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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa [email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora © 2015, Direitos reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena Copyright © 2014 Emma Healey Título original: Elizabeth Is Missing Título: A Elizabeth Desapareceu Autor: Emma Healey Tradução: Rita Canas Mendes Revisão: Silvina de Sousa Paginação: Maria João Gomes Ilustrações e capa original: Steph von Reis Adaptação de capa portuguesa: Marina Costa / Marcador Editora Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-8752-69-7 Depósito legal: 393 441/15 1.ª edição: junho de 2015

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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

[email protected]/marcadoreditora

© 2015, Direitos reservados para Marcador Editorauma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

Copyright © 2014 Emma Healey

Título original: Elizabeth Is MissingTítulo: A Elizabeth DesapareceuAutor: Emma HealeyTradução: Rita Canas MendesRevisão: Silvina de SousaPaginação: Maria João GomesIlustrações e capa original: Steph von ReisAdaptação de capa portuguesa: Marina Costa / Marcador EditoraImpressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

ISBN: 978-989-8752-69-7 Depósito legal: 393 441/15

1.ª edição: junho de 2015

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PRÓLOGO

Maud? Eu estava a aborrecer-te tanto que preferiste ficar aí fora, no escuro?Uma mulher chama-me, da luz quente de uma sala de

jantar atafulhada. A minha respiração encaracola-se na sua direção, hú-mida e fantasmagórica, mas não é acompanhada de palavras. A neve, fina mas luminosa no chão, reflete a luz para a sua cara, que está con-traída com força numa tentativa de me ver. Contudo, sei que ela não consegue ver muito bem, mesmo à luz do dia.

– Vem para dentro – pede ela. – Está um gelo. Prometo não dizer mais uma palavra que seja sobre sapos e caracóis e peças de majólica.

– Eu não estava aborrecida – respondo, compreendendo tarde de-mais que ela brincava. – Dá-me um minuto. Só procuro uma coisa. – Na minha mão está o que já encontrei, ainda com grumos de lama. Uma coisa pequena, fácil de perder. A tampa partida de um velho espelho compacto, com a prata manchada, com o seu esmalte azul-marinho já não vítreo, mas sim riscado e baço. O espelho bolorento é como uma janela para um mundo dissipado, como uma escotilha através da qual se vê o fundo do mar. Faz-me estremecer com as recordações.

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– Que perdeste? – A mulher avança, precária e trémula, para o quin-tal. – Posso ajudar? Talvez não veja a coisa, mas provavelmente consigo tropeçar nela, se não estiver demasiado bem escondida.

Sorrio, mas não saio do relvado. A neve acumulou-se nas bordas de uma pegada e parece um pequeno fóssil de dinossauro acabado de ser desenterrado. Aperto a tampa do espelho compacto na minha mão, com a terra a repuxar-me a pele à medida que seca. Perdi esta coisa minúscula há quase setenta anos. E agora a terra, tornada lamacenta e mastigável com a neve que se derrete, cuspiu uma relíquia. Cuspiu-a para a minha mão. Mas vinda de onde? É isso que não consigo desco-brir. Onde estava antes de se tornar a cartilagem na refeição da terra?

Um ruído antigo, como o regougar de uma raposa, faz uma inves-tida nas margens do meu cérebro.

– Elizabeth? – pergunto. – Alguma vez plantaste curgetes?

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I

Sabe que uma senhora idosa foi assaltada aqui perto? – per-gunta a Carla, deixando o seu comprido rabo de cavalo preto serpentear por cima de um ombro. – Bem, na verdade foi em

Weymouth, mas podia ter sido aqui. Como vê, a cautela nunca é de-mais. Eles deram com ela com metade da cara esmurrada.

Esta última parte foi dita numa voz abafada, mas a audição não é um dos meus problemas. Gostaria que a Carla não me contasse estas coisas; deixam-me com uma sensação incómoda muito depois de me ter esquecido das histórias em si. Sinto um calafrio e olho pela janela. Não me ocorre em que direção fica Weymouth. Um pássaro passa a voar.

– Tenho ovos que cheguem?– Bastantes; portanto, não tem de sair hoje.Ela pega no dossiê de cuidadora, acena-me com a cabeça, manten-

do o contacto visual até que eu acene de volta. Sinto que estou na esco-la. Tinha algo na cabeça há um instante, uma história, mas agora perdi o fio à meada. Era uma vez, seria assim que começava? Era uma vez, numa floresta densa e escura, vivia uma mulher muito velha chamada Maud. Não sei qual será a parte seguinte. Algo sobre esperar que a filha venha visitá-la, talvez. É uma pena eu não viver numa casinha simpática numa

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floresta escura, estou até a imaginá-la. E a minha neta podia trazer-me comida numa cesta.

Um estrondo, algures dentro de casa, faz com que os meus olhos deslizem pela sala de estar, há um animal, um animal para usar na rua, pousado no braço do canapé. É da Carla. Ela nunca o pendura, para não se esquecer dele, imagino. Não consigo evitar olhar para ele, certa-mente que se mexerá, fugirá para um canto, ou então vai comer-me e tomar o meu lugar. E a Katy terá de comentar os seus olhos grandes e os seus grandes dentes.

– Tantas latas de pêssego! – grita a Carla da cozinha. Carla, a cuida-dora. «Cuidadores» é o que lhes chamam. Consigo ouvir o raspar das latas na minha bancada de fórmica. – Tem que chegue para um exército.

Comida que chegue. Nunca se tem comida que chegue. A maior parte dela parece desaparecer, seja como for, e não consigo encontrá--la mesmo depois de a ter comprado. Não sei quem está a comê-la. A minha filha é igual. «Chega de latas, mãe», diz ela, percorrendo os meus armários sempre que tem oportunidade. Acho que ela deve estar a alimentar alguém. Metade das coisas desaparece de casa com ela, e depois pergunta-se por que motivo tenho de ir outra vez às compras. De qualquer modo, não é que me restem muitos prazeres na vida.

– Não é que me restem muitos prazeres – digo, levantando-me do assento para que a minha voz chegue à cozinha. Há torcidos de pa-péis brilhantes de chocolates enfiados nos lados da minha cadeira; eles contorcem-se contra as almofadas e eu sacudo-os com um movimento rápido. O meu marido, Patrick, costumava ralhar-me por comer doces. Eu comia-os muito, em casa. Era bom poder saborear um sorvete de limão ou uma taça de caramelo quando queria, pois não nos era per-mitido fazê-lo na central: ninguém quer falar com uma telefonista que tem a boca cheia. Mas ele dizia que me dariam cabo dos dentes. Sempre suspeitei que estava mais preocupado com a minha silhueta. As dra-geias de mentol Polo eram o nosso meio-termo, e ainda gosto delas, mas agora não há quem me impeça de comer uma caixa inteira de caramelos se me apetecer. Até posso começar logo pela manhã. Agora é manhã. Sei porque o sol está no poleiro dos pássaros. Ele bate no poleiro dos

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pássaros de manhã e no pinheiro ao fim da tarde. Tenho um dia inteiro para atravessar, até que a luz atinja aquela árvore.

A Carla entra, meio curvada, na sala de estar e apanha os papéis dos chocolates à volta dos meus pés.

– Não sabia que estava aqui, querida – digo eu.– Estive a preparar o seu almoço. – Ela tira as luvas de plástico com

um estalido. – Pu-lo no frigorífico com um papelinho por cima. São nove e quarenta, tente não o comer antes do meio-dia, certo?

Fala como se eu devorasse sempre tudo assim que ela sai. – Tenho ovos que cheguem? – pergunto, sentindo-me subitamente

com fome.– Muitos – responde a Carla, largando o dossiê de cuidadora sobre

a mesa. – Vou-me embora. A Helen virá mais tarde, está bem? Adeus.A porta da frente fecha-se com um clique e oiço a Carla a dar a volta

à chave, trancando-me no interior. Observo-a através da janela enquanto calcorreia o caminho da minha entrada. Usa um casaco com um capuz orlado a pelo por cima da farda. Uma cuidadora com pele de lobo.

Em miúda, teria ficado contente por ter a casa só para mim, por poder comer coisas da despensa e usar as minhas roupas de festa, pôr o gramofone a tocar e deitar-me no chão. Agora prefiro ter companhia. A luz ficou acesa e a cozinha parece um palco vazio onde entro para reorganizar os meus armários e ver o que a Carla me deixou para o al-moço. Como se esperasse alguém, a minha mãe com as compras, ou o pai com os braços cheios de peixe frito e de batatas fritas, dizendo algo dramático, como numa daquelas peças no Pier Theatre. O pai diria: «A tua irmã desapareceu», e ouvir-se-ia um tambor, um trompete ou coisa parecida, e a mãe diria: «Para nunca mais voltar», e todos nós olharía-mos uns para os outros, para benefício dos espetadores. Tiro um prato do frigorífico, perguntando-me que fala seria a minha. O prato tem um recado preso: Almoço para a Maud depois das 12:00. Tiro a película ade-rente. É uma sanduíche de queijo e tomate.

Quando acabo de comer, vagueio de volta até à sala de estar. Está tudo tão silencioso; até o meu relógio não faz um tiquetaque audível. Mostra as horas, porém, e eu observo os ponteiros a andar à roda por

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cima do fogão a gás. Tenho horas do dia para preencher e, a dado mo-mento, tenho de ligar o televisor. Está a dar um daqueles programas passados no sofá. Duas pessoas num sofá inclinam-se na direção de outra pessoa, sentada no sofá oposto. Sorriem e abanam a cabeça e, mais tarde ou mais cedo, a que está sozinha no sofá começa a chorar. Não consigo perceber do que se trata. Depois, há um programa em que as pessoas vão a várias casas à procura de coisas para vender. O tipo de coisas feias que é surpreendentemente valioso.

Há alguns anos, eu teria ficado chocada comigo – a ver televisão durante o dia! Mas que mais há para fazer? Por vezes, leio, mas os en-redos dos romances já não fazem sentido e nunca me lembro do ponto em que fiquei. Portanto, posso cozer um ovo. Posso comer um ovo. E posso ver televisão. Depois, fico apenas à espera: da Carla, da Helen, da Elizabeth.

A Elizabeth é a única amiga que me resta; as outras estão em lares ou em sepulturas. Ela é fã desses programas de andar-por-aí-a-vender--coisas. Compra todo o tipo de pratos e jarras em lojas de caridade, esperando fazer uma fortuna. Às vezes compro-lhes coisas, também, objetos de porcelana espalhafatosa, sobretudo; é uma espécie de jogo – ver quem encontra a peça de cerâmica mais feia na Oxfam1. É um tanto infantil, mas comecei a constatar que estar com a Elizabeth, rir com ela, é a única altura em que me sinto eu mesma.

Acho que havia algo de que me deveria lembrar sobre a Elizabeth. Talvez ela quisesse que eu lhe levasse alguma coisa. Um ovo cozido ou um pouco de chocolate. Aquele seu filho mantém-na esfomeada. Nem sequer gasta dinheiro em lâminas de barbear novas para si próprio. A Elizabeth diz que ele tem a pele assada de se barbear e preocupa-a que corte a garganta. Por vezes, gostaria que o fizesse. O sovina. Se eu não aparecesse de vez em quando com um ou outro extra, ela sumia-se. Tenho aqui um bilhete a dizer-me para não sair, mas não vejo o porquê. Não fará mal algum dar um pulo até à loja.

1 A Oxfam é uma grande organização de beneficência do Reino Unido que detém uma rede de lojas onde vende artigos doados, as chamadas charity shops (lojas de caridade), com o lucro a reverter a favor da instituição. (N. T.)

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Faço uma lista antes de vestir o casaco, procuro o chapéu e as mi-nhas chaves, verifico que tenho as chaves no bolso certo e volto a con-firmar junto à porta de entrada. Há manchas brancas ao longo do pa-vimento onde os caracóis foram esborrachados durante a noite. Esta rua tem sempre centenas de baixas depois de uma noite chuvosa. Mas o que causa aquelas marcas? Que parte do caracol torna a mancha branca daquele modo?

«Não empalideças, querido caracol»2, digo, dobrando-me tão de-pressa quanto me atrevo para ver melhor. Não me ocorre a origem da frase, mas é possível que seja acerca disto mesmo. A ver se me lembro de pesquisar quando regressar a casa.

A loja não fica longe, mas quando ali chego sinto-me cansada, e, por algum motivo, estou sempre a virar na rua errada, o que significa que tenho de dar de novo a volta ao quarteirão, como no fim da guerra. Muitas vezes, perdia-me a caminho do centro da cidade, com as ca-sas bombardeadas reduzidas a escombros, e espaços de súbito abertos, ruas bloqueadas por tijolos, alvenaria e mobília desfeita.

É uma loja pequena, a Carrow’s, cheia de coisas que não quero. Gostava que eles mudassem de sítio as filas e mais filas de latas de cerveja, dando espaço para alguma coisa útil. Porém, esteve sempre aqui, desde que eu era criança. Eles só mudaram o letreiro há uns anos. Agora tem escrito Coca-Cola, e Carrow’s está meio escondido, como se tivesse sido acrescentado à última hora. Leio-o para dentro ao entrar e, depois, leio a minha lista de compras em voz alta, junto a uma prateleira de caixas. Ricicles e Shreddies, seja lá o que isso for.

– Ovos. Leite – ponto de interrogação. Chocolate. – Inclino o meu papel para a luz. Na loja, há um aconchegante cheiro a cartão, e é como estar na despensa lá de casa. – Ovos, leite, chocolate. Ovos, leite, cho-colate. – Digo as palavras, mas não consigo pensar com precisão no seu aspeto. Será que eles estão nalguma das caixas à minha frente? Conti-nuo a murmurar a lista sob o meu nariz enquanto circulo pela loja, mas as palavras começam a perder o significado e são como um cântico. Também escrevi «curgetes», mas acho que não as vendem aqui.2 Verso de um poema que surge em Alice no País das Maravilhas. (N. T.)

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– Posso ajudar, Senhora Horsham?O Reg inclina-se sobre o balcão e o seu casaco de malha cinzen-

to desfralda-se, varrendo os rebuçados do seu recipiente de plástico e deixando pedaços de cotão sobre eles. Observa-me enquanto ando. Metediço. Não sei o que está ele a vigiar. Uma vez vim-me embora com uma coisa. E então? Foi só uma embalagem de alface lisa. Ou teria sido um frasco de compota de framboesa? Não me recordo. Em todo o caso, ele recuperou-o, não foi? A Helen devolveu-o e resolveu-se o assunto. Até parece que ele não se engana – ao longo dos anos, deram--me muitas vezes troco a menos. Ele gere esta loja há décadas, e está na altura de se reformar. Mas a sua mãe só desistiu de trabalhar aqui quando já tinha noventa; portanto, é provável que se aguente mais um tempo. Fiquei contente quando a velha finalmente se foi embora. Ela costumava meter-se comigo sempre que eu cá vinha, pois, quando era miúda, pedira-lhe que recebesse uma carta por mim. Eu tinha escrito a um homicida e não queria que a resposta fosse para minha casa, e usei o nome de uma estrela de cinema em vez do meu. A resposta nunca che-gou, mas a mãe do Reg pensou que eu estava à espera de uma carta de amor e ria-se com isso, mesmo muito tempo depois de eu estar casada.

O que foi que vim buscar? As prateleiras cheias franzem-me o so-brolho enquanto as contorno, e o linóleo azul e branco olha-me fi-xamente, sujo e rachado. O meu cesto está vazio, mas acho que já cá estou há algum tempo; o Reg observa-me. Estendo a mão para pegar em algo: é mais pesado do que esperava e o meu braço é de repente puxado para baixo com o peso. É uma lata de pêssego. Servirá. Ponho mais algumas latas no meu cesto, ajeitando as pegas na dobra do braço. A caminho do balcão, as barras de metal finas roçam-me na anca.

– Tem a certeza de que é isto que vem buscar? – pergunta-me o Reg. – É que comprou muito pêssego quando cá veio ontem.

Olho para o cesto. Será verdade? Será que comprei as mesmas coi-sas ontem? Ele pigarreia e eu vejo uma centelha de divertimento no seu olhar.

– Toda a certeza – digo com voz firme. – Se quiser comprar latas de pêssego, posso comprá-las.

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Ele arqueia as sobrancelhas e começa a digitar os preços na má-quina registadora. Mantenho a cabeça erguida, vendo as latas a serem postas na coisa de plástico para as transportar, mas tenho as faces quentes. O que foi que vim buscar? Procuro no bolso e encontro um papel azul com a minha caligrafia: Ovos. Leite? Chocolate. Pego numa barra de Dairy Milk e ponho-a no cesto, para ao menos ter alguma coisa da lista. Mas não posso voltar a pôr as latas no sítio, o Reg rir- -se-ia de mim. Pago o meu saco de latas e vou a tilintar de novo para o passeio. Ando devagar porque o saco é pesado e o meu ombro e a parte de trás do joelho doem-me. Lembro-me de quando as casas costumavam suceder-se rapidamente enquanto caminhava – quase a correr – vinda de casa e a caminho de casa. A mã, depois, perguntava--me o que tinha visto, se certos vizinhos estavam fora, o que achava do novo muro do jardim de alguém. Eu nunca reparava; tinha tudo passado num ápice. Agora tenho muito tempo para olhar para tudo, e ninguém a quem contar o que vi.

Por vezes, quando faço uma seleção ou organização em casa, des-cubro fotografias da minha juventude, e é um choque ver tudo a preto e branco. Acho que a minha neta acredita que nós tínhamos realmente a pele cinzenta, cabelos baços, sempre a posar numa paisagem ensom-brada. Mas lembro-me de a cidade ser quase demasiado luminosa para os olhos, quando era pequena. Lembro-me do azul profundo do céu e do verde-escuro dos pinheiros recortado contra ele, o vermelho vivo das casas de tijolo locais e do tapete cor de laranja da caruma sob os nossos pés. Hoje em dia – embora esteja certa de que o céu às vezes é azul e de que a maioria das casas ainda cá está, e que as árvores ainda deixam cair a caruma –, hoje em dia, as cores parecem desvanecidas, como se eu vivesse numa fotografia antiga.

Quando chego a casa, há um despertador a tocar. Por vezes, pro-gramo-o para me lembrar de compromissos. Largo o saco à porta, no interior, e desligo o despertador. Não consigo lembrar-me do que es-tava previsto para esta hora; não vejo nada que mo indique. Talvez seja alguém a chegar.

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– O funcionário da imobiliária apareceu? – pergunta a Helen, com a voz entrecortada pelo ruído da sua chave na porta de entrada. – Ele devia ter vindo ao meio-dia. Veio?

– Não sei – respondo. – Que horas são agora?Ela não responde. Consigo ouvir os seus passos pesados no corredor.– Mãe! – diz ela. – De onde vieram estas latas? De quantas malditas

latas de pêssego precisas?Respondo que não sei de quantas preciso. Digo-lhe que a Carla

deve tê-las comprado. Digo que estive em casa todo o dia e depois olho para o relógio, perguntando-me como consegui atravessá-lo. A Helen entra na sala de estar, expirando um ar doce e frio, e eu sou novamente criança, estou na minha cama quente, e a cara gelada da minha irmã comprime-se contra a minha bochecha por instantes, e a sua respiração fria sussurra sobre mim enquanto me fala do pavilhão e das danças e dos soldados. A Sukey estava sempre fria quando chegava a casa vinda de um baile, mesmo no verão. A Helen também está muitas vezes fria, do muito tempo que passa a escavar nos jardins de outras pessoas.

Ela segura um saco de plástico. – Porque é que a Carla deixaria latas de pêssego no corredor? – Ela

não fala mais baixo, embora estejamos na mesma sala, e levanta o saco bem alto.

– Tens de parar de ir às compras. Já te disse que posso trazer-te tudo o que precisares. Venho todos os dias.

Estou certa de que não a vejo com essa frequência, mas não vou discutir. Ela baixa o braço e vejo o saco baloiçar até parar junto à sua perna.

– Então prometes? Não voltar a ir comprar comida?– Não vejo porque haveria de ir. Já te disse, a Carla deve tê-las com-

prado. E, seja como for, se eu quiser comprar latas de pêssego, posso fazê-lo. – A frase tem uma sonoridade familiar, mas não me ocorre porquê. – Se eu quisesse plantar curgetes – digo, voltando a lista de compras para a luz –, onde seria melhor plantá-las?

A Helen sai da sala a suspirar e apercebo-me de que me levantei para a seguir. No corredor, paro: há um som de rugido a vir de algures.

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Não consigo imaginar o que seja, e não percebo de onde vem. Mas mal o oiço quando estou na cozinha. Aqui, está tudo muito limpo: os meus pratos estão no escorredor, embora não ache que tenha sido eu a pô- -los ali, e a faca e o garfo que gosto de usar foram lavados. Quando abro a porta de um armário, dois pedaços de papel esvoaçam até ao chão. Um é uma receita de molho branco e o outro tem o nome da Helen e um número de telefone por baixo. Tiro de uma gaveta um rolo de fita autocolante, fita-cola azul, para voltar a colá-los. Talvez faça um molho branco, hoje. Depois de tomar uma chávena de chá.

Ligo a chaleira. Sei qual é a ficha, pois alguém a rotulou: chaleira. Tiro chávenas, leite, e um saco de chá de um frasco onde se lê chá. Ao lado do lava-loiça há uma nota: O café ajuda a memória. Essa tem a minha caligrafia. Levo a chávena para a sala de estar, parando na ombreira. Tenho um ribombar na cabeça. Ou talvez venha do andar de cima. Co-meço a subir até ao patamar, mas não consigo fazê-lo sem me agarrar a ambos os corrimãos, pelo que volto atrás e deixo o chá na prateleira do corredor. É só um minuto.

O meu quarto é muito soalheiro, e é sossegado aqui, tirando uma espécie de rugido algures dentro de casa. Empurro a porta para a fechar e sento-me no meu toucador ao pé da janela. Há peças de bijuteria nos naperons e nos pratos de porcelana; agora já não uso joias a sério, tirando a aliança, claro. Nunca tive de a mandar ajustar, nunca, em mais de cin-quenta anos. A aliança correspondente do Patrick parecia enterrar-se na sua carne, com o nó do dedo saliente por cima dela; ele recusava-se a mandar cortá-la e ela não se mexia, por muita manteiga com que eu a untasse. Ele costumava dizer que o anel preso a ele daquele modo era prova de um casamento forte. Eu costumava dizer que era prova de que não cuidava bem de si. O Patrick dizia-me que me preocupasse mais com o meu anel, demasiado laço no meu dedo esguio, mas na verdade ele servia-me perfeitamente e nunca o perdi.

A Helen, contudo, diz que agora perco as minhas joias, e ela e a Katy levaram a maioria das peças boas para si, para «as manterem se-guras». Não me importo. Pelo menos estão na família, e nenhuma era muito valiosa. A coisa mais cara que eu tinha era um bizarro pendente

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de ouro com a forma da cabeça da rainha Nefertiti, que o Patrick trouxe do Egito.

Passo a mão por uma pulseira de plástico encardida e olho-me ao espelho. O meu reflexo deixa-me sempre chocada. Nunca acreditei que envelheceria de facto, e decerto que nunca pensei envelhecer assim.A pele à volta dos meus olhos e da ponte do meu nariz envelheceu de um modo inesperado. Dá-me um aspeto de réptil. Mal consigo lem-brar-me da minha velha cara, exceto em lampejos. Uma rapariga de bochechas redondas frente a um espelho a tirar os rolos de cabelo pela primeira vez, uma jovem pálida no parque da cidade a olhar para baixo, para um rio verde, uma mãe cansada com cabelo em desalinho, meio voltada de costas para a janela escura de um comboio enquanto tenta separar os filhos que bulham. Estou sempre de expressão franzida, na minha memória, pelo que não admira que o meu sobrolho se tenha fixado desta forma. A minha mãe teve uma suave pele de pêssego até à morte, embora tivesse bons motivos para ter mais rugas do que a maioria. Talvez tivesse algo que ver com não usar maquilhagem; diz-se isso sobre as freiras, não diz?

Hoje em dia nunca uso maquilhagem, e nunca usei batom, nunca gostei. As raparigas na central metiam-se comigo por causa disso, e ocasionalmente, quando era nova, experimentava um, pedia empresta-do a uma amiga ou usava um que me tivesse sido dado no Natal, mas nunca suportava tê-lo posto mais do que uns minutos. Tenho um tubo na gaveta, dado pela Helen ou pela Katy, e agora tiro-o de lá, rodando a base e aplicando-o com muito cuidado, inclinando-me para me apro-ximar do espelho, garantindo que não passa para os dentes. Veem-se algumas velhas com dentaduras manchadas, pestanas cheias de fuligem e rouge esborratado nas faces, com as sobrancelhas desenhadas dema-siado em cima. Prefiro morrer a ser uma delas. Comprimo os lábios. Ficou bonito e radioso, ainda que ligeiramente gretado, e tenho muita sede. Está na altura de preparar uma chávena de chá.

Largo o batom dentro da gaveta e passo um comprido fio de péro-las pela cabeça antes de me levantar. Não são verdadeiras, claro. Quan-do abro a porta, oiço um ruído trovejante. Não me ocorre o que seja.

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Vai ficando mais alto à medida que desço as escadas. Paro no último degrau, mas não vejo nada. Olho para a sala de estar. O som torna-se ainda mais alto. Pergunto-me se está na minha cabeça, se há alguma coisa a ficar menos bem. O som aumenta e vibra. E depois para.

– Pronto. Já está tudo aspirado, pelo menos. – A Helen está de pé junto à porta da sala de jantar, a enrolar o fio do aspirador. A sua boca hesita num sorriso. – Vais a algum lado?

– Não – respondo. – Penso que não.– Então para que são as pérolas? Estás toda embonecada.– Estou? – Levo uma mão à clavícula. Tenho um fio de pérolas

posto e uma coisa no pulso, e sinto o sabor a batom. Batom, com o fétido cheiro a cera e espessura sufocante. Limpo a boca com as costas da mão, mas isso só o esborrata e piora as coisas; então começo a es-fregar a cara, puxando a manga do casaco de malha para servir de pano, cuspindo nele e esfregando como se fosse ao mesmo tempo a mãe e a criança ranhosa. Demora alguns minutos até me sentir de novo limpa, e apercebo-me de que a Helen tem estado a observar-me.

– Dá-me o teu casaco – diz ela. – É melhor pô-lo na máquina. Ela pergunta-me se quero beber algo.– Oh, sim – respondo, despindo a lã da pele e deixando-a cair sobre

a minha cadeira –, estou cheia de sede.– Não admira – diz a Helen, voltando-se para sair da sala. – Havia

uma fila de chávenas de chá frias na prateleira do corredor. Digo que não sei como foram ali parar, mas creio que não me ouve,

pois já desapareceu para a cozinha e, de qualquer modo, a minha cabeça está descaída enquanto vasculho a minha carteira. Eu tinha aqui, a dada altura, uns biscoitos de malte. Foi ontem? Comi-os? Tiro um pente, o meu porta-moedas e alguns lenços de papel amachucados. Não en-contro quaisquer biscoitos, mas há um bilhetinho numa das bolsas da carteira: Não comprar mais latas de pêssego. Não digo à Helen. Em vez dis-so, ponho-o debaixo do papel com a data de hoje. A minha cuidadora deixa-me um desses todos os dias. É por isso que sei que hoje é quinta--feira. Geralmente, visito a minha amiga Elizabeth às quintas-feiras, mas parece que não fizemos qualquer combinação esta semana. Ela

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não telefonou. Eu teria tomado nota. Teria escrito a que horas iria vê--la. Escrevo tudo.

Há papelinhos por toda a casa, ao monte ou empilhados em cima de diversas superfícies. Listas de compras e receitas rabiscadas, núme-ros de telefone e compromissos, notas sobre coisas que já aconteceram. A minha memória de papel. Destina-se, supostamente, a impedir que me esqueça de coisas. Mas a minha filha diz-me que perco as anotações. Também tenho isso anotado. Contudo, se a Elizabeth tivesse ligado, eu teria uma nota. Elas não podem ter caído todas da mesa e da bancada e do espelho. E tenho um papelinho enfiado na manga: Não há notícias da Elizabeth. Com uma data antiga de um dos lados. Tenho a sensação horrível de que lhe aconteceu alguma coisa. Pode ter acontecido tudo. Falou-se de algo no noticiário ontem, acho. Sobre uma mulher idosa. Alguma coisa desagradável. E agora a Elizabeth desapareceu. E se ela foi assaltada e deixada à morte? Ou se teve uma queda e não consegue chegar ao telefone? Penso nela, deitada no chão da sala de estar, inca-paz de se levantar, ainda à espera de um qualquer tesouro para saltar da alcatifa.

– Talvez tenhas falado com ela e não te lembres, mãe. Achas que é possível? – A Helen entrega-me uma chávena de chá; esquecera-me de que ela estava cá.

Ela dobra-se para me beijar no cimo da cabeça. Sinto os seus lábios através do cabelo fino que se tufa no meu couro cabeludo. Cheira a uma erva qualquer. Rosmaninho, talvez. Imagino que tenha estado a plantá-lo. Como homenagem a quem já partiu.

– Porque, bem, tu esqueceste-te de que saímos no sábado, não foi?Equilibro a chávena no braço da cadeira, segurando-a com uma

mão. Não olho para cima quando a minha filha recua. Presumo que ela esteja certa. Não tenho qualquer recordação de sábado, mas tam-bém não tenho qualquer recordação de não me ter recordado. A ideia faz-me inspirar com força. Estas brancas são preocupantes. Mais do que preocupantes. Como não me lembro do sábado passado? Sinto o sobressalto cardíaco familiar, o surto de vergonha, medo. O sábado passado. Será que me lembro sequer do dia de ontem?

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– Então, talvez tenhas falado com a Elizabeth.Anuo e bebo um gole de chá, já a perder o fio à conversa. – Provavelmente tens razão. – Não sei ao certo com que estou a

concordar, mas gosto da sensação de me entregar à branca, de parar de tentar lembrar-me ansiosamente. A Helen sorri. Haverá um vestígio de triunfo no seu sorriso?

– Muito bem. É melhor ir andando.A Helen está sempre a ir andando. Vejo-a pela janela da frente en-

quanto entra no carro e se afasta. Nunca me lembro da sua chegada. Talvez devesse escrevê-lo. Mas estes papéis na mesa junto à minha ca-deira, este sistema para me lembrar, não são perfeitos. Muitas destas anotações são antigas, já não são relevantes, e eu misturo-as. E mesmo as novas não parecem conter a informação certa. Há aqui uma com a escrita ainda brilhante: Não tenho tido notícias da Elizabeth. Passo os dedos pelas palavras, esborratando-as ao de leve. Será verdade? Devo ter aca-bado de o escrever. Sem dúvida que não me recordo de ter falado com ela recentemente. Alcanço o telefone. A Elizabeth é o botão número quatro. Chama, chama. Tomo uma nota.

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II

A Elizabeth desapareceu – digo. – Já te contei? – Estou a olhar para a Helen, mas ela não olha para mim.– Já disseste. Que vais comer?

Estou sentada, a olhar por cima da minha ementa. Só Deus sabe onde nos encontramos. Consigo perceber que é um restaurante – empregados vestidos de preto e branco, mesas com tampo de mármore –, mas que restaurante? Tenho a sensação terrível de que deveria saber, e que isto é uma espécie de mimo especial. Não creio que seja o meu aniversário, mas talvez seja uma data a celebrar.A morte do Patrick? Seria mesmo coisa da Helen lembrar-se e fazer disso uma «ocasião especial». Mas consigo ver pelas árvores nuas lá fora, na rua, que não é a altura do ano certa. O Patrick morreu na primavera.

A ementa diz «The Olive Grill». É pesada, a capa é de couro. Per-corro as letras gravadas com um dedo, embora o nome nada me diga, e depois a base da lombada escorrega do tampo. Trago-a para o meu colo e leio o conteúdo em voz alta:

– Sopa de abóbora-manteiga. Salada de tomate e mozzarella. Cogu-melos com alho. Presunto de Parma e melão…

– Sim, obrigada, mãe – diz a Helen. – Eu consigo lê-la sozinha.

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Ela não gosta que eu leia coisas em voz alta, isso faz com que suspi-re e revire os olhos. Por vezes, faz gestos nas minhas costas. Já a vi em espelhos, a fingir que me estrangula.

– Que vais pedir? – pergunta-me agora, baixando a ementa, mas mantendo os olhos nela.

– Curgete recheada com chouriço italiano – leio, incapaz de me conter. – As curgetes estão outra vez na moda? Não as via numa ementa há anos.

As pessoas cultivavam mais curgetes quando eu era nova, e havia concursos para eleger as melhores. Não parece acontecer tanto disso agora. Eu conheci a Elizabeth por causa de umas curgetes. Da primeira vez que conversámos, disse-me que o muro do seu jardim tinha seixos cimentados até acima e eu soube logo onde ela vivia. Era a casa com o jardim onde, há mais de sessenta anos, se tinham desenterrado curgetes durante a noite. E, não sei porquê, eu queria dar uma vista de olhos naquele jardim, pelo que procurei ser convidada para um chá.

– Não vais gostar de chouriço italiano – diz a Helen. – E que tal a sopa?

– Eu costumava comer sopa com a Elizabeth – digo, sentindo uma espécie de cócegas perante a ideia. – Depois de concluída a Oxfam. Sopa e sanduíches. E as palavras cruzadas do Echo. Não fazemos isso há muito tempo. – E ainda não tive notícias dela. Nem uma palavra. Não compreendo. Ela nunca vai para fora; algo deve ter acontecido.

– Mãe? Tens de pedir.Há um empregado junto à nossa mesa, com o bloco de notas pre-

parado. Pergunto-me há quanto tempo está ele ali. Curva-se para nos perguntar o que queremos, com a sua cara desnecessariamente próxima da minha. Inclino-me para longe dele.

– Helen, não soubeste nada sobre a Elizabeth, pois não? – pergun-to. – Tu dir-me-ias se soubesses, não é?

– Sim, mãe. Que vais comer?– Quer dizer, não é como se ela pudesse ir-se embora, de férias. –

Fecho a ementa e procuro um sítio para a pousar, mas não encontro espaço; há coisas no caminho. Coisas brilhantes, como as da Elizabeth.

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Não me ocorrem o que são. Elas estão pousadas na mesa dela, junta-mente com o molho de salada, os picles Branston e pacotes de Maltesers. Os pacotes costumam estar abertos e os chocolates rebolam pelo chão como se fossem uma armadilha saída dos desenhos animados. Preo-cupa-me com frequência ela poder escorregar num. – Se ela teve uma queda, não tenho como saber – digo. – Duvido que o filho se desse ao trabalho de me dizer.

O empregado endireita-se e tira-me a ementa das mãos. A Helen sorri-lhe e faz o pedido pelas duas; não sei o quê. Ele acena e vai-se embora, ainda a escrever, para lá de paredes com riscos a tinta preta. Os pratos das entradas também são pretos; imagino que isso seja o que está na moda. O restaurante é como uma folha de papel de jornal esborratada que foi amassada em torno de uma maçã para a preservar durante o inverno, ilegível à exceção dos anúncios.

– Não há forma de descobrir sozinha. Esse é o problema – digo, sentindo um ânimo súbito ao recuperar inesperadamente o meu as-sunto. – As famílias são informadas, mas não os amigos. Não na nossa idade, pelo menos.

– Isto costumava ser o Chophouse, lembras-te, mãe? – interrompe a Helen.

Que dizia eu? Não consigo lembrar-me. Algo. Algo, algo, algo…– Lembras-te?Estou em branco.– Costumavas encontrar-te aqui com o pai, não era?Olho à volta. Há duas velhas a uma mesa ao pé de uma parede

manchada de tinta; olham para alguma coisa rente à mesa, entre ambas.– Quando isto era o Chophouse. Lembras-te? Oh, deixa estar.A Helen volta a suspirar. Ela tem feito muito isso ultimamente. Não

ouve, não me leva a sério, imagina que quero viver no passado. Sei o que está a pensar, que perdi os parafusos, que a Elizabeth está ótima, em casa, e que eu é que não me lembro de a ter visto ultimamente. Mas não é verdade. Esqueço-me das coisas – sei disso –, mas não estou doida. Estou cansada de sorrisos condescendentes, das palmadinhas que as pessoas nos dão quando baralhamos as coisas, e de toda a gente prestar

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atenção à Helen em vez de ouvirem o que tenho para dizer. A minha pulsação acelera e cerro os dentes. Sinto um impulso terrível de pon-tapear a Helen por baixo da mesa. Em vez disso, pontapeio a perna da mesa. O saleiro e o pimenteiro brilhantes chocalham um contra o outro e um copo de vinho começa a cambalear. A Helen apanha-o.

– Mãe – diz ela. – Tem cuidado. Vais partir alguma coisa.Não respondo; os meus dentes ainda estão muito comprimidos.

Sinto que posso começar a gritar, mas partir algo é boa ideia. É o que quero fazer. Pego na faca da manteiga e esfaqueio o prato preto. A porcelana parte-se. A Helen diz alguma coisa, acho que pragueja, e alguém vem a correr ter comigo. Continuo a olhar para o prato. O meio desfez-se ligeiramente e parece um disco partido, um disco de gramofone partido.

Encontrei uns, certa vez, no nosso quintal. Eles estavam na horta, esmagados aos bocados e todos misturados. A mã mandara-me ajudar o pai quando voltei da escola e ele tinha-me dado a sua pá para cavar um sulco destinado aos feijões-da-espanha e, em seguida, desaparecera no casebre das ferramentas. Os discos tinham quase a mesma cor da terra e eu não os teria encontrado se não tivesse sentido algo quebrar-se ao cavar e, instantes depois, não tivesse apanhado estilhaços entre os dentes da minha forquilha de jardim.

Quando me apercebi do que se tratava, arranquei-os da terra e deixei-os num pedaço de relva, ao sol, a secar. Eu não sabia de onde tinham vindo. Só o Douglas, o nosso hóspede, tinha um gramofone e eu pensei que ele diria caso alguns dos seus discos se tivessem partido. De qualquer modo, ele era um rapaz bem-comportado e não era do tipo de atirar coisas para o quintal.

– Que vem a ser isso? – perguntou a mã quando, ao sair para ir apa-nhar a roupa estendida, deu comigo ajoelhada ao pé dos fragmentos.

Eu tinha sacudido a terra e começado a encaixar as peças. Não porque achasse que os discos voltariam a tocar, mas porque queria ver que discos eram. A mã esfregou as marcas de sujidade na minha cara, no sítio onde eu tentara afastar o cabelo com os dedos cheios de terra,

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e disse que deviam ter sido os vizinhos a atirar os discos por cima da vedação.

– Aqui ao lado há um inquilino novo todas as semanas. Só Deus sabe quem são eles neste momento – disse ela. – Não é a primeira vez que descubro lixo aqui. – Ela olhou para aquelas caricaturas negras. – Imaginem partir tudo isto. Agora não servem para nada. Ei, Maud, atira-os para o fim da vala dos feijões-da-espanha. Para escoamento.

– Está bem – disse eu. – Só quero pô-los inteiros novamente.– Porquê? Vais usá-los para pavimentar um caminho no relvado?– Posso?– Não sejas tonta.Ela riu-se e caminhou airosamente de fragmento em fragmento,

com o cesto da roupa na anca, até que chegou à porta da cozinha. Vi-a entrar, com o vermelho do seu cabelo a empalidecer ao lado do tijolo vermelho vivo da nossa casa.

Não levei muito tempo a juntar as peças, e era uma tarefa agradável sob o sol de inverno, ao som da música dos pombos que arrulhavam uns para os outros. Era como montar um puzzle, só que, quando acabei, ainda faltavam algumas peças. Agora, porém, conseguia ler as etiquetas: «Virginia», «We Three» e «I’m Nobody’s Baby».

Sentei-me apoiada nos calcanhares. Eram os preferidos da minha irmã, os que ela pedia sempre ao Douglas para tocar. Agora, ali estavam eles, partidos e enterrados entre restos de ruibarbo e cebola. Não con-seguia imaginar quem o teria feito ou porquê. Voltei a juntar e misturar os bocados, espalhando-os pela vala dos feijões, e quando ia a entrar em casa vi o Douglas à janela. Achei por um instante que ele olhava para mim, mas depois um bando de pássaros mergulhou vindo do es-curo de uma sebe e voltei-me mesmo a tempo de apanhar a forma de uma mulher a fugir.

– Tenho de apanhar a Katy daqui a menos de meia hora – diz a Helen, pondo o casaco, apesar de eu ainda estar a acabar o gelado.

É frio e sabe bem contra a minha língua, mas não percebo que sa-bor se pretende que tenha. Morango, presumo, pela cor. Preciso de ir à

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casa de banho antes de sairmos, também. Pergunto-me onde fica a das senhoras. Pergunto-me se já estive antes neste restaurante. Lembra-me o ótimo Chophouse onde eu e o Patrick costumávamos encontrar-nos quando nos cortejávamos. Não era caro, não tinha comida exótica nem toalhas de mesa, mas era tudo bem cozinhado e arranjado. Eu costu-mava vir a pé da central à hora de almoço e esperar a uma mesa junto à janela. O Patrick apanhava um elétrico vindo do pontão onde a sua empresa trabalhava nos planos para a reconstrução, e ele chegava no seu trote, com o cabelo a esvoaçar e as bochechas vermelhas, e sorria assim que me via. Agora, já ninguém me sorri assim.

– Precisa de ir à casa de banho, mãe? – A Helen segura o meu casaco.– Não, não. Acho que não.– Certo, então. Vamos.Ela não está muito satisfeita comigo. É evidente que fiz alguma coi-

sa. Foi embaraçoso? Será que disse algo ao empregado? Não gosto de perguntar. Disse a uma mulher, certa vez, que os seus dentes faziam-na parecer um cavalo. Lembro-me de a Helen me ter dito que eu o disse, mas não me recordo.

– Estamos a ir para casa? – pergunto em vez disso.– Sim, mãe.O Sol pôs-se enquanto comíamos e o céu está de uma cor tingida,

mas ainda vejo os sinais de trânsito através do para-brisas do carro, e, antes de dar por isso, estou a lê-los em voz alta: «Dê prioridade.» «Passagem de nível.» «Reduza a velocidade.» As mãos da Helen ficam brancas ao volante. Ela não fala comigo. Mexo-me no assento, aperce-bendo-me subitamente da minha bexiga cheia.

– Estamos a ir para casa?A Helen suspira. Isto significa que já fiz esta pergunta antes. Quan-

do viramos para a minha rua, percebo a urgência com que preciso de ir à casa de banho. Não posso esperar mais.

– Deixa-me aqui – digo à Helen, agarrando o manípulo da porta.– Não sejas tonta, estamos quase a chegar.De qualquer forma, abro a porta e a Helen para o carro com um

solavanco.