quatro poetas quatro cidades

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Quatro poetas quatro cidades: Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr Filipe Bitencourt Manzoni Rio de Janeiro Fevereiro de 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Quatro poetas quatro cidades:

Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr

Filipe Bitencourt Manzoni

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

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Quatro poetas quatro cidades:

Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr

Filipe Bitencourt Manzoni

Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas

da Universidade Federal do Rio de Janeiro como

quesito para a obtenção do Título de Mestre em

Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Orientador: Prof. Doutor Eucanaã Ferraz

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

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Quatro poetas quatro cidades:

Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr

Filipe Bitencourt Manzoni

Orientador: Professor Doutor Eucanaã Ferraz

Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do

Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Examinada por:

_____________________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Eucanaã Ferraz –

_____________________________________________________________

Prof. Doutor Frederico Oliveira Coelho - PUC-RJ

_____________________________________________________________

Prof. Doutor Eduardo dos Santos Coelho - UFRJ

_____________________________________________________________

Prof. Doutor Alberto Pucheu Neto – UFRJ, Suplente

_____________________________________________________________

Prof. Doutor Godofredo de Oliveira Neto - UERJ, Suplente

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2014

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Manzoni, Filipe Bitencourt.

Quatro poetas quatro cidades: Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio

Meira e Nicolas Behr/ Filipe Bitencourt Manzoni. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL,

2014

117f; 29,7 cm

Orientador: Eucanaã Ferraz

Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pós-

Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira), 2014.

Referências Bibliográficas: f. 113-117.

1. Poesia Contemporânea. 2. Poesia Urbana. 3. Adriano Espínola. 4.

Arnaldo Antunes. 5. Caio Meira. 6. Nicolas Behr. I. Ferraz, Eucanaã. II.

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas (Literatura Brasileira). III. Quatro poetas quatro cidades: Adriano

Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr.

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Resumo

Quatro poetas quatro cidades:

Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr

Filipe Bitencourt Manzoni

Orientador: Professor Doutor Eucanaã Ferraz

Resumo da Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a

obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

Nosso trabalho se propõe a mapear as imagens da cidade na poesia

contemporânea brasileira a partir de um recorte de quatro poetas: Adriano Espínola,

Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr. Buscamos um mapeamento imagético e

formal, tentando mostrar algumas das estratégias e traços recorrentes na abordagem da

cidade, bem como as implicações das priorizações do urbano empreendidas por cada

autor. A escolha do corpus se pauta pela grande possibilidade de contrastes observáveis

entre as obras dos autores, tomados sempre em uma estrutura dialogal e comparativa

sob a qual percorremos questões que passam pelo urbanismo, pelas atualizações feitas à

concepção de cidade, pelas renegociações empreendidas entre o sujeito e o urbano e

pela filosofia da linguagem, na medida em que a cidade pouco a pouco torna-se

indistinta de uma corrente linguística urbana.

Palavras Chave: Poesia Contemporânea, Poesia Urbana, Adriano Espínola,

Arnaldo Antunes, Caio Meira, Nicolas Behr.

Rio de janeiro

Fevereiro de 2014

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Abstract

Four poets four cities:

Adriano Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr

Filipe Bitencourt Manzoni

Orientador: Professor Doutor Eucanaã Ferraz

Abstract da Dissertação de Mestrado a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a

obtenção do Título de Mestre em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira).

The main goal of this research is to collect and analyze different images of the

urban contemporary brazilian poetry, based on a selection of four poets: Adriano

Espínola, Arnaldo Antunes, Caio Meira and Nicolas Behr. By searching for different

images and poetic forms that this writers used to bring forward the urban experience,

this project exposes some of their strategies alog with the different meanings that the

urban enviroment recieves in each one and canvasses the reason why some commonly

stable concepts like subject, spatial delimitation and the city itself, don´t seem

applicable in dynamism of their experimentation. This corpus was selected based on the

great possibility of contrast between different poets, brought together one against other,

forming an opposing structure, in wich we present different subjects concerning

urbanismo, literary criticism and philosophy of the language.

Key-words: Contemporary Poetry, Urban Poetry, Adriano Espínola, Arnaldo

Antunes, Caio Meira e Nicolas Behr.

Rio de Janeiro

Fevereiro 2014

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Agradecimentos

À Capes; instituição de fomento que possibilitou uma maior tranquilidade para o

processo de escrita,

Ao meu orientador, Eucanaã Ferraz, pelas discussões e xerox valiosíssimos, mas

principalmente por ter botado fé no projeto desde o início;

Aos professores que contribuíram de forma substantiva à minha formação, em

especial Ary Pimentel, Antônio Carlos Secchin, Alberto Pucheu e Nonato Gurgel,

Aos poetas, que numa radical contemporaneidade não só se mantém escrevendo,

mas também respondendo e-mail, em especial à Nicolas Behr e Adriano Espínola,

À família, que apesar de distante sempre tinha jeito de ir visitar pra dar uma

pausa; em especial à minha mãe por ter deixado eu virar isto e à minha vó por nunca ter

se incomodado por todos os livros que eu roubava,

À Julia, por estar sempre junto na loucura que foram esses dois anos (e nos anos

anteriores também) e pelas cotoveladas bem-vindas,

À psicopinga, grupo de apoio que contribuiu em muitas ressacas criativas e

pequenas traições em forma de canção e outras plinidades,

Aos amigos que compartilham deste problema com a literatura: Victor, Luana,

Thaís e Rafael, Daiane e Rayssa, e por serem gente esquisita assim como são,

Aos amigos que ficaram pelo sul, ou por aí, por fazerem a última resistência

anti-loucura: Pedro, Chico, thiagolima, Vini, Bianca, Bibiana, Alberto, Miag e Guil.

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Índice

Introdução ......................................................................................................... 8

Capítulo I – Cidade tempo e espaço ............................................................... 16

I.1 – O cristal e a chama revisitados ...................................................................18

I.2 – Um pacto temporal .....................................................................................29

Capítulo II – Intervalos entre corpo e cidade ................................................ 41

II.1 Constrição e flanêrie ....................................................................................43

II.2 Corpo sensível ..............................................................................................52

II.3 Hipersensibilidade e dilaceramento .............................................................60

II.4 Do um ao vários ...........................................................................................69

Capítulo III – Discurso e Ruína ...................................................................... 77

III.1 – Cidade e Polifonia ....................................................................................79

III.2 – Nomeação .................................................................................................88

III.3 – Arquitetando a Ruína ...............................................................................98

Conclusão ........................................................................................................ 105

Referências Bibliográficas .............................................................................. 112

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Introdução

A cidade apresenta-se como uma imagem de difícil trato por ser esquiva a

qualquer tentativa de definição. Se nos detivermos em seu caráter antropológico,

confunde-se com o próprio conceito de cultura; se nos voltamos para sua delimitação

espacial, deixamos de lado a especificidade de suas relações de sentido; e se atentamos

ainda para a consolidação de uma experiência urbana nos moldes que conhecemos,

nossa delimitação fica indistinta entre o surgimento da sociedade industrial e a

experiência da globalização contemporânea.

Não menos problemático do que o estabelecimento de um marco inicial histórico

é também a tentativa de definição sincrônica de sua experiência. Novamente, cada olhar

parece gerar um reflexo de sua própria estreiteza e delimitação; seja a priorização de um

pacto temporal específico, seja enquanto um constante choque entre estranhos, a cidade

parece admitir de bom grado os mais diversos recortes conflituosos. A convivência de

esgotamentos antagônicos parece, nesse sentido, desautorizar qualquer ponto de partida

para nossa abordagem que não seja, precisamente, uma inclusão infinita de tensões, que

fuja o quanto possa de qualquer delimitação como objeto de pesquisa.

Embora não seja do nosso interesse propor uma abordagem historiográfica da

cidade, vale a pena observar em Giulio Carlo Argan, ao circunscrever o objeto de estudo

da história da arte, esbarra num problema semelhante no que tange a sua historiografia.

Trata-se também de algo que oscila entre um pluralismo fenomenológico e a afirmação

de um conceito unitário de arte (ARGAN, 2005 p.82). A arte é passível também dos

mesmos alargamentos conceituais para os quais tudo é arte, toda experiência pode ser

relida como artística, e tudo que existe existe, de alguma forma, artisticamente.

Argan sugere que as diferentes artes, com todos os seus sistemas específicos de

significação, podem ser consideradas como formas de um sistema unitário a partir do

momento em que “todas juntas, com as suas diversidades de categorias, de

procedimentos e de níveis quantitativos e qualificativos, constituem a cidade”

(ARGAN, 2005 p.76).

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Argan, apesar de não resolver nossa dificuldade de delimitação do urbano, ou

mesmo complicando-a ainda mais, nos apontando novamente para a abrangência da

cidade, ao postular o caráter eminentemente artístico desta, oferece-nos uma alternativa,

graças à outra de suas detidas reflexões sobre a história da arte. O autor problematiza o

reconhecimento do caráter artístico da arte, e, pela própria identificação que faz entre

arte e cidade, lemos aí uma possibilidade de um mecanismo do reconhecimento da

urbanidade do urbano. Segundo o autor, o olhar sempre confere valor ao objeto artístico

a partir de uma percepção específica, que busca, de alguma forma, reafirmar-se:

O que o chamado juízo de valor verifica na obra de arte não é, decerto, a

conformidade a uma determinada cultura, nem a sua superação, mas uma

estrutura cultural específica, justamente aquela graças a qual os valores

podem ser captados, não na dimensão sem tempo do pensamento abstrato,

mas na do presente absoluto, da percepção. (...) o exato instante da percepção

ou da apreensão da obra; não é portanto o momento conclusivo, mas o

momento inicial da atuação do historiador (ARGAN, 2005 p.26)

A cidade, tal qual a arte, teria suas dificuldades de delimitação estreitamente

ligadas com a contemporaneidade de suas reatualizações. Ambas fundariam sua

delimitação sempre a partir da apreensão contemporânea do objeto, a percepção a partir

da qual um sentido pode ser gerado.

O contemporâneo se faz assim como o instante do qual pode partir todo recorte

da cidade, organizando e historicizando-a conforme suas próprias priorizações. Só se

pode delimitar (ou reconhecer a possibilidade de uma delimitação estática) a partir do

contemporâneo. Ele é o eterno agora no qual a cidade existe.

Argan ainda sugere que a cidade é um sistema de diferentes linguagens

artísticas. Novamente, cabe ressaltar que é só pelo aspecto pluralista e inclusivo que

parecemos dar espaço para a mobilidade própria à imagem do urbano. Se a cidade nos

figura como, materialmente, um conjunto de linguagens (sejam elas reconhecidas como

artísticas ou não), a cidade se configura como uma grande rede de discursos, ou antes,

de diferentes linguagens, em constante ressignificação, a partir da qual o olhar do

contemporâneo confere (ou reconhece) sentido e urbanidade.

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Nesse sentido, cabe ressaltarmos a centralidade da língua nessa rede, ou ainda,

da poesia, como discurso específico que não está comprometido a priori com nenhum

objetivismo comunicativo, propagandístico ou informacional. A poesia seria, de certa

forma, o “local” de onde os discursos urbanos poderiam ser tirados de suas teleologias

habituais, isto é, de seus sentidos consagrados (conferidos pelo olhar contemporâneo) e

colocados de volta, à disposição do olhar, para que se reconheça neles, de novo, o

urbano.

Descartada a possibilidade de delinear precisamente um limite para a cidade

enquanto objeto de estudo, interessa-nos flagrar na poesia contemporânea a diversidade

a partir da qual se dá o próprio mecanismo de reconhecimento da urbanidade. É vital,

portanto, buscarmos um corpus que traga em si uma pluralidade discursiva, imagética e

formal condizente com a multiplicidade de recortes e priorizações possíveis da

experiência urbana. A partir desse contraste é que poderemos flagrar o urbano que

escapa às cristalizações e reduções conceituais.

Assim, recortamos da poesia brasileira contemporânea quatro autores: Adriano

Espínola, Nicolas Behr, Arnaldo Antunes e Caio Meira. Cada um deles se insere em um

cenário poético muito diferente dos outros, relendo seu próprio recorte da tradição e

mantendo diálogo com obras que vão do barroco ao marginal, passando pelo

concretismo.

É importante ainda, pela natureza fugidia da experiência urbana, que o nosso

estudo se guie por uma metodologia contrapositiva e dialogal, isolando algumas das

questões que nos parecem centrais e comuns aos autores e que sejam tratadas, o quanto

possível, de diferentes formas. Procederemos, assim, guiados por contrastes e buscando

no intervalo da diversidade entre os poetas um urbano que subjaz às diferentes

possibilidades de recortes.

Organizaremos os temas de forma que se preserve uma certa linearidade entre

eles, partindo de uma concepção da cidade a partir das categorias primárias de tempo e

espaço no primeiro capítulo; em seguida, ampliaremos nossa concepção para uma

cidade como experiência sensorial e discursiva, considerando suas diferentes

renegociações com o sujeito; finalmente as oposições vão se desfazer e a cidade será, tal

qual o sujeito, uma configuração plenamente discursiva a partir da qual engendra-se,

com a ressignificação e o dinamismo da língua, a própria ruína.

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Por motivo de ritmo na escrita dos capítulos, optamos por fazer, numa

apresentação inicial, um breve levantamento da produção dos poetas, bem como de

algumas questões que nos parecem mais importantes. Ressaltamos que tal amostragem

se restringe apenas à produção que abordaremos adiante.

Voltamo-nos à poesia de Adriano Espínola em sua fase inicial, produzida entre

as décadas de 80 e 90, mais especificamente nos três poemas recorrentemente

reconhecidos como trilogia do transporte urbano: o primeiro, o poema “Minha gravata

colorida”, atualmente rebatizado de “Ônibus”, presente no seu segundo livro O lote

clandestino1 (1982); e os dois poemas, lançados separadamente, Táxi (1986) e Metrô

(1993), reunidos adiante em um só volume, Em trânsito; Táxi/Metrô (1996).

Tais obras são um marco na produção de Adriano: Táxi alcançou grande

repercussão, sendo traduzido para o inglês e o francês, e, de certa forma, foi a partir dele

que a Adriano investiu definitivamente na forma “epopeia urbana”, escrevendo Metrô e

relendo “Minha gravata colorida”, destacado de seu livro original e integrado às três

obras épico-urbanas. Poderíamos dizer que a trilogia do transporte urbano começa pela

sua segunda obra e dela se estende para as duas outras.

É importante ressaltar que a clara opção pelo espaço urbano como tema central é

marcante em toda a produção inicial do poeta. Em vários dos poemas de O lote

clandestino a cidade não aparece apenas como elemento componente, mas sim tema de

um retrato irônico que relê diversos elementos de um bucolismo ao qual o poeta se

contrapõe, inserindo-os descaracterizados no fluxo caótico da cidade, mesmo antes de

sua afirmação de maior fôlego em de Táxi e Metrô.

Quanto aos três poemas, tomados em conjunto, cabe ressaltar o quanto, além do

mesmo tema, da mesma estrutura em versos livres e do dado épico da viagem como

motor da narrativa, há ainda uma tensão decorrente da incapacidade de fixar com

imagens a vertigem pulsante da cidade captada pelo sujeito em trânsito (naturalmente

esses dados são mais verificáveis a partir de Táxi, pela própria afirmação de sua forma

épica centrada na vertigem). Adriano lança mão, assim, de cada vez mais elementos

1 Na realidade este foi seu segundo livro editado; mas o autor já havia lançado e vendido um pequeno

livreto chamado Uma cidade, em uma edição artesanal vendida de mão em mão, antes de Fala favela.

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diversos para tentar dar conta da vertigem, buscando uma instantaneidade cada vez

maior para a estrutura de seus versos e imagens, aproximando-os de um viés concretista,

em especial em Metrô.

Nicolas Behr começa a produzir relativamente na mesma época que Adriano,

lançando em 1977 seu primeiro livro mimeografado, Iogurte com farinha, ao qual se

somará mais de trinta outros livros, quase todos artesanais, mimeografados e vendidos

de mão em mão em Brasília.

Nicolas possui uma obsessão, se não pela cidade, especificamente por Brasília,

(onde foi morar ainda menino, com dez anos de idade) centro temático de sua obra.

Diversos elementos arquitetônicos da cidade, monumentos, autopistas e a própria

concepção de uma cidade planejada invadem sua poesia, construindo uma crítica ao

artificialismo do modelo organizacional do espaço, sempre revestida de humor irônico,

extrapolando alguns dos mitos modernos recriados por Brasília até o seu ridículo.

A obra de Nicolas se compõe, em grande parte, de livretos artesanais produzidos

e vendidos pelo poeta durante a década de 70. Nos voltaremos para dois de seus

volumes de poesia reunida – onde estão a maior parte de seus poemas sobre Brasília:

Restos Vitais e Vinde a mim as palavrinhas, ambos editados pelo autor em 2005. A

esses se somarão suas três antologias: Poesília (poesia pau-brasília) - compilação

específica de seus poemas sobre Brasília -, de 2002; Laranja seleta, de 2007 e O bagaço

da laranja, de 2009. Integra ainda nosso corpus behriano Braxília revisitada vol.1, de

2004 e Brasilíada, mais recente de suas obras sobre a capital, lançada em 2010, na qual

encontramos uma série de poemas inéditos e diversas revisões de outros já publicados.

Nicolas inventa para sua poesia uma forma recorrente, muito próxima do poema-

minuto e do poema-piada, em textos curtos, raramente com mais do que seis versos,

sempre trazidos numa linguagem coloquial e frequentemente parodiando discursos

clássicos e figuras públicas da fundação de Brasília. O poeta parece eleger um conjunto

de palavras que remetem a um todo orgânico, entre arquitetura, estrutura burocrática e

concepção geométrica do espaço, ao qual sua poesia parece sempre se contrapor como

alternativa marginal e subversiva.

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Há uma forte tendência a enquadrar Nicolas como um representante do cenário

da poesia marginal dos anos 70 e 80, em especial por seu caráter irônico e pelo tom

coloquial dos seus poemas. Cabe, porém, manter certas ressalvas devido ao

deslocamento do poeta do Rio de Janeiro- polo da produção marginal – e sua inserção

em Brasília, com pouco mais de dez anos passados de sua inauguração. Ressaltamos o

quanto, em adição à subversão da produção literária canônica – traço recorrente da

estética marginal-, a poesia de Nicolas flagra a arquitetura planejada da cidade como

contraposta à ironia e à irreverência do seu verso, travando uma disputa discursiva que

passa diretamente pela reapropriação e ressignificação dos elementos arquitetônicos do

plano piloto.

Arnaldo Antunes começa a produzir seus primeiros livros, como os dois poetas

anteriores, em edições artesanais, editadas pelo próprio autor nos primeiros anos da

década de oitenta, um pouco antes de integrar o grupo de música Titãs do Iê Iê Iê.

Arnaldo atua desde o início de sua carreira em diversos suportes e códigos diferentes,

ressaltando-se de início a letra de música e a poesia e, a partir da década de noventa,

diversas outras alternativas multimídia, mesclando música, poesia, fotografia, animação

e demais elementos da linguagem pop.

Diferentemente da obra dos outros dois poetas que já citamos, a de Arnaldo não

traz a cidade em sua configuração clássica como um tema central. Não encontramos

carros, engarrafamentos, neons, autopistas, concreto ou asfalto como signos recorrentes;

mas por se tratar de um dos poetas mais conectados com o mundo digital e novos

códigos, sua linguagem fala sempre a partir de uma configuração discursiva que é

inseparável da experiência urbana contemporânea. A predominância do aspecto visual

de sua poética ainda dialoga com um viés publicitário, aproveitando elementos de

tipografia e fragmentos de propagandas em suas colagens, bem como do grafite, muito

presente em suas obras caligráficas.

Conforme sugerimos acima, é impossível esboçar uma forma mais recorrente na

poesia de Arnaldo; a mera tentativa esbarraria numa diversidade de suportes: CDs,

livros, painéis e arquivos de vídeo. Mesmo se nos restringirmos ao texto escrito, temos

em sua obra desde caligrafias, conforme dissemos, até poemas em verso livre, sonetos e

poemas concretos. Arnaldo é, dentro de nosso recorte, o poeta que abrange a maior

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variedade de formas e códigos, atuando diversas vezes em uma zona do inclassificável,

onde inventa códigos e linguagens próprias a cada poema, motivo pelo qual nos

deteremos, nas escolhas formais de seus poemas conforme eles são trazidos para nossa

discussão.

Nos voltamos à obra de Arnaldo Antunes a partir de sua antologia Como é que

chama o nome disso (2006), consistindo numa amostragem substancial de diversos de

seus livros no decorrer de mais de vinte anos de produção e a compilação de algumas

caligrafias. Compõe ainda nosso corpus dois de seus livros iniciais - Psia (1986) e

Tudos (1990) - que possuem um espaço menor na antologia - e seu livro posterior, n.d.a.

(2010).

Finalmente, nos voltaremos à obra de Caio Meira, a mais recente e menos

extensa dos quatro poetas. Abordaremos poemas de quase todos os seus livros, não nos

referindo diretamente apenas a sua obra de estreia No oco da mão (1993), por crer que,

apesar de presente enquanto proposta, a questão do urbano ainda não está tão

desenvolvida quanto no decorrer de seus outros três volumes: Corpo Solo (1998),

Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer (2003) e o mais recente Romance

(2013).

Caio possui em seu percurso poético um crescente diálogo com a prosa,

abandonando a estrutura versificada inicial de No oco da mão e Corpo Solo, e

produzindo poemas em versos extensos, predominantemente em períodos igualmente

longos, quase sem pontuação, construção que se afasta muito do verso tradicional,

principalmente em seu terceiro livro. A aproximação com a prosa ainda aparece em

nomes de blocos de poemas ou de livros como “prosa do chão” ou Romance.

Há ainda uma espécie de fixação de Caio pela corporalidade, quase sempre

tomada a partir do seu contato com a cidade. O corpo aparece sempre relido num viés

de profunda dessacralização, concebido a partir de sua materialidade dissecada,

reconhecendo órgãos internos e vísceras como legítimos materiais de contato com o

mundo. A conjunção entre este vocabulário fisiológico e diversos elementos

corriqueiros do ambiente urbano vai configurar uma espécie de jargão usado pelo poeta,

no qual componentes mecânicos de motores de carros ocupam o mesmo espaço que

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estruturas muito específicas da biologia, todos tomados a partir de um profundo

prosaísmo.

Cabe ressaltar que a cidade na poesia de Caio parece se ligar estreitamente com

uma tendência algo dissolutiva dos limites do sujeito. Parece central para sua poética

relativizar as fronteiras individuais e corporais, reconhecendo o sujeito como transitório

num teatro de vozes, abordado mais diretamente em uma estratégia personificadora

empreendida a partir do seu terceiro livro.

Em Coisas que o primeiro cachorro na rua pode dizer, a tendência dissolutiva

se converte numa projeção de diferentes personas, a partir das quais o poeta traz outras

vozes para a primeira pessoa como ecos discursivos flagrados como instâncias possíveis

do eu no dia-a-dia urbano. Essa estratégia vai se tornar ainda mais pungente em

Romance, com a subsequente multiplicação das vozes em fragmentos anônimos no

bloco “Entre outros: fotografias”, no qual encontramos um retrato diferente do urbano,

pautado mais pela diversidade de recortes do que pela vertigem ou pelo caos.

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I. Cidade, tempo e espaço

Se, a partir da dificuldade de definição de um ponto de partida para abordarmos

a cidade, assumirmos o risco da delimitação da experiência urbana em categorias

espaciais e temporais, um novo problema surge. Qualquer definição que usássemos de

espacialidade ou de temporalidade já se encontraria ligada a uma experiência urbana do

espaço e do tempo. A cidade molda as próprias categorias sensoriais mais básicas que

poderíamos utilizar para defini-la, nos impedindo de falar de uma temporalidade ou

espacialidade da cidade, mas apenas de uma percepção urbana do espaço e do tempo.

O que pareceria, a principio, mais uma dificuldade de delimitação nos oferece,

porém, uma alternativa interessante, justamente pela possibilidade de flagrarmos a

cidade não a partir de categorias espaciotemporais constituídas a priori, mas sim a partir

do que, nestas categorias, é indissociável da experiência urbana. Nos voltaremos, assim,

para a obra dos poetas buscando mapear as imagens e os recursos formais utilizados

para dar conta das especificidades de percepção do tempo e do espaço no contexto

urbano.

Para tratar da percepção espacial, traremos inicialmente a polarização feita por

Italo Calvino entre as imagens do cristal e da chama, sínteses das tendências para o

regular e para o informe. A partir desses dois ícones extremos, gera-se um eixo onde

podemos encontrar as mais diversas representações do espaço urbano, tendendo ora para

um, ora para outro polo. Pela abrangência da tensão condensada por autor italiano, a

contraposição entre cristal e chama nos servirá ainda como um instrumental no decorrer

do nosso trabalho, absorvendo diversas tensões que compõe a representação do espaço

urbano.

No reconhecimento espacial da cidade, encontraremos também uma certa

indissociabilidade desse com a noção de mobilidade, fruto de um molde de cidade

pensada como fluxo que se impõe em diferentes reformas desde o séc. XVIII. Nesse

sentido, o dinamismo implica um signo que está na base da concepção da experiência

urbana e articula simultaneamente tempo e espaço: a velocidade. Nos deteremos no

tratamento imagético das diferentes priorizações do veloz feitas pelas poesias de

Adriano Espínola e Nicolas Behr.

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Cabe ressaltar, porém, que os últimos cinquenta anos apresentam uma guinada

no conceito de tempo através da afirmação de uma sociedade ultraconectada, cujo

bordão é a “era da velocidade”. A concepção desta se assenta, porém, sobre bases

diferentes da noção de mobilidade que podíamos observar nos projetos urbanos desde o

séc. XVIII. Pretendemos, assim, mapear algumas das implicações dessa guinada da

percepção temporal na mudança paradigmática que está presente em algumas das

experiências concretistas que encontramos na poesia de Adriano Espínola e Arnaldo

Antunes.

Separamos esse capítulo em dois blocos, com o primeiro dedicado à concepção

espacial da cidade, abordando o ambiente caótico em oposição à cidade planejada, e no

segundo a guinada observada na concepção temporal que citamos. A velocidade, por

sua centralidade no projeto urbano, atravessa os dois blocos, e é focalizada em

diferentes modelos e em possibilidades diferentes de representação. Conforme

antecipamos, optamos por uma abordagem predominantemente opositiva entre os

poetas, delimitando contrastes entre suas obras e ressaltando as diferentes implicações

das formas como essas divergências são conduzidas.

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I.1 O cristal e a chama revisitados

De um lado, a redução dos acontecimentos contingentes

a esquemas abstratos que permitissem o cálculo e a demonstração

de teoremas; do outro, o esforço das palavras para dar conta,

com a maior precisão possível, do aspecto sensível das coisas.

(CALVINO, 1990 p.88)

Em seu Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino ressalta a forma

pela qual a cidade, como imagem, oferece-se como uma confluência dos mais diversos

antagonismos sem uma resolução possível. O teórico italiano caracteriza o urbano como

um símbolo complexo, capaz de abarcar em si uma tensão sem resolução entre

“racionalidade geométrica e emaranhado de existências humanas” (CALVINO, 1990

p.85).

A urbe é lida assim como síntese de uma antiga disputa entre o caótico e o

ordeiro; entre a exatidão do traçado geométrico das ruas e a indefinição do fluxo das

subjetividades em sua malha urbana. Tal abordagem, ao invés de optar por uma solução

estática, conserva o dinamismo de um jogo dialético, pois mantém a própria

possibilidade de delimitação em constante renegociação com a pulsão informe que

escapa de qualquer limite.

Ressaltamos, porém, que Calvino traz a cidade para sua conferência após uma

longa exposição sobre a exatidão e o informe. Trata-se mais da discriminação de uma

tensão específica que pode ser observada na cidade do que da constatação da

complexidade desta; o sentido de sua reflexão fecha-se na urbe, ao invés de abrir-se a

partir dela. No decorrer da sua conferência, porém, Calvino utiliza outros dois símbolos

para expressar a tensão entre a exatidão e o informe que pensamos ser de grande

relevância para nossa leitura; o cristal e a chama.

Tomados de uma analogia biológica, Calvino identifica nos dois signos uma

oposição que preserva e ilustra a tensão central de sua conferência. De um lado o cristal,

definido pela regularidade de sua geometria mineral, onde uma mesma forma molecular

se multiplica até produzir um sólido macroscópico, isto é, onde a forma é dada pela

regularidade do arranjo de uma mesma estrutura; e do outro a chama, como a

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manifestação visível da combustão, não possuindo uma forma específica regular, nem

ao menos um modelo ou estrutura que se repita; uma imagem da pura imanência.

Calvino progressivamente amplia a alçada das imagens, usadas inicialmente para

ilustrar uma tendência ao exato ou ao informe nas representações literárias, para uma

polarização mais generalista. O escritor italiano identifica na dupla cristal e chama

“duas formas da beleza perfeita da qual o olhar não consegue desprender-se, duas

maneiras de crescer no tempo, de despender a matéria circunstante, dois símbolos

morais, dois absolutos” (CALVINO, 1990 p.85).

A partir dessa dilatação da imagem, empreendida por Calvino, Renato Cordeiro

Gomes, em Todas as cidades, a cidade, relê a mesma tensão, projetando um novo

sentido para a oposição, agora observada especificamente na representação da cidade,

na qual o cristal “conota definição geométrica, que é solidez: transparência revelando

uma forma: exatidão” (GOMES, 2008 p.42) e a chama “conota vivência, que é efêmera:

pulsão forjando uma forma: fluidez” (ibidem).

Renato Cordeiro Gomes sobrepõe, assim, uma imagem sobre a outra; situando as

representações estéticas que se voltam à cidade no eixo proposto por Calvino. Dessa

forma, as inclinações à precisão ou ao disforme ilustradas pela oposição cristal-chama

passam a designar tendências e priorizações literárias no retrato da cidade. Os dois

absolutos são restringidos à representação do ambiente urbano no compromisso duplo

com a rigidez de um modelo geométrico espacial, e com a inadequação de qualquer

modelo para uma experiência por demais plural e caótica.

Após esse resgate da origem da imagem do cristal e da chama, cabe-nos voltar à

poesia e observar as ressignificações e implicações da priorização específica de cada

poeta. É importante ressaltar como as imagens trazidas por Calvino e Renato Cordeiro

Gomes servem antes para abrir novas possibilidades de leituras aos recortes urbanos

feitos pelos autores (e, nesse sentido, ela nos acompanhará em diversos momentos) do

que como um grilhão teórico com o qual se tentasse encaixar os poetas em um diagrama

unidirecional (dadas as especificidades de cada poema, dificilmente poderíamos

verificar uma oposição com a mesma justeza que vemos nos conceitos).

Tomamos assim, pela própria radicalidade de sua proposta, a trilogia do

transporte urbano de Adriano Espínola como ponto de partida. Nos três poemas que a

compõe - “Táxi”, “Metrô”, e “Minha gravata colorida” - o fluxo pelas autopistas da

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21

cidade vai descobrir o espaço urbano como uma sucessão irrecuperável de imagens

fugazes, não passiveis de qualquer conceitualização estável. O comprometimento com a

mimetização das imagens tal qual elas impressionam os sentidos é atestado pela

irregularidade dos versos, como uma recusa de qualquer modelo pré-definido de métrica

ou estrofação. As imagens parecem sempre inventar sua própria forma e regras internas,

ainda que não durem mais do que uns poucos instantes antes que se percam no trânsito

pela cidade e sejam substituídas por outras novas. Adriano ressalta, assim, a

especificidade de cada imagem comprimida em sua própria brevidade irrecuperável e

faz (em especial em “Táxi” e em “Metrô”) do fluxo a experiência por excelência do

espaço urbano.

Em frente, em frente!

(Ah, avistar aquele operário que passou

como um clarão em sua bicicleta toda enfeitada,

o radinho de pilha ligado,

-explorando no selim a felicidade com mais-valia - ,

indo encontrar-se com Ritinha, 17 anos, empregada doméstica.

E eu não poder retê-lo com o Táxi

[...]

Adeus Sebastião!)

Mais depressa!

(ESPÍNOLA, 1996 p.37)

A primazia do episódico e do fugaz faz a poesia de Adriano parecer diversas

vezes mais voltada para a incapacidade de reter as imagens do que para as imagens em

si. No trecho acima, o instante que dura a cena observada, marcada pelos parênteses, se

dá num tempo passado que se tenta recuperar, como um clarão delimitado pelas

promessas de velocidade da cidade. O que ocorre é uma projeção de possibilidades para

uma imagem que, como todas as outras, já se perdeu.

Essa suspensão como possibilidade de deter qualquer imagem faz a realidade da

cidade ser a da inapreensão. Toda imagem no fluxo projeta-se como uma pequena

cristalização, um pequeno parêntese no qual, tão importante quanto sua aparição é o seu

isolamento e o que se perde entre as aparições, pois é nesse espaço que percebemos o

dinamismo do fluxo em seu pleno vigor. A descontinuidade das imagens, seu

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22

isolamento em blocos discretos que impedem a constituição de uma linha causal,

imprime, assim, um caráter lacunar na poesia de Adriano, pois sugere sempre um fluxo

mais veloz de impressões sensoriais ocorrendo em segundo plano.

Assemelharíamos, assim, a sucessão de imagens na poesia de Adriano a uma

sucessão de “fotogramas de uma chama”: trata-se de pequenas cristalizações desta, que

por conta de sua descontinuidade evidenciam antes a pluralidade fenomênica não

representada do que a unidade abstrata entre as representações presentes.

É possível ainda lermos essa estratégia de descontinuidade como uma

aproximação para com a proposta de verso harmônico de Mário de Andrade em seu

“Prefácio interessantíssimo” (ANDRADE, 1972 p.13-31). Nesse sentido, o rompimento

com a linearidade (ou melodia) propõe-se a uma sobreposição das imagens (ou

harmonia). Essa possibilidade é especificamente profícua em algumas reincidências

paralelas de uma mesma estrutura, recurso que Adriano usa repetidas vezes na qual

diferentes imagens parecem se sobrepor:

Arrancada inesperada de mim pela cidade correndo fora de mim.

Carros passando perigosamente ao lado do pensamento acelerado.

Ônibus roçando com suas ancas, em cio metálico, a lateral do Táxi

Eiá, buzinas dos sentidos em alerta!

Eiá, Ultrapassagens repentinas de minha alma excessiva!

Eiá, visões do corpo a 140km/h,

em queda horizontal no abismo do asfalto!

Eiá, vertigem da quarta marcha, nos quatro pneus,

na quarta dimensão de mim mesmo na voragem do tempespaço!

Eiá, sinalizações abruptas!

Placas! Placas! Pl,cas!, ,,cas!

bat,do rá, d, s, nas ret,nas da m,te!

(ESPÍNOLA, 1996 p.45)

É interessante como no trecho acima, após os três versos introdutórios que

apresentam uma aceleração que confunde referente e referencial, os versos mergulham

na vertigem. Chamamos a atenção para a sobreposição causada pelo paralelismo,

situando todas as imagens entre o “Eiá” e a exclamação, mas também pela possibilidade

de as buzinas, ultrapassagens, visões e vertigem serem, por suas próprias características,

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23

aspectos sensoriais que se dão num só instante. Nesse sentido, o paralelismo pode ser

lido como uma tentativa de se reter em diferentes imagens um mesmo instante perdido

no fluxo pela cidade.

O processo se repete sinteticamente no penúltimo verso, através do mesmo

vocábulo sendo repetido com omissão de diferentes grafemas. Fica claro, pela crescente

ilegibilidade das placas, que mesmo na sobreposição de imagens, Adriano busca

evidenciar o inesgotável desse processo; o que é irrecuperável na linearidade do tempo,

não importando de quantas reincidências harmônicas se disponha. O retrato feito por

Adriano evidencia, assim, mesmo quando parece se esforçar para recuperar uma

imagem precisa, o caos informe e dinâmico da chama, o que, mesmo numa tentativa de

reincidência de um mesmo vocábulo, progressivamente vai se perdendo pela fugacidade

inerente ao espaço urbano.

Finalmente, no último verso, a omissão de grafemas impossibilita a atribuição de

um sentido único ao trecho, gerando possibilidades como “batidas rápidas nas retinas da

morte”, “batendo rápido só na retina da mente”, dentre diversas outras permutações

possíveis. Trata-se de uma estratégia de sobreposição que abordaremos no próximo

capítulo por trazer um elemento de simultaneidade no tratamento do tempo que abre

questões específicas sobre o paradigma temporal que está em questão.

Se contrapusermos agora o recorte da cidade feito por Adriano com a poesia de

Nicolas Behr, vamos perceber um abismo e uma grande possibilidade de contraste,

especialmente no que toca no eixo cristal-chama de Calvino e Renato Cordeiro Gomes.

Não encontramos na obra de Nicolas a mesma sucessão desconexa de imagens; a

regularidade da arquitetura de Brasília nos oferece um panorama onde a geometria

cristalina das macroestruturas arquitetônicas parece tomar conta do horizonte urbano:

blocos, eixos

quadras

senhores, esta cidade

é uma aula de geometria.

(BEHR, 2007 p.58)

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Diferentemente da proposta de Adriano, as imagens que predominam em

Nicolas evocam a perenidade. No lugar da sucessão de retratos de uma chama pulsante,

o que temos é mais voltado para “recortes” diferentes de um cristal, no qual interessa

não o que se perde na fotomontagem, mas precisamente o que nela se mostra e atesta a

consolidação de um ideal específico de cidade.

No poema acima a parataxe entre os elementos na primeira estrofe se mostra a

serviço de um efeito completamente diferente do observado em Adriano. A enumeração

nos dois primeiros versos trás, ao invés de fotografias sucessivas de uma imagem

disforme, uma apresentação de estruturas tomadas à distância, abstraídas de suas

especificidades e uniformizadas no mesmo projeto. O próprio traço humano já antecipa

a diferença que identificamos em Adriano: trata-se de um interlocutor externo para

quem a cidade é apresentada.

A caracterização da metrópole como aula de geometria (e ressaltamos o caráter

hierárquico e unidirecional dessa imagem) já a afasta da noção de chama e a aproxima

do cristal. Basta lembrar, nesse sentido, que a própria definição do cristal é geométrica:

trata-se de um sólido que possui em sua estrutura molecular uma regularidade

geométrica repetida até a sua consolidação macroscópica.

O comentário final não sugere, porém, que a presença do cristal na poesia de

Nicolas seja proveniente de uma priorização da abstração do dia-a-dia urbano. Assim

como é sugerido nesse poema (e ficará claro em diversos outros), a cidade enquanto

objeto cristalino se opõe aos moradores; trata-se de um projeto urbano específico e

sufocante, que deve ser superado; o projeto da cidade planejada é flagrado pelo olhar

como uma associação entre a cristalinidade a uma hostilidade à existência humana.

Chamamos atenção, assim, para esta última possibilidade de ler a imagem

síntese de Gomes e Calvino: aplicando a imagem do cristal sobre o próprio projeto da

cidade (e não apenas sua representação) encontramos as próprias cidades como situadas

num maior ou menor grau de cristal e chama, tendendo ora para o racionalismo

geométrico da organização espacial, ora para a ocupação implanejável e espontânea do

espaço. É claro que seria impossível separar a cidade do olhar que a representa, porém,

é essencial observar que, em Brasília, tal oposição entre traçado geométrico e

emaranhado de existências humanas está visivelmente desbalanceada por se tratar de

uma cidade planejada nos moldes do racionalismo urbano do séc. XX. É essencial levar

em conta o próprio projeto estético urbanístico e ideológico que se concretizou em

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25

Brasília, no qual a supremacia do geométrico pode ser lida, tal qual na imagem proposta

por Calvino como uma contraposição da cidade projetada ao informe da sua ocupação

humana.

O cristal, nesse sentido, é um elemento recorrente na representação da cidade

ideal do sonho da modernidade. Marshall Berman analisa a importância (e o grau

fantasioso) desse modelo em seu Tudo que é sólido desmancha no ar (BERMAN, 1986,

p.223) por meio da figura do palácio de cristal no imaginário russo. Mike Davis

apresenta também um símbolo semelhante como o máximo índice de um projeto de

controle do espaço público em Los Angeles em seu Cidade de quartzo (DAVIS, 1993).

É interessante o quanto o cristal se abre como expoente de pureza, não só da matéria

como das formas, e incorpora assim projetos que têm suas bases não só no planejamento

urbano, mas num processo de assepsia constante que atravessa a modernidade.

Brasília, caracterizada por Holston como A cidade modernista (HOLSTON,

1993), toma emprestadas todas as características atribuídas ao cristal: a geometria,2 a

primazia do controle do fluxo pelas autopistas e a setorização do espaço em papéis

específicos. Sob vários sentidos, a cidade absorveu todos os aspectos do sonho da

cidade ideal moderna no auge da vigência do international style e das concepções

urbanísticas de Le Corbusier e Ludwig Hilbersheimer.

Não é rara, na poesia de Nicolas, a contraposição entre a cidade e os moradores,

onde aquela figura como hostil para com estes. É como se na concretização do modelo

espacial idealizado de Brasília, a dialética entre cristal e chama se tornasse uma disputa

violenta e opressiva que põe de um lado a população e a espontaneidade, e do outro a

artificialidade da cidade planejada. Poucos poemas são tão diretos ou concisos nesse

sentido como:

2 Ressaltamos ainda o quanto o geometrismo, expressão de Bachelard em A poética do Espaço,

pode ser observado simplesmente na facilidade para mapear o espaço nos dois poetas. Em Nicolas

estamos quase sempre no plano piloto, na vigência do urbanismo de Lúcio Costa e quando o poeta nos

apresenta outro espaço, este nos adverte muito claramente; a cidade oferece a facilidade de um dentro-

fora muito identificável. Já em Adriano Espínola, a cidade não possui limites definidos. Inicialmente

acreditamos estar lidando com Fortaleza, mas a sua viagem de Táxi ou Metrô acaba por se projetar para

além de uma cidade tomada com espaço demarcável, e a mistura das sensações acaba trazendo outras

cidades, transformando o espaço urbano que transitamos como um recorte de várias cidades, onde se

somam o Rio de Janeiro, Nova Iorque e diversas metrópoles europeias; trata-se de uma grande cidade-

chama sem limites estáticos.

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assim nós queremos viver

dissemos nós

assim nós queremos

que vocês vivam

disse o arquiteto

(BEHR, 2009, p.66)

A separação das estrofes atesta de novo pela contraposição das lógicas

espontâneas e planejadas que se tornam uma dialética de constrição e sufocamento. A

palavra arquiteto se opõe, nesse sentido, à existência humana, e é interessante o quanto

essa visão desumanizada da arquitetura moderna apoia-se sobre diversos teóricos, desde

Ortega y Gassett até Eduardo Subiratis. Ressaltaremos, assim, alguns pontos desse

último, por suas reflexões constituírem uma ponte interessante entre o cristal, a

artificialidade e algumas imagens-símbolo que serão relidas tanto por Adriano quanto

Nicolas Behr.

Segundo Subiratis, o modelo arquitetônico que identificamos com o cristalino é

fundamentado por uma internalização do que ele chama de uma utopia do maquinismo

(SUBIRATIS, 1986 p.24-29), uma consolidação do funcionalismo como um valor em

si, a partir do qual a máquina se projeta como mecanismo perfeito, um modelo, ou um

ideal a ser seguido e reproduzido. É interessante ainda o quanto os argumentos de

Subiratis trazem em comum alguns dos mesmos nomes e impasses já citados aqui.

O maquinismo foi elevado a valor cultural supremo ao longo deste processo.

Léger em pintura, Oud ou Hilbersheimer em sua concepção de urbanismo, Le

Corbusier em sua nova ideia de arquitetura, para mencionar apenas alguns

exemplos, converteram a máquina em objetivo e valor por si, em torno do

qual se articulava o conjunto das questões formais, plásticas, compositivas,

construtivas e organizativas do desenho. (SUBIRATIS, 1986 p.29)

O geométrico alinha-se, assim, ao impessoal (ou ainda, a um “anti-pessoal” tal

qual a contraposição feita por Nicolas), onde o arquiteto molda a cidade como ”uma

ordem racional e livre da sociedade” (SUBIRATIS, 1986 p.34), funcional por

excelência. O geometrismo e a concepção da urbe como máquina, passível de ser

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otimizada, tornam-se índices dessa misantropia inerente à arquitetura de Brasília quando

relida por Nicolas, onde a natureza e a humanidade perderam seu posto de valores por si

e encontram-se francamente prejudicadas na máquina de concreto armado que constitui

a cidade.

A utopia do maquinismo tal qual pensada por Subiratis articula ainda outros

signos no cenário urbano, dos quais ressaltaremos para nossa reflexão o da velocidade.

Subiratis ressalta a importância da vanguarda futurista nessa valorização, mas em se

tratando de cidade, suas raízes são ainda mais profundas, estando presente desde o séc.

XVIII e tendo seu marco inquestionável nas reformas de Haussman em Paris. Estas

afirmam definitivamente a concepção da cidade como um espaço do fluxo, ponto

central reafirmado diversas vezes na poesia de Adriano:

Este Táxi,

a rua rolando rente,

os telhados correndo, pensos, de um lado e outro,

a lata de lixo solitária,

as arvores caladas,

rostos e estrelas entrevistos da janela,

teu corpo passageiro

(ESPÍNOLA, 1996 p. 25)

A velocidade está na base de grande parte do que, na obra de Adriano,

ressaltamos como priorização da cidade enquanto chama; a sobreposição de imagens, a

descontinuidade destas e a primazia pelo inapreensível são todas estratégias que

contribuem para o efeito estético de vertigem provocado pela aceleração do veículo. No

trecho acima temos, em sete versos, pelo menos sete imagens sem uma conexão ou

vínculo causal, todas se sobrepondo e sistematicamente sendo deixadas para trás pela

velocidade do táxi em trânsito.

Cabe ainda ressaltar o quanto, nesse trecho assim como em muitos outros,

mesmo quando Adriano não fala tematicamente da velocidade, ele fala a partir dela.

Não apenas como um modelo ideológico louvado e/ou criticado, a velocidade aparece

também por conta do fato de o retrato que o poeta faz ser indissociável da sua moldura

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veicular; trata-se de um poema feito de dentro de um táxi em movimento pelas ruas da

cidade.

A condição incontornável da velocidade como experiência urbana pode ser lida,

portanto, a partir da homonímia entre veículo e texto. Tanto em Táxi, quanto em Metrô,

encontramos inúmeras autorreferrências que parecem reafirmar a todo tempo o vínculo

entre a experiência da cidade o veículo que a atravessa.

A cidade, tomada enquanto espaço puro do fluxo apoia-se, na poesia de Adriano

Espínola, num discurso que se confunde com o veículo automotor. Essa priorização do

automóvel, que chega aos anos 50 com os delírios de autopistas de Robert Moses e a

concepção urbanística de Le Corbusier, tem na otimização da velocidade a medida da

funcionalidade. Esse ideal, presente desde a concepção do plano piloto de Brasília, tem

sua centralidade ideológica ilustrada geográfica e geometricamente na imagem do eixo

rodoviário de Brasília, conhecido informalmente como eixão.

O eixão, como a principal autopista de um projeto marcado pelas autopistas,

torna-se uma grande metonímia, tanto para Nicolas quanto para a própria construção de

Brasília. Marshall Berman, em seu Tudo que é sólido desmancha no ar, aponta, tratando

da autopista Cros-Bronx, que esta é uma das estruturas “planejadas especialmente como

expressões simbólicas da modernidade” (BERMAN, 1986 p.273), e tal constatação

serve perfeitamente para ilustrarmos a importância simbólica do eixão para a construção

de Brasília. A imagem já nasce de certa forma consolidada como um símbolo da utopia

do maquinismo, do progresso e da velocidade, e é sintomaticamente subvertida pela

poesia de Nicolas:

nossa senhora do cerrado,

protetora dos pedestres

que atravessam o eixão

às seis horas da tarde,

fazei com que eu chegue

são e salvo na casa da noélia

(BEHR, 2007 p.69)

A apresentação do eixão, enquanto símbolo máximo da velocidade e da utopia

do maquinismo, longe da celebração é marcada pelo temor. A prece, como uma

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29

urgência de intervenção divina junto aos perigos de atravessá-lo, transforma-o ainda

num elemento que resguarda o perigo do veloz como algo sobrenatural. É interessante

que Subiratis apresenta essa reviravolta que passa a promover a “identificação da

máquina com o demoníaco, ou seja, com uma força irracional e incontrolável de signo

negativo e destruidor” (SUBIRATIS, 1986 p.41).

A violência presente na carga afetiva da imagem alia-se ainda a uma recusa da

inserção na velocidade do trânsito. Nicolas, em contraposição com Adriano, posiciona o

olhar sempre nas margens da autopista, de forma que o eixão (assim como os blocos e

as quadras) resguarda o aspecto imóvel de um elemento arquitetônico. O olhar produz,

assim, uma dupla recusa do signo da velocidade: primeiramente ao aproximar a

autopista de um elemento anti-humano, como um potencial atentado a vida; e, num

segundo sentido, ao se posicionar deliberadamente fora do fluxo, recusando a

experiência automobilística de Brasília.

A recusa da inserção no trânsito constitui um ponto opositor entre Adriano e

Nicolas, e é especialmente relevante se levarmos em conta que, diferentemente de

Fortaleza, Rio e Nova Iorque, Brasília é a concretização do sonho de uma cidade

pensada para o fluxo. É marcante no traçado urbano de Brasília o quanto esta é

planejada especificamente como uma cidade para ser vivida a partir do automóvel, justa

medida da oposição entre a recusa de Nicolas e a inserção de Adriano Espínola.

A dialética entre o cristal e a chama aponta, assim, para uma oposição no que

tange a priorização da velocidade na obra dos dois poetas, seja enquanto inserção ou

recusa. Quanto mais pungente é o signo da velocidade enquanto trânsito pelas

autopistas, mais a poesia de Nicolas parece buscar uma alternativa de escape. No polo

diametralmente oposto, Adriano parece se esforçar para criar um texto-veículo que

possibilite viver a cidade como um espaço de trânsito veloz e desimpedido.

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I.2 Um pacto temporal

Importa sobreviver.

No trânsito

debaixo de tiros.

ou aos trancos

[...]

Deixa, apenas, que se inscreva

-em teu corpo- a áspera canção do tempo.

(ESPÍNOLA, 2002 p.33)

Dissemos o quanto a velocidade torna-se um signo incontornável na

representação da urbe moderna; seja pelo repúdio ou louvação; a cidade como

conhecemos parece inseparável de uma concepção de fluxo e mobilidade. Cabe

ressaltar, porém, que essa identificação não é inerente ao traçado urbano; trata-se de

uma construção que nasce com a modernidade e sofre diversas mudanças,

especialmente nos séculos XX e XXI, adaptando-se a novas tecnologias e

proporcionando diferentes concepções temporais aos sujeitos em trânsito.

Em seu Carne e pedra, Richard Sennett trata detidamente dos diferentes signos e

ideários que nortearam algumas das novas concepções de urbanismo no mundo

ocidental. Ao se referir às primeiras reformas que associam a cidade a um signo de

mobilidade, Sennett ressalta que a fixação no fluxo ininterrupto tem suas bases junto a

uma analogia fisiológica. A noção de que a cidade seria tal qual um grande organismo

como o corpo humano, necessitando de um permanente trânsito de humores, fez da

velocidade um aspecto natural e necessário à vida:

Construtores e reformadores passaram a dar maior ênfase a tudo que

facilitasse a liberdade de trânsito das pessoas e seu consumo de oxigênio,

imaginando uma cidade de artérias e veias contínuas, por meio das quais os

habitantes pudessem se transportar tais quais hemácias e leucócitos no

plasma saudável. A revolução médica parecia ter operado a troca de

moralidade por saúde; e os engenheiros sociais, estabelecido a identidade

entre saúde e locomoção/circulação. Estava criado o novo arquétipo da

felicidade humana. (SENNETT, 2010 p.262-263)

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A influência do ideal de livre movimento no urbanismo não é menor do que sua

extensão no próprio imaginário biológico-individual (Sennett chega a demonstrar um

continuum entre a metáfora sanguínea, a velocidade, e a consolidação do individualismo

no mundo ocidental, associado à liberdade e ao direito de ir e vir). Se já afirmamos

anteriormente a importância da utopia do maquinismo para a constituição da velocidade

na representação da cidade, cabe ressaltar algumas das implicações desse ideal no que

tange a percepção do tempo no ambiente urbano, mesmo quando fora do cenário

clássico da autopista.

O final do séc. XX (janela temporal onde se situam todos os poetas do nosso

corpus) apresenta uma guinada nessa questão, pois evidencia uma insuficiência da

metáfora sanguínea para entendermos a mobilidade urbana. O fluxo dos carros se

mostra cada vez mais associado ao definhamento e à estagnação no congestionamento,

enquanto, no contraponto, a indústria da informação reafirma cada vez mais a “era da

velocidade” associada à circulação de dados, ao invés de mercadorias. Encontramos

assim, a velocidade no séc. XXI diretamente associada à indústria da propaganda e

informação: internet, televisão, multicasting, broadcasting, todos são elementos que

passam a designar uma concepção do veloz que não pode mais ser pensada a partir da

metáfora espacial e circulatória que polarizou a mobilidade entre os séculos XVIII e

XX, ela deve ser atualizada.

Essa guinada na concepção da mobilidade funda uma nova percepção capaz de

dar conta de um fluxo cada vez maior de imagens fugazes. Como um novo pacto

temporal, a velocidade urbana no séc. XXI estende-se a novos ambientes, pois não

depende mais de uma adequação espacial e de um fluxo material de carros, pessoas ou

mercadorias, mas apenas de imagens e/ou dados. Nesse sentido, a recusa da velocidade

que abordamos na obra de Nicolas só é verificável quando observada em símbolos de

um imaginário específico da mobilidade urbana, pautado por um projeto e uma

concepção de cidade voltada para o trânsito automobilístico. Enquanto novo pacto

temporal, a cidade moderna já se estende, pelo sinal televisivo e rede de computadores,

desde o Rio de Janeiro, Brasília ou Diamantino (cidade onde o poeta passou a infância).

Já em Adriano Espínola, a inserção no fluxo e os recursos para a maximização

da sensação de velocidade são um pouco mais complexos. Temos em sua obra um

comportamento ambivalente entre os dois momentos da guinada que citamos:

conquanto o olhar sempre parta da velocidade segundo o modelo clássico, podemos

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32

identificar alguns elementos de uma concepção temporal que se aproxima cada vez mais

da instantaneidade própria do fluxo de dados.

Nesse sentido, ressaltamos nas imagens de Adriano não apenas seu

encadeamento, mas também a sua hiper-compressão, processo que acelera a sucessão

horizontal de imagens através de um adensamento do sentido das suas partículas

componentes. Novamente, voltamos a Italo Calvino em Seis propostas para o próximo

milênio, no qual em sua segunda conferência, dedicada especificamente à rapidez,

destaca alguns pontos sobre a compressão da imagem até limites punctiformes. Segundo

ele, o segredo da rapidez está em “que os acontecimentos, independentemente de sua

duração, se tornem punctiformes” (CALVINO, 1990, p.48).

A radicalização dessa compressão na poesia de Adriano Espínola, que em alguns

momentos poderia ser lida de forma semelhante ao verso harmônico de Mário de

Andrade, evidencia esse momento de virada, quando a sobreposição das imagens dá

espaço à verticalização dessas, projetando múltiplos sentidos. Adriano utiliza jogos

fonéticos e visuais para abrir possibilidades de sentido não exploradas num mesmo

segmento gráfico, de forma que; quando abandonados no fluxo, essas imagens levam

junto possibilidades diferentes de sentido apenas sugeridas. Trata-se, então, de uma

sugestão de excesso de informações que o verso, por seu caráter linear, não é capaz de

dar conta, percebendo apenas ilhas de sentido sem um trajeto específico:

Sacolejos poeira de luz

palpitações

sombras vertigens

desligamentos além dentro

esquinas faíscas de mim

deslizamento aquém fora

ânsias silêncios cruzamentos

Estou indooo...

(ESPÍNOLA, 1996 p.62)

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A constelação de palavras reafirma a incapacidade de conferir um único sentido

aos fragmentos de imagens dispersos, eles se alternam entre a visualidade das faíscas e a

abstração de um “além”, que pode tanto se ligar ao “de mim” do verso seguinte quanto

estar sozinho. Ao invés de construir imagens que possuem uma moldura definida e se

sucedem (ainda que sem uma ligação precisa), Adriano capta apenas fragmentos dessas

imagens, sugerindo, assim, a sua própria incompletude (até mesmo pela estrutura

lacunar do trecho). É como se o poeta nos oferecesse um relance da imagem, atestando,

portanto, a existência dela, mas não definindo os seus limites, de forma que nessa única

palavra ficam concentradas múltiplas possibilidades de sentido sobrepostas.

Ressaltamos, porém, que a noção de velocidade nesse trecho de Adriano ainda é

posta a serviço de uma articulação entre tempo e espaço. Trata-se de uma distorção

visual; o poeta não consegue captar as imagens em sua inteireza por conta de um

deslocamento espacial que fica claro no verso final “Estou indoo...”. A compressão

temporal através da condensação das imagens induz, dessa forma, uma aceleração na

sensação vertiginosa da velocidade que ainda está situada dentro da concepção clássica

da velocidade. Há, porém, em alguns trechos da poesia de Adriano, a possibilidade de

lermos uma segunda abordagem da velocidade, não mais dependente de um

deslocamento no espaço, mas de uma suspensão da linearidade espacio-temporal.

Se dissemos que a metáfora que estruturou a noção de velocidade e mobilidade

no ambiente urbano do séc. XVIII ao XX era a do sistema circulatório, McLuhan nos

oferece em seu Os meios são as massa-gens a sua atualização: a rede neural. Trata-se de

uma concepção que associa o trânsito de dados e informação pela rede como espelhado

também num aparato corporal, o sistema nervoso. Enquanto Sennett nos aponta que no

séc. XIX a própria vida e a vivacidade eram concebidas como uma decorrência do fluxo

sanguíneo, esse paradigma mudou para uma decorrência de atividade cerebral. O

cérebro, por sua vez, ainda no campo da analogia situada dentro da utopia do

maquinismo, passa a ser designado como a nova máquina perfeita, substituindo o

coração.

A nova concepção de velocidade, marcada pelo instantâneo (vale lembrar que

McLuhan nem chegou a ver o salto que se daria nos anos 90 e 2000 com a

popularização da internet) não pode ser vista como uma simples radicalização ou

aceleração da mobilidade espacial. Há uma mudança de paradigma que rearranja as

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34

relações de sentido e verticaliza-as definitivamente. Ressaltamos, assim, na definição de

McLuhan de aldeia global, o que tange as novas articulações espaciotemporais:

“o nosso é o tempo do tudoagora. O ‘tempo’ cessou, o ‘espaço’

desapareceu. Vivemos hoje numa aldeia global... num acontecer simultâneo.

[...] Fomos obrigados a desviar o esforço de atenção da ação para a reação.

Hoje temos que saber antecipadamente as consequências de qualquer diretriz

ou ação, pois os resultados nos chegam de volta sem demora. Devido à

rapidez da eletricidade, não podemos mais esperar para ver o que vai

acontecer. (MCLUHAN; FIORE, 1969 p.91)

O paradigma da instantaneidade rompe com a articulação clássica entre tempo e

espaço; os modelos de análise que serviriam pra a cidade enquanto fluxo espacial não se

aplicam mais. Cabe, agora, buscarmos as mudanças e as novas relações de sentido

polarizadas pela instantaneidade do fluxo de dados na velocidade da luz.

Dissemos que encontramos em Adriano uma ambivalência dos dois universos da

velocidade. Em grande parte de Táxi, o que flagramos é a compressão das imagens, bem

como a incorporação do espaço visual da página como código pictórico, mas, tudo isso,

ainda buscando o aceleramento do fluxo. Ressaltamos, porém, que em alguns recortes o

poeta põe tais estratégias a serviço de uma velocidade que se aproxima mais do

instantâneo, e, portanto, de um tempo que está suspenso:

Estou vendo

a tarde de vidro & aço

nos separando da multidão:

brancosenxadrezados/negrosimpressionistas/judeusbarbascops

pernasprédioschapéuscarascarrõescasacosflagscartazesvitrinas

you´ve come a long way baby/walk don´t walk/whatacrowd

que jamais saberá

-ruidosamente paralisada na memória-

que por lá retorno

a 5 dólares e 25 cents a corrida naquele instante de agora.

(ESPÍNOLA, 1996. p.39)

Page 35: quatro poetas quatro cidades

35

É interessante como nesse trecho há uma tentativa muito clara de mudar a

concepção da forma de apreensão da imagem. O poeta desrespeita a separação entre as

palavras, juntando substantivo e adjetivo num único bloco de sentido, que apenas é

separado dos demais por intermédio das barras;3 de certa forma, questionando a

separação entre substantivo e adjetivo, quando ambos são percebidos como uma única

referência concreta. A percepção dessas imagens se dá, nesse sentido, num único

instante, sob o signo da instantaneidade, como um olhar que flagrasse essa multidão e

buscasse uma única palavra que desse conta da multiplicidade de impressões.

Progressivamente, a percepção para de isolar ou reconhecer os signos separados,

constituindo uma grande palavra que amarra diversas imagens percorridas pelo olhar,

tendo, enquanto um único significante, um significado multi-relacional. Nesse sentido, a

constituição de uma palavra que perpasse diversos referenciais, quebra também com um

paradigma temporal que se estrutura numa velocidade de apreensão sequencial. Os

outros três “signos”, que se somam no último verso da estrofe, são ainda índices

referenciais da paisagem nova iorquina, com a qual o poeta entrou em contato na década

de 70; simultaneamente o slogan do Virginia Slims, que ficou muito famoso na época, e

as placas de cruzamento de pedestres.

A simultaneidade pode ainda ser observada na microestrutura de cada uma

dessas últimas imagens, já que o “you´ve come a long way” indica, ao invés de uma

construção linear de uma frase, muito provavelmente um outdoor, uma imagem

pictórica, que é captada num instante; e o “walt don´t walk” remete, enquanto

microestrutura, a uma imagem que traz, simultaneamente, duas mensagens

intercambiantes da placa de cruzamento. Reafirma-se aqui o que dissemos a respeito da

configuração de um significante único que abarque uma referencia múltipla, mesmo no

sinal do cruzamento onde essas referências são mutuamente excludentes.

Cabe ressaltar ainda que o final desse trecho reafirma a suspensão do tempo na

associação de todas as imagens a um único instante da memória que não possui um

vínculo direto com a vertigem do táxi. Seria reducionista simplificar o jogo

passado/presente tratando a imagem como um retrato estático de um tempo que já foi.

Adriano torna-a presente ao revisitá-la, reafirma a instantaneidade e a suspensão do

3 Em revisão ainda inédita, Adriano remove as barras, mantendo nesse verso também uma grande palavra

que percorre pelas três imagens, mantém o segundo verso igual, e remove as barras e os espaços do

terceiro verso. A mudança, longe de contradizer nossa leitura, reforça a simultaneidade das imagens, e

mantém a estrutura progressiva de radicalização.

Page 36: quatro poetas quatro cidades

36

tempo enquanto linha cronológica, questionando a própria separação entre passado e

presente através de uma priorização do instantâneo. O fechamento do trecho ratifica,

nesse sentido, a instantaneidade da rememoração e a simultaneidade dos blocos de

sentido, não a velocidade do trânsito pela cidade. Trata-se de uma imagem em tempo-

zero; de um passado tomado num quadro e jogado no presente imediato.

Essa concepção de tempo-zero para a simultaneidade de diferentes impressões e

sentidos causados por uma mesma imagem, se aproxima muito da reconfiguração do

pacto temporal urbano quando polarizado pela instantaneidade. Podemos ainda situar

algumas experiências a partir da poesia de Arnaldo Antunes, e sua retomada da poesia

concreta nos anos 90. É necessário, nesse sentido, ressaltar que a mudança da relação

com o tempo é a raiz a partir da qual o concretismo pode ser pensado, pois este se

afasta, a um mesmo tempo do verso e do tempo linear. A sobreposição de diferentes

códigos amplia a carga semântica das imagens, impossibilitando uma leitura gradativa;

a própria apreensão do poema busca se dar instantaneamente.

A proposta da poesia concreta, desde seus manifestos da década de 50 pode,

num certo sentido, ser lida como a de uma poesia radicalmente urbana. Muito além da

representação “clássica”, com os grafemas dispostos pela página espelhando (ou

contradizendo) o tema, ou com reaproveitamentos diretos dos slogans e formatações

próprias da indústria da propaganda; interessa-nos a concepção de instantaneidade que

está na base de sua apreensão pictórica, assim como o próprio predomínio do código

visual (e suas relações intrínsecas com a cidade). Estes são, afinal, precisamente, os

pactos sensoriais e temporais fundados pela cidade moderna do final do séc. XX e XXI.

Ressaltamos assim, da poesia de Arnaldo Antunes, o poema-título do livro 2 ou

+ corpos no mesmo espaço que, em sua capa original incluía repetições do mesmo

enunciado em cores diferentes sobrepostas, mas na antologia Como é que chama o

nome disso, recebeu uma forma mais minimalista, em preto-e-branco, com as palavras

componentes apresentadas apenas uma vez:

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37

(ANTUNES, 2006 p.133)

É interessante que a característica da física clássica referida por Arnaldo, a lei da

impenetrabilidade, não é simplesmente negada; a ela não se opõe uma proposição

oracional de valor contrário. Trata-se de um passo além; de um exemplo substantivo (e

não proposicional) de corpos se interpenetrando, ocupando o mesmo espaço. A

assimetria dessa contraposição entre lei física e enunciado poético, que insere, por

exemplo, o “ou +”, reforça a irrelevância que esta atribui àquela, mostrando a

capacidade da poesia de subvertê-la sem grande dificuldade.

O posicionamento privilegiado de “2 ou + corpos no mesmo espaço”, como

próprio título da obra, possibilita ainda a leitura da penetrabilidade como uma

característica intrínseca à poética de Arnaldo. Trata-se, afinal, de uma tentativa de

multiplicação de sentidos a partir de um mesmo segmento gráfico, isto é, de um mesmo

intervalo espacial, seja ele um verso clássico, concretista ou caligráfico.

Cabe ressaltar ainda que a sobreposição e a penetração espacial são, ao mesmo

tempo, uma penetração e sobreposição temporal. A mensagem, por seu caráter

Page 38: quatro poetas quatro cidades

38

pictórico, se dá num mesmo instante, através do embaralhamento das palavras em preto

e branco. A linearidade cronológica contra a qual a proposta concretista se coloca é

rompida, assim, juntamente com a lei da impenetrabilidade, através da reafirmação

visual da mensagem.

Além da mudança paradigmática que já ressaltamos como inerente à

instantaneidade buscada pelo poema, a sua forma em preto-e-branco causa uma

dificuldade de leitura, semelhante ao conceito fundamentalmente urbano de poluição

visual. Se lida nesse sentido, a dificuldade de leitura própria de poema, sua confusão de

palavras, reafirma o ambiente urbano como um espaço de sobreposição de códigos. Há

uma certa indissociabilidade,, então, entre o pacto temporal urbano como regido pelo

instantâneo, e a experiência diária da cidade como interpenetração (espaço-temporal)

dos mais diversos discursos (ponto ao qual voltaremos no último capítulo).

Além da instantaneidade da sobreposição de códigos, cabe ressaltar outro

elemento explorado por Arnaldo Antunes no que tange seus trabalhos caligráficos. O

poeta define a caligrafia como um “território híbrido entre os códigos verbal e visual”

(ANTUNES, 2006 p.326), e cabe ressaltar também o quanto a caligrafia absorve a

experiência genuína da escrita, em contraposição com a abstração alfabética que

constitui a tipografia.

Nesse sentido, é importante enfatizar o quanto a caligrafia traz um elemento de

identidade para o texto, uma outra camada discursiva, definida por Arnaldo como uma

“entonação gráfica” (ANTUNES 2006 p.326) que possibilita a vivência corporal do

processo de escrita. Cabe ainda ressaltar como a retomada da caligrafia, ao se opor à

repetição análoga da prensa tipográfica, parece se afastar do universo urbano industrial.

O elemento de identidade e idiossincrasia dialoga, porém, pela sua visualidade, com

pichações e grafites, imagens recorrentes na paisagem urbana industrial, que se mantém

como uma cultura caligráfica à margem da legitimação do cânone literário.

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39

(ANTUNES, 2006 p.226)

Se morfologicamente o poema é composto por apenas quatro sílabas (compostas

por apenas seis letras diferentes), sua riqueza provém justamente dos diferentes registros

e possibilidades delas. A ideia da falta, sugerido pelo título “fome de sede” e sua

inversão possível “sede de fome” gera uma noção circular, que conforme avança a

leitura vertical da imagem vai dissolvendo os traços opositivos entre as letras, tornando-

as mais indistintas, ou, se preferirmos, poluídas.

Não pretendemos aqui amarrar a leitura da caligrafia de Arnaldo Antunes num

único sentido, mas é interessante ressaltar como, se suas bases se lançam em tradições

Page 40: quatro poetas quatro cidades

40

orientais da escrita, o limiar entre o visual e o verbal é cotidianamente verificado nas

inscrições em grafite nas grandes cidades. A semelhança com o grafite - seus elementos

comuns de desenho e escrita - traz de volta a caligrafia de Arnaldo Antunes para o

cenário urbano, pois embora não caiba a discussão dos limites específicos entre a

caligrafia e o grafite (discussão que passaria inclusive pelo suporte em que a caligrafia

se encontra), a pressuposição de uma apreensão instantânea da mensagem é comum aos

dois, bem como o caráter transgressor.

Outra importante discussão que é trazida pela aproximação da caligrafia com o

grafite é a noção de poluição visual, podendo esta ser vista como própria do discurso da

cidade, na medida em que é uma sobreposição indiscriminada de diferentes fragmentos

de discurso. Nesse sentido, a dificuldade de leitura (ou de constituição de uma linha de

sentido) é a própria mensagem. Ao dissolver progressivamente os grafemas em “fome

de sede”, ou dificultar a leitura de “2 ou + corpos no mesmo espaço”, Arnaldo traz o

ruído comunicativo para o primeiro plano, não apenas a partir da possibilidade de

conceder-lhe sentido, mas também a partir da incapacidade de fazê-lo.

O ruído é trazido, assim (é interessante como historicamente a música do século

XX também buscou desestabilizar a divisão estanque entre as categorias de ruído e

som), como um elemento autossuficiente para os versos. Todas as possibilidades de

atribuição de significado a cada traço tornam-se insuficientes, pois se conserva em

primeiro lugar o caráter interpretativo não apenas do sentido de cada vocábulo, mas do

próprio reconhecimento de um.

É importante ressaltar que a abertura infinita de sentidos proposta pelas

caligrafias em Arnaldo Antunes se assenta sobre o mesmo pacto temporal da

instantaneidade, da sobreposição de códigos diferentes e da valorização construtiva de

sentido do ruído. É a partir da incapacidade de conferir sentidos absolutos à densidade

semântica própria da caligrafia que se problematiza novamente a concepção da poluição

visual enquanto sobreposição de fragmentos desconexos.

Num certo sentido, o caráter instantâneo como polarizador do tempo urbano

atual se expande para além de qualquer limite possível da cidade. Arnaldo possibilita a

releitura dos mesmos pactos temporais que vemos apontados no urbano quando

tematizado por Adriano Espínola, a partir do enunciado “fome de sede”, isto é, sem a

necessidade de se prender a signos gastos de cidade, como automóveis, out-doors e

neons.

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Cabe ressaltar que a oposição da poesia de Arnaldo com a de Adriano deixa

evidente um contraste entre uma cidade aparente e uma velada. Enquanto na poesia

deste a cidade se circunscreve predominantemente do lado de fora da janela (a

constituição de barreiras será em certa medida subvertida, conforme veremos no

próximo capítulo), na poesia daquele os signos recorrentes do urbano ficam em segundo

plano, predominando a especificidade de suas vivências sensoriais e temporais. Dessa

forma, quanto mais “de relance” aparece o tema da cidade, mais entranhadas parecem as

suas categorias de experimentação, pois podem assim ser ampliadas para contextos

diferentes, não tão desgastados pela poética urbana dos séc. XIX e XX.

O paradigma urbano se estende assim para limites imapeáveis; quanto mais

buscamos nos afastar dele, mais reconhecemos seus modelos e imagens para

experiências menos óbvias. Sua noção espacial abre-se na própria possibilidade da

delimitação ou da imprecisão, sua concepção temporal abrange tanto a vertigem de uma

linearidade quanto o tempo-zero da instantaneidade. Não é possível mais situar um

“lado de fora” da cidade; o urbano se afirma, finalmente, como o alargamento máximo

do que não possui contrário.

Reconhecemos assim, matizes aparentemente mais ou menos definidas de uma

mesma concepção urbana do real, sem contornos, limites ou avesso. Cabe ressaltar a

imagem de Pentesiléia, em As cidades invisíveis; cidade sem fronteiras, que se alarga

entre periferias como um vasto terreno urbano descentrado. Tal qual nosso paradigma

urbano, Pentesiléia não apresenta nunca um núcleo ou um limite que possibilitem a

certeza fácil do limite entre dentro e fora:

A pergunta que agora começa a corroer a sua cabeça é mais angustiante: Fora

de Pentesiléia existe um lado de fora? Ou, por mais que você se afaste da

cidade, nada faz além de passar de um limbo para o outro, sem conseguir sair

dali? (CALVINO, 1990 p.143)

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II. Intervalos entre corpo e cidade

A tensão entre cristal e chama abre uma nova dimensão para nosso estudo

quando observada fora da macroperspectiva, que abrange todo um emaranhado das

existências humanas na cidade, e trazida para o microcosmo do sujeito tomado em sua

singularidade e isolamento frente à ordem urbana. Estamos não mais falando de uma

pulsão humana indefinida, mas sim de um contato entre sujeito e cidade que é, antes de

tudo, corporal. Distinguem-se, a principio, dois corpos em contato: o do sujeito, como

um anteparo “biológico-discursivo4” e o da cidade, constituído não apenas por sua

materialidade tomada enquanto formas construídas no espaço, mas também nos papéis

sociais que estes imprimem, possibilidades de experiência, e/ou os valores simbólicos

que estão agregados ao desenho urbano.

Caio Meira aponta, em entrevista a Rodrigo de Souza Leão, que vê sua poesia

como fruto de um corpo-a-corpo com a cidade (MEIRA 2013 p.161-162), e é

justamente nas possíveis configurações entre essas duas instâncias em constante

ressignificação que nos deteremos nesse capítulo. Trata-se de uma luta corporal com um

sistema de organização do espaço que inaugura um ambiente linguístico específico e

dinâmico para sua própria expressão. Corpo e cidade são, em certa medida, sempre

negociáveis no transito urbano, e nos interessa especificamente as diferentes formas

pelas quais a poesia dá conta dessa negociação.

Há um certo equilíbrio, nesse sentido, entre a presença do corpo do poeta e do da

cidade; eles se tocam, se transformam e se ressignificam mutuamente. Os possíveis

desequilíbrios entre eles aparecem, por exemplo, em poéticas como a de Nicolas Behr,

onde Brasília se mostra como um projeto de sufocamento da experiência corporal da

cidade, de forma que todos os traços que poderiam evocar um contato físico são

relegados ao segundo plano de uma ordem que se legitima pela visualidade.

A poesia de Caio Meira, por outro lado, parece trazer uma sinestesia anterior à

partição dos sentidos, constatando o sem-limites do corpo que se alarga sensorialmente

4 Utilizamos a expressão para abranger todas as possibilidades de releituras que desapropriariam um

aspecto puramente fisiológico do corpo; e ao mesmo tempo, resguardar o sentido de unidade orientada

que condiz com a acepção biológica do corpo.

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43

a partir dos seus contatos com a cidade, bem como uma incapacidade corporal-

expressiva para dar conta de uma ordem tão complexa e dinâmica quanto a cidade.

A partir dessa releitura e ampliação da zona de contato com a cidade, os próprios

estímulos sensoriais podem ser (e comumente serão) relidos como limitadores de outras

aproximações possíveis. Instaura-se assim uma busca por alternativas que contornem a

mediação prévia de uma vivência dessensibilizada, de forma que se dê um contato

“mais real” com a cidade através de uma estratégia de hipersensibilização.

Trazemos de volta, assim, a vertigem da poesia de Adriano Espínola, contrastada

agora com Caio Meira, observando como, mesmo a partir da despersonalização

máxima, quando a cidade parece tomada fora de qualquer mediação, ambos os poetas

deixam traços de uma subjetividade estilhaçada, incrustrada na paisagem urbana. Cabe

nesse sentido, nos determos nas diferentes configurações desse sujeito instável, que

figura ora como uma tentativa de dispersão num cenário vertiginoso, ora parecendo

ressurgir reagrupado a partir de fragmentos mnemônicos caóticos.

Finalmente, cabe nos determos numa última alternativa, abordada por Adriano e

Caio, na qual a alternativa para incorporar os diversos estímulos da cidade,

simultaneamente, faz da própria individualização um processo arbitrário demais. A

solução passa a ser, assim, uma multiplicação das vozes personativas, o corpo passa a

ser plural, não se moldando mais num retrato específico, mas se tornando uma série de

retratos, multiplicando uma imagem numa rede dinâmica de significados.

Assim que as alternativas poéticas assumem um contato tão estreito com o

dinâmico que não permitem mais falar de um recorte específico, ou de um olhar sobre a

cidade, mas apenas das múltiplas possibilidades de olhares, nosso ciclo se fecha,

indistinguindo corpo e cidade. Nessa configuração final onde o contato com a cidade, de

tão dispersivo que é para a subjetividade, impossibilita a constituição de um corpo ou de

uma cidade, o contato corporal passa a ser relido como apenas uma das possibilidades

de figuração de um choque que é, em si, discursivo.

Assim, como no cap. 1, dividimos este capítulo em instâncias opositivas que

permitem a comparação dos poetas em suas escolhas formais e temáticas, bem como nas

implicações destas. Priorizamos esses pontos de contato pela possibilidade de

constituição de uma linha que conceda ao capítulo uma certa linearidade.

Page 44: quatro poetas quatro cidades

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II.1 Constrição e flanêrie

Uma cidade que não permite caminhar

não é também uma cidade que nega uma

morada para a mente? Podemos estar nos

dirigindo, literalmente dirigindo-nos, para a

loucura simplesmente por não cuidar dessa

necessidade humana fundamental de caminhar.

(HILLMAN, 1993 p.53)

O contato entre sujeito e cidade poderia, conforme dissemos, ser visto como a

configuração do equilíbrio entre uma subjetividade se expandindo e/ou retraindo e o

ambiente linguístico urbano que a cerca. Diferentes configurações poderiam gerar

imagens de um sujeito em expansão, multiplicado pelos choques e sensações próprios

da urbe moderna, ou limitado em um número restrito de experiências viciadas. Nesse

sentido, o ambiente pode apresentar diferentes índices de constrição, seja pela clausura

física, seja por mecanismos de controle e condicionamento.

Escolas, hospitais, prisões, todos mecanismos disciplinares clássicos analisados

por Foucault em seu Vigiar e punir (FOUCAULT, 1987) poderiam ser descritos como

espaços onde a equação se encontra desbalanceada; a ordem se mostra forte demais

privando as possibilidades do sujeito de se estender para além do espaço ao qual é

designado dentro de uma ordem reguladora pré-concebida. Tais espaços parecem se

moldar à semelhança de uma máquina, norteados por conceitos como funcionalismo e

eficiência, e buscam imprimir esse mesmo tipo de universo simbólico aos que se

encontram em seus espaços.

Não seria uma extrapolação ver todas as formas de organização do espaço

segundo um traçado específico como formas de imprimir uma função, ou de moldar um

horizonte previsível de manifestação das pulsões humanas. Um projeto de organização

sempre atravessa os mesmos mecanismos analisados por Foucault: o esquadrinhamento,

a matriz onde cada coisa pertence a um lugar específico e deve, ali, desempenhar um

papel, bem como um mecanismo de controle onde o que não cumpre seu papel

designado recebe a taxação de “fora do lugar”, e sofre, por tal, sansões específicas

(FOCAULT, 1987 p.130-136).

Page 45: quatro poetas quatro cidades

45

Por trazer o planejamento do espaço na macroescala de uma cidade, temos em

Brasília um território único para explorar essa determinação de um projeto urbano sobre

a atividade humana. Baseado numa profunda racionalização do espaço, poderíamos até

mesmo traçar paralelos entre passagens nas quais Foucault identifica elementos comuns

aos mecanismos disciplinares como o quadriculamento, e a localização imediata dos

corpos – “espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos

individuais e estabelecem ligações operatórias, marcam lugares e indicam valores”

(FOUCAULT, 1987 p.132) - e trechos de escritos de Le Corbusier conceituando o ideal

que acabou por erigir Brasília “cada função sua deve ocupar uma área especializada,

atendendo a quatro grandes funções: habitar, trabalhar, locomover-se, cultivar o corpo e

o espirito” (APUD FURIATI, 2007 p.27).

Esse paralelo entre a diagramação do espaço em Brasília e a estrutura setorizada

de um grande mecanismo disciplinar é largamente aproveitado pela poesia de Nicolas

Behr. O poeta parece reler o projeto do Plano Piloto como um desequilíbrio na dialética

cristal e chama, ironizando o predomínio da racionalização na estrutura da cidade.

Encontramos em sua obra uma espécie de constrição, trazida não pelo estreitamento

espacial, mas sim por uma ordem rígida que se ampara nos espaços abertos e no livre

fluxo por caminhos preestabelecidos para sufocar o ir e vir propriamente dito, tal qual

nos adianta Bachelard em seu A poética do espaço, alertando sobre a claustrofobia

possível nos espaços abertos (BACHELARD, 2008 p.223-234).

A contraposição com essa “ordem eficiente” se dá, naturalmente como uma

tentativa de “re-balancear” os dois corpos, pois, como define Furiati: “Fechado em si

mesmo pelo modelo da cidade, o poema capta o movimento de expansão do “eu” que

quer se libertar” (FURIATI, 2007 p.29). A busca por uma fuga, por um interstício que

permita ao sujeito ir além da função que lhe é atribuída em um específico setor se

mostra como uma marca perene na poesia de Nicolas:

Não consigo

sair destas palavras:

setor comercial sul

em que banco eu pago

pra sair do

setor comercial sul?

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em quantas prestações

eu saio do

setor comercial sul?

você quer 30%

do meu salário

pra me livrar do

setor comercial sul?

dois litros do meu sangue

todos os dias

pra me tirar do

setor comercial sul?

pra sair do

setor comercial sul

eu faço qualquer negócio

só não vendo a alma

(BEHR, 2007 p.64)

Ressaltamos no poema, a tentativa desastrada de fuga, não do setor comercial sul

enquanto espaço físico, mas da própria ordem setorizada, isto é, da designação de papéis

eficientes dispostos por uma ordem racional, talvez o aspecto mais foucaultiano no

projeto de Brasília. Nicolas lança mão de alternativas sacrificiais que lhe paguem a

fuga; porém, aí o intuito se mostra ineficaz, pois as alternativas todas remetem ao

panteão de símbolos burocráticos que constituem como que uma metonímia de Brasília:

taxas de banco, prestações, impostos, porcentagens do salario, e até a extrapolação

máxima de um pagamento em seu próprio sangue, refletem uma realidade de pagamento

de taxas que já está entranhada e que é parte da mesma ordem setorizante, econômica e

burocrática da qual se tenta escapar.

É interessante ressaltar, nas últimas três estrofes o crescendo final, partindo de

um sacrifício corporal, em sangue, e esgotando-se no nível anímico, instância ainda

preservada no embate com a cidade. Essa irrupção final de uma instância anímica como

salvaguarda que parece ainda distante do vocabulário burocrático, parece reconhecer a

alma como elemento que se opõe “naturalmente” à arquitetura da capital.

Page 47: quatro poetas quatro cidades

47

James Hillman, em Cidade e alma (HILLMAN, 1993), aponta a influência da

arquitetura das cidades modernas na configuração da psique, mostrando como o

planejamento do espaço se manifesta também nas imagens pelas quais a psique

reconhece as mais diversas experiências humanas. Hillman aponta, nesse sentido, para

uma série de ancoragens imagéticas possíveis, providas pela cidade, para a construção

da imagem de alma. Ressaltamos de seu levantamento as imagens de profundidade,

geralmente construídas a partir de matizes, níveis e diferentes estratos da estrutura de

circulação: “As ruelas da cidade, enquanto lugar da profundidade, são a parte obscura

da cidade, o mistério da cidade, o coração” (HILLMAN, 1993 p.39).

É interessante, nesse sentido que Brasília se mostra não apenas como uma cidade

que aponta um descompasso entre o corpo humano e o corpo urbano, mas também

como uma cidade composta apenas de superfície; não permitindo nenhuma imagem de

profundidade:

o traço equivocado do arquiteto

é superfície

papel ofício é superfície

a superfície da catedral

é superfície

grama também é superfície

a solidão da superquadra

é superfície

o volume do bloco é superfície

o lago do paranoá, mesmo seco,

é superfície

Brasília é superficial

( BEHR, 2009 p. 89)

Brasília não possui em sua arquitetura qualquer imagem razoável para a

profundidade. Mesmo em objetos que trariam por sua estrutura geométrica uma noção

de terceira dimensão, a arquitetura se reveste de uma priorização da perfeição das

formas pelas suas superfícies. É interessante ressaltar o quanto os blocos e as

superquadras, estruturas arquitetônicas que se opõem à rua, aparecem no lugar desta

como sua alternativa apenas superficial.

Page 48: quatro poetas quatro cidades

48

A morte da rua é um objetivo manifesto na arquitetura de Brasília. Banindo a rua

e o espaço de trânsito pedestre (relegado a uma atividade obsoleta frente à autopista), a

capital sufoca diversas possibilidades de uma identificação anímica com sua estrutura

(voltaremos a esse ponto em seguida), relegando as imagens de alma (como na poesia

de Nicolas) a uma dimensão de profundo isolamento.

No que tange a dimensão corporal, a intervenção da arquitetura na experiência

cotidiana parece ainda maior. Em sua excepcionalidade de autopistas, eixos e primazia

do deslocamento automotivo, Brasília inibe – pelo menos em sua arquitetura oficial – o

contato corporal entre os transeuntes. A morte da rua é lida assim pela poesia de Nicolas

como uma frustração corporal (e diversas vezes especificamente erótica) de um desejo

de contato com a cidade:

bicos de seios

apontam a direção

do monumento na

cidade plana

sem seios

sem desejos

(BEHR, 2004 p.40)

Brasília, por seu aspecto cristalino, não parece oferecer alternativas de contato

corporal, de forma que o ímpeto erótico na poesia de Nicolas Behr se mostra como um

desejo frustrado, como uma pulsão própria à chama que não encontra espaço possível na

capital cristalina. Essa inibição do erotismo pela arquitetura geométrica e superficial

aparece ainda na erotização que encontra na sobreposição do corpo feminino com o

corpo urbano, uma forma de dar vazão ao desejo:

naquela noite

suzana estava mais w3

do que nunca

toda eixosa

cheia de L2

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suzana,

vai ser superquadra

assim lá na minha cama

(BEHR, 2007 p.76)

Nicolas erotiza a cidade ao conferir-lhe outro corpo, substituindo os adjetivos

usuais pelas imagens clássicas da cidade – nomes de autopistas, superquadras etc. -

revestindo-as assim de carga erótica. É interessante como a sobreposição da cidade e do

feminino se dá numa imagem que mantém ainda o desejo não realizado. Mesmo quando

projetada num outro corpo, a arquitetura de Brasília ainda é ícone da frustração erótica e

da irrealização do contato corporal.

A relação entre corpo e alma de Brasília pode ser, portanto, lida a partir de um

duplo viés na poesia de Nicolas Behr: de um lado, a cidade é puramente corporal na

medida em que não oferece imagens para uma identificação anímica, e do outro,

Brasília frustra o contato corporal e a pulsão erótica, mantendo-se como uma cidade

infértil ou castrada: “Brasília / tal qual foi concebida // sem pecado original” (BEHR,

2004 p.6).

Cabe ressaltar que na dupla possibilidade de leitura entre corpo e alma, a morte

da rua – sintetizada nas autopistas, superquadras e blocos residenciais - está sempre no

centro da questão. James Hillman aponta, nesse sentido, além da importância das ruelas

para a identificação anímica, sua importância para a experiência corporal da cidade a

partir do contato e do choque entre sujeitos em seu ir e vir:

“Se a cidade não tem lugares para pausas, como é possível o encontro?

Passear, comer, falar fofocar. Esses lugares onde podemos fofocar são

incrivelmente importantes na vida da cidade. [...] Também precisamos de

lugares para o corpo. Lugares onde os corpos possam se ver uns aos outros,

encontrar-se, tocar-se, [...] Isso enfatiza a relação do corpo com a vida diária

da cidade, levando nosso corpo físico para a cidade.” (HILLMAN, 1993

p.41)

A centralidade da rua na construção das imagens corporais e anímicas é tanta

que, a partir da otimização do fluxo dos carros nas autopistas, Nicolas flagra Brasília

Page 50: quatro poetas quatro cidades

50

como uma espécie de não-cidade, por não configurar uma zona possível de encontro de

pessoas:

eixos que se cruzam

pessoas que não se encontram

(BEHR, 2007 p.89)

A justaposição dos dois versos traz um paralelismo antitético entre o encontro

dos eixos como uma marca fundadora da cidade5 e o isolamento das pessoas em fluxo

pelas autopistas. O poema não focaliza uma cena específica em seus dois períodos

nominais, mas constata uma tendência geral ao retraimento do contato humano como

consequência do trânsito exclusivo para os automóveis. Podemos ainda perceber que a

escolha cuidadosa do vocabulário abre uma nova possibilidade de sentido, pois se

tomarmos a acepção coloquial do verbo cruzar, que indica uma aproximação efêmera,

essa se opõe à acepção de encontrar, que resguarda um demorar-se impróprio ao trânsito

(cabe aqui retomarmos a interrogação “Se a cidade não tem lugares para pausas, como é

possível o encontro?” de Hillman). Nesse sentido, é como se o cruzamento dos eixos

inaugurasse o único gesto possível ao sujeito em trânsito em Brasília, que é cruzar com

muitos, mas não encontrar, de fato, ninguém.

O impasse da morte da rua se mostra ainda mais patente se compararmos o

retrato feito por Nicolas, com o que encontramos na poesia de Caio Meira, para o qual o

ambiente que se oferece é o do Rio de Janeiro caótico, cuja malha urbana se assemelha

a um acúmulo de cidades soterradas nas diversas reformas urbanas ao longo de quatro

séculos.

“Fachadas correm por minhas pernas, no ritmo do sangue batido

no passo,

contenho a colisão, o encontrão do ombro com o dia,

começo um arrastão no meu pulso,

sotaques fremem na curva da bacia, sedução e apetite para a mão

(MEIRA, 1998 p.25)

5 Em diversos outros poemas Nicolas ressalta (em releitura ao Relatório do plano piloto de Brasília)

como o cruzamento dos eixos constitui um marco zero, ou uma tentativa de princípio místico para a

cidade: “Brasília nasceu / de um gesto primário / dois eixos se cruzando / ou seja o próprio sinal da cruz //

como quem pede bênção / ou perdão” (BEHR 2007, p.56)

Page 51: quatro poetas quatro cidades

51

Não apenas na contraposição óbvia entre a abundância de choques na cidade de

um e o isolamento na de outro, mas a própria escolha pelo foco no pedestre parece

tributária de objetivos específicos e antagônicos: se em Caio a estética pedestre aparece

como uma forma de preservar o que para este é a real experiência da cidade - o choque e

a troca-, em Behr essa escolha se justifica pelo desprezo para com uma cidade planejada

para matar esse espaço. A opção pelo olhar pedestre na poesia de Caio é, dessa forma,

convergente com a experiência cotidiana da cidade, ao contrário da poesia de Nicolas,

na qual, conforme nos aponta Gilda Maria Queiroz Furiati, o que se verifica é uma

recusa “em replicar a maquete do plano piloto” (FIRUATI, 2007, p.34).

O que parece ainda estar no centro da oposição entre os poetas é a releitura da

experiência fundadora da flânerie. Presente já nos estudos pioneiros de Benjamim sobre

Baudelaire (BENJAMIM 1989 p.44-52), esta parece ser um marco ainda central para a

poesia dos dois poetas, motivo pelo qual a impossibilidade de sua experiência acarreta

configurações de uma não-cidade.

Nesse sentido, a cidade de Caio não poderia ser mais distante da de Nicolas; a

constrição provocada pelo espaço urbano não é verificável como decorrente de um

planejamento do traçado das ruas se contrapondo ao contato humano, a cidade é um

outro corpo tão volúvel quanto o do sujeito. O contato entre sujeito e cidade ainda é

marcado por uma tensão, mas não encontramos o mesmo desequilíbrio observado em

Brasília; na poesia de Caio o embate corporal é antes uma renegociação na qual sujeito

e cidade estão constantemente se expandindo e retraindo um em função do outro.

2

Não sei mais por que rua crescer

se me alongo no engenho do pavimento ou no esquivo do beco

se demoro destrezas à luz do dia ou me turvo em canhestro

vacilo entre surdinas, entre portas e janelas, precipitados do sangue

e da tinta de jornais

ladeiras galgam e declinam meu olho, túneis correm e recuam de

meus pés

em minha roupa, feita de colisão e embaraço, a marca hasteada da

batalha: desenvoltura no asfalto. (MEIRA, 1998 p.55)

Page 52: quatro poetas quatro cidades

52

O corpo enquanto zona de superfície e contato com o urbano aparece, em Caio,

como uma zona sem fronteiras definidas. É a partir do choque e da sensação que o

corpo se alonga e se percebe. A realidade corporal só é conferida a partir de um dado

sensível, que se dá, sempre, a partir da cidade e no limite com esta. O corpo do poeta e o

da cidade não podem, dessa forma, ser pensados separadamente a partir do momento em

que, para a possibilidade de percepção da urbe, um contato corporal já tenha que ter se

dado. Ambos só existem em um jogo relacional e dinâmico, como possibilidades de

individualização mais ou menos expansiva de um mesmo contato.

Essa troca entre corpo e cidade é precisamente o desejo corporal obsessivo que

se mostra presente no revestimento erótico da cidade em Nicolas Behr, desejo este que

nunca é concretizado graças à ausência de uma zona de choque corporal. A morte da rua

se dá como marca de um desejo corporal sem possibilidade de satisfação. É sintomática,

nesse sentido, a marcante presença do corpo que encontramos em sua poesia quando se

projeta para além do horizonte de Brasília; em sua poesia naturalista - ou dendrofílica -

e na memorialista, quando se remete à infância em Diamantino.6 Se ampliamos nosso

olhar para sua obra fora da obsessão central sobre a capital, Nicolas se revela como um

poeta marcadamente corporal, fato que faz do desejo frustrado pela cidade um ponto

ainda mais importante.

É possível ainda lermos a oposição da poesia urbana de Caio Meira e Nicolas

Behr a partir da contraposição da experiência específica do contato com a rua através de

uma revisitação da experiência da flânerie. Em Caio a experiência é de uma

corporalidade máxima, na qual a conjunção entre corpo e cidade se dá num sentido no

qual a urbe vivifica e dinamiza os limites do corpo, amplia-o ou constringe a partir do

tato. Em Nicolas, por outro lado, temos uma experiência anti-corporal, onde a falta de

contato físico com a cidade tomada enquanto choque faz do sujeito uma espécie de

corpo frustrado, buscando uma experiência numa cidade que não a abriga e encontrando

apenas a possibilidade da contemplação distante dessa ordem cristalina.

6 É interessante observar como os dois temas se põem também como resistência à ordem de Brasília, pelo

diálogo que travam com essa. Seja no resgate infantil da vivência em Diamantino, seja na evocação da

vegetação do serrado, a aparição de imagens corporais, por contraste, corrobora com a fantasmagoria de

sua ausência em Brasília.

Page 53: quatro poetas quatro cidades

53

II.2 Corpo sensível

De manhã, meu fígado gela a calçada;

a noite prossegue mordendo meu pulmão de granito

(MEIRA, 2008 p.65)

Se Brasília frustra o contato corporal dos seus moradores, cabe ainda

ressaltarmos as especificidades provenientes do processo pelo qual o corpo se descobre

sensível na sua convivência. A reincidência da superficialidade, da arquitetura e das

formas, trazem em si uma predominância do aspecto visual na cidade de Brasília que

nos dá um ponto de partida interessante para intuirmos uma relação entre a visão, como

uma experiência fundadora da tradição ocidental, e o processo de planejamento urbano

como uma tentativa radical de reduzir a cidade a quadros funcionais idealizados.

A esse respeito, Marshall McLuhan nos aponta a relação entre a soberania da

racionalidade e a naturalização do código escrito como uma extensão do corpo humano,

processo pelo qual a predominância do aspecto visual desencadeia uma hegemonia do

linear e causal como estruturas intrínsecas ao próprio pensamento.

Em Os meios são as massa-gens (MCLUHAN, FIORE, 1969), McLuhan e Fiore

apontam o quanto a escrita influenciou a formação do pensamento racional como nós o

conhecemos. Nesse sentido, vale atentar para o contínuo de racionalização decorrente

da internalização do código escrito apontado pelo autor:

A pena de ganso pôs fim à palestra. Ela aboliu o mistério, produziu a

arquitetura e as cidades, trouxe estradas, exércitos e a burocracia. Era a

metáfora básica com que começava o ciclo da civilização, o passo das trevas

para a luz da mente. A mão que enchia a página de um pergaminho construía

uma cidade. (MCLUHAN, FIORE, 1969 p.76)

Cabe ressaltar que o recorte feito por McLuhan da cidade é especificamente o

que nessa é uma continuação do pensamento lógico-tipográfico. Os choques

inesperados, rotas absurdas e ruídos ineficazes não estão, naturalmente, ligados com

Page 54: quatro poetas quatro cidades

54

esse traçado planejado da cidade, pois constituem exatamente o que, pelo planejamento

e otimização, pretende-se controlar.

A predominância visual como eixo de organização se alinha, assim, com tudo o

que na cidade identificamos com o cristal7, segundo a imagem de Renato Cordeiro

Gomes, e por tal, quanto maior o caráter cristalino da cidade, mais ela tende a trazer as

marcas de uma cultura visual e mais tende a recriar e realimentar apenas essa

experiência.

É sintomático, nesse sentido, a experiência do choque ser inibida em Brasília,

conforme vimos, não apenas pela falta de contato corporal com a cidade, mas também

pelo próprio caráter de objetivação inerente à ordem visual, que, diferentemente da

experiência tátil, sempre instaura (e depende de) uma distância mínima entre objeto e

observador. Não faltam, nesse sentido, ocorrências na poesia de Nicolas Behr que

comprovam a predominância de verbos visuais para a apresentação da cidade: “me

lembrei quando vi Brasília lá de cima”, “o sr. Já nos mostrou os blocos, as quadras, os

eixos, palácios...”, “senhores, essa cidade é uma aula de geometria”, etc. Porém a

experienciação da cidade se dá predominantemente pela visão mesmo quando ela não é

apresentada por verbos visuais, pois a natureza das imagens prioriza as formas e

macroestruturas, o olhar se baseia sempre num distanciamento a partir do qual a cidade

parece com uma grande maquete de singular arquitetura.8

A visão, assim, como principal via de acesso e produtora de imagens da cidade

(mesmo quando seus signos não são reconhecidos), é índice de um desequilíbrio

sensorial que está na base da cidade, e que é frequentemente denunciado por Nicolas:

A cidade é isso mesmo

que você está vendo

mesmo que você

não esteja vendo nada

(BEHR, 2007 p.82)

7 Ainda sobre os conceitos de Renato Cordeiro Gomes, é interessante observar como a sua metáfora da

cidade como um palimpsesto guarda estreito diálogo com o trecho citado de McLuhan. Porém, naquele

toda produção de sentido se inscreve como código na cidade, e por ora, nos interessa a distinção sensorial

na representação dos dois poetas e sua relação com a soberania do aspecto visual e tipográfico. 8 Vale ainda ressaltar que o predomínio visual alia-se ainda à frustração do contato tátil na constituição de

uma perspectiva erótica-visual. A cidade estimula a excitação visual, mas não sacia corporalmente o

desejo, mantendo a experiência corporal restrita à contemplação.

Page 55: quatro poetas quatro cidades

55

A descoberta sensorial da cidade parece sempre partir da ordem visual

legitimada pela arquitetura, motivo pelo qual Nicolas, em diversas ocasiões, busca

alternativas para redescobrir Brasília a partir de outras experiências. O poeta aproxima-

se assim de uma espécie de autonegação tipográfica por reconhecer na escrita as

mesmas raízes tradicionais de uma cultura letrada e visual. O canal comunicativo

literário parece assim inadequado, e efetua-se um diálogo com a tradição oral como uma

contraposição subversiva, presente em releituras de chavões, lugares comuns e quebras

de paradigmas típicos da fala.

Os principais aspectos creditados, dessa forma, ao paradigma marginal, tomado

como um repúdio às poéticas canônicas numa aproximação com a oralidade e a

exclamação cotidiana, podem ser lidos, na poesia de Nicolas Behr, como um índice de

contraposição à arquitetura visual de Brasília, através de uma polarização sensorial. A

busca pela cidade descobre, assim, na fala corrente um substrato linguístico que subjaz à

ordem imposta pela arquitetura e encontra a matéria-prima para subversão e

ridicularização dessa mesma ordem:

paiê,

que monumento é aquele?

Aquele é o monumento

ao monumento desconhecido

(BEHR, 2007 p.71)

O poema flagra o instante de diálogo coloquial entre pai e filho no qual a cidade

é trazida como um traço visual distante evocado pela fala. O monumento, conforme nos

diz Renato Cordeiro Gomes, é “a mais completa autorrepresentação da cidade e sua

história” (GOMES, 2008 p.28), e se reveste aqui com todo o caráter visual

predominante em Brasília: é alheio ao fluxo do dia-a-dia, e nos é apresentado como um

retrato da ordem burocrática que se realimenta e autocelebra, mas não produz,

efetivamente, nada. Esse mecanismo circular é denunciado e exposto ao seu ridículo

pela fala cotidiana que assume o primeiro plano em resposta à predominância visual da

cidade, e faz de Brasília um distante e inútil monumento a si mesma:

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56

Arte

pra arquiteto ver

poema

pra analfabeto ler

(BEHR, 2009 p. 64)

É interessante como, nesse poema, Nicolas apresenta os dois polos da tensão

estética e sensorial que estão em jogo em sua leitura da cidade. De um lado, temos a

arquitetura de Brasília, como um templo intocável que se oferece apenas à visão; e do

outro, o poema que se quer tão colado à oralidade que possa ser lido até pelos que não

leem. É interessante como Nicolas não deixa margens para uma relação semântica

inequívoca entre as duas estrofes, elas mantêm apenas o paralelismo sintático como

traço de identificação, mas nenhum conectivo que defina uma relação semântica

específica, mantendo a tensão entre os dois códigos em suspenso.

Os dois códigos tentam se reler e ressignificar numa espécie de confronto

discursivo onde o “código oficial” é relido pela fala, e o clandestino é agora escrito.

Dessa forma o próprio retrato sensorial da cidade se dá como zona de resistência e

confronto. Nicolas busca resgatar nos interstícios possíveis, estímulos que permitam um

retrato diferente, que fuja da cristalinidade da arquitetura oficial e tenha por base a

galhofa da fala popular.

Se a cidade em Nicolas pode ser tomada como um somatório de estímulos que se

situa num eixo auditivo-visual de resistência a uma ordem estabelecida, é marcante sua

contraposição com a poesia de Caio, no que esta mantém de polivalência sensitiva e

impossibilidade de definição de qualquer eixo sensorial no qual se mova.

Diferente da descoberta sensorial como opositiva à ordem da cidade, em Caio as

imagens buscam dissolver oposições, fazendo do corpo um aparato sensível anterior às

categorizações e integrado ao fluxo da cidade. As imagens não se definem em um

código ou sentido específico, mas parecem impressionar o corpo como um todo:

4.

Concebo um corpo de acolhimento

abrigo açodado, hospedeiro de praxes e uso

Page 57: quatro poetas quatro cidades

57

cadeira gelada de bar, calçamento de mármore gratuito: no couro e

na carne espigados contra a grade, os ângulos da habitação

sobre meus ossos, dentro do quarto rangendo abusado, o peso

improrrogável, a pronúncia copiosa e ampla das máscaras

de pernas abertas, retomo a viagem (MEIRA, 1998 p.59)

Os verbos de “apresentação” das imagens em Caio dificilmente se esgotam em

um aspecto sensorial apenas; a cidade não se ergue sobre uma ordem específica. A

partir do contato sem mediações entre os dois corpos, as imagens parecem lançar suas

bases sobre uma sinestesia que desconhece os sentidos como categorizáveis, agindo

antes dessa distinção e recebendo o discurso urbano de corpo inteiro.

De mesma natureza dessa imprecisão sinestésica das imagens é a dificuldade de

delimitação de órgãos sensoriais pela cidade. O corpo parece dilacerado em fragmentos

de vísceras e sistemas, todos experimentando a cidade através de verbos pouco usuais

para tal, como “metabolizo rostos e teorias” (MEIRA, 2003 p.15), “do calor que vibra

esses ossos” (MEIRA, 2003 p.19), ou “na carquilha do rosto, o dia rugoso convém de

corpo inteiro: costelas e cotovelos, pentelhos e mamilos” (MEIRA, 1998 p.61). Há uma

desautorização do sensível em seu sentido habitual, da pele como detentora única do

tato, e do olho como único órgão visual.

É interessante observar ainda sobre a nomeação dos órgão sensoriais o quanto o

vocabulário de Caio não se ampara nunca em abstrações ou escolhas simples, conforme

nos aponta Alberto Pucheu, em seu ensaio “O aventureiro do oco” (PUCHEU, 2013

p.222). Caio articula fragmentos corporais muito específicos, redescobrindo e

reconferindo materialidade a órgãos pouco usuais por seu prosaísmo, como o pâncreas

ectópico ou a esofagite de refluxo.

Se em Nicolas identificamos um confronto entre os sentidos como análogo ao

confronto entre os discursos oficial e subversivo, em Caio não encontramos, pelo

mesmo princípio, nenhum intento opositivo entre os discursos do poeta e da cidade; o

código utilizado por ambos é semelhante, o sujeito se insere no discurso da cidade numa

aproximação infinita, como podemos observar em “Discurso afásico no centro da

cidade”:

essas perturbações chegam por todos os lados e meios

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58

a garganta sempre interrompida por alguma pancada, os olhos abalroados nas

calçadas, as vitrines interpondo luminosidade e temor

não, nenhuma imagem poderá reter, e permanece desarticulado sob a língua,

e se subtrai das fotografias ou vaza de qualquer disposição solidária

padeço dessa incerteza primitiva, deambulando da suspensão de qualquer

afirmação à remitência da frase dos populares oferecendo suas bugigangas

por que efeito ótico, por que alteração mórbida, por que afecção sonora essas

disparidades me conformam

eu poderia não ter um olho, ser banguela, maneta, capengar, mijar sangue, ter

estigmas pelo corpo

poderia comer vidro, iludir passantes, fazer embaixadas ou simplesmente

afixar num pedaço de papelão os garranchos da minha biografia

por vezes a coisa é simples e basta querer, basta anunciar, basta um gesto ou

produzir qualquer sinal compreensível para ser inserido na vigência ou no

refluxo da multidão

mas não, os rumores são logo abafados, dependurados do lado de fora das

bancas de jornal, apregoados em panfletos que não sobrevivem por mais de

dez passos

e a indignação comentada nas filas dos caixas, o suplício dos pedintes, a

reverberação do calor corporal ou apenas a deriva transeunte da tarde de

segunda-feira, todo clamor encontra, em meio a seu mutismo, sua

consumação

(MEIRA, 2003 p.29-31)

No poema acima, encontramos uma cena clássica da flanêrie; o sujeito

perambula pela cidade sem direção, recolhendo fragmentos de discursos, e tentando,

inutilmente, isolá-los do fluxo contínuo de vozes. Aparece assim, como característica

intrínseca a esse discurso, a afasia, quadro clínico definido como “enfraquecimento ou

perda quase total do poder de captação, manipulação e por vezes de expressão de

palavras como símbolos de pensamentos” (HOUAISS, 2008). O sujeito não consegue

isolar os fragmentos, ou mesmo capturá-los numa imagem estável, eles estão sempre

escapando, assim como estão os próprios versos do poema, que frequentemente

constituem períodos que não possuem uma estrutura que feche consigo mesma: faltam

verbos complementos, sujeitos. É interessante como não se define se o discurso afásico

pertence à cidade ou é o resultado da tentativa de tradução poética dela, há uma

Page 59: quatro poetas quatro cidades

59

continuidade entre os discursos (aí incluso o do próprio poema) e não podemos

identificar definitivamente qual dos dois (ou se os dois) é afásico.

É interessante como, diferente de Nicolas, o que parece mais caro a Caio é a

anulação da distinção entre os diferentes discursos; todos parecem tomados numa

mesma corrente contínua de mutismo e consumação. A impossibilidade de identificação

de um eixo unidirecional para se aproximar do discurso da cidade produz imagens que

não possuem demarcações claras tanto sensorialmente quanto entre si, nesse sentido a

sinestesia já abordada, corrobora com o caráter imersivo inerente ao sujeito na poesia de

Caio Meira.

Há também, na escrita de Nicolas, uma experiência de semelhante imersão, onde

o vocabulário se afasta do universo simbólico burocrático dos clipes, grampeadores e

ofícios, e reelege uma nova série de símbolos de ordem mais popular, como o pastel, a

escada rolante e o caldo de cana. Ao tratar da rodoviária de Brasília, o contato com a

cidade não se pauta mais pela consolidação da distância, mas permite uma imersão na

experiência corporal completa:

Desço aos infernos

pelas escadas rolantes

da rodoviária de Brasília

meu corpo boiando

no óleo que ferve

um pedaço do teu coração

num pastel de carne

(BEHR, 2007 p.65)

É interessante como o local escolhido para a subversão da ordem visual, a

rodoviária, constitui um local onde, tal qual sugerido por Hillman, temos uma noção de

profundidade (trata-se de uma plataforma que se situa abaixo do cruzamento do eixão

com o eixo monumental), e ao mesmo tempo, contato entre pessoas. Se podemos situar

a plataforma rodoviária de Brasília como um espaço do trânsito cabe ressaltar que ele é

marcado antes pelos itinerários caóticos do que pelo planejamento das autopistas; não

encontramos também, em sua mistura, o mesmo elemento de setorização verificada no

restante da cidade.

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60

É sintomático que não encontremos nos poemas sobre a rodoviária verbos de

apresentação visual. Ela não se encontra num eixo sensorial tão bem definido quanto no

embate com a cidade, mas sim numa espécie de eixo mítico, lembrando uma espécie de

inferno cristão, em contraposição com o celestial império cristalino de Brasília

(novamente a localização no subsolo colabora com a releitura de Nicolas). A escolha de

Nicolas, nesse sentido, é clara; o que interessa é precisamente a afecção, o contato, a

recuperação de um espaço onde a cidade pode ser vivida para além da contemplação

monumental. “minha plataforma política/ é a plataforma da rodoviária” (BEHR, 2007

p.67).

A caracterização da cidade a partir da descoberta da sensibilidade apresenta

assim características muito diferentes em Caio e Nicolas. Neste último a percepção da

cidade é polarizada por um confronto entre dois códigos, assumindo uma combatividade

e uma recusa de inserção na ordem arquitetônica da cidade, que só é contornada num

espaço específico, onde a oposição à ordem cristalina permite uma imersão que não se

pauta por uma oposição. Em Caio, os estímulos da cidade antes de mais nada tem uma

tendência subvertora dos limites entre os sentidos e os corpos, de forma que a

descoberta do corpo torna-se uma forma de constatação da inserção deste num mesmo

fluxo discursivo presente em toda a cidade

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61

II.3 Hipersensibilidade e dilaceramento

ademais, à proa de qualquer profusão,

viver implica esquecer a maior parte dos rastros

e concentrar-se no balanço imediato do corpo

(MEIRA, 2003 p.32)

A construção de imagens que fujam da experiência costumeira da cidade parece

uma preocupação central em quase todos os poetas que abordamos. Tal inquietação

pode ser lida como uma tentativa de subverter o lugar-comum da vivência da cidade,

tomado como uma espécie de amortecimento dos choques cotidianos que impede que a

urbe se torne um turbilhão de imagens desconexas.

Benjamim ressalta, em seus estudos sobre Baudelaire, o quanto a concepção de

uma vivência urbana depende necessariamente dessa “barreira sensorial” que filtra a

maior parte dos estímulos, fazendo da experiência diária da cidade antes uma

experiência acomodada do que uma sucessão alucinada de choques e traumas

(BENJAMIM 1989 p.108-110). A mesma leitura é reforçada por Richard Sennett, que

ressalta o quanto paralelamente ao crescimento do montante de informações com que o

cidadão entra em contato diariamente, desenvolve-se também uma capacidade de

desligamento dessa informação, processo visível no seu levantamento sobre o trânsito

pela cidade: “à medida que as vias são cada vez mais expressas e bem sinalizadas, o

motorista precisa cada vez menos se dar conta das pessoas e das construções para

prosseguir no seu movimento.” (SENNETT, 2010 p.17). A conclusão de Sennett é

muito semelhante à de Benjamim “o corpo se move de maneira passiva, anestesiado no

espaço, para destinos estabelecidos em uma geografia urbana fragmentada e

descontínua” (Ibidem.).

A gênese da maior parte das imagens tratadas pelos poetas se dá justamente a

partir de um deslocamento do lugar costumeiro da experiência, uma tentativa de

subverter o olhar já acostumado e trazer para o primeiro plano o que antes era barrado

pela percepção. Não basta, nesse sentido, se descobrir sensível, é necessário um

deslocamento da sensação anestesiada pela vivência consolidada.

Page 62: quatro poetas quatro cidades

62

Tal estratégia é mapeada de forma semelhante em um ensaio sobre a temática da

violência urbana na literatura brasileira, onde Karl Erik Schollhamer aponta o quanto a

hipersensibilidade parece um caminho natural de uma reconciliação com a sensação, ou

de uma metodologia para um deslocamento do estado anestesiado do qual se anseia

escapar:

É na relação entre sujeito, como corpo sensível, e a cidade como realidade

estética, que um confronto e uma simbiose novos se concretizam. Na

experiência crua e, frequentemente, penosa do urbano, o autor

contemporâneo percebe uma redenção possível da cidade enquanto realidade

humana. Nesta perspectiva encontramos, curiosamente, um resíduo

romântico num sonho latente de reconciliação com uma realidade alienada da

cidade através de um ‘mergulho’ naquilo que ela oferece de mais sensível

(SCHOLLHAMER, 2000 p.252)

O mergulho hipersensível guia-se por uma busca numa experiência mais

autêntica da cidade, como uma clara contramão do desligamento do espaço analisado

por Sennett. Lida nesse sentido, a trilogia do transporte urbano de Adriano Espínola se

mostra como um exemplo claro de deslocamento da vivência dessensibilizada. Adriano

escolhe como ponto de partida a experiência corriqueira do trânsito em um transporte

público pela cidade; tirando-o de sua vivência costumeira e buscando reter todos os

elementos que passam, impressões e visões que, numa corrida normal, passariam

despercebidas. A viagem pela cidade torna-se, assim, uma viagem de desaprendizado do

olhar, que se quer olhando tudo a primeira vez.

Engolir aos bocados o espaço da avenida e da vida,

com uma fome e uma tara subjetiva e insaciável.

Saltar com todos os sentidos

sobre o corpo ardente do instante!

-Excitação sadomasoquista de tudo,

esfregando-se em cio no meu peito aos pinotes!

(ESPÍNOLA, 1996 p.60)

Page 63: quatro poetas quatro cidades

63

Há, dessa forma, um esforço muito claro em absorver as imagens tal qual elas

impressionam a retina, prendendo-se mais nas impressões distorcidas pela velocidade

do que nas formas exatas que se poderia intuir que formaram o retrato. Nesse sentido, o

recorte visual feito por Adriano é semelhante ao de uma fotografia de longa exposição,

na qual o obturador foi deixado aberto por um longo período de tempo, enquanto se

percorria o seu trajeto pela cidade. A longa exposição tende a ressaltar as luzes mais

fortes e distorcer-lhes as formas por conta do movimento, gerando borrões de luz

característicos que acompanham o sentido do movimento feito pelo observador9. Esse

procedimento está no cerne de imagens como “Fortaleza, avenida de neon”, na qual a

distorção toma o primeiro plano nesse efeito especial tão comum na fotografia urbana.

Ressaltamos ainda como a longa exposição é basicamente uma forma de aproveitar por

mais tempo a sensibilidade do filme (ou sensor); pô-la sujeita aos estímulos luminosos

com menos barreiras, como uma justa analogia para a hipersensibilidade já citada.

O efeito da vertigem, ponto central na análise da poesia urbana de Adriano

Espínola, poderia ser lido, portanto, num paralelo com o paradigma central da

fotografia, exaustivamente explorado por Barthes em A câmera clara, e que se

resumiria como uma reprodução mecânica do que nunca mais se repetirá (BARTHES,

1984 p.13). O mecanicismo da reprodução assemelha-se à tentativa de não filtrar os

estímulos, e a fugacidade da cena é reforçada diversas vezes pelo desencadeamento das

imagens, tornado mais uma sobreposição caótica - “Tudo isso – solto – gestos

desgarrados do tempo.” (ESPÍNOLA, 1996 p.31) - do que uma progressão imagética

propriamente dita

A abertura dos sentidos às invasões da cidade não se dá, porém, como uma

anulação utópica do medium num retrato perfeito; o poeta não se anula em favor de um

falacioso retrato de uma realidade puramente objetiva. A fotografia de Adriano não é

documental, e interessa a ela retratar a distorção do sentido, de forma que não se busca

um retrato dos exatos elementos onde estavam, mas sim da impressão que causaram em

seu trânsito pelo campo visual. Encontramos, então, uma operação ambivalente em sua

“captura” imagética que não se define claramente entre a percepção, o reconhecimento e

a rememoração, de forma que a cidade passa a evocar traços mnemônicos diversos,

9Esta é a segunda analogia fotográfica que fazemos com a poesia de Adriano; e cabe ressaltar o quanto,

no cerne das duas está a evidente primazia da distorção imediata do fenômeno. Seja na macroestrutura do

poema, tomado como uma sucessão de fotografias urbanas desconexas, seja na construção interna das

imagens deformadas, interessa mais a Adriano a distorção das fotografias do que a fidelidade ao modelo.

Page 64: quatro poetas quatro cidades

64

lembranças da experiência subjetiva na cidade (conforme já citamos em seu flashback

de Nova Iorque), como uma matéria caótica que parece brotar à revelia da vontade do

poeta; uma camada discursiva já colada às impressões visuais mais cruas.

Cenas específicas, fragmentos de memória encontram-se pulverizados pela

cidade, como um material discursivo que parece ser recolhido pelo olhar por meio da

mesma operação que recolhe o neon ou os passantes. A corrida do carro ou do metrô

acaba descobrindo ao mesmo tempo o espaço urbano e uma subjetividade que está nele

incrustrada de forma inseparável:

Atravessar na memória as ruas por onde andei,

passageiro existencial sempre a 20 espantos e 50 centavos de mágoa

a bandeirada.

Na próxima à esquerda, dobrar há 15 anos

na 5ª. Avenida, subindo para o Madison Square Garden.

(ESPÍNOLA, 1996 p.37)

A pulverização dos traços mnemônicos pela paisagem da cidade, que, por essa

operação passa a não poder mais ser mapeada entre Fortaleza, Rio, e Nova Iorque, faz

do espaço urbano uma espécie de cartografia mnemônica do sujeito. Todo o material

que poderíamos identificar como uma irrupção subjetiva é colocado lado-a-lado com os

demais estímulos e recebe o mesmo tipo de tratamento fotográfico de desconexão e

distorção.

A tentativa de captar a cidade de todas as formas possíveis encontra então esse

impasse no qual o fotógrafo se vê revelado junto, incrustrado, na paisagem que retratou.

A hipersensibilização parece ser incompatível com o estabelecimento de uma barreira

ou um contorno que destaque o sujeito do cenário urbano, fazendo do retrato do outro

um processo também de reconhecimento, conforme já antecipado por Karl Erick, “a

extrema individuação da vivência urbana acaba no seu oposto, no apocalipse do sujeito

enquanto tal.” (SCHOLLAMER, 2000 p.255).

O tópico da dilaceração do sujeito no cenário urbano, um centro temático

relativamente comum na poesia que se volta para a cidade, é então revisitado por

Adriano de forma muito particular, através de um jogo de imagens emparelhadas numa

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ciranda fotográfica na qual fragmentos da cidade e do sujeito são deixados para trás tão

rápido quanto surgem, deixando visível apenas os rastros distorcidos de seus

movimentos. O reconhecimento no retrato da cidade apaga a identidade do indivíduo

como um traço opositivo ao ambiente, borra seus contornos e faz do sujeito apenas uma

continuidade dos conflitos da cidade.

A perda desse caráter opositivo e, em especial, o apagamento das fronteiras entre

sujeito e cidade, possibilitam um diálogo com uma tendência à diluição na urbe que já

observamos na poesia de Caio Meira. Apesar de muito distante da vertigem

automobilística e da sobreposição vertiginosa de imagens que verificamos em Adriano,

Caio vai operar um dilaceramento dos limites estáveis para o sujeito semelhante.

Apesar de se tratar também de um deslocamento da sensação usual da cidade, a

poesia de Caio não se comporta da mesma maneira da de Adriano no que tange a

hipersensibilidade. Ela passa pelo reconhecimento do olhar na forma de lidar com a

cidade, mas não abre os sentidos como resposta, impressionando-se com as velocidades

e luzes. Interessa para Caio uma experiência que não se paute simplesmente pela

anulação das barreiras (dado que elas são parte importante do relacionamento com a

cidade); mas sim por uma desautorização de sua legitimidade. Parece urgente para o

poeta exercer uma experiência profunda de porosidade, como fica claro em entrevista

cedida a Rodrigo de Souza Leão em 1996, na qual Caio sublinha:

“trata-se da experiência do corpo enquanto matéria e superfície em contato

com outras matérias e superfícies, explorando as misturas decorrentes, os

avizinhamentos, o embaralhamento de limites e fronteiras. Há sobretudo uma

tentativa de equivocar o limite que separa o corpo da cidade, ampliar esse

limite, recuá-lo, e principalmente estar em contato com essa região”

(MEIRA, 2013 p.164)

No lugar do encadeamento vertiginoso das imagens, é através de uma atenção

quase meditativa para com cada uma delas que Caio vai buscar a dispersão. Não se trata

apenas de sentir os estímulos barrados, mas de desautomatizar a sensação, manter-se em

contato com a zona equívoca entre corpo e cidade para, através de suas superfícies,

confundi-los. Se, visualmente, Adriano parece encadear horizontalmente as imagens,

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66

Caio parece operar centripetamente uma mesma imagem em espiral, indo do contato

entre superfícies até uma zona de completa indistinção entre sujeito e cidade.

Há um esforço claro rumo à indistinção completa, que parece acontecer em

alguns poemas, quase sempre puxando um fade-out final, no qual o sujeito deita-se

sobre a cidade, diluindo-se numa espécie de maximização do tato. Essa estratégia fica

muito clara no último poema do último bloco de Corpo Solo, no qual a voz parece

esvair-se aos poucos, conforme o sujeito dispersa-se, deitado na cidade. É interessante

observar como o nome do bloco no qual esse poema se insere, “Prosa do chão”, abre um

leque de possíveis interpretações da preposição “de”; podemos falar de uma prosa que é

posse do chão, que foi enunciada pelo chão, por alguém próximo ao chão, ou ainda que

nos diz algo a respeito do chão. Em todas as possibilidades temos um deslocamento do

lugar da enunciação numa aproximação para com o chão, evocando o “impronunciável

gosto da proximidade” (MEIRA, 1998 p.53) e ampliando a zona de indistinção com a

cidade, de forma que a voz parta menos de um poeta quanto do próprio intervalo entre

sujeito e cidade:

Nunca estive tão próximo do meu olho

nunca estive tão dentro da minha boca

nem tão perto das unhas

junto aos ossos

aos dentes

terminada a distância

findo o contorno

um pouco campo, um pouco tronco, um pouco

muro: tornado lugar, deito-me no chão

meu movimento, sem casa nem porta, ânimo

fundo, dissolve-se sólido entre pedras e

entulho, vizinhos em esquecimento

sem rua, sem verbo

indefinindo

(MEIRA, 1998, p.69)

É interessante observar que o poema inicia com a proximidade e a legitimidade

da posse do próprio corpo, afastando logo de início a oposição entre corpo e cidade; a

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67

experiência urbana seria tão mais próxima quanto mais o corpo é próprio, tais instâncias

seriam mais reais quanto mais indistintas.

Há um estreito diálogo com os estudos de Gaston Bachelard, acerca da dialética

interior-exterior em seu A poética do espaço, no qual o autor defende que a ideia de um

interior distinto do exterior apoia-se sobre um “geometrismo reforçado em que os

limites constituem barreiras” (BACHELARD, 2008 p.215). O rompimento com esse

geometrismo parece ser o alvo específico de Caio, que faz do final de seu livro um

instante no qual é findo o contorno, como que afastando a “facilidade geométrica” e

abolindo o traço distintivo entre dentro e fora. Caio parece apontar seus versos na

mesma direção do estudo de Bachelard, sendo possível ler em alguns parágrafos deste

uma mesma concepção de espaço da qual Caio fala em diversos pontos de sua entrevista

a Rodrigo de Souza Leão:

“O ser é sucessivamente condensação que se dispersa explodindo e dispersão

que reflui para um centro. O exterior e o interior são ambos íntimos; estão

sempre prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade. Se há uma superfície-

limite entre tal interior e tal exterior, essa superfície é dolorosa dos dois

lados.” (BACHELARD, 2008 p.221)

À pergunta de Bachelard - “Nesse drama da geometria íntima, onde devemos

habitar?”(ibidem) – Caio responde de forma enfática, fazendo do limite móvel, dessa

“zona equívoca” onde os limites se desconhecem, morada inquestionável de seus

versos: “toda a poesia é móvel! Faz-se poesia levando algo a seu extremo, ao ponto

máximo do seu ser, mas também à região desconhecida, fronteiriça, onde se dá a

separação com outros corpos, outra matéria, outro espírito.”(MEIRA, 2013 p.165).

Fica claro, nesse sentido, que não se trata de uma constatação simples da

artificialidade das barreiras ou de uma recusa ao geometrismo que as sustenta, pois não

parece haver um asilo estável fora da pátria geométrica. Se tudo flutua, a morada da

poesia é onde se dá o movimento. Dessa forma, a diluição operada por Caio se dá como

uma ação em curso, como um intuito flagrado no instante em que se realiza, conforme

indica o último verso do poema - “indefinindo” -, uma anomalia gramatical que força

uma flexão imprópria ao vocábulo “indefinido”, como que pondo a indefinição em

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movimento, tirando-a da estabilidade e pondo sua ação em curso. Há uma fuga do

categorizável, seja do espaço geométrico ou do gramatical num mesmo movimento.

A habitação desse espaço do equívoco é tão radical na poesia de Caio que em

certos poemas (de forma geral, a partir de Coisas que o primeiro cachorro na rua pode

dizer) não podemos mais defini-la como uma atenção meditativa de um sujeito que se

esforça para diluir-se na cidade. Em “Close to the bone”, por exemplo, o ponto de

partida já é a indistinção, de forma que a desautorização das barreiras passa a ser o

próprio modus operandi da vida na metrópole, e a individualização, uma tentativa pífia

de fuga, fadada ao fracasso.

Inverte-se assim o jogo da dispersão (como é próprio dela), e a permeabilidade

torna-se uma nova morada, que questiona e desacredita todos os espaços seguros e

estáveis:

Acordo e durmo debaixo da pele, sobre a crosta da terra, com camadas de

cidade enterradas

movimento películas e superfícies entre outras películas e superfícies quando

saio à rua, ou quando me encosto no parapeito desta janela que se despede da

noite

acordo e durmo entre membranas impalpáveis, com enzimas, autoregulações

e imponderáveis combustões

metabolizo rostos e teorias em meio à confusão de lembranças

despropositadas, entre secreções sebáceas, tubos, alvéolos e histórias

acumuladas

por vezes sinto esse torvelinho dentro da barriga, e não sei se é fome ou

lembrança de fome, ou se são movimentos espontâneos da voracidade do

vazio

nem sei que tipo de limite representa a pele, se me separa da madrugada ou

me une a ela

se o frio que sinto nesse vidro me pertence ou sou eu que pertenço ao frio ou

ao vidro, ou se o ponto em que tudo se entrelaça surge apenas para

desaparecer

sei apenas que sou permeável a esta manhã que desaba seus vermelhos por

prédios e morros, por muros e árvores. (MEIRA, 2003 p.15)

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Caio parece reconhecer a indistinção não como uma experiência atípica, mas sim

como a única possível. Toda estabilidade possível parece assentada sobre uma aceitação

de uma configuração específica, mas que não seria, a rigor, mais legítima que nenhuma

outra.

Cabe ressaltar ainda o quanto a mobilidade parece reaproximar os dois poetas: se

para Adriano ela é visível principalmente através das imagens que assaltam um táxi em

trânsito, em Caio ela se dá na recusa de qualquer espaço estável que perpassa não

apenas o trânsito automotivo ou pedestre, mas até mesmo a contemplação do nascer do

sol. A mobilidade torna-se assim uma instabilidade perene e incontornável – tal qual na

concepção de Bachelard - que esta na base tanto da experiência do fluxo pela autopista

como do processo de dinamização da percepção habitual ou ainda do dilaceramento do

sujeito no dia a dia da cidade.

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II.4 - Do um aos vários

Reúno toda minha coragem e pergunto a ele se seus

escritos são ou não ficção, se toda aquela erótica

narrada é fato ou invenção. Ele me responde que

nem uma coisa nem outra, que minha pergunta

não tem qualquer sentido. (MEIRA, 2013 p.41)

A observada dispersão do sujeito não tarda em incorrer em uma desestabilização

centrífuga das demais instâncias que asseguram uma solidez ao poema. A partir do

momento em que a radicalização do dilaceramento subjetivo faz das individualizações

um processo arbitrário, estruturas formais que apontam, no poema, para a unicidade e a

estabilidade de uma voz, parecem inadequadas. É necessário, portanto, uma certa

elasticidade que permita incorporar os microacidentes diários em sua própria dicção, e

não reduzidos em uma única voz estável que pareceria uma cristalização incompatível

com o dinamismo da chama.

É notável, nesse sentido, observarmos a tensão patente na trilogia de Adriano

Espínola entre a inspiração épica – e o decorrente comprometimento com a unicidade da

obra – e a fidelidade ao caos dos microacidentes dispersos pela cidade. Essa dupla

negociação pode ser lida no contraste entre a continuidade do deslocamento espacial e a

multiplicidade das digressões lírico-subjetivas, ou ainda no misto de louvação e ironia a

que está sujeito o espaço urbano.

É, porém, pela natureza vertiginosa de seu poema - ameaçando os limites da

subjetividade em trânsito - que nos voltamos para a tensão entre a unicidade da obra e a

multiplicidade das formas observável na continuidade da voz narrativa. A voz em

primeira pessoa segue na obra de Adriano Espínola como uma improvável linha que

amarra todos os acidentes e variações de velocidade num contínuo. O narrador, nesse

sentido, deixa transparecer sem receio suas marcas autorreferencias, como em “Eu, o

real fundador do cinismo na literatura brasileira” (ESPÍNOLA, 2002 p.18), ou “eu,

condômino do precário, aceno para o mundo” (ESPÍNOLA 1996 p.70); e apesar de os

três poemas estarem embebidos em instabilidades e incertezas, não faz parte de sua

viagem o questionamento da legitimidade do seu próprio lugar no discurso; sua voz abre

e fecha todos os poemas.

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A tensão entre esse narrador seguro e a proximidade com o caos discursivo da

cidade reaparece quando Adriano lança mão de diversas modulações, passando por

ritmos, vocabulários, métricas e estrofações muito diferentes. O poeta busca, assim,

incorporar a dissonância da cidade na diversidade modulatória da sua voz, mantendo

sua poesia elástica e mutável, mas ainda, de certa forma, singular. Tal estratégia aparece

a partir de “Táxi”, em alternância de versificação e vocabulário como “Exu tiriri /

trabalhador da encruzilhada / toma conta/ e presta conta / ao romper da madrugada // De

repente um grito estala feito um chicote / -hêêêêiiiiii! –“ (ESPÍNOLA, 1996 p.33).

É em “Metrô”, porém, que essas modulações chegam ao seu ápice, onde vemos

um soneto heroico irromper no meio dos versos livres e caóticos, espalhados pelas

páginas. Cantigas, cançonetas, trechos de versos de outros poetas ou ainda trechos de

músicas compõem uma série de dicções possíveis que se abre conforme seja maior ou

menor a urgência expressiva do poeta, fazendo a voz assumir praticamente qualquer

molde que precise.

Há ainda uma outra multiplicidade modulatória explorada por Adriano, no que

diz respeito à possibilidade de incorporação de outras personas. Essa opção é

largamente explorada em “Metrô”, onde o narrador parece se projetar em outros

caminhos paralelos, convidado a abandonar a segurança da primeira pessoa, estável, e

desvendar-se no outro, às vezes sem demarcar um personagem preciso, como em:

Logo me leva, multiplicado,

na imaginação para alguns recantos insondáveis

do universo ur

bano.

Ali, na Vila Kosmos, por exemplo,

onde janelas de pálpebras baixas espiam indiferentes

duas mulheres que se cruzam,

uma lata de lixo solitária,

um cão que fareja um pedaço de sol num canto

e um ônibus que avança...

Todos subitamente apanhados pela rede da manhã

e do esquecimento. (ESÍNOLA, 1996 p.115-116)

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Em outros pontos a projeção se torna mais radical por incorporar um dinamismo

muito semelhante ao aplicado às imagens. As máscaras vão se alternando sem um

aprofundamento significativo, pois o que interessa é o ritmo vertiginoso encadeado por

elas e não suas especificidades:

Enquanto traço coberto de glória

a carne macia de uma holandesa

- para não mais sentir saudade dela -

a 100 florins a hora na Damstraat!

Eu, guerreiro tapuia,

Vou destrinchando o tempo e o corpo do outro

saqueando o (meu) passado

e perseguindo o esquívoco sentido

(ESPÍNOLA, 1996 p.94)

A velocidade com que os personagens mais diversos vão se alternando, sempre

com um caráter de busca, segue um modelo semelhante ao das invasões mnemônicas de

“Táxi”, pois parecem surgir como convites para ter o verso mais colado ainda à

multiplicidade de ecos cidade. O mote “quero a todos e todos lugares” – clara inspiração

na estética futurista de Álvaro de Campos -, dá a tônica dessa viagem que passa por

outros países, outras línguas e outras companhias, mantendo sempre, por conta da

vertigem do fluxo de tais ecos, uma sucessão de “últimos instantes”, quase sempre

vividos numa intensidade alucinada, e finalizados por uma sucessão de despedidas que

nunca levam muitos versos para tornarem-se novos encontros.

É preciso observar, porém, como apesar das modulações mais diversas, dos

empréstimos que toma de outros ritmos e vozes, a poesia de Adriano sempre retorna à

voz original do poeta-narrador Há uma tendência para o retorno da voz original

semelhante ao resgate de uma linha condutora, não apenas ao final do poema, mas após

cada longo trecho de modulação. Essa tendência faz a poesia de Adriano apresentar um

comportamento semelhante ao de uma música tonal, não se perdendo nos labirintos

sonoros da cidade e conseguindo manter uma estrutura tensiva que tende ainda para

uma conclusão resolutiva.

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Dessa forma, as modulações são preparadas e emolduradas pelo discurso da

epopeia, de forma que a voz do narrador retorna mais forte após seus excursos, pois

apresenta esse caminho duplo que se aproxima infinitamente rumo aos ecos que o

interpelam, sem jamais se perder completamente neles. As mudanças e projeções em

outras vozes e itinerários se colocam, assim, eficientemente a serviço dessa voz do

poeta que retorna com toda a carga de dispersão rearranjada e incorporada em seu

próprio discurso.

Esse ideal de união dos discursos através da tessitura épica, prevalecendo

sempre a obra ao somatório dos acidentes episódicos encontra-se presente em toda a

trilogia de Adriano, e é possivelmente um ponto central que opõe a poesia dele à de

Caio Meira. Há, neste último, um aparente esforço para privilegiar o episódico da voz

sobre a obra, transformando os últimos blocos de Coisas que o primeiro cachorro na

rua pode dizer e Romance numa espécie de “anti-épica”, na medida em que

gradativamente o que poderia soar como modulação torna-se tônica de um discurso

totalmente autônomo. Não parece possível, nesse sentido, um retorno a uma voz de

origem do discurso, pois não há uma sensação de afastamento nas modulações, mas sim

de uma flutuação sem direcionamento.

Os rastros dessa estratégia aparecem desde Coisas que o primeiro cachorro na

rua pode dizer, no qual Caio parece renegociar os limites entre corpo e cidade num

crescendo até a possibilidade de experimentação do outro como próprio. Diferentemente

de Adriano, porém, ele não retorna à sua voz original e fecha o livro com as palavras

finais de Emily Dickinson, Marilyn Monroe e Billie Holiday. Não há moldura

discursiva que encerre e oriente as vozes para um fim, pelo contrário, elas parecem

apenas abrir-se a novos sentidos com o final da obra, impossibilitando a vontade de ler,

na sua obra, uma única linha de coerência que se resolva.

Porém é em seu último livro, Romance, que o que chamamos de “anti-épica” de

Caio chega ao seu máximo, especificamente no bloco “Entre outros: fotografias”;

constituído por 23 fragmentos, sempre durando uma cena apenas, e todos em primeira

pessoa. O tipo de vocabulário presente a cada voz é repetidamente negado ao fim de

cada fragmento em favor de um novo, de forma que não há uma continuidade plausível,

apenas uma sucessão de cenas, impossíveis de serem reduzidas a um traço comum;

sexo, época, atitude, todos os elementos que compõem cada uma das cenas se alternam

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74

sem manter uma salvaguarda na repetição de algum aspecto, com exceção apenas da

voz em primeira pessoa e do anonimato.

A imprecisão das identidades e a flutuação já são antecipadas nos primeiros

versos do primeiro fragmento, “Minha vida, a partir desse ponto, se torna / tão tênue

quanto o fio da minha espada. / Essa sentença, apesar de não ser prévia / não poderá ser

postergada: ato derradeiro, do / qual não há retrocesso.” (MEIRA, 2013 p.29). As vozes

se sucedem sem uma linha de sentido que as amarre, ou uma voz que as enquadre,

mantendo uma flutuação característica muito diferente da alternância de vozes na poesia

de Adriano.

Todos esses desencontros, toda essa vontade de assimetria, fazem de “Entre

outros: fotografias” uma estrutura que não fecha consigo mesma; um polígono

impossível de vinte e três faces, assimétrico por qualquer ângulo que se veja. É

interessante observar como essa desarmonia inibe a possibilidade de polarização dos

fragmentos num sentido único; a absoluta contradição faz “Entre outros: fotografias”

não apresentar nenhuma característica “como um todo”, apenas a incoerência e

contradição discursivas.

É nesse bloco que a “anti-épica” chega ao seu máximo, pela falta de um centro

tonal para o qual retornar, a obra de Caio coloca a multiplicidade de choques em

primeiro plano com tal clareza que prescinde da construção de um significado

específico que organize e dê sentido à pluralidade dos discursos da cidade. “Entre

outros” mantém, nesse sentido, uma estética que guarda algo de um atonalismo em sua

projeção personativa, estilo musical que se esforça no sentido de uma

desterritorialização, a partir da qual não seja possível retornar a um ponto inicial

(WISNIK 1989 p. 176). Não há uma relação tensiva fixa entre as vozes das outras

personas e um suposto tom, mas sim uma flutuação perene entre diferentes vozes que se

alternam sem a urgência de uma conclusão.

Se diversas vezes na poesia de Adriano encontramos uma voz que constata

cinicamente o niilismo resultante do embate diário com a cidade, por exemplo; ao

abdicar de uma voz que o represente, Caio traz esse embate sem resolução para o

primeiro plano, mantendo-o dinâmico e inconcluso. Vale ressaltar que a opção pela voz

em primeira pessoa serve a objetivos opostos nos dois poetas: na obra de Adriano, ela é

um elemento de agrupamento das modulações numa continuidade narrativa

autocentrada, enquanto na obra de Caio, ela confere autonomia aos múltiplos discursos

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contraditórios. Encontramos no último, inclusive, diversos fragmentos que permitiriam

a leitura de um titereiro por trás de todos os discursos de “Entre outros: fotografias”,

como, por exemplo, no fragmento VII:

Estou há quase dois anos em silêncio. Escuto e pronuncio vozes que não me

dizem respeito. Essa mudez estomacal comprime minhas entranhas e se

transforma no som mais franco que pode emitir meu corpo. Para tentar ser

mais genuíno e ao mesmo tempo interromper um circuito de dependências,

passo a tesoura nos cartões de credito, ando a esmo pelo bairro, me deito de

costas no chão duro. Intimamente, porem, sei que não sou senão mais um

espectador dessa agonia sem nenhum deus. (MEIRA, 2013, p.14)

Como que numa referencia suspeita, Caio nos apresenta um personagem que se

coloca como porta voz de discursos que não lhe dizem respeito: há a possível confissão

de um narrador que pode estar por trás de todas as cenas, como uma voz disfarçada,

arquitetando o teatro de vozes que nos põe a vista. Essa possibilidade, porém, se não é

inteiramente desmentida, é posta em questão por outras diversas explicações possíveis;

vários outros fragmentos servem de “explicação” da obra, e fazem de qualquer

esclarecimento apenas uma possibilidade duvidosa, como no fragmento XIII: “pergunto

a ele se seus escritos são ou não ficção, se toda aquela erótica narrada é fato ou

invenção. Ele me responde que nem uma coisa nem outra, que minha pergunta não tem

qualquer sentido” (MEIRA, 2013 p.41).

Dessa forma, Caio não nega, mas também não dá crédito às possíveis

explicações, como que se negando a fechar qualquer possibilidade de sentido.

Ressaltamos, ainda, como a cena de deitar-se no chão duro é semelhante às observadas

nos poemas que analisamos no cap. II.3, em especial em “Prosa do chão”, como se o

sujeito de Corpo solo, agora figurasse como uma das vozes possíveis nesse labirinto,

naturalmente sem privilégio hierárquico sobre elas.

Diversos outros fragmentos parecem trazer elementos recorrentes e personas

literárias de seus outros livros, todos em igual flutuação des-hierarquizada. Caio parece

desautorizar toda e qualquer fala sem utilizar, para isso, uma voz que as desautorize

literalmente. Nesse sentido, não se trata tanto de representar um projeto urbano

específico, mas sim de refutar qualquer projeto que se queira mais autêntico que outro,

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um novo ponto de oposição entre os dois poetas, posto que não há dúvidas quanto ao

comprometimento de Adriano com uma concepção específica da cidade pautada pela

velocidade automotiva própria das metrópoles do séc. XX.

A tonalidade característica do discurso de Adriano pode ser lida, assim, como

uma espécie de comprometimento com um projeto específico de cidade, sua linearidade

tensiva borra os limites entre sujeito e cidade, mas o faz quanto a uma configuração

precisa da cidade. Nesse sentido, Caio não busca uma urbe, mas sim uma flutuação de

alternativas urbanas anacrônicas, como diversos temas que não resolvam numa

tonalidade única. Não por acaso encontramos mais uma referência suspeita em seu

“Entre outros: fotografias”, que elucida qual o tipo de música que a obra de Caio parece

buscar:

XV.

Os móveis não rangem mais, as tábuas nunca

mais vão estalar: o mundo se tornou

irremediavelmente surdo. Tento segurar

um lápis entre os dentes, na vã esperança

de transmitir ao corpo estas últimas

vibrações. Deixa estar, vou ser guiado agora

pelo meu plexo solar, esse pequeno

cérebro dentro de meu estômago.

Nunca mais as senhoras perfumadas

da sociedade, nunca mais os cavalheiros de

bigodes torcidos! Vou agarrar o destino

pela garganta: terei que ir além de minha

própria tragédia, para que minha música

vá além da música.

(MEIRA, 2013 p.43)

A multiplicidade de personas sem o respaldo de uma voz específica que dê

sentido aos discursos traz pro primeiro plano os próprios impasses da representação

entre corpo e cidade. As configurações que dependeriam da constituição de um sujeito e

uma cidade específica aparecem nos fragmentos em sua pluralidade, permitindo não um

recorte ou um retrato da cidade, mas sim uma presentificação da tensão dinâmica

inerente a todo recorte possível.

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A cidade passa por um processo análogo ao eclipse do sujeito por conta da

extrema individualização proposto por Karl Erik. Trata-se, de certa forma, da recusa em

estabelecer um recorte específico da urbe, justapondo diversas vozes possíveis da cidade

– ampliada em seu horizonte espacio-temporal -, de maneira a manter as tensões

inerentes ao conflito dos discursos extensíveis a qualquer espaço urbano.

Lida juntamente com a dispersão corporal no ambiente urbano, a flutuação dos

diferentes discursos faz corpo e cidade serem ambos instâncias negociáveis de um

mesmo discurso inconcluso. A permanente ressignificação e trânsito, que passa a não

reconhecer mais dois lados separados, mas apenas instâncias negociáveis, reconhece a

imensidão sem contornos da cidade (tal qual abordamos no final do cap.1) perpassando

mesmo as diferentes vozes; fazendo do corpo-a-corpo com a cidade um trânsito entre

duas cristalizações possíveis (mas arbitrárias) que não esgotam uma mesma chama.

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III. Discurso e Ruína

Em nossas dificuldades de lidar com uma imagem tão plural e dinâmica como a

da cidade, diversas vezes lançamos mão, sem nos aprofundarmos, de uma analogia

linguística e/ou semiológica. No seu jogo próprio de sintetizar diversas tensões opostas,

pondo-as em convívio numa mesma imagem, a cidade se aproxima muito do próprio

conceito de linguagem. Tal analogia ou mesmo a identificação abre novamente a

imagem da cidade para novas abordagens a partir de um paradigma linguístico.

Essa possibilidade de identificação estava, de certo modo, presente desde a

concepção da cidade enquanto um pacto espacio-temporal específico, ou ainda nas suas

diferentes configurações entre sujeito e cidade, pois são todas essas possibilidades ainda

recortes de uma realidade urbana discursiva. Dessa forma, o limite entre sujeito e

cidade, tão discutido no capítulo anterior, é apenas uma barreira discursiva, bem como é

discursiva a matéria componente das duas instâncias.

Cabe ressaltar que a poesia se torna um locus privilegiado para a representação

da cidade enquanto linguagem por não se comprometer a priori com nenhum discurso

específico e não obedecer a nenhuma exigência funcional. A poesia pode trazer

indiscriminadamente toda uma miríade de vozes que atravessam o cotidiano urbano,

movimentando-se transversalmente, recolhendo fragmentos libertos dos seus objetivos

comunicativos, propagandísticos ou explicativos, sem respeitar necessariamente

nenhuma hierarquia prévia entre eles.

Nos deteremos nesse capítulo, portanto, nas possibilidades de identificação entre

cidade e linguagem, bem como nas implicações desse paralelo a partir da observação de

alguns traços do signo linguístico quando aplicados à cidade, mapeando o

comportamento plural e dinâmico da língua urbana.

Cabe inicialmente situarmos, a partir da concepção da linguagem dos estudos de

Roland Barthes e Mikhail Bakhtin, um paralelo entre a linguagem e o fenômeno urbano,

mostrando como este pode ser lido concretamente como uma corrente discursiva de

diversos atos de fala das mais diversas fontes. Nos voltaremos, nesse sentido, para uma

análise da poesia de Caio Meira, ressaltando o quanto a cidade é indissociável de sua

configuração linguística específica.

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Ainda nesse bloco, cabe ressaltar a figuração da pluralidade dos discursos a

partir de uma analogia com o conceito bakhtiniano de polifonia. Embora Bakhtin o

tenha desenvolvido especificamente para o romance de Dostoievski, é interessante

observar o quanto há uma clara intenção de romper com qualquer hierarquia discursiva

na poesia de Caio, assim como na de Arnaldo Antunes, para quem radicalização e

fragmentação agem mesmo na configuração interior das próprias vozes.

Em seguida nos deteremos no eixo semântico e no processo de significação,

encontrando uma dupla possibilidade de abordagem por parte dos poetas (e dos

críticos): Ora voltando-se para uma predominância da invariância do sistema

linguístico, isto é, da impossibilidade de se escapar de suas regras, transformando a

cidade em um mesmo vocabulário viciado; ora voltando-se para o dinamismo intrínseco

à língua, sua função poética e a possibilidade de dinamizar a todo tempo os

significados. Trata-se de uma configuração linguística semelhante ao impasse que

observamos entre constrição e flânerie no cap. II.

Tratamos, assim, no segundo bloco, essa dupla possibilidade de leitura,

observando inicialmente o paradigma reprodutor do discurso da cidade a partir das

poesias de Caio Meira e Nicolas Behr, fazendo através desse último uma ponte para o

paradigma inovador, e flagrando-o inteiramente concretizado em Arnaldo Antunes,

onde a mobilização da língua se torna uma preocupação central.

Finalmente, cabe nos determos no processo de dinamização do discurso a partir

da experiência específica da poesia urbana de Nicolas Behr. Ressaltamos sua

experiência por se tratar de uma disputa entre discursos muito bem polarizados, e pela

excepcionalidade do discurso de Brasília. Entre Nicolas e a capital há uma tentativa

perene de reapropriação da palavra, onde a sufocante ordem planejada é combatida com

o reconhecimento e a nomeação desta como uma ruína modernista.

A separação dos blocos não respeita a mesma simetria dos dois capítulos

anteriores, de forma que Nicolas fecha nosso estudo sozinho em um capítulo. Cremos,

porém, que ali a questão da ruína está posta como em nenhum outro, e que esta, por sua

natureza de decadência e renascimento, fecha a linearidade entre as instâncias

comparativas proposta no primeiro capítulo.

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80

III. 1 Cidade – Polifonia

O olhar percorre as ruas como se fossem

páginas escritas: a cidade diz tudo

o que você deve pensar, faz você repetir

o discurso, e, enquanto você acredita

estar visitando Tamara, não faz nada

além de registrar os nomes

com os quais ela define a si própria

e todas as suas partes.

(CALVINO, 1995. p.18)

O caráter semiológico da cidade se estende para muito além das analogias. Não

apenas pela caracterização do espaço urbano a partir de um somatório de diferentes

recortes discursivos se interpenetrando; é preciso observar que a cidade possui seus

códigos específicos, bem como seus próprios processos de significação. Cabe ressaltar

que desde o nosso mapeamento inicial da cidade a partir dos estudos de Calvino,

revelando-a como uma imagem complexa que se abre em um sistema de sistemas, essa

era já uma noção comum às tentativas de definições da própria língua por parte dos

linguistas.

A cidade enquanto uma linguagem se apresentaria assim satisfazendo as já

referidas dificuldades de delimitação, dado o caráter dinâmico e plural de ambos os

conceitos. As ressignificações possíveis, a inclusão de novos sistemas e o quase

desaparecimento de outros, se explicariam ainda por uma especialização maior ou

menor dos ambientes linguísticos, conforme as diferentes necessidades históricas.

A identificação (mais do que uma aproximação) da cidade com uma rede

semiológica é ainda sugerida por Eucanaã Ferraz, em seu artigo “Poesia como

semiologia da cidade”. Eucanaã relê a sugestão de Barthes da existência de um grande

sistema semiótico que englobaria todos os outros como seus microssistemas

componentes; propondo o reconhecimento deste como sendo a cidade:

De certo modo, os estudos semiológicos realizam-se como pequenas

gramáticas, analisando segmentos que deixam ver o funcionamento de uma

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81

mecânica mais complexa, mais alta, a do espaço urbano. Mesmo os estudos

que se intitulam como “sobre a cidade” estão voltados para o urbanismo, a

arquitetura, os meios de comunicação de massa ou mesmo a história,

constituindo-se em conhecimentos parciais (FERRAZ, 1995 p. 143)

Dentro desse grande sistema de linguagens, Eucanaã sugere ainda a centralidade

da própria língua, uma mediadora e atribuidora de significados para os demais

elementos componentes. A imbricação dos mais diversos sistemas semiológicos

mediados pela língua nos permite ler a cidade como uma grande rede textual, um

contínuo processo de significação perpassando os mais diversos meios e linguagens.

Se nos voltarmos especificamente para a língua, restringindo o grande sistema

aos seus fenômenos linguísticos, esbarramos na falta de uma concepção da língua como

um fragmento específico de um sistema de linguagens que possa ser identificado com a

própria cidade. Nos deteremos, assim, numa ponte possível entre a releitura de Barthes a

partir de Eucanaã, e os estudos linguísticos de Bakhtin, por partirem estes justamente de

uma concepção mais sociológica e inter-pessoal do que das heranças possíveis do

estruturalismo clássico.

Bakhtin, embora não teorize um grande sistema semiótico, parte da concretude

das relações entre os mais diversos sistemas de conhecimento, e chega, do mesmo modo

que Barthes, à centralidade da língua. A ampliação empreendida pelo filósofo para a

noção da língua busca englobar a psicologia de então, mostrando o quanto a concepção

do sujeito deve ser estendida para o de uma unidade discursiva, e explicada como um

fenômeno linguístico e social de apropriação da palavra:

“A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo

organizado no curso das relações sociais. Os signos são o alimento da

consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua

lógica e suas leis” (BAKHTIN, 2010 p.36).

No decorrer de seu Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin articula assim

uma ponte entre sociologia e psicologia através da filosofia da linguagem, situando

sempre o caráter social da linguagem como ponto de partida (e de chegada) para seu

estudo. Dessa construção, destacaremos especificamente a sua caracterização da língua,

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compreendida como uma corrente de atos de fala, ampliando o foco de seu estudo das

palavras, enquanto abstrações dicionarizadas, para o processo de significação

empreendido por elas. Há, nesse sentido, uma continuidade inerente à língua que

perpassa as estruturas sociais, a constituição do indivíduo e todos os processos de

atribuição de significado:

A língua não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo

evolutivo contínuo. Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser

usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente

quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a

operar. [...] Os sujeitos não ‘adquirem’ sua língua materna; é nela e por meio

dela que ocorre o primeiro despertar da consciência (BAKHTIN, 2010 p.111)

Apesar de estar muito longe das preocupações de Bakhtin, cabe ressaltar que

essa corrente de atos de fala se dá materialmente na cidade, fazendo com que a língua

na qual o sujeito desperta seja, na verdade, um recorte linguístico urbano. Mais do que

isso, a abordagem de Bakhtin ainda mantém em aberto a possibilidade de lermos a

corrente de atos de fala fora de seu código apenas verbal, abrangendo todas as outras

“pequenas gramáticas” semiológicas da cidade10

. Dessa forma o “despertar da

consciência” se daria não apenas a partir dos fragmentos verbais, mas inclusive dos

meios e veículos de que eles se servem, bem como das demais relações semiológicas

possíveis e no que nelas escapa à codificação puramente verbal.

A cidade estaria situada, assim, como esse grande sistema, de “mecânica

complexa”, diferentes meios e línguas que se oferecem enquanto discurso, no qual o

sujeito está necessariamente, desde o nascimento, imerso. É sintomático, nesse sentido,

que Nicolas se diga incapaz de escapar das palavras viciadas de Brasília, ou Adriano

reconheça nas esquinas da cidade o mesmo material componente de si mesmo; pois a

própria possibilidade de individualização se dá sempre em, e a partir do ambiente

urbano.

Cabe ressaltar, nesse sentido, o poema de Caio Meira “Ornitorrinco”, que parece

flagrar especificamente esse instante de identificação discursiva entre sujeito e cidade.

10 Essa leitura é autorizada pelo teórico russo em sua introdução a partir da associação entre signos e a

ideologia, mas não é levada adiante quando ele delimita seu foco de estudo na língua como sistema

semiológico/ideológico por excelência.

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O urbano figura como uma grande corrente de fragmentos de diferentes fontes

discursivas dos quais o sujeito se percebe indissociável:

Ornitorrinco

tem aquela vez que imitei um macaco para arrancar a primeira gargalhada

dos meninos

tem o tiro passional, a quantidade de chumbo na água, as anotações

rabiscadas de madrugada no caderno verde

tem um cara discursando sobre um caixote numa praça de Londres, outro

acaba de afirmar na televisão que tudo é química

tudo é beijo, coxa, intriga, número de telefone esquecidos, sonda orbitando

outros mundos

ou tudo poderia ser geografia, economia, ortodoxia, taxionomia de órgãos

propulsores, um apêndice supurado, configurações cervicais, o mapa da vida

estampado no consultório de um japonês, no centro da cidade

tem todas as aberrações costuradas de modo a parecerem uma obra de arte,

mas que são, sobremaneira, inverossímeis

até agora o destino me tem sido maleável, e junto à mandíbula e ao esporão

junto ao pavilhão auricular a essa altura entorpecido por buzinas e alarmes

contra roubo, junto aos molares, cabem dores lancinantes e o desopilar de

uma gargalhada

cabe tudo o que entra pela janela do olho e se amontoa com as transcrições,

edições de revistas folheadas em sala de espera, diferentes versões de uma

mesma sonata de Beethoven

cabem até os estampidos que ninguém ouviu (a árvore que caiu sozinha no

meio da floresta) e listas intermináveis de tudo que faz mal à vida

um dia, talvez se chegue à conclusão de que a vida faz mal à vida, e só

seremos socorridos por essas coisas de origem remota e misteriosa

esses cachorros equívocos que atravessam cidades e voltam para casa, ou a

coordenação das revoadas de pardais às seis horas da tarde

e demais gestos peculiares de todos, híbridos de tudo e de nada, à proa de

vontades subcutâneas, pormenores do jogo de forças macroeconômicas

(sobredeterminados por uma jogada da bolsa de Cingapura)

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e se decidirem que a vida faz mal à vida e o mundo estiver por um fio (se

digitados os códigos certos), pelo menos deixem-me perpetuar o segredo de

algumas misturas (MEIRA, 2003 p.25)

“Ornitorrinco” lança mão de uma exaustiva parataxe inicial, enumerando

diversos fragmentos discursivos e memórias aparentemente arbitrárias, para os

“costurar” num mesmo sujeito. É interessante observar como dados urbanos,

fragmentos fisiológicos e traços de memória são colocados lado a lado, em pé de

igualdade nessa constituição onde tudo é, em alguma língua, linguagem da cidade. Cabe

ainda ressaltar o quanto esse discurso urbano, em sua pluralidade, é destituído de

qualquer hierarquização, já que os diversos fragmentos se arrogam o poder de dar conta

do mundo, e estão todos em contradição. O cenário discursivo é conflituoso por

excelência e não admite essencializações que legitimem uma verdade única.

A escolha vocabular que Caio faz pelo “costurado” como atividade constituidora

do ornitorrinco não é fortuita. É sabido que o primeiro ornitorrinco levado para a

Europa empalhado para ser classificado pelos cientistas foi considerado uma farsa. Os

cientistas acreditavam que alguém havia costurado um bico de pato num corpo de

castor, tentando pregar uma peça. Após novas observações, cientistas batizaram a

espécie de Ornythorynchus Paradoxus, graças à sua estranheza particular, nome depois

abandonado até chegar ao atual Ornythoryncus anatinus.(WIKIPEDIA, 2012)

É interessante, nesse sentido, que Caio use como metáfora para a constituição do

homem num cenário urbano moderno um animal que levava o paradoxo no próprio

nome, e mesmo hoje é referido como um híbrido entre mamífero, ave e réptil, possuindo

carga genética dessas três classes. É significativo ainda o fato de o ornitorrinco ser

considerado inicialmente uma enganação, emprestando ao sujeito moderno a

contradição inerente à descontinuidade dos discursos que o compõem.

A permanência paradigmática do corpo na poesia de Caio ainda permite a leitura

de alguns dados interessantes no poema quanto ao entrecruzamento entre homem e

ornitorrinco. Vários dos fragmentos corporais enunciados pelo poeta situam

especificamente características evolutivas híbridas dos monotremados, adaptações

radicais que permitiram que a espécie dos ornitorrincos chegasse ao nosso tempo, tais

como a ausência de ouvido externo (apontada pelo pavilhão auricular) e o coquetel

venenoso no esporão. O corpo é relido, dessa forma, fora de concepções puramente

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fisiológicas, mas a partir de seu reconhecimento discursivo paradoxal, gerando

intervalos entre corpo e ornitorrinco, fruto de uma consciência que só se conhece a

partir dos diferentes discursos urbanos.

A “contaminação” por diferentes fragmentos aparece ainda como incontornável

no desfecho do poema, pois se mostra presente mesmo nas alternativas salvacionistas ao

hibridismo do ornitorrinco, através da evidenciação da impureza mesmo nos

aparentemente prototípicos pardais e cachorros11

, trazidos em imagens de pontualidade

e domesticação. Nesse sentido, parece impossível, para a poesia de Caio, escapar à “lei

da contiguidade” (MEIRA, 2003 p.47), de forma que as alternativas essencialistas são

ficções incompatíveis com o reconhecimento da cidade como uma rede dinâmica, em

permanente ressignificação.

Como já dissemos, a poesia de Caio não configura um discurso inequívoco e

cristalino. Todas as possibilidades trazem de volta o caráter plural do discurso urbano,

composto de fragmentos sem qualquer hierarquia ou possibilidade de encerramento

num sentido. Cabe, nesse sentido, nos determos um pouco mais nesse aspecto

polifônico do discurso urbano, trazendo ainda algumas outras figurações possíveis dele.

É novamente a Bakhtin que nos voltamos, e ao seu conceito de romance

polifônico, formulado a partir da obra de Dostoiévski, definível como uma equipolência

entre as vozes narrativas (inclusa aí a do narrador). É claro que, por se tratar de um

conceito pensado especificamente para o romance, não estamos sugerindo a

aplicabilidade precisa a uma estrutura tão diferente quanto a poesia, porém cabe

observar que há um nítido esforço, tanto em Caio quanto em Arnaldo Antunes, que

aponta para a falta de hierarquização das vozes componentes do cenário urbano.

É interessante observar o quanto há uma harmonização natural entre a falta de

hierarquia inerente ao tecido discursivo urbano, e a proposição polifônica de Bakhtin; a

cidade parece servir bem como analogia para o polifônico. De fato, conforme nos

mostra José Miguel Wisnik, a polifonia propriamente dita desenvolveu-se a partir de

uma analogia urbana: “relaciona-se esse novo estilo polifônico com o desenvolvimento

das cidades, ‘com os estímulos combinados dos habitantes dos burgos - os burgueses - e

11 É interessante ainda ressaltar como a escolha de Caio prioriza dois dos animais cuja evolução mais foi

influenciada pela domesticação humana: o passer domesticus, ave com maior distribuição geográfica no

planeta graças a sua fácil convivência com ambientes urbanos; e o canis lupus familiaris, mais antigo

animal domesticado pelo homem.

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os senhores feudais, agora na primazia do poder’, vazando as restrições eclesiásticas.”

(WISNIK, 1989 p.121).

A polifonia parece atravessar “Ornitorrinco” na convivência de diversas vozes se

interpenetrando, mas também pela capacidade de cada uma delas dar conta do real

sozinha “tudo poderia ser geografia, economia, ortodoxia [...]”. É preciso ressaltar,

porém, que o conceito de Bakhtin se assenta sobre uma configuração ainda mais radical

de completa ausência de hierarquia entre todas as instâncias discursivas, e em

“Ornitorrinco” temos ainda uma voz servindo de moldura, isto é, uma instância

discursiva que afirma a multiplicidade de discursos conflituosos que a compõem.

O mesmo não acontece em “Entre Outros”, conforme observamos no capítulo

anterior,12

onde a estrutura, heterogênea e contrastante, não possibilita uma leitura única

ou qualquer sentido privilegiado que consolide uma hierarquização das vozes. As

referências suspeitas, que possibilitariam a leitura de uma única fonte por traz do teatro

de múltiplas vozes, são, conforme dissemos, desautorizadas por serem mutuamente

excludentes, de forma que não há qualquer possibilidade de retorno a uma voz

privilegiada que encerre um sentido. A obra segue aberta e sem um direcionamento

concludente, condições que satisfazem as exigências de nossa analogia com o conceito

de Bakhtin.

Cabe ainda nos determos, à luz do conceito de polifonia de Bakhtin, na obra

Palavra desordem, de Arnaldo Antunes. Nela, Arnaldo não propõe um trabalho

específico com a caligrafia, ou com a sobreposição de diferentes códigos através de

imagens ou fotos; porém, é possivelmente onde a interpenetração de diferentes

discursos vai estar mais próxima da impossibilidade de encerramento de um sentido

inequívoco, e portanto, mais próxima da polifonia bakhtiniana.

Trata-se de uma sucessão de versos soltos, sem uma linha de sentido que os

amarre ou sugira qualquer antecipação tensiva conclusiva. Arnaldo rompe ainda com a

12Cabe ressaltar que já analisamos esse bloco de poemas de Caio à luz de uma analogia musical,

aproximando-o do atonalismo. A nova comparação sob o conceito da polifonia bakhtiniana se deve ao

sentido conferido pelo teórico russo a essa categoria. Lembramos que, musicalmente, a polifonia ainda se

encontra dentro de uma estrutura tonal de resolução hierárquica de tensões (tema da nossa análise

comparativa com Adriano Espínola), e que esse sistema se encontrava em crise contemporaneamente à

produção de Bakhtin. Ambos os eventos (crise do sistema tonal e publicação do livro de Bakhtin) situam-

se nas primeiras duas décadas do séc. XX. Cabe ainda ressaltar a aproximação feita por Wisnik com

relação aos dois sistemas “É possível pensar que a polifonia medieval e renascentistas tem certa

correspondência com a música dodecafônica [uma das formas derivadas do atonal] – ambas

contrapontísticas, uma convergindo para a tonalidade, outra divergindo dela” (WISNIK, 1989 p.184).

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linearidade da leitura, alternando versos na horizontal e na vertical que se deslocam em

ambas as dimensões, de forma que o próprio paradigma ocidental de leitura da esquerda

para a direita e de cima para baixo parece apenas mais uma convenção arbitrária que

não precisa ser necessariamente seguida.

Também não encontramos uma subdivisão dos versos em poemas ou blocos de

sentido e nem ao menos paginação, de forma que as únicas possibilidades de subdivisão

da obra são: ou ela como um todo, ou cada verso separadamente.

(ANTUNES, 2006 p.188/189)

Palavra desordem traz um nível radical de dilaceramento discursivao pois leva o

conceito de polifonia aos seus limites dispensando a própria constituição de vozes

enquanto unidades discretas. Arnaldo incorpora diferentes fragmentos de vozes, entre

eles algumas releituras e inversões de chavões e lugares-comuns da linguagem

coloquial, todos transcritos na mesma fonte tipográfica e sem qualquer juízo de valor

observável em sua disposição ou centralidade na página; como um justo retrato da

ausência de hierarquização entre os fragmentos de discursos no cenário urbano. Cabe

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ressaltar que essa concepção da urbe como um universo caótico de vozes se sobrepondo

foi muito provavelmente o recorte da cidade que serviu como imagem para a própria

polifonia em suas raízes musicais no século XIV.

Por suas estruturas polifônicas – ou atonais - as possibilidades de

reconhecimento de um sentido determinado, tanto em Palavra desordem como em

“Entre outros: fotografias”, sempre incorrem no risco de se tornarem ficcionalizaçôes

arbitrárias. Se em Caio a flutuação se dá numa dinâmica entre fragmentos de vozes

demarcados, é interessante observar a radicalidade da proposta de Arnaldo, onde o nível

de fragmentação atua na estrutura interna dos discursos, não demarcando precisamente

os limites entre as vozes que estão em contato. Não há um eixo tensivo específico por

não haver eixos de leitura inequívocos, apenas a flutuação entre possibilidades de

sentido anteriores à delimitação precisa de um discurso.

É interessante ainda situarmos ambos os poetas no que poderíamos chamar de

um local de representação dessa polifonia. Se para Caio, em “Ornitorrinco”, o lugar de

reconhecimento da contradição e pluralidade dos discursos da cidade é a própria

constituição do sujeito, isto é, a polifonia é observada desde suas marcas no próprio

corpo, quando escreve “Entre outros”, o poeta parece abdicar de um sujeito único que

reconheça em si a multiplicidade discursiva, mas não consegue abrir mão da

corporalidade inerente à sua obra, constituindo, assim, diversas personas alternativas.

Para multiplicar as vozes, Caio precisa multiplicar os sujeitos, mesmo que dentro deles

encontremos ecos dissonantes. É inconcebível, nesse sentido, uma voz sem corpo,

ecoando descarnada. A corporalidade é como que uma pedra angular da poesia de Caio

Meira, mesmo quando seu objetivo é a subversão dos limites do sujeito.

A poesia de Arnaldo, por outro lado, preocupa-se antes com uma materialidade

do signo pensada conforme os parâmetros de Bakhtin, do que com a corporalidade

reduzida a uma dimensão humana. Isso possibilita que a sua polifonia se construa a

partir da sobreposição “pura” de vozes, de fragmentos de discurso tomados fora da

materialização corporal específica de um sujeito. Nesse sentido, é interessante pensar o

título da dissertação de Jorge Fernando Barbosa do Amaral Arnaldo Antunes – o corpo

da palavra como um viés de leitura que reaproxima os dois poetas por meio da

corporalidade. Caio articula a polifonia atribuindo um corpo autônomo para as

diferentes vozes que ecoam no cenário urbano, enquanto Arnaldo reconhece na mesma

dispersão de ecos o que neles próprios é sua corporalidade enquanto discurso.

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89

III.2 Nomeação

Nossa linguagem pode ser considerada como

uma velha cidade: uma rede de ruelas e

praças, casas novas e velhas, e casas

construídas em diferentes épocas; e isto tudo

cercado por uma quantidade de novos

subúrbios com ruas retas e regulares

e com casas uniformes

(WITTGENSTEIN, 1999 p.32)

Além da polifonia inerente ao discurso urbano no que tange a sua pluralidade,

cabe ainda nos determos em outro aspecto próprio da linguagem da cidade,

considerando seu dinamismo e permanente ressignificação. Trata-se, nesse sentido, de

uma espécie de corte vertical no discurso da cidade, mapeado a partir da palavra e do

processo constante de nomeação, onde nos deparamos sempre com a dialética entre

inovação e conservadorismo, utilizando signos reconhecíveis tais como palavras, letras

e formas para criar relações diferentes de significação.

Esta última parece apresentar sempre esse caráter duplo, afirmando, através de

um código compartilhado e relativamente estável, relações novas de sentido,

associações improváveis e contextos linguísticos novos. Há, nesse sentido, uma

possibilidade dupla de abordagem do processo: pelo seu viés conservador, isto é, pela

reincidência de um mesmo código, legitimado em diferentes fragmentos e fontes; ou

pelo seu viés inovador, a partir do qual a poesia parece gerar novas alternativas ao

processo normativo da nomeação. É preciso destacar, porém, que as duas abordagens

são parte de um mesmo processo dialético, onde as duas possibilidades constituem mais

uma diferença de priorização operada diferentemente por cada um dos poetas do que de

duas características excludentes.

É novamente no diálogo entre Barthes e Bakhtin que vamos encontrar um ponto

de partida para a concepção linguística que ancore essa dupla possibilidade de

abordagem do processo de significação. Em nossa leitura do teórico russo, concebemos

a cidade como um ambiente linguístico inescapável, a partir da qual a própria noção da

individualização pode ser gestada sempre a partir das palavras. Cabe ressaltar, porém,

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90

que a cidade perdura como um código específico, oferecendo algumas restritas

“encarnações materiais em signos”, e não outras.

É nesse ponto que nos voltamos a Barthes13

, a seu já clássico Aula, no qual

defende que “a língua, como desempenho de toda linguagem não é reacionária, nem

progressista; ela é fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”

(BARTHES, 2007 p.14). Barthes reconhece que a limitação das possibilidades de

significação projeta a língua para além do paradigma reacionário/progressista, pois

opera antes mesmo dessa divisão, condicionando a “encarnação material em signos” às

possibilidades previstas.

Trata-se de uma espécie de sequestro das possibilidades, perpetuando o discurso

através dos mesmos códigos de forma semelhante à que observamos em Nicolas Behr

em “Não consigo sair destas palavras”. Os vícios impostos pela língua se abrem, porém,

para além da escolha vocabular, conforme nos aponta Barthes:

Não são somente os fonemas, as palavras e as articulações sintáticas que

estão submetidos a um regime de liberdade condicional, já que não podemos

combiná-los de qualquer jeito; é todo o lençol do discurso que é fixado por

uma rede de regras, de constrangimentos, de opressões, de repressões,

maciças ou tênues no nível retórico, sutis e agudas no nível gramatical: a

língua aflui no discurso, o discurso reflui na língua, eles persistem um sob o

outro, como na brincadeira de mão. (BARTHES, 2007 p.30)

A persistência da malha linguística da cidade pode ser observada, num primeiro

momento, no próprio nível da escolha vocabular, especialmente nas poéticas de Caio

Meira e Nicolas Behr. Neste último pela reincidência de um vocabulário oficial da

construção e do planejamento da cidade modernista utópica, e naquele pela presença de

um prosaísmo forçoso que recolhe de fragmentos corriqueiros do cenário urbano o

material discursivo com o qual representará toda e qualquer coisa.

É interessante notar, nesse sentido, que o sequestro vocabular observado nos

dois poetas é de natureza muito semelhante, divergindo apenas no discurso perpetuado

13 Bakhtin reconhece também o mesmo caráter dual na língua; observando inclusive a insuficiência

teórica de se limitar a apenas um dos processos, caso que ele reconhece nas mais fortes correntes da

linguística de então. Porém pela própria estrutura crítica de seu Marxismo e filosofia da linguagem, a

formulação do caráter conservador da língua não é tão sucinta quanto à de Barthes.

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91

pela cidade, pois para Caio o discurso da cidade é inerentemente polifônico, dinâmico e

prosaico, encontrado em fragmentos diversos seja em um passeio a pé pelo centro, ou

durante um jogo solitário de basquete. A persistência não apenas dos vocábulos

urbanos, mas também da própria polifonia como inescapável atestam pelo fascismo da

língua da cidade, pois não importa o que faça, o sujeito não parece ter, na poesia de

Caio Meira, uma alternativa que o permita habitar outro lugar que não o da dispersão

em um ambiente linguístico urbano e prosaico.

Tal relação é observável também em Nicolas, embora as especificidades da

instauração do discurso urbano “oficial” de Brasília mudem um pouco a imagem desse

conflito, pois o carrega de uma hegemonia um tanto mais violenta e radical. É

precisamente com a característica polifônica do discurso urbano que Brasília parece

querer romper, buscando se caracterizar por uma fala monocórdica, perpetuando um

paradigma do modernismo utópico através de vocábulos muito específicos: eixão,

autopistas, superquadras, etc. todas estas palavras que atravessam largamente a poesia

de Nicolas Behr, conforme já observamos nos capítulos anteriores.

Brasília invade, porém, mais do que apenas a escolha vocabular, estendendo-se

para outros aspectos do “lençol do discurso” tal qual proposto por Barthes. Nicolas

evidencia diversas vezes a convivência de diferentes instâncias de penetração do

discurso oficial da cidade, mostrando a interferência desse discurso viciado em um

trajeto urbano mais viciado ainda, alterando e subvertendo alguns do postulados

gramaticais mais básicos, rompendo com suas regras e instaurando novas, como em:

Eu S

Tu Q

Ele S

Nós S

Vós Q

Eles N

(BEHR, 2009 p.59)

É interessante ressaltar, sobre o poema acima, o gesto de “dominância das siglas

sobre todos os indivíduos, agora contidos nestes dois eixos (das quadras norte e sul)”

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(FURIATI, 2007 p.32), ressaltado por Furiati em sua dissertação. As siglas mais do que

um recorte de discurso “colhido” da polifonia urbana, são um fragmento concreto do

processo de numeração e organização exaustivo da cidade, preenchendo a lacuna verbal

com ícones obrigatórios do discurso de Brasília.

As siglas das superquadras das asas norte e sul, que juntas constituem quase todo

o espaço residencial do plano piloto de Brasília, se transformam numa espécie de

obsessão da poesia de Nicolas, não apenas enquanto índice da organização espacial, mas

também como signos do próprio discurso hegemônico da cidade. Vale observar, no

poema abaixo, o quanto as siglas de dois blocos residenciais vão se repetindo e

deformando até terminarem não remetendo mais a bloco nenhum, sendo siglas vazias,

sem significado, mas que pela sua construção, trazem incontornavelmente a imagem do

dialeto de Brasília:

SQS415F303

SQN303F415

NQS403F315

QQQ313F405

SSS305F413

seria isso

um poema

sobre brasília?

seria um poema?

seria brasília?

(BERH, 2007 p.72)

Cabe ressaltar ainda o desfecho do poema, abrindo a possibilidade de leitura da

deformação da sigla como uma zona limítrofe entre a cidade, o discurso e o poema que

o mimetiza e deforma. O lugar do poema é precisamente o da deformação do discurso

oficial, utilizando seu próprio código aplicado fora do seu horizonte previsível e seguro,

gerando uma caricatura do discurso da cidade que escapa da reprodução pacífica de uma

mesma língua fascista. Nicolas promove como que uma alternativa ao processo

meramente reprodutor de uma ordem, num processo onde a reprodução gera a distorção,

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93

como que adiantando a alternativa ao fascismo sugerida por Barthes através do qual é

possível “trapacear com a língua”.

O que Nicolas retrata em seu poema constitui uma ponte com a nossa segunda

possibilidade de abordagem do processo da significação, partindo da incapacidade de

escapar da repetição do discurso da cidade até a deformação desse discurso, feita a

partir da repetição exaustiva, gerando novos signos, novas possibilidades não previstas

no discurso hegemônico.

Esse novo recorte, onde importa mais a mobilidade do signo tirado do seu uso

banal do que a perpetuação de paradigmas estabelecidos, vai ter no processo de

nomeação o momento no qual pode operar sua guinada de reinvenção ou de trapaça com

a língua. Cabe repetir que mais uma vez que se trata mais de um deslocamento da

priorização do que de um processo completamente diferente, perpetuação e inovação

são faces indissociáveis de uma mesma dinâmica de enunciação.

Essa subversão da normatividade através de uma priorização do instante da

nomeação é ainda abordado diretamente em diversos poemas de Arnaldo Antunes.

Trata-se de uma de suas preocupações centrais, aparecendo em diversos nomes de

poemas e livros como “Nome não”, “Nome”, Como é que chama o nome disso; e sendo

uma preocupação central em dezenas de outros.

Podemos conceber o ponto de partida de Arnaldo como semelhante ao de Caio e

Nicolas: Arnaldo encara também o impasse da reprodutibilidade aparentemente

insolúvel da língua corrente e parece fazer sua poesia como uma tentativa constante de

forçar os limites possíveis para a significação - seja enquanto experimentação de outros

códigos ou usos radicais para os mesmos signos gastos.

A poesia de Arnaldo parece sempre problematizar um limite entre o conotativo e

o denotativo, roupagens novas para a mesma dialética de inovação/conservação que já

abordamos. O poeta parece sempre jogar entre o mal entendido e o banal em sua poesia,

mudando as regras dos processos de significação e mobilizando a limitação “fascista”

da língua. Cabe, nesse sentido, nos determos nos estudos de Wittgenstein, em especial

no que tange seu conceito de “jogos de linguagem”, pois é precisamente a partir de sua

distorção que Arnaldo parece encontrar um mecanismo de mobilização da nomeação.

Wittgenstein concebe os jogos de linguagem como uma alternativa dinâmica

para o processo da significação estruturalista clássico; as palavras não seriam, como na

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94

concepção saussureana, significantes ligados arbitrariamente a significados específicos;

tal relação não seria própria da palavra, mas sim do jogo específico ou situação em que

ela é colocada. Nesse sentido, o significado (seja conotativo ou denotativo) não é uma

relação estável, pois não se dá a partir de uma tabela de dupla entrada entre nome e

coisa, mas sim um processo determinado pela ocorrência concreta da palavra, sujeito às

mais diversas distorções e priorizações arbitrárias de um mesmo objeto através de

diversas palavras.

Wittgenstein aproxima essa noção do jogo justamente pela maleabilidade do

conceito, isto é, por ser impossível, a partir de uma palavra, definir uma “regra comum”

para todos os seus jogos possíveis, mas apenas esboçar parentescos entre um e outro

episódio (como numa tentativa de definir o que seria um jogo), numa espécie de cadeia

associativa sem limites possíveis. Portanto “o emprego da palavra não está

regulamentado” (WITTGENSTEIN, 1999 p.53), sua significação é tão maleável quanto

a possibilidade de jogos diferentes de linguagem aos quais possamos nos propor.

Num entrecruzamento entre Wittgenstein e Barthes, poderíamos dizer que o

fascismo intrínseco à língua, segundo o semiólogo francês, é na realidade uma tendência

predominante de alguns jogos específicos, ou a recorrência de algumas regras

específicas em diversos jogos. O filósofo austríaco ressalta, porém, que as regras não

são intrínsecas às palavras, mas sim resultado de seu uso recorrente num mesmo

contexto, e problematiza ainda o deslocamento do usual de maneira muito semelhante à

trapaça da língua de Barthes.

Seguir uma regra é análogo a: seguir uma ordem. Somos treinados para isto e reagimos

de um determinado modo. Mas que aconteceria se uma pessoa reagisse desse modo, e

uma de outro modo a uma ordem ao treinamento? Quem tem razão?

(WITTGENSTEIN, 1993 p.93).

É a partir desta interrogação que Arnaldo parece fazer sua poesia, quebrando as

regras dos jogos de linguagem cristalizados, priorizando aspectos diferentes dos objetos.

A mudança dos paradigmas da nomeação aparecem de forma radical no poema “nome

não”, presente no livro Tudos:

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95

Os nomes dos bichos não são os bichos.

os bichos são:

macaco gato peixe cavalo vaca elefante baleia galinha.

Os nomes das cores não são as cores.

As cores são:

preto azul amarelo verde vermelho marrom.

Os nomes dos sons não são os sons.

Os sons são.

Só os bichos são os bichos.

Só as cores são as cores

Só os sons são

som são

nome não

Os nomes dos bichos não são os bichos.

Os bichos são:

plástico pedra pelúcia ferro madeira cristal porcelana papel.

Os nomes das cores não são as cores.

as cores são

tinta cabelo cinema céu arco-íris tevê.

Os nomes dos sons.

(ANTUNES, 2010 p.59-61)

“Nome não” se organiza a partir de uma preocupação inicial com a dissociação

entre palavra e coisa, uma tentativa de fuga da referencialidade, tomada como uma regra

gasta nos jogos de linguagem. Arnaldo oscila assim entre a tentativa de fuga da

referencialidade, tomada como uma relação de identificação entre coisa e nome; e uma

incapacidade de escapar das palavras semelhante à que observamos em Nicolas Behr e

Caio Meira, conforme nos aponta Jorge Fernando Barbosa do Amaral:

Page 96: quatro poetas quatro cidades

96

Ao mesmo tempo em que percebemos que Arnaldo chama a atenção

para as limitações da linguagem denotativa, que não incluem as coisas em

seu universo de atuação, apenas as representam, ou seja, o ato afirmar a

existência de algo a partir de sua representação verbal não concretiza a

presença do objeto, “Os nomes dos bichos não são os bichos”, ele não escapa

ao fato de que, verbalmente, não há como se referir à coisa sem que se utilize

o signo linguístico que arbitrariamente está ligado a ela “Os bichos são: /

macaco gato peixe cavalo vaca elefante baleia galinha.” (AMARAL, 2009

p.24)

Interessa-nos, porém, a alternativa final sugerida pelo poema, após suas

sucessivas constatações da divergência entre coisa e nome. Arnaldo desloca o jogo da

linguagem da referencialidade de sua configuração usual, construindo novas relações de

sentido entre as palavras gastas, dando um novo sentido para os bichos a partir de um

jogo específico, mostrando como a coisa, seja ela qual for: um macaco de pelúcia, um

gato de cristal, ou qualquer intervalo possível entre bicho e material; pode ser priorizada

(e tornada palavra) por aspectos diferentes de sua configuração prototípica.

O processo de nomeação aparece, portanto, como uma priorização específica das

coisas, sujeita às mais diversas distorções. É interessante ressaltar ainda que, embora

Arnaldo use as mesmas palavras gastas - cinema, tevê, ferro, pelúcia, etc. - é o

deslocamento de seu sentido usual que transgride a estabilidade das regras da

referencialidade. O poeta rompe com o lugar-comum dos jogos de linguagem, pois o

sentido das palavras não está dado, as coisas “não têm um nome, a não ser no jogo”

(WITTGENSTEIN, 1993 p.46), e o jogo foi dinamizado.

Cabe ainda ressaltar como, embora não pareça que o retrato do ambiente urbano

seja uma preocupação específica de Arnaldo Antunes, a urbe é trazida como o ambiente

linguístico a ser mobilizado. Não encontramos, novamente, elementos como luzes, out-

doors ou ruas, mas é inegável a presença do urbano enquanto material discursivo que é

dinamizado pela palavra poética.

O deslocamento dos jogos usuais da linguagem é marcante ainda, na obra do

poeta, por uma espécie de didática infantil dos jogos de linguagem. Em seu livro As

coisas, Arnaldo problematiza não apenas a mobilidade do processo de significação, mas

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97

também as distorções geradas pela concepção estruturalista da linguagem levada até as

últimas consequências por interrogações infantis, de forma que uma mesma palavra é

levada para diversos ambientes, ou diversos “jogos de linguagem” diferentes, gerando

significações diferentes dos normalmente previsíveis, como no poema “as palavras”:

Há muitas e muito poucas palavras. Por exemplo: pegamos um corpo. Se

continuarmos a linha que sai do lado de fora de um dos pés (isto é, do ponto

de vista do próprio corpo: o lado direito do pé direito ou o lado esquerdo do

lado esquerdo) e vai pelo chão até o outro pé, teremos a palavra planeta, que

inclui o corpo. Incluídos nesse corpo tempos membros. Entre os membros

pernas. Dentro das pernas pés. Nos pés dedos e nos dedos unhas. Mas se

dissermos unhas podem ser das mãos. Se estiverem riscando um muro

diremos atrito. Então podemos estar falando de fósforos, ou de pneus. De

sexo, discussões ou condutores elétricos. Assim: Mesa e cadeira são duas

palavras. Móveis é uma palavra só – coisas que se movem. Mas não há

palavra para dizer dois corpos encostados, ou uma mão segurando um

punhado de terra ou duas mãos dadas com um tanto de terra entre elas; como

há, por exemplo, a palavra jardim para designar o conjunto de terra e plantas;

ou a palavra planta para expressar a soma dessa parte do jardim que fica

acima e da parte que fica abaixo da terra. Com raiz bulbo folha talo ramo

galho tronco fruto flor pistilo pólen dentro. Mas se não quisermos dizer

planta podemos dizer pé. E a sola do pé chamaremos de planta. Sobre o solo.

Assim como dizemos planta para o pé diremos mão. Folha de palmeira. E se

não quisermos dizer planeta podemos dizer terra. Ou isso. Mas se ele não

estiver por perto não podemos chama-lo de isso. (ANTUNES 2006 p.103)

É interessante como a tentativa de associar palavras às coisas é baseada numa

distorção da definição dicionarizada pautando-se por definições que priorizam aspectos

sensíveis e aparentes aos essencialismos. Trata-se de uma aproximação com uma fase

infantil de designação linguística, onde os jogos parecem ainda mais vivos e as regras

mais flexíveis, especificamente por que as recorrências de jogos e a predominâncias

destas ou daquelas regras (que assentariam o fascismo da língua) não estão ainda

devidamente internalizados.

Cabe ressaltar ainda o quanto o processo de nomeação que aparece no poema é

análogo ao estágio pré-consolidação dos conceitos da linguagem, descrito por Vygostski

como a associação em cadeia. (VYGOTSKI 2008 p.80-88) De forma semelhante à

Page 98: quatro poetas quatro cidades

98

tentativa de definição de alguns dos jogos de linguagem de Wittgenstein, trata-se de um

estágio anterior à estabilização dos conceitos, onde a criança associa o nome a uma

característica específica de um objeto. Se a característica priorizada é compartilhada

entre diferentes objetos, a criança associa múltiplas possibilidades de referência para um

mesmo nome. Vygotski descreve ainda que o elemento priorizado pela criança é

dinâmico, podendo um nome se referir, em uma cadeia linear, a diversos elementos que

compartilhem características específicas com seus predecessores e antecessores, mas

não possuam uma adequação a um conceito único; num processo designado pelos dois

autores como “semelhança por família” (VYGOTSKI 2008, P.76-78;

WITTGENSTEIN, 1999 p.52).

Arnaldo utiliza, assim, diversos jogos diferentes para uma mesma palavra, como

“atrito”, mantendo uma semelhança entre as imagens encadeadas, mas partindo de uma

cena de atrito de unhas em um quadro e chegando a discussões e condutores elétricos;

dois jogos de linguagem completamente diferentes, aproximados pela associação em

cadeia de uma mesma palavra.

Há ainda uma certa zona de imprecisão entre as linguagens conotativas e

denotativas, evidenciando a arbitrariedade de certas catacreses que possuem em sua raiz

um caráter tão conotativo quanto as mais ousadas metáforas, mas que possuem, a seu

modo, status de linguagem corrente. Arnaldo amplia, nesse sentido, a zona de

indistinção entre jogos conservadores e inovadores, amplia a alçada da pergunta de

Wittgenstein “quem tem razão?” quando alguém muda os parâmetros e os jogos,

mostrando o quanto as regras do jogo são cristalizações arbitrárias, algumas delas

geradas, pela reincidência de um mesmo jogo conotativo.

Arnaldo não menospreza o sequestro de possibilidades das palavras, e a

dificuldade de escapar da previsibilidade da nomeação, mas enfatiza a natureza dessa

clausura como não sendo diferente da atividade cotidiana de nomeação, apenas mais

legitimada pelo uso corrente. Nesse sentido, em sua priorização de aspectos diferentes

de objetos já conhecidos, o poeta troca as etiquetas de lugar, tirando a linguagem de seu

estado de dicionário da mesma forma como Nicolas tira as siglas da organização

espacial.

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99

III.3 Arquitetura da Ruína

brasília foi construída

para ser destruída

aos poucos

exatamente

como estamos fazendo

(BEHR, 2010 p.17)

Se a mobilidade da nomeação aparece como um valor por si na poesia de

Arnaldo, é necessário fazer uma distinção quanto à produção de Nicolas, pois, para este,

a dinamização da língua possui um alvo específico, uma configuração determinada de

discurso e usos da linguagem que o poeta propõe desestruturar. Novamente,

encontramos um quadro onde, apesar de operar por mecanismos muito semelhantes de

nossos demais poetas, o que diferencia Nicolas é (no polo oposto dos des-limites de

Caio) a polarização forçosa entre os discursos do poeta e da cidade.

Na poesia de Nicolas Behr trava-se uma espécie de guerrilha discursiva com

lados muito bem marcados entre o international style e a estética marginal. Enquanto

Caio e Adriano tendem a uma dispersão na rede linguística urbana, Nicolas incorpora os

mais diversos elementos que se opõem ao discurso oficial de Brasília, para assim,

ironizar e desgastar sua retórica.

O repúdio a arquitetura da cidade, o recorte urbano em pequenos quadros, a

incorporação do substrato auditivo, a obsessão pela rodoviária como signo de

resistência e mesmo a constante realimentação irônica da perfeição cristalina do projeto

de Lúcio Costa, são mecanismos combativos que se travam especificamente no plano

discursivo, jogando novos jogos com os termos já gastos do discurso da cidade.

Nicolas busca tomar Brasília pela palavra, evidenciar a arbitrariedade e a

caducidade da arquitetura modernista e a sua imposição de uma planificação discursiva.

Cabe ressaltar, nesse sentido, o conceito de ruína modernista, definido por Beatriz

Jaguaribe em Fins de século: cidade e cultura no Rio de Janeiro, a partir de uma

comparação do processo de modernização utópica forçada:

Page 100: quatro poetas quatro cidades

100

A ruína modernista condensa as contradições de como os objetos da

modernidade, ao se posicionarem como novos, inevitavelmente assinalam e

renegam seu próprio envelhecimento. Como emblematização do novo

moderno, o edifício modernista negociava a projeção de um futuro que agora

tornou-se datado. As representações do nacional, as experiências urbanas e a

encenação de diferentes noções de modernidade dialogam com a montagem

da figura da ruína modernista (JAGUARIBE, 1998 p.121)

A presença da noção de ruína modernista na poesia de Nicolas é perene: “A

capital voltou a ser / o Rio de Janeiro // temos as ruínas mais modernas / do mundo”

(BEHR, 2009 p.78); de forma que poderíamos ler a referida guerrilha discursiva como,

além de uma reapropriação da palavra, uma ressignificação da linguagem oficial,

transformando-a num discurso que é, desde sua fonte, ruína modernista.

Nicolas age diversas vezes através de uma profunda ironia, apontando a eficácia

da concretização do projeto, ressaltando a perfeição com que foram realizados alguns

dos pontos que eram precisamente os objetivos do plano piloto: setorização, morte da

rua e a padronização das moradias. Dessa forma, ao invés de ridicularizar a

materialização do projeto utópico, Nicolas zomba de seus próprios objetivos, da

incompatibilidade da magnitude, de suas pretensões com a existência comezinha,

cotidiana. Nesse sentido, o poeta aproveita-se largamente de um deslizamento entre o

inesperado e o óbvio, situando como surpreendente tudo que não se encaixa nas

grandiosas pretensões do macroprojeto organizacional, isto é, tudo que é o mais óbvio

de constar numa cidade assume uma cômica roupagem de quebra de expectativa:

Senhores turistas

eu gostaria de frisar

mais uma vez

que nestes blocos de apartamentos

moram inclusive pessoas normais

(BEHR, 2007 p.92)

A quebra de expectativa através da irrupção do banal num cenário do exótico e

grandioso arruína a perfeição do cartão postal de Brasília sem descaracterizar o

Page 101: quatro poetas quatro cidades

101

cumprimento do projeto modernista, ao contrário, endossando-o e revelando o que nele

mesmo é contraditório: o bem sucedido sufocamento do corriqueiro na arquitetura

soberba de Brasília.

A quebra de expectativa opera, assim, com uma dupla função na poesia de

Nicolas Behr: se, por um lado, evidencia a incompatibilidade entre a concretização do

projeto utópico de Brasília e a ocupação humana do espaço, por outro, problematiza a

própria impossibilidade do cumprimento da expectativa do extraordinário que recai

sobre o projeto.

Não apenas enquanto projeto megalomaníaco, mas também enquanto priorização

vocabular, a cidade figura sempre a partir de sua artificialidade. Diversos lugares-

comuns e chavões da fala coloquial aparecem assim como incompatíveis com Brasília,

conforme analisado por Gilda Maria Queiroz Furiati em relação à presença residual de

expressões como “meninos de rua” em uma cidade que buscou banir definitivamente a

rua de seu planejamento (FURIATI, 2007 p. 46-47). Ressaltamos ainda a releitura

irônica do impossível clichê marítimo em “Amor às pampas”:

Amor às pampas

você voltou

pro seu rancho

no rio grande

enquanto eu

fiquei aqui

a ver ministérios...

pra Ângela

(BEHR, 2009 p.82)

Cabe ressaltar que o processo operado na subversão do chavão popular e da

cotidianidade traz algumas semelhanças com o feito por Arnaldo Antunes com relação a

linguagem denotativa. Se Arnaldo mostra a necessidade de dinamizar o processo da

nomeação, rompendo com o jogo de linguagem previsível e fundando a palavra poética

a partir do estranhamento; em Nicolas o estranhamento se dá justamente pela

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102

incompatibilidade do vocabulário corriqueiro para dar conta de Brasília. Ao invés de

provocar o estranhamento inserindo um nome impróprio num cenário conhecido,

Nicolas insere o nome “correto” num contexto desconhecido, resultando numa inversão,

onde a poesia gera o estranhamento não pelo sentido conotativo, mas sim pelo

denotativo, isto é, a partir da justa adequação vocabular à ruína modernista.

Segundo Beatriz Jaguaribe, a artificialidade das ruínas modernistas decorre em

grande parte da negação de seu próprio aspecto histórico e datado. Cabe, portanto,

ressaltar ainda outro signo recorrente em Nicolas: a pretensa extemporaneidade de

Brasília, renegando os seus vestígios históricos e se afirmando a partir de uma fictícia

noção de marco zero. É interessante o quanto o poeta reafirma novamente a

concretização de um projeto, ironizando antes as suas pretensões do que a sua

falibilidade, em poemas como “aqui não havia nada / só um grande vazio / um deserto //

aí inauguraram a capital / e o cerrado apareceu logo depois” (BEHR, 2007 p. 93).

É claro que essa estratégia não é gratuita, pois conforme expõem Holston e

Furiati, Brasília se assenta sobre uma grande usurpação do seu próprio passado. A

noção utópica de um marco zero, simbolizada no cruzamento do eixão com o eixo

monumental, renega a concretização de um processo histórico, bem como a existência

de populações autóctones da região.

Com grande habilidade, Lúcio Costa consegue dar ao plano de uma

nova cidade a sugestão de uma fundação legendária, a aura dos símbolos

sagrados, investindo Brasília com uma mitologia universal de cidades e de

símbolos. Não pretendo contestar o caráter artístico de seu feito, mas mostrar

que, afirmando apresentar um tipo específico de origem para a cidade, Costa

deixa de enfatizar outro: provendo Brasília de antecedentes mitológicos, ele

disfarça seus precedentes históricos, eliminando a história do Brasil e da

arquitetura moderna das ideias expressas no plano. Como em uma história de

confusões em torno da identidade dos personagens, ele adultera os direitos de

nascença de sua cidade. (HOLSTON, 1993 p.81)

Ainda na ironia da usurpação do passado de Brasília, Nicolas projeta também

passados absurdos, onde o mesmo vocabulário oficial da cidade de clipes, ofícios,

ministérios é trazido à tona por escavações históricas, como se a extemporaneidade da

capital se reafirmasse retroativamente, encontrando no lugar onde deviam constar os

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103

vestígios históricos, negados pelo discurso oficial, marcas de sua própria ordem irreal e

utópica:

Durante as escavações também

foram encontrados clips pré-históricos,

grampeadores de pedra lascada, crachás

em plaquinhas de ouro,

carimbos petrificados,

ministros embalsamados

e ofícios em escrita

ainda não decifrada

(BEHR, 2009 p.73)

Novamente, o que é reafirmado e ironizado pelas escavações é uma disputa

travada no campo da palavra; é o vocabulário dos ofícios, carimbos e plaquinhas que é

projetado para o passado pré-histórico. E é ele que constitui, em última análise, o mais

próximo de uma ruína propriamente dita na cidade de Brasília, como um vestígio que

subjaz à cidade construída. A reafirmação da mesma ordem numa escavação que

deveria encontrar apenas ruínas faz, dessa forma, um novo pareamento entre o discurso

oficial utópico da capital e a ruína modernista.

Finalmente, cabe nos determos numa última estratégia de Nicolas, na qual o

poeta plasma uma espécie de imagem-síntese para todo o processo de arquitetura da

ruína do discurso oficial de Brasília: a fundação da cidade de Braxília.

Braxília é como uma concretização da ruína de Brasília, o resultado desse longo

embate discursivo de reapropriação do vocabulário e dos espaços. Ela se constrói como

uma espécie de reflexo oposto do plano piloto; ao invés de trazer uma adjetivação

voltada para suas superfícies captadas pelo código visual, Braxília é gestada em suas

entranhas “subterrânea, viva, noturna, alternativa, rebelde, roqueira” (BEHR, 2009

p.85).

Cabe ressaltar que Braxília é uma reapropriação prototípica do nome da capital,

numa quebra com o jogo usual da linguagem que busca uma nova palavra para

significar uma nova ordem. Nicolas rompe com o sequestro de possibilidades e com a

previsibilidade dos jogos usuais de linguagem, abolindo o uso dos signos viciados dos

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104

carimbos e plaquinhas e como que inaugurando uma nova língua, onde os jogos ainda

não estão definidos ou estruturados “Braxília não / Braxília é sonho // Braxília foi

construída / com a língua // 2354 línguas polindo / as escadarias do palácio” (BEHR,

2007 p.75).

Por seu caráter contrapositivo, Braxília se assemelha ainda, diversas vezes, com

o recorte que Nicolas faz da plataforma rodoviária, em seu caráter de oposto simétrico à

ordem planejada. Ambos os espaços se estruturam como uma espécie de negativo dos

cartões postais da capital, negando todos os traços de artificialidade e planejamento da

cidade e projetando seus opostos:

Imagine Brasília

não-capital

não-poder

não-Brasília

assim é Braxilia

(BEHR, 2007 p.77)

Braxília é o acerto de contas com Brasília, a reinvenção sem planejamento que

subverte todos os ícones da artificialidade exaustivamente marcados na poesia de

Nicolas Behr: “Não ficará carimbo sobre carimbo// e carimbo sobre carimbo/

reconstruiremos a cidade// sem carimbos” (BEHR, 2009 p.90). Essa reurbanização, na

qual Brasília finalmente deixa seu status de não-cidade, atribuído pela poesia, para

afirmar-se enquanto cidade propriamente dita, será feita sobre as ruínas modernistas

devidamente reapropriadas pelo discurso.

É interessante que, ao contrario de sua correspondente oficial, Braxília não é

construída por um arquiteto demiurgo, que traça em seu projeto a organização do espaço

e o sentido das vidas que o ocupam. Não encontramos tampouco um personagem ícone

de fundação, mas sempre uma construção plural14

, como em: “foi assim que

construímos Braxília” (BEHR 2009, p.94), “edificaram uma cidade” (BEHR 2009

p.85), etc. Braxília, enquanto cidade real em oposição à capital artificial, se dá, dessa

14 Cabe fazer uma ressalva quanto ao título do livro Porque construí Braxília, no qual temos, ao invés da

construção plural uma conjugação em primeira pessoa. Trata-se, porém de uma paródia ao título da

autobiografia de Juscelino Kubitschek Porque construí Brasília.

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105

forma, sempre em função dos seus habitantes e construtores, dissolvendo a oposição

inaugural já citada “assim nós queremos viver” vs. “assim nós queremos que vocês

vivam” (BEHR, 2009 p. 66), que contrapõe a construção da cidade à sua ocupação.

Braxília é a possibilidade de existência da cidade fora dos seus parâmetros

planejados, uma reapropriação pela própria população e/ou por grupos subversivos que

se contrapõem ao discurso imposto de ministérios e carimbos, plasmando uma espécie

de emblema linguístico ou imagem-síntese da promessa urbana que subjaz

humanamente na Brasília institucional e cristalina. Trata-se de uma espécie de redenção,

ou ainda, de “reinventar a cidade inventada” (BEHR, 2010 p.26):

quando reconstruírem meu bloco

quando o eixão virar um jardim

quando os anjos retornarem à catedral

quando jk for definitivamente reabilitado

quando Brasília voltar a ser patrimônio

cultural da humanidade

quando a poesia for necessária

quando se realizar a profecia

de dom bosco

quando os candangos forem bem-vindos

na cidade fortificada

quando derrubarem os tapumes da maquete

quando implodirem todos os ministérios

quando os burocratas forem expulsos

quando o massacre da geb for esclarecido

quando a catedral voltar a ser ecumênica

Quando brasília se chamar braxília

quando a cidade começar a existir

(BEHR, 2010 p.67)

Page 106: quatro poetas quatro cidades

106

Conclusão

Ao longo de nosso trabalho, encontramos mais rotas de fuga de um conceito

preciso de cidade do que possibilidades de delimitação de um. Tal resultado é, de certa

forma, esperado, dado que nossa proposta se estrutura sob uma metodologia

comparativa ou dialogal, comprometida mais com a diversidade de soluções para os

mesmos impasses do que com o reconhecimento de uma base comum às imagens e

formas sob as quais flagramos a cidade no nosso corpus. Seria incompatível com nossa

própria metodologia, nesse sentido, qualquer convergência conclusiva para com a

diversidade observada nas obras dos poetas abordados.

Cabe, porém, ressaltar que essa mesma metodologia dialogal, quando organizada

em um encadeamento linear de instâncias opositivas, inventa uma estrutura específica,

híbrida entre cristal e chama, na qual os quatro autores se distribuem de maneira

irregular. Tal irregularidade não se deve a um valor de espaço ocupado - posto que nos

preocupamos em abordar as seis combinações possíveis entre os autores -, mas sim a

uma variação de concentração e afinidade entre as questões focalizadas no decorrer dos

capítulos. Nesta conclusão, vale a pena nos determos em um mapeamento dessa

distribuição, clareando os padrões de sua disposição, que revelam aspectos não das

obras estudadas, mas do próprio recorte que fizemos delas a partir de nossas

possibilidades contrastivas.

Trata-se de um levantamento final que resguarda algo de uma metalinguagem,

pois buscaremos destacar um dado de presença e ausência dos poetas dentro de nossa

própria estrutura de análise, o que permitirá uma palavra final sobre suas obras e a

possibilidade de nos determos numa espécie de dupla motivação de sua distribuição no

decorrer de nosso trabalho, decorrente tanto das especificidades inerentes a cada autor,

mas também das relações flagradas entre suas obras quanto tomadas dentro de nosso

trabalho.

É importante ressaltar, nesse sentido, que uma vez que tenhamos tomado a

estrutura de nosso trabalho como duplamente motivada, mesmo o que soaria como uma

idiossincrasia restrita a um poeta, precisa ser relida em seu contato com todos os

demais, já que sua própria especificidade só pode ser percebida a partir de um contraste

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107

com todo o nosso corpus. Mesmo a priorização que fizemos da obra dos autores

também se deve às possibilidades de diálogos e contrastes, de forma que nossa estrutura

argumentativa interfere na leitura dos poetas desde antes da delimitação específica de

capítulos e instâncias opositivas.

Permaneceremos restritos, porém, frente às diversas possibilidades de análise da

relação entre a organização de nosso trabalho e a obra de cada poeta, à observação do

dado que nos parece mais simples: a presença ou ausência dos poetas ao longo dos

capítulos. Ressaltamos como, por conta do aspecto inter-relacional que citamos, a

ausência dos autores em determinados pontos de nossa estrutura constitui também um

ponto de interesse para nossa conclusão.

Se pensarmos nosso estudo como um eixo horizontal, onde a presença dos

poetas se distribui progressivamente como um valor vertical, flagramos três alternativas

gráficas (ou três funções) que podem ser reconhecidas no decorrer de nosso trabalho:

Adriano Espínola e Caio Meira aparecem em funções lineares, uma crescente e outra

decrescente, de tal forma que, na medida em que Adriano, que tem grande peso no

início de nosso trabalho, vai perdendo espaço, Caio vai ganhando, ocupando grande

destaque a partir do capítulo II. Trata-se de um comportamento espelhado, o qual

analisaremos como decorrente de um mesmo fenômeno.

Nicolas Behr, por outro lado, se mantém estável, aparecendo em todos os

capítulos de nosso estudo. Por não obedecer uma lógica de simples ascendência ou

descendência, cremos que temos na distribuição equalizada de Nicolas por nosso estudo

uma linearidade diferente da observável em Caio e Adriano.

Finalmente Arnaldo Antunes, como uma ironia metonímica de sua obra, rompe

com o principio de linearidade na distribuição; o poeta aparece no nosso primeiro

capítulo, desaparece durante o segundo, e reaparece no terceiro. Novamente, Arnaldo se

afasta de qualquer reconhecimento de um padrão inequívoco, gerando um problema de

multiplicidade de possíveis interpretações para suas duas aparições, impasse semelhante

ao que encontramos em diversos momentos da análise de seus poemas, sempre abrindo

mais sentidos possíveis do que os encerrando em uma resolução definitiva.

Ao nos voltarmos para o primeiro comportamento que discriminamos, a

linearidade crescente e a decrescente observada respectivamente em Caio Meira e

Adriano Espínola, cremos que este espelhamento se deve a uma polarização implícita

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108

em nossa própria estrutura de análise. Nosso esforço para construir uma linearidade

argumentativa parece se desenvolver de modo a dividir a poética dos dois autores em

dois polos antagônicos, de forma que quanto mais se desloca em uma direção

específica, nosso estudo encontra um poeta como negativo do outro.

Seria difícil definir tal direção sem incorrer em uma simplificação condenável,

mas podemos situá-la inicialmente partindo de categorias historicamente mais estáveis

para concebermos o urbano, como tempo, espaço sujeito e objeto, e deslocando-se rumo

a uma gradual indefinição, onde todas as contraposições passam a se tornar indistintas,

como cristalizações possíveis de uma mesma corrente discursiva.

A cidade de Adriano articula vários signos historicamente mais estáveis; a

velocidade apresenta-se como resultado de uma equação entre tempo e espaço que

aponta sempre para o vertiginoso, e por mais que possamos flagrar vários mecanismos

de dispersão do sujeito na cidade, esta ainda está ligada a uma experiência que remonta

ao futurismo do início do século, onde a enxurrada sensorial é o que dá o caráter

dispersivo como resultado de uma multiplicação do homem pela máquina. Adriano

conserva as marcas da experiência da qual busca se afastar, de forma que podemos ler

tal permanência em sua poesia a partir de sua metáfora estrutural: trata-se de uma

experiência de indistinção que não oculta sua mediação prévia pela moldura de uma

janela.

A polarização interna de nosso estudo é ainda mais clara se tentarmos fazer uma

leitura da obra de um dos dois poetas a partir de seu polo oposto: é evidentemente

incompatível com a poética de Caio Meira em Romance tentarmos situá-la em termos

de cristal e chama, assim como seria impossível qualquer tentativa de reconhecimento

de um espaço e de um tempo que contivessem a obra. Da mesma forma, a concepção da

cidade enquanto linguagem que desautoriza todas as oposições estáticas parece

incompatível com a poesia inicial de Adriano Espínola, dada a sua aberta opção pelo

espaço urbano como tema central e o conflito que isso geraria na noção do urbano como

discurso inescapável.

Tal qual em nossa analogia musical, assim que a cidade vai se tornando mais

indistinta, dispersando as possibilidades antitéticas de sujeito e objeto, dentro e fora e

tempo e espaço, a tendência resolutiva (ou o tonalismo) de Adriano vai se tornando

inadequada. Nesse momento o atonalismo (ou polifonia, se nos voltarmos à analogia de

Bakhtin) de Caio parece tomar cada vez mais espaço, absorvendo as alternativas

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109

tensivas numa mesma flutuação inconclusiva. Podemos ainda identificar no interior da

própria trajetória poética de Caio Meira uma semelhante linha progressiva, partindo de

uma polaridade ainda observável em No ôco da mão e Corpo solo rumo à flutuação

atonal de Romance, o que explicaria o porquê da sua participação respeitar (com raras

exceções) a ordem cronológica de seus livros.

A direção tomada por nosso trabalho pode finalmente ser situada à luz de nossa

analogia musical, partindo de imagens da cidade como um sistema tensivo que antecipa

uma resolução final, até a flutuação atonal a partir do nosso terceiro capítulo. A inclusão

de ecos diversos e vozes destacadas de sua função usual acaba por romper com a

necessidade resolutiva do sistema, momento em que a indistinção não pode mais ser um

alvo, como parece ser em Adriano e na poesia inicial de Caio, mas um ponto de partida

para o poema.

Não é à toa, portanto, que a oposição direta entre os dois poetas ocupe a região

central do trabalho, na metade do segundo capítulo, onde observamos uma guinada,

antes da qual as oposições são estruturais (cristal x chama, corpo x cidade, visual x tátil)

e a partir da qual elas não são mais possíveis, pois passa a ocupar o centro de nossa

atenção antes a mobilidade do que a pertinência dos dualismos. Cabe ainda ressaltar que

é precisamente nesse momento que abordamos a questão da necessidade resolutiva, e o

contraste entre os poetas traz à tona a nossa analogia musical como uma oposição

central entre suas obras.

O direcionamento de nosso trabalho oferece uma explicação para o

espelhamento dos dois poetas, mas traz um novo impasse ao abordarmos a distribuição

de Nicolas Behr. Este compartilha com Caio e Adriano a linearidade, sem apresentar,

porém, nenhum grau de angulação, aparecendo em todos os capítulos de forma

razoavelmente equilibrada. Sua distribuição parece contradizer a nossa polarização, pois

nos lança o problema de lidar com uma poesia que se mostra pertinente em dois

ambientes antitéticos de nosso estudo: nos oferece imagens da perfeita diagramação

espacial de uma cidade cristalina, e, ao mesmo tempo, um panorama discursivo

dinamizado pela palavra poética.

Cremos que essa ambivalência, que conserva uma dupla possibilidade de

identificação entre cristal e chama, e deixa ainda espaço para a dinamização de um pelo

outro, se deve não apenas às características de nosso arranjo de diálogos entre os poetas,

mas também a um aspecto específico da poesia de Nicolas Behr. Há, em contraponto

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com nosso direcionamento estrutural, uma polarização prévia de sua própria poesia

entre dois discursos específicos, um oficial e um subversivo. Estes dois discursos estão

sempre sobrepostos em sua obra, e é pela priorização que os ressalta de forma desigual

nos diferentes diálogos com os poetas de nosso corpus que acreditamos ser possível

essa ambivalência tão abrangente entre os polos mais afastados de nosso estudo.

Não é difícil observar o quanto, no primeiro capítulo, quando trazemos Brasília

enquanto espaço cristalino em oposição à vertigem de Adriano Espínola, acabamos por

priorizar o que, na poesia de Nicolas, é o discurso oficial, isto é, a presença da

organização lógica do espaço que caracteriza o plano piloto. Da mesma forma, quando

trazemos a mobilidade empreendida pela língua para com os símbolos oficiais, é o

discurso da subversão que está em primeiro plano, distorcendo o dialeto das

superquadras.

A polarização discursiva presente na poesia de Nicolas pode ainda ser lida a

partir da observação da sua forçosa ausência nos dois subcapítulos que focalizam

especificamente a dissolução de oposições antitéticas - no final do capítulo II e início do

III. Nicolas é incompatível com a projeção de múltiplas personas e com a polifonia que

são os temas centrais destes, de forma que sua contribuição no capítulo III se dá a partir

de uma priorização radical do discurso subversivo sobreposto ao oficial, porém, já

distante da abordagem polifônica.

Quanto à aparente contradição de ser justamente Nicolas o responsável pelo

desfecho de uma progressão que apresentamos como partindo da polarização rumo à

indistinção das oposições, é preciso fazer uma ressalva: o ápice de nossa linearidade que

aponta para o atonalismo, não coincide com o desfecho de nosso trabalho, mas sim com

o subcapítulo específico sobre cidade e polifonia. A partir deste voltamos a operar com

algumas oposições entre jogos consolidados e inovadores da língua, e possivelmente

pelo mesmo motivo, a partir daí, Caio praticamente desapareça de nosso trabalho.

É curioso observar como Arnaldo Antunes se afasta novamente (e de forma

quase que obsessiva) de qualquer possibilidade de identificação com um

comportamento padronizável. Arnaldo aparece em dois momentos isolados, no final do

primeiro capítulo e na maior parte do terceiro. Novamente a particularidade episódica

do poeta não nos parece possuir uma motivação que se ancore na estrutura polarizada de

nosso estudo, mas talvez se justifique por alguma característica transversal que apareça

de forma não linear.

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111

De certa forma, é arriscado esboçar uma explicação conclusiva para a disposição

da obra de Arnaldo Antunes em nosso estudo justamente por seu caráter episódico; são

duas aparições pontuais, que não possuem a facilidade linear dos demais poetas, e

permitem, portanto, muito mais interpretações possíveis; dois pontos definem apenas

uma reta, mas infinitas parábolas. Novamente nos voltamos a um impasse recorrente no

trato com a poesia de Arnaldo: sua abertura para diversas significações possíveis nos

lança num impasse conclusivo.

Há ainda a própria dificuldade de situar uma imagem para a cidade na poesia de

Arnaldo; cada poeta parece reconhecer o urbano em um cenário específico, de forma

que quase todos poderiam ter apontadas, sem grande dificuldade, suas cenas

recorrentes: Caio perambulando pelas ruas e recolhendo ecos de vozes diversas,

Adriano viajando velozmente pelo coração da cidade em um veículo alucinado, Nicolas

tentando vencer o isolamento decorrente da geometrização do espaço de Brasília.

Arnaldo, por sua vez, parece não eleger um cenário urbano específico, sempre

abordando a cidade a partir de suas imprecisas fronteiras: no capítulo um a partir da

vivência temporal e visual da urbe e no capítulo três, a partir do urbano tomado como

uma rede linguística viciada. Cremos que essa alternativa ao mesmo tempo radical e

tangencial de abordagem da cidade nos oferece uma alternativa para compreendermos

alguns dos motivos da especificidade da distribuição de Arnaldo em nosso trabalho.

Parece haver uma harmonização específica entre a forma pela qual a cidade

aparece na poesia de Arnaldo e pela qual Arnaldo aparece em nosso trabalho. Não se

trata de forma alguma de subtrair a urbanidade da obra do poeta (sugerimos inclusive,

que talvez seja a mais urbana de nosso corpus), mas de mostrar o quanto, por sua

radicalidade própria, Arnaldo não se ocupa de cenários onde se possa reconhecer

facilmente a cidade através de suas imagens clássicas.

É interessante observar que é precisamente no nosso capítulo central, quando a

cidade aparece em sua materialidade, a partir de percepções sensoriais que vão pouco a

pouco se dissolvendo em discursos diferentes, que Arnaldo não aparece. Da mesma

forma, quando nos desviamos do signo gasto, da cidade que poderíamos reconhecer

como inequivocamente urbana (e aqui a delimitação espacial do cap. I.1 pode ser

incluída), e nos voltamos para concepções alternativas, nas quais a cidade torna-se uma

apreensão temporal específica, ou ainda uma rede discursiva/semiótica, é em Arnaldo

que flagramos algumas das alternativas mais pertinentes, como a radicalização máxima

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da polifonia de Palavra Desordem, da dinamização em “Nome não” ou da

verticalização de sentido das suas caligrafias.

De certa forma, Arnaldo traz mais presente a cidade quanto mais esta é algo

diferente de sua concepção clássica; quando é tempo (a partir do qual incluímos a

visualidade, novamente sem apelar para arranha-céus ou neons) ou discurso, o que

explica sua aparição sempre nos limites da cidade (e de nosso próprio trabalho). Se

reconhecemos a nossa polarização de categorias estáveis rumo à indistinção, Arnaldo

ocupa apenas as regiões onde há maior instabilidade no conceito do urbano, mostrando

o quanto a cidade, mesmo quando velada em aspectos aparentemente

descomprometidos com o ambiente urbano, é ainda um marco incontornável.

Arnaldo atua, de certa forma, numa espécie de linha de frente da poesia urbana,

dispensando os recortes já reconhecidos e elegendo novos fragmentos artísticos e

linguísticos (e aqui sua versatilidade em diversas vertentes poéticas e códigos contribui

para nossa leitura) ainda não urbanamente reconhecidos, em total sintonia com o

processo de reconhecimento da urbanidade a partir de discursos contemporâneos

dispersos, conforme sugerido por Giulio Carlo Argan.

Finalmente, em nossa fuga de um entrelaçamento conclusivo das obras dos

quatro poetas, a tessitura de uma abstrata cidade que embasasse suas múltiplas imagens

segue sem uma síntese possível ou desejável. Cabe-nos antes destacar a proliferação de

lacunas como elementos produtivos de nossa abordagem, pois multiplicam as

ressignificações possíveis ao urbano, e impedem qualquer convergência teleológica,

mantendo a cidade não apenas como uma questão em aberto, mas como algo que se

mantém em permanente abertura.

É ainda a partir dessa desautorização de uma teleologia para a multiplicidade de

recortes da cidade que cremos reafirmar a importância do contemporâneo para tal

estudo. Mais do que uma produção cronologicamente recente, trata-se antes de uma

produção que opera sua própria inconclusão; uma zona onde a descoberta e o

reconhecimento da urbanidade ainda são um processo de apropriação e reapropriação da

palavra que, por seu próprio dinamismo e multiplicidade, é avesso a qualquer

cristalização definitiva.

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