Queimadas e os impactos da guerra contra belo monte
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UNEB – UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA Campus XIV – Departamento de Educação
Curso de Licenciatura em História
José da Silva Araújo
QUEIMADAS E OS IMPACTOS DA GUERRA CONTRA O BELO MONTE
Conceição do Coité/BA 2011
José da Silva Araújo
QUEIMADAS E OS IMPACTOS DA GUERRA CONTRA O BELO MONTE
Monografia apresentada ao Colegiado do Curso de História, como requisito básico para a obtenção do grau de Licenciatura Plena. Orientadora: Professora Mrs. Iris Verena Santos de Oliveira.
Conceição do Coité/BA
2011
TERMO DE APROVAÇÃO
José da Silva Araújo
QUEIMADAS E OS IMPACTOS DA GUERRA CONTRA O BELO MONTE
__________________________________________________________
Orientadora: Professora Mrs. Iris Verena Santos de Oliveira
UNEB – UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
__________________________________________________________
Professor Mrs. José Plínio de Oliveira
__________________________________________________________
Professor Mrs. Eduardo Borges
Data da aprovação _____/_____/_______
Conceição do Coité/BA 2011
DEDICATÓRIAS
À Joede, Hítalo, Anísia, Ezequiel, Landy, Nólia e Giovanna Vitória, integrantes
da família que tanto me apóiam.
À Emanuel Lírio (Nel), Marcos Murilo, Mário César (Cesinha), Paulo Amador
(Paulinho), Paulo Taciano (Cinho), Floriano Esteves (Estevinho), Professora Celeste
Silva, Kelly, Luziene, Robson Ribeiro, Raimundinho, Marco Sales, Consuelo , José
Renato, José Miguel, Vera Góes, James, Rarichel e Jane Varjão. Entusiastas e
brilhantes educadores (as) que não apenas conhecem, mas têm orgulho da história
de Queimadas.
Ao colega luzense Renato Pereira, permanente interlocutor das coisas de um
mundo espetacular e prazeroso denominado Sertão.
AGRADECIMENTOS
Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
Bendito seja Deus pelo dom da vida e pela força na lida. Não fosse a atuação
de algumas pessoas o presente trabalho não existiria. Agradeço especialmente a
minha orientadora, Professora Iris Verena pelas sábias e consistentes orientações
proporcionadas. Em todos os momentos que recorri à mesma fui correspondido e
atendido com o máximo de atenção. Com ela aprendi, dentre muitas outras coisas, a
admirar e valorizar a vida, os dramas e as vivências das classes populares da Bahia
e do Brasil. Além do que, é imperioso salientar acerca do apoio irrestrito que recebi
no que concerne à temática da pesquisa, pois em momento algum Professora Iris
fez objeção, colocou empecilhos, tentou “mudar o meu foco”, ou desencorajar-me
em meu intento.
Agradeço também ao Professor Plínio Oliveira. A despeito de sua vastíssima
erudição, de ser um dos maiores conhecedores do fenômeno social constituído pela
fundação/destruição da comunidade de Belo Monte, nunca se esquivou em trocar
ideias com um neófito, apontando sendas de análise e interpretação, partilhando
seus inúmeros saberes, suas vivências construídas a partir de múltiplas leituras,
mas, sobretudo de suas constantes andanças no sertão de Canudos, participando
das tradições culturais, dos ritos e festividades, praticados por seus habitantes, em
grande medida herdados dos seguidores do Conselheiro.
Digna de meus agradecimentos também é a Mrs. Professora Adriana
Boudoux que, com uma sensibilidade peculiar, me auxiliou sobremaneira e enxergou
certa qualidade na confecção de minha escrita — grande incentivo para a realização
desta pesquisa.
SUMÁRIO
Apresentação ........................................................................................................ 07
Introdução ............................................................................................................. 08
Capítulo I: Santo Antônio das Queimadas no Século XIX.
1.1 Os fatores do povoamento .............................................................................. 14
1.2 A evolução político-administrativa de Queimadas ......................................... 20
1.3 Queimadas no alvorecer da República ........................................................... 24
Capítulo II: A guerra empreendida contra o Belo Monte e seus impactos
materiais em Santo Antônio das Queimadas.
2.1 A fragilidade dos motivos da guerra contra o Belo Monte .............................. 28
2.2 O estopim do conflito contra o Belo Monte ..................................................... 37
2.3 Os impactos materiais que o município de Queimadas sofreu advindos
do conflito contra o Belo Monte............................................................................. 40
Capítulo III: Os impactos subjetivos da guerra contra Belo Monte ocorridos
no município de Santo Antônio das Queimadas.
3.1 Os impactos psicológicos ............................................................................... 48
3.2 Os impactos políticos e ideológicos ................................................................ 54
3.3 Queimadas: as visões dos forasteiros ........................................................... 58
Considerações finais .............................................................................................61
Lista de fontes .......................................................................................................63
Referências bibliográficas ..................................................................................... 66
Anexos .................................................................................................................. 69
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APRESENTAÇÃO
A historiadora Maria Saenz Leme afirmou no prefácio da obra Antônio
Conselheiro: a fronteira entre a civilização e a barbárie (2001), que contar a história
do Brasil é contar a história do sertão. Este mesmo sertão nordestino que, não raro,
é caracterizado a partir de visões estereotipadas construídas por escritores,
cineastas, artistas plásticos, escultores, entre outros, é, no entanto, habitado por
homens e mulheres briosos (as), capazes de engendrar autênticas expressões
culturais, de desenvolver estratégias criativas de resistência às injustiças sociais,
com vistas a superar os entraves que lhes foram impostos pelo meio natural ou
gerado por espertalhões de plantão que tiram proveito da miséria alheia, cujos
exemplos mais eloqüentes são “os famigerados empresários da indústria da seca”.
O Sertão concebido aqui aparece na perspectiva de um território não
subserviente aos ditames das classes dominantes, como “território de revolta”, de
contestação às práticas autoritárias tão bem realizada pelos sertanejos de Canudos
ao defenderem indomitamente seus lares violados, invadidos por milhares de
militares. Esta comunidade heróica que não se rendeu, tão discutida e
problematizada por diferentes trabalhos inspirou a confecção de mais um. Desta
feita para demonstrar que a guerra contra Belo Monte também foi nefasta para os
habitantes de Queimadas.
Este trabalho empreende algumas reflexões relativas aos impactos que o
município de Queimadas sofreu na condição de base de operações durante boa
parte da guerra contra o Belo Monte. O primeiro capítulo discute os fatores que
contribuíram para o povoamento do território e, por conseguinte, para a evolução
político-administrativa da localidade. A parte final analisa o contexto histórico da
Proclamação da República, bem como a receptividade dos queimadenses com
relação ao novo regime de governo. O segundo capítulo versa sobre os motivos
engendrados por latifundiários, membros da elite letrada e do clero, políticos, entre
outros, que foram decisivos para a eclosão da guerra. Aqui também são discutidos
os impactos materiais do conflito vivenciados pelos habitantes de Queimadas.
O terceiro e último capítulo trata dos impactos subjetivos (com destaque para
o medo) sofrido pelas autoridades e munícipes, causados pelas mais diferentes
formas, na configuração das relações dos militares com os habitantes locais.
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INTRODUÇÃO
Em 1º de dezembro de 2010, o município de Queimadas/BA recebeu a visita
de vários militares. É que na manhã do mesmo dia duas agências bancárias da
cidade foram assaltadas por 15 homens fortemente armados. Daí a presença de
vários militares naquele território tentando capturar os meliantes que haviam deixado
boa parte da população em pânico, pois além de dispararem suas armas várias
vezes “para cima”, assassinaram um pai de família, servidor público municipal.
Contudo, não fora a primeira vez que militares em serviço penetraram nas terras
queimadenses, quebrando a monotonia marcante da vida sertaneja naqueles
rincões. Isso porque, há 114 anos milhares de soldados, das forças estaduais e,
sobretudo, federais, estiveram em Queimadas com o fito de destruir o arraial de
Canudos, exterminar todos os seus moradores (estimados em cerca de 20.000) e
salvar a República do risco iminente de ser solapada por um reduto de facínoras,
adeptos da Monarquia há pouco derrubada. Estes eram pontos de vista
compartilhados por muitas autoridades, jornalistas e intelectuais brasileiros da
época.
Nos idos de 1893, o peregrino Antônio Vicente Mendes Maciel, mais
conhecido por Antônio Conselheiro, escolheu um lugarejo obscuro e abandonado, às
margens do rio Vaza-Barris para fixar residência, juntamente com seus seguidores,
após mais de vinte anos de peregrinação pelo interior do Nordeste. A sociedade que
surgia na “fazenda velha”, também conhecida como Canudos, era composta por um
universo heterogêneo de pessoas: camponeses pobres, ex-escravos, fazendeiros,
comerciantes, beatos devotos, entre outros. A maioria esmagadora dos moradores
de Canudos ou de Belo Monte — como era denominada pela maioria das pessoas
que lá residiam — era constituída por homens e mulheres sem perspectivas na vida,
alijados das condições básicas de sobrevivência e excluídos das políticas públicas
que eram implementadas no período em outras porções do país. Em Canudos
encontravam uma sociedade menos injusta e mais fraterna que aquela a que dantes
pertenciam. Ali tinham acesso a terras para plantar, para criar seus animais e, deste
modo, garantir o sustento de si e da própria família, sem serem explorados
economicamente ou injustiçados pelos fazendeiros do Sertão, pelos coronéis do
Nordeste. Este fato tornou-se conhecido em muitos lugares nordestinos. Assim
9
sendo, famílias de diferentes partes da Bahia, Sergipe, Pernambuco, entre outros,
decidiam vender seus pertences e caminhar dias seguidos demandando a
comunidade de Canudos para também integrá-la. Sobre este assunto, o Barão de
Jeremoabo1 assim se expressou:
“Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até do Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvião de famílias que subiam para os Canudos [...]. Causava dó verem-se expostos à venda nas feiras, extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, etc., além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casas, etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro” (MARTINS apud CUNHA, 2003, p. 186).
O discurso do Barão de Jeremoabo denota o grande poder de atração que a
cidadela de Canudos passou a exercer, sobretudo a partir de 1894, sobre pessoas
de distintos lugares. Além do que, outros escritos explicitam a preocupação das
classes dominantes do meio rural, que circundava Canudos, com relação ao
crescimento da comunidade, pois preconizavam que os habitantes canudenses
praticavam o saque, o roubo nas propriedades vizinhas e outros diversos delitos.
Desmentindo estas afirmativas a historiadora Isaura Queiroz em sua obra O
messianismo no Brasil e no mundo salientou:
Assim, havendo uma estrutura e organização interna do povoado, o controle era exercido de acordo com os preceitos do chefe. Desde a fase errante, os testemunhos “são todos acordes em confessar que à população que o seguia jamais consentiu ou patrocinou desmandos ou atentados contra a propriedade ou contra pessoas” sendo raríssimos os crimes e as disputas; exigia dos adeptos um comportamento inteiramente conforme a sua noção de moral, “combatia o roubo, a mentira, o homicídio, não admitindo também “que vivessem juntos casais não casados na Igreja”, pois não tolerava o amor livre de modo que as meretrizes eram, infalivelmente, expulsas do povoado (QUEIROZ, 2003, p. 235).
Considerando a citação da historiadora depreende-se que Canudos não era
um ajuntamento de farândolas, de criminosos foragidos da justiça como apregoavam
1 Trata-se de Cícero Dantas Martins. Nasceu em 28 de junho de 1838 na fazenda Caritá, município de Jeremoabo. Tornou-se Bacharel pela Faculdade de Direito de Recife, iniciou-se nas atividades políticas ainda estudante e, embora ao longo de sua vida haja desenvolvido múltiplas atividades, foi essencialmente, um homem político. Foi proprietário de 61 fazendas, algumas das quais na região de Canudos. Faleceu em 1903 (SAMPAIO, Consuelo Novais. Canudos: cartas para o Barão. — 2. ed. — São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001, p. 17 – 18).
10
determinados membros das elites agrárias e diversos intelectuais brasileiros do
período.
Pelo contrário, a comunidade canudense era organizada, liderada por um
chefe austero que coibia os crimes e tolhia as desordens – Antônio Conselheiro.
Dessa maneira, até fins de 1896 a comunidade crescia com paz e harmonia entre si
e com as povoações circunvizinhas.
A partir de novembro de 1896 a sociedade canudense seria vítima da
conspiração de um juiz de Direito da cidade de Juazeiro,2 de alguns políticos
baianos, de fazendeiros sertanejos que estavam perdendo mão de obra para
Canudos, entre outros. Em conjunto passaram a reclamar às autoridades estaduais
e, posteriormente, às federais, com destaque para o Presidente da República
Prudente de Morais que aniquilassem Canudos urgentemente. Entretanto, a
comunidade resistiu heroicamente, a quatro expedições militares, até que o Estado
reforçou a IV expedição e conseguiu exterminar completamente os pobres
sertanejos de Canudos.
Após os insucessos da primeira expedição em Uauá (novembro de 1896), o
recém-criado município de Queimadas (instalado em 1887) ganhou posição de
destaque na sangrenta e infundada guerra que os governos estadual e federal
realizaram contra o povo de Canudos. Dessa maneira, entre fins de novembro de
1896 e outubro de 1897 a cidade de Queimadas constituiu a primeira base de
operações na guerra canudense. Em Queimadas ficavam sediados o “hospital de
sangue”, armazéns de víveres, materiais bélicos, rações e forragens para os bois de
abate e os animais de montaria. Entretanto, todos estes empreendimentos oficiais
alteraram o modo de vida e a dinâmica existencial dos habitantes em geral e das
autoridades do município. Isso porque, a grande concentração de soldados, ainda
que por pouco tempo, na sede de um município recém-emancipado e que dispunha
de parcos recursos econômicos, com arrecadação de verbas públicas totalmente
insuficientes para cobrir os gastos da municipalidade, causavam despesas
acentuadas com alimentação, compras e/ou aluguéis de animais de tração,
carroças, aquisição de medicamentos, esparadrapos etc. Em outras palavras, os
2 Dr. Arlindo Leoni. O mesmo, na ocasião, estava sendo juiz em Juazeiro. Contudo já havia sido magistrado na comarca de Bom Conselho, quando em 1893, Antônio Conselheiro e seus seguidores queimaram os editais de cobrança de impostos. O juiz fugiu às pressas temendo ser morto. Tornou-se um eterno desafeto do conselheiro e passou a reivindicar a destruição de Canudos com todos os seus moradores (CUNHA, 2003, p. 226).
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recursos públicos que deveriam ser empregados para a melhoria da qualidade de
vida de uma população que habitava uma das regiões mais pobres do estado,
“foram destinados a prover parte das necessidades básicas de três expedições
militares com destino ao arraial de Canudos” (CUNHA, 2003, p. 361).
A condição de base de operações desestruturou a vida econômica do
município. O comércio tornou-se decadente, reduzido a poucas casas comerciais e
que ainda assim vendiam pouquíssimos produtos; o medo coletivo se apoderou da
quase totalidade da população, levando-a a abandonarem os serviços agrícolas e se
refugiarem na casa de parentes ou amigos que viviam em outros lugares. Atitude
que se justifica devido às notícias que circulavam a respeito dos feitos passados de
alguns oficiais, com destaque para o Coronel Moreira César ou ainda pelas ações de
indelicadezas praticadas pelos militares entre si e/ou contra os habitantes
queimadenses. Aqueles que preferiram ficar na cidade sofreram pressões
psicológicas diversas: eram testemunhas oculares de cenas fortes, observavam a
chegada de militares aterrorizados, tomados de pavor, chegar da região conflagrada,
dilacerados por diversos espinhos, mutilados, ensangüentados; outros carregados
em padiolas, mortos.
Na quarta expedição, por exemplo, as tropas permaneceram na cidade por
mais de dois meses. Sendo assim, realizavam exercícios militares diversos, tocavam
bandas de músicas marciais, ou como afirmou o escritor Euclides da Cunha, em sua
obra Os Sertões (2003), “os dias começaram a escoar-se monotonamente em
evoluções e manobras, ou exercícios de fogo, numa linha de tiro improvisada num
sulco aberto na caatinga próxima”. Todas estas ações militares incomodavam o
sossego, o descanso da população, causavam irritação em vários moradores. Os
mais abastados tinham que estar sempre de prontidão para fazer favores, conceder
benesses às tropas: bois, carneiros, galinhas, feijão, farinha eram requisitados para
a alimentação. Muitos tiveram que “ceder” seus cavalos, suas melhores montarias
para diversos oficiais e, não obstante isso, foram acusados por várias autoridades
políticas e militares de serem adeptos da Monarquia e fiéis colaboradores de Antônio
Conselheiro, como foi o caso do Intendente3 de Queimadas Cel. José Martins Leitão.
Dentro desse contexto, constituem objetivos deste trabalho:
3 Nos primeiros tempos da República o chefe do Executivo Municipal era denominado Intendente, posteriormente é que fora alterado para prefeito.
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— Analisar os fatores que propiciaram o povoamento do território
queimadense;
— Contextualizar historicamente a evolução político-administrativa de
Queimadas;
— Discorrer acerca dos fatores que contribuíram para a eclosão da guerra
contra o Belo Monte;
— Discutir os principais impactos da guerra contra o Belo Monte ocasionados
no município de Queimadas.
A construção do texto a seguir pautou-se nas seguintes fontes:
(bibliográficas): Os Sertões, Diário de uma expedição e Descrição de uma viagem
à Canudos; (jornalísticas), Jornais: Gazeta de Notícias, Jornal do Comércio, Diário
da Bahia, Jornal de Notícias e A Bahia, de 1897, documentos manuscritos do século
XIX e filmes.
No primeiro capítulo foi necessário abordar a respeito do binômio
escravidão/abolição, bem como sobre o contexto sócio-histórico da Proclamação da
República no Brasil, temas que à primeira vista não têm relação com o objeto de
análise desta pesquisa. Entretanto, estão intimamente relacionados com o conflito
deflagrado contra o Belo Monte. As condições de vida dos cativos que eram assaz
insalubres e indignas durante o período escravocrata, pouco ou nada mudaram com
a abolição. Desta maneira, impulsionados pela falta de perspectivas, de
oportunidades na vida, muitos ex-escravos se dirigiram a Canudos para integrar
aquela singular sociedade. É o povo “13 de Maio” de que nos fala Consuelo
Sampaio (2001, p. 42) e Roberto Dantas (2009, p. 49) a encontrar em Canudos uma
alternativa de sobrevivência, negada pelo Estado de forma explícita. Analisar o
momento em que ocorre a instauração da República implica trazer à tona os
propagados ideais de progresso típicos da Belle Époque4, incorporados pelo
discurso republicano como proposta de desenvolvimento nacional. Cumpre destacar
ainda que a maneira pela qual políticos, militares e intelectuais concebiam a
República – frágil, vulnerável e instável – influenciou, até certo ponto, na destruição
total do Belo Monte. Para muitos, ali era um baluarte da monarquia que pretendia
solapar o governo da República.
4 Período de tempo compreendido entre 1871 – 1914. É a época em que surgem o avião, o telefone, o cinema. Paris, na França, com suas livrarias, bibliotecas, cafés-concertos, é o centro cultural do mundo.
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Algumas vezes usamos as primitivas denominações do município, a saber:
Vila Bela de Santo Antônio das Queimadas ou Santo Antônio das Queimadas.
Todavia, a nomenclatura preponderante no decorrer do texto é “Queimadas”, por ser
aquela que predomina nas fontes que fazem alusão ao citado município,
relacionando-o com os acontecimentos belicosos de Belo Monte.
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CAPÍTULO I
SANTO ANTÔNIO DAS QUEIMADAS5 NO SÉCULO XIX
1.1 Os fatores do povoamento
A evolução político-administrativa do município de Santo Antônio das
Queimadas perdurou por boa parte do século XIX e, obviamente, se insere no
contexto das transformações políticas, econômicas e sociais que a província da
Bahia estava experimentando no período6. No quadro econômico destaca-se a
expansão das atividades agrícolas, sobretudo a pecuária bovina que era cada vez
mais praticada no sertão baiano. Dentro deste contexto, a abundância de pastagens,
nas terras das margens direita, e de água do rio Itapicuru-açu7 continuam
propiciando a atividade de criação de gado no território queimadense, atividade esta
que fora iniciada ainda no século XVII pela família Guedes de Brito8. Mesmo não
absorvendo muita mão de obra, a pecuária bovina também contribuiu para que a
população local tivesse um notável crescimento – considerando-se os padrões da
época. O naturalista alemão, Von Martius, numa de suas viagens de estudos pelo
interior da América Portuguesa em 1819, “ao passar pela povoação de Santo
Antônio das Queimadas registrou em seu diário que naquela paragem residia cerca
de 600 pessoas, muitas das quais imigrantes portugueses” (MARQUES, 1984, p.
16). 5 Desde sua criação em 1884 até 1915, o município era denominado ora de Vila Bela de Santo Antônio das Queimadas, ora apenas de Santo Antônio das Queimadas. Em 1915 um decreto estadual abreviou-lhe o nome para Queimadas (MARQUES, 1984, p. 14). 6 A historiadora Maria José Andrade assinala: a Independência do Brasil em 1822, a Abdicação de Pedro I em 1831, as revoltas do período das Regências, sobretudo a Sabinada (1837), a Revolta dos Malês (1835), e ascensão de Pedro II ao trono (1840). No aspecto econômico, destacam-se as alternâncias de prosperidades e crises, desencadeadas por fatores internos e externos. No plano social, salienta o dinamismo de uma sociedade complexa, essencialmente marcada pelo escravismo (ANDRADE, 1988, p. 40 - 47). 7 O Rio Itapicuru é um rio brasileiro que banha o estado da Bahia. Ele nasce no Piemonte da Chapada Diamantina (região norte da Chapada Diamantina), próximo à cidade de Jacobina. Foi chamado de Rio São Jerônimo no período colonial. Seu curso segue no sentido Oeste-Leste, de forma praticamente perene durante o ano todo, fato relativamente raro nesta região. Passa pelas estâncias hidrominerais de Caldas do Jorro e Caldas de Cipó. Atravessa todo o município de Queimadas e mais diversos municípios (http://pt.wikipedia.org/ wiki/Rio_Itapicuru. Acesso em 29 de Janeiro de 2011). 8 O chefe da família era Antônio Guedes de Brito, sargento-mor, regente do São Francisco, que conseguiu a posse de enormes porções de terras na Bahia, conforme declaração que fez em 1676, ao Desembargador Sebastião Cardoso Sampaio, incumbido pela Coroa Portuguesa de verificar a situação das sesmarias que até então havia sido concedidas (MARQUES, 1984, p. 14).
15
No entanto, cumpre salientar que peculiaridades de natureza geográficas
contribuíram, sobremaneira, para o povoamento queimadense. Para efeito de
entendimento torna-se necessário destacar a principal delas, a saber: a região que
estamos discutindo localiza-se no sertão baiano, de clima semi-árido onde a água é
um bem valiosíssimo, pois as precipitações pluviométricas são irregulares.
Entretanto, o povoamento é facilitado graças ao curso do rio Itapicuru-açu. É que o
homem sertanejo, martirizado pelas tormentas das secas constantes em outras
terras, quando passava por aquelas plagas, às vezes fugindo das estiagens,
demandando outros lugares, constatava a importância da localidade por ser provida
pelas águas de um rio perene e, por isso mesmo, decidia fixar-se ali com sua família.
E isto era viável, pois a senhora dona das terras pertencentes à fazenda
denominada “As Queimadas”, Isabel Guedes de Brito, possibilitava que muitas
famílias fixassem residência na localidade que seria o embrião do futuro povoado.
Outro fator que fomentou a ocupação do território é de caráter religioso.
Consoante a tradição oral, na década de 1810 aparecera, misteriosamente, sob uma
árvore frondosa, a imagem de Santo Antônio. A proprietária daquelas terras, D.
Isabel Guedes de Brito, achara a relíquia e recolhera-a a seu oratório. Todavia, o
Santo desapareceu do nicho e surgiu novamente debaixo da mesma árvore. Então,
a caridosa senhora não teve dúvida, era ali que o Santo deveria permanecer. E
mais: era necessário erguer um santuário para o Santo Antônio. Sendo assim, como
dispunha de muitos recursos, construíra uma igreja9, sendo esta inaugurada com
muita pompa e a presença de inúmeros fiéis em 13 de junho de 1815. Esta notícia
milagrosa e inolvidável se disseminou pelo mundo sertanejo e “chegou até os
ouvidos” dos católicos fervorosos e devotos de Santo Antônio. Dessa maneira, de
várias partes da Bahia partiram famílias com destino ao arraial de Santo Antônio das
Queimadas para adorar e reverenciar o seu santo predileto, muitas das quais
decidiram se fixar na localidade, começando assim uma nova vida.
É importante destacar que a narrativa sobre o aparecimento misterioso de
santos faz parte da história da religião católica no Brasil, sobretudo do catolicismo
popular. A mesma constitui uma forma da sociedade atribuir, a seu modo, um
componente sobrenatural e milagroso aos santos já consagrados. Da mesma forma
que a tradição oral relata concernente ao surgimento extraordinário do Santo
9 Para maiores informações, ver: MARQUES, Antônio Nonato: Santo Antônio das Queimadas –
Salvador: Bureal, 1984, p. 11.
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Antônio, sucedeu com Nossa Senhora de Fátima em Portugal, bem como com
Nossa Senhora de Aparecida, padroeira do Brasil. No caso de Santo Antônio, nota-
se que a sociedade de Queimadas elaborou uma importante estratégia para
legitimá-lo como padroeiro da comunidade. Além disto, o advento do Santo, que
reside fortemente no imaginário popular queimadense, insere-se no contexto do mito
fundador de que trata à filósofa e escritora Marilena Chauí, em sua obra Mito
fundador e sociedade autoritária. Segundo a autora:
O mito fundador oferece um repertório inicial de representações da realidade e, em cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal que comanda os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos vêm se acrescentar ao significado primitivo). Assim, as ideologias, que necessariamente acompanham o movimento histórico da formação, alimentam-se das representações produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-los à nova quadra histórica (CHAUÍ, 2001, p. 06).
A colocação da pensadora possibilita a percepção do mito como elemento
dinâmico, passível de mudanças para ajustar-se a um determinado momento
histórico, assim como para atender as demandas da sociedade que o (re) criou. O
componente mítico que a sociedade atribui a Santo Antônio é uma maneira que boa
parte dos queimadenses10 forjou para explicar as origens da comunidade e sua
fundação sob o prisma do sagrado.
A escritora Martha Abreu, em sua obra o império do Divino: festas religiosas e
cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900, analisando a concepção que o escritor
Moraes Filho tinha acerca da “Festa do Divino”, colocou:
Mas não se tratava simplesmente de uma união idealizada e harmônica. Entre o “povo”, o grande agente das festas, é possível considerar que Moraes Filho percebesse a existência de identidades culturais e hierarquias sociais específicas, representadas pelos costumes dos escravos/africanos e dos senhores. Concomitantemente, sem dúvida, o “povo” revelava-se em variadas e híbridas doses de etnia, cultura e encontro, que produziam, por um lado, o mestiço, e, por outro, ritmos, gostos e danças partilhadas por todos os participantes, o constante exercício, na perspectiva do autor, de uma nacionalidade festiva e musical (ABREU, 1999, p. 152).
10 Excetuam-se os evangélicos e praticantes de todas as outras religiões que não cultuam os santos.
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O pensamento da escritora viabiliza o entendimento de que nas expressões
culturais exercidas por uma determinada população local ocorre também a formação
e reconfiguração das identidades individuais e coletivas.
Já na década de 1880, outro acontecimento contribuiu para o povoamento em
curso. Trata-se do prolongamento da Estrada de Ferro da Bahia ao São Francisco,
ligando a vila de Alagoinhas11 até a Fazenda Santa Luzia12, então pertencente ao
recém-criado município de Santo Antônio das Queimadas. A proposta de construir
ferrovias no território brasileiro teve início no governo do regente Diogo Antônio Feijó
em 1835. De fato, a mesma tinha fundamento, pois um país de dimensões
continentais como o Brasil não podia prescindir de modernizar seu sistema de
transporte (calcado nos animais de tração: cavalos, muares, asininos), aderindo às
inovações tecnológicas que estavam surgindo no período – século XIX. Até mesmo
o escritor Machado de Assis, refletindo de forma irônica o espírito do seu tempo,
afirmou: “Eu comparo o Brasil a uma criança que está engatinhando; só começará a
andar quando estiver cortado por estradas de ferro” 13.
O historiador Robério Santos em seu trabalho do curso de mestrado intitulado
Experiências de trabalhadores nos caminhos de ferro da Bahia: trabalho,
solidariedade e conflitos (1892 – 1909), apresentado no Departamento do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (2007),
observou que a província da Bahia também procurou aderir ao sistema de transporte
ferroviário. Entretanto, o projeto de construir uma linha férrea ligando a capital com a
vila de Juazeiro às margens do Rio São Francisco só ganhou força em 1855. No
mesmo ano, foram colocadas à venda na Bolsa de Londres, as ações da empresa
que construiria a estrada férrea, a saber: Bahia and san Francisco Railway
Company. O fato de uma empresa britânica ser incumbida pelo governo da Bahia
para construir a estrada de ferro se justifica por dois motivos. Primeiro porque a
Inglaterra foi o país que inventou a locomotiva (1825) o que conferia as suas
empresas do setor um amplo domínio dessa tecnologia. Segundo por ser a Grã-
Bretanha, no momento, o país mais rico do mundo, desempenhando assim um papel
11 A vila deu origem ao próspero município baiano de Alagoinhas, criado em 07/06/1880 (FONTES, 1996, p.6). 12 Atualmente é o município de Santa Luz/BA, emancipado em 18 de julho de 1935 (ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA DOS MUNICÍPIOS). 13 ASSIS, José Maria Machado de. Relíquias de Casa Velha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL; 1975, (in SANTOS, Robério, 2007).
18
hegemônico dentro do sistema capitalista internacional, possibilitando às suas firmas
enorme influência e poder de barganha em várias partes do mundo.
No período de 1858 a 1896, a ferrovia denominada Estrada de Ferro do São
Francisco foi concluída. Na verdade, a iniciativa dos Presidentes da Província da
Bahia (a partir de 1891, Estado da Bahia), com destaque para João Wanderley e
Barão de São Lourenço, em integrar a capital e distintas localidades do interior tem
sustentação, na medida em que objetivava possibilitar as trocas comerciais. Além
disso, é importante acrescentar que a Cidade do Salvador – habitada em fins do
século XIX por cerca de 200 mil habitantes – produzia gêneros agrícolas muito
aquém do consumo de sua população, o que implicava em recorrer a outros centros
produtores de alimentos e demandava das autoridades competentes a viabilização
de ações que solucionassem a problemática do abastecimento que rondava o
cotidiano dos soteropolitanos14. Vejamos um mapa da Estrada de Ferro da Bahia ao
São Francisco:
Mapa - Estrada de ferro saindo de Salvador (Bahia) em busca do Rio São Francisco
Fonte: MESQUITA, Elpídio. Viação férrea da Bahia. 1910. Acervo: FCM. (apud SANTOS, 2007, p. 38).
14
Ver: SANTOS, Mário Augusto da Silva. A República do povo: sobrevivência e tensão. Salvador: EDUFBA, 2001.
19
O pesquisador Robério Santos colocou ainda que em épocas de intempéries
naturais, tão freqüentes no sertão baiano, os trens conduziram alimentos e água de
Salvador e regiões do Recôncavo com destino aos lugares flagelados do interior.
Destoando destas ações benéficas, entre 1896 e 1897 a Estrada de Ferro do São
Francisco foi empregada com o fito de conduzir soldados e oficiais para destruírem a
comunidade solidária de Canudos e assassinar os paupérrimos brasileiros que lá
habitavam.
Logo após a construção da estação férrea de Santa Luzia (1884) é erguido,
nos arredores da mesma, um bom número de casas de residências, pois a família
Lopes facilitava a aquisição dos terrenos para a construção à todos aqueles que
tivessem pretensões de se fixar na localidade. “Devido ao crescimento do lugarejo
foi criado o distrito policial queimadense, pelo ato estadual de 28 de julho de 1890 a
ser sediado no arraial de Santa Luzia, o que denota a prosperidade e o crescimento
do mesmo” (FONTES, 1996, p.70).
Dessa maneira, os trens transformaram a percepção que o homem e a mulher
sertanejos (as) tinham do espaço, já que encurtaram, consideravelmente, as
distâncias, permitiu-lhes viajar de uma parte à outra, conhecer lugares longínquos,
visitar parentes distantes, consultar um médico na capital ou em outras cidades nos
críticos momentos, quando as doenças atingiram algum membro da família. Além do
que, o transporte ferroviário possibilitava que as famílias mais abastadas
comprassem artigos de luxo em Salvador e, não raro, encomendassem-nos no
exterior, e assim desfrutassem de certas benesses garantidas pela riqueza que
possuíam. Pelo trem os bem sucedidos enviavam os filhos para estudarem nas
cidades desenvolvidas do Brasil e, não raro, da Europa, para cursarem Medicina,
Direito, se graduarem em outras ciências e se tornarem os (as) doutores (as) de fato,
ainda que não de direito para atenderem e concederem favores às populações
pobres das vilas e dos municípios do interior, “contribuindo assim, para a
manutenção do prestígio e do poder políticos dos chefes locais, dos coronéis, que
quase sempre eram seus pais ou parentes bem próximos” (LEAL, 1975, p. 96).
Não bastasse a facilidade de locomoção que o transporte ferroviário
proporcionou às pessoas, o mesmo ainda contribuiu com a economia sertaneja, na
época tão combalida pelos efeitos das longas estiagens e pela ausência quase
completa das políticas públicas. A contribuição aconteceu na medida em que em
torno das estações, e nesse caso específico da de Santa Luzia (inaugurada em
20
1884) e de Santo Antônio das Queimadas (inaugurada em 1886), irão surgir
pequenos estabelecimentos comerciais, para vender lanches, gêneros alimentícios,
remédios, bebidas aos passageiros e funcionários da Estrada de Ferro, bem como
aos moradores locais. Acresce-se a esta atividade econômica a venda de lenha –
fonte de energia então usada pelas locomotivas. Evidentemente, muitas pessoas
ganhavam “algum dinheiro” nestas atividades e garantiam a subsistência familiar.
Desse modo, a linha férrea proporcionou substanciais melhorias à vida de parte da
população do nordeste baiano no término do século XIX, contribuindo, até certo
ponto, para o crescimento da que habitava em uma porção considerável do território
queimadense.
1.2 A evolução político-administrativa de Queimadas
Contudo, muito antes do transporte ferroviário chegar ao território
queimadense, já era observado um notável crescimento da população, o que
implicava em mudanças institucionais a serem realizadas, obviamente, pelos
poderes constituídos. A primeira dessas mudanças ocorreu em 19 de maio de 1842,
criado a Freguesia15 de Santo Antônio das Queimadas e desmembrando-a da
Freguesia de Sant’Ana do Tucano. Vejamos um fragmento do texto documental
responsável por esta criação:
LEI DE 19 DE MAIO DE 1842
Nº 168
Joaquim José Pinheiro de Vasconcelos, Presidente da Província da Bahia. Faço saber á todos os seus habitantes, que a Assembléia Provincial Decretou, e eu Sanccionei a Lei seguinte:
15 A denominação de freguesia deve ser entendida no quadro complexo da administração portuguesa da época. A freguesia representava o centro de muitas atividades. Além de núcleos de atividades religiosas, possuía funções políticas nas reuniões de comissões para compor as listas de qualificações de eleitores, e uma função econômica, desde quando cabia ao pároco de cada uma delas registrar em livro as terras, fazendas, sítios, roças, engenhos, situadas nos seus limites. Tinham ainda as freguesias importante função social, realizando, a partir dos seus núcleos, festas religiosas capazes de reunir as diversas categorias sociais; organizando e sediando irmandades religiosas, que representavam importante papel como aliviadoras de tensões sociais; promovendo casamentos, enterros, batismos, que, além de atos religiosos tiveram enorme significação na sociedade baiana do século XIX. (ANDRADE, Maria José Souza de. A mão de obra escrava em Salvador, 1811-1860 – São Paulo: Corrupio; [Brasília, DF]: CNPq, 1988, p. 59).
21
Art. 1º – Fica erecta em Matriz a Capella de Santo Antônio das Queimadas, filial de Sanct Anna do Tucano, de que se desmembra.
Art. 2º – Esta nova Freguesia, que fica pertencendo a Villa Nova da Rainha, terá por limites, inclusive as seguintes fazendas: com a Freguesia do Tucano, as Fazendas Genipapo e Lagõa Escura; com a de Sancta Anna de Serrinha, Imbuzeiro e Matto Grosso; com a do santíssimo coração de Jesus do Riachão, Rosário e Passagem do Imbuzeiro; com a de Nossa Senhora da Saúde, Urtigas e Pastos; com a do Senhor do Bonfim da Villa Nova, Boa Vista e Olho d’água; e com a do Santíssimo Coração de Jesus de Monte Santo, Conceição, Cansanção, Lagoa das Pedras, Matto Verde, Carahiba e Piacuarassá á margem do rio deste nome. Joaquim José Pinheiro de Vasconcellos. N’esta secretaria do Governo da Província da Bahia foi Publicada a presente Lei em 20 de maio de 1842. João José D’Almeida Couto. Registrada a f. 95 do liv. 2 de Leis e Resoluções d’Assembléia Legislativa Provincial. Secretaria do Governo da Bahia 21 de maio de 1842 (VASCONCELLOS apud MARQUES, 1984, p. 17).
O fragmento do documento oficial explicita a estruturação geográfica da nova
freguesia, bem como a eficiente organização da mesma no sentido de estabelecer a
nova ordem para os habitantes locais e, sobretudo, de evitar eventuais litígios
envolvendo esta e as freguesias circunvizinhas. A formação desta instituição
geográfico-religiosa possibilita o entendimento de que, durante muito tempo, no
Brasil as esferas políticas e religiosas se mesclavam, eram interdependentes e
intrinsecamente relacionadas. Por outro lado, denota a grande importância da vida
religiosa brasileira naquilo que diz respeito a organizar a comunidade, tendo papel
crucial no seu desenvolvimento político e administrativo. Daí encontrarmos na
“história-pátria” figuras da Igreja (padres, bispos etc.) militando pela evolução política
de diversas sociedades do interior do Brasil, pleiteando junto às autoridades
constituídas, o progresso institucional dos “núcleos populacionais” — a exemplo do
povoado de Santo Antônio das Queimadas — espalhados pelo âmago do Brasil,
muitos dos quais hoje constituem prósperos municípios.
Entretanto, após alguns anos da criação da freguesia (1842), o arraial passou
por graves problemas climáticos: secas periódicas, enchentes devastadoras do rio
Itapicuru-açu, entre outras. Estes fenômenos meteorológicos afetaram,
sobremaneira, a economia local e constituíram sérios entraves para os habitantes do
rincão, além de não atrair moradores de outros lugares no que concerne a mudar-se
22
para ali. Sendo assim, durante muitos anos o crescimento populacional foi assaz
pequeno. Porém, em 1884 a comunidade vivenciou outra evolução político-
administrativa, a saber: a Freguesia foi transformada em Vila. Um trecho do
documento oficial que fundamentou legalmente a criação da vila reza o seguinte:
RESOLUÇÃO DE 20 DE JUNHO DE 1884
Nº 2.454
João Rodrigues Chaves, desembargador da Relação de S. Salvador, presidente da província da Bahia, etc. Faço saber a todos os seus habitantes que a Assembléia Legislativa Provincial decretou e eu sanccionei a resolução seguinte. Art. 1º – A freguesia de Santo Antônio das Queimadas fica elevada à cathegoria de Villa com a denominação de Villa Bela de Santo Antônio das Queimadas. § único – O seu município comprehenderá a mesma freguezia e a de Itiuba. Art. 2º – Revogão-se as disposições em contrario.
Registrada à fl. 45 v. do livro 11 de Leis e Resoluções da Assembléia Legislativa Provincial (CHAVES apud MARQUES, 1984, p. 22).
Com o fragmento do texto documental da criação da vila (Vila Bela de Santo
Antônio das Queimadas)16, o Presidente da Província da Bahia deixa claro quais são
suas unidades territoriais constitutivas, bem como recomenda às autoridades o
cumprimento da decisão política e institucional, além de solicitar que tornem pública
e respeitada tal iniciativa. Evidentemente, para os habitantes da localidade, este foi
um acontecimento importante e muito comemorado, já que a formação da
comunidade começara ainda no século XVIII. A criação da Vila Bela de Santo
Antônio das Queimadas faz deste um dos municípios mais antigos de todo o sertão
baiano.
O novo município se desmembrara de Vila Nova da Rainha – atual município
de Senhor do Bonfim/BA – e incluía em seus limites, além da própria freguesia, a de
São Gonçalo do Amarante da Itiúba17.
16 Primitiva denominação do município. Foi usada até o início do século XX. 17 Corresponde atualmente ao município de Itiúba/BA, que possui uma área territorial de 1.737,8 km² e dista cerca de 330 km de Salvador. É de clima semi-árido e totalmente incluído na zona denominada Polígono das Secas (http://www.ibge.gov.br, 01 de julho de 2008. Acesso em 15 de novembro de 2010).
23
A consolidação da criação da municipalidade, no entanto, só iria acontecer
em 20 de julho de 1887, após três anos da promulgação do decreto que instituiu a
fundação do ente municipal queimadense. Adversidades de ordem financeira, de
instalações físicas para os órgãos da administração pública (Câmara, cadeia,
açougue, entre outras) e mesmo de pessoal qualificado para atuar na gestão
municipal podem ter colaborado para o retardamento da instalação do município em
três anos. Coloco estes fatores hipoteticamente, pois os materiais de pesquisa que
tive acesso são evasivos e omissos quanto a esta questão.
Uma vez instalado o município, fora formada a Câmara de Vereadores,
integrada pelos seguintes vereadores:
Capitão Pedro Barreto d’Araújo, Presidente; Tenente João Antônio da Silva;
Felippe Gomes da Silva; Tenente-Coronel José Félix Barreto.
(MARQUES, 1984, p. 26)
De acordo com a Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março
de 1824, às Câmaras competia o governo econômico e municipal em todas as
cidades e vilas existentes e nas que no futuro fossem criadas. (Título VII, capítulo II,
artigo 167)
Desta maneira, a Câmara do novo município de Vila Bela de Santo Antônio
das Queimadas tinha, além da incumbência legislativa, o papel de caráter executivo,
de promover melhorias para os munícipes, a exemplo da construção e reforma de
obras públicas, de cobrar impostos, de ordenar e organizar a vida da sociedade,
enfim, de promover o desenvolvimento da localidade. Atividades estas que
continuaram sendo executadas até o ocaso do Império, em 15 de novembro de
1889.
24
1.3 Queimadas no alvorecer da República
As três últimas décadas que antecederam a Proclamação da República no
Brasil (1889) foram marcadas por grandes mudanças que agitaram a vida social e o
cotidiano de milhares de pessoas. No campo político houve a receptividade de
algumas ideologias europeias, a exemplo do Liberalismo e do Positivismo
influenciando importantes segmentos da sociedade brasileira. Após a Guerra do
Paraguai (1864 – 1870), os militares vitoriosos no conflito, e que desde algum tempo
reclamavam dos baixos soldos e da posição marginal que ocupavam dentro do
Governo Imperial, estão em sua maioria, cada vez mais convictos de que não
encontrarão espaços na tomada de decisões pelo atual governo. A crise envolvendo
parte do Exército e o Governo Imperial recrudesce com a punição dos coronéis Sena
Madureira e Cunha Matos. Os militares eram proibidos de fazer declarações à
imprensa contra os atos de seus superiores. Sena Madureira e Cunha Matos, no
entanto, procederam desta forma e foram punidos pelo Imperador. “Em resposta, o
Marechal Deodoro da Fonseca foi à imprensa, declarou seu apoio aos militares e
assinou manifestos em favor deles dirigidos a Pedro II” (CARDOSO, 2006, p. 183).
A situação chegou a um ponto em que era quase impossível (re) estabelecer uma
relação harmoniosa entre uma parte significativa do Exército e o Governo Imperial.
Neste período ainda acontece importantes mudanças de atitudes e na
mentalidade de grandes parcelas da população relativamente ao sistema escravista.
A partir de 1860 começa a se esboçar estratégias populares e jurídicas de protestos,
contrários ao trabalho escravo. Em 1871 é sancionada a Lei do Ventre Livre; em
1885 é a vez da Saraiva - Cotegipe, também chamada de Lei dos Sexagenários,
concedendo liberdade aos escravos com mais de 65 anos de idade.
Indubitavelmente, as leis eram restritas e concediam autonomia superficial aos
escravos. Entretanto, após 1880, a sociedade brasileira, que por mais de 300 anos
apoiou a instituição escravocrata, insurgiu-se contra ela. Cresceu consideravelmente
o movimento abolicionista liderado por Joaquim Nabuco, Luis Gama e José do
Patrocínio. São fundados clubes abolicionistas, a exemplo do Clube Saveirista de
Cachoeira/BA. No Congresso, a Abolição ganha à centralidade nos debates. Em
outras palavras, ocorreu o que historiador baiano João José Reis denominou quebra
do paradigma ideológico colonial. Entretanto, é preciso salientar que a sociedade só
abraçou a causa abolicionista após diversas lutas empreendidas pelos escravos.
25
Dentro desse contexto, o historiador João José Reis afirmou que os mesmos
desenvolveram diferentes estratégias de resistências e de contestação ao sistema
escravista, a exemplo de construírem acordos com seus senhores no processo de
produção do açúcar (as ameaças de sabotagens na produção deixavam os
senhores apavorados); das fugas reivindicatórias – solicitando a supressão de
determinadas arbitrariedades, a exemplo de separação forçada de casais de
cônjuges ou namorados, ou a recuperação de uma função laboral menos árdua, que
fora perdida, dentre outras.
Um pouco menos recorrente que as fugas reivindicatórias, Reis afirma que os
escravos realizaram também as fugas-rompimento. Os maus tratos físicos e
psicológicos sofridos durante anos dos proprietários e seus prepostos motivavam os
cativos a evadirem-se em definitivo dos seus lugares de trabalho. Estas ações serão
mais intensas a partir de 1885. No período ocorre a formação do quilombo de
Jabaquara no município de Santos/SP, reunindo cerca de 200.000 escravos. Em
outras palavras, os cativos foram protagonistas no processo de conquista
emancipatório que culminou em 1888 e suas lutas incansáveis sensibilizaram parte
da opinião pública da época para apoiarem o evento abolicionista desencadeado por
aqueles que mais sofriam com o espectro famigerado da escravidão. Pronto. Estava
roto o tecido que abrigava o sistema de trabalho escravo. Seria enterrado de vez por
todas em 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea18. Com a
promulgação, muitos cafeicultores fluminenses e do Vale do Paraíba paulista, antes
adeptos da monarquia, Transformaram-se em republicanos da última hora, pois não
receberam indenizações do governo pela liberdade de “suas propriedades
humanas”, o que “ocasionou prejuízos” para os chamados republicanos do 14 de
maio. Ruiu uma das principais bases de sustentação política do Império. Estava
preparado o terreno para a instauração de uma nova forma de governo. Desse
modo:
No mesmo ano em que os holofotes da Exposição Universal de 1889 fizeram resplandecer em Paris a torre de 300 metros de altura construída por Gustave Eiffel, um golpe militar, a princípio destinado apenas a provocar a derrocada do gabinete Ouro Preto, terminou por derrubar a monarquia, expulsar o velho
18 Para maiores informações consultar: SILVA, Eduardo; REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista — São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 13 – 78. FRAGA, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910) — Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006, p. 102 – 118.
26
imperador e sua família e instaurar a República (SOUZA NEVES in FERREIRA, 2008, p. 25).
A autora do fragmento do texto acima relaciona o evento da Proclamação da
República com a construção da Torre Eiffel. Na verdade este e outros importantes
acontecimentos políticos das últimas décadas do século XIX se inserem num
contexto histórico de inúmeras invenções técnico-científicas, de transformações
econômicas e sociais. Vários inventos do período, a exemplo do automóvel e do
fogão a gás, alteraram as rotinas públicas e privadas de milhares de brasileiros.
Coloco “milhares” porque, obviamente, apenas os membros das elites podiam
usufruir das benesses criadas pelo progresso. Os outros, que eram milhões
deveriam resignar-se com a condição de pobres e “sujeitar-se a ordem natural das
coisas”. Contudo as inovações materiais e/ou culturais19 da época alteraram a vida
cotidiana, a percepção que homens e mulheres tinham do tempo, do espaço e das
relações sociais. Vivia-se a denominada Belle Époque com as elites brasileiras
imitando ou tentando copiar os usos e costumes dos franceses, considerados então
os mais bem elaborados da época. Sendo assim, mesmo as vilas mais remotas
possuíam habitantes com recursos financeiros suficientes para consumir produtos
e/ou serviços que estavam surgindo naquele momento.
Em meio a este contexto de inovações na vida material (para as classes
dominantes) fora proclamada a República no país. Evidentemente, com a
Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, as províncias e os
municípios tiveram que se ajustar às leis e normas do novo regime político recém-
instalado no Brasil.
Em sua obra Uma porta para Canudos o escritor Nonato Marques salienta a
maneira pela qual a nova forma de governo fora recebida pelas autoridades e pela
população queimadenses. Na mesma ele observa:
Assim é que, a 24 de novembro – em obediência a nova ordem institucional – a Câmara Municipal da Vila Bela de Santo Antônio das Queimadas de mãos dadas com o povo – em sessão solene aderiu oficialmente à República, lavrando-se do ocorrido à ata que a seguir transcrevemos, respeitada a ortografia original.
19 No período surgem os parques urbanos, a exemplo do Central Park de Nova York, parques de diversões, os Cafés-concertos, proliferaram-se o número de livrarias, bibliotecas, teatros, etc. (NEVES, Margarida de Souza. Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX.(In Ferreira, Jorge; DELGADO, Lucília. O Brasil Republicano – 3. ed. — Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 15 – 41).
27
“Aos vinte e quatro dias do mês de novembro de mil e oitocentos e oitenta e nove, reunidos o Presidente Capitão Pedro Barreto de Araújo e os Vereadores Coronel José Felix Barreto, Felippe Gomes da Silva, Luiz Ferreira França e Capitão Tiburcio Simões Villas-Boas, o senhor Presidente declarou aberta a sessão e disse que achando-se gravemente enfermo o secretário desta Câmara Municipal, Vieira de Barros propunha para ser nomeado interinamente o cidadão Francisco Lantyer de Araújo cajahyba, o que sendo approvado tomou posse o nomeado depois de prestar o juramento de estylo”. “Em seguida o Senhor Presidente declarou que achando-se proclamada a República no Brasil e constituído Governo Provisório propunha que esta Municipalidade, interpretando os justos sentimentos dos seus Munícipes, prestasse franca adesão ao novo Governo, do qual o povo brasileiro confiadamente espera reais serviços a Pátria. Sendo a proposta do Senhor Presidente unanimemente approvada, calorosamente aplaudida pela população desta Villa, que assistia a esta sessão” [...].(MARQUES, 1997, p. 21-22).
A ata da histórica sessão legislativa explicita a decisão deliberada dos
vereadores e do povo presentes no que tange a sujeitarem-se, a adequarem-se à
nova ordem política que entrou em vigência suscitando nos queimadenses a
perspectiva de um futuro melhor. Daí o entusiasmo com que fora recebido o regime
republicano. Dentro de oito anos Queimadas ocuparia um papel importante, mais
lamentável no “massacre de Canudos” ajudando a “salvar a República20”. O
entusiasmo transformou-se em ônus, em perturbação na rotina de muitos habitantes
de Queimadas. É o que discutiremos nos próximos capítulos.
20 A Guerra de Canudos (1896 – 1897) deixou um saldo de 20.000 sertanejos mortos. Todos aqueles que se entregaram, com a promessa do General da IV Expedição, Arthur Oscar de que seriam poupados, foram degolados. (HORCADES, Alvim Martins. Descrição de uma viagem a Canudos. — Salvador: EGBA/EDUFBA, 1996). Tentando legitimar a guerra, algumas autoridades brasileiras da época afirmavam que Canudos era um reduto de monarquistas, de cruéis adversários da República.
28
CAPÍTULO II
A GUERRA EMPREENDIDA CONTRA O BELO MONTE21 E
SEUS IMPACTOS MATERIAIS EM SANTO ANTÔNIO DAS
QUEIMADAS.
2.1 A fragilidade dos motivos da guerra contra o Belo Monte
O cientificismo oriundo da Europa, na segunda metade do século XIX, com
destaque para o Positivismo e o Darwinismo Social fascinou segmentos expressivos
da sociedade brasileira da época, sobretudo aqueles integrados pela
intelectualidade, por cientistas e estudiosos de diferentes campos do saber que
tomavam os moldes europeus de cultura, ciência, política e religião como perfeitos,
como os únicos capazes de promover a civilização entre os povos. Desse modo, as
formas de ser, de viver e perceber o mundo que se afastavam dos modelos
eurocêntricos eram consideradas arcaicas, repugnantes, porque simbolizavam o
atraso e a barbárie. Vivia-se “a exacerbação da razão iluminista”. No Brasil do
término do século XIX, certas ideias racistas, contidas no bojo do “avanço científico”
de outrora, contribuíram para a criação de estereótipos e paradigmas diversos,
alguns de cunho geográfico bem acentuado. Por exemplo: o litoral aparecia como
sinônimo de progresso, área de receptividade da cultura e dos valores europeus,
catalisador em potencial dos elementos típicos modernidade. O interior, mais
especificamente o Sertão, “constituía o atraso, um espaço habitado por homens e
mulheres avessos (as) às tradições seculares” (CUNHA, 2003, p. 105).
Por isso, os sertanejos foram considerados por alguns intelectuais, a exemplo
de Euclides da Cunha como “retardatários” fadados a desaparecerem, caso
continuassem relutando em adentrar os espaços solenes da civilização litorânea,
branca e europeia. A visão euclidiana acerca do sertanejo denota a opressão das
classes dominantes para com as dominadas, além do racismo explícito e a
intolerância étnico-cultural. Este ideário excludente constituía a maneira pela qual
membros importantes das elites políticas e/ou agrárias concebiam as classes
21
Belo Monte era a denominação empregada por Conselheiro e seus liderados para se referirem à comunidade por eles fundada em junho de 1893 no sertão baiano.
29
populares do sertão. Daí muitos considerarem os sertanejos “como afeitos aos
crimes, as desordens de toda sorte” (CUNHA, 2003, p. 198). Por isso o sertão era
percebido como uma “terra perigosa”, o homizio para afamados farândolas que
tinham pendências com a justiça. A partir de 1893, ano em que a comunidade de
Canudos fora fundada pelo evangelizador cearense Antônio Vicente Mendes Maciel
e seus seguidores, Canudos sintetiza, para alguns fazendeiros, políticos e demais
poderosos da época, todas as desordens, todas as delinqüências do mundo
sertanejo. É como se todos os seus cerca de vinte mil habitantes fossem criminosos
hediondos – massa homogênea, a ameaçar a integridade física e patrimonial das
elites nordestinas. Sobre este assunto o professor e historiador Rogério Silva, em
sua obra Antônio Conselheiro: a fronteira entre a civilização e a barbárie, observou:
Uma ameaça mais imaginária do que concreta. Emprego o termo “imaginária” porque o potencial de perigo, representado por Antônio e sentido pelos que o temiam, era fruto de um estranhamento com sua imagem e com seu discurso celeste [...] Não há uma só linha, entre os documentos conhecidos que tratam da vida de Antônio Conselheiro, que indique uma postura contrária ao establishment vigente (SILVA, 2001, p. 54).
Na verdade o que “tirou o sono” dos detentores do poder foi o fato de milhares
de sertanejos abandonarem as fazendas – locais onde eram explorados com baixos
ganhos e humilhados de várias maneiras – e migrarem para Canudos com o fito de
começarem uma nova vida, de integrarem uma sociedade, até certo ponto,
alternativa e igualitária, onde não vigorava o mando e as ordens arrogantes dos
coronéis latifundiários do sertão. No momento em que estes homens ricos e
influentes da região adjacente a Canudos constatam que a mão de obra
indispensável para a viabilização de seus negócios agrários está a cada dia ficando
escassa e/ou subindo de preço compreendem o grande poder de atração
populacional que Canudos passou a exercer no interior do Nordeste. Por isso
passaram a inquietar-se com o crescimento da comunidade sertaneja. Dentro deste
contexto, o Barão de Jeremoabo, abastado proprietário de terras na região de
Canudos e contemporâneo dos acontecimentos, assim se expressou: “Alguns
lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até do Estado de Sergipe,
ficaram desabitados, tal a aluvião de famílias que subiam para os Canudos, lugar
30
escolhido por Antônio Conselheiro para o centro de suas operações” 22. A colocação
do Barão (expoente político renomado no nordeste da Bahia e representante das
elites agrárias nos círculos de poder), além de demonstrar a preocupação com o
êxodo de vários lugares circunvizinhos ao Belo Monte, evidencia que o beato estava
contribuindo para a formação:
De um núcleo populacional, surgido, às margens das instituições, era considerada uma ação inconstitucional, pois a criação de novos núcleos populacionais era um atributo do Estado, como demonstra a Constituição do Estado da Bahia: “[...] o governo municipal terá sua sede nas cidades e vilas ora existentes, e naquelas que se criarem, contanto que o município tenha mais que quinze mil habitantes (artigo 102)” 23.
Um amigo e missivista do círculo do Barão de Jeremoabo, Marcelino Pereira
de Miranda, “personagem influente” e Intendente Municipal da vila de Tucano/BA,
em uma de suas cartas, informou ao Barão que “saíram tantas famílias de Tucano
com destino a Canudos que parte dos serviços públicos estava abandonada, por
falta de quem os realizassem” (SAMPAIO, 2001, p. 103-104). As mesmas pessoas
que migravam de uma cidade ou vila ocasionando vacância nos quadros do
exercício do serviço público iriam engrossar o contingente populacional de uma
cidade que, conforme a citação anterior fora formada ignorando a legislação
estadual em vigor que disciplinava o surgimento, bem como os status das vilas e
municipalidades. Obviamente, isto constituía uma dupla afronta para os poderes
constituídos que, fomentados por determinados membros das classes dominantes,
passaram a enxergar Canudos como uma cidadela subversiva, desafiadora para o
“evolucionismo científico”, assim como para a ordem legal vigente no Brasil da
época. O fato de fundar uma cidade sem o beneplácito do governo estadual
provocou despeito em determinados setores políticos alinhados com o governador
baiano da época, o Sr. Rodrigues Lima e também trouxe à tona o debate sobre os
conceitos de público e privado no Brasil.
22 MARTINS apud CUNHA, 2003, p. 186. 23 Leis e resoluções do Estado da Bahia do ano de 1893 – sob os nº 31 a 51. Tipografia e encadernação do Correio de Notícias, p. 21 (apud Silva, 2001, p. 81).
31
Acerca desta temática, o Professor Rogério Souza Silva salientou:
A cidade do Conselheiro, enquanto fenômeno urbano insere-se num contexto de fundação de cidades. Essas fundações e reformas urbanas resultaram da privatização da esfera pública na estruturação do espaço da cidade no Brasil. Conselheiro era um homem de ação privada que, para seu azar, não tinha uma legitimidade oficial (SILVA, 2001, p. 155).
A iniciativa privada do Conselheiro e seus seguidores em fundar uma cidade –
espaço público que necessita do crivo dos poderes constituídos para ser legitimado
– sem usufruir do apoio do governador, bem como dos demais políticos influentes do
período, pode ser identificada como uma ação fora da lei, portanto, como um motivo
para que políticos, fazendeiros (que perderam muita mão de obra para Canudos) e
intelectuais paladinos da ideologia das classes dominantes, reivindicassem a
destruição da cidadela. Contudo, esta é uma tese que não encontra sustentação,
pois inúmeras cidades do Brasil surgiram de propriedades privadas e/ou de núcleos
familiares, religiosos, dentre outros. Em outras palavras, nenhum crime reside no
fato de um grupo de pessoas decidirem criar uma comunidade. Ainda é o Silva que
nos informa: “três meses antes da destruição da cidade rebelde (Canudos), Jequié
transformava-se em município, com todo o beneplácito do governo baiano” 24 (2001,
p.155).
O reclamo de membros das classes dominantes do nordeste baiano, muitos
dos quais grandes proprietários de terras no sentido de solicitar e mesmo pressionar
as autoridades baianas e, posteriormente, as da União para desencadear uma
intervenção policial na comunidade de Canudos (foram necessárias quatro de
grandes proporções para a vergonhosa destruição da cidadela) se enquadra nas
estratégias de invenção de notícias fantasiosas, de boatos de toda espécie,
objetivando estereotipar negativamente a comunidade do Belo Monte. O
correspondente de guerra,25 enviando pelo jornal O Estado de São Paulo, em seu
texto Os Sertões, pautado nestas notícias inverídicas, colocou:
24 A lei estadual 180, de 10 de julho de 1897, criou o município de Jequié, desmembrando-o do de Maracás. Urbano de Souza Brito Gordim, o primeiro Intendente do município, foi escolhido no pleito municipal de outubro do mesmo ano (FERREIRA, 1958, p.368). 25 Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha. Foi enviado pelo jornal O Estado de São Paulo, em 1897, para cobrir a guerra de canudos. Autor de Os sertões, obra precursora para o desenvolvimento das ciências sociais (Antônio Cândido). Foi membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico (GALVÃO, Walnice Nogueira, (Org.) Diário de uma Expedição. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 39-40).
32
Canudos era o homizio de famigerados facínoras. Ali chegavam de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha [...]. Eram, por um contraste natural, os seus melhores discípulos [...]. A seita esdrúxula tinha os seus naturais representantes nos batistas truculentos, capazes de carregar os bacamartes homicidas com os contos dos rosários (CUNHA, 2003, p.195).
Desconstruindo a ideia central da colocação de Euclides da Cunha,
defendendo a tese de que a maioria da população canudense era de criminosos e
ainda que estes eram os que tinham todo o apoio do Conselheiro, a historiadora
Maria Isaura Pereira de Queiroz, em sua obra denominada O messianismo no Brasil
e no mundo, assinalou:
Assim, havendo uma estrutura e organização interna do povoado, o controle era exercido de acordo com os preceitos do chefe. Desde a fase errante, os testemunhos “São todos acordes em confessar que à população que o seguia jamais consentiu ou patrocinou desmandos ou atentados contra a propriedade ou contra pessoas” (QUEIROZ, 2003, p. 235).
A colocação da historiadora reforça a ideia de que muito daquilo que foi falado
ou escrito sobre o peregrino e seus seguidores não passou de mentiras forjadas e
disseminadas por aqueles que se sentiam incomodados com seu poder carismático,
pois não é tarefa fácil granjear a antipatia de fortes potentados locais e, não
obstante, aglutinar em torno de si cerca de vinte mil sertanejos de diferentes
procedências, de distintas camadas sociais, evidenciando assim o enorme prestígio
que consolidou perante seus liderados e simpatizantes. Outro pesquisador que trata
a respeito destas construções de informações falsas, por parte daqueles que
detinham os poderes políticos e econômicos, no sentido de desqualificarem a figura
do Conselheiro, assim como a sociedade por ele organizada, é o carioca Edmundo
Moniz de Aragão. Em sua obra intitulada Canudos: a luta pela terra, o mesmo
realçou: “a mentira foi a nota constante da campanha contra Antônio Conselheiro.
Aliás, não se conhece nenhum crime cometido por ele ou por seus adeptos durante
os vinte anos de peregrinação pelo interior do Nordeste” (2001, p. 37).
Aliado a invenção das mentiras aparece outro elemento que fomentou a
eclosão da guerra contra o Belo Monte, a saber: o medo. Fruto da desinformação,
do preconceito e também forjado por representantes das classes dominantes do
período. Dentro deste contexto é importante salientar que o medo esteve presente
em diversos eventos históricos. A historiadora baiana Consuelo Novais Sampaio,
33
autora do ensaio Canudos – Cartas para o Barão preconizou: “são bem conhecidos
o estudo de George Lefèvre em torno do “grande medo” que cobriu de sangue a
Revolução Francesa e o de Jean Delumeau, sobre o medo que atravessou a história
do Ocidente no período de 1300 a 1800”26. Os sertanejos enfrentavam de tempos em
tempos alguns medos: de secas prolongadas, da fome, de doenças, das
arbitrariedades das forças policiais, de punições da Igreja Católica, entre outros.
Estes, a autora denomina “medos costumeiros”, pois já estavam incorporados ao
cotidiano de boa parte da população sertaneja. Segundo Consuelo Sampaio outra
espécie de medo colaborou para destruição de Canudos. Ela observou que:
O medo que destruiu Canudos foi um medo diferente. Em contraste com esses medos, foi um medo construído, não só pelas facções políticas em luta, mas principalmente, pela Igreja Católica e pelo Exército. A imprensa (grande e pequena) encarregou-se de recriar e de espalhar esse medo que, de boca em boca, foi impregnando os brasileiros, até atingir o paroxismo da perversidade, após a fragorosa derrota da terceira expedição militar (SAMPAIO, 2001, p. 32).
Como vimos no fragmento de texto acima, diferentes instituições brasileiras
contribuíram para disseminar o pavor, apresentando Canudos como uma sociedade
capaz de criar todas as adversidades, de entravar o progresso nacional. Uma destas
instituições em particular teve um papel preponderante na campanha de espalhar o
pânico, “o temor de Canudos”, a saber: a imprensa. Os jornalistas, a serviço do
principais jornais de Salvador, Rio e São Paulo escreviam artigos elegendo Canudos
e sua gente como responsáveis por um período conturbado e instável, que na ótica
dos mesmos fragilizava a República recém-fundada. Desses homens de imprensa,
disseminadores do “medo canudense”, dois merecem destaque, a saber: Euclides
da cunha, jornalista correspondente do jornal O Estado de São Paulo e Fávila
Nunes, correspondente do Gazeta de Notícias. O político baiano César Zama, autor
da obra o Libelo republicano (1899) afirmou que Fávila qualificou os habitantes de
Canudos como bandidos. Recriminando esta colocação, Zama observou: “ A História
dirá mais tarde, com a imparcialidade e justiça, que são seu apanágio, quais os
bandidos – se os degolados ou os degoladores, se os incendiados ou os
incendiários” (ZAMA, 1899, p. 51). O político baiano adepto da República, diga-se de
26 DELUMEAU, Jean. A História do Medo no Ocidente, 1300 – 1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
34
passagem, não compartilha a ideia de que os moradores de Canudos praticavam o
banditismo como preconizou o jornalista do Gazeta de Notícias e, indo além, deixa
subentendido, que criminosos foram os militares da quarta expedição, liderados pelo
General Arthur Oscar, quando degolaram e queimaram todos os canudenses que se
entregaram, sob a promessa de terem suas vidas poupadas.
Euclides da Cunha, a despeito de ter erigido uma obra monumental acerca do
massacre de Canudos, Os sertões (1902), que, até certo ponto, não permitiu que o
mesmo caísse no esquecimento ou fosse pouco estudado, como a Revolta do
Contestado, por exemplo, via na comunidade sertaneja um ajuntamento de
criminosos. Reiterando o medo, que fora construído por potentados e fazendeiros do
nordeste baiano, ele afirmou sem explicitar a(s) fonte(s): “em dilatado raio em torno
de Canudos talavam-se fazendas, saqueavam-se lugarejos, conquistavam-se
cidades” (CUNHA, 2001, p. 198). Os mesmos jagunços que na ótica euclidiana
roubavam fazendas, abandonavam os despojos da terceira expedição. Segundo
Euclides: “por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de
fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras,
capotes, mantas, cantis e mochilas”... (CUNHA, 2001, p. 343-344). A contradição
fica explícita no discurso euclidiano, não evidenciando o banditismo da sociedade
canudense, tão apregoado pela imprensa e que fora usado pelas autoridades para
justificar o massacre empreendido pelo Estado contra os sertanejos de canudos.
O medo construído contaminou em cheio um de seus autores, o Coronel José
Américo Camelo de Souza Velho, proprietário de terras na região conflagrada. Já no
desenrolar da quarta expedição, José Américo, temendo que os conselheristas
atentassem contra suas propriedades rurais, contra sua vida e de sua família,
migrou as pressas de sua fazenda no Rosário para a cidade de Serrinha/BA.
Contudo, não houve nenhuma ação dos canudenses contra os bens de Souza
Velho. Paradoxalmente, aqueles que causaram prejuízos ao Coronel José Américo e
a outros que compartilhavam do mesmo medo, foram os soldados e oficiais.
“Apoderados pela fome, invadiram suas fazendas, roubando quantas reses
encontravam” (SAMPAIO, 2001, p. 69-79).
Outra tese difundida no período curtíssimo de tempo em que durou a
comunidade de Belo Monte (pouco mais de quatro anos), refere-se ao caráter
monárquico do beato, assim como de doutrinar seus milhares de seguidores no
sentido de repudiarem a República. Não faltaram arautos para popularizar nos meios
35
políticos, na imprensa e nos “papos de botequins” a essência monarquista do rincão
sertanejo. Entre os homens eminentes que afirmaram ser Conselheiro e seus
seguidores cruéis adversários da República e favoráveis a reimplantação da
Monarquia no Brasil, encontra-se, o já tantas vezes mencionado neste texto,
Euclides Rodrigues da Cunha. Em dois de seus livros, discorrendo sobre a
comunidade e a Guerra de Canudos: Diário de uma expedição (1897) e Os sertões
(1902), o autor apresenta o beato e seus comandados como contrários a República,
fazendo um paralelo entre Canudos e a comunidade francesa de Vendéia, que
preferiu ser aniquilada a aderir à República proclamada pela Revolução (1791). No
que tange ao heroísmo dos vencidos a comparação é perfeita, pois ambas as
sociedades lutaram briosamente por um ideal sem capitularem. Todavia, a
sociedade do Belo Monte era bem menos politizada que a de Vendéia, lutava contra
a tirania dos fazendeiros, solidariamente, ajudando-se mutuamente na árdua batalha
contra a fome e pela vida. Daí a fundação do império do Belo Monte.
É fato que o peregrino era contrário ao casamento civil instituído pela
Constituição republicana de 1891 e ainda aos abusos do fisco, cobrando impostos
exorbitantes de pessoas pobres e miseráveis, que mal tinham condições de
sobrevivência27. Entretanto, não há registros de que o Conselheiro possuísse
condições materiais, pretensões e articulações políticas suficientes para derrubar a
República e restaurar a Monarquia no país. Ignorando esta realidade muitos
jornalistas e escritores do período transformaram a guerra contra o Belo Monte num
conflito da República X Monarquia. Em Diário de uma expedição (1897), Euclides
colocou: “Em breve pisaremos o solo onde a República vai dar com segurança o
último embate aos que a perturbam”. Aguardando a destruição total de Canudos o
autor reafirma o caráter político do conflito:
Que a nossa Vendéia se embuce num largo manto tenebroso de nuvens, avultando além como a sombra de uma emboscada entre os deslumbramentos do grande dia tropical que nos alenta. Rompê-lo-á, breve, a fulguração da metralha, envolta num cintilar vivíssimo de espadas [...] A República é imortal! (CUNHA, 2000, p. 67 - 68).
No seu texto intitulado Os Sertões (1902), Euclides desconstrói seu
pensamento citado anteriormente, evidenciado, notadamente, a natureza infundada 27 A forma republicana de governo elevou consideravelmente a quantidade e os preços dos impostos cobrados no Brasil.
36
de justificar o massacre a Canudos pelo viés político. No mesmo ele salienta uma
suposta ação política do Conselheiro, mas nega sua existência monarquista:
Pregava contra a República; é certo. O antagonismo era inevitável. Era um derivativo à exacerbação mística; uma variante forçada ao delírio religioso. Mas não traduziu o mais pálido intuito político: o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico – constitucional. Ambas lhe são abstrações inacessíveis. É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro (CUNHA, 2001, p.208).
Contudo, políticos, intelectuais, oligarcas e demais poderosos da época não
percebiam a distância existente entre a mentalidade da maior parte dos sertanejos
do Belo Monte e a ideologia da política formal vigente na época e relutaram em
defender as ligações do Conselheiro e seu povo com setores monarquistas do Brasil
e do exterior. A partir da fragorosa derrota da terceira expedição (comandada pelo
Coronel Antônio Moreira César, morto em combate em 03 de março de 1897),
importantes segmentos políticos, da imprensa e da intelectualidade brasileira
intensificaram suas campanhas acusatórias visando consolidar o ideário
monarquista da comunidade sertaneja. A República estava em perigo, defendiam,
veementemente, a maior parte das autoridades contemporâneas dos
acontecimentos relativos a Canudos. Um dos periódicos do período afirmou: “o
governo deve encarar a situação como ela é. A luta é contra a República. O governo
tem que defender a República, tem que sufocar o movimento monarquista ainda que
seja preciso a violência” 28. A citação do jornal paulista faz um apelo para que o
Presidente do Brasil, o Sr. Prudente de Moraes recorresse à violência para destruir
Canudos, além de enfatizar o aspecto monarquista da comunidade. Daí, segundo o
jornal, a necessidade do uso da força e da violência, pois a República não poderia
ser derrotada. Tal fato evidencia que este veículo da imprensa paulista não era
imparcial “e tinha metas políticas a serem alcançadas” (SILVA, 2001, p. 216). Antero
de Cirqueira Galo desmente as informações do jornal, repudiando a natureza
monarquista da sociedade de Canudos. Vejamos um fragmento de uma de suas
missivas enviadas ao Barão de Jeremoabo:
28 São Paulo, Arquivo do Estado, O Estado de S. Paulo, São Paulo, 14 de março de 1897, p. 2. Rolo C2 (25), nº 6622 a 6801, 01, 01.025, 1897, 01 de janeiro a 30 de junho (apud SILVA, 2001, p. 216).
37
Exº. amigo Sr. Barão
Tucano, 19 de março de 1897
[...] é mesmo Conselheiro com seus sequazes dentre estes soldados desertores de diversos estados e o povo 13 de Maio que é o maior; advirto mais, que gente de cor branca poucos lá tem, quanto mais homens que ocupam uma certa projeção! Ainda mesmo o Conde d’Eu se aparecesse lá, era vítima, pois não o conhecem.
Antero de Cirqueira Galo29
A perspectiva de Antero Galo possui legitimidade devido a dois motivos.
Primeiro, o mesmo pertencia às classes dominantes e por isso repudiava a atuação
do beato. Segundo, Antero conhecia inúmeros canudenses, pois diversos deles
migraram de sua terra natal – Tucano/BA, com destino à comunidade do Belo
Monte. Entretanto, os grupos detentores de poderes, realizaram um trabalho
eficiente no sentido de assombrar as consciências e sobressaltar a alma nacional,
fazendo com que a quase totalidade da opinião pública brasileira acreditasse que
Canudos era um reduto de monarquistas com grande potencial de ameaça às
instituições da República.
2.2 O estopim do conflito contra o Belo Monte
Em junho de 1893 período em que Antônio Conselheiro chegou com seus
seguidores à fazenda velha, denominada Canudos na localidade já existia uma
igreja (era comum existir templos nas grandes fazendas da época). Todavia, devido
ao grande fluxo de pessoas que chegavam a Canudos, a “igreja velha”, como ficou
conhecida, passou a não comportar mais o número de fiéis que se aglutinavam para
a celebração das missas, casamentos e outros serviços religiosos executados por
figuras da Igreja Católica, a exemplo do Pe. Vicente Sabino30, da paróquia do
Cumbe, ou, o que era mais comum, ouvir as prédicas e outras pregações proferidas
pelo Conselheiro. Desta maneira, tornou-se necessária a construção de um
santuário mais amplo que oferecesse acomodações e comodidades para os crentes
29 Essa carta, pertence ao Arquivo Pessoal do Barão Jeremoabo, organizado pelo seu bisneto Alfredo Dantas de Carvalho (residente em Salvador). Foi possível encontrar uma cópia impressa no Arquivo Nacional, localizado no S. A. P (Serviço de Arquivos Particulares), p, 21. 30 O padre Vicente Sabino possuía até casa na comunidade. Por isso fora perseguido, pelo Cel. Moreira César. Por volta de 1896 é que sua relação com o Conselheiro ficou deteriorada.
38
no discurso celeste do beato. Deste modo, logo no primeiro ano da fundação do
Belo Monte, começara a construção de um templo majestoso, “defrontando o antigo”
que os conselheristas denominaram “igreja nova”. Em outubro de 1896, a
construção ficou a ponto de ser coberta. Para a realização deste trabalho, o beato
necessitou comercializar com um membro das classes dominantes da Vila de
Juazeiro. Segundo Euclides:
Antônio conselheiro adquirira em Juazeiro certa quantidade de madeiras, que não podiam fornecer-lhe as caatingas paupérrimas de Canudos. Contratara o negócio com um dos representantes da autoridade daquela cidade. Mas ao terminar o prazo ajustado para o recebimento do material, que se aplicaria no remate da igreja nova, não lhe entregaram. Tudo denuncia que o destrato foi adrede feito, visando o rompimento anelado (CUNHA, 2001, p. 225).
O autor de Os Sertões (1902) esqueceu de colocar que o Conselheiro pagou,
antecipadamente pela mercadoria e não a recebera, “configurando uma explícita
violação do acordo, protagonizada pelo comerciante, o Coronel João Evangelista
Pereira de Melo” (JÚNIOR, 2007, p. 14). Todavia, é preciso acrescentar que o
Coronel João Evangelista (era também conhecido por Janjão) não estava sozinho
neste empreendimento corrupto. Ao mesmo aliou-se o juiz da comarca de Juazeiro
Dr. Arlindo Leoni, antigo magistrado de Bom Conselho (atual município de Cícero
Dantas) em 1893. Na ocasião, o beato e seus diversos seguidores queimaram na
localidade os editais dos exorbitantes impostos cobrados pelo governo republicano.
O juiz saiu do lugar às pressas, atemorizado. Desta maneira aproveitou o ensejo,
planejou um conluio com o comerciante. “Sabia que o adversário revidaria à
provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a
ameaça de uma investida sobre a bela povoação do São Francisco: as madeiras
seriam de lá arrebatadas, à força” (CUNHA, 2003, p. 226). O juiz – mentor intelectual
da guerra contra Belo Monte – enviou um telegrama ao governador da Bahia.
Vejamos um fragmento da mensagem do governador da Bahia ao Presidente da
República, relatando acerca do episódio:
“Era esta a situação quando recebi do Dr. Arlindo Leoni, Juiz de Direito de Juazeiro, um telegrama urgente comunicando-me correrem boatos mais ou menos fundados de que aquela florescente cidade seria assaltada por gente de Antônio Conselheiro, pelo que solicitava providências para garantir a população e evitar o êxodo que da parte desta já se ia iniciando [...]. Poucos dias depois recebi daquele magistrado um telegrama em que afirmava estarem os sequazes de Antônio Conselheiro distantes do Juazeiro pouco
39
mais ou menos dois dias de viagem. Dei conhecimento do fato ao Sr General que, satisfazendo a minha requisição, fez seguir em trem expresso e sob o comando do Tenente Pires Ferreira, a força preparada, a qual devia ali proceder de acordo com o Juiz de Direito31.
O texto do governador evidencia o tom pavoroso do magistrado de Juazeiro
alarmando a população local com boatos caluniosos e, a despeito de ter estudado
bastante para se tornar um “homem de leis”, não soube diferenciar “o assalto” de
“uma compra que fora paga com antecedência”. Contudo, conseguira atingir seus
objetivos, pois o governador enviou uma expedição militar estadual com 104 praças
e três oficiais para guarnecer a cidade de Juazeiro. Decorridos alguns dias, e em
virtude da cidade não ser atacada pelos conselheiristas, o juiz abusa do poder que
detém e ordena ao comandante da tropa que marche para Canudos. No momento,
em que os militares chegaram ao lugarejo de Uauá, a população local evadiu-se da
região. Dentre deste contexto, Euclides colocou:
“Uauá, como os demais lugares convizinhos, estava sob o domínio de Canudos. Habitavam-no dedicados adeptos de Antônio Conselheiro; de sorte que mal a força fizera alto no largo, haviam-se aqueles precipitado para o arraial ameaçado, onde chegaram, ao amanhecer de 20 (20/11/1897), levando o alarma”... (CUNHA, 2003, p. 232).
Os canudenses passaram por Uauá demandando a vila de Juazeiro no afã de
buscarem a madeira que lhes pertencia. Na localidade houve o choque com as
tropas do governo. Após cruel refrega de quatro horas, morreram 74 conselheiristas
e dez militares. Contudo, as tropas foram desbaratadas e não lograram êxito em
exterminar os habitantes de uma comunidade sertaneja formada em sua maioria por
pessoas pobres, sem perspectivas de atingirem os meios fundamentais para uma
existência digna.
31 Mensagem do governador da Bahia ao Presidente da República — 1897 (In Cunha, 2003, p. 226-227).
40
2.3 Os impactos materiais que o município de Queimadas sofreu advindos do
conflito contra o Belo Monte.
Após o revés que a força militar estadual comandada pelo Tenente Pires
Ferreira sofreu em Uauá, os governos do Estado e da União uniram forças no
sentido de exterminar a comunidade de Canudos, bem como de “apagar a
localidade do mapa da Bahia”, como se a mesma fosse habitada por estrangeiros
nefastos aos interesses do desenvolvimento nacional. Todavia, o itinerário a ser
percorrido pelos militares seria outro: embarcariam nos trens da Estrada de Ferro do
São Francisco, na Estação da Calçada em Salvador e desembarcariam na Estação
da Vila Bela de Santo Antônio das Queimadas, às portas da região conflagrada,
distante apenas 200 km de Canudos. Assim sendo, Queimadas fora transformada
em primeira base de operações e, é válido ressaltar que, não apenas a proximidade
geográfica pesou para a sede do município constituir uma base do Exército
brasileiro. Um elemento de ordem técnica teve influência preponderante – o
telégrafo. Por meio deste se estabeleceu a comunicação entre Queimadas e o
restante do país, mormente com a Capital da República e São Paulo. Do telégrafo
seriam enviados inúmeros telegramas para as autoridades, para os principais jornais
do país, muitos dos quais, com informações tendenciosas, alarmantes e
desencontradas, o que contribuiu para boa parte da opinião pública brasileira apoiar
a destruição total de Canudos.
O fato de o governo transformar Queimadas em base de operações alterou a
rotina e a vida cotidiana da quase totalidade dos habitantes, evidenciando que a
guerra empreendida contra o povo de Canudos, entre 1896 e 1897, prejudicou,
ainda que indiretamente, outras comunidades. A partir da chegada da segunda
expedição (26/11/1896), muitos tiveram que “ceder”, alugar suas casas por preço
irrisório, ou mesmo hospedar os militares graduados. Estes habitantes que eram
quase forçados a abandonarem, por um período de tempo, o aconchego do lar
tinham que ir residir na vivenda de algum parente ou amigo. Na quarta expedição,
por exemplo, estes foram fatos corriqueiros. Corroborando estas colocações o jornal
Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, na edição de 17/10/1897, salientou:
A população da vila retirou-se toda desde o início das operações em Canudos.
41
Queimadas é hoje um vasto quartel. Todas as casas estão ocupadas por militares: tem o quartel-general, a casa do comando da praça, a secretaria, o depósito de artigos bélicos, depósito de forragens, o hospital de sangue, farmácia militar dirigida pelo capitão Isaias de Melo, quartel de guarnição, e tudo mais é ocupado por forças fixas e a seguirem para o campo de ação (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1897).
O excerto do periódico explicita as mudanças que muitos habitantes de
Queimadas tiveram que compulsoriamente realizar, ao alojar os militares.
Evidentemente, para uma família deixar sua moradia em poder de outrem, “de
estranhos” e procurar morar em outra localidade contando com a generosidade de
amigos e familiares é uma tarefa extremamente complexa, pois implica, dentre
outras coisas, em transportar mobiliários e demais pertences, em compartilhar um
espaço doméstico (não raro muito pequeno, devido ao baixo nível socioeconômico
da população queimadense da época) com um maior número de pessoas.
O jornalista correspondente Manuel Benício a serviço do Jornal do Comércio,
do Rio de Janeiro, chamou atenção para o grande impacto que a “Campanha de
Canudos” exerceu sobre o espaço urbano de Queimadas. Segundo ele:
A guerra tem seus inconvenientes, que são inevitáveis, mas também seus benefícios. Não obstante tudo, era, pois de esperar que esse núcleo, já importante de uma povoação sertaneja que floresce, compensasse, de alguma sorte, as vantagens da guerra, dando como resultado o aumento de seu comércio e de sua população. Observa-se justamente o contrário: Queimadas aniquilou-se; o comércio ficou reduzido a bibocas de rapaduras e bebidas baratas [...] (Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 08 de setembro de 1897).
O jornal fluminense evidencia a contradição, do ponto de vista econômico,
que a guerra contra Belo Monte fez emergir para o município de Queimadas: ao
invés de impulsionar o comércio, já que diversos militares passaram ou
permaneceram por um razoável período de tempo no centro urbano, ocasionou a
decadência comercial e, por conseguinte, o arrefecimento da vida econômica
municipal, devido ao êxodo populacional que deixou a povoação semi-deserta. Além
do que, o governo, assim como o Intendente Municipal compravam os gêneros
alimentícios, para alimentar as três expedições militares que passaram por
Queimadas, dos grandes fazendeiros e produtores rurais que firmaram contrato de
venda no atacado. Desse modo, os comerciantes varejistas, em sua grande maioria,
faliram, pois os clientes ficaram escassos, em virtude da drástica redução do número
42
de habitantes da comunidade. Muitos comerciantes que não quebraram se tornaram
figuras empobrecidas, o que causava outro problema, pois não tinham recursos
financeiros para comprarem as mercadorias, diversificarem a quantidade dos
produtos. Assim sendo, os habitantes que continuaram residindo na cidade
passaram a conviver com escassez de alimentos e demais produtos de primeira
necessidade. Este problema de abastecimento forçava os queimadenses a se
deslocarem para as vilas mais próximas, a exemplo de Senhor do Bonfim e Jacobina
para fazerem compras, o que ocasionava maiores despesas financeiras e grande
perda de tempo com as viagens, pois ambas as cidades distam mais de 100 km de
Queimadas. Confirmando a decadência do comércio, o correspondente do jornal
fluminense A Notícia, Manoel de Figueiredo, na edição do dia 27 de julho de 1897,
observou: “o comércio é diminuitíssimo, notando-se a falta de farmácia, padarias e
de casas especiais de outros gêneros”.
Além de afetar o comércio local, a passagem das tropas ocasionou sérios
prejuízos às atividades agrícolas. O chefe do Comitê Patriótico da Bahia32 e também
correspondente do Jornal de Notícias, Lelis Piedade afirmou em 03 de setembro de
1897: “encontrei Queimadas sem aqueles tons do trabalho rústico dos campos.
Umas 2 ou 3 casas com famílias locais antigas e todo grande resto ocupado por
militares”. O declínio das atividades camponesas fora causado devido ao fato de
muitos vaqueiros e trabalhadores rurais terem abandonado suas casas, –
excetuando-se aqueles que residiam na cidade e tiveram que “cedê-las” para os
militares – temendo algum tipo de violência e/ou constrangimento da parte dos
soldados, o que ocorreu com razoável freqüência, sobretudo a partir da terceira
expedição. Sobre estes abusos discutiremos no último capítulo deste trabalho.
Com a mudança de muitos habitantes do meio rural queimadense ocorreu,
obviamente, um sensível declínio da produção agrícola e, por conseguinte, colocou
os trabalhadores do campo (já tão combalidos economicamente, pelos efeitos das
secas periódicas que assolam o sertão baiano), na difícil tarefa de conseguir um
emprego que lhes proporcionem uma fonte de subsistência.
32 O Comitê Patriótico foi uma instituição de caridade que, no período da guerra contra o Belo Monte, cuidou de militares feridos, além de prestar auxílio a crianças e adolescente órfãos, cujos pais eram conselheristas e morreram no conflito.
43
O Jornal do Comércio confirma o estado de devastação do campo, ocorrido
após a migração de diversos camponeses. Em uma de suas edições o periódico
salientou:
É contristador o estado atual das estradas até Canudos: casas incendiadas, pastos destruídos, plantações devastadas, é o que se observa, vendo-se fazendas e povoações pequenas, mas florescentes, completamente danificadas [...] onde estão as pastagens que hoje deveriam recolher a burrama e a cavalhada dos comboios? Onde estão as casas e as pequenas roças que estavam destinadas ao abrigo dos feridos e socorro dos famintos? (Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 08 de setembro de 1897).
A destruição de inúmeras propriedades explicita o impacto negativo que o
município de Queimadas sofreu por ser uma base militar e por se encontrar na rota
de Canudos. Isto porque, as ações destrutivas foram empreendidas por diversos
militares que estiveram no território queimadense, sobretudo aqueles que
integravam a quarta expedição, já que esta passou cerca de três meses no
município antes de partir para Canudos. Todavia, é fundamental salientar que “o
fator tempo” não pode justificar os atos de violação da propriedade praticados por
muitos militares. Os mesmos foram frutos de indisciplina, de menosprezo a cultura e
a vida do homem sertanejo. O mesmo periódico fluminense, mencionado
anteriormente, comprova estes vandalismos, praticados por inúmeros soldados.
Segundo um fragmento de uma de suas edições:
É, portanto, explicável, até certo ponto, as dificuldades com que lutam agora as nossas forças. Aí estão as estradas, as fazendas, as pequenas povoações e só por si Queimadas o pode atestar pelo abandono em que se acha e pelos estragos e danificações que aqui se observam. Quase não há mais casas aqui que tenham quintais: até portas e janelas têm servido de combustíveis. Tanto mais lamentável é esse estado de coisas quanto se pode afirmar que esta era uma povoação ordeira e pacífica, sobretudo próspera e hospitaleira [...] (Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 08 de setembro de 1897).
Além de enfatizar a destruição, o periódico reforça a ideia de que a guerra
contra o Belo Monte foi nefasta também para a vida de inúmeros queimadenses,
pois a passagem de milhares de militares por sua comunidade ocasionou prejuízos
diversos e “um rasto de devastação”. Todos estes fatores negativos, em conjunto,
constituíram sérios entraves para o desenvolvimento da comunidade naquele
44
momento. A povoação outrora pacífica e acolhedora fora transformada em uma
localidade caótica e decadente.
A despeito dos governos do Estado e da União afirmarem financiar os gastos
militares das expedições enviadas à Canudos, as fontes analisadas para a
construção desse texto, deixaram evidente que cidadãos de Queimadas tiveram de
cobrir diversas despesas das tropas beligerantes. A respeito da chegada da
segunda expedição (a primeira que passou por Queimadas), o escritor Antônio
Nonato Marques,33 em seu livro Uma Porta para Canudos (1997), observou que a
tropa recém-chegada já encontrou em Queimadas algumas providências essenciais
e preliminares, tomadas, antecipadamente, pelo Intendente Municipal, Cel. José
Martins Leitão, tais como:
Noventa cavalos e muares, carros de boi de prontidão, todos preparados para o transporte do pessoal graduado e do material bélico [...]. Para reforçar essas providências – julgadas insuficientes – a quantidade de animais foi acrescida de mais oitenta montarias, graças aos bons préstimos do comissário João Pereira e dos cidadãos Vicente Lino da Costa e Hermelino Barbosa de Souza (MARQUES, 1997, p. 58-59).
É possível afirmar que as aquisições dos animais mencionados por Marques
demandaram grande soma de recursos financeiros realizada pelo Cel. José Leitão,
assim como pelos demais cidadãos queimadenses que foram citados. No caso do
Intendente não pesou muito em sua vida financeira pelo fato do mesmo gerir as
verbas públicas da municipalidade e, até certo ponto, poder usá-las no auxílio das
forças militares. Já os outros homens, ainda que possuíssem boa condição
financeira, tiveram que desfalcar suas economias, “doar” seus animais ou mesmo
desviar pecúlios de suas necessidades e despesas cotidianas para comprar animais
de tração e colocá-los a disposição do Exército. Além disto, é importante realçar que
o Intendente e demais figuras eminentes do município desempenharam um papel
delicado e assaz significativo de convencimento junto aos pecuaristas ou mesmo
pequenos criadores de Queimadas e municípios vizinhos, no sentido de aceitarem,
33 Antônio Nonato Marques é um renomado vulto queimadense. O mesmo foi deputado estadual e federal, secretário da Indústria Comércio e Mineração do Estado da Bahia na década de 1960. Dedicado estudioso da Guerra de Canudos, foi autor das seguintes obras e trabalhos: iniciação ao cooperativismo, 1942; Geografia do Fumo na Bahia; Santo Antônio das Queimadas, 1984; Uma Porta para Canudos, 1997; Os Dois Últimos Poetas da Baixinha, 1999; A poesia era uma festa, 1996; Palestra proferida: Pinga Fogo, na Academia de Letras e Artes do Salvador (2000). Peças de teatro: a Procura de um Marido e o Gigante também tem Asas (Assembleia Legislativa da Bahia, Janeiro de 2011).
45
venderem ou mesmo “emprestarem patrioticamente” seus cavalos e muares. Isso
porque, muitos dos proprietários viram seus animais nascerem, construíram, ao
longo dos anos, vínculos afetivos com os mesmos. Em se tratando de empréstimo o
problema ainda mais se agravava, pois a probabilidade do animal não ser devolvido
era grande, tendo em vista que muitos animais morreram de fome, alvejados por
projéteis e por outras causas durante a guerra contra o Belo Monte. Estes
procedimentos de aquisição de animais de montaria foram repetidos durante as três
expedições, atingindo o apogeu na IV expedição, quando o Ministro da Guerra,
Carlos Machado Bittencourt, providenciou centenas de animais em toda a região,
com o objetivo de organizar comboios regulares de abastecimento e resolver o
problema da fome que tanto afetava a atuação das tropas em Canudos (CUNHA,
2003, p. 489-490).
A estes gastos com animais de transportes, acrescem-se aqueles realizados
com a compra de gado e víveres diversos para alimentar os militares, o que também
demandou recursos do chefe do Executivo municipal, bem como das pessoas mais
abastadas do município. Concernente a delonga da quarta expedição em
Queimadas, o escritor Euclides da Cunha, em sua obra Os Sertões, realçou:
Continuaram até meados de junho os mesmos exercícios e a mesma existência aleatória de mais de três mil homens em armas, dispostos aos combates, mas impotentes para a partida e – registramos esta circunstância singularíssima – vivendo à custa dos recursos ocasionais de um município pobre e talado pelas expedições anteriores (CUNHA, 2003, p. 361).
Além de criticar o considerável período de tempo em que os militares
permaneceram na primeira base de operações, Euclides chama atenção para o fato
das despesas que um município pobre do sertão baiano fora forçado, pelas
circunstâncias, a assumir com as tropas do Exército brasileiro. É interessante
observar também que os gastos oneravam as finanças de uma municipalidade com
arrecadação de verbas públicas insuficientes para cobrir as suas despesas de praxe,
a exemplo da remuneração dos servidores. Em outras palavras, os recursos
financeiros – que deveriam ser empregados para construções e/ou reformas de
obras públicas, para promover melhoramentos diversos na qualidade de vida dos
queimadenses da época – foram remetidos para a alimentação e outras
necessidades de milhares de soldados e oficiais.
46
No período do conflito, a Vila Bela de Santo Antônio das Queimadas era uma
povoação ainda em processo de formação, de maneira que a área territorial de seu
sítio urbano possuía pequenas dimensões. Os jornalistas que estiveram na
localidade estimaram em duzentos o número de casas e em cerca de mil o número
de habitantes. Dessa maneira, é possível afirmar que para uma comunidade desse
porte receber “visitantes” em número que correspondeu ao triplo de seus moradores
(como aconteceu na última expedição) ocasionou grande aglomeração de pessoas,
e conseqüentemente, desdobramentos negativos, peculiares a este tipo de situação.
A estadia dos militares em Queimadas causou, além dos transtornos já
anteriormente discutidos, problemas de ordem ambiental, a exemplo de elevada
produção de lixo. Confirmando estas colocações, o escritor fluminense, Euclides da
Cunha escreveu em 1º de setembro de 1897:
Ali, em continuação à praça acamparam sucessivamente todas as forças que aqui têm chegado e seguido para o sertão; um acervo informe de farrapos, trapos multicores de fardamento, botinas velhas, cantis arrebentados, bonés inutilizados – esparsos, disseminados numa área extensa, indica a estadia das tropas que desde a segunda expedição ali têm acampado. Naquele solo comprimido confundiram-se, multiplicando-se em passadas inúmeras, os rastos de 15 mil homens.34
A observação do escritor evidencia a questão da poluição do solo, oriunda do
lixo produzido pelo acentuado número de militares que estiveram em Queimadas.
Apesar de Euclides não fazer uma discussão mais aprofundada a esse respeito, é
possível inferir, a partir do grande número de militares que o mesmo afirma ter
passado na localidade, que a quantidade de resíduos e dejetos humanos lançados,
indiscriminadamente, ao meio ambiente seja altíssima e que, eventualmente, tenha
poluído não apenas o solo, mas também o rio Itapicuru-açu e os demais cursos
fluviais que se localizam próximos à sede do município. Se considerarmos a quase
inexistência de instalações sanitárias nas moradias da época, sobretudo nas vilas do
interior baiano, chegaremos facilmente a estas conclusões.
Além do fato da produção do lixo ser elevada, também é valido salientar que o
Intendente Municipal não possuía meios financeiros para contratar os serviços de
mais garis e/ou servidores que realizassem o trabalho de limpeza pública, então
34 CUNHA, Euclides da. Diário de uma expedição; org. Walnice Nogueira Galvão. – São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 133.
47
prioritário, e que exigia muita mão de obra naquele momento. Isto acontecia devido
a dois motivos cruciais: a arrecadação insuficiente das verbas públicas e a aplicação
de parte considerável dos recursos públicos para arcar com determinadas despesas
das três expedições militares que passaram no município, conforme já abordamos
anteriormente.
Já na saída de Queimadas, em demanda ao arraial de Canudos, os militares
deixaram registros outros de suas presenças na comunidade. É que na saída para
Monte Santo se localiza a tradicional Igreja de Santo Antônio convertida por diversos
militares em uma “espécie de livro coletivo”. Sobre estes atos vândalos, Euclides da
Cunha escreveu:
Nas paredes brancas sobre a brancura da cal, a traços de carvão numa caligrafia hieroglífica, ostenta-se a verve áspera e característica dos soldados; todos os batalhões colaboraram na mesma página. Uma página demoníaca: períodos curtos, incisivos, assombrosos, arrepiadores, espetados em pontos de admiração maiores do que lanças... (CUNHA, 2000, p.135-136).
A transformação da Igreja de Santo Antônio em “livro de registro dos militares”
denota mais uma vez a prática de violação da propriedade (ainda que a Igreja seja
um bem coletivo), do vandalismo realizado a partir da pichação do templo,
configurando assim uma forte poluição visual e uma afronta, por assim dizer, aos
olhos dos moradores de Queimadas e regiões adjacentes (vide anexos, p. 02).
48
CAPÍTULO III
OS IMPACTOS SUBJETIVOS DA GUERRA CONTRA BELO
MONTE OCORRIDOS NO MUNICÍPIO DE SANTO ANTÔNIO DAS
QUEIMADAS.
3.1 Os impactos psicológicos
Além das implicações de ordem material, a guerra que o Estado brasileiro
empreendeu contra os sertanejos de Belo Monte também repercutiu nas esferas
imateriais da vida de inúmeros queimadenses. Aliás, é imperioso salientar que
mesmo antes de uma maior concentração dos soldados em Queimadas (o que
ocorre, sobretudo a partir da chegada da quarta expedição, em 21 de março de
1897), a sociedade canudense já despertava a atenção e curiosidade de vários
queimadenses. O jornalista correspondente do jornal O Estado de São Paulo,
Euclides da Cunha, em sua passagem por Queimadas corrobora esta colocação.
Em sua obra intitulada Diário de uma Expedição, Euclides coloca que os velhos
habitantes da localidade afirmaram que viram passar por Queimadas “durante
meses seguidos, verdadeiras romarias em direção a Canudos”. O referido “jornalista
e literato” alude ainda à diversidade de lugares cujos migrantes eram oriundos:
“Lugares remotos como o Mundo Novo e Entre Rios, ficaram, por assim dizer,
desertos. As povoações relativamente mais próximas como Inhambupe, Tucano e
Cumbe, perderam igualmente grande número de habitantes” (CUNHA, 2000, p.
139). Infelizmente Euclides da Cunha não inquiriu aos mesmos moradores a respeito
da ocorrência da migração de queimadenses para Canudos.
Além disso, as fontes que dispusemos para a construção desse texto não
trazem informações dessa natureza. Todavia, da narrativa euclidiana depreende-se
que as levas sucessivas de pessoas demandando o arraial de Canudos causavam
impressões fortes nos “velhos habitantes de Queimadas”. Obviamente, estes
moradores faziam reflexões diversas concernentes aos motivos que levavam
famílias inteiras a abandonarem a “terra-natal” (e não raro boa parte dos pertences),
para empreenderem uma espécie de “longa marcha”, caminhando dias seguidos,
protagonizando árdua tarefa, no afã de chegarem em Canudos e também integrarem
49
aquela comunidade. Indubitavelmente, os queimadenses que testemunharam estas
migrações faziam diversas conjecturas no sentido de tentar entender o grande poder
de atração populacional exercido pelo Belo Monte.
No período em que a guerra ganhou repercussões nacionais e Queimadas
fora transformada em base de operações do Exército brasileiro, os queimadenses
passaram a contemplar cenas fortes e indeléveis, a saber: soldados e oficiais que há
pouco tinham partido para a zona conflagrada, robustos e saudáveis retornarem
malogrados, esquálidos, famintos, com o corpo coberto de chagas, dilacerados
pelos espinhos da flora sertaneja. Observavam-se rapazes, recém-saídos da
adolescência, soldados e oficiais tarimbados, veteranos da Guerra do Paraguai
(1864-1870), figuras emblemáticas, “quase mitológicas”, dentro da história militar
brasileira, chegarem a Queimadas mutilados, carregados em padiolas, mortos. Este
quadro de sofrimentos também fora exposto por alguns canudenses que foram
enviados como prisioneiros de guerra para a primeira base de operações. Em
correspondência do dia 03 de setembro de 1897, enviada ao jornal O Estado de São
Paulo, Euclides observou:
Acabam de chegar, há meia hora, nove prisioneiras; duas traziam ao seio crianças de poucos meses, mirradas como fetos; acompanham-nas quatro pequenos de três a cinco anos. O menor de todos chama-se José. Assombra: traz à cabeça, descendo-lhe até aos ombros, um boné de soldado. O boné largo e grande demais oscila a cada passo; alguns circunstantes têm a coragem singular de rir — a criança volve o rosto, procurando vê-los e os risos cessam: a boca é uma chaga, foi atravessada por uma bala (apud, GALVÃO, 2000, p. 146).
O relato do autor de Os Sertões (1902) evidencia os horrores da guerra contra
Belo Monte, seu aspecto acentuadamente cruel e hediondo, pois até mesmo as
crianças da mais tenra idade foram vítimas de terríveis sofrimentos, tal qual os
adultos prisioneiros, (a quase totalidade deles foram degolados a mando do General
Arthur Oscar, comandante da quarta expedição), as crianças eram submetidas
publicamente à situação degradante, humilhante para a pessoa humana, a
interrogatórios ilegais. Manifestações deliberadas dos militares em desrespeitarem a
individualidade dos (das) prisioneiros (as), bem como de ignorarem suas enormes
dores físicas e psicológicas. Dentro deste contexto é possível afirmar que estas
cenas fortes causaram piedades e impressões dolorosas na alma de vários
50
queimadeneses sensatos, que permaneceram em seus lares durante o período em
que Queimadas constituiu uma base de operações do Exército brasileiro.
Outro elemento negativo que esteve presente no cotidiano dos queimadenses
foi o medo. O mesmo era oriundo, em grande parte, do conhecimento que muitos
sertanejos possuíam concernente à biografia de alguns militares, assinalada pela
prática da violência e de atos vis que maculam a dignidade humana. Exemplifica
bem estes casos o Coronel Antônio Moreira César, que nasceu na cidade de
Pindamonhangaba, Estado de São Paulo, a 07 de Julho de 1850. “Ingressou no
Exército como voluntário, tendo jurado bandeira no Rio de Janeiro. Tinha por meta a
Escola Militar, onde foi matriculado em curso preparatório” (FONTES, 1996, p. 144).
A partir do momento que “abraçou a carreira militar” Moreira César colocou em
prática muito empenho e extrema disciplina, o que lhe permitiu galgar posições cada
vez mais superiores na hierarquia militar. Em 1883 já havia conquistado o posto de
Capitão e, neste mesmo ano, foi protagonista do assassinato covarde do jornalista
Apulcro de Castro, editor do periódico O Corsário. Por ter escrito artigos que
desagradaram determinados segmentos do Exército, Castro fora vítima da fúria de
onze oficiais que o lincharam barbaramente, sem conceder-lhe a mínima chance de
defesa.
Entre 1892 e 1894 eclode na região Sul do Brasil a Revolução Federalista,
movimento civil-militar de contestação ao governo do Presidente da República
Marechal Floriano Peixoto. O Marechal de Ferro, diante da iminência da derrota das
forças legalistas e confiando amplamente na “competência” do então já Coronel
Moreira César, a frente do 7º BI, ordena-lhe que marche para a região de Santa
Catarina, foco da revolta. O Coronel sufoca a revolta, tem um esplêndido
reconhecimento do Presidente da República a ponto de nomeá-lo governador
provisório de Santa Catarina. Entretanto, a vitória alcançada por Moreira César fora
construída com atos vergonhosos de degolamentos e massacres de dezenas de
prisioneiros ordenados pelo militar, já assaz notório e temido. As ações praticadas
por Moreira César no Sul, e em outros pontos do país, muitas delas marcadas pelo
autoritarismo, abuso do poder e violência, consagraram-no como um oficial
invencível a frente de seu batalhão (o sétimo de infantaria), fora dos quadros
militares tornou-se conhecido como “Corta-Cabeças” “Treme-Terra” e o “Anticristo”.
Estes epítetos assombrosos ganharam muita repercussão, de maneira que em
fevereiro de 1897 – época, em que o Coronel Moreira César chegou a Queimadas
51
comandando cerca de 1300 militares – já eram triviais para boa parte dos
sertanejos, assim como os motivos que originaram os mencionados cognomes.
A notícia da vinda do Cel. Moreira César deixou parte considerável da
população queimadense em polvorosa. O magistrado e historiador Oleone Coelho
Fontes, autor da obra intitulada O Treme-Terra, Moreira César e a República (1996)
afirmou que “a chegada de mais militares comandados pelo célebre oficial causou
rebuliço. Em conseqüência muitas famílias, assombradas com o que poderia
ocasionar a pequeno burgo tantos soldados armados, prudentemente, homiziaram-
se nas caatingas”. O referido autor salienta ainda o medo que a presença do
Coronel César suscitou em muitos queimadenses. Segundo ele:
A esposa do chefe de polícia, D. Cândida, fina dama de tradicional família carioca, naquele instante fazendo companhia ao marido, para dar mostras à população assustada de que o famoso militar não era nenhum demônio sanguinário, desfilou pelas ruas da Vila Bela de Santo Antônio das Queimadas de braços dados com o marido, ao lado do Coronel Moreira César (Gorgônio de Araújo neto, sobrinho-neto de Felix Gaspar em depoimento ao autor, FONTES, 1996, p.82).
A citação do autor evidencia que a questão do medo tornou-se tão crucial no
cotidiano de diversos queimadenses, a ponto de ser necessária a interferência de
uma pessoa fora dos quadros militares (a esposa do chefe de polícia da Bahia), no
sentido de expor para a população local que Moreira César não lhe faria dano.
Todavia, o temor já havia se arraigado no imaginário de muitos. Confirmando esta
afirmativa, Oleone Coelho Fontes, em sua já citada obra, discutindo a passagem de
Moreira César e seus comandados, pela Fazenda Lagoa Dourada (a mesma dista
cerca de 8 km da cidade de Queimadas), recorrendo à tradição oral, observou:
O cronista local é João Matos da Silva, de 86 anos [...]. Conta ele que o pai, Silvério Francisco Matos, foi vaqueiro na antiga fazenda Cotendas, quando esta pertencia a Antônio Carlos das Mercês. O pai de João Matos da Silva ali estava no dia em que a terceira expedição desfilou. Temeroso, Silvério Francisco Matos refugiou-se na caatinga até que a poeira das botas dos militares assentasse (FONTES, 1996, p. 98).
Silvério Matos foi um dos muitos camponeses que ficaram amendrotados com
a travessia do Coronel Moreira César e sua tropa marchando por suas propriedades,
de seus patrões ou nas proximidades das mesmas. Outro caso ilustra bem esta
52
realidade e evidencia o lado arrogante e violento do Coronel César. Entrevistando o
morador do povoado Jatobá35, Petronílio Ferreira da Cruz, Oleone Fontes registrou
em sua obra Moreira César, a República e Canudos, que o entrevistado ouvira seu
pai, Antônio Ferreira da Cruz, relatar por diversas vezes que ao chegar a outrora
fazenda Jatobá, Moreira César Indaga:
[...] — Mestre, onde é que esta o seu pai? Como o pai de Antônio Ferreira da Cruz tivesse morrido, o filho responde de modo sinuoso: — Pai é coisa que já tive. Hoje infelizmente não tenho mais. A resposta parece não ter sido do agrado do comandante. Tanto que a réplica vem, fulminante e ameaçadora: — Deixa estar, matuto atrevido, que quando eu voltar de Canudos e passar por aqui vou lhe dar o troco [...] (FONTES, 1996, p.111).
O depoimento de Antônio Cruz denota que o medo, que permeou o cotidiano
de inúmeros queimadenses, não era infundado ou aleatório. Diferentemente daquele
engendrado por segmentos expressivos das classes dominantes – com especial
destaque para os grandes fazendeiros e membros da Igreja Católica, que fomentou
a destruição total de Canudos, assim como o genocídio de seus habitantes – o
temor de muitos habitantes de Queimadas teve sustentação, tendo em vista que
vários militares, a despeito do auxílio irrestrito que receberam dos queimadenses,
sobretudo dos mais abastados, praticaram ações e proferiram ameaças com grande
potencial para inspirar o terror entre a população. Em se tratando dos camponeses a
situação foi ainda mais delicada e é até certo ponto compreensível que famílias
inteiras tenham se “homiziado nas caatingas”, tão logo souberam que as suas
propriedades seriam atravessadas por forças do Exército brasileiro, o que se explica
devido ao conhecimento que muitos sertanejos possuíam acerca da biografia de
alguns oficiais e, posteriormente, dos abusos praticados, ordenados ou consentidos
pelos mesmos, já em terras do município de Queimadas, conforme discutimos no
capítulo anterior. É que o homem e a mulher do sertão (neste caso específico de
Queimadas) são habituados a uma vida pautada na honradez e em valores, tais
como: simplicidade, respeito à vida e à propriedade alheias, generosidade, dentre
outros.
35
O povoado Jatobá atualmente é uma comunidade de Cansanção/BA. Em 1897 era uma fazenda incluída na área territorial do município de Queimadas.
53
É importante salientar, no entanto, que o Coronel Moreira César e seus
comandados permaneceram em Queimadas no curto período de tempo de apenas
sete dias. Já os militares, integrantes da IV expedição, sob o comando do General
Arthur Oscar 36, por sua vez, permaneceram em Queimadas por mais de dois meses
(CUNHA, 2003, p. 362). Neste período de tempo relativamente longo, ocorreram
atos desabonadores para a conduta militar, a exemplo dos danos materiais que
alguns militares praticaram contra propriedades dos moradores de Queimadas
(analisados no capítulo anterior). Obviamente, estes abusos e explícita manifestação
de violência fomentaram ainda mais a intensificação do medo e sua disseminação
entre boa parte da população local, o que contribuiu para muitos abandonarem suas
vivendas e se “homiziarem nas caatingas”, nas propriedades de parentes e amigos,
abrigando-se em plagas mais seguras. É interessante observar também que
diversos fatores ocasionaram o medo que se apossou da população de Queimadas,
e não somente os atos de violências praticados por alguns militares. Para os
habitantes de uma das regiões mais pobres da Bahia (o sertão, o nordeste do
estado) ter que estar sempre de prontidão para providenciar animais de montaria e
gêneros alimentícios para as tropas significava, mesmo para os de maiores posses,
desfalcar recursos, ficar na necessidade para beneficiar outrem, para viabilizar a
subsistência de milhares de desconhecidos. Neste caso, o medo de algumas
famílias era de que os militares solicitassem mais víveres, deixando-as com fome,
que exigissem a “doação patriótica” de suas moradias, colocando-as na condição de
desabrigadas.
Outro fator acentuadamente mais violento e lamentável que os que já
colocamos explicam o temor quase coletivo dos queimadenses: “houveram casos de
estupros perpetrados por militares no meio rural de Queimadas maculando a honra
das famílias” (SAMPAIO, 2001, p. 68). Todavia, estes casos quase que não são
discutidos pela vasta bibliografia existente acerca da famigerada guerra contra o
Belo Monte, ainda que a historiografia concernente ao tema tenha se apropriado de
ricas e múltiplas interpretações, notadamente a partir da década de 1950, inúmeras
produções literário/historiográficas37 enfatizaram os crimes que os militares
36 General Comandante em chefe da última expedição militar enviada para dizimar os conselheristas, era natural do Rio de Janeiro/RJ. 37 Destacam-se os trabalhos do professor José Calasans Brandão da Silva (1975 – 2001). Da década de 1990 para cá, a UNEB vem realizando pesquisas sobre Canudos. Destacam-se os trabalhos desenvolvidos pelos professores Roberto Dantas, Sérgio Guerra e Manoel Neto (Campus I), Rogério
54
praticaram em Canudos exterminando, vergonhosa e impiedosamente, a quase
totalidade dos conselheiristas. Porém, poucos trabalhos abordaram sobre as ações
criminosas engendradas pelos militares em outros municípios, demandando o arraial
do Belo Monte.
3.2 Os impactos políticos e ideológicos
Consoante ao que versamos no capítulo anterior, alguns segmentos da
política, das elites letradas e agrárias, da Igreja e do Exército passaram a perceber a
sociedade de Canudos (sobretudo a partir de 1897) pelo viés político. O Belo Monte,
na ótica de tais segmentos, constituía um reduto de adeptos da restauração
monárquica, dispostos a irem até as últimas conseqüências em seu intento de
derrubar o regime republicano de governo. Aos poucos a “designação monarquista”
passou a englobar, além de Canudos, outros municípios e figuras eminentes da
Bahia. Até mesmo o governador do Estado, Luís Viana38 fora acusado de ser
monarquista “conivente e omisso ante o grave desrespeito à ordem republicana” que
era permitir a existência da comunidade de Belo Monte. O Coronel Davis Sena,
pesquisador da história militar brasileira, reitera esta colocação. Segundo ele:
Havia em termos nacionais um comentário que a Bahia não era republicana. Foi proclamada a República por Deodoro, no dia 15 de novembro de 1889 e a Bahia aderiu com certo atraso. Quando houve esse problema de Canudos, o governador da Bahia não queria a intervenção federal, nunca pediu oficialmente a intervenção lá, nunca (SENA apud DANTAS, 2009, p. 36).
Após a inesperada derrota da terceira expedição e morte em combate de seu
comandante, Coronel Moreira César (março de 1897) intensificou-se as crenças no
caráter monarquista da Bahia, mormente nos meios militares. Em início de 1897 as
tropas integrantes da quarta expedição desembarcavam em salvador com “altaneira
provocante de triunfadores em praça conquistada” (CUNHA, 2003 p. 356). Alguns
militares inconformados com as sucessivas derrotadas do Exército passaram a
culpar a Bahia e seu povo pelos insucessos, pela desdita de inúmeros confrades.
Nem mesmo o patrimônio público ficou incólume ante a fúria desenfreada de
Souza e Plínio Oliveira (Campus XIV). Atualmente a UNEB administra o Parque Estadual de Canudos. 38 Luís Viana (1845 – 1920) era o governante baiano à época da Guerra de Canudos. Foi renomado jurista e também senador da República (apud DANTAS, 2009, p. 41).
55
membros do Exército: “os oficiais de um batalhão, o 30º, levaram a dedicação pela
República a um assomo iconoclasta. Em pleno dia tentaram despedaçar, a
marretadas, um escudo em que se viam as armas imperiais, erguido no portão da
alfândega velha” (CUNHA, 2003, p. 357).
Contudo, para evidenciarmos a dimensão das acusações de monarquistas
atribuídas a alguns cidadãos do município de Queimadas temos que retroceder um
pouco, até a passagem da terceira expedição pelas terras queimadenses. Ao chegar
ao arraial de Santa Luzia, o comandante da expedição, Coronel Moreira César,
aproveitou o ensejo para afrontar o chefe político local e Intendente Municipal de
Queimadas, Coronel José Martins Leitão, perante alguns de seus conterrâneos. A
esse respeito, o pesquisador Oleone Fontes observou:
Ao transitar pela gare de Santa Luzia, na madrugada do dia 08 de fevereiro de 1897, o Coronel Moreira César indagou de alguns curiosos [...] se era ali que vivia um tal José Martins Leitão, coronel da Guarda Nacional. Tendo recebido resposta positiva, mandou que lhe fosse transmitido o seguinte recado: o chefe luziense de cabroeiras se preparasse, pois ele, Moreira César, quando ali voltasse, vitorioso de Canudos, tinha com o militar matuto contas a acertar (FONTES, 1996, p. 71).
O fato de possuir a patente de Coronel da Guarda Nacional – um mecanismo
de segurança criado pelo governo dos regentes em 1831 e preservado no governo
imperial – por si só não dá conta para se classificar aquele que detém a patente de
ser contrário à República e favorável ao regime monárquico de governo. No caso do
Coronel José Leitão a definição de monarquista (e por extensão conselherista)
atribuída pelo Coronel César e por outros militares é ainda mais infundada, na
medida em que José Leitão ocupava um cargo criado pela República (o de
Intendente) e no exercício do mesmo ter providenciado recursos diversos – víveres,
animais de montaria, hospedagem para os militares das três expedições que
passaram em seu município.
É interessante observar ainda que também alguns veículos da imprensa
brasileira acusaram o Intendente José Leitão de ser adepto da monarquia, assim
como de auxiliar Antônio Conselheiro. Ainda na segunda expedição um médico da
tropa, Pedro Americano, a respeito da situação da tropa comandada pelo major
Febrônio de Brito, estacionada em Queimadas, enviou telegrama a ser publicado no
Jornal A Bahia, em que informava:
56
[...] A força sob a chefia do brioso major Febrônio está ansiosa por bater os fanáticos do Antônio Conselheiro, mas a politicagem de campanário dificulta a ação militar. Os chefes locais interessados em negociações comerciais com o Conselheiro retratem-se criminosamente a prestar auxílio à força [...] (A Bahia, 15.12.1896).
O mesmo veículo da imprensa baiana publicou uma missiva do filho do
Intendente, deputado estadual Carlos Leitão, representante do município de
Queimadas, repudiando as acusações feitas pelo Dr. Americano contra o seu pai.
Em um de seus fragmentos, lê-se:
[...] é inexato – revele-me o Dr. Americano que o diga – que existam chefes locais interessados em negociações comerciais com o Conselheiro, e que, por isso, se retraiam criminosamente em prestar auxílio à força legal. [...] É exato que houve em Queimadas um estonteado, vindo de outra comarca e infelizmente meu colega e leal correligionário e amigo que, pelo fato de não haver meu pai conseguido arranjar os referidos animais logo ao saltar nesta estação, ali dissera – arrogando-se jactansiosamente uma importância que está muito longe de possuir – que não aceitava mais a condução de Santa Luzia, por sermos eu e meu pai Conselheristas [...] (A Bahia, 19.12.1896).
O Professor de Literatura Brasileira Plínio Oliveira, um dos maiores
estudiosos de Canudos de todos os tempos, em artigo intitulado Um peregrino
cearense e a construção de um movimento solidário, nos ajuda a entender porque a
família Leitão – a despeito de ter colaborado tanto com as tropas que passaram por
seu município – fora acusada de ser conselheirista. Segundo o Professor, ao término
da construção da igreja nova, Conselheiro constatou a necessidade de ornamentar o
novo santuário com as relíquias sagradas. Até ao beato já havia chegado à notícia
de que a esposa do Coronel Leitão de Santa Luzia negociava imagens de santos,
além de ser uma católica de grande generosidade. Assim sendo, o peregrino enviou
do Belo Monte um emissário no sentido de encomendar as mercadorias sagradas.
Passado alguns meses, chegaram à vivenda do Coronel em Santa Luzia, um grupo
de conselheiristas armados, com o fito de levarem as imagens. Porém, o patriarca
da família Leitão não aceitou que as imagens fossem transladadas, pois considerava
uma afronta o fato de homens armados realizarem um serviço tão especial.
“Posteriormente, chegaram à Santa Luzia outros emissários, desta feita sem armas,
as imagens não apenas foram levadas como também a esposa do Coronel, Emília
Magalhães, não cobrou valor algum pelas mesmas” (OLIVEIRA, 2010).
57
O neto do Coronel José Leitão, José Bahia Leitão (conhecido por
Leitãozinho), confirma a ocorrência do episodio39 discutido pelo Professor Plínio
Oliveira. Daí as origens das acusações que determinados militares e homens da
imprensa brasileira levantaram contra a família Leitão.
Outra figura de destaque da sociedade queimadense também fora taxada de
monarquista e de ser colaboracionista do Conselheiro. Trata-se de Francisco
Lantyer de Araújo Cajahyba. A respeito de uma acusação feita contra o mesmo pelo
jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, o Jornal de Notícias salientou:
Os deploráveis acontecimentos de Canudos têm sido para os ociosos indivíduos sem critério, para quem a honra e a dignidade alheias não exercem o mais pequeno culto, objeto para detratar e caluniar pela imprensa a Bahia e muitos de seus homens mais distintos [...]. Não há muitos dias a “Gazeta de Notícias”, do Rio de Janeiro, estampava em suas colunas o retrato do distinto moço Francisco Lantyer de Araújo Cajahyba, atualmente residente em Itiúba, qualificando-o de chefe de jagunçada de Antônio Conselheiro [...] (Jornal de Notícias, 28 de setembro de 1897).
Da mesma forma que o Intendente de Queimadas, o jovem Francisco Lantyer
auxiliou, de diferentes maneiras, as tropas que estiveram em seu município.
Contudo, fora vítima de acusações infundadas e da intolerância política. Estas ações
constituíam estratégias de certos segmentos militares e da imprensa a fim de
“criarem a verdade” ao seu modo para justificar a derrota de três expedições em
Canudos e, assim convencer a opinião pública brasileira, de que aquela sociedade,
encravada no sertão ignoto, deveria ser liquidada, pois representava um entrave ao
desenvolvimento e ameaçava a segurança nacional.
39 Depoimento concedido em 09/04/2009.
58
3.3 Queimadas: as visões dos forasteiros
Os escritos de vários “jornalistas – correspondentes” e militares que estiveram
em Queimadas conceberam-na como uma povoação estranha, deslocada do
contexto histórico e fora dos padrões de urbanidade então vigentes no “Brasil do
litoral”. Na ótica de tais figuras, Queimadas possuía um sítio urbano atrasado,
constituído por edificações paupérrimas que, por sua vez, formavam ruas sinuosas e
irregulares, denotando assim o pouco poder de organização e o mau gosto dos seus
habitantes. Corroborando estas colocações o engenheiro Euclides da Cunha, em
sua obra Os Sertões, observou:
Queimadas, povoado desde o começo do século, mas em plena decadência, fez-se um acampamento ruidoso. O casario pobre, desajeitadamente arrumado aos lados da praça irregular, fundamente arada pelos enxurros – um claro no matagal bravio que rodeia – e, principalmente, a monotonia das chapadas que se desatam em volta, entre os morros desnudos, dão-lhe um ar tristonho completando-lhe o aspecto de vilarejo morto, em franco descambar para tapera em ruínas (CUNHA, 2003, p. 497).
Na continuidade de suas análises, acerca do espaço urbano de Queimadas,
Euclides afirma que a pequena urbe se mantém alheia ao desenvolvimento.
Discorrendo sobre a localização geográfica da povoação, ele salienta:
A linha férrea corre no lado oposto. Aquele liame do progresso passa, porém, por ali, inútil, sem atenuar sequer o caráter genuinamente roceiro do arraial. Salta-se do trem; transpõe-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas; e topa-se para logo, à fímbria da praça – o sertão... (CUNHA, 2003, p. 499)
O correspondente do jornal O Estado de São Paulo constrói uma imagem
depreciativa de Queimadas usando um dos principais símbolos do progresso – a
ferrovia que, em sua visão, tornava-se uma nulidade ao alcançar a citada povoação,
contrastando com sua atual situação no que tange aos aspectos sociais,
econômicos e, sobretudo, arquitetônicos.
Outro correspondente, o Fávila Nunes, do jornal Gazeta de Notícias concebeu
Queimadas também de maneira preconceituosa, usando como parâmetro as suas
noções de urbano e de arquitetura, construídas a partir de algumas cidades
59
brasileiras litorâneas, receptáculos das influências europeias. A esse respeito
escreveu:
Queimadas, aliás, Vila Bela de Santo Antônio das Queimadas, é uma povoação insignificante, construída à margem do rio Itapicuru, que serve à população. Têm duzentas casas de péssima construção e proporções acanhadas, dispostas em ruas muito irregulares. [...] Existem umas dez casas de negócio, com mais ou menos garrafas vazias, pois em Queimadas não existe recursos de espécie alguma [...] (Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 03 de agosto de 1897 (apud GALVÃO, 1974, p. 149)).
Tanto os escritos de Euclides quanto os de Fávila trazem em seu bojo o
estranhamento quanto ao espaço urbano de Queimadas, evidenciando que ambos
desconheciam as diferentes temporalidades, formas de modernidades e distintas
maneiras de construções de cidades vigentes em um determinado período histórico.
Parece ter ficado claro que tais escritores se deixaram influenciar pelas reformas
arquitetônicas e urbanísticas pelas quais alguns centros urbanos estavam passando
naquele momento, materializando assim certos ideais do progresso republicano. É
válido lembrar que Belo Horizonte – cidade planejada – tem sua fundação em 1897.
Os paradigmas de urbanização refletiam as mudanças preconizadas pela Belle
Époque, com destaque para construção de ruas e avenidas amplas a fim de facilitar
“o rápido deslocamento e a passagem da multidão, que caracterizam as metrópoles
e a eficiência capitalista” (SILVA, 2001, p. 151). As edificações das casas e prédios
de muitos centros urbanos ganhavam sofisticação, com o uso do vidro e das curvas
sinuosas, modernizando as construções. As grandes cidades – imitando Paris –
passavam a contar com museus, livrarias, bibliotecas, Cafés e outros espaços
culturais, reconfigurando as formas de diversão, “de passar o tempo” e de
sociabilidade.
Os forasteiros chegavam a Queimadas ignorando as múltiplas realidades que
integravam (e ainda integram), este país gigantesco denominado Brasil, vinham com
ideias homogêneas de progresso, desconhecendo a diversidade. Além disso, é
preciso destacar que o município de Queimadas além de ser emancipado há pouco
tempo (1884), está localizado numa das regiões mais pobres da Bahia, sujeito à
secas prolongadas que fragilizam a prática agrícola – principal atividade econômica
do período. É preciso acrescentar ainda que a presença das benesses da esfera
pública no município era parca, conforme informado anteriormente. Dessa maneira é
60
até impensável pretender que um gestor de uma municipalidade flagelada pelos
efeitos das longas estiagens, tendo que atenuar as problemáticas advindas da
escassez de água e auxiliar, por aproximadamente um ano, as tropas de três
expedições militares, possua meios materiais (financeiros) para construir obras
públicas: praças, avenidas, jardins, monumentos e outras, com o fito de tornar
Queimadas um centro urbano “mais gracioso”, mais elegante e interessante aos
olhos de figuras oriundas das grandes cidades brasileiras, imbuídos de valores
vigentes em outras terras.
Os habitantes do pequeno burgo, por sua vez, também com raras exceções,
não dispunham de recursos financeiros para edificarem boas casas ou reformarem
as já existentes, devido ao fato de estarem numa região pobre, sujeita as
adversidades climáticas, com baixo poder no que concerne à geração de emprego e
renda. Sendo assim, para boa parte dos queimadenses a luta de cada dia não era
para aumentar o patrimônio como ocorria (e ocorre) em outras partes do país, mas
sim para garantir a subsistência da família, provendo-a dos recursos elementares à
manutenção da vida. Diversos militares e jornalistas que passaram por Queimadas
não consideraram as especificidades do município, preferiram esboçar definições
ancoradas em suas noções de progresso, que poderiam adequar-se perfeitamente
em outras territorialidades do país, mas não tinha fundamento algum para a
realidade queimadense, assim como para a quase totalidade dos municípios
brasileiros do período. Em parte isso nos ajuda a entender porque a Igreja de Santo
Antônio (patrimônio histórico-cultural da comunidade) foi considerada “capela exígua
e baixa, como um barracão de feira” (CUNHA, 2001, p. 498), e, sobretudo, porque a
Igreja foi alvo do vandalismo praticado por diversos militares, como já expusemos no
capítulo anterior.
61
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A fundação do Belo Monte em junho de 1893, assim como sua destruição
total em outubro de 1897, constituem episódios assaz discutidos. Têm sido espaço
de análises e de produção de conhecimento transitado por mestres e doutores de
diferentes áreas do saber, não apenas do Brasil, mas também do exterior. É preciso
salientar ainda que estes fenômenos de nossa história (infelizmente negativos e
trágicos) vêm sendo interpretado sob diferentes perspectivas: ora pelo viés político e
sociológico, ora pelo viés religioso e, não raro, no âmbito discursivo, através de
análises de textos construídos sobre o evento, com destaque para Os Sertões de
Euclides (1902). Dessa maneira, encontrar uma temática relativa a Canudos ainda
pouco estudada é tarefa das mais difíceis. Procurando conhecer a história do
município de Queimadas, por meio da leitura de Santo Antônio das Queimadas
(1984) de autoria do poeta, escritor e memorialista Antônio Nonato Marques,
realizada nos idos de 1999, constatei a estreita relação da outrora Vila Bela de
Santo Antônio das Queimadas com o massacre empreendido pelo Estado brasileiro
contra o povo de Belo Monte. Aí notei que a historiografia sobre o tema é um tanto
quanto omissa para com Queimadas, pois a povoação fora base de operações
militares, o município fora atravessado por milhares de soldados e centenas de
oficiais e, no entanto, poucos trabalhos se ocuparam em analisar a relação dos
militares com as autoridades, com os habitantes locais, bem como os impactos
causados no município.
A Guerra de Canudos – que neste trabalho foi denominada guerra contra o
Belo Monte, já que a comunidade de Canudos não esteve disputando território
algum ou espaço de poder, mas apenas defendendo seus lares e sua família – foi
desencadeada por motivos infundados, engendrados por muitos latifundiários do
nordeste baiano “incomodados no bolso” com a perda de mão de obra barata,
devido à migração de famílias inteiras para o Belo Monte. Além dos fazendeiros
determinados membros do clero e da intelectualidade brasileira, despeitados com o
advento de uma sociedade formada a margem do projeto republicano de exploração
dos trabalhadores, com a cobrança exacerbada de tributos, repressão e/ou controle
dos movimentos sociais, passaram a criar notícias, a disseminar o medo entre a
opinião pública da época, preconizando que Canudos era uma sociedade de
62
delinqüentes, que aspiravam à restauração da Monarquia. Paulatinamente,
intensificaram-se os reclamos para que o Estado resolvesse “dar cabo” dos
sertanejos de Canudos. Em outubro de 1897 o intento destes segmentos da
população brasileira é alcançado e ocorre o maior fratricídio de nossa história, já que
o Estado exterminou milhares de brasileiros. Para muitos a destruição total de
Canudos significou eliminar os entraves do desenvolvimento nacional.
Entretanto, é imprescindível considerar que boa parte do povo sertanejo não
usufruía das benesses do Estado, mas eram esquecidos de todo no que tange aos
benefícios dos serviços públicos (saúde, educação, moradia), lembrado apenas no
momento de cobrança dos impostos. Diante dessa realidade, concordamos com o
historiador Marco Antônio Villa que, em sua obra Canudos – O povo da terra
defende que “não houve anomia ou mera resistência às transformações
econômicas, ao “progresso”, mas uma rebelião aberta e a esperança coletiva de
construir um mundo novo, um mundo que fizesse sentido” (1995, p. 244, apud,
FERREIRA, 2008, p. 146). Tem razão o Professor Plínio Oliveira quando afirmou,
numa palestra proferida na Câmara de Vereadores de Santa Luz/BA, em
12/08/2010, que a formação da comunidade do Belo Monte representou um
movimento solidário de grandes proporções, de repúdio as mazelas sociais e ao
poder arbitrário dos coronéis e chefes políticos do sertão, de contestação a ordem
social vigente, explicitamente adversa para a concretização dos direitos sociais e
políticos das classes subalternas do Brasil.
As ações militares do Exército contra a população do Belo Monte também
foram negativas para o município de Queimadas. De fins de 1896 a outubro de
1897, o município sofreu uma série de impactos que alteraram a rotina das
autoridades e dos habitantes do município. Na condição de base militar, Queimadas
recebeu um alto contingente de soldados, muito superior ao seu número de
habitantes. Este acontecimento demandou recursos financeiros da Intendência,
assim como auxílios diversos de vários habitantes, notadamente daqueles mais
abastados. A despeito de colaborarem com as tropas, vários queimadenses
sofreram acusações e ameaças de alguns militares. Houve vários casos de violação
da propriedade, de violências físicas e verbais. Em outras palavras, Queimadas
pagou caro pelo fratricídio de Canudos.
63
LISTA DE FONTES
Bibliográficas
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do dia 24 de novembro de 1889; In MARQUES, 1997, p. 21-22.
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Periódicos
Gazeta de Notícias. Edição do dia 17 de outubro de 1897. Disponível em:
http://canudos.portfolium.com.br/. Acesso em 20/04/2011.
64
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http://canudos.portfolium.com.br/. Acesso em 15/01/2011.
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Gazeta de Notícias. Edição do dia 03 de agosto de 1897. Apud GALVÃO, 1974, p.
149.
Oral
Depoimento do Sr. José Bahia Leitão. Concedido em 09 de abril de 2009, na cidade
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Audiovisuais
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Internet
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http://brasil-1500.blogspot.com/2011_05_01_archive.html. Acesso em 10 de agosto
de 2011.
65
http://artesociologica.blogspot.com/p/queimadas.html. Acesso em 15 de agosto de
2011.
http://joseleitao.blogspot.com/2009/09/historia-da-fundacao-do-colegio.html. Acesso
em 07 de agosto de 2011.
66
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67
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68
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69
ANEXOS
70
ESTAÇÃO FÉRREA DE QUEIMADAS Fonte: http://artesociologica.blogspot.com/p/queimadas.html
Estação da Ferrovia do São Francisco, inaugurada em 06 de fevereiro de 1886. Nela desembarcaram, entre novembro de 1896 e outubro de 1897, soldados e oficiais de três expedições militares com o objetivo de exterminar a comunidade de Canudos.
71
IGREJA DE SANTO ANTÔNIO DAS QUEIMADAS.
Fonte: http://artesociologica.blogspot.com/p/queimadas.html
Foi inaugurada em 13 de junho de 1815. Em 1897 a Igreja foi transformada “numa
espécie de livro” onde alguns militares registraram suas impressões de momento,
demonstrando assim o desrespeito por um importante patrimônio histórico-cultural
do povo de Queimadas.
72
MAPA DA REGIÃO DE CANUDOS
Fonte: http://brasil-1500.blogspot.com/2011_05_01_archive.html
A região de Canudos e o itinerário das expedições militares enviadas para
destruírem a comunidade do Belo Monte entre novembro de 1896 e outubro de
1897.
73
CHALET DO CEL. FRANCISCO LANTYER
Fonte: http://artesociologica.blogspot.com/p/queimadas.html
Francisco Lantyer auxiliou as tropas que passaram por Queimadas no período do
conflito contra o Belo Monte, no entanto, foi acusado por alguns militares de ser
favorável a Antônio Conselheiro.
74
CORONEL JOSÉ MARTINS LEITÃO
Fonte: http://joseleitao.blogspot.com/2009/09/historia-da-fundacao-do-colegio.html
O Coronel foi Intendente do município de Queimadas entre 1896 a 1904. Mesmo
tendo colaborado com as três expedições militares que passaram por seu município
fora acusado por alguns militares e jornalistas de ser aliado de Antônio Conselheiro.
Era natural da cidade do Porto (Portugal). Veio para o Brasil nos idos da década de
1850.