

Feriado, dia morno, quinta-feira. Às quintas-feiras nossos cronistas escrevem e enviam suas crônicas para que nós, do Diário, possamos diagramar o jornal em tempo de publicá-lo aos sábados.

Pois é. Quinta-feira, feriado, corpus christ... Gustavo acordou tarde. Espreguiçou-se até meio-dia. Lançou-se contra um misto-quente. Voltou pra casa. Sentou à frente de seu computador. E.... nada! Não veio idéia alguma. Aqueles arroubos de criatividade, aquelas pérolas de sabedoria, aqueles comentários sobre a vida pública... NADA!

Gustavo olhou fixamente para a tela do micro. Olhou, olhou, olhou. Lembrou da infância, da escola, da professora de matemática... lembrou da tabuada do oito. Empacava sempre no 6 X 8.... sorriu, falou sozinho, alto, “48”... Lembrou da olimpíada de verbos, na sexta série... lembrou que sempre gostou de português, mas decorar.... ah... naquela hora sempre dava branco... sempre tropeçava no verbo conjugado na segunda pessoa do plural... “Vós.... vós.... éreis? Sois? Fordes? Serdes? Vós é?!?!?!.... A Rosana, aquela nariguda, sempre ganhava a maldita olimpíada de verbos... Gustavo sempre tinha brancos de memória em momentos importantes...

É, gente... nem é nenhum momento importante... mas deu branco no Gustavo.

Semana que vem não tem feriado. Nem olimpíada de verbos. Pode comprar o jornal na semana que vem, que vai ter Gustavo.

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O DIA DA CONSCIÊNCIA

Ultimamente anda se discutindo um projeto de lei do vereador Toninho do PT. Trata-se da criação do Dia da Consciência Negra.

É uma data interessante. Merece um dia especial. O nome é bem mais apropriado do que outras datas comemorativas. Dia da mulher, por exemplo. Seria mais correto um “dia da consciência feminina”.

É importante existir um dia para que todos pensem nas condições de vida, nas dificuldades e nos preconceitos. Principalmente, pensar no que faz as mulheres - que são mais numerosas que os homens - e os negros - que, no Brasil, são mais numerosos que os brancos – se sentirem como “minorias”. São minorias na força de expressão. O homem branco, minoria esmagadora, domina o poder político, econômico e cultural. Fala mais, manda mais, pode mais.

Essa data, aliás, já existe como data comemorativa no calendário oficial do Estado. Meu ex-chefe, ex-prefeito de Diadema, Gilson Meneses, quando deputado, conseguiu aprovação a seu projeto de lei criando o Dia da Consciência Negra, na Assembléia.

O maior desvio da discussão está na criação do feriado. Feriado, hoje em dia, é data ruim. Feriado municipal, então, é um grande problema. O Brasil não precisa de mais feriados. Pelo menos por enquanto. Estamos reconstruindo o país. É uma obra longa, onde cada um tem que se esforçar diariamente para concluir uma pequena parte. Não é hora de parar, cruzar braços.

Feriados locais são prejudiciais à economia da cidade. A cidade pára. O comércio fecha. Os cidadãos viajam, para “aproveitar” o dia parado e vão gastar em outras cidades. Quem quer isso? Eu não quero. Aliás, se pudéssemos instituir que todo feriado municipal fosse comemorado obrigatoriamente no domingo mais próximo da data original, a cidade ganharia muito.

Qualquer entrave ao crescimento da cidade deve ser evitado. Paralisações em dias “úteis” tendem a trazer desemprego, tendem a provocar prejuízo. Ainda corre-se o risco de haver empresários demitindo funcionários por causa dos feriados. Maior ironia seria ver um empregador ter que escolher entre um funcionário branco e um negro para ser demitido, justamente por causa da consciência negra. (Os exageros, às vezes, ajudam a ilustrar uma situação).

Gosto do projeto e apóio. Mas torço que breve o ser humano ouça os cientistas que já têm provas mais que suficientes para afirmar que não existem raças humanas. Existe apenas uma raça, apenas a espécie. As cores, os cabelos, os formatos dos narizes são simples reações do desenvolvimento humano em diferentes climas. Aqueles que viviam originalmente sob o sol forte têm a pele mais escura, para se proteger de queimaduras. Os que viviam nas áreas mais frias desenvolveram menos melanina. Os que viviam nos desertos têm narizes diferentes dos que viviam nas florestas. E por aí vai. É tudo culpa da geografia.

No dia que prevalecer a inteligência, não precisaremos de datas comemorativas raciais ou de minorias.

Aliás, sugiro uma nova data: o dia da Consciência Branca-Masculina-Cristã. O que produz e reproduz o preconceito é essa tremenda falta de “Dor na Consciência” que caracteriza essa minoria.

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ERREI

eu erreierrei em acreditar que amor pode virar amizade, sempreerrei em achar que você tem que me entendererrei achando que entendo vocêquando eu procurei vocêquando eu brinquei com vocêquando eu pensei que você queria brincarerreiporque seus objetos não são mais meusseus sujeitos, menos aindaerrei imaginando que você poderia saber meus segredoserrei tentando adivinhar os seusexagerei no tomexagerei no somenxerguei um domerrei de novocomo já havia errado tantas vezeserrei novamentepor brincar com emoções que são sériaserrei em forçar uma porta que deveria estar fechadaerrei por nem ver esta portapor não lembrar que amor e ódiosão xifópagosque a raiva brotagenuínaquando a razão perde a razãoerrei por estar pertoquando o perto dóipor provocar uma fera, por riscar fósforo no postopor acelerar sem por as mãospor não usar capacete nem cinto de segurançaandando na contra-mãoerrei porque aceitei a brigaerrei porque brigueierrei pela violênciaexagerei na reaçãoerrei mais do que nuncaerrei tanto, que não há espaço pra desculpasmesmo depois das dores passadaslembradas a cada movimentoas dores da alma deixarão as desculpas ridículase cada vez que um flash da cena voltareu terei certeza que erreicomo nunca errei

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ESSAS MULHERES

Trabalhar com mulher é muito difícil. Todo grupo com muita mulher tende a ser complicado. É claro que todo grupo humano é cheio de diferenças, de necessidades e expectativas complexas, que fazem da convivência um desafio. Mas quando se trata de trabalho e de grupos de mulheres, a coisa muda. Piora ainda mais. Não vou dizer que entre homens não haja problemas. Nem seria louco de fazê-lo. Homens adultos, quando disputando a atenção do chefe, parecem crianças. (Mãe, olha ele!!!! Fala pra ele parar!!!) Se a mesa do vizinho tem dez centímetros a mais ou uma gaveta maior já é motivo pra briga, pra rusgas. Se o projeto do outro foi preferido para ser implantado, é um mês de beiço...

Mas entre mulheres a coisa é mais sutil. Mas não menos agressiva. É sutil porque lida com detalhes menos visíveis. Um olhar, um tom de voz, um decote, uma cor de esmalte. Chamou mais atenção, ganhou mais destaque? É vulgar. Ou está ridícula. A briga pelo poder é mais sorrateira. Apega-se a coisas que muitas vezes os homens nem vêem. Mas é muito mais feroz. Às vezes, dois homens brigam a tapas por causa de um ter uma mesinha pra telefone e o outro não, mas na primeira final de campeonato, estão os dois amistosamente discutindo se aquele lance foi ou não foi pênalti. As mulheres, após a rusga, jamais fazem totalmente as pazes. Podem até se suportar, mas a toda chance, lá vai alfinetada.

Um elogio do chefe, e o homem está dobrado... Se a mulher está magoada, o elogio até piora, pois ela já o entende como ironia.

E se a chefe é mulher? Os homens torcem o nariz, no princípio, quando a chefe usa salto alto, mas depois aprendem que elas têm mais controle e mais empenho. Mas as mulheres subalternas a mulher sempre serão insatisfeitas. Primeiro, duvidando da capacidade da chefe, dedicando comentários ruins aos métodos utilizados para a ascensão da colega. Lembram sempre de Monica Lewinski.

Apesar de tudo, eu adoro trabalhar com mulher. Já trabalhei em ambientes exclusivamente masculinos e sei o quanto é enfadonho. Fala-se de mulher, carro e futebol (não necessariamente nesta ordem) o tempo todo. De carros, não entendo e nem quero entender. De futebol, não concordo com a parcialidade de qualquer torcedor, que não enxerga nada a não ser seu time. E de mulher... ah, eu prefiro falar "com" a falar "de"...

Entre mulheres, eu me sinto mais protegido. De fato, as mulheres são mais atenciosas em suas relações pessoais. Pelo menos, comigo são. E, quanto a trabalho, sempre são mais dedicadas e honestas. Existe mulher do mal? Claro que existe. Mas é exceção.

O fato é que mulher faz sempre muito bem, qualquer coisa. Se é pra trabalhar, é melhor que um homem. se é pra estudar, as mulheres têm notas mais altas. Nos esportes, a força física impede melhores resultados, mas a resistência é muito maior. É só ver que existem muito mais viúvas que viúvos. Por outro lado, quando quer fazer algo do mal, as mulheres também se superam. Uma mulher é sempre boa no que faz, até para ser burra; quando uma mulher quer ser burra, ela consegue ser uma besta quadrada. Se é pra ser grossa, segura, que a bicha vai esfolar todos que encontrar.

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Mulheres no trabalho servem de exemplo, incentivam, adoçam as conversas, perfumam o ar, embelezam o ambiente. Mulheres têm olhares especiais e tiradas geniais. Mulheres, em geral, resolvem os problemas de forma muito mais eficiente.

Hoje, trabalho com mulheres e homens. Os homens, são bons amigos, o ambiente é muito especial. Mas as mulheres, ah, as mulheres.... especiais, como deve ser uma mulher. Éticas e competentes, entregues às boas causas e inteligentes.

Obrigado, colegas, por serem tão especiais.

Qualquer dia, mulheres amigas, vou escrever algumas dicas, sobre as diferenças entre homens e mulheres. Por exemplo, o que eu sempre disse que homem gosta de mulher carnuda. Quem gosta de magricela é outra mulher, ou viado. E principalmente sobre o seu maior inimigo: a celulite. Vou avisando desde já, queridas. Até muito pouco tempo, homem algum sabia a diferença entre celulite, estria e manchinha de pele. Hoje alguns já sabem, e aprenderam a achar feio. Mas quem os ensinou foram as mulheres que estão sempre falando sobre isso e despertando a curiosidade a cerca do assunto.

Não esqueçam: celulite significa "gostosura em braile".

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EU DISPENSO PAULO COELHO (TRILHOS E SONHOS)

Paulo Coelho é um autor, muito, muito inteligente. Escreve e fala exatamente o que a maioria das pessoas quer ler e ouvir. Nem sei se ele concorda com tudo que escreve. Mas como a maioria das pessoas concorda, ele vende bem e continua fazendo o mesmo.

Ele era um compositor bem fraco, quase medíocre, ao meu entender. Mas se juntou, inteligentemente, a um cantor e compositor que fazia sucesso por seu comportamento polêmico. Compôs algumas músicas que, cantadas por alguém que não fosse tido como Rei do Rock brasileiro, seriam bregas e totalmente dispensáveis.

Mas ele é inteligente. Paulo Coelho é tão inteligente que parou de se destruir na hora certa e aproveitou a experiência das drogas para acrescentar em sua trajetória de 'mago'. Tão inteligente que ficou muito mais famoso que seu amigo famoso e milhões de vezes mais rico.

Por que ele faz tanto sucesso? Porque as pessoas precisam ler as coisas que ele escreve porque as pessoas querem todas viver na paz e na sabedoria que ele prega. Por que ele vende tanto? Porque ele se repete exaustivamente, reescrevendo a mesma baboseira a cada livro novo. E por que as pessoas lêem coisas repetidas? Porque, mesmo querendo ser aquilo, as pessoas não mudam seus hábitos, portanto precisam ler de novo, pois acham lindo na teoria, mas na prática...

E essa mania de auto-ajuda prolifera como uma peste em livros e e-mails, em forma de apresentações multicoloridas, com músicas alternativas e letrinhas pulsantes, todas falando a mesma coisa: viva mais, se estresse menos, dê valor às coisas simples, seja você mesmo, acredite no sonho, não desista, seja saudável... e as pessoas lêem isso, acham lindo, enxugam as lágrimas, remetem a todos os amigos, que já receberam a apresentação de outro amigo... enquanto saboreiam um big-mac, correndo na hora do almoço...

Paulo Coelho fala da utopia. E todo mundo se arrepia com a pureza da vida, com a beleza de se perseguir o sonho, apesar das dificuldades. Todo mundo lê essas sábias palavras e diz pra si mesmo que o mundo seria mais bonito, mais vivo, mais feliz, se cada um acreditasse em seu sonho e o perseguisse a todo custo.

Mas, largam o livro e pegam o jornal. E lêem que um prefeito sonha em fazer o bem para a cidade e persegue esse sonho. Olham o plano do homem com um sonho e falam: "Tsc, Tsc, isso é absurdo! Isso não vai dar certo. Nunca ninguém conseguiu. Não vai ser agora. Isso é gastar dinheiro à toa..."

Como o plano do homem real, imbuído do cargo e da caneta, não vem em palavras cósmicas e celestiais, não vem ilustrado de fotos de por de sol ou belas flores silvestres, como o homem real não lida com duendes, mas com engenheiros e administradores da vida real, ninguém acha lindinho e fofinho. Ninguém chora e manda pro amigo, em e-mails com o título "Lindo (com som)!!!".

Nosso prefeito percebeu, como urbanista inteligente que é, que a cidade de Ourinhos precisa, para se desenvolver, criar uma alternativa de trajeto para os trens que cruzam o município. Percebeu que não é mais possível imaginar que os cidadãos de Ourinhos podem conviver diariamente com mais de dois milhões de litros de combustível rodando em vagões pelo centro da cidade, correndo sérios riscos, sem que ninguém faça nada para evitá-los. Percebeu,

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também, que os trilhos são um fator de desagregação urbana, fazendo com que áreas muito próximas ao centro comercial, como a 'Barra Funda" e a Vila Margarida sofram um processo de desvalorização por estarem 'separadas do poder econômico'. Viu que no local dos trilhos podem surgir avenidas arborizadas, com ciclovias, ligando toda a cidade com segurança e rapidez. Viu que no local do pátio de manobras, ao invés de um inóspito emaranhado de trilhos, pode surgir um parque de importante valor para a vida da cidade, com atividades de lazer e cultura, além da grande valorização de todo entorno. Percebeu que, com o eficiente sistema de transporte coletivo de Ourinhos, no futuro podemos voltar a ter trens de passageiros sem dificuldades de acesso. Compreendeu que, em uma nova localização, o pátio de manobras pode estar ligado a um porto seco, gerando muitos novos negócios. Avançou e percebeu que os investimentos a fundo perdido que podem surgir com um bom projeto devem gerar milhares de empregos e negócios em nossa cidade. Viu que outras cidades de porte maior gastaram muito mais do que o necessitaremos para fazer aqui, hoje.

Mas as pessoas leram e torceram o nariz. Alguns se preocuparam com o custo inicial do projeto. Alguns ficaram assustados com este valor, mas não se preocuparam com os milhões e milhões que podem vir a ser investidos no município, gerando benefícios incontáveis. Estes, pessoas medrosas, julgaram o Prefeito porque ele é sonhador. Porque ele tem coragem de buscar o utópico e tentar fazer dele o possível. Lêem livros de auto-ajuda, mas não se auto-ajudam a sonhar junto com sonhadores.

Talvez, o Prefeito devesse contratar, ao invés de uma firma especializada em engenharia de transportes, o Paulo Coelho. Talvez os céticos achariam lindo e mandariam o projeto, por e-mail, para os amigos.

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EU QUERO "NÃO MORRER" EM OURINHOS

Meus leitores assíduos, apaixonados e que me acompanham há anos, sabem todos, que nasci em São Paulo, capital. Todos os quatro leitores já sabiam, e você, que nem meu leitor é, mas pegou sem querer este jornal e está sem querer lendo esta coluna, agora também já sabe que sou paulistano, daqueles que falam um "erre" esquisito que parece que a língua vibra no céu da boca.

Nasci na Vila Madalena, bairro que hoje é badalado, teve até novela para aumentar a fama. Quando eu nasci era só um bairro a mais, perdido no meio de Pinheiros que, na época, era mais famoso.

Nasci na maior cidade da América Latina, quinta metrópole do mundo (se é que não houve alteração no ranking), cidade onde se encontra tudo da melhor qualidade. É tão grande, tão enorme, que é a segunda maior cidade do mundo com descendentes de japoneses, depois de Tóquio. Tem mais árabe que muito país árabe. Mais italiano que... sei lá... mas é grande!!!!

Quando dizem que São Paulo tem de tudo, não é brincadeira. Nem marketing falso. Tem especialista em qualquer assunto. De energia nuclear a técnico em televisão com válvula. Tem todos os cursos imagináveis, todos os fãs-clubes possíveis. Fã-clube do Speed Racer. Do Alain Prost. Até do Pitta, o pior prefeito do mundo, é possível que tenha fã-clube.

E tem a melhor medicina do mundo. O mundo da medicina não reconhece, oficialmente, mas quem trabalha como médico no Brasil, em São Paulo, aprende a lidar com um número infindável de doenças típicas do terceiro mundo, que não existem no hemisfério norte, e com a mais alta tecnologia, que não existe na maioria dos países, mesmo no hemisfério norte. Todo médico estrangeiro que vem fazer residência no Hospital das Clínicas de São Paulo volta maravilhado.

São Paulo tem, realmente, muita coisa. Mas não tem mais o Gustavo. Eu nasci lá, sou grato à vida que tive, aos estudos, à cultura e à vida profissional. Mas virei ourinhense. Amor não se discute. Gosto desta caipirinha encabulada, de baixa auto-estima. Quando conheci, achei Ourinhos esquisita. Estava acostumado com a soberba de São Paulo. Era um sujeito tão metido quanto ela. Um verdadeiro paulistano. Ria do modo tacanho dos eventos. Achava graça da falta de certos "luxos". Reclamava das faltas de opção.

Demorei a entender que não basta ter milhares de opções, se você não tem tempo ou coragem de aproveitá-las. Custei a admitir que o que vale na vida não é ter possibilidades disponíveis. O que vale é ter realidade atingível. E aprendi a amar Ourinhos. Aprendi a respeitar, torcer e me orgulhar das pequenas-grandes vitórias desta cidade. E uma das maiores vitórias recentes é o Instituto de Cardiologia de Ourinhos. Bons médicos, aparelhagem e instalações da melhor qualidade. A primeira cirurgia de grande porte já foi realizada.

É um alívio. Meu pai morreu do coração. Talvez a única herança que ele tenha me deixado seja o mesmo coraçãozinho defeituoso. Talvez. Adorei conhecer o Instituto na sua inauguração. Estou orgulhoso do sucesso do trabalho. Mas juro que prefiro nunca, nunca mesmo, precisar dele. Na verdade, preferia ser imortal, mas acho que não é uma das opções. Não sei se vou morrer em Ourinhos. Por enquanto, enquanto posso, vou "não morrendo" aqui, sabendo que tenho gente boa pra me ajudar nesta empreitada.

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FAXINA

Quem não assistiu “Domésticas, o filme” não sabe o que está perdendo. É uma comédia leve, que fala de um universo urbano muito pouco apresentado pela mídia. Há comentários super engraçados mas que contém a poesia das pessoas simples brasileiras. Pegue o DVD.

Hoje eu resolvi fazer faxina. Vou limpar tudo e jogar fora o que não presta. O difícil é definir o que presta.

Nós temos uma mania absurda de guardar. Guardamos tudo. A memória não ajuda, a gente vai enfiando em gavetas. Caixas. Armários. Quartinhos do fundo.

Só quando a gente muda de casa é que se percebe a quantidade de coisas guardadas. Mas aí, uma armadilha. A gente se promete que vai organizar tudo. Mentira. As coisas são levadas de gavetas para outras gavetas, de caixas para outras caixas. Ou as mesmas caixas são guardadas em outros quartinhos do fundo.

Tudo que guardamos, no fundo, é uma muleta pra nossa memória. Parece que, se não se guarda aquele ingresso do show em 1982, nunca mais vamos lembrar daquela noite.

Outro dia, conheci uma senhora cuja mãe tinha uma empregada. Ambas, a mãe e a empregada, eram analfabetas. Mas guardavam perfeitamente todos os recados telefônicos. Não tinham as letras como auxiliares, então guardavam tudo de cor. Nada lhes escapava. Isso me intrigou. Acho que mudei muito com aquele comentário.

Mas será que aquele show merece ser lembrado? Se é preciso um papel sujo e amassado para que o show seja lembrado, talvez as verdadeiras emoções que o show provocou não foram assim tão marcantes...

Isso vale para tudo. Fotos, por exemplo. Que graça tem uma foto de um bando de gente borrada por um flash desregulado. Todo churrasco é igual. E ainda tem sempre um babaca com o dedo em V sobre a cabeça de outro babaca.

Vou jogar fora o que não tiver valor. Ou tudo que não for documento. Documento é tudo aquilo que, se alguém pedir e você não tiver, você vai preso. Todo o resto é papel. Papel inútil.

Mas antes de jogar coisas foras, das gavetas, caixas e quartinhos, vou fazer uma faxina mais profunda. Vou limpar umas coisas aqui dentro.

Primeiro, vou jogar fora alguns sentimentos inúteis. Raiva, inveja, insegurança. Fora!!!

Depois, vou abandonar numa lixeira umas lembranças ruins. Fora de ex-namorada, traição de amigo, objetos perdidos, dores? Sumam, desapareçam!!!

Nossa! Vai sobrar tanto espaço! Espaço para arejar sentimentos bons, espaço para lembranças gostosas se desenvolverem e crescerem. Vai ter espaço para amar mais e ser ainda mais feliz. Espaço para dançar com a namorada. Para brincar de esconde-esconde entre as coisas boas que merecem ficar.

Com tudo isso de espaço livre é bem possível que eu deixe em paz, por enquanto, as caixas, as gavetas e os quartinhos...

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FEBRE

Calor. A pele esquenta, a garganta seca. Parece que gritei muito. Torcida em final de campeonato. A garganta frágil. A água gelada desce gostosa, apesar de, mesmo sem que você saiba, esteja tudo sendo machucado ali dentro.

Calor. A mão fica úmida. Tudo parece meio oleoso. Os pelos se eriçam facilmente.

Os barulhos ficam altos demais. O corpo dói. Assim como doem cada um dos músculos. Músculos que você sequer sabia existirem, aparecem, pela primeira vez, e se destacam, justamente em uma função para a qual não foram criados: doer.

A cabeça assume novas proporções. Estranho ela não tocar os batentes das portas, tão enorme. Os olhos parecem que foram lixados. Os lábios, vermelhos, sensuais, quase sexuais, parecem que não pertencem mais ao conjunto da boca.

Engolir é uma tarefa.

Respirar, outra. Quem foi que deixou essa torneira pingando? Amanhã cedo, é bom lembrar de chamar o Borjão para trocar o courinho da sua torneira.

Rolos inteiros de papel higiênico esfolam a pele do nariz que, em formato palhaço-clássico, arde por fora e assa por dentro.

Todo mundo conhece a receita de um remédio para acabar tiro-e-queda com a maldita.

Nenhum resolve. Você ingere centenas de cápsulas, nem dorme nem trabalha, e ela lá, firme e forte. O vírus chega a rir ruidoso, instalado nababescamente em seu organismo.

Alguns chás e algumas outras beberagens, que incluem alhos e gengibres, quase fazem você vomitar as centenas de cápsulas ingeridas.

O paladar aniquilado faz o apetite ficar reduzido. A dor de cabeça não deixa dormir bem. E todos dizem que é preciso se alimentar bem e dormir bastante. O vírus gargalha.

Cinco dias. Nem mais nem menos. Independente de pílulas ou alhos.

O vírus fanfarrão só se diverte durante cinco dias. É o tempo necessário para você se sentir mínimo e perceber a finitude do ser humano frente à vastidão do Universo. E o tempo necessário para o vírus encontrar a próxima vítima.

E 'zaz', ele salta de você e vai se divertir em outro nariz. E você volta a se sentir ser humano e invulnerável. Até a próxima visita do vírus.

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MEDOS

Medo de viverMedo de morrerMedo de ganharMedo de perderMedo de lembrarMedo de esquecerMedo de esfriarMedo de aquecerMedo de ficarMedo de partirMedo de sentarMedo de sentirMedo de falarMedo de calarMedo de ouvirMedo de amarMedo de odiarMedo de amar demaisMedo de amar de menosMedo de ser amadoMedo de ser desarmadoMedo de ser lembradoMedo de ser esquecidoMedo de ganharMedo de ter perdidoMedo de luzMedo do escuroMedo do passadoMedo do futuroMedo de ser injustoMedo de ser infielMedo de ser traídoMedo de cairMedo de não levantarMedo de errarMedo de não tentarMedo de ser únicoMedo de ser unânimeMedo de ser humanoMedo de não ser humanoMedo de ser desumanoMedo do Ser Humano

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METEOROLOGIA

Sobre meteorologia, posso afirmar que nunca acreditei no homem do tempo... e que desdenho o aquecimento global e a elevação dos mares (só quem faltou nas aulas de química não sabe que a água é um dos únicos elementos que reduz o volume ao ser aquecido... ninguém gostava de química? parece...)

Mas pressinto, na dor nas articulações e nas cicatrizes que repuxam, o cheiro de uma tempestade avizinhando....

Leio meu livrinho vermelho, página rabiscada: "quando o abrigo é seguro, a tempestade é boa".

Olho pro castelo à minha volta, sento na poltrona perto da janela, e admiro o vento arrancando carvalhos, sibipirunas e vacas... vento forte, de chuva pior... lá fora o mundo desmancha... só me incomoda saber que não tenho pão quente... tomo um gole de café com cointreau... aquece o que já havia sido aquecido...

Quando a chuva passar, se passar, caminho até a padaria, com sombrinha, por causa das sombras das árvores, faltantes, amontoadas, lá longe, onde o vento faz a curva...

Com pão e manteiga, sentarei na beira da cama e direi o quanto você faz meu abrigo ser seguro, mesmo sendo a dona das tempestades e dos ventos....

Ouvirei, ao longe, um mugido vindo da curva do vento.

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MINHA MAIOR PROFESSORA

Hoje, quinta-feira, dia 26 de julho, foi aniversário de minha mãe. Uma heroína, sem capa, sem espada, sem super-poderes visíveis. Ela é culpada por muito do que eu sou. Pelo menos a parte boa. A parte ruim, prefiro assumir sozinho.

Nunca me chamou por apelido, mas sabia demonstrar carinho, na forma de ensinar. Sempre me incentivou a estudar, não com broncas ou prêmios, mas com exemplos. Se eu estudasse e aprendesse muito, talvez teria cultura para acompanhar suas conversas e seus raciocínios. Isso me fez crescer e achar a escola um bom lugar.

Aos cinco anos, ela já havia lido todos os livros “permitidos” para crianças, em sua casa. Aos sete, tanto os livros em português quanto os em espanhol. Pouco tempo depois, se arriscava autodidaticamente na língua francesa, para ler sempre.

Nos anos cinqüenta, era aluna do curso superior de Física, mas parou porque não se interessava por ser professora.

Casou, teve filhos, criou filhos, como era de se esperar. Aos trinta e poucos anos resolveu “brincar” de trabalhar com computador. O que não era de se esperar. Mulher não devia se meter em assunto inteligente, “de homem”. Mas ela se meteu e foi surpreendentemente boa. Surpresa para todos, menos para ela, que adorava aqueles desafios lógicos.

Separada e com 3 filhos por criar, fez da dificuldade um obstáculo a ser vencido. E venceu. Várias vezes venceu, apesar de uma coleção de narizes torcidos masculinos. Teve que ouvir, com orgulho, a frase: “Só você é ‘macho’ de resolver esse problema!” Orgulhava-se pois sabia que, por trás daquele preconceito havia, afinal, um reconhecimento de que ela era mais capaz que os demais “barbados” metidos a besta.

E o sucesso profissional se refletia em mim. Eu, o caçula de uma mulher forte e segura, assistia feliz sua escalada.

Mas, com essa mesma fibra e essa perseverança, foi capaz de, aos poucos, ir se tornando minha amiga e contando, naturalmente, que ser frágil também é uma virtude. Que não ter todas as respostas é um desconforto necessário para crescer e aprender.

E me fez admirá-la ainda mais.

Hoje, a 400 km de distância, nos falamos muito pouco. Assumimos que não gostamos de telefone e só conversamos em datas festivas ou para notícias muito inevitáveis. Ou ainda, quando eu vou a São Paulo, cada vez mais raro.

Mas a gente se ama, respeitando nossos espaços. Hoje, mandei-lhe um e-mail para cumprimentá-la pelos 75 anos. Como eu esperava, ela sequer se lembrava que era seu aniversário. Que inveja! Eu sempre sonhei esquecer meu aniversário, para ser surpreendido por um parabéns. Minha mãe é assim. Surpresa após surpresa.

Não é uma mãe comum. Adora micro-ondas, seu fogão é quase um enfeite na cozinha.

Prática em tudo, procura sempre o caminho mais curto ou gostoso, a solução mais confortável, ocupa seus esforços apenas para o que considera prazeroso.

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Aos 75 anos, afirma de boca cheia que é muito feliz, que só faz o que gosta, inclusive trabalhar, que é o grande motivo de sua saúde, mental e física.

Eu, aos 42, afirmo que ainda tenho muito que aprender com ela, e que hei de morrer aprendendo, com lições que talvez eu só venha a entender quando eu não puder mais agradecer.

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MUDANÇAS

Dizem que é do signo: eu detesto mudanças.

Dizem, também, que é do signo: taurinos adaptam-se rapidamente.

Pois é. Sofro muito a cada mudança, mas logo me acostumo. Com a experiência, minha velha amiga (mais velha do que amiga), aprendi a sofrer menos.

Mas, Nossa Senhora!, quanta mudança neste ano!

Primeiro, mudei de escritório. Montei uma estrutura muito adequada para meu escritório de arquitetura, em Maio de 2003, junto às minhas sobrinhas. Muitas mudanças se seguiram. Minhas sobrinhas viraram sócias, muitos amigos viraram clientes e muitos clientes viraram amigos. Perfeito.

Logo depois mudei meu “status” profissional. Transformei-me em professor, em julho.

A maior das mudanças estava por vir. Mudei, em julho mesmo, meu estado civil. E, por causa disto, mudei de casa. Fui morar no escritório. Isso tudo provocou outra mudança: minhas sócias viraram ex-sobrinhas (com todo o peso que uma mudança dessas pode provocar).

Tive que me mudar mais uma vez. Fui morar em uma casa, separada do escritório.

E o taurino sofrendo.

Quando o ano letivo estava para começar, a diretoria das FIO (Faculdades Integradas de Ourinhos), onde leciono, decidiu me escalar para novas matérias, diferentes das do ano passado. Mais mudança.

Para coroar, minhas sócias, (“sobrinhas-ex”) decidiram separar o escritório. Lá vai o taurino, mais uma vez, mudando.

Estou em novo escritório. Já acostumando. Fazendo balanços a cada vez que encaixoto as coisas e desencaixoto. Quanto papel e porcaria a gente vai guardando ao longo da vida!

Preciso jogar coisas fora. Mudar mesmo! Não só geograficamente. Preciso mudar, me livrando do passado (pelo menos de algumas coisas).

2004 tem de ser o ano da mudança total. Não só na minha vida. Eu sinto. Ourinhos também vai mudar. Muita coisa boa vem por aí.

Eu vou sofrer, claro, com as mudanças. Mas vou saber me adaptar. Viva a mudança. Viva o sofrimento. Viva todo taurino.

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O ANONIMATO NAS GRANDES CIDADES

Quando eu morava em São Paulo, uma das vantagens que eu achava em viver num grande centro, era o anonimato.

Poder sair pra qualquer lugar, fazer o que bem quiser, com quem quiser, sem se preocupar com nada ou ninguém, era uma delícia.

Totalmente incógnito. Nenhuma explicação a ninguém. Liberdade.

Mudei para Ourinhos e, obviamente, estranhei demais ser conhecido por todos, onde quer que você vá.

Demorei a ver que isto é uma vantagem. Liberdade, de fato, é saber que posso ir onde quer que eu vá que serei bem tratado, pois sabem quem eu sou, conhecem minha índole, confiam em mim. Posso passar mal, ter um problema de saúde, e não irão me chamar de bêbado, drogado. Não irão me abandonar, como nos grandes centros.

Hoje sei que o anonimato é bom para quem quer fazer algo errado. Quem precisa se esconder é que precisa sumir na multidão.

Outro dia emprestei meu carro a uma amiga. No dia seguinte, duas pessoas, em situações distintas, me perguntaram se eu havia vendido o carro. No dia seguinte!!!! Uma vez só. Imagina. Sem contar que meu carro é bem comum.

Por outro lado, existem situações contraditórias. Quinta-feira passada, em São Paulo, fui a um bar do centro. Lugar freqüentado por todo tipo de malandro, de todas as idades e de todos os sexos. Fui pra ver gente diferente e tomar uma cerveja, calmamente. Não consegui.

Ao entrar no bar, um rapaz me olhou, levantou e, com tom de reverência, me recebeu, efusivo: “-Rebordosa!!!!, Puxa, cara, você anda sumido!”

Olhei desconfiado, mas esperei pra ver onde daria aquilo. De fato, já havia visto o rapaz e até conversado, coisas amenas, naquele mesmo bar, muito tempo atrás. Conversa de botequim.

Mas ele não se acalmava: “-Gente!, olha quem está aqui! O velho Rebordosa! Puxa, gente, tô emocionado! Esse é o cara! Esse sabe muito. Esse entende do riscado!”

Alguns se aproximaram, me estenderam a mão: “-Fala aí, cara. O Biker sempre fala de você.” Outro: “-Pô, até que enfim, conheci você! Eu sou novato aqui. Você é daqueles tempos bons. Você é dos fundadores. Pô, legal mesmo. Toma uma aí, que eu pago!”

Sentei. E a conversa fluiu. Tão gostosa quanto absurda. Conversa de botequim, mas com um adicional. Eu era “o cara!” Lembraram de grandes passagens minhas. “-Rebordosa, vamos jogar sinuca lá, hoje?” “Gente, uma noite o Rebordosa nos levou num muquifo, embaixo de um bar lá na São João, pra jogar sinuca! Que lugar! Só gente dez!” “E vou falar, o Rebordosa joga muito! Ganhou de todo mundo!”

Eu era ídolo, campeão de sinuca, bebedor forte e inveterado, amigo de todas as putas e manés da noite paulistana.

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Por sorte, o bar teve que fechar, os garçons, mesmo me admirando, me tocaram. A mim e a meus fãs. Ganhei a noite. Fui famoso na capital. Por duas horas, eu fui o Rebordosa. Meu medo era o Rebordosa ter inimigos. Combinei uma sinuca com todos, uma hora depois, peguei meu carro e fui correndo pra casa, rindo e procurando no retrovisor algum veículo suspeito, que pudesse querer vingança com um tal de Rebordosa.

Acordei na manhã seguinte, anônimo e aliviado.

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NADA

Até hoje, eu só vou pra cama, dormir, quando estou caindo de sono. Sempre tive problemas com esta hora em que a gente deita na cama e não dorme. A gente sente um pouco de sono, mas não o suficiente. Então, a cabeça pensa. Ela foi feita pra isso, afinal. E pensa. Só que, nessa hora, ela pensa besteira. Pra isso ela não foi feita. Mas faz.

No meu caso, ela sempre pensou em morte. E morrer nunca foi o problema. O problema sempre residiu no depois-da-morte. Eu ainda era um tiquinho de gente e já elaborava pensamentos complexos. Só na hora da bobeira-pré-sono. Meu raciocínio era o seguinte: se o Gustavo não existia antes da vida, era de se esperar que o Gustavo não existiria após a morte. E não existir me afligia muito. Muito mesmo. Tenho quase certeza que procuro entender e acreditar na filosofia do espiritismo, além de ser a mais lógica das religiões, por causa da idéia de ser tudo explicável e evolutivo. O contrário, que a gente vive pra morrer, é uma teoria que não me agrada. Eu não sou uma rúcula. Não sou uma alface. Viver para crescer e me multiplicar não me ajuda. Eu preciso acreditar que existe um plano maior, no qual eu sou uma pequena engrenagem. Pequena, mas funcionando...

O que sempre me apavorou, mais do que a morte, então, era o nada. Um nada, enorme e eterno, após a morte. Deus me livre! De fato, não havia nada antes da vida. Mas eu não sentia ainda, antes da vida. Por outro lado, depois de ter vivido a sensação de existir, passar a não existir é terrível.

Eu tenho bem nítido, na memória, o desconforto que eu senti com a idéia de infinito~, quando me ensinaram números. Eu pensava no fluxo de números, disfarçados, rindo de nós, tão finitos. Quando me ensinaram que o universo é infinito, foi outra angústia. Já me era muito ruim tentar compreender que o universo não estava inserido em nada. O universo, pois, flutua em si mesmo.

Agarro-me a qualquer seita, filosofia ou credo, contanto que, ao final da morte, haja alguma coisa. Seja lá o que for, só não pode ser nada. Mais vale um tudo na mão do que dois nada voando.

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O EX-PLANETA

Navegar é preciso, viver não é preciso. Esta frase, atribuida a Fernando Pessoa, que de fato não a escreveu, é uma das mais citadas e menos compreendidas da História. Quem a disse, mesmo, foi o general Pompeu, 100 anos antes de Cristo.

Quem cita a frase, geralmente, pretende dizer algo como ser necessário navegar e ser desnecessário viver. Só uma besta (nem Pompeu, nem Pessoa) diria não haver necessidade em viver.

Já antes de Cristo, navegar era preciso, era certo, pois os astros, nas noites perigosas, diziam corretamente os caminhos.

Os astros, estrelas e planetas, além do sol e da lua - estes dois namorados eternos que apenas eclipsam às vezes, para fazer bonito e trazer risco às pobres retinas humanas -, sempre provocaram os humanos, gerando teorias, ciências, “ciências” e torcicolos.

Agora, em uma reunião tão importante quanto absurda, 2.500 cientistas de 75 países (os números assustam!) determinam que Plutão, após 76 anos de “planetismo”, não é mais planeta.

De uma hora para outra, sem aviso prévio, o Planeta mais distante da Terra e, portanto, o mais secreto, recebe uma praga, de Praga, na República Tcheca: “Deixa de ser um planeta misterioso, com possíveis civilizações plutônicas, para ser uma pedrona gelada... Vire-se Plutão, vá procurar seus direitos!”

Pior destino recebeu Caronte, o satélite de Plutão, descoberto em 1978. Satélite já é uma coisa menor. Mas satélite de pedra é o quê? Coitado do Caronte.

Mas o que me deixa mais abestalhado e indignado é o que ocorrerá com os mapas astrais. Cruzes. Ter Plutão numa casa astral, até quinta-feira, dia 24 de agosto de 2006, significava uma característica duradoura e firme, por causa da longa jornada do planetinha em sua órbita. Plutão gerava longas caretas nos “mapeadores astrais”. Franziam a testa e pronunciavam um longo “hummmm”, para depois dizerem, solenes: “Seu plutão na sua casa sete é quem provoca essa seqüência de namoradas encrenqueiras na sua vida...” As reticências significando que é melhor buscar uma vaga no Seminário...

Agora, depois da fatídica reunião da União Astronômica Internacional, ter plutão (agora, com “p” minúsculo, oras) na casa 7, significa nada. Significa que tem uma pedra no chão da casa. E uma boa varrida resolve.

Pode?

Não, não Pode!

E eu, que sempre achei que astronomia era crendice e astronomia era ciência. Bagunçaram tudo. Virou tudo a mesma coisa.

Navegar é preciso? Nem é! E se, em alto-mar, derivando como Amir Klink, saco meu astrolábio, miro para o céu, fixo os olhos e me surge, como guia, o tal do plutão? Para onde me dirijo? Sigo o rumo indicado? Como? Como acreditar no que me diz uma pedra voadora? Como ter certeza que aquele pedaço de tijolo celeste sabe para onde aponta?

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Tenho dó de Pompeu. Ainda mais dó de seus soldados-marinheiros que, fortalecidos pela firmeza da frase de seu comandante, seguiram desafiando os mares. Se eles soubessem que reuniões em Praga podem mudar toda a segurança e, consequentemente, toda a “precisão” do navegar, a História teria sido outra. Talvez Pompeu teria sido um derrotado. Talvez a Grécia nem teria sido o que foi e nem o Ocidente seria o centro do pensamento humano, com suas teorias, teoremas e reuniões internacionais.

Desculpe-me, Fernando Pessoa, por estragarem sua inspiração. Desculpe-me, Zora Yonara, por desfazerem de sua arte. Perdoe-nos, Plutão, pelo mal estar, nós humanos não sabemos o que fazemos.

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O SAPATO VERDE E O PLANETA VERMELHO

“O homem é um animal. Mas nem os animais se comportam como ele.”Brigitte Bardot

O ser humano é esquisito.Quarta-feira cheguei à faculdade, estacionei meu carro, desci com as mãos cheias de objetos

e papéis e a cabeça cheia de idéias e preocupações. Como seria minha aula de Estética? Tenho uma turma de alunos exigentes e desconfiados. Um ótimo desafio. Eles querem sempre mais e sempre duvidam de que aquilo que você disse é a única verdade. Eles têm razão. Não existe só uma verdade. Mas ninguém sabe todas as verdades. Nem é esse o papel do professor. É preciso ensinar como encontrar as verdades e diferenciá-las das mentiras.

E vinha, revirando pensamentos rápidos, pela calçada que leva do estacionamento à cantina, quando meus olhos foram atropelados pela cor de um sapato.

O ser humano é esquisito demais.No meio da cantina, um sapato se destacava naquela poluição visual causada por alunos

alvoroçados minutos antes do início das aulas. No meio do tumulto, descansava tranqüilo um par de sapatos. Não estava no meio da cantina, mas tornou-se o meio. Era absolutamente verde. No fim da tarde, quando as cores já não são mais tantas, aquele sapato sabia ser verde como mais nada ao redor. Um dia depois me deparei com um orelhão e defini aquele tom de verde. Não é verde limão, como falam. Limão nunca foi daquele tom. O sapato era verde Telefônica!

O ser humano é muito esquisito.Por que uma mulher escolhe, entre tantas opções nas lojas e entre algumas opções em seu

armário, um sapato que vai se tornar, naquela noite, mais importante que ela? Será por vaidade exagerada? “Olhem todos pra mim!” Ou será por timidez? “Olhem pro meu sapato e esqueçam de mim, por favor!”

O ser humano é bastante esquisito.Um sapato me fez pensar na vaidade humana. Será que o ser humano é assim? Será que é

próprio do Homem? Eu acho os índios tão humanos. Não vejo a vaidade competitiva “minha-oca-é-mais-linda-que-a-sua” entre os índios. Só há vaidade nas maravilhosas pinturas que fazem nos corpos, em dias de festa ou de luta (que, para eles, é quase a mesma coisa).

O ser humano é mesmo esquisito.A vaidade humana me fez lembrar de Marte. Quanto dinheiro está sendo gasto com

máquinas voadoras que fotografam, colhem amostras do solo e vasculham um planeta a zilhões de quilômetros da Terra? Para quê? Para provar o quê? Para provar a capacidade humana de bisbilhotar a vida alheia. Sim! Não é nada mais do que fofoca! O único interesse é saber se há vida em Marte. E se houver? Que diferença faz?

O ser humano é absurdamente esquisito.Por que gastar dinheiro tentando tanto entender, à toa, a vida em Marte? Eu usaria esse

dinheiro tentando entender tanta morte à-toa na Terra.

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OURINHOS

Eu não nasci aqui. Não sou seu filho. Não tenho obrigações com você. Muito menos você comigo. Não tenho obrigações cívicas. Não tenho obrigações de amor.

Mas amo. Amo bastante. Não me pergunte porque. Eu não gostei muito, no começo. Sei lá. Vim de São Paulo. Arrogante que eu fui, achei caipira, acanhada. Pobre, sem vida.

Sem vida? Burro. Tinha vida entranhada nos interiores.

Como todo namoro, iniciamos assim. Olhamos de lado, sem interesse. Flertamos, fingindo descaso. Tentamos uma aproximação. A recusa, natural no início, nos frustra. Ficamos aborrecidos. Como a raposa da fábula, desdenhamos querendo. Eu desdenhei. Não queria, queria voltar pra minha terra, onde eu era realmente eu.

Queria voltar pra minha terra onde eu era um ninguém, como aqui. Mas, pelo menos, lá, ser ninguém é normal. Senti-me bastante desconfortável por saber que aqui todo mundo é alguém e eu não era. Demorei pra perceber que eu precisava fazer algo pra ser alguém. Ninguém é alguém à toa.

E fui fazer. E vi que ser alguém é bom. E vi que, mesmo se eu fizesse algo, lá na terra natal, continuaria a ser ninguém. Continuaria a ser mais um, só mais um no meio da multidão.

E descobri o prazer de Ourinhos. No início, eu só conhecia. Conhecia geograficamente. Fui a todos os bairros, fui a cada rua, aprendi os bairros. Só Geografia física.

Só aprendi a amar Ourinhos quando conheci a geografia humana. Quando parti para conhecer gente, para respirar mais do que o ar da atmosfera.

Nem todo amor é recíproco. Mas atenção e carinho costumam ser. Quando eu busquei enxergar menos problemas e procurar mais soluções foi que Ourinhos sorriu pra mim. Sorriu, paquerou, piscou marotamente. Caí apaixonado.

Não digo que seja uma cidade perfeita. Que não tenha defeitos, que não seja atrasada. Não sou cego. Mas gosto de saber que com amor é possível transformar.

Aliás, transformar não é a palavra certa. Toda relação de amor em que um transforma o outro é uma relação fadada à amargura.

Não. Não quero transformar Ourinhos. Quero crescer junto. Quero desenvolvê-la e me desenvolver por ela. Quero ver coisas novas, idéias novas, pessoas boas tendo chance.

Estou feliz aqui. Não tenho obrigação de estar aqui. Posso ir para onde quiser. Mas não quero ir.

Com mais de 5000 cidades no Brasil, mais de 200 países no mundo, eu prefiro estar aqui, quero continuar aqui.

Ourinhos não é a melhor cidade do mundo. Eu não sou o cidadão mais perfeito do mundo. Coerentemente, somos feitos um para o outro. Nós nos escolhemos, lenta e definitivamente.

Um beijo, Ourinhos. Ama-me que eu retribuo. E vice-versa.

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PÃO QUENTE A TODA HORA

Pão é uma das maravilhas do mundo. Não me admira ter sido escolhido para representar o corpo do mais santo dos homens. Comer pão é um prazer que aproxima o homem de Deus.

E há tantos regimes que eliminam o pão como alimento. Cruzes! É cruel! Minha mãe, para manter o peso, não come pão há anos. Diz que não sente falta. Cada louco com sua mania! (No fundo, eu tendo a duvidar que ela não sinta falta. Fosse eu a fazer o tal regime, comeria escondido de mim mesmo, no escuro, para que eu não me visse...)

Mas, se o pão é um alimento sagrado, a padaria é o verdadeiro templo. Se o pão é o corpo divino, reverenciemos a “maternidade” divina, onde, de hora em hora, nascem pães fresquinhos, saborosos, cheirosos, abençoados...

Quando meu escritório ficava a vinte metros da Padaria Royal, toda tarde eu sofria com aquela sedução aromática. Cheiro de pão e café frescos é capaz de levar um homem à loucura.

Mas uma padaria tem muito mais de sedução do que os pães. Os sabores de padaria são maravilhosos. Pães doces, doces, salgados, sanduíches, sucos, cerveja... todos incríveis. Mas o que mais me atrai na padaria é o clima. Para mim, as padarias são os termômetros da cidade. Na padaria você fica sabendo primeiro as notícias mais quentes. Nas padarias se definem os destinos da economia local e se traçam os programas políticos. Nas padarias se arquitetam os planos.

Alguns dizem que é nos cafés, nas lojas – maçônicas ou não – nas prefeituras, nas câmaras municipais, nas associações é que as grandes decisões são tomadas. Que nada!!! É na padaria! As decisões tomadas nas padarias são mais definitivas, pois mesclam a vontade das elites com os anseios do povo.

Eu adoro tomar café da manhã em uma padaria. Café com leite no copo e pão quente com manteiga derretendo. Há algum mistério no ritual. É algo místico, que me conecta com a alma da cidade. Quando viajo, gosto de experimentar as padarias, sentir o ambiente e perceber o ritmo da cidade. Enquanto bebo o café, escuto pedaços de diálogos que vão me apresentando a vida local, de forma muito mais viva que cartões postais.

Quem me ensinou a gostar de padarias foi minha mãe. Talvez ela nem saiba que tenha me ensinado isto. Talvez ela nem goste tanto assim de padaria. Mas foi indo às padarias com ela que percebi que aquele era um ambiente privilegiado.

Adoro quase todas as padarias de Ourinhos, mas estranho que a maioria das padarias não é na esquina. Padaria, historicamente, é na esquina. Aliás, sempre achei o projeto de Brasília furado porque faltam esquinas. Como uma cidade pode almejar controlar uma nação como o Brasil, sem ter padarias suficientes para que o poder e o povo se encontrem democraticamente? Acho que aí está o grande problema: para melhorar o Brasil, mais pão, menos abobrinha!

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ADEUS

É muito difícil dizer adeus. Até quando é um alívio. Até quando significa liberdade.

Doem muitas coisas no adeus. Para quem vai, tem o estranho sabor do desconhecido, somado ao perigo do arrependimento.

A quem diz adeus e vai, não é dada a chance da volta triunfal. Foi, fica! Se voltar, significa derrota.

Mas não é só o adeus à pessoa ou às pessoas. Tudo fica. Ficam cheiros, lembranças, saudades, objetos, paredes, luzes, sons, cores, sabores. Ficam perguntas sem respostas. Ficam imagens congeladas, fotografadas na retina. Essas fotografias, estranhamente, nunca perdem a cor.

Quem sai, tem que ter coragem. Lá, aonde se vai, existem outros cheiros, sons, sabores, outros tudo. Mas existe a promessa.

Só a promessa. E a promessa, você sabe, é uma mentira precisando ser desmentida. Quem vai, vai à direção de uma mentira.

Leva a roupa, alguns livros, cadernos, objetos, um pacote de biscoito e um monte de cicatrizes. Cicatrizes doem nas mudanças de temperatura, de clima e de vida.

Quem fica, quem diz adeus e permanece - ou quem ouve um adeus e vê partir -, também sofre muito. Fica tudo. Inclusive o som do adeus, ecoando entre os objetos, os sons, as cores, as paredes, as luzes. Que ficam, perpetuando o vazio. Objetos já não utilizados, sons já não emitidos, sabores desmanchados, paredes em cuja face as sombras não se constroem mais.

Quem fica, precisa da coragem para encarar o dia seguinte diferente, na mesma situação. E os demais dias, também.

Dizer adeus é preciso. Ouvir, também.

Ir ou ficar são só uma questão de detalhe. Doem. Muito. Mas todo parto dói. Todo nascimento é sofrido.

Adeus.

Torço, genuinamente, pelo sucesso.

Na verdade, dói, dói muito. Muita coisa fica aqui. Mas, de fato, o adeus é só uma formalidade, quando alguém já foi há muito.

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