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    “QUEM ME DERA AGORA EU TIVESSE A VIOLA PRA CANTAR”RAÍZES CAIPIRAS DA MÚSICA SERTANEJA 

    Autor: Rodrigo Costa MotaOrientadora: Viviane Zeni

    INTRODUÇÃO

    A escolha das músicas caipira e sertaneja enquanto objeto de

    pesquisa não ocorreu ao acaso e os motivos que conduziram a este

    estudo monográfico foram vários. Primeiramente, porque faz parte

    das minhas raízes, pois, meus pais nasceram no interior e, no sertão,

    trabalharam como cortadores de mato e assim, como meus avós e

    bisavós, eram caipiras. Sempre ouvia as histórias dos meus avós de

    como era a vida no sertão antigamente e dos meus pais, até hoje,

    ouço as histórias do seu passado.Tive, também, a oportunidade de

    sentir, por um tempo, essa vida que eles vivenciaram, mesmo que emum outro contexto histórico, pois em minhas férias sempre vou para o

    lugar onde meus pais nasceram, sentindo muita animação quando para

    lá viajo. Não há como negar, pois o sangue caipira corre em minhas

    veias e por mais que nunca tenha morado no interior, a minha alma se

    regozija de alegria quando vou para o “meio do mato” e ando a cavalo,

    sentindo o cheiro dos animais ou paro para uma pescaria, geralmente

    ouvindo uma boa música caipira de raiz. Sempre me identifiquei com a

    vida no interior e por viver em um paradoxo entre o campo e a cidade,essas raízes me instigaram a desenvolver este trabalho. Outro motivo

    que despertou o interesse pelo objeto de pesquisa é a empatia com

    a música caipira, e devido a isso, comecei a perceber que muitas

    pessoas já não gostavam tanto deste estilo musical, pois preferiam a

    música sertaneja.

    Dessa forma, o objetivo central desta pesquisa concentrou-se em

    discutir até que ponto a música sertaneja se difere da música caipirade raiz e as suas possíveis relações.

    E para tanto, as indicações teóricas de Roger Chartier, Bronislaw

    Baczko, Eric Hobsbawm e Clifford Geertz foram de extrema importância

    para o desenvolvimento do trabalho.

    Roger Chartier e as suas considerações sobre o mundo como

    representação, tornou-se fundamental para as reflexões sobre as

    várias representações atribuídas ao caipira, além de que o conceito

    de apropriação permitiu estabelecer a relação entre as músicas caipira

    e sertaneja, e como a segunda se apropriou de elementos da primeira

    com o objetivo único de vendagem.

    O conceito de imaginação social de Bronislaw Baczko forneceu as

    bases para perceber como o imaginário social da cultura caipira, sua

    identidade, representações, anseios e desejos desta coletividade, foi

    construído, reconstruído e renovado.

    Ao se estabelecer as relações entre a música caipira e a música

    sertaneja, o conceito de tradição inventada de Eric Hobsbawm

    tornou-se útil para as discussões sobre a música caipira, elemento

    fundamental dentro da cultura caipira, e que mesmo que tenha sido

    transportada para a cidade e passado por algumas modificações, tal

    tradição continuou sendo praticada em um outro contexto histórico,

    estabelecendo assim, a sua relação com o passado.

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    Clifford Geertz também foi importante para as reflexões

    que nortearam este trabalho, posto que por intermédio de suas

    interpretações pôde-se compreender a sociedade caipira, uma vez que

    o autor identifica cultura como um conjunto de idéias, valores, ações e

    emoções que traduzem assim “como nosso sistema nervoso, produtos

    culturais – na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências,

    capacidades e disposições com as quais nascemos [...].1 Além das indicações teóricas, outros autores que trabalharam

    com esta temática foram utilizados neste estudo. Entre eles, podem

    ser citados como exemplo, José Roberto Zan, Rosa Nepomuceno,

    Martha Tupinambá de Ulhôa. Alguns relatos publicados por cantores

    e compositores, tanto da música caipira quanto da sertaneja,

    apresentaram-se como fontes significativas. Porém, as composições

    de vários artistas, foram de grande valia para analisar estes dois

    estilos musicais, uma vez que, através de suas letras foram possíveisperceber as diferenças, bem como as relações existentes.

    Após a análise e reflexão dos referenciais teóricos, bibliográficos

    e do conjunto documental, o presente trabalho foi dividido em dois

    capítulos. O primeiro capítulo tece uma análise da cultura caipira

    através de seu imaginário social, num esforço de interpretação

    das representações atribuídas ao homem do sertão. Além disso,

    buscou-se demonstrar o percurso da música caipira para a sertaneja

    romântica que mesmo ao sair do campo para penetrar em um

    novo cenário, em um primeiro momento procurou manter as suas

    tradições e enviar das bandas do sertão, lembranças da vibração

    de uma nova hora.

    Já o segundo capítulo aborda a importância da viola para a

    inspiração dos compositores, partindo após para a apropriação da

    música caipira pelos representantes da música sertaneja. Importa aqui

    considerar que a música caipira de raiz, ao ser incorporada e inserida

    ao ambiente urbano, recebeu o nome de música sertaneja romântica, a

    qual acabou descaracterizando a música de raiz.

    Durante toda a trajetória apresentada, as músicas caipiras

    conseguiram expressar versos simples, os quais valorizavam o homem

    do campo, o seu jeito simples de falar e a sua responsabilidadediante da vida e do meio ambiente. Ao contrário da música sertaneja

    romântica, que inserida em outro cenário, já não mais se lembra

    do cheiro mato, pois está envolvida em um ambiente que prioriza o

    individual em detrimento do coletivo.

    E considerando a canção de Almir Sater e Renato Teixeira que

    inspiram a ideia de que cada um de nós compõe a sua própria história

    e cada ser em si carrega o dom de ser capaz de ser feliz , a partir

    desse momento, a todos que compartilharem da leitura deste trabalhoserá apresentado o percurso de um estilo musical produzido por uma

    cultura na qual o amanhecer ainda é uma lição do universo que nos

    ensina que é preciso renascer.

    1 DAS BANDAS DO RURAL VÃO ASLEMBRANÇAS DE UMA NOVA HORA

    1.1 Quem dorme em mim é o meu sertão : 

    sobre a cultura caipira

    Nóis aprendemo na roça a fazê tudo o que possa, tudo o quepude fazê, sangrando os calo da mão pra nunca fartá o pão práingrato como mecê. O caipira, sinhá dona, dorme num saco de lonacoberto, quase não tem de dia o roçado pranta, de noite na violacanta e é feliz como ninguém [...].2

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    Esse fragmento dos versos de “Caipira” na visão do músico Elpídio

    dos Santos3 demonstra o modo de viver do caipira, o universo que esse

    homem está inserido, o homem do campo e seu jeito de falar, com er,

    plantar. Um homem com sangue de índio misturado ao sangue do

    colonizador e dos escravizados africanos que resultou em um “homem

    forte”, capaz de moldar-se a situações das mais diversas. Segundo o

    sociólogo José de Souza Martins, esse homem vivia em uma economiade “mínimos vitais”, o que significa estar inserido em um tipo de

    sociedade de auto-subsistência, sendo somente o excedente passivo

    de ser convertido em uma relação de troca.4 Dentro desta sociedade, o

    homem do sertão brasileiro interagiu com o meio urbano, mas sem que

    com isso alterasse o cotidiano, no qual planta, colhe, e festeja cantando

    ao final de cada colheita. Este modo de ser, pensar e agir se contrapõe

    a imagem do homem dos grandes centros urbanos que, movido pela

    aceleração do tempo e pela modernização, enxerga o sertanejo, oupara muitos, o caipira com uma visão preconceituosa que os considera

    atrasados. Estas visões, nem sempre generalizadas, foram destacadas

    por Renato Teixeira em sua composição “Rapaz Caipira” que já na

    primeira estrofe anuncia o preconceito existente sobre o jeito de ser

    do homem do interior.

    Rapaz caipira5

    (Renato Teixeira)

    Qui m’importa, qui m’importao seu preconceito,

    qui m’importa...Você diz que eu sou muito

    esquisitoE eu às vezes sinto a sua ira

    Mas na verdadeAssim é que eu fui feito

    É só o jeito de um rapaz caipira

    Se você quer maioresaventuras

    Vá prá cidade grandequalquer dia

    Eu sou da terrae não creio em magia

    È só o jeitoDe um rapaz caipira

    Qui m’importa...

    Pode-se perceber que, o compositor ao destacar os sentimentos

    dicotômicos existentes em relação ao caipira, que para muitos é

    vislumbrado como muito esquisito , aponta para a simplicidade do

    sertanejo que foi assim feito e tem apenas o jeito de um rapazcaipira. Esta indicação remete as considerações de Max Weber

    sobre a produção do social através de uma rede de sentidos, uma

    vez que:

    a vida social é produtora de valores e normas e, ao mesmo tempode sistemas de representações que as fixam e traduzem. Assimse define um código coletivo segundo o qual se exprimem asnecessidades e as expectativas, as esperanças e as angústias dosagentes sociais. Por outras palavras, as relações sociais nunca sereduzem aos seus componentes físicos e materiais.6

    Importa aqui lembrar que no Brasil, desde a década de 1870, os

    intelectuais passaram a pensar na imagem do brasileiro, em busca de

    uma compreensão sobre a brasilidade. Até este momento, predominava

    a ideia de que a cultura europeia era superior à cultura brasileira, no

    entanto, mesmo que timidamente o brasileiro passou a ser inserido

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    nos cantos, contos, poesias, e reconhecido na figura do indígena, do

    africano, do europeu e do mestiço.

    Em 1902, Euclides da Cunha publicou Os sertões , considerando o

    sertanejo como sendo símbolo da nacionalidade. A raça e a terra foram

    resgatadas pelo autor como fator da originalidade cultural brasileira.

    Isso deu ao fato de a Geração de 1870 defender uma literatura nativa

    inspirada no sertanismo, no indianismo em tudo o que era da “nossaterra”.6 

    No Brasil do início do século XX, por intermédio dos ideais do

    Modernismo, procurou-se consolidar uma identidade nacional através

    de uma imagem do brasileiro nato, de origem e cultura genuinamente

    nacional. Estava se consolidando a ideia de valorização do caboclo

    brasileiro que se identificaria como elemento do povo. Dentro deste

    viés, compartilha-se das indicações de Eric Hobsbawm, sobre a

    necessidade de os grupos sociais, inventarem as suas tradições, poiscomo nos alerta o historiador:

    Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas,normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas;tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, que visam inculcarcertos valores e normas de comportamento através da repetição,o que implica, automaticamente uma continuidade em relação aopassado.7 

    Esta tradição inventada para o caboclo, buscou ressignificar uma

    cultura rústica e dar-lhe um novo formato que nem sempre obteve

    o resultado esperado frente ao processo do “desencantamento

    do mundo do sertão” apresentado em vários movimentos políticos

    e sociais que se desencadearam no Brasil no início da República.

    Porém, ao recorrer às indicações de Antônio Cândido que define

    “cultura rústica” como o: universo das culturas tradicionais do homem

    do campo, que por sua vez “resultou do ajustamento do colonizador

    ao Novo Mundo”, logo a cultura rústica não é uma cultura isolada ou

    fechada em si mesma, mas de sociedade parcial dotada de cultura

    parcial, ou seja, um pedaço de sociedade global permeado pela

    cultura primitiva e pela cultura da cidade.8 

    No caso do Brasil, especificamente, a cultura é chamada

    “rústica” devido à ausência de leis e regras de organização destassociedades.

    Existem várias definições sobre a cultura popular, e para se

    obter um consenso foram necessárias algumas análises sobre a

    interpretação e alguns estudos já existentes. A palavra cultura

    remete a um conceito de ideias que pode diversificar o seu sentido

    conforme é empregada para determinar algo que expresse uma

    organização social, um sistema de ideias, de comportamentos e

    atitudes caracterizadas por uma determinada sociedade.Dentro do conceito de culturas há um sistema de ideias,

    conhecimentos, padrões de comportamento que caracterizam

    determinada sociedade, ou um estágio de desenvolvimento, um

    conjunto de obras de um povo em um determinado período.

    A cultura pode ser identificada como parte integrante de uma

    sociedade e sobre esta temática, Clifford Geertz, aponta que:

    [...] a cultura é melhor vista não como complexos de padrõesconcretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixesde hábitos -, (...), mas como um conjunto de mecanismos decontrole – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiroschamam de “programas”) – para governar o comportamento.A segunda idéia é que o homem é precisamente o animal maisdesesperadamente dependente de tais mecanismos de controle,extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, paraordenar seu comportamento.9

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    o rapaz caipira é da terra e não crê em magia e se qualquer um quiser

    maiores aventuras que se desloque para a cidade grande qualquer dia.

    Portanto, dentro do mundo de representação, deve ser levado em

    consideração o ponto de vista que cada cultura tem dentro de uma

    mesma sociedade. Para cada grupo social, o fato pode configurar uma

    diferente representação porque o seu modo de leitura é particular. O

    mundo enquanto representação significa um mundo diferente do qualele é, a representação quer se passar como a verdade de seu referente,

    mas não é a mesma para todos, pois passa por variações, e isto implica

    na multiplicação do significado que muda o seu “sentido real.”13

    Em relação à vida rural, o universo simbólico que a permeia está

    representado em cada traço das manifestações populares. Mesmo nos

    dias atuais, quando o sistema de plantio e colheita, os melhores grãos,

    as safras mais rendosas estão subordinadas às regras do mercado

    internacional, o homem do campo não deixou os seus tradicionaissaberes. Ao olhar o céu para descobrir o período de chuvas ou esperar

    o melhor mês para o plantio, ou ainda, pedir as bênçãos dos santos

    para uma boa colheita através de festas, rezas e procissões, o caipira

    põe em prática séculos de conhecimentos acumulados pelos seus

    ancestrais, e que ao longo do tempo foram transmitidos às gerações

    mais jovens.

    Tais ações estão intimamente ligadas ao “retorno de situações e

    atos que a memória grupal reforça atribuindo-lhes valor”.14 Ou seja,

    sendo a cultura popular toda cultura cultivada pelo povo, ela pode

    ser vivida em zonas rurais, pequenas cidades marginais, algumas

    zonas mais pobres, e também em algumas cidades maiores. Logo,

    pode-se afirmar que a cultura popular é uma cultura específica de

    uma determinada sociedade e está sempre em constante mudança

    Essa concepção de que a cultura é um mecanismo de controle, 

    característica e exclusiva de um determinado povo, está ligada a uma

    representatividade para um determinado grupo social e um universo

    simbólico dentro da sociedade. De acordo com os autores Berger e

    Luckmann, em seus estudos sobre o problema da construção social da

    realidade a partir dos alicerces do conhecimento na vida cotidiana, o

    universo simbólico: Ordena a história, pois, localiza todos os acontecimentoscoletivos numa unidade coerente, que inclui o passado, o presentee o futuro. Com relação ao passado, estabelece uma memóriaque é compartilhada por todos os indivíduos socializados nacoletividade [...].10

    Assim sendo, esse universo cristaliza-se na sociedade da mesma

    forma como se dá a acumulação de conhecimento. Em outras palavras,

    os universos simbólicos são produtos sociais e culturais que têm a

    sua história influenciando diretamente no comportamento dos atoressociais e na maneira em que se dá a legitimação das representações

    sociais. Estas representações, segundo Roger Chartier, designam o

    modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada

    realidade é construída, pensada e dada a ler por diferentes grupos

    sociais.11 São variáveis segundo as disposições dos grupos ou classes

    sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas pelos

    interesses dos grupos que as forjam. O poder e a dominação estão

    sempre presentes. As representações não são discursos neutros:produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, e

    mesmo a legitimar escolhas. Por isso, é certo que elas se colocam no

    campo da concorrência e da luta. Nas lutas de representações tenta-se

    impor a outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo social, 12 

    como pode-se perceber na canção já citada de Renato Teixeira, afinal

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    Diante deste viés interpretativo, ao estudar a história do Brasil,

    verifica-se que a cultura caipira é bastante peculiar e localizada, e que

    ocorreu uma reinterpretação da cultura que se consolidou no período

    colonial.

    A população localizada no interior do Brasil possui uma vida social

    que exprime as suas necessidades e expectativas através de sua

    própria cultura, e como exemplo destas manifestações, a música setorna parte integrante desta cultura caipira, pois por seu intermédio,

    os caipiras expressam as suas vidas, costumes e valores.

    Inserida no cenário cultural brasileiro, a cultura caipira apresenta

    uma riqueza de tradições, crenças, rituais, e no meio rural, os caipiras

    convivem por meio de festas religiosas, mutirões, como o Cururu, o

    Catererê, as Folias de Reis e as Danças de São Gonçalo, o que garante

    a reprodução da sociabilidade de seus componentes, na qual a música

    é um elo fundamental.Segundo Nepomuceno, o Cururu é um exemplo da tradição

    caipira. O Cururu nasceu como canto religioso marcado por batidas

    de pé como dança em que se formavam rodas e rezavam cantando.

    O Cururu é um repente-caipira, entre violeiros-cantadores, que fazem

    rodas e cantam improvisadamente por cerca de meia-hora, rimando as

    palavras. Aquele que faz a melhor rima, ganha a simpatia da platéia,

    que torce e aplaude. Já aquele que perde pode ser “atacado”, por meio

    de brincadeiras, nas quais é chamado de pinguço ou preguiçoso, entre

    outros adjetivos.18

    O Cateretê, por sua vez também conhecido como catira, nasceu

    de uma dança religiosa indígena. Essa manifestação foi introduzida nas

    festas de Santa Cruz, Divino Espírito Santo, Nossa Senhora e São

    Gonçalo para substituir a divindade indígena Tupã pelo Deus católico.

    apresentando as suas particularidades em relação ao tempo e espaço.

    Mas, segundo Antonio Augusto Arantes, deve-se definir “cultura

    popular” no plural, uma vez que,

    São muitos os seus significados e bastante heterogêneos evariáveis os eventos que essa expressão recobre. Ela remete, [...],a um amplo espectro de concepções e pontos de vista que vãodesde a negação (implícita ou explícita) de que os fatos por ela

    identificados contenham alguma forma de “saber”, até o extremode atribuir-lhes o papel de resistência contra a dominação declasse.”15

    Tendo em mente as noções diferenciadas de “cultura rústica” e

    popular, busca-se entender a partir destas, a cultura especificamente

    caipira, de “raiz” que está inserida dentro do cenário cultural

    brasileiro.

    Nesse sentido, cabe aqui salientar que, ao longo do século XX,

    o modo de vida do homem rural foi incorporado na música popular

    brasileira. Em alguns momentos históricos, os habitantes dos sertões

    brasileiros recorriam às temáticas rurais ou práticas musicais que

    o homem urbano identificou como o camponês, sitiante, caboclo,

    sertanejo e caipira. Essa prática está associada às manifestações

    dos imaginários sociais, que se pode entender como o produto de

    um discurso no qual as representações se efetivam através de uma

    linguagem.16 E ao compartilhar das indicações de Bronislaw Baczko,

    pode-se inferir que:

    Os imaginários sociais constituem outros tantos pontos dereferência no vasto sistema simbólico que qualquer coletividadeproduz e através da qual [...], ela se percepciona, divide e elabora osseus próprios objetivos. É assim que, através dos seus imagináriossociais, uma coletividade designa a sua identidade; elabora umacerta representação de si; estabelece a distribuição dos papéis edas posições sociais [...].17 

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    galinha, procissões, missas, campeonato de truco, do maior chupador

    de manga, de aboios, ou seja, é o sagrado e o profano unidos em um

    só festejo.22 

    As Danças de São Gonçalo também trouxeram elementos da

    música caipira. Estas surgiram no século XVII, no vale do Rio Douro,

    em Portugal, devido às comemorações ao violeiro Santo de Amarante,

    e no Brasil adquiriram novas formas. A festa de São Gonçalogeralmente é realizada no dia 10 de janeiro. Nos finais de colheita,

    festas de cumeeira, com os agradecimentos pelas graças recebidas

    e cumprimentos de votos feitos. No entanto, a celebração pode ser

    feita em qualquer data, nos terreiros e quintais, também pode ter a

    presença de famílias, devotos e de violeiros. Depois de uma reza se

    iniciam os cantos de louvação, com danças evoluindo em rodas em

    torno do altar. Segundo a crença, o Santo tem grande atuação no que

    se refere à conquista de casamento e devido a isso, é muito popularentre as mulheres. Portanto, quanto mais rodas elas fazem, mais

    chances têm de conseguir um marido.23 

    Os Fados, as viras portuguesas e as modinhas europeias, também

    inspiraram as cantigas e toadas com seus acordes melancólicos e

    deixaram marcas na alma caipira.24  Esses cantos, rezas, danças,

    devoções, diversões, se multiplicaram e mudaram de forma e jeito nas

    regiões do Brasil. Porém, o elemento comum em todas essas tradições

    e costumes de caipira é a viola: expressão típica da sociedade rural.

    Os escravizados africanos também tiveram uma grande influênciana cultura, tradições e costumes caipiras, sobretudo em relação à

    música da roça. Ritmos e danças com instrumentos de percussão,

    lundus, batuques e congadas somaram-se aos elementos de gêneros

    caipiras. Nas plantações, os negros e os caipiras conviviam juntos

    Tal manifestação foi difundida em várias regiões do Brasil como

    Goiás, Mato Grosso, Amazônia, São Paulo e Minas Gerais. O catira

    é um canto em forma de versos, em solo e coro, acompanhado de

    sapateado e palmeado. São dois violeiros-cantadores que, geralmente

    varam a noite, juntamente com vários dançadores, conhecidos como

    palmeiros . O catira é uma moda de viola que narra fatos e histórias de

    santos e quando começa o sapateado, a cantoria é exaltada e os seusparticipantes chegam ao clímax.19 

    O artista e compositor Chico Lobo20, em seu disco No Braço

    Dessa Viola, sua música catira, explicou esta dança:

    Pra se dançar o catira.Tem que se bater o pé. Vem depois umpalmeado. Só não dança quem não quer. Pro catira sair gostoso.Tem que ser bem animado. Pra se dançar o catira. Tem que ter bonsvioleiros. Nós tocando de viola. Podem vir os catireiros.21 

    A Folia de Reis é o folgueto mais popular juntamente com o catira.

    Reproduzindo a viagem dos Reis Magos a Belém, com cortejos de

    festeiros portando bandeiras coloridas, comandados por mestres,

    capitães e violeiros, a Folia de Reis, acontece ainda em muitas regiões

    do país, especialmente no interior de São Paulo, Minas Gerais, Paraná,

    Mato Grosso e Goiás. Essa festa religiosa tem início no dia 24 de

    dezembro e se estende até dia 6 de janeiro, Dia de Reis. Uma folia em

    que os participantes peregrinam de casa em casa no meio das ruas, com

    seus tocadores de viola, rezando e cantando com as famílias. Em cada

    momento há um canto específico: à porta das casas, na saudação dopresépio, no pedido de ofertas, no agradecimento e na despedida. Em

    alguns casos essa folia é tão animada que se tornou atração turística,

    como por exemplo, na cidade de Pirenópolis, em Goiás. Ainda, na Folia

    de Reis, ocorrem outras atrações, como corridas de jegue, de porco ou

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    fala alto no meu peito humano e toda moda é um remédio pros meus

    desengano , e para aqueles que dizem que o caipira não sabe viver,

    chega lá em casa pruma visitinha e hai de me encontrar num cateretê .

    Desde o início da colonização o sertão foi de certa forma, visto de

    uma maneira negativa, como um espaço sem civilização, um habitat

    de índios bravios, onde a pobreza era um dos traços característicos

    desta região.27 Para se entender o imaginário social acerca do caipira, denominamos

    primeiramente alguns conceitos sobre esta personagem.

    O termo tem uma provável origem indígena. Caa  que na língua

    tupi significa mato, e o caipora é um habitante das matas. Mas o

    autor Alexandre Leontsinis, em seu estudo sobre linguagem ecológica,

    entende que o caipira provém de cai  que significa tímido e pyra que

    seria cru, verde, ou seja, é o matuto, o envergonhado, o tímido, conclui

    o autor.28

    O caipira está ligado à vida rural que tem suas especificações

    na cultura brasileira e no imaginário social. Nesse momento importa

    destacar que:

    O imaginário social é cada vez menos considerado como umaespécie de ornamento de uma vida material considerada como aúnica “real. É comum associar a imaginação e a política, o imaginárioe o social. Assim a vida social se torna um modelo que tem seusvalores e normas, onde possui ao mesmo tempo um sistema derepresentações que as fixam e traduzem. 29

    Retomando ao significado de caipira, segundo o Dicionário do

    Folclore Brasileiro, de Luiz Câmara Cascudo, a palavra designa “homem

    ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou trato

    social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público. Habitante

    do interior, tímido e desajeitado”.30 Já no dicionário Aurélio o caipira

    trocando experiências, afinal eram “irmãos” na pobreza, no tipo

    de vida e na paixão pela música. Nesse convívio, foram trocadas e

    ressignificadas as crenças, os enfeites, as indumentárias, a percussão,

    os requebros e a viola.

    Nas regiões do interior paulista e mineiro, as congadas ganharam

    força como manifestação cultural africana. O calango também foi

    resultado do convívio entre negros e caipiras. Um arrasta-pé animadoem que se casou a viola com a sanfona, pandeiro, caixa, reco-reco,

    chocalho, violão e cavaquinho.25

    Portanto, tendo em vista essa cultura brasileira de “raiz”, se faz

    necessário expressar o imaginário social deste povo do sertão, que por

    sua vez, estabelece uma relação de fronteira entre o seu mundo rural

    com o mundo civilizado.

    1.2 Qui m´importa se sou muito esquisito: as

    representações sobre o caipira

    [...] e assim vou tocando/ essavida marvada/ É que a viola falaalto no meu/peito humano/E todamoda é um remédio/pros meusdesengano/È toda mágoa é ummistério/fora deste plano/Pratodo aquele que só fala que/eunão sei viver/Chega lá em casa/pruma visitinha/Que no verso e noreverso/da vida inteirinha/Hai deme encontrar/num cateretê[...]1

    Pode-se notar que o compositor Rolandro Boldrin em sua

    composição “Vide, Vida Marvada” , destaca a importância da viola que

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    reprodução de sua cultura em outro espaço, ou como nos indica Eric

    Hobsbawm como a forma que os grupos sociais se utilizam:

    (...) de elementos antigos na elaboração de novas tradiçõesinventadas, [pois] sempre se pode encontrar no passado dequalquer sociedade um amplo repertório de elementos e sempre háuma linguagem elaborada, composta de práticas e comunicações

    simbólicas.33 

    De uma forma geral, existem várias

    definições para a palavra caipira, mas

    algumas sugerem um tom pejorativo, como o

    do homem urbano que a partir do seu ponto

    de vista, e por não vivenciar a realidade do

    meio rural, julga a vida urbana como melhor

    do que a vida no meio rural. É necessário

    relativizar tal posicionamento e reconhecer a

    distinção cultural brasileira, pois o meio ruralpossui seus próprios personagens e estes os

    seus valores, anseios e modos específicos

    de viver.

    Segundo a historiadora Etelvina

    Trindade, a colonização portuguesa foi

    preponderantemente masculina. Os

    portugueses aqui chegaram sem a companhia

    de suas mulheres, o que lhes impediu, aprincípio, de desdobrar, integralmente, a

    cultura familiar lusitana. E, sem dúvida, a

    miscigenação alterou a rígida organização

    social, tal como era prevista pelas leis e

    está definido como o “habitante do campo ou da roça, particularmente

    os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos”.31

    Cornélio Pires, jornalista e violeiro, define o termo caipira no seu

    livro “Conversas ao pé do fogo”  da seguinte maneira:

    Por mais que rebusque o étimo de caipira, nada tenho deduzidocom firmeza. Caipira seria o aldeão ; neste caso encontramos o tupi-guarani capiâbiguâara. Caipirismoé acanhamento , gesto de ocultar orosto, neste caso temos a raiz ‘caí ’,que quer dizer gesto de macacoocultando o rosto. Capipiara, quequer dizer o que é do mato. Capiã, dedentro do mato, faz lembrar o capiaumineiro. Caapiára quer dizer lavradore o caipira é sempre lavrador.  Creioser este último o mais aceitável,pois caipira quer dizer roceiro, isto é,lavrador.32 

    Para o jornalista, o caipira é o roceiro,

    aquele que mora em uma região e a

    partir do seu espaço é influenciado pelas

    características do seu modo de vida. No

    entanto este modo de viver se distingue

    do modo de vida urbano, pois, é no meio

    rural que as pessoas, convivem por meio de

    mutirões, práticas religiosas e festivas, que

    garantem a reprodução da sociabilidade deseus componentes, na qual a música se torna

    um elo fundamental.

    Essas práticas estão associadas a uma

    tradição que se pode entender como uma

    Figura 1 – Caipira picando fumo

    FONTE: ALMEIDA JUNIOR. Caipira picando fumo .1 óleo sobretela, 1893. Color: 202 x 141 cm. Pinacoteca do Estado de SãoPaulo. Acesso em: 15 de mar. de 2010.

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    Retomando a construção da ideia de cultura caipira, recorreu-se

    neste momento ao trabalho de Monteiro Lobato. Segundo o professor

    de História e mestre Edilson Chaves, Lobato era reconhecido como um

    excelente editor e tornou-se uma das personagens fundamentais para

    a implantação do mercado editorial brasileiro. Lobato aprofundou um

    discurso que se tornaria a peça chave para o entendimento do caráter

    do povo brasileiro ao construir uma figura pejorativa do homem rural,presente na personagem Jeca Tatu, que se tornou um tipo humano

    presente no Brasil pós “nascimento” da República, ao não ser capaz de

    realizar tarefas simples num mundo baseado no cientificismo.

    Em seu livro “Urupês”, Lobato descreve Jeca Tatu como um

    indivíduo ignorante, sem conhecimentos de leitura e escrita, como se

    pode perceber no texto abaixo:

    O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção

    do país em que vive. Sabe que o mundo é grande, que há sempreterras para diante, que muito longe está a Corte com os graúdose mais distante ainda a Bahia, donde vêm baianos pernósticos ecocos. [...] Vota. Não sabe em quem, mas vota. Esfrega a penano livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos a quechama “sua graça”.[...] O fato mais importante de sua vida é semdúvida votar no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta docasamento, sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras;entala os pés num alentado sapatão de bezerro (...) vai pegar odiploma de eleitor às mãos do chefe Coisada, que lhe retém paramaior garantia da fidelidade partidária.37

    Com a abolição da escravatura no Brasil em 1888, os grandesproprietários buscam colonos para o trabalho nas lavouras. Uma das

    opções era apelar para a mão-obra dos ribeirinhos, mas essa já de

    início estava fadada a não dar certo, pois, “Parasitas do rio e da leziria,

    olhavam as fazendas com horror, e daí, na boca dos fazendeiros, a

    costumes portugueses. Isso não significa que, no período colonial

    houvesse uma polarização na camada senhorial de famílias legalmente

    estruturadas e que o restante da população tivesse vida promíscua e

    devassa. A interação de costumes diferenciados do índio, do europeu,

    e do negro fez com que em nosso passado colonial coexistissem

    múltiplos arranjos domésticos e familiares.

    Na composição e reelaboração das tradições lusitana e autóctone,foi criada outra forma de viver, o modo caipira, que passou a ser o

    modo de vida da população livre e pobre, de uma massa anônima. 34 

    Essas culturas mantiveram a forma itinerante do roçar indígena,

    incorporou, para ns alimentares ou medicinais, frutos da terra, como

    a mandioca, o milho, o feijão, e a erva-mate, moldou-se ao costume

    de transportar e conservar alimentos em cestos de bras e taquaras

    trançadas, utilizando-se delas também para confeccionar armadilhas

    para apresar animais, dentre tantas outras coisas35.

    Há também autores que expressaram a sua visão sobre o caipira,

    embora de uma forma unilateral, como por exemplo, Saint-Hilaire,

    botânico francês que permaneceu no Brasil de 1816 a 1822. Em suas

    viagens à Província de São Paulo, o botânico armou que os caipiras

    eram: “(...) homens embrutecidos pela ignorância, pela preguiça,

    pela falta de convivência com seus semelhantes e, talvez, por

    excessos venéreos primários, não pensam: vegetam como árvores,

    como as ervas do campo”.36 Tal consideração se deve ao fato de o

    viajante ter sido observado por horas por um sertanejo, que por sua

    vez, não dirigiu uma palavra a ele, enquanto analisava as plantas que

    tinha recolhido pelo caminho, o que o conduziu a perceber o caipira

    como um homem incapaz de entender e exprimir em palavras o que

    vê e/ou escuta.

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    Alguns frades franceses, que aqui chegaram neste momento,

    procuraram converter o caipira com fama de preguiçoso em um homem

    apto para o trabalho, no entanto, para o autor:

    Em vez, porém, de tomá-lo como o encontravam, alquebradopela má alimentação, pela má habitação, roído pelo ancilóstomoexhaustivo, e pô-lo na enxada com o feitor atrás, tiveram a luminosaidéia de proceder às avessas: primeiro atucharam-lhe fibra com

    alimentação abundante; depois abrigaram-no em casas higiênicasconstruídas em lugares secos e os curavam nos limites do possível.Resultado: Uma ressurreição ”39 

    Ao contrário de Monteiro Lobato, o autor Antônio Cândido mostra

    e resgata a dignidade e a importância social do caipira, revelando um

    lado de luta pela sobrevivência por parte desses personagens dentro

    do cenário de miserabilidade do período, que não será aqui discutido

    por fugir aos propósitos deste trabalho. O que por hora importa aqui

    destacar é que o caipira por estar inserido na cultura brasileira, é um

    ser rico em tradições, crenças e culturas, como explica o autor Carlos

    Rodrigues Brandão ao se referir sobre os caipiras paulistas. Estes,

    nas palavras do autor, são “(...) proprietários de terras e, estáveis,

    vivem uma vida de trabalho e cultura em bairros rurais; outros ‘vivem

    do trabalho em terra alheia’, ora como lavradores parceiros, ora como

    agregados, ‘camaradas’”.40

    Já, Inezita Barroso, cantora e apresentadora do programa “Viola

    Minha Viola”, ao definir o caipira explica por que o senso comum

    adotou uma visão preconceituosa:

    Como o caipira ficou um termo pejorativo, durante muito tempotodo mundo tinha vergonha de ser caipira. Por quê? Porque nãoera realmente o significado da palavra, que é o homem do interior.Então, o caipira era uma mulher mal vestida, era um cara doente,sem dente, descalço.41 

    sua má fama de indolentes. Indolentes e ruins, incapazes, restolho

    de gente, lesmões humanos. Era unânime esta opinião na lavoura

    circunjacente, caída em modorra por falta de braços”.38

    Figura 2 – Jeca Tatu De Monteiro Lobato

     FONTE: http://www.fototecadojean2.blogger.com.br/jecatatu.gif. Acesso em: 19 de mar. de2010.

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    Esta forma resistente de brasilidade como indica a autora, pode

    ser percebida nas inúmeras canções caipiras. Entre elas destaca-se

    como exemplo Amanheceu, Peguei a Viola de Renato Teixeira:

    Amanheceu, peguei a viola47

    (Renato Teixeira)

    Amanheceu peguei a violaBotei na sacola e fui viajarSou cantador e tudo nesse

    mundoVale prá que eu cante

    e possa praticarA minha arte

    sapateia as cordasE esse povo gostade me ouvir cantar

    Amanheceu…Ao meio dia eu tava

    em Mato GrossoDo sul ou do norte,

    não sei explicarSó sei dizer

    que foi de tardezinhaEu já tava cantando

    em Belém do Pará.Amanheceu…Em Porto Alegre um tal de

    coronelPediu que eu musicasse um

    verso que ele fez

    Para uma China, que pelapoesia

    Nem lá em Pequim se vê tantaaltivez

    Amanheceu…Parei em Minas prá trocar as

    cordasE segui direto para o CearáE no caminho fui pensando,

    lindoEssa grande aventura de poder

    cantarAmanheceu…

    Chegou a noite e me pegoucantando

    num bailão, lá no norte doParaná

    Daí para frente ninguém mais

    se espantaE o resto da noitada eu nãoposso contar.

    Anoiteceu e eu voltei prá casaQue o dia foi longo e o sol

    quer descansar.

    E complementa dizendo que: “falar caipira é pecado. Chamar de

    caipira é pecado”.42 Argumento confirmado pelo compositor e violeiro

    Almir Sater ao lembrar que quando “Alguém falava: o cara lá é caipira,

    esse respondia: eu não sou caipira, não”.43 A negativa indica que para

    muitos é uma ofensa chamar alguém de caipira. O que corrobora

    a ideia de que o estereótipo criado para o caipira é negativo. Por

    meio de sua forma de viver do caipira, o professor José Roberto Zanexemplifica o “ser caipira”. Deixemos o professor e compositor falar:

     Esse tipo humano, que denominamos caipira, estava ligado a ummodo de vida muito particular. Ocupava uma pequena área deterra, desenvolvia uma agricultura diversificada, voltada para oconsumo próprio, criava alguns animais, complementava sua dietaalimentar através da caça e da pesca, e praticava artesanatodoméstico.44

    Em contraponto com o citadino, a escritora para o público infanto-

     juvenil Vanda Catar ina P. Donadio,  faz uma análise mais detalhadasobre o caipira45:

    Para o citadino o caipira virou motivo de divertimento, quandodeveria ser o exemplo de amor à terra. Do antepassado Índioele herdou a familiaridade com a mata, o faro na caça, a artedas ervas, o encantamento das lendas. Do branco a língua,costumes, crenças e a viola, que acabou sendo um dos símbolosde sua resistência pacífica. Muitos são os ritmos executados naviola, da valsa ao cateretê. Temos Cateretê baião; Chula polca;Toada de reis: Cateretê- batuque, Landú, Toada; Pagode, etc.Apesar de parecer um homem rústico, de evolução lenta, nas

    suas mãos calejadas, ele mantém o equilíbrio e a poesia da fusãode duas etnias. E traduz seu sentimento acompanhado da viola,companheira do peito, onde canta suas esperanças, tristezas, eas belezas do nosso país. A música rural, criativa, contrapõe-seaos modismos vindos do exterior. Ainda é uma forma resistentede brasilidade, feita por um povo que conhece muito o chão donosso país.46

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    A música caipira, chamada música de raiz, ou música do interior, é

    caracterizada por sua temática rural, letras românticas e cantos tristes

    que comovem os seres humanos.

    Mais que um ritmo ou estilo, a música raiz está repleta de um

    simbolismo que dinamiza o universo caipira transportando-o do meio

    rural para o urbano. A bagagem cultural, trazida pelos trabalhadores

    do campo que buscavam na cidade melhores condições de vida, é ricaem elementos significativos para os caipiras que ressignificavam esses

    traços culturais, com o objetivo de preservar as suas tradições.

    Como no caso do caipira que chega à cidade com sua bagagem

    cultural, mas não deixa de vivê-la, o que altera é o espaço, mas dá

    continuidade aos seus rituais, mesmo que esta tradição se adapte a

    este novo espaço.

    Afinal, como indica Hobsbawm:

    [...] na medida em que há referência a um passado histórico, astradições inventadas caracterizam-se por estabelecer com eleuma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas sãoreações a situações novas que, ou assumem a forma de referênciaa situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passadoatravés da repetição quase que obrigatória.49 

    Dessa forma, os elementos identificadores desse gênero musical

    são: as letras que narram os “causos” do cotidiano, sua interpretação

    que costumeiramente é cantada em dueto na distância de uma terça

    (três notas)50  e o acompanhamento da viola caipira, instrumento

    insubstituível para o estilo musical.51 

    No Brasil, especificamente, existem vários gêneros musicais

    que revelam múltiplas identidades, como a música caipira, a música

    sertaneja, a música popular, entre outros. Esses diferentes gêneros

    musicais expressam as distintas maneiras dos grupos sociais se

    Apesar de parecer um homem rústico , percebe-se que o caipira

    viaja pelo mundo para que possa praticar  a sua arte , traduzindo seu

    sentimento acompanhado da viola, companheira de peito , e que

    cantando em Belém do Pará, em Porto Alegre, em Minas, Ceará, norte

    do Paraná, ou seja, por todo o nosso país, até mesmo “musicando”

    um verso para uma China, que nem lá do outro lado do mundo se vê

    tanta altivez.Por esta breve interpretação, pode-se inferir que nos dias atuais a

    cultura caipira sobrevive no imaginário nacional, sobretudo em letras

    de músicas, quase sempre produzidas pelo homem urbano. Essa

    música procurou ao longo dos anos se desfazer das imagens negativas

    do caipira e traduzir para o imaginário coletivo um Brasil rural cheio de

    histórias e virtudes.

    1.3 O que adianta viver na cidade, se a felicidade não

    me acompanhar? a transição da música caipirapara a sertaneja

    A terra é a mãe / e isso não ésegredo / O que se planta /esse chão dá/Uma promessa / a São Miguel Arcanjo / prá

    mandar chuva / pro milhobrotar... 2

     

    Esses versos da música “Quebra de Milho” , composta peloscompositores Tom Andrade e Manuelito, demonstra o conhecimento

    do caipira em relação à terra, sua fé, suas esperanças e promessas

    para cada mês do ano, dizendo que a terra é a mãe, isso não é segredo,

    o que se planta esse chão nos dá.

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    autor Sérgio Buarque de Holanda54 explica a influência litorânea que

    os portugueses praticavam e que ainda persiste até aos dias atuais,

    pois, os portugueses encontraram mais facilidade no fato de se achar

    a costa habitada de uma única família de indígenas, que de norte a sul

    falava um mesmo idioma, mas: “Quando hoje se fala em “interior”,

    pensa-se, como no século XVI, em região escassamente povoada e

    apenas atingida pela cultura urbana.55 Assim sendo, verifica-se que o tipo de caipira bem como sua cultura

    tiveram origem no contato com os colonizadores (os bandeirantes)

    com os nativos ameríndios (ou gentios da terra, ou bugres).56

    Nesse sentido, pode-se dividir a população caipira em quatro

    categorias, conforme indica Cornélio Pires em sua análise sobre esta

    temática:

    Para o autor, há o Caipira caboclo descendente de indígenas

    catequizados pelos jesuítas. Este tipo de caipira foi à fonte de

    inspiração para o personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato e para a

    criação do Dia do Caboclo, comemorado em 24 de junho, dia de São

    João Evangelista;

    O segundo é o Caipira negro, descendente dos escravizadosafricanos, também conhecido como Caipira Preto. Este foiimortalizado pelas figuras folclóricas da Mãe-preta e do Preto-velho homenageado por Tião Carreiro e Pardinho, nas músicas“Preto inocente” e “Preto Velho”. De maneira geral, são pessoaspobres que sofrem até hoje, as conseqüências da escravização;

    O Caipira branco insere-se na terceira categoria: descendente dos

    bandeirantes, de uma nobreza decaída, mas que se orgulha de seu

    sobrenome bandeirante: os Pires, os Camargos, os Paes Lemes, os

    Prados, os Siqueiras, entre outros. Estes geralmente eram católicos

    e se miscigenaram com os colonos italianos. Também são de origem

    reconhecerem e se situarem em seu contexto específico. Por isso que

    com a música, a partir dos conteúdos contidos nas letras e ritmos

    adotados, uma classe social, grupo étnico, por exemplo, podem ser

    reconhecidos, pois, cada grupo possui um gênero musical específico,

    no caso do Brasil, reconhecidos no vasto repertório musical brasileiro.

    Especificamente a música caipira e a música sertaneja, são compostas

    de produções que remetem a um estilo de vida do homem do campo nointerior das regiões do Brasil e as suas tradições.

    A música sertaneja, inicialmente conhecida como música caipira ou

    de “raiz foi originalmente “centrada em valores católicos, patriarcais e

    logo, tradicionais, que enfatizam uma sociabilidade em torno de uma

    família extensa, da solidariedade comunitária e da obrigação religiosa

    herdada e vitalícia.”52

    A música sertaneja está sempre em constante transformação,

    e com isso, suas raízes vêm sendo deixadas de lado. As pessoas se

    espelham nessa nova referência de música caipira e sertaneja quenão condiz com suas raízes como: a temática das letras, o vestuário,

    a instrumentação, entre outros aspectos. Como já citado, a música

    caipira é caracterizada pela temática rural, letras românticas, cantos

    tristes e comoventes. Já para Inezita Barroso:

    Sertanejo é um tema essencialmente nordestino que a gente aprendeucom a vinda do Luiz Gonzaga para o Sul. Então, está certo que elechame de sertanejo a música rural nordestina, porque é um sertão.Aqui (em São Paulo) não se fala ‘vou para o sertão de São José, vou

    para o sertão de Taubaté. Então você fala ‘vou para o interior, eu voupara a roça, eu vou para a fazenda, no máximo. Então, não se aplica.Mas, isso aconteceu porque o caipira virou um termo pejorativo. 53

    Esta consideração da compositora está relacionada ao senso

    comum que no século XX associa para a região nordeste a palavra

    sertão e para demais regiões brasileiras do interior. No entanto, o

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    maquiagens, indumentárias, acessórios, que contribuíram por também

    descaracterizar a música de “raiz”. “É certo que mudou muita coisa”,

    disse Inezita Barroso, “(...) o caipira não é mais caipira, as cidades

    pequenas cresceram. Mas, por isso, você se esquece de falar seu

    idioma? Esquece o perfume do campo? Não, isso é nossa memória e

    não podemos perdê-la”.60 

    Figura 3 - Inezita Barroso

    FONTE: jairodelimaalves.blogspot.com/2008_08_01_arch.... Acesso em: 15 de abr. de 2010.

    As palavras de Inezita remetem as orientações de Roger Chartier,

    sobre a construção das representações do mundo social que embora

    aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, sempre

    são determinadas pelos interesses de grupo que as forjam.61

    humilde, mas se tornaram proprietários de pequenos lotes de terras

    rurais, os chamados sítios.

     Por último, há o Caipira mulato, descendente de africanos com

    europeus e raramente chegou a obter grandes propriedades.57

    Independente da categoria, espaço e temporalidade, os caipiras

    não perderam sua identidade, (como nos afirma Renato Teixeira que é

    um dos únicos músicos que acredita que a música caipira não perdeu asua essência), mesmo os caipiras modernos, pois são bem-sucedidos,

    humildes e representam o sonho do brasileiro no campo.

    Já o educador e escritor Paulo Freire e o violeiro e compositor

    Roberto Corrêa dizem que essas músicas caipiras urbanizadas não

    têm nenhuma ligação com a música original. Essa passagem da

    música caipira para a sertaneja fez com que a primeira deixasse de ser

    somente arte, expressão da alma do povo, para se transformar em uma

    gigante indústria, sustentada por vendagens astronômicas e capaz de

    recompensar os vencedores com muito dinheiro e fama. Com isso, o

    caipira já perdia sua ingenuidade e a roça, seu encanto.58 

    Rolando Boldrin, filho assumido da cultura rural “tradicional”, é

    um defensor da preservação das características originais da música

    interiorana. Em seus programas que visavam preservar as tradições,

    convidava pessoas para cantar a música raiz, modas de viola, pedindo

    a todos que se apresentassem normalmente sem usar as roupas de

    shows, pois para o compositor e cantor:

    Modernizar não é você pegar uma música americana e chupar osarranjos, pegar a mexicana e botar letra em português. A gentetem que modernizar o que é da gente”.59 

    Percebe-se, assim, a crítica às influências de todo o tipo, absorvidas

    pelos artistas ditos sertanejos, influências estas representadas pelas

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    No entanto, alerta o historiador: a relação de representação não

    pode ser confundida pela ação da imaginação, que faz tornar o logro

    pela verdade, que ostenta os signos visíveis como provas da realidade

    que não é.62

    No decorrer do tempo, a moda caipira deixou de se aperfeiçoar,

    motivo pelo qual muitos não procuram mais falar sobre um passado

    que é rico e serve de exemplo para a música atual.

    2 SEGUINDO A VIDA ETOCANDO EM FRENTE...

    2.1 Amanheceu, peguei a viola:o violeiro e suas composições

    Quem não conhece o anoitecer

     / lá na roça / Da porta deuma paioça / vendo a mata

    escurecê / A lua cheia / vem lápor trás do cerrado / Espiando

    o namorado/procurando seescondê / Quem não escuitao galo / rei do terreiro / Elecanta no puleiro / vendo o

    dia clareá / [...] A lua bate /no seio virge da serra / Queenfeita o corpo da terra/ quea natureza tem / A poesia quenasceu / do seresteiro / Deste

    sertão brasileiro / Deus écaboclo também.1

    Por muito tempo o sertão inspirou os violeiros para as suas

    composições, os quais de um modo muito puro e simples escreviam

    letras e criavam melodias para retratar a vida sertaneja. Nesse sentido,

    pode-se como exemplo, citar a música “Lá no Sertão” interpretada por

    Tonico e Tinoco na década de 1960, que demonstra a riqueza, a pureza

    e a beleza da música caipira, carregada de experiências específicas da

    vida interioriana. Ao escutar a melodia e atentar à letra, o ouvinte éconvidado a se reportar ao sertão brasileiro  e imaginar o anoitecer lá

    na roça, onde pode ver a mata escurecê , escutar o galo rei do terreiro

    a cantar no puleiro e ver o dia clareá, sentindo a riqueza que a natureza

    tem, afinal o seu Criador é caboclo também.

    A música para o caipira representa os seus valores, anseios, tradições

    e todo o conjunto que compõe a sua cultura, pois apresenta o seu cotidiano,

    sua gente, vida, trabalho, amores, tristezas, alegrias, enfim tudo que faz

    parte de suas sensibilidades. Assim sendo, o estudo da música caipira

    pressupõe um breve conhecimento do meio rural, pois muitas vezes ela é

    vista como simplória e desprovida de conhecimento científico, e por isso

    tornou-se alvo de críticas por parte de diferentes grupos sociais. Porém,

    cabe aqui lembrar que a formação da música e da cultura caipira está

    relacionada a todo o processo de ocupação do território brasileiro que

    avançava para o interior estabelecendo assim, uma dicotomia entre o

    mundo “civilizado” e o “atrasado”, “ao mesmo tempo em que favorecia a

    sua mistura, da qual nasceria a cultura caipira”.67 

    Nesse sentido, para entender o significado deste estilo musical,torna-se necessário a análise dos elementos simbólicos que compõem

    o universo da vida rural.

    A música caipira é originária do meio rural e de maneira geral,

    contempla temáticas restritas ao homem do campo. Normalmente é

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     251Monografias - Universidade Tuiuti do Paraná | História | 2011

    Por meio deste viés, esta indicação remete as considerações de Roger

    Chartier sobre o conceito de apropriação, uma vez que:

    A apropriação [...], tem por objetivo uma história social dasinterpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais(que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticasespecíficas que as produzem. [...] daí o reconhecimento daspráticas de apropriação cultural como formas diferenciadas deinterpretação.71

    Assim sendo, a apropriação consiste em uma forma de mudança

    do que era original. O indivíduo está exposto a um contexto histórico

    que com relativa autonomia se apropria dos valores e símbolos

    convencionais correntes nesse meio cultural. Mas nesta transição

    cultural, certos valores e símbolos podem acabar por representar

    formas diferentes, ou seja, a apropriação da experiência é a

    construção de um sentido que pode variar em significado a coisa

    original.72

    A música caipira facilita as relações sociais entre a comunidade, o

    que permite a aproximação e uma maior sociabilidade entre os caipiras.

    Essas normalmente são criações coletivas, sobretudo, quando nos

    sertões, os artistas populares reúnem-se nas festas religiosas, com

    milhares de pessoas e passam a compor músicas a partir destes

    acontecimentos que estão vivenciando, seja na elaboração de uma

    letra, uma melodia ou através da união das duas para aguçar a sua

    criatividade e inspiração.

    Os nomes dos autores de muitas músicas caipiras acabam por seremsubstituídos pelo nome da cidade ou pelo nome de um determinado

    povoado onde foi criada a canção, como por exemplo, as canções

    intituladas: “Cana-verde de Piracicaba”, “Recortado de Olímpia”,

    “Cururu de Tietê” entre outras. Alguns nomes de compositores se

    cantada em duas vozes e acompanhada pela viola, alguns violões, a

    chamada “moda de viola”. No período colonial, as letras tratavam sobre

    as lendas indígenas e canções religiosas portuguesas. Com o tempo, as

    músicas caipiras passaram a retratar as histórias dos desbravadores.

    Na década de 20, essa moda chegou às rádios por intermédio de

    Cornélio Pires que financiou as gravações de músicas compostas por

    duplas sertanejas, não mais priorizando as várias vozes que entoavamas canções, devido à dificuldade de os estúdios suportarem um número

    muito grande de pessoas. Por esse motivo, somente duas vozes

    passaram a gravar as composições, tornando-se com o tempo uma das

    principais características da música sertaneja.68 

    Já com relação à origem do ritmo da música caipira, José Roberto

    Zan destaca a viola como o principal instrumento musical deste estilo.

    A viola, de acordo com o professor, é uma derivação do instrumento

    português chamado viola de arame ou viola braguesa (possivelmente

    originária de Braga). A moda ou a poesia cantada em duas vozes

    com o acompanhamento da viola, foram características herdadas das

    cantigas de gesta e do romanceiro tradicional ibérico. E enquanto uma

    narrativa dramática:

    [...] normalmente conta um caso extraordinário, sensacional, oudescreve um fenômeno relevante do cotidiano caipira. É bastantesemelhante ao que os nordestinos chamam de romance. O cantoem duas vozes, em intervalo de terça, característico das duplascaipiras, é outra herança européia. Mas é provável que as vozes

    agudas dos cantores tenha raízes ameríndias.69 

    Já o sociólogo Waldenyr Caldas, entende a música caipira como

    uma canção anônima e que tem a ver com o folclore, ou seja, uma música

    com funções sociais que apresenta a tradição de um povo, enquanto

    a música sertaneja é aquela já produzida no meio urbano-industrial.70 

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    Valdo da dupla com seu irmão Vael:

    É, eu acho que tem um fator interessante para quem compõe,porque de repente você está ali, você inspira uma música. Aívocê pega caneta e papel e começa. Rapidinho você está com amúsica pronta. E, de repente, você pega para escrever,: “eu tenhoque fazer uma música aqui porque eu preciso dela...”, e você nãoconsegue fazer. Às vezes eu já acordei no meio da noite e fiz umamúsica, rapidinho. E já peguei também para fazer e não consegui

    fazer. Aí tem que parar, largar para lá. Então, o compositor vive deinspiração, tem que estar inspirado para compor. E a inspiraçãonão é a hora que você quer que ela venha, não. Não é chamar eela vir. Ela tem que acontecer naturalmente. E na hora que pareceque a inspiração vem, o compositor... tem que deixar o que ele tiverfazendo para cuidar dela. Às vezes [a gente] busca inspiração eacaba não encontrando na hora que quer...74

    Viver de inspiração como relatou Valdo explica como esta ação que

    está intimamente ligada à vida psíquica e social do violeiro compositor.

    E por intermédio do seu modo de viver é que os tocadores de viola, os

    homens do sertão pedem para o povo brasileiro chegar mais perto e

    ouvir as suas vozes que trazem as notícias do seu mundo através de

    suas composições conhecidas como as famosas “modas de viola”.

    Na canção a seguir, pode-se perceber o espaço no qual o violeiro

    vive e como surgem as suas inspirações:

    perderam pela falta de registros, e com isso, tais canções foram sendo

    incorporadas ao folclore da região.

    Como já citado, na música caipira há sempre um acompanhamento

    vocal, pois os rituais religiosos e as músicas de trabalho e de lazer do

    canto rural guardam a tradição das cantorias coletivas, portanto, essa

    música é produto das relações sociais entre as pessoas que compõem

    o cenário da “cultura rústica”.O tempo de duração destas músicas geralmente é muito longo,

    e devido a isso, tais canções não teriam chances de fazer sucesso

    na indústria fonográfica, por se tornarem monótonas ao gosto dos

    ouvintes. Para que uma canção caipira obtivesse sucesso, teria que

    se adaptar as exigências da indústria cultural fonográfica. No entanto,

    esta adaptação a descaracterizaria, uma vez que alteraria as suas

    formas originais, conduzindo-a consequentemente, a perder a sua

    identidade enquanto um produto da cultura rústica.

    Outro traço que identifica a música caipira envolve as questões

    técnicas, como por exemplo, os seus instrumentos musicais (viola,

    triângulo, surdo, e pandeiro). No entanto, como já mencionado, a viola

    é um dos símbolos mais significantes deste estilo musical. Muitos

    cancioneiros, musicólogos, entre outros estudiosos afirmam que não

    basta estudar e treinar para ser um bom violeiro, afinal como disse

    Chico Lobo, “deve-se recorrer aos santos ou ao capeta se preferir, mas

    principalmente deve-se aceitar seu destino”.73

    Todavia, segundo as tradições, de nada adianta os pactos, simpatiase crenças, se o violeiro não tiver as suas inspirações, e é o meio em que

    vive o violeiro que fornece a estrutura perfeita para as suas inspirações

    e conseqüente composições. A relevância da inspiração na hora de

    compor uma música, pode ser confirmada por meio de relato do cantor

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    Ideal de Caboclo76

    (Cornélio Pires)

    Ai, seu moço, eu só quiriaPra minha filicidade,

    Um bão fandango por dia,

    E um pala de qualidadePórva, espingarda e cutia,Um facão fala-verdade

    E uma viola de harmonia

    Pra chorá minha sódadeUm rancho na bêra d´água,Vará de anzó, pôca mágoa,

    Pinga boa e bão café...Fumo forte de sobejo...Pra compretá meu desejo,

    Cavalo bão – e muié!

    Neste poema, é possível visualizar a vida, o desejo, a felicidade do

    caipira, tendo um fandango  como parte do seu ritual, um facão , a viola,

    um rancho  com um açude, ou um lago onde possa pescar, uma pinga,

    um café , um fumo , sem deixar de lado um dos seus “companheiros”

    que é o cavalo , e para completar, uma muié .Tal modo de viver pode ser comprovado também em um soneto

    clássico da literatura regionalista de Tonico e Walter Amaral,

    interpretado pela dupla Tonico e Tinoco ao demonstrar o cotidiano

    simples de um violeiro:

    O violeiro toca75

    (Almir Sater / Renato Teixeira)

    Quando uma estrela caiNo escurão da noite

    E um violeiro toca suas

    MágoasEntão os olhos dos bichosVão ficando iluminados

    Rebrilham neles estrelasDe um sertão enluaradoQuando o amor terminaPerdido numa esquina

    E um violeiro toca sua sinaEntão os olhos dos bichosVão ficando entristecidos

    Rebrilham neles lembranças

    Dos amores esquecidosTudo é sertão, tudo é paixão

    Se um violeira toca

    A viola e o violeiroE o amor se tocamQuando o amor começa

    Nossa alegria chamaE um violeiro toca em nossa

    CamaEntão os olhos dos bichosSão os olhos de quem ama

    Pois a natureza é issoSem medo, nem dó,

    nem drama

     

    Esse fragmento da música de viola apresenta os sentimentos do

    violeiro em relação ao seu meio e a sua arte na qual tudo é sertão,

    paixão  uma vez que a viola, o violeiro e o amor estão conectados e

    através desta conexão o violeiro em suas composições expõe as suas

    sensibilidades e experiências de vida. Dentro desta cadência, o violeiro

    demonstra uma outra identidade e cultura e nos remete a um Brasil

    profundo, de raiz, fornecendo assim, um caráter regional e universal àmúsica brasileira.

    Cornélio Pires em um de seus sonetos de 1910 conseguiu traduzir

    os desejos e ideais do violeiro, mas deixemos o próprio compositor

    apresentar:

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    usar a madeira emburana de espinho; o braço é feito de cedro; o

    espelho, cravelhas e ornamentos de caviúna (candeia) e a lateral feita

    de pinho, a qual na maioria das violas encontradas é a madeira mais

    utilizada para o tampo, pois, de acordo com os violeiros, o pinho é a

    madeira que dá a viola uma melhor sonoridade.79 Afinal como cantam

    Marcos e Sérgio Paulo Valle a “viola em noite enluarada no sertão é

    como espada e esperança”.80

     No campo ou na cidade, a viola é a sempre presente companheira

    do violeiro que a ela devota o seu amor. Tanto nas horas boas quanto

    nas ruins, a viola sempre será a grande amada, pois é ela:

    Que leva alegria ao sertão inteiroTrazendo saudade dos que já morreramNas noites de lua, no chão do terreiro

    Consolando a mágoa do triste violeiro.81

    A viola cabocla é brasileira e sua melodia atravessou fronteira,

    Levando a beleza pra terra estrangeiraNo nosso sertão é a mensageira

    É o verdadeiro amareloDa nossa bandeira.82

    Afinal o timbre da viola cabocla não falha, pois,

    Criada no mato como a samambaiaVeio pra cidade com chapéu de palhaE trouxe sucesso vencendo a batalha

    Voltou pro sertão trazendo a medalha!82

    Brasil Caboclo77

    (Tonico e Walter Amaral)

    Amanhecer na minha roça,vem surgindo o clarão

    Caboclo deixa a palhoçapra fazer a plantação

    O carro de boi gemendono arco do chapadão

    Os passarinho cantandofazendo um barulhão

    Esse é o Brasil caboclo

    esse é meu SertãoCasinha de palha

    lá no ribeirãoUma linda cabocla

    e um cavalo bomSom de uma violaalegra a solidão

    Este é o Brasil caboclo,este é o meu sertão [...]

    Este fragmento da música “Brasil caboclo” relata o universo

    simbólico da vida rural, a vida simples do caipira violeiro retratando o

    Brasil do sertão, onde o som de uma viola alegra a solidão  no arco do

    chapadão.Percebe-se nas canções acima citadas que a viola é a principal

    companheira dos violeiros nas horas de suas composições, pois é o

    instrumento que lhes dá vida, sendo considerada a alma da música

    ruralista. E é justamente a viola que identifica a tradição caipira e suas

    raízes.

    Cabe ressaltar que, o encordoamento da viola se diferencia do

    tradicional violão, sendo menor e com cintura mais acentuada. De

    maneira geral, possui dez cordas, seja de aço ou algumas revestidas

    de metal, sendo estas agrupadas duas a duas. Muitos destes

    instrumentos, geralmente são confeccionados de forma artesanal.

    Um dos raros “fabricadores” de violas e rabecas no Brasil é Zé Coco

    do Riachão, artesão que utiliza uma cola feita de banana do mato,

    conhecida também por sumaré. No tampo da viola, o artista costuma

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    2.2 E... mexe, mexe que é bom:e a roça chega à cidade

    Galo cantou / Madrugada naCampina / Manhã menina / Tá

    na flor do meu jardim / Hojeé domingo / Me desculpe eu

    to sem pressa / Nem precisode conversa / Não há nadaprá cumprir / Passar o dia /

    Ouvindo o som de uma viola85 

    Quando se observa as diferenciações entre a música sertaneja,

    entendida aqui como a música produzida para o mercado fonográfico

    e a música caipira ou de raiz, que neste caso é vislumbrada como

    um meio de oração e lazer, de autoria anônima

    quando religiosa ou de compositor conhecido dacomunidade quando de caráter profano (festas,

    mutirões, trabalho); percebe-se que esses

    gêneros musicais expressam sempre concepções

    coletivas.86 E esta percepção pode ser comprovada

    se colocadas em evidência duas composições

    distintas como, por exemplo, “Tristeza do Jeca”,

    composta em 1918 por Angelino de Oliveira e que

    chegou às rádios através das vozes de Tonico eTinoco na década de 30.

    Chegando à cidade, o violeiro junto de sua viola encontra muitas

    pessoas que mantém um estigma de preconceito quanto ao interior, o

    sertão, a música ruralista, sem entender a relação que há entre a viola

    e o violeiro, mas mesmo assim, o violeiro e a viola vencendo a batalha,

    voltaram pro sertão trazendo a medalha, e disseram que:

    Tem gente que não gosta da classe de violeiro

    No braço desta viola defendo meus companheiros

    Pra destruir nossa classe tem que matar primeiro

    Mesmo assim depois de morto ainda eu atrapaio

    Morre um homem, fica a fama e minha fama dá trabaio.83

    E é desta forma que o violeiro se defende dizendo que todos que

    nasce no mundo tem seu destino traçado assim como o destino de ser

    um violeiro, e que junto de sua viola não pode ser

    derrotado.A viola caipira é a alma da música ruralista, o

    elemento essencial da tradição e é através dela que

    se identifica as raízes da música caipira. Diante de

    todas estas colocações Rosa Nepomuceno afirma

    que “[...] a viola é o coração da música brasileira, ela

    que dá forma as melodias e às poesias que definem

    o perfil musical do povo da terra”.84 Desta forma,

    é a união harmoniosa entre a viola e o violeiro, que

    compõe e fornece a vida à música caipira. Porém,ao longo do tempo, essa relação recebeu uma nova

    roupagem, voltada para o mercado fonográfico,

    que passou a se chamar música sertaneja, como

    será abordado a seguir.

    Figura 4 – Viola Caipira Rozini

    FONTE: http://www.ccbhinos.com.br/foto_/23072008115400.JPG. Acesso em: 21 deabr. de 2010.

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    Da mesma forma que o modo de viver do caipira, retrata o

    universo no qual ele está inserido, algumas dessas características se

    tornaram fundamentais para identificar a música sertaneja. Mesmo

    que essa tenha recebido uma nova roupagem, o pop-sertanejo ou

    o sertanejo romântico, nos quais foram incorporados instrumentos

    eletrônicos, (como a guitarra no lugar da viola caipira, o teclado no

    da sanfona), a música sertaneja não deixou de lado os seus versossimples ao falar do amor, da saudade, da mulher amada, da família,

    da terra e de fazer menção às figuras emblemáticas como o boi, o

    vaqueiro e o sertanejo.

    No entanto, no que concebe a diferenciação entre a música

    caipira e a sertaneja, alerta o professor Roberto Zan que:

    É importante lembrar que esse estilo de música popular,identificado como sertanejo ou caipira, nos remete a umdeterminado modo de vida ou a um tipo de sociedade que, naatualidade, praticamente desapareceu. O desenvolvimento docapitalismo no Brasil, acompanhado pela industrialização e pelaurbanização da sociedade brasileira, especialmente ao longodo século 20, provocou o rompimento do “equilíbrio ecológico esocial” desse modo de vida. Mas, apesar da sua desintegração,aspectos dessa cultura ainda sobrevivem na memória de boaparcela da população brasileira.89 

    Ao longo do século XX, os aspectos do modo de vida do homem

    rural foram incorporados na música popular brasileira. Por volta do

    ano de 1910, época em que

    o mercado fonográfico se instaurava no Brasil, já se ouvia falarsobre o estilo musical sertanejo raiz. Em 1929, o jornalista Cornélio

    Pires decidiu gravar o primeiro disco de música caipira na gravadora

    Columbia no Brasil e a partir desta produção, a indústria fonográfica

    se interessou em explorar esse novo segmento fonográfico. Devido

    Tristeza do Jeca87

    (Angelino de Oliveira)

    Nestes versos tão singelos

    Minha bela, meu amor

    Pra você quero contar

    O meu sofrer e a minha dorSô igual a um sabiá

    Quando canta é só tristeza

    Desde um gaio onde ele está

    Nesta viola canto e gemo de verdade

    Já o outro exemplo, corresponde a “Eu e Deus no sertão” de Victor

    Chaves, interpretada por Victor e Léo em 2009.

    Eu e Deus no Sertão88

    (Victor Chaves)

    Nunca vi ninguém viver tão feliz

    Como eu no sertão

    Perto de uma mata e de um ribeirão

    Deus e eu no sertão

    Ao analisar as composições, pode-se inferir que essasdemonstram um apreço atemporal pela música sertaneja e suas

    inconfundíveis figuras emblemáticas que mantêm um público fiel à

    tradição da música rural formando assim, um elo entre o campo e

    a cidade.

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    Figura 6 - Foto memorável de artistas famosos, onde além de tonico e tinoco, ao centro,

    aparecem agachados, Nhá Neide, Antonio e Antoninho e Sertãozinho.

    FONTE: http://www.widesoft.com.br/users/pcastro4/fotostt.htm. Acesso em: 23 de abr. de

    2010.

    Para o professor, o mercado fonográfico brasileiro passou por

    um boom  devido à música sertaneja ou “sertaneja romântica” e o

    apogeu desse gênero ocorreu, principalmente, no período entre 1989

    a 1992.91 A produção deste novo estilo atraiu um grande público por

    estar composta por:

    [...] duplas mais suscetíveis às novas influências estilísticas.

    São artistas populares que vão produzir para um público demassa também suscetível às mudanças, à “modernização” damúsica sertaneja. Produtores, diretores artísticos e profissionaisde marketing fonográfico que atuam em gravadoras conhecemo público e indicam as inovações para garantir a vendagem dediscos.92

    a esse interesse surgiram vários compositores e duplas como: Raul

    Torres, Teddy Vieira, João Pacífico, Jararaca e Ratinho, Alvarenga e

    Ranchinho, Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, entre outros

    representantes da música sertaneja de “raiz”.90 

    Figura 5 - A turma caipira de Cornélio Pires - foto de 1929 - da esquerda para a direita, empé: Ferrinho, Sebastião Ortiz de Camargo, Caçula e Arlindo Santana. Sentados: Mariano,

    Cornélio Pires E Zico Dias.

    FONTE: http://www.lucianopires.com.br/idealbb/view.asp?topi.... Acesso em: 23 de abr. de2010.

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    formais e em conteúdos a música sertaneja. Agora os compositores

    não mais se orientam pelo seu meio de vivência para compor as suas

    músicas, e sim pelas tendências de mercado que definem os temas e

    os estilos que devem seguir para garantir a maior vendagem possível.97 

    Nesta categoria, as composições muito longas não se adequam mais

    ao gosto do consumidor que hoje vive a cultura do descartável.

    Provavelmente muitas modalidades de música caipira não foramincorporadas pela indústria fonográfica, e as que foram, sofreram

    adaptações aos padrões técnicos de produção.98

    Para ilustrar esse contexto de mudanças no epicentro da música

    caipira e sua adaptação a música sertaneja, Roberto Zan apresenta um

    trecho do depoimento da dupla Tonico e Tinoco concedido ao programa

    Ensaio  da TV Cultura de São Paulo. Para Tinoco:

    [...] hoje o mundo mudo muito [...] então nóis tivemo que evoluitambém. Não saimo do estilo mais fazemo umas mensaginha mais

    curta e mais alegrinha, porque o povo, hoje, eles ouve uma músicaassim, olhando no relógio, sempre tem o que fazê. [...] Mais hojeentão, a mensage é mais curta: é começo, meio e fim. Antigamente,eu com o Tonico, nóis cantava ‘romance’, com bolinho e tudo de cor.[...] Nóis tinha diversos ‘romance’ que nóis cantava lá na fazendae era bem apreciado.99 

    Percebe-se neste depoimento que a modalidade de música caipira

    foi modificada, pois, antigamente nóis cantava romance ,100  e agora

    eles fazem  umas mensaginha mais curta, pois, o povo, hoje , vive

    compromissado com o relógio moral inserido em suas vidas. Portanto,a música caipira, ao ser incorporada pelo disco, passou a sofrer

    mutilações e diluições para poder se adaptar ao mercado fonográfico

    de produção, em que se insere em um novo modo de fruição da música,

    ou seja, o ouvir desinteressado.101

    Além disso, continua o professor, ocorreu uma ressignificação da

    imagem atribuída ao homem do sertão uma vez que:

    A antiga imagem estereotipada do caipira mal vestido, banguela,com chapéu de palha foi superada. As novas duplas usam roupasde grife, cabelo bem-cortado, têm os dentes tratados, etc. Asmudanças estilísticas também têm apelo comercial destinado a umpúblico ávido por novidades. A viola foi substituída por instrumentoseletrônicos como guitarra, o contra-baixo elétrico e teclados,

    além de bateria e, eventualmente, bancada e instrumentos depercussão.93 

    Mesmo com todas estas mudanças e diferenças entre a música

    caipira de raiz e a sertaneja, é importante destacar que:

    Tanto as composições como os arranjos apresentam elementos damúsica urbana de massa, especialmente das baladas românticas daJovem Guarda. Portanto, da música caipira de fato restam poucosaspectos. Talvez, as vozes agudas dos cantores e, os duetos emterça, porém empregados de modo mais econômico.94

    A música sertaneja, para o professor, “não é uma onda passageira,

    não é um modismo, assim como foi a lambada, por exemplo, a música

    sertaneja com as canções românticas cantadas por vozes agudas

    obtiveram um público fiel.”95

    Esse estilo musical está inserido em um outro contexto social.

    Mesmo que apresente elementos poético-musicais similares aos da

    música caipira, o seu objetivo e a sua produção têm como finalidade

    a vendagem de discos. Afinal, a música sertaneja “[...] não medeia as

    relações sociais na sua qualidade de música, mas na sua qualidade demercadoria [...]. É diversa da música caipira porque circula revestida da

    forma de valor de troca, sendo esta a sua dimensão fundamental.”96 Diante desta afirmação, pode-se constatar que a indústria e

    o mercado de discos forçaram as modificações em seus aspectos

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    matrizes principais vindas da música caipira, como o canto com um registro

    vocal agudo e em duas vozes com intervalos de terça, a viola caipira como

    acompanhamento instrumental e uma variedade razoável de ritmos.103

    Figura 8 – Cartão postal de Tonico e Tinoco a dupla coração do Brasil

     

    FONTE: www.widesoft.com.br/users/pcastro4/fotostt.htm. Acesso em: 24 de abr. de 2010.

    Figura 7 – Show de Tonico e Tinoco e seu amigo Nho Zé – 1940

     

    FONTE: www.widesoft.com.br/users/pcastro4/fotostt.htm. Acesso em: 24 de abr. de 2010.

    Outra passagem interessante refere-se ao modo de cantar

    dos antigos violeiros, como relatou a dupla Tonico e Tinoco. No afã

    de preservar as suas músicas e cantá-las em seus novos estilos, ao

    chegarem nos estúdios da Continental, enfrentaram novos obstáculos;

    mas deixemos a dupla falar:

    A gente tava acostumado a cantar na roça, pros amigos, nuncatinha entrado num estúdio. Chegamo, ajeitamo a goela, o peito,e abrimo a boca. Pronto, o microfone estourou. O técnico veio,mexeu e remexeu e disse ‘tá estourado’. De castigo gravemo sóum lado do disco [...]102 

    O que se pode notar diante destes comentários, é que mesmo com

    todas as transformações, a música sertaneja preservou traços de suas

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    Dura, Chico Rei e Paraná, João Mineiro e Marciano, Nalva Aguiar e

    Roberta Miranda.106

    Portanto, como já citado, houve uma internacionalização gradual

    do gênero desde as modas tradicionais uma vez que passou pela

    adição de ritmos latino americanos (guarânia, rasqueado, canção

    ranchera, corrido e bolero mexicanos) e pela influência do rock  

    (o chamado ritmo jovem) e por fim, da indústria musical em queincorporou a balada internacional e, nos anos 90, de elementos do

    country  estadunidense.107

    Mesmo que os ritmos, os contornos melódicos e a instrumentação

    tivessem sido incorporados no estilo musical sertanejo, não são

    estes que a caracterizam, pois, “a música sertaneja mantém sua

    consistência como gênero no emprego do estilo vocal e na letra com

    ênfase no cotidiano.”108 Como alerta a professora Martha Tupinambá

    de Ulhôa ao analisar a música sertaneja na década de 1990:

    A música sertaneja raiz ou música caipira era inspirada pela vidano campo, pela chamada tradição rústica dos bairros rurais. Elaconectava nostalgicamente o migrante às suas raízes. A músicasertaneja moderna, ou música sertaneja romântica, refletiu asmudanças que ocorreram na vida rural: proletarização do homemdo campo, acesso imediato aos modelos urbanos através datelevisão, consumismo etc. Seus temas mudaram de épicos ebucólicos para líricos e realistas. O migrante do campo aindarelembra com pesar os “velhos tempos”; seus filhos já são outracoisa, nasceram, cresceram e vivem na cidade.109

    Além disso, “muitas das letras das músicas raiz denunciam atransferência de pobreza de áreas rurais para áreas urbanas.”110 Ou

    seja, é a música sertaneja refletindo as mudanças que ocorreram

    na vida rural. E assim de acordo com a musicóloga, a maioria das

    canções caipiras das décadas de 1930 e 1940, “enaltecia a vida

    Com relação às letras, algumas composições ainda utilizam dos

    romances, tanto no aspecto formal quanto no temático. Mas por outro

    lado, a música sertaneja assimilou elementos temáticos, estilísticos

    e performáticos de outros gêneros. A sátira política, a guarânia, a

    polca paraguaia, a rancheira, o bolero mexicano, o xote, o baião, hoje

    também complementam o repertório de algumas duplas, além do

    country music , baladas italianas e as músicas da Jovem Guarda dosanos 60.104 

    Compartilhando das indicações de José Roberto Zan, torna-se

    difícil identificar com precisão o momento exato em que as fusões

    de elementos musicais e temáticos de outros gêneros começaram

    a se processar na música sertaneja, porém é correto afirmar que,

    desde o momento o qual a música caipira foi apropriada pela indústria

    fonográfica ela começou o seu processo de desenraizamento, e:

    [...] Rompidos os seus laços com o meio rural tradicional, [...]

    caiu num novo espaço indiferenciado e sem fronteiras, ou seja:o mercado. Agora, as condições para as diluições e reciclagemde estilos tornaram-se mais propícias. Porém, tudo indica queos traços estilísticos que caracterizam a atual música sertanejaromântica começaram a se manifestar ainda nos anos 50.105

    No final dos anos 1960 teve início a fase moderna da música

    sertaneja, na qual foram introduzidas a guitarra elétrica e o ritmo

    da Jovem Guarda. Nessa fase, os cantores em forma de dueto

    ou solo apresentavam canções muitas vezes em ritmo de balada

    com letras românticas que tratavam de amor com clara inspiraçãourbana. Em algumas canções sertanejas, interpretadas por solistas,

    foi dispensado o recurso tradicional da dupla. Os artistas que

    representaram essa tendência foram: Chitãozinho e Xororó, Leandro

    e Leonardo, Zezé di Camargo e Luciano, Christian e Ralf, Trio Parada

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    Disparada113

    (Geraldo Vandré / Théo Barros)

    Prepare o se