"que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

22

description

Contos do escritor brasileiro Samuel Rawet

Transcript of "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

Page 1: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias
Page 2: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias
Page 3: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

QUE OS MORTOS ENTERREM SEUS MORTOS

Page 4: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

Título: Que os mortos enterrem seus mortos

© Herdeiros de Samuel Rawete Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006

ISBN 972-795-178-3

Page 5: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

Samuel Rawet

Que os mortos enterrem seus mortos

e outros textos

Cotovia

Page 6: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias
Page 7: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

Índice

ContosIdentificação (1969) p. 9Lisboa à noite (1969) 12

QUE OS MORTOS ENTERREM SEUS MORTOS (1981)O riso do rato 25O casamento de Bluma Schwartz 31A oração 36Moira 40A trajectória 43Que os mortos enterrem seus mortos 45Trio 48Nem mesmo um anjo é entrevisto no terror 51Marinha 55Certeza 57A linha 59As palavras 62O alquimista 65Um homem morto, um cavalo, um ratomorto 68A lenda do abacate 71O rato e o pombo 76Prisioneiro da nuvem 80BRRZKNG: pronúncia — bah! 83

NovelaVViiaaggeennss ddee AAhhaassvveerruuss à terra alheia em busca deum passado que não existe porque é futuroe de um futuro que já passou porque sonhado (1970) 103

Page 8: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias
Page 9: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

Identificação(1969)

— E então, meu filho, gostou do jantar? Estáespantado até agora com a minha vinda, parece quenunca acreditou que eu viria de São Paulo para vervocê aqui no Rio, no dia do aniversário. Nunca fiz isso,não é? Era sempre um telegrama, um presente pelocorreio. Mas hoje fiz questão, e você vai saber por quê.Em primeiro lugar, vinte anos. Você está bem para aidade, forte, sadio, de boa cara. E elegante como o quê!Mais dois anos e está formado. Cardiologista. Vocêescolheu bem, muito bem, coração. Agora um detalhe,prepare-se que lá vem filme mexicano, você conhece,não é? Você nunca me fez perguntas, nos poucos diasem que nos víamos, você passou quase toda a sua vidaem internatos aqui no Rio, e quando vinha visitá-lopasseávamos pela cidade, fazíamos compras. Nuncalhe faltou dinheiro. Depois do internato você ajeitoubem sua vida aqui, no apartamento, fez seu grupo deamigos e nunca me perguntou nada. Não, não diganada. Não quero explicações, eu é que vou dar expli-cações. Você nunca me perguntou por família, paren-tes, pai. Um dia eu mesma lhe disse que seu pai mor-rera quando você era bem criança, e que nos haviadeixado bem amparados. Você não fez cara de espanto,nem de tristeza. Insisto, não quero explicações, agora,nem interrupções. Não sei bem a idéia que você faz de

9

Page 10: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

mim, como mulher, se me julga mais ou menos vulgar.Eu também não sei até que ponto me conheço. Essesproblemas complicados de sensibilidade, compreen-são! Na verdade não sei explicar exatamente por queme decidi a lhe falar hoje. Uma necessidade de fran-queza? Não, já aprendi que se paga muito caro por ummomento de franqueza, e não sei qual é bem a distân-cia entre franqueza e fraqueza. Não, não foi isto, foioutra coisa, e não sei o que é. Alguns detalhes. Nasciem São Paulo mesmo. Gente modesta. Fiz o primárioe o ginásio. Pai e mãe eram italianos, sem parentesaqui, e eu, filha única. Você deve ter parentes em algumcanto da Itália, da América, da Turquia, não sei. Pri-meiro morreu meu pai, de tuberculose, numa épocaem que já não se morre de tuberculose, depois minhamãe, do coração. Aos dezoito anos me vi só. Arranjeitrabalho num escritório, tive dois ou três namorados,até que meu chefe me convidou um dia para jantar.Belo restaurante, bela comida, ótimo vinho. Depois meconvidou para dançar. Tudo belo, muito belo. Às qua-tro horas da manhã eu estava em seu apartamento,completamente embriagada. O resto é filme mexicano,mesmo. Escorreguei, é o termo que se usa. No diaseguinte, sem um quê nem porquê fui despedida. Veiotudo, tudo o que você pode imaginar. Trauma, e oresto. Dois meses depois eu estava recuperada, e livredo temor de engravidar. Você quer uma bebida? Euquero, chame o garção, peça um uísque para mim e oque você quiser para você. O mesmo rosto de sempre,você é um mistério, meu filho, a mesma serenidade.Por um lado acho ótimo isto, realmente acho ótimo.Você me dá a impressão de alguém que amadureceu,realmente amadureceu, cedo, muito cedo. Os anos de

10

Page 11: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

internato devem ter sido duros, solidão, angústia,deixa, deixa eu usar essas palavras. Nada lhe faltava,nada, você tinha casa, comida, roupa, estudos, dinheiro,nada lhe faltava, nada! Nada! Mas até o ponto em queposso julgar, tudo lhe faltou. Talvez você seja filho domeu ódio, talvez no fundo eu o tenha odiado antesmesmo de você nascer. Obrigada, mais uma pedra degelo! Por Favor! Acabou a pedra do meu isqueiro.Obrigada, mais uma vez. Voltemos à franqueza, ou fra-queza. Uma coisa lhe garanto, sinto-me feliz por vê-locomo o vejo agora. E não sei se vou ainda ver vocêdepois do jantar de hoje. Qualquer que seja a sua rea-ção, eu a compreendo e aceito. Os filmes mexicanostêm um péssimo defeito, são péssimos filmes mexica-nos. E vamos a eles. Sou uma puta! Bonita esta Ave-nida Atlântica no verão, a essa hora, e é gostoso jantardebaixo de um toldo, vendo gente. Muito bem, amesma cara! Ótimo! Tomei essa decisão exatamentedois meses depois do episódio no escritório. Era tãofirme, que consegui me equilibrar bem, fazer econo-mias e administrar bem minha vida, até hoje. Um dia,por ódio ainda, desejei ter um filho. Você! Dizem queas putas sabem quando engravidam de quem foi a coisa.Balela! Creio que não há mais nada a dizer. Fim. Pel-mex Produções!

Sem dizer uma palavra, sem um gesto, olhando acalçada, ele a amou infinitamente, e amou todos oshomens que com ela dormiram.

11

Page 12: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

Lisboa à noite(1969)

Só encontrou um lugar vago no balcão do bar.Entre um tipo alto, louro, robusto, e uma puta enve-lhecida. Ambos tomavam cerveja. Sentou-se e pediucerveja, também. Tomou meio copo e girou o corpoapoiando as costas na quina do balcão. Cheia a pistado centro e cheias as mesas em torno. Ouviu entre oestrondo da orquestra num mambo gritos em inglês,francês e alemão. As mulheres eram quase todas por-tuguesas. Havia apenas uma espanhola e uma italiana.Uma delas abraçada a um marinheiro no canto da pistaacenou-lhe assim mesmo, em meio ao riso, com opunho da mão esquerda fechada a balançar comocabeça de boneco. Respondeu enchendo as bochechase soprando o ar com violência, o que provocou, comosempre, uma gargalhada na mulher.

— Não me oferece uma cerveja, Isac. — A putaenvelhecida deu-lhe uma cotovelada.

— Você me conhece?— Há quatro meses você cá vem todos os dias,

minto, faltou duas vezes. — Boa observadora! — Tenho tempo de sobra!Um bando alto e louro, à paisana, entrou às garga-

lhadas.

12

Page 13: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

— Pelo jeito isto hoje fica apinhado de suecos. —A puta envelhecida, depois de virar o copo, ficou namesma posição que a dele, encostada no balcão, defrente para a entrada, as pernas cruzadas.

— Algum navio no porto? — Chegou à tarde. — Engraçado, não me lembro de você. — Azar o meu, meu brasileiro. O mais moço do bando aproximou-se dela e pôs

as duas mãos sobre suas coxas. Ela envolveu-lhe o pes-coço com os braços e deu-lhe uma leve mordida naorelha.

— Viva Portiugaaal! — gritou o sueco, abraçando--a e erguendo-a bem alto antes de deixá-la no chão —Let's go dance!

Ainda rindo, torceu o corpo e encheu novamenteo copo. Dos bares do Cais Sodré era o que preferia.Tinha menos espelhos, mais luzes, e era o mais largo,detalhe que lhe permitia, do balcão, observar a salatoda. Só agora deu pela coisa. Em quatro meses, fal-tara apenas duas vezes. Depois daquele canto o quemais lhe agradava era o Solar da Madragoa, com abaixota e rechonchuda Hilde Silva atacando um fadocom o vigor e a raiva de uma minhota ou alentejana,enfezada, sabia lá. As idéias iniciais sumiram com asprimeiras semanas. Levantar material para uma novelasobre a Inquisição, e ver o resto, Évora, Nazaré, Braga.Foi se entregando à cidade com o mesmo peso que car-regava nas outras. Apenas mais displicente. Acordarao meio-dia. Tomar café na Suíça do Rocio, subir aAvenida da Liberdade, passar a tarde lendo no ParqueEduardo VII, lendo ou remoendo ódios, comendo àssete da noite, voltando à pensão para um cochilo antes

13

Page 14: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

de sair aí pelas dez. Um cinema. Os bares. Casas defado.

— O senhor é brasileiro, e se chama Isac? — A fala carregava nos erres, embora não muito forte. —Veio passear em Lisboa?

— Não! Coçar o saco! O tipo alto, louro, robusto, à sua esquerda garga-

lhou forte, sempre a repetir, coçar o saco, coçar o saco,até que perguntou:

— O que é coçar o saco?Aumentou a gargalhada ao receber a explicação,

deu-lhe umas palmadas nas costas, apresentou-se comoJohansen, holandês residente em Portugal há quasequinze anos.

— Nunca ouvi esta expressão por estes lados! — Eu aprendi no Rio, não sei se em Portugal se

usa, ainda vou perguntar. O sueco voltou com a mulher, pediu duas bebidas

e desejou happy New Year e merry Christmas a todomundo, virou um pouco de seu uísque nos copos decerveja de Isac e Johansen, eufórico, berrando, it'sgood, it's good, Portiugaaal, e arrastou de novo amulher para a pista.

Um rápido silêncio enquanto bebiam a mistura,sorrindo.

— O senhor é brasileiro e se chama Isac?— Judeu! — Judeu?— Brasileiro.— Brasileiro?Silêncio. Pausa. Johansen pede que lhe troquem o

copo e tragam outra cerveja, duas, oferece uma a Isac.Ouve-se um mambo com os músicos fazendo coro.

14

Page 15: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

De repente um grito de mulher e uma bofetada norapazote magricela que a espancara. Estava embria-gado. O negro angolano veio da porta, e sem amarro-tar a farda levantou-o pela gola e pelo cós das calças,atravessou com ele o salão, e o que se ouviu depois foiapenas o choque de um corpo com o calçamento darua. A orquestra continuou o mambo. Isac e Johansenbebiam.

— Judeu?— Judeu! — Brasileiro?Tirou do bolso do blusão o maço de cigarros, ofe-

receu um a Johansen e este acendeu os dois. Abriu ofecho-éclair, começava a sentir calor, embora na rua,mesmo sendo maio, ainda sentisse frio de madrugada.Passara o tempo das infinitas perguntas, das múltiplaspossibilidades de quem estivesse a seu lado. Agora eraJohansen, se dizia holandês, radicado em Lisboa háquase quinze anos, o mês era maio, o lugar, Cais Sodré,e fumavam e bebiam juntos. Quando subiu na PraçaMauá só pensava na Inquisição, rever os lugares, colherinformações, catar livros, anotar detalhes de tortura ecortejo de execução. Uma semana depois, diante deum cálice de conhaque, em pleno inverno, percebeuque não tinha vocação para pesquisa, que a Inquisiçãoera um assunto remoto, e até certo ponto infantil, quehavia outras coisas, entre preguiça e tensão, uma von-tade doida de ver a ponta de Sagres, vontade apenas.Chegou a sonhar com o Infante D. Henrique, comaquele mesmo barrete ou o que fosse das gravuras, umatira de pano caindo, à esquerda, à direita? Mas não foiao Algarve. Rascunhou alguma coisa e rasgou. A atua-lização de uma lenda tcheca. História de cangaceiro e

15

Page 16: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

massapê é que não podia fazer. Nunca saiu do Rioantes. Nem mesmo São Paulo conhecia. Escrever eraapenas uma aspiração, um desejo meio vago, quandodeixava à noite a firma de publicidade que o empre-gara. Tinha dois meses ainda pela frente, e a preocu-pação com o dinheiro que ia acabando, e que conse-guira reunir para os seis meses de licença. Achou quenuma história da Inquisição sentir-se-ia à vontade,poderia fundir episódios pessoais, familiares, seus paiseram romenos, histórias conhecidas apenas de ouvido,perseguições, autos-de-fé. Tinha trinta anos, algumaambição, e não sabia muito bem o que era ser escritor.Achava no início que era ter tempo, tempo de sobra,coisa que nunca teve. Agora tinha-o demais, e eraaquilo. Nada! Uma coisa pelo menos descobriu naque-les quatro meses, talvez escrever não fosse nadadaquilo que ele achava que devia ser, e que vira à suavolta, talvez o melhor fosse isto mesmo, este nada, esteesvaziamento. O resto se tivesse que vir, viria esponta-neamente.

— Judeu? — Judeu! — Brasileiro? Começou a achar Johansen engraçado. O jeito alto,

corpulento, o topete louro e bem aprumado. A Holandaera uma boa terra. Tulipas. Mas não iria à Holanda.Era por demais preguiçoso. Bastava estar ali sentadoconversando com um holandês. A Holanda era aquilomesmo que diziam, os diques, os canais. Spinoza, lem-brou-se agora. Por um triz e esse desgraçado era por-tuguês. Foi nascer lá. Conhecia Spinoza? Sim, Johan-sen conhecia muita coisa. Isac permaneceu mudo,tomando cerveja, a orquestra a trocar mambos por

16

Page 17: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

blues, blues por valsas, valsas por xaropadas italianas,permaneceu mudo, tomando cerveja, fumando,enquanto Johansen falava! Spinoza, Kant, Bach, oúltimo livro de Sartre, o último filme de Bergman, quenão fora exibido em Lisboa, mas de que tivera conhe-cimento através de uma revista francesa. Johansenfalava, era viajado, conhecia toda a Europa, tirava suasférias na Inglaterra, França e Itália. Não, não queriavoltar à Holanda. Família kaput com a guerra. Johan-sen falava, falava, falava, Isac permaneceu mudo,tomando cerveja, a orquestra a tocar, tomando cervejae fumando, Johansen falava.

— Judeu?— Judeu!— Brasileiro?Subitamente pareceu-lhe ver em Johansen uma

contração de medo. Novo silêncio. Já não falava.Fumava. Bebia. Olhava-o com um jeito de intriga bemdissimulado.

— Vou embora, vou comer alguma coisa! Pagaram a conta, Isac ainda viu o sueco agarrado

à puta envelhecida dançando e gritando happy NewYear, Portiugaaal, foram comer camarões e bolinhosde bacalhau numa casa ao lado. Tomaram vinho branco.Johansen começou a interrogá-lo. O que fazia? Em quetrabalhava? Por que estava em Portugal? De onde era?Não viu inconveniente em responder. Brasileiro, publi-citário, estava de férias, e viera a Lisboa coçar o saco.

— Judeu? — Judeu! — Brasileiro? Johansen tentou se despedir, queria ir para casa.

Isac insistiu. Por que não continuavam a beber? Foram

17

Page 18: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

a um bar em Alfama, mais sombrio, menor, sentaram-sena mesa com duas mulheres e Johansen transfigurou--se. Abraçou-se às duas, beijou-as, começou a contarpiadas pornográficas, bebeu sete ou oito doses de uís-que, e cantou, depois de pedir num berro que a orques-tra o acompanhasse, uma bela canção alemã. Bom barí-tono. Palmas por toda a parte. Johansen tombou sobrea mesa, parecia cochilar. As mulheres passaram paraoutra mesa, eles haviam deixado de pedir bebida. Isacbebera pouco. Estava lúcido. Olhava Johansen dobradosobre o tampo, as mãos caídas, o topete desfeito. Mas en-ganara-se, não cochilava. Em pouco ergueu a cabeça, umrosto envelhecido, os olhos abertos, a voz rouca.

— Você não sabe o que é o ódio, Isac, nem o medo!Quem é você?

— Brasileiro!— Judeu? — Judeu! — Brasileiro? — Brasileiro! — Tem passaporte? Mostrou-lhe o passaporte, enquanto pedia um uís-

que. Fora revolvido. Voltara aos pontos de interroga-ção. Quem era Johansen? O que era Johansen? Rece-beu o passaporte de volta, enfiou-o no bolso de dentrodo blusão e continuou fitando um rosto que não conhe-cia, envelhecido, espantado, cansado.

Johansen sacudiu-se, pegou no copo de Isac e esva-ziou-o em um gole. Agora estava decidido a ir embora.O cantor do conjunto veio lhe perguntar se queria can-tar mais alguma coisa. Johansen sorriu, agradeceu,aprumou o corpo num bocejo violento, ajeitou o topetecom os dedos, e Isac viu-o como antes, o rosto mais

18

Page 19: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

jovem, sem cansaço, como no Cais Sodré, apenas comuma tensão que já conhecia, e uma lucidez fácil de der-rubar com meio copo apenas. Saíram. No táxi sentiu--lhe o nervosismo, concordou em continuar a beber.Foram a uma transversal da Avenida da Liberdade. Umcabaré enorme, por demais iluminado, barulhento,entraram no meio do show. Um cantor baixinho,esquelético, de cravo na lapela, sacudia com senti-mento uma canção de Aznavour. Pediram cerveja.Johansen voltou a falar. Falou como antes, pletórico,exaltado, o rosto mais moço ainda, falou apenas sobrejudeus, elogiou-os a valer, se desdobrava em elogios,apenas Isac entreviu lugares-comuns. Não era o Johan-sen de antes, não era a espontaneidade do Johansen noCais Sodré. Era um homem que se aturdia agora, a umpasso de perder o controle.

— Você é judeu, Johansen? — Não, mas gostaria de ser. Depois do cantor, veio uma cantora, depois um ilu-

sionista, depois um contorcionista, depois um cómico,depois de novo o cantor com uma outra música deAznavour. Você não sabe o que é o ódio, Isac, nem omedo! Johansen levantou-se e foi ao banheiro. Isacpagou a despesa e continuou sentado. Quando viuJohansen sair do banheiro e tomar a direção da portada rua sem olhar para ele, levantou-se e seguiu-o. Des-ceram juntos uma ladeira, e chegaram à Avenida. Faziafrio. Três, quatro horas? Ergueu o fecho até à gola.Johansen estava em mangas de camisa e parecia nãosentir nada. Procurava disfarçar uma inquietação. Fezparar um táxi e sem dizer uma palavra sentou-se nobanco traseiro e tentou impedir que Isac entrasse. Com

19

Page 20: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

um pouco de violência segurou a porta e conseguiuentrar.

— Você está com medo de quê, Johansen? — Vocês me perseguem! — Vocês quem, Johansen?Isac pediu ao chofer que os levasse a Portas de

Santo Antão. O pequeno bar e restaurante deveriaestar aberto ainda. Johansen apoiou os braços noencosto da frente e a cabeça nos braços, parecia solu-çar. Saltaram e ocuparam a primeira mesa da únicafileira que acompanhava o balcão com os tamboretes.Quando pediu camarões e uma garrafa de vinho brancoIsac já tinha afastado a hipótese de paranóia.

— Vocês quem, Johansen? Em poucos minutos Johansen esvaziou a garrafa.

Pediu um conhaque. Dois. Outra garrafa de vinho. Umuísque.

— Você é brasileiro e se chama Isac? — Judeu! — Judeu? — Brasileiro! — Brasileiro? E os outros? — Que outros? — Estão aí por perto? — Não há outros, Johansen, estou só. — Eu o odeio, Isac, odeio os judeus! Eles me per-

seguem! — Você é holandês, Johansen? — Não! Sou alemão! Encostou os ombros na parede, de lado, e esticou

as pernas. Estava completamente embriagado, comple-tamente, a cabeça oscilava, as mãos tremiam. Só a vozse mantinha inalterada, uma fala metálica.

20

Page 21: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

— Eu sei o que é o medo, Johansen, e o ódio! Johansen falava sozinho, baixo. Não havia nin-

guém no bar. O garção se retirara para os fundos, e ohomem da caixa parecia alheio a tudo.

— O ódio fica, mas o medo cansa, pulveriza, e numinstante de fraqueza a gente mesmo se destrói, seentrega.

Um riso dominou-lhe o corpo todo, um riso quecontagiou Isac, e em meio à gargalhada dos dois,Johansen estendera as duas mãos sobre os ombros deIsac, e encaravam-se os dois, rindo, em meio à garga-lhada, Johansen berrou:

— Eu sou nazista, odeio vocês todos, e finalmentevocês me localizaram.

O homem da caixa assustou-se, o garção veio dosfundos.

— Não é nada, não se preocupem, está meio deporre. A conta!

Ultrapassaram o Rocio, e se encaminharam emdireção ao Chiado. Johansen passara a mão direita peloseu ombro e seguia cambaleando. Isac reprimiu comviolência um jorro de idéias vagas e nítidas, de senti-mentos confusos e paixões bem definidas, toda umatorrente a girar em torno de um nome apenas.

— Onde é que eles estão? Acendeu vários cigarros enquanto caminhavam em

silêncio, ao acaso, cruzando ruas, retrocedendo, embi-cando em vielas. Na sua inocência, ou pretensa ino-cência, recompôs várias infâncias e fundiu tudo em ummundo que deu aquele tipo a seu lado, em um mundoque tudo permitiu e que em vez de acordar do pesa-delo, trocava de pesadelos, apenas. Regressaram, aindaao acaso, ao Rocio. Isac chamou um táxi e acomodou

21

Page 22: "que os mortos enterrem seus mortos" e outras histórias

Johansen, dizendo ao chofer que o levasse para casa,ele lhe daria o endereço. Johansen soluçava no banco,soluçava alto.

— Vocês não vão me levar, não vão me prender?Por quê?

Bateu a porta com violência, o carro arrancou. Tomou a rua em direção ao Largo junto ao rio e

estacionou perto do cais das lanchas de Cacilhas.Amanhecia. Os morros em volta apareceram. Umgrupo de operários embarcou na primeira lancha atra-cada. Quando tomou o caminho de regresso à pensãonão estava bem certo se havia gaivotas, mas de umacoisa estava seguro. Nunca faria o trabalho sobre aInquisição.

22